SENTIDOS E PERCURSOS DA LOUÇA DE BARRO - Livros...

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Ricardo Gomes Lima O POVO DO CANDEAL : SENTIDOS E PERCURSOS DA LOUÇA DE BARRO TESE DE DOUTORADO EM CIÊNCIAS HUMANAS (ANTROPOLOGIA CULTURAL) Orientadora: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA RIO DE JANEIRO BRASIL 2006

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Ricardo Gomes Lima

O POVO DO CANDEAL : SENTIDOS E PERCURSOS DA LOUÇA DE BARRO

TESE DE DOUTORADO EM CIÊNCIAS HUMANAS (ANTROPOLOGIA CULTURAL)

Orientadora: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA RIO DE JANEIRO

BRASIL 2006

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O POVO DO CANDEAL : SENTIDOS E PERCURSOS DA LOUÇA DE BARRO

Ricardo Gomes Lima

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA – do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas (Antropologia Cultural).

Orientadora: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti.

Rio de Janeiro Abril de 2006

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Lima, Ricardo Gomes O povo do Candeal : sentidos e percursos da louça de barro / Ricardo Gomes Lima.

Rio de Janeiro : UFRJ, IFCS, 2006. x, 234 f. : il. ; 30 cm Orientador : Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti. Tese (Doutorado em Antropologia Cultural) – UFRJ, IFCS, Programa de Pós-

Graduação em Sociologia e Antropologia, 2006. Bibliografia : f. 206-215. 1. Produção Artesanal – Minas Gerais. 2. Cerâmica. 3. Relações de parentesco. 4. Organização social. 5. Sistema de representação. I.Cavalcanti, Maria Laura Viveiros de Castro, orientador. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. III. Título.

iv

O POVO DO CANDEAL : SENTIDOS E PERCURSOS DA LOUÇA DE BARRO

Ricardo Gomes Lima

Orientadora: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti. Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e

Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de

Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências

Humanas (Antropologia Cultural).

Aprovada por:

_________________________________________________

Presidente, Prof. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti

_________________________________________________

Prof. Antônio Augusto Arantes

_________________________________________________

Prof. Wallace de Deus Barbosa

_________________________________________________

Prof. Myriam Moraes Lins de Barros

_________________________________________________

Prof. Letícia Vianna

Rio de Janeiro Abril de 2006

v

Para Maria Heloísa Fénelon Costa e Berta Gleiser Ribeiro, in memoriam, com quem aprendi que os objetos constituem um mundo pleno de sentidos e cujos percursos cabe a nós investigar.

vi

Agradecimentos Howard Becker é um dos autores a quem recorri na elaboração desta tese. A noção de que

o mundo da arte implica o envolvimento de inúmeros atores que são responsáveis pelo

acontecimento do fenômeno artístico indica a dimensão coletiva da ação social. Como

ensina Becker, num concerto de música clássica, o regente é importante assim como toda a

orquestra. E não apenas o regente e os músicos. São igualmente importantes o compositor

e o copista, o responsável pela sala de espetáculo e o bilheteiro. Também o luthier, o

criador de cavalos dos quais se extraíram os fios da crina com que foram feitas as cordas

do arco do violino e todos aqueles que, de alguma forma colaboraram para a realização

final do concerto são importantes.

É assim que vejo esta tese. Como resultado da ação coletiva, um mundo em que, direta ou

indiretamente, muitas pessoas estiveram envolvidas e que são aqui nomeadas porque foram

igualmente importantes para sua realização. Apenas a responsabilidade de havê-la

redigido, que me cabe integralmente, pode ser considerada uma ação solitária. Em todos os

demais aspectos a tese foi um trabalho compartilhado. Da pesquisa de campo à redação,

jamais estive só. Muitos viajaram comigo, sofreram as dúvidas de um projeto que assumia,

sem subterfúgios, intervir na realidade social para transformá-la. Atentos à alteridade,

enfrentaram o risco de invadir as vidas de outros indivíduos, compartilharam certezas no

propósito das ações, alegraram-se com algumas vitórias e se frustraram nos momentos de

derrota. Mãos que se uniram às minhas, dedos que se somaram aos meus, teclando o

computador, buscando as palavras mais certas, as idéias que melhor expressavam a

realidade que cabia a mim comunicar, a linguagem mais correta. A todos quero agradecer

neste momento.

Ao Programa Artesanato Solidário, posteriormente transformado na Central ArteSol e a

seus parceiros Sudene e Sebrae que subsidiaram os custos que o projeto de intervenção

vii

demandou e as viagens que o trabalho de campo requereu. A Ruth Cardoso, Adriana

Zarvos de Medicis, Regina Dunlop e Helena Sampaio, suas dirigentes, pela confiança em

mim depositada.

Ao Instituto de Artes da UERJ, onde leciono, aos funcionários da secretaria, na pessoa de

Teresa e, especialmente, a meus colegas do Departamento de Ensino da Arte e Cultura

Popular, Cascia Frade, Isabela Frade e Felipe Ferreira pelo apoio, amizade e compreensão

quanto às ausências e ao pouco envolvimento com a vida departamental durante o tempo

de redação desta tese; ao professor Jorge Cruz pela amizade e aos queridos alunos que

sempre me instigam a lutar por um mundo da arte menos etnocêntrico e mais aberto às

alteridades.

Aos colegas do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, do Iphan; lugar de

aprendizado e prática que me obriga a ver e a rever permanentemente minhas ações e meus

conceitos. A todos quero agradecer pelo apoio e incentivo nessa trajetória, especialmente

pela paciência em suportar o convívio com um doutorando sempre estressado. No CNFCP,

minha gratidão é grande para Claudia Marcia Ferreira, chefe e amiga sempre, mestre e

doutora na arte de dirigir uma instituição que, como todo órgão público, sabemos estar

longe de ser o paraíso perfeito. Ao longo de anos, Claudia tem sabido como tornar mais

leve a carga que nós, funcionários, temos de suportar no dia-a-dia institucional. Sem seu

empenho direto, essa qualificação não teria ocorrido. Lucia Yunes, pela amizade real e por

sabê-la sempre ali; Letícia Vianna, companheira de toda hora, especialmente lembrada nos

piores momentos pela certeza do ombro amigo; Guacira Waldeck pela interlocução arguta,

Luciana Gonçalves, companheira sempre presente; Dil Fonseca e Elizabete Mendonça que

até se envolveram na busca de dados sobre o Candeal e sua cerâmica; Gislaine pela

assistência a toda prova; Vera, Márcia e Chico pelo auxílio quanto às fotografias.

viii

Elisa Mesquita, Teresinha Vilela e Maria Helena Tores, amigas eternas que muito me

auxiliaram no momento da redação; Marisa Colnago pela organização das fontes

bibliográficas, Luciana Genari pelo mapa dos pólos de cerâmica; Fernanda de Abreu, pela

digitalização e catalogação das imagens que compõem o anexo.

Ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Sociologia do Instituto de Filosofia e

Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro que prontamente me recebeu

quando busquei a qualificação de doutor em antropologia, a Denise e Claudia, da

Secretaria e, especialmente, aos professores José Reginaldo Gonçalves, Maria Laura

Viveiros de Castro Cavalcanti, Glaucia Vilas Boas e Ana Maria Galano (in memoriam)

com os quais tive o privilégio de aprender.

Aos colegas de curso Astréia, Cristina, Márcia, Tânia Eliane, Elizabeth, Alexandre e

Nilton pelo convívio prazeroso e pela irmandade cúmplice.

Aos professores José Reginaldo, Elsje Lagrou e Maria Laura que leram o projeto de

qualificação e com generosidade extrema apontaram questões e caminhos que procurei

seguir, eximindo-os, no entanto, de qualquer responsabilidade pelos tropeços e falsos

atalhos que tomei nessa caminhada.

Desde já, sou grato aos professores Elsje Lagrou, Miryam Moraes Lins e Barros, Wallace

Barbosa e Antonio Augusto Arantes pela magnanimidade em deixar de lado múltiplos

compromissos e paralisar outras atividades para ler e comentar esta tese.

A Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, senhora de raras qualidades, capaz de aliar

conhecimento sólido à maneira correta de transmiti-lo, autoridade de mestre a afeto de

amiga. Sem sua ajuda a caminhada teria se tornado muito árdua, senão impossível.

A Luiz Ricardo Prado de Oliveira, meu terapeuta que, desde o início, vem acompanhando

os passos deste percurso, evitando meus tombos e, quando ocorreram, ajudando-me a

levantar.

ix

A Vera, Barbara e Rodrigo, minha família, agradecer é pouco. Por mais que eu escreva,

jamais conseguirei dizer o quanto lhes sou grato pelo auxílio que me deram, pela paciência

e pelo carinho, em especial na fase de redação, quando transformei nossa casa num

verdadeiro inferno. E quanto os amo.

Não posso deixar de incluir aqui as pessoas de Januária com as quais trabalhei e muito

aprendi acerca de amizade: Mônica, Vânia, Ana Alayde e, especialmente, Teresa Cristina

do Carmo Pereira, com quem trabalhei durante os anos de projeto e que se transformou

numa irmã. Também seu Pompeu e dona Zezé que, por diversas vezes, me acolheram em

sua casa no povoado do Candeal. Os prefeitos municipais de Cônego Marinho, Antonio

Tupiná e Nato, pelo apoio sempre presente.

Ao povo do Candeal.

x

RESUMO

O POVO DO CANDEAL : SENTIDOS E PERCURSOS DA LOUÇA DE BARRO

Ricardo Gomes Lima

Orientadora: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti.

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de

Doutor em Ciências Humanas (Antropologia Cultural).

Louça de barro: feita para autoconsumo, para presentear vizinhos e parentes e para

ser comercializada, dentro e fora do universo em que é produzida. Modelada quase que só

por mulheres, há muitas gerações na localidade do Candeal, no Norte de Minas Gerais, a

produção esteve próxima da extinção, sendo revitalizada por um projeto de intervenção

que buscava o desenvolvimento social, tomando por base o fazer artesanal local.

Esta tese, ao analisar o processo de feitura dos objetos e seu significado para os

agentes envolvidos com o mundo da louça nas esferas local, regional e nacional, revela

como essas pessoas vão construindo e transformando sua própria história através da louça,

como tecem uma rede de relações sociais e estabelecem o sistema de representação que os

orienta no trânsito por diferentes níveis da realidade social.

Palavras-chave: 1. Produção Artesanal – Minas Gerais. 2. Cerâmica. 3. Relações de

parentesco. 4. Organização social. 5. Sistema de representação. 6. Antropologia do objeto

Rio de Janeiro Abril de 2006

xi

ABSTRACT

THE CANDEAL PEOPLE : SIGNIFICANCE AND ROUTES OF CLAY OBJECTS

Ricardo Gomes Lima

Orientadora: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti.

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de

Doutor em Ciências Humanas (Antropologia Cultural).

Objects of clay: made for self-usage, to offer to neighbors and relatives, and to be

commercialized, in and outside of the universe in which they are produced. For many

generations being molded almost exclusively by women in Candeal, a place in Northern

Minas Gerais, the production of clay objects was close to extinction, being revitalized by

an interventionist project that aimed at social development, having for basis the

craftsmanship found in the place.

This dissertation, when analyzing the process of the making of these objects and its

meaning to the agents involved with this universe in local, regional, and national levels,

reveals how these people construct and transform their own personal history through the

objects they produce, as well as how they weave a net of social relation and establish the

system of representation that guides them on their way through different levels of social

reality.

Keywords: 1. Craftsmanship – Minas Gerais. 2. Ceramics. 3. Kinship. 4. Social

Organization. 5. Representation system. 6. Anthropology of the object.

Rio de Janeiro Abril de 2006

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 1 CAPÍTULO 1 Territorialidade, memória, genealogia 7

Uma cartografia nativa 8 As unidades domésticas e o sistema genealógico 13 Memória como processo social 36 Uma genealogia dos moradores da Olaria 41 O olhar externo 45

CAPÍTULO 2 Processo de produção, gênero e organização social 63

A produção de tijolo de adobe 64 A produção de tijolo maciço 67 A produção de telha canal 70 A louça de barro: o domínio da produção 74 Acesso à matéria prima e modelagem 81 A pintura das peças: os padrões de decoração 90

CAPÍTULO 3 Cerâmica, parentesco e reciprocidade: autoconsumo e circulação de louça pelas unidades domésticas locais

109

Louça para autoconsumo 112 A circulação da louça e o consumo local 122 O pote: importância e significado na cultura local 127 A circulação da louça: a dádiva e a reciprocidade 135

CAPÍTULO 4 O consumo regional 147

A louça do Candeal: mediação entre mundos 151 Da Olaria para fora: passado e presente 153 Louceiras e “compradores”: vivendo uma “situação social”

162

Os “compradores” 167 O Mercado de Januária e a comercialização regional da louça

171

CAPÍTULO 5 A amplicação do mundo da louça 183 CONCLUSÃO 203 BIBLIOGRAFIA 206

ANEXOS 216

Anexo I – Relação de alunos da Escola Estadual de Candeal

217

Anexo II – Quadro genealógico dos moradores da Olaria

218

Anexo III – Listagem nominal da genealogia segundo as gerações

220

Anexo IV – Padrões de pintura 224

1

Apresentação

Em setembro de 1992 estive pela primeira vez no norte de Minas Gerais, além do rio São

Francisco, mais precisamente em Januária. Fui em busca da boa cachaça mineira. Desde a

década anterior, os anos 80, o Museu de Folclore Edison Carneiro, onde trabalho,

desenvolve um programa sistemático de aquisição de acervos relativos às culturas

populares brasileiras,1 objetivando suprir lacunas em suas coleções. Uma das vertentes

desse programa refere-se às tecnologias tradicionais de produção de alimentos. Busca, a

partir de análise e documentação de realidades específicas, reunir conjuntos completos de

objetos que sejam exemplares de diferentes sistemas culinários, dos modos diversificados

pelos quais o alimento é produzido no país, seja pela extração direta da natureza (como a

coleta de castanha-do-pará e a pesca e a caça no noroeste fluminense), pela criação (a

pecuária das áreas de campanha no sul do país) ou pela agricultura, evidenciada no cultivo

de mandioca e na produção de farinha no Pará, no plantio de uva e sua transformação em

vinho na região serrana do Rio Grande do Sul, e no plantio de cana-de-açúcar e a

decorrente produção de aguardente e rapadura no norte de Minas Gerais.

No Mercado Municipal de Januária, em meio aos produtos que são comumente

encontrados nas feiras livres e nos mercados de todo o país, como legumes, verduras,

frutas, carnes e cereais, chamaram-me a atenção os objetos artesanais de origem regional.

O mercado fazia-se vitrina e ponto de escoamento do que se produzia na região. E, dentre

todos, destacavam-se os objetos cerâmicos que, segundo me informaram, tinham origem

no Candeal, um lugarejo que distava cerca de 50km dali.

Desincumbido do objetivo primeiro da viagem, tendo coletado junto aos produtores rurais

da localidade de Brejo do Amparo um alambique de cobre, dornas, cochos, grades e

fôrmas de madeira, enfim, o complexo tecnológico utilizado na região para se fazer

cachaça e rapadura, pude ir em busca do Candeal, para conhecer aqueles que eram os

responsáveis pela produção dos objetos de cerâmica que haviam despertado meu interesse.2

1 O Museu de Folclore integra o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular / Iphan, Ministério da Cultura, e, por razões operacionais, utiliza o termo popular no singular, reconhecendo, no entanto, que a categoria abriga uma ampla gama de expressões de cultura que são o resultado de processos, experiências, estilos de vida e visões de mundo de grupos sociais e particulares de tradições distintas. A esse respeito ver Soares, 1983, Velho, 1993 e Velho et al., 2000. 2 Nessa viagem estive acompanhado pela museóloga Vera Lúcia Ferreira da Rosa, do Museu de Folclore Edison Carneiro, com quem, à época, compartilhava a responsabilidade pela política de aquisição de acervo da instituição.

2

Cheguei à localidade após enfrentar grandes dificuldades de transporte, dada a condição

precária da estrada de terra que, em alguns trechos, se transformava literalmente em

estreita picada, em que buracos e pedras eram obstáculos quase intransponíveis. Na

ocasião, constatei que a região passava por um período crítico de seca, o que tornava

inviável a prática da agricultura, normalmente realizada entre setembro/outubro e

março/abril, e que, junto com a produção de cerâmica, é responsável pela sobrevivência da

população. Como forma alternativa de ganho, restava a comercialização da louça de barro

feita pelas mulheres. No entanto, a distância dos centros urbanos e a precariedade da via de

acesso eram fatores de imediato diagnosticados como barreiras que dificultavam

sobremaneira o exercício do ofício das ceramistas.

As poucas horas de um único dia em que permaneci no local, em 1992, foram suficientes

para que percebesse também a extrema pobreza de seus moradores. A despeito de todo o

conhecimento de que eram portadores, contido nos saberes do cultivo do solo e na arte de

transformar o barro em peças de primeira necessidade, o povo do Candeal, como se auto-

referenciam em determinados contextos, não estavam sendo capazes de garantir a

reprodução social do grupo, comprometida, como concluí, por adversidades devidas à

natureza, como as secas permanentes, ou decorrentes da própria ação humana, como a

subordinação a atravessadores que comercializavam a cerâmica retendo para si os lucros da

venda.

Retornando ao Rio de Janeiro, essas observações permaneceram guardadas durante seis

anos em um pequeno caderno de campo, no fundo de uma gaveta. Guardadas, mas não

esquecidas. Volta e meia, trazidos pela memória, vinham à mente os potes, pratos e

travessas de rara beleza que encontrara nas casas que visitara e aqueles homens e aquelas

mulheres com os quais conversara sobre a vida local e o trabalho no barro. Voltava-me

também a lembrança dos fogões há dias apagados por falta do que cozinhar, o sabor da

cana-de-açúcar compartilhada e que adoçara o azedo das laranjas colhidas no quintal,

únicos alimentos encontrados em muitas casas pelas quais passei.

No decorrer dos anos 90, meu trabalho no CNFCP teve continuidade na consolidação de

uma série de ações que objetivavam fazer da instituição um organismo cada vez mais

competente no trato com as culturas populares. Nesse contexto, destacava-se também fazer

do Museu de Folclore um espaço de concepção antropológica, uma vitrina digna para a

produção plástica originária dos estratos populares, o que se realizou pelo enriquecimento

de seu acervo etnográfico e na criação de uma nova museografia para as galerias de

exposição permanente. Paralelamente, o contato direto com os produtores culturais

3

prosseguia graças à Sala do Artista Popular,3 que viabilizava a ida dos pesquisadores a

campo para organizar mostras de curta duração ao longo do calendário anual. As

exposições na SAP vinham abrindo o mercado do Rio de Janeiro para esses indivíduos,

tornando-os conhecidos e aumentando a venda de seus produtos. Ao mesmo tempo,

permitiam a reunião no CNFCP de um rico corpus documental constituído por fotografias

e depoimentos gravados, textos etnográficos sobre contextos sociais de confecção de

objetos e descrição e análise de processos tecnológicos de produção artesanal.

Num determinado momento, por volta de 1996, a equipe responsável pela condução da

política institucional passou a considerar insatisfatórias as ações até então realizadas. Agia-

se num dos extremos da cadeia, buscando minimizar o estrangulamento da comercialização

de artesanato, e, enquanto isso, no extremo oposto, isto é, na produção, havia muitas vezes

problemas que dificultavam, quando não entravavam por completo, o circuito que leva da

produção à comercialização e ao consumo do objeto.

Fazia-se necessário, então, atuar também no campo, propondo ações que buscassem dirimir

problemas como dificuldade de acesso a matérias-primas e ao mercado consumidor,

questões de organização de produção, custos elevados de transporte e deficiência na

embalagem de produtos, prática injusta de preço e muitas outras questões, por vezes

impossíveis de prognosticar e que o contato e a experiência de campo são capazes de

revelar.

Buscando atender a essa nova demanda que o próprio CNFCP se impunha,4 foi formulado

o Programa de Apoio a Comunidades Artesanais (Paca) que, em 1998, a partir de parceria

com o Conselho da Comunidade Solidária, passou a integrar a rede denominada Programa

Artesanato Solidário.

Esse Programa se estruturou como uma política governamental de intervenção na

realidade, norteada por princípios antropológicos de reconhecimento da alteridade e

valorização das culturas locais. As ações a serem implementadas tinham por pressuposto a

3A Sala do Artista Popular, do CNFCP, é um programa criado em 1983 e que “tem por objetivo constituir-se como espaço para a difusão da arte popular, trazendo ao público objetos que, por seu significado simbólico, tecnologia de confecção ou matéria-prima empregada, são testemunhos do viver e fazer das camadas populares. Nela, os artistas expõem seus trabalhos, estipulando livremente o preço e explicando as técnicas envolvidas na confecção”. (Edital da SAP). Toda exposição é precedida de pesquisa etnográfica e registro fotográfico que visam situar o artesão em seu meio sociocultural, relacionando a produção à realidade em que se insere. 4Gilberto Velho destaca as duas vertentes que no longo dos anos têm caracterizado o trabalho institucional. De um lado o compromisso acadêmico e científico de pesquisa e de geração de conhecimento acerca das culturas populares, “entender significados e representações de diferentes grupos sociais ... de modo geral subalternos, numa posição de inferioridade econômica e política” (Velho et al., op. cit.:8); de outro, a partir da apreensão dos valores e da visão de mundo desses segmentos da sociedade nacional, atuar na realidade social, criando “condições efetivas para que alguma coisa mude em benefício dos grupos”. (id. ibid.: 10).

4

compreensão dos modos de vida e das visões de mundo particulares de cada comunidade

em que se iria atuar, objetivando o desenvolvimento social integrado e auto-sustentado.

Evitando a tutela e o paternalismo, atitudes muitas vezes tão comuns em ações deflagradas

por órgãos públicos envolvidos com projetos de natureza similar, o Programa se dispunha a

prestar assistência a populações de baixa renda produtoras de artesanato, tendo por

princípio a discussão permanente dos problemas vivenciados pelo grupo, a busca

compartilhada de soluções, a valorização das potencialidades presentes – embora muitas

vezes adormecidas – e o despertar da auto-estima do grupo, partindo da premissa de que o

artesanato tradicional5 pode ser visto como gerador de renda e fator de desenvolvimento

social auto-sustentável.

Naquele ano de 1998, lembrei-me então do povo do Candeal, e de como devido a fatores

múltiplos enfrentavam dificuldades na condução do processo produtivo, o que

comprometia tanto sua produção cultural quanto sua auto-reprodução como um grupo

social. Em outubro daquele ano retornei a campo, dando início a um projeto de

desenvolvimento social da comunidade.6

São decorridos 13 anos desde que pela primeira vez tive contato com o povo do Candeal e

faz sete anos que regularmente visito a localidade. Durante este último período estive lá de

três a quatro vezes por ano, em estadas curtas que variaram de três a 10 dias. Esta tese, que

visa ao doutoramento consiste numa reflexão do que pude, ao longo desses anos, observar

acerca desses indivíduos que fazem do barro a matéria-prima com que modelam objetos, as

casas em que moram e o mundo em que vivem; que com ele constroem sua história e a

transformam; que através dele criam uma rede de relações sociais e estabelecem o sistema

de representações que os orienta, permitindo o trânsito por diferentes níveis da realidade

social. Indivíduos que, por meio do barro, são percebidos e se percebem como uma

categoria social: são o povo do Candeal.

5 Embora se reconheça a dificuldade da definição do que vem a ser qualificado como artesanato de caráter tradicional, questão decorrente da imprecisão do próprio conceito, a expressão é aplicada aos objetos cujo sentido têm referência no uso contemporâneo, mas cuja maneira de ser produzidos remete a um processo que tem base no passado, na história cultural do grupo que os produz. Uma abordagem da questão da tradição/modernidade aplicada ao campo do artesanato pode ser encontrada em Ribeiro, 1983 e Velho et al., op. cit. 6 O projeto de apoio aos ceramistas do Candeal foi concebido como um trabalho de equipe envolvendo diversos técnicos de distintas áreas do CNFCP: pesquisa, difusão, edição de peças gráficas, museografia de exposições, administração, etc. No decorrer do primeiro ano, a responsabilidade por sua condução foi compartilhada por mim e Marina de Mello e Souza, à época contratada como consultora do Programa Artesanato Solidário. A partir do segundo ano, Marina passou a atuar em outros pólos, e eu assumi integralmente a condução do projeto.

5

O trabalho está estruturado em cinco capítulos. Inicio definindo o universo da pesquisa

pela situação espacial que o grupo ocupa, o território com o qual se identificam e são

identificados pela população regional que os circunda. Como estratégia da percepção da

territorialidade, utilizo uma cartografia nativa, construída a partir de mapas desenhados por

alunos de uma escola local que apontam ao mesmo tempo para a singularidade do espaço

habitado pelos artesãos e para a relação desse espaço com outros, integrando uma unidade

mais ampla, a região. Aponto para o fato de que a percepção territorial do presente tem

uma forte base no passado, que é atestado pela ancestralidade dos locais de extração de

barro para o desempenho dos ofícios de oleiros e louceiras da Olaria, denominação que dão

à localidade específica em que construíram suas casas, nas quais moram e trabalham. A

partir daí, ainda no primeiro capítulo, busco demonstrar como, na ocupação do território

que é compartilhado por todos, os artesãos estão organizados em unidades domésticas,

constituídas por grupos familiares que conservam o sentimento de uma origem comum.

Alicerçados na memória coletiva que assegura que ali “todos são parentes”, os moradores

da Olaria, integrando um único sistema genealógico, formam uma ampla rede de

parentesco. Uma vez que assim se apresentam, e se representam, concluindo esse capítulo,

procurei analisar como o grupo era percebido pela população do entorno, isto é, que

representações havia acerca dos moradores da Olaria, encontrando referências a uma

possível, e também hipotética, ancestralidade indígena que fundamentaria sua origem.

O Capítulo 2 define o povo do Candeal a partir da relação com o ofício que mais o

identifica: o lidar com barro. Para isso, analiso como o grupo se organiza estruturado pelo

princípio da divisão por gênero, que atribui aos homens a feitura de telhas e tijolos,

enquanto às mulheres compete a modelagem da louça. Nesse capítulo, procuro descrever o

acesso ao barro e o processo de feitura dos objetos, que implicam relações com a natureza

e com outros agentes sociais integrantes do mundo dos artesãos, como os fazendeiros,

proprietários dos barreiros de onde atualmente a matéria-prima é extraída. Finalizando o

capítulo, após a descrição do processo tecnológico da modelagem e da queima das peças,

por trás do qual se encontra o conhecimento aprendido pelas mulheres geralmente na

infância, detenho-me na pintura dos objetos, com tauá, por ser o elemento identificador da

louça do Candeal.

O Capítulo 3 se refere às formas de apropriação e aos mecanismos que são acionados para

a circulação da louça entre as unidades domésticas, assumindo relevância o autoconsumo e

a dádiva entre os principais modos de apropriação dos objetos. A partir de um inventário

dos bens de cozinha, procurei dimensionar a importância da participação da louça de barro

6

no cotidiano familiar, constatando a posição ímpar que o pote desempenha no sistema

hierarquizado dos objetos no Candeal. Nesse capítulo sobressai a discussão acerca do

parentesco, em especial das relações mãe/filha e sogra/nora, implicando dádiva e

reciprocidade, aproximação e evitação.

O Capítulo 4 propõe pensar a constituição do mundo regional a partir da circulação dos

objetos produzidos na Olaria por uma região mais ampla. Para isso, torna-se central

discutir a rede de comercialização criada por intermediários, localmente denominados

“compradores”, e o papel central que o Mercado Municipal de Januária representa na

constituição desse mundo.

O capítulo 5 significa um corte espacial e temporal vivido pelas artesãs da louça, a partir

do momento em que se desenvolve o programa de apoio ao artesanato local. Nele

demonstro como, com o Paca, se ampliou o mundo da Olaria em termos da área de

circulação dos objetos, fazendo-se acompanhar de uma expressiva mudança no significado

dos próprios objetos. De louça feita para atender a necessidades dos grupos locais, voltada

basicamente para preparo, acondicionamento e serviço de alimentos, feitos para

autoconsumo ou para presentear parentes, em especial filhas e noras, os objetos do Candeal

têm sua condição polissêmica ampliada. No mundo social que então se torna mais amplo,

esses objetos se revestem de múltiplos significados. As conseqüências que advêm da nova

situação vivida pelas louceiras afetam também nos demais níveis de circulação da louça,

nas condições locais de vida e na maneira como os moradores da Olaria passam a ser

percebidos e representados pela população regional.

7

Capítulo 1 – Territorialidade, memória e genealogia

O povoado do Candeal compreende um aglomerado urbano de cerca de 70 casas,

dispostas ao longo de poucas ruas de traçado irregular, dados os limites impostos pela

topografia, que, no entanto, buscam acompanhar o modelo em xadrez da planta da tradição

portuguesa de urbanização. Ao redor do que é considerado a praça do local, área central

mais facilmente identificada a um simples largo, pela total ausência de urbanização,

destacam-se os prédios de uma escola estadual de primeiro grau, em que também funciona

uma creche, de uma igreja católica, cujo padroeiro, São José, é comemorado a cada 19 de

março, e de duas vendas nas quais a população adquire gêneros alimentícios e objetos de

primeira necessidade.

A localidade dispõe de rede de água potável, energia elétrica e um telefone

comunitário, que nem sempre funciona. As poucas vias públicas existentes não são

pavimentadas, e as casas carecem de rede de esgoto. Posto de saúde, farmácia e artigos de

consumo “mais sofisticados” não estão acessíveis e devem ser procurados na sede do

município – Cônego Marinho, à qual o povoado se liga por uma estrada de terra de cerca

de 10km de extensão – ou então na cidade de Januária, distante hora e meia de viagem por

estrada também de terra, ainda hoje em péssimas condições de conservação.

A população vive da pecuária extensiva constituída pela criação de algumas

cabeças de gado mestiço e, mais comumente, da agricultura. Cana-de-açúcar, para

abastecer engenhos de mel ou rapadura e alambiques de aguardente representa o maior

cultivo. Além da cana, milho, feijão, mandioca, um pouco de arroz e alguns legumes, como

abóbora, são os produtos mais facilmente encontrados na região, cujo pouco excedente

havido em ano de fartura, quando a seca não destrói tudo, é comercializado ali mesmo.

Para visualizar melhor o espaço em que deveria movimentar-me, ao mesmo tempo

em que buscando uma visão da área geográfica em que se deslocavam os artesãos para

coleta de barro, comercialização dos objetos e outras atividades diárias, como a prática da

agricultura, em novembro de 1998, recorri aos alunos da Escola Estadual de Candeal,

explicando minha presença, o projeto que desenvolvia e solicitando que fizessem mapas da

região.7

Uma cartografia nativa

7 No Anexo I, apresento a relação dos alunos da Escola Estadual de Candeal que fizeram os mapas e outros desenhos solicitados.

8

Reunidos numa coleção de 28 desenhos em papel A4, feitos com lápis cera e caneta

hidrocor, de cores variadas, por estudantes da 7a série cujas idades variavam dos 14 aos 22

anos, esses mapas têm importância que não se esgota na utilidade prática de tornar possível

o domínio do espaço então desconhecido e pelo qual eu teria que transitar no trabalho de

conhecer o universo de pesquisa. Com efeito, atingiram o objetivo para o qual foram

inicialmente pensados, revelando-se instrumentos extremamente úteis ao constituir o que

denomino uma cartografia nativa. O alcance desses mapas vai mais além, e sua leitura

permite compreender um pouco da estética e da organização espacial de seus criadores,

pela análise da composição de cores, os traços, o domínio da escrita e da pintura.

Dessa perspectiva, a primeira observação a ser feita a seu respeito se refere ao fato

de que resultam em composições altamente orgânicas. Cada localidade representada, como

vísceras, se assemelha a órgãos de um corpo vivo. São partes que se agrupam formando

totalidades, conforme pode ser notado nos desenhos aqui reproduzidos, à exceção de

apenas um, altamente esquemático, feito por Marcilene Lopes da Silva, de 17 anos, em que

as localidades são simplesmente nomeadas. Neste mapa, sua autora apresenta uma

seqüência de nomes que, distribuídos na folha de papel, se ligam por traços, formando um

desenho essencialmente geométrico, como se pode observar abaixo. A despeito do

geometrismo e da esquematização que caracterizam essa concepção, o resultado é um

mapa tão elucidativo quanto os demais.

Os outros desenhos podem ser agrupados em dois conjuntos. No primeiro,

totalizando 10 mapas, estão reunidas composições em que as localidades foram concebidas

9

como unidades autônomas ligadas umas às outras por traços. As reproduções dos trabalhos

de Joveni (16 anos) e de Worley Costa Veloso (17 anos) são exemplos desse conjunto.

O segundo grupo, aqui representado pelos desenhos de Eder Ramos Costa (14

anos), Estélia (15 anos) e Simone (16 anos) é constituído por 17 mapas cujos autores

dispensaram os traços como elementos de ligação, aglutinando as localidades, que assim

aparecem coladas umas às outras.

Além dessas observações que apontam para particularidades e diferenciações cuja

razão de ser não sei precisar, nota-se que, em cada um dos conjuntos, o espaço da

composição foi trabalhado de modo distinto. O primeiro grupo tende a ocupar toda a área

10

do papel até chegar ao extremo da folha. Alguns sugerem mesmo extrapolar os limites do

papel: o desenho alcança a margem e parece querer prosseguir para além da área traçada.

No segundo grupo, em que as unidades foram compactadas formando uma

totalidade, nota-se a tendência a concentrar o desenho no centro da folha. Muitos mapas

desse segundo conjunto chegam mesmo a ter uma moldura que circunscreve a composição

no centro do papel, conforme evidenciam os trabalhos de Estélia e Simone acima

reproduzidos, o que os diferencia dos demais mapas, que se apresentam soltos no centro da

folha.

Ao analisar esses mapas, tendo em perspectiva não mais a forma mas seu conteúdo,

neles se percebem questões distintas.

Por meio da cartografia nativa é possível se apreender a classificação do espaço

social conforme concebida pelos estudantes da escola do povoado do Candeal. Nos mapas,

a região é reproduzida recortada em localidades – algumas contíguas, outras apartadas. Os

mapas variam. Uns são mais detalhados que outros, registrando maior número de

localidades, o que parece significar maior domínio de seus autores sobre a região

representada. Alguns apresentam detalhes sobre uma área em particular, estando aí

nomeado um número maior de localidades, enquanto outros são mais minuciosos em

relação a outras áreas. Esse fato talvez pudesse ser explicado pela definição do local de

moradia dos estudantes, supondo que cada um detenha conhecimento mais aprofundado da

área geográfica em torno do espaço que habita. Infelizmente, esses dados não foram

coletados.

Tomados como cartografia única, os mapas são o registro das seguintes localidades:

Candeal, Olaria, Candealzinho, Mané Véio, Brejão, Imbé, Lapinha, Ilha, Bandeiras,

Levinópolis, Catingueiro, Cabeceiras do Candeal, Areão, Cupim, Capivara, Cabano ou

Vila Aparecida, Pitombeiro, Sapé, Cotia, Cristal, Cruz dos Araújos, Cachoeirinha, Peruaçu

e Barreiro, além da sede do município, a cidade de Cônego Marinho.

Poucos fazem referência à cidade de Januária, como a exceção abaixo, o mapa de

autoria de Agnaldo (17 anos), e apenas um registra a região formada por 13 localidades

que ficam além de Cônego Marinho, uma área que é cortada pela estrada que liga a sede do

município a Januária. É provável que seu autor, Israel Oliveira Carneiro, de 16 anos, seja

originário daquela região já que demonstra tamanha familiaridade com ela, embora eu não

disponha dessa informação.

11

A despeito das diferenças apontadas, que marcam a especificidade do olhar e o

modo como cada autor representa o espaço em que vive, todos, invariavelmente, colocam o

povoado do Candeal em posição central, privilegiando-o. Dele partem as artérias que

fazem a ligação com as demais localidades, constituindo uma malha que põe em interação

lugares como Candealzinho, Cruz dos Araújos, Sapé, Peruaçu, Bandeiras e tantos outros.

Portanto, pela leitura dessa cartografia, o povoado do Candeal ocupa uma posição

central e aglutina em torno de si um amplo conjunto de pequenas localidades, em sua

maioria rurais, provavelmente porque é nele que se desenrola parte da vida social dos

moradores das localidades vizinhas, pois é onde estão a igreja, a escola, as vendas e o

telefone público.

Por outro lado, a relevância atribuída ao povoado, sítio urbano de visibilidade

flagrante, não anula a percepção nativa da existência do espaço contíguo, que denominam

Olaria, e onde residem os artesãos do barro, a despeito de se tratar de uma área rural, com

poucas casas, muitas delas distanciadas umas das outras. Como pode ser verificado, os

mapas são o reconhecimento da existência dessa localidade. Todos eles confirmam essa

área como uma unidade em relação com as demais e, portanto, como domínio específico,

um território.

A Olaria está distante cerca de um quilômetro do povoado do Candeal. É lá que se

produz a cerâmica que guarnece os lares da região e que é conhecida como louça do

12

Candeal.8 A área se constitui de casas9 que se dispersam, umas mais próximas, outras mais

afastadas, ao longo de uma estrada estreita que se estende por uma faixa de terra que mede

aproximadamente mil metros de comprimento por 500 metros de largura, situada entre a

encosta de um morro e o riacho Mané Véio.

Marcel Mauss, ao discorrer sobre os elementos que nas sociedades esquimó

definem a base de sua territorialidade, destaca a importância do estabelecimento

(settlement):

um grupo de famílias aglomeradas, reunidas por laços especiais, que ocupam o habitat pelo qual se distribuem desigualmente, conforme a quadra do ano, mas que... constitui seu domínio. O estabelecimento é o maciço de casas, o conjunto dos lugares das tendas, o conjunto dos lugares de caça marinha e silvestre, que pertence a um número determinado de indivíduos, ao mesmo que o sistema de caminhos e picadas, de canais e portos praticados por tais indivíduos e onde eles constantemente se encontram. Isto tudo forma um todo que tem a sua unidade e todas as características distintivas pelas quais se reconhece um grupo social limitado. (Mauss, 1974a: 251-2)

Com as devidas mediações decorrentes da aplicação do conceito a realidades

distintas, creio poder dizer que a noção de estabelecimento, como indicador de um grupo

social limitado, é útil ao entendimento do território ocupado pela população em questão,

embora eu reconheça a inexistência de fronteiras rígidas, inequivocamente definidas, que

delimitem as áreas específicas. Neste sentido, concordo com Arantes, na medida em que:

No interior de um mesmo território a vida social se apropria e incessantemente transforma porções de espaço socialmente diferenciados em termo dos atores, usos e práticas que abrigam. A interpretação dos territórios enquanto formações sócio-espaciais exclusivas e excludentes está sendo altamente problematizada pela pesquisa antropológica. Fronteiras simbólicas pressupõem interstícios, zonas de transição e limiares; para atravessá-los, os sujeitos devem manejar conhecimento, realizar interpretações criativas e manipular sentidos políticos ambíguos e por vezes contraditórios (Arantes, 2003: ).

2 Tendo em vista evitar confusão no uso dos termos, esclareço que, como fazem os artesãos, emprego indistintamente os termos Candeal e Olaria para me referir ao local onde é feita a louça e onde moram os artesãos. Ao me referir ao aglomerado urbano do Candeal e a seus moradores acrescento a palavra povoado, usando as expressões povoado do Candeal e moradores do povoado do Candeal. Sobre o emprego nativo dessas categorias voltarei a falar ainda neste capítulo. 3 No início dos trabalhos, em outubro e novembro de 1998, eram 21 casas, estando uma delas fechada e sem morador naquele momento. Em decorrência principalmente das ações implementadas pelo projeto de desenvolvimento local, em especial a construção de um galpão para produção e guarda de cerâmica e a perfuração de um poço artesiano, captação e distribuição de água potável pelas residências, em 2003 o número de casas construídas no local havia subido para 29 e, atualmente, totaliza 30 moradias, além de uma venda.

13

As unidades domésticas e o sistema genealógico

Na Olaria, cada casa corresponde a uma unidade doméstica e implica a reunião sob

um mesmo teto de indivíduos que compartilham o conforto e os benefícios que ela tem a

oferecer e atuam visando à reprodução social do grupo. Embora concordando com I.

Wallerstein e W. G. Martin,10 citados por Feldmann-Bianco (1994), para quem o conceito

de grupo doméstico pode incluir parentes e não parentes, desde que “vivam em um mesmo

domicílio” , na Olaria, invariavelmente, o pertencimento de indivíduos a uma mesma

unidade doméstica pressupõe a existência de vínculos de parentesco, consangüíneo ou por

casamento, a uni-los. Não se constata, portanto, a presença de nenhuma outra categoria,

como serviçais e agregados a integrar cada um dos grupos domésticos da localidade.

A importância dos grupos domésticos é destacada por M. Fortes (1971) ao afirmar

que

Em todas as sociedades humanas, a fábrica, por assim dizer, de reprodução social é o grupo doméstico. É este grupo que precisa se manter em ação por um

4 Wallerstein. I e Martin, W. G. “Peripheralization of Southern Africa II: Changes in Household Structure and Labor Force Formatiom” in Review 3 (2) 193-207, 1979, apud Feldmann-Bianco, 1994.

14

período de tempo suficientemente longo para permitir a criação de filhos até o estágio de reprodução física e social, para que a sociedade possa se manter (Fortes, 1971:2).

Fortes observa que o grupo doméstico não é uma entidade estática, mas que,

durante sua existência, passa por um processo de desenvolvimento análogo ao ciclo de

crescimento dos organismos vivos. Com isso o autor ressalta que os grupos domésticos não

são sempre os mesmos, mas estão sujeitos a um processo interno de mudança, obedecendo

a um ciclo de desenvolvimento que os faz variar ao longo do tempo de vida, isto é,

O grupo, como uma unidade, retém a mesma forma, porém seus membros, e as atividades que os unem passam por uma seqüência regular de mudanças durante o ciclo que culmina na dissolução da unidade original e sua substituição por uma ou mais unidades do mesmo tipo (idem).

O autor reconhece três estágios principais, ou fases, no ciclo de desenvolvimento

dos grupos domésticos. A primeira, que denomina fase de expansão, iria da união de duas

pessoas até a completa formação de sua família de procriação, com o nascimento do último

filho; a segunda, denominada fase de dispersão ou cisão, teria início no casamento do filho

mais velho e prosseguiria até que todos os filhos se casassem; a terceira seria aquela que

denominou fase de substituição e que se iniciaria com o casamento do último filho e

terminaria com a morte dos pais e a reposição na estrutura social da família inicial pelas

famílias dos filhos.

A importância do reconhecimento da existência dessas fases é que elas são

responsáveis pelo caráter diferenciado de cada grupo doméstico em particular, cujo perfil

se define pelo momento vivenciado na totalidade do ciclo de desenvolvimento. Assim, a

análise das regras de residência, por exemplo, se uxirilocal/matrilocal, virilocal/patrilocal

ou neolocal deve levar em conta a fase que o grupo está vivendo, pois essa é definidora de

sua composição. Por sua vez, essa composição pode definir o princípio de residência que

está sendo ativado naquele determinado momento de vida do grupo (cf. Fortes, in Goody.

J., 1971, e Goodenough, W. H., 1973).

Em geral, na Olaria, há uma correspondência entre unidades domésticas e

familiares, pois as casas são constituídas por famílias nucleares formadas por pai, mãe e

filhos solteiros. Esse princípio, no entanto, sofre variações encontrando-se residências em

que coabitam irmãos adultos, solteiros, casados ou separados, conforme pode ser

verificado, por exemplo, nas casas 2 e 4 descritas adiante, assim como casos em que

crianças vivem com os avós porque os pais migraram para cidades como São Paulo,

15

deixando os filhos, como aconteceu com os moradores da casa 14, Emília e Januário, que

cuidam de dois netos. Nesse sentido, dois fatores parecem ser responsáveis pela estrutura

das famílias na Olaria. De um lado, está o próprio ciclo de desenvolvimento das unidades

domésticas que pressupõe variações na composição do grupo, em constante refazer à

medida que o tempo flui. De outro lado, há questões como as emigrações, causadas pelas

secas que destroem as plantações e pelas dificuldades de emprego no mercado de trabalho

local, que interferem nas condições concretas de vida, arranjando, desarranjando e

rearranjando a composição das famílias.

Tendo em vista compor um quadro mais substantivo dessa realidade, apresento uma

breve descrição de cada uma das 21 unidades domésticas existentes na Olaria em outubro

de 1998. A cada nome de pessoa está aposto um código formado por letra e número: D1,

D2, E1, E2, F1, F2, etc. As letras indicam a geração a que a pessoa pertence no quadro

genealógico levantado, compreendendo sete gerações que são numeradas de A a G. Os

números servem para localizar o indivíduo na faixa de sua geração e no quadro

genealógico amplo que apresento nos Anexos II e III.

Com relação à genealogia dos moradores do local, a priori não havia intenção de

registrá-la. Meu objetivo era conhecer os habitantes atuais da Olaria, onde moravam, seus

nomes e graus de parentesco, de modo que pudesse saber quem eram eles para, de posse de

uma espécie de mapa, poder melhor me situar e relacionar com todos. Assim, comecei indo

de casa em casa e perguntando sobre quem morava em cada uma delas: nome, posição que

ocupava no grupo, idade.

Nessa etapa da pesquisa, invariavelmente as mulheres encontravam-se em casa no

momento da entrevista. Em algumas ocasiões os homens, seus maridos, também estavam

presentes. Não encontrei dificuldade para registrar nome e sobrenome das pessoas

presentes, pois todos sabiam seus nomes completos. No entanto, em relação à idade, havia

controvérsia e hesitação, quando não desconhecimento total. Para conferir datas, alguns

entrevistados recorriam às certidões de nascimento. Por serem majoritariamente

analfabetos, pediam que eu checasse as datas nos documentos, assim como os sobrenomes,

especialmente dos filhos, sobre os quais mostravam grande hesitação.

Desconhecer os sobrenomes dos filhos não causa estranheza, especialmente se

consideramos tratar-se de pessoas que não dominam os códigos da escrita. Mesmo algumas

certidões, que foram lavradas em cartório, apresentam contradições, como é o caso de B2,

avó das irmãs Maria da Silva Pinheiro (D8) e Hermínia da Silva Pinheiro (D9). Na certidão

da primeira seu nome consta como Leolina Maria do Nascimento e, segundo a certidão de

16

Hermínia, seu nome é Maria Dias do Nascimento. O mesmo aconteceu com dona Dezinha

(D29), que foi registrada como Nilza Amâncio de Souza e, na certidão de sua filha Maria

da Glórias José Muniz (E37), consta como sendo Nilsa José Muniz. Esse tipo de situação

se repete muitas vezes, levando-me a optar por registrar todas as formas pelas quais as

pessoas são nomeadas e os apelidos pelos quais são chamadas na localidade.11

Desse modo, tendo acesso a esses documentos, passei a também registrar os nomes

dos avós. Esse foi o princípio da genealogia coletada, forma que acarretou sua

especificidade. Não se trata de uma genealogia exaustiva, e nem precisaria mesmo ser, já

que meu objetivo não foi proceder a um estudo de parentesco, mas coletar informações

sobre as gerações recentes como forma de me ajudar na investigação da organização social

atual.

Na construção do diagrama de parentesco, procurei adaptar os dados de que

dispunha e seguir a orientação indicada por J. A. Barnes, para quem genealogia é “a

descrição da descendência de uma pessoa a partir de um ou de vários ancestrais pela

enumeração das pessoas intermediárias” (Barnes,1967:101). Os códigos que utilizo são

aqueles recomendados pelo autor e convencionados nos estudos antropológicos de

parentesco: letras para distinguir as gerações, números seqüenciais para localizar os

indivíduos no interior de cada geração, círculo para especificar o indivíduo de sexo

feminino, triângulo equilátero para designar o indivíduo de sexo masculino, preenchimento

total do símbolo (solid symbol) em referência aos mortos, para indicar casamento,

e para irmandade.

O fato de meu interesse inicial ter sido apreender a constituição das unidades

domésticas, isto é, o conhecimento acerca de quem residia em cada casa, fez com que eu

não registrasse o total de membros de cada família específica, isto é, o total de filhos de um

determinado casal. Caso esses filhos não mais residam na casa de seus pais, havendo

migrado ou morrido, é provável que muitos não apareçam no diagrama. Permanece o

registro, no entanto, dos filhos casados que moram na localidade, havendo constituído

família e sua própria moradia.

Assim, o quadro genealógico que apresento refere-se aos moradores da localidade e

aos parentes que foram lembrados e nomeados, vivos e mortos, no decorrer dos anos de

trabalho de campo. Nesse sentido, procedi à construção da genealogia não como um

instrumento analítico para estudar o parentesco em si, mas para entender como opera o

11 No Anexo II apresento relação dos nomes dos moradores da Olaria em todas as formas encontradas e as datas de nascimento e falecimento que pude registrar.

17

sistema na Olaria. Na visão de Barnes (1967) um dos sentidos, tão válido quanto outros, do

registro de genealogias é entender as relações atuais presentes em um determinado grupo

ou sociedade. Foi isso que me orientou na coleta dos dados e na construção do diagrama.

Dessa forma, uma genealogia é sempre um recorte num campo mais amplo de

possibilidades, isto é, ela compreende o registro de um conjunto de indivíduos e de

relações de parentesco que são lembradas pelos entrevistados e nunca a totalidade de

indivíduos e relações que efetivamente possa ter existido. A partir daí, construí o diagrama

de parentesco da população atual.

O mapa foi sendo elaborado aos poucos, à medida que os nomes eram lembrados,

surgiam em meio a relatos ou quando as próprias pessoas apareciam na localidade, como,

por exemplo, Raimundo (E13), filho de Arlinda (D12), que nunca havia sido mencionado

até seu retorno, em 2004, após anos de residência em São Paulo. Assim, constam desse

mapa os indivíduos que, ao longo de meus sete anos de convívio, foram efetivamente

referidos pela população ou com os quais tive contato direto. Como Raimundo, podem

existir muitos outros que, por não residir no local e por não participar de seu dia-a-dia, não

foram nomeados. Do mesmo modo, crianças que tenham morrido na primeira infância não

foram mencionadas. Sei que existiram porque obtive informação a esse respeito junto às

autoridades sanitárias de Januária e Cônego Marinho, tendo sido registradas as mortes

ocorridas durante o período de trabalho de campo, os anos de 1998 a 2005.

Isso significa que o mapa genealógico que construí poderia ser mais extenso caso

outros “parentes” fossem lembrados e a intenção fosse inventariar o total da população

nascida na Olaria ao longo dos anos e que tivesse relação de parentesco com os moradores

atuais. Porém quis apenas construir um mapa que fosse expressivo das relações de

parentesco da população atual e do fato de que ali “todos são parentes”, como afirmam, um

quadro que correspondesse ao registro de memória dos moradores do local, tema a que

retorno adiante.

18

A população local está, portanto, organizada em famílias que se distribuem nas

unidades seguintes:

Casa 1: Teresa (E4) e Mariano (E3) Teresa e Mariano têm muitos filhos: oito ao todo. Os mais velhos, três moças,

migraram, duas para São Paulo e uma para Januária, onde trabalham como empregadas

domésticas. Os demais, ainda pequenos, permanecem com os pais.

Mariano é referência na região quando se precisa de quem faça o engradamento de

um telhado ou assentamento das portas e janelas de uma casa nova. É também agricultor e

cultiva as terras herdadas do pai, no brejão, onde passa o dia quando não está contratado

como carpinteiro.

O brejão é o sonho de todo agricultor. A área é exceção na região extremamente

seca, de solo pobre de nutrientes que, por ser muito arenoso não retém água, mesmo

quando chove. Terreno de várzea, bastante irrigado e fértil, o brejão possibilita o cultivo

praticamente no decorrer de todo o ano, permitindo a alternância de culturas: feijão das

águas, feijão da seca, milho, arroz...

Primeira fotografia dos moradores da Olaria, tirada em 1998: Januário, Avelina, Feliciano, Chitinha, Teresa, Benita, Emília, Idalina, Joventina, Aparecida com bebê e Mariano.

19

Enquanto Mariano provê o alimento da família e comercializa o excedente da

produção anual, Teresa encarrega-se da casa e dos filhos que, pequenos, estudam na escola

do povoado. As tardes são dedicadas à louça que modela com regularidade, um pouco a

cada dia. Embora saiba fazer e faça praticamente qualquer tipo de objeto do repertório

local, especializou-se na modelagem dos potes para água e das travessas pequenas e

grandes.

Casa 2: Maria Bia (D8) e Hermínia (D9) São duas irmãs que moram juntas e cujos pais morreram. Em 1998, Maria Bia

estava com 60 anos e Hermínia tinha 62.

Conheci Maria Bia em 1992, quando realizei a primeira viagem à localidade. Ágil,

irrequieta, era uma das artesãs que, à época, estavam produzindo. Suas especialidades eram

o pequeno pote, de cerca de 15cm de altura, e a travessa oval, também pequena, localmente

denominada canoinha. Em 1998, Maria Bia se aposentara pelo Funrural. Parara de produzir

louça, e, naquela ocasião, recolhi as últimas peças que encontrei disponíveis, destinando-as

a uma exposição no Rio.

Fotografia de Bia em 1962.

Bia nunca se casou, tornando-se moça velha,

conforme expressão em voga na região. Curiosa,

conservou ao longo dos anos a inquietude e o gosto

por novidades. Em minhas idas a campo, mal

chegava ao galpão de produção, local de encontro

com todos, lá vinha Bia, de vestido limpo, mesmo

que muito amarrotado, na boca o vermelho do baton

que preenchia, e mais ressaltava, o vazio deixado

pela idade e pela ausência dos dentes. A presença

de Bia no galpão, sua preocupação com a aparência

evidenciada no vestido trocado, na pintura borrada,

no cabelo alisado com os dedos por não dispor de

um pente que os penteasse, transformaram-se em

sinais que não passaram despercebidos de todos e logo foram interpretados como seu

interesse por mim. Surgiram as brincadeiras: diziam que ela ia lá só para me ver, que

estava apaixonada... Incorporei a brincadeira e passei a chamá-la de “minha noiva”.

Tímida, Maria Bia afastou-se, não mais freqüentando com assiduidade o espaço, embora

sempre que eu estivesse na localidade ela encontrasse uma criança, ou mesmo um adulto,

20

que me transmitia seu recado para ir a sua casa vê-la, e eu o fazia com freqüência.

Indagada sobre a razão de seu afastamento do galpão, respondia que não mais gostava de ir

lá porque “o povo ficava zombando”.

Hermínia foi casada e há anos está separada. Parece que o tempo de casamento foi

marcado pelas brigas e pela violência física. Devido a isso ela desenvolveu um medo

extremo do marido, a ponto de sequer querer sair de casa. Raramente circula pela

localidade. O dia de receber a aposentadoria tornou-se um suplício por ter que comparecer

à sede do município, onde mora o ex-marido. Só o faz acompanhada pelo filho adulto,

Raimundo (E9), casado com Socorro (E10), uma artesã, e que mora numa localidade

próxima, a cerca de dois quilômetros, denominada Bandeiras.12

Hermínia diz que aprendeu em criança a fazer louça de barro. Prefere a agricultura.

Chega o período das chuvas, e ela se põe a plantar milho, feijão, abóbora, mandioca e

cana-de-açúcar no terreno ao redor da casa. No passado, diz, fazia tudo sozinha: do preparo

da terra à colheita. Com a idade, passou a depender de quem capine o terreno, preparando-

o para o cultivo. Reclama que não está fácil conseguir um jovem que queira fazê-lo mesmo

que ela se disponha a pagar pelo dia de serviço. Atualmente, segundo Hermínia os auxílios

dados pelo governo são interpretados pelos jovens como motivo suficiente para não

trabalhar, “ficar tomando banho de riacho o dia inteiro ou ficar andando à toa pela

estrada” .

Casa 3: Senhorinha (C9)

Lourença Dias de Souza, conhecida por Senhorinha, era a artesã mais idosa das que

conheci em 1992. Naquele ano, morava com a irmã, Ana (C10), numa casa velha, na

chegada da Olaria. Não sei precisar se, àquela época, recebiam algum tipo de auxílio do

governo, como aposentadoria, por exemplo, mas penso na possibilidade de que as

condições precárias de vida que se observavam se deviam ao fato de não haverem por meio

do casamento garantido os meios para a reprodução da unidade familiar. A ausência de

marido e filhos que lhe provessem o sustento tornou-se marcante na velhice, quando decaiu

a força para o trabalho. Logo depois Ana morreu, e Senhorinha, ajudada pelo sobrinho-

neto, Dim (E5), com o dinheiro da aposentadoria pelo Funrural, construiu uma nova casa

ao lado da casa 4, propriedade de sua sobrinha Joventina (D6), onde a encontrei em 1998.

6 Recentemente, já em 2006, tive a informação de que Raimundo e Socorro construíram uma casa no terreno ao lado da casa de Hermínia, para onde se mudaram, atualizando o ciclo perene das mudanças e alterando o quadro das unidades domésticas locais.

21

Senhorinha estava então bastante idosa, com quase 80 anos,13 e, debilitada pela velhice,

praticamente não andava. Logo depois, tornou-se impossível morar só, e ela se mudou para

a casa de Dim, onde faleceu.

Casa 4: Joventina (D6), Afonso (D7) e Natal (D5)

Joventina é uma das artesãs que conheci em 1992. Casou-se com Afonso e não teve

filhos. Cuida de Natal, o irmão que mora com o casal. A família vive basicamente da

pensão decorrente da morte dos pais, deixada para Natal em função de ele apresentar

problemas mentais que o incapacitam para o trabalho, embora saiba conversar e, portanto,

se comunicar.

Outra parcela da renda familiar advém do trabalho temporário de Afonso nas

fazendas da região, como diarista ou por empreitada – sistema comum no meio rural –

muitas vezes em locais distantes da Olaria, o que implica retornar à casa apenas nos finais

de semana.

Nos últimos anos, com a idade, Joventina vem diminuindo o ritmo de produção. O

pouco que faz, trabalha a meias, em especial com Teresa, sua sobrinha.

7 Não disponho de números que quantifiquem a expectativa de vida da população local. Seguramente, não são muitos os que ultrapassam a casa dos 70 anos, debilitados pelas más condições de higiene, doenças endêmicas, como xistose, verminose, alcoolismo e subnutrição.

Senhorinha, 1992.

22

Como a maioria absoluta dos adultos da Olaria,

Joventina é analfabeta, embora saiba escrever seu nome

reduzido: Jove. Uma ocasião, conversando acerca da

identificação das peças de cada uma que seriam enviadas

ao CNFCP para comercialização no ponto de vendas de

artesanato, sugeri que aquelas que soubessem assinar seu

nome, deveriam fazê-lo, escrevendo-o no fundo das peças.

Já que a venda se fazia pelo sistema de consignação, com

esse procedimento se tornaria mais fácil identificar a

autoria, evitando problemas na prestação de contas.

Retornei ao Rio e, algum tempo depois, transportadas pela Joventina, 1992.

caminhonete da Prefeitura Municipal, chegaram as caixas com a produção do Candeal. Ao

abri-las tive a surpresa de ver que Joventina havia assinado JOVE em todas as suas peças.

Só que em letras garrafais, dentro de pratos, travessas, tigelas, sobrepondo seu nome às

pinturas decorativas de cada objeto. Retornando ao campo, indaguei-lhe acerca do

ocorrido. Por que o fizera?

E ela, prontamente me respondeu: “Mas não foi o senhor mesmo que disse que era

para escrever o nome no fundo do prato? O senhor não falou para escrever embaixo.” A

velha questão das categorias e do domínio da linguagem!

Casa 5: Eliane (F3) e José Leonardo (F2)

Era o casal mais jovem em 1998 na Olaria. Eliane é filha de Teresa (E4) e, à época,

com 15 anos, estava morando com José Leonardo, de 16 anos, numa casa em frente à de

sua mãe, do outro lado da estrada.

José Leonardo era morador recente na localidade. Não fazia nem um ano que

chegara, com o pai e o irmão, migrados de Pernambuco. A despeito de Teresa e Mariano

não quererem o envolvimento dos dois por julgarem a filha muito nova – mal completara

14 anos, “era quase uma menina” – o namoro havia começado à distância de uma casa para

a outra e logo evoluíra. Com a gravidez, a solução encontrada foi o casamento. Naquele

mesmo ano nasceu Leandro (G2).

No ano seguinte, retornando ao campo, encontrei-os morando em uma nova casa,

vizinha à de Joventina. A construção, erguida com tijolos de adobe, era tão pequena que

mal cabia o casal. Enquanto conversávamos, fiquei sentado no batente da porta por não

23

cabermos os três no pequeno espaço que era a sala. Além dela, a cozinha, também

diminuta, e um quarto em que só cabia o estrado onde o casal dormia com o filho.

As dimensões reduzidas da casa, a pouca idade de seus ocupantes, o bebê, qual

boneco, ao colo, tudo contribuía para que mais se assemelhassem a crianças brincando na

casinha que os pais haviam construído. Teresa ajudava a filha, orientando-a nos trabalhos

domésticos e nos cuidados com o filho. Assim, dava continuidade à socialização de Eliane,

precocemente interrompida pela gravidez. Logo o neto se transferiria a seus cuidados, avó

experiente que havia criado oito filhos e cuja casa apresentava melhores condições de

conforto: “aqui tem mais espaço, é mais fresco, e ele dorme melhor”, dizia, acrescentando

que, com isso, Eliane teria como cuidar melhor das tarefas domésticas.

Leonardo prosseguia trabalhando com o pai nas fazendas em torno. Com o

desenvolvimento do projeto de incentivo à produção de cerâmica, interessou-se pelo barro

e é dele a modelagem das primeiras peças figurativas feitas na localidade: figuras de

dinossauros, brontossauros e outros animais da pré-história cuja inspiração seguramente

veio dos desenhos vistos em revistas e na televisão.

Um dia, o casal resolveu migrar para São Paulo. Ia em busca de uma nova vida e ao

encontro do irmão de Leonardo, José Francisco (F4) que chamavam de Zezinho. O filho

permaneceu com os avós. Decorrido um ano, Eliane retornou. Vinha com o cunhado, com

quem estava vivendo. Leonardo ficara em São Paulo. O novo casal foi morar mais adiante,

na 23a casa da localidade. Logo após, Leonardo também retornou. Atualmente são

vizinhos. Leonardo, que está casado com Laurelice (F1), tem uma filha, Leonice (G4) e

mora na casa que pertenceu a Senhorinha. Eliane e Zezinho também tiveram um filho,

24

Lucas (G3). Leandro, embora a todo instante esteja na casa da mãe, atravessando a estrada

inúmeras vezes ao dia, permanece morando na casa dos avós.

Casa 6: Francisco Sebastião (E1) e José Francisco (F4) Nessa casa, geminada à de número 5, moravam Francisco Sebastião, o

Pernambuco, e seu filho, o Zezinho. Na realidade, trata-se de uma única casa que foi

desmembrada para abrigar José Leonardo e Eliane ao se casarem.

Logo após a mudança do casal, Zezinho seguiu para São Paulo, como relatado, e

Pernambuco passou a viver mais em Cônego Marinho, onde se empregou, do que na

localidade. Com isso a casa permaneceu fechada por um tempo, até que vieram ocupá-la

um outro casal de pernambucanos, Arnaldo e Carmen, e sua filha já crescida. As casas

foram reformadas, constituindo-se novamente numa moradia única.

Quem chega à localidade, logo percebe aquela casa como diferente das demais.

Com o casal, vieram hábitos de sua região de origem: formando uma espécie de cerca viva

a separar a propriedade da estrada, ao redor do terreno eles plantaram palma e sorgo,

vegetais que, nos períodos de seca, destinam a alimentar as cabras que logo passaram a

criar num grande cercado atrás da casa. Plantaram também muita cana-de-açúcar,

maracujá, laranja e mamão, de modo que a propriedade parece um oásis na aridez do

entorno.

Carmen, auxiliada pelas mulheres que dominam o ofício de mexer com barro, em

especial Teresa, sua vizinha de frente, logo se dedicou à produção da cerâmica e, com

empenho, passou a modelar pequenos pratos e travessas. Como dizia, isso ajudava sua

adaptação ao local, pois estava acostumada a trabalhar e ganhar seu próprio dinheiro, “para

não ter que depender do marido”. Ali, não tinha onde se empregar e, enquanto buscava

uma vaga na prefeitura, como merendeira ou inspetora na escola do povoado, encontrava

no barro uma forma alternativa de renda.

Logo Carmen dominava plenamente a técnica de modelagem. Em 2001 engravidou

e, com o nascimento do filho, passou a se dedicar integralmente a ele, à produção de queijo

feito com o leite das cabras, aos cuidados com a casa e a família. A cerâmica e o projeto de

independência financeira foram adiados. “Por uns tempos” , diz ela.

Casa 7: Santinha (E8) e José (E7)

A casa 7 era, em 1998, a moradia da família constituída por Santinha, José e os

nove filhos do casal, cujas idades variavam, entre 19 e menos de dois anos. As filhas mais

25

velhas já não mais residiam com os pais. Como vem sendo comum acontecer na

localidade, estavam empregadas como domésticas em Januária e em São Paulo.

Santinha é ceramista com preferência pela modelagem de pequenas peças. Logo no

início do projeto, ainda em 1998, seu filho Leonardo (F13), então com 15 anos, começou a

modelar peças também pequenas, revelando o gosto pelos escudos de times de futebol:

Atlético Mineiro, Palmeiras e Flamengo, sobretudo, pelos quais torcia. No ano seguinte,

seguiu para São Paulo a fim de trabalhar em construção civil e não mais retornou à Olaria.

Em 2002, o casal se separou e José passou a residir na casa 22. Inicialmente foi um

período muito difícil para Santinha que, frente a todos e, em especial ao ex-marido e sua

nova mulher, se envergonhava da situação de “abandonada”, recusava-se a sair de casa,

alegando a crueldade dos demais moradores, que “zombavam” dela. Deixou de freqüentar

o galpão, paralisou a produção e pensava em, com os filhos menores, deixar o local. Aos

poucos a situação foi-se acalmando, e o auge da crise passou.

Casa 8: dona Nilza (D29), seu Francisco (D28) e a neta, Nilda (F43)

A família dessa casa era constituída por um casal, formado por seu Francisco e

dona Nilza. Com eles morava a neta, Nilda, filha do primeiro casamento de Mariano, da

casa 1, com Maria da Conceição (E38). Com a morte da mãe, Nilda que, à época, era

pequena, ficou residindo com os avós maternos, aos quais chama pai e mãe, e não

acompanhou o pai biológico quando este se casou pela segunda vez, com Teresa.

Em 1998, dona Nilza estava com 69 anos e muito doente, sofrendo de problemas

respiratórios, que alguns diziam ser tuberculose. A neta, então com 22 anos encarregava-se

das atividades domésticas. Quando ficou órfã, aos oito anos de idade, Nilda ainda não

havia aprendido a mexer com barro, e a avó já não mais modelava os objetos utilitários do

repertório local, embora houvesse sido ceramista e, no passado, transmitido esse saber às

filhas.

Nilda veio a produzir suas primeiras peças no galpão, a partir do projeto de apoio às

artesãs e tornou-se a primeira presidente da Associação de Artesãos do Candeal. Estudou,

primeiro no povoado, vindo a concluir o segundo grau na Escola de Cônego Marinho, fato

raro num local onde poucos são alfabetizados e menos ainda concluem os estudos. Casou-

se, tem duas filhas e continua morando na casa 8 com a família e o avô, após a morte da

avó, ocorrida em 2003.

26

Casa 9: Idalina (D19), Feliciano (D20) e filhos Idalina e Feliciano integram a geração D, sendo dos mais idosos na Olaria.14 Os

filhos já estão adultos, um deles é casado (E23) e reside na casa 13; outros dois, solteiros,

residem com os pais. A única filha, Nilza (E27), é empregada doméstica em São Paulo.

Idalina, que é chamada de Véia, tem atualmente 67 anos e, a despeito da idade,

prossegue fazendo louça, sobretudo potes e peças que revelam sua preferência pela

modelagem daquelas de maiores proporções, sejam pratos ou travessas.

Muito espirituosa, está sempre contando casos e revendo histórias do passado. É

dela uma das poucas referências ao primeiro casal chegado à localidade, Matias Gonçalves

de Souza (A3) e Joana da Silva Pinheiro (A4) e que deu origem à ampla rede de parentela.

Idalina assim narra o dia que Matias morreu:

Matia, acho que era pai do finado Estevo, que era pai da Senhorinha, irmã de Ana. A finada minha mãe é que falava pra nós que o finado Matia trabalhava aqui, fazendo tijolo, e a mulher dele chamava Joana. O Matia matou um coei [coelho] e ele tava com fome. Mandou ela colocar no fogo e voltou pra olaria. Ela foi e colocou no fogo. Como ele tava com fome, logo ele voltou lá. Entonce ele chegou lá na casa [e disse:] – Me dá, Joana, um cadinho do coei. [Porque ainda não estava pronto] Ela falou assim: – Vê se você morre, desgraçado, que eu não te dou o caldo do coei [risadas]. Aí ele foi embora, voltou pra olaria. Na volta que ele voltou, no buraco de tirar o barro ele morreu. Depois passou outro e chegou lá e falou: – Tia Joana, meu tio Matia tá morto lá no buraco. – Oh, menino! Que conversa é essa? Oh, Deus ingrato! Ma-te-te-te-tei o Ma-ti-ti-ti-tia [risadas]. Matia morreu de fome.

Casa 10: viúva Maria (D21) e seus filhos

8 Acima dessa geração há apenas o casal constituído por Leonel (C31) e Eugênia (C32).

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Maria Rodrigues dos Reis, viúva, vive com os três filhos numa das menores casas

da localidade, uma construção de meia-água, coberta com telhas de amianto. Maria não faz

louça, e a família sobrevive da pensão deixada pelo marido.

Casa 11: dona Arlinda (D12) e seu Augusto (D11)

Na casa 11 moravam Arlinda e Augusto com um filho, Joãozinho (E11), doente

mental, e uma neta de seis anos, de nome Magna (F31), cujos pais moram na casa 12, ao

lado.

No passado, seu Augusto fizera muita telha e tijolo, atividade árdua, cansativa, que

exige força e boas condições físicas. Com a idade avançada, apenas esporadicamente ainda

produzia alguma coisa. Mais para uso próprio, quando precisava refazer uma parede ou

fazer um “puxado”, recobrir uma parte da casa ou a “tapagem” que protegia o forno de

farinha, único existente em funcionamento na localidade naquele ano de 1998. No mais,

seu Augusto, assim como a maior parte dos homens da localidade, era empregado nas

fazendas vizinhas, onde cuidava do gado e da manutenção de cercas e pastagens,

localmente denominadas “mangas”. Seu Augusto faleceu em dezembro de 2003, vítima de

problemas cardíacos.

Já Arlinda, além de dona-de-casa encarregada dos afazeres domésticos e do filho

doente, o “neném”, é louceira que revela preferência pela modelagem de potes e outros

objetos de tamanhos grandes. Suas peças, facilmente identificadas no conjunto da

produção local, têm por característica a decoração em traços firmes e fortes. Além das

peças do repertório tradicional, gosta de inovar e criou vários tipos de jarras e uma fruteira

cujas paredes apresentam elementos vazados em formato de flor e coração. Até 2005, sua

produção era constante, embora a quantidade houvesse diminuído. Notícias recentes de

campo informam que dona Arlinda está muito doente, hospitalizada em São Paulo e com

poucas possibilidades de sobreviver.

Casa 12: Maria Aparecida (E11), o marido, Zé Pó (E23), e filhos

Aparecida é filha de Arlinda e mora na casa vizinha à da mãe. Em 1998, o casal

tinha três filhos. A mais velha morava com a avó, na casa ao lado, fato justificado pelo

maior conforto que esta oferecia. Em 2005, a família havia aumentado com o nascimento

de mais três crianças.

José Muniz, chamado de Zé Pó, é filho de Idalina, com quem aprendeu a fazer

louça, e modela, além de potes, a moringa que, em função do pescoço estreito, é

28

considerada a peça do repertório da produção local que mais dificuldades apresenta para

ser feita.

O fato de Zé Pó fazer louça, embora tido como excepcional, não implica

discriminação de qualquer natureza, apesar de se estar num grupamento em que a

modelagem de louça de barro é considerada ofício do universo feminino. Zé Pó é também

trabalhador rural ativo, e a habilidade com o barro que é exercida esporadicamente, ou nos

finais de semana ou quando não encontra trabalho nas fazendas próximas, não põe em

xeque sua masculinidade. Sua destreza, em especial com as moringas que exigem domínio

técnico altamente apurado, iguala-se à de artesãs consideradas excelentes pelo grupo.

Casa 13: Maria de Lurdes (E16) e Edson (E15)

Nessa casa reside um casal que não é envolvido diretamente com o processo de

feitura de louça. Edson é filho de Arlinda (D12), e suas casas se defrontam, cada uma de

um lado da estrada.

Lurdes passou a integrar o grupo que reside na Olaria a partir do casamento com

Edson. Vindo de fora da comunidade, não participou em criança do universo do barro,

contexto em que a maioria absoluta das artesãs deu início ao processo de conhecimento do

ofício.

A chegada dos cinco filhos, um logo em seguida ao outro, afastou, ao menos por

ora, Lurdes do mundo de produção da louça.

Casa 14: Emília (D26), Januário (D25) e os netos

O casal, de idade avançada, é centro de uma extensa rede de amizade.

Regularmente sua casa recebe amigos, sendo raro o dia em que não aparece alguém para a

prosa solta, animada pelo café quente ou pela aguardente que também aquece, anima e

agrega. Os filhos já adultos, em 1998, estavam casados e tinham suas moradias próprias.

Com Emília e Januário moravam então dois netos pequenos, Mazinho (F39) e Jôse (F40),

filhos de Ana Maria (E35).

Sua casa, baixa e pequena, estava bastante deteriorada pelo tempo. Os estragos,

devidos a sol e chuva, haviam-se agravado, e as condições da construção foram pioradas

pelos anos em que ficara fechada, pois o casal passara uma temporada em São Paulo, só

tendo retornado à Olaria há pouco mais de um ano.

Emília, que é tida como uma das melhores fazedoras de potes da localidade,

experiente e criativa, a partir de 1998 concentrou forças na produção de louça, incrementou

29

as vendas e, no período relativamente curto de três anos, reuniu condições de construir uma

nova casa e compô-la com equipamentos e móveis de quarto, sala e cozinha.

O final da obra foi marcado pela realização de uma grande festa, com comidas e

bebidas oferecidas à população presente. Numa forma de agradecimento aos Santos Reis,

de quem o casal é grande devoto, Januário, como faz todo ano, organizou sua folia que saiu

de casa em casa, ao som de sanfona, caixa e pandeiro, cantando:

Eu quero saber da notícia Com prazer e alegria Venha receber Santos Reis Com prazer e alegria.

Casa 15: Chitinha (E37) e Miguel (D17)

O casal não tem filhos. Chitinha, cujo nome de batismo é Maria da Glória, é filha

de dona Nilza, da casa 8. Louceira, sua especialidade inclui grandes pratos finamente

decorados, além dos potes que executa com perfeição.

A despeito da excelência do trabalho que realiza, Chitinha tem produção muito

irregular. Às fases de atividade intensa, intercalam-se períodos de paralisação e total

entrega ao alcoolismo. Ela e o marido passam semanas, por vezes mais de um mês,

bebendo. Durante esses tempos, são comuns as agressões físicas entre eles, seus corpos

mutilados são a evidência disso. A situação se arrasta até que, subitamente, já muito

debilitados, recuperam-se, e, no período de abstinência, a artesã volta à excelência da

produção e, com um sorriso de desesperança, olhar cravado no chão em demonstração de

total constrangimento, promete a si mesma e a todos que a interrogam não mais beber.

Alcoolismo e violência física, aliás, integram o cotidiano local. Pouquíssimos são

os que não têm o hábito da cachaça diária, muitas vezes tomada desde o amanhecer. Raros

foram os adultos que, pelo menos uma vez durante estes anos de convívio, não vi

totalmente alcoolizados, homens ou mulheres, tantas vezes caídos à beira da estrada. Há

mesmo o costume de dar aos bebês, a partir de dois meses de idade, um pouco de cachaça

diluída em água. Para isso, embebem um pedaço de tecido com o líquido e oferecem à

criança para chupar. Isso “deixa a criança calminha”, afirmam.

Casa 16: Maria do Amparo (D24) e Manoel (E33)

O casal, que não tem filhos, construiu uma casa no lote que pertence a Januário e

Emília, pais de Manoel.

30

Como Chitinha, Maria do Amparo, mais conhecida como Lora, passa por longos

períodos de embriaguez, quando paralisa a produção. Em outros momentos, modela suas

peças marcadas pelas dimensões reduzidas e pela delicadeza. Ela já foi casada

anteriormente e, desse casamento, tem três filhos adultos.

Lora freqüentou o curso de alfabetização de adultos que, por quase dois anos, foi

mantido no galpão de produção, no decorrer dos anos de 2001 e 2002. Esse curso foi

concebido ao se constatar que a quase-totalidade dos adultos da localidade era composta de

pessoas analfabetas. Poucos eram aqueles que sabiam assinar seus nomes, como Joventina.

A Prefeitura Municipal tomou a si as providências cabíveis e, por intermédio da Secretaria

de Educação, proveu cadeiras e carteiras, quadro de giz e material didático; contratou uma

professora recém-formada para ministrar as aulas e destinou alimentos para a merenda

diária a ser oferecida aos alunos. A proposta do curso foi recebida com total entusiasmo.

Quase todas as mulheres e alguns homens, a partir das 16 horas, diariamente, acorriam ao

galpão, onde a professora se esforçava por ensiná-los. Com as mães iam também os filhos,

e o galpão se transformava num espaço de ensino e de aprendizagem, de movimento e de

intensa interação. Aulas e brincadeiras, concentração, correria, choro de criança, riso,

expectativa pela merenda – de início farta, saborosa. Ao final do primeiro ano de

funcionamento, merenda e alunos foram minguando. No segundo ano, poucos

permaneciam, e a tentativa se encerrou: ninguém se alfabetizara. No máximo, haviam

“treinado” o controle motor fino recortando máscaras de coelhinhos por ocasião da Páscoa,

pintando de vermelho os corações de cartolina para o dia das mães, colando bandeirinhas

para a festa de São João.

Lora foi uma das primeiras a abandonar o curso. Quando lhe indaguei o motivo por

que desistira, respondeu com uma frase que com certeza faria Guimarães Rosa se

maravilhar. Perguntou-me ela: “E quem é que aprende com esse minineiro, com esse

choreiro e griteiro em volta da gente?”

Devota de São Gonçalo, Lora guarda em mala seu “tesouro”: saias, blusas e

vestidos brancos, lavados, engomados e sempre prontos para a dança em homenagem ao

santo, expressão de fé e de festa muito comum entre as camadas rurais do norte de Minas

Gerais.

31

Casa 17: Nena (E35), José (E36) e a filha Wanderléia (E41)

No início da pesquisa, em 1998, essa casa compreendia um único cômodo, com

paredes de pau-a-pique meio tombadas, recoberto por palha de buriti, onde a família

dormia. Do lado de fora, numa meia tapagem formada pelas sobras das palhas da

cobertura, onde outrora fora mais um cômodo cujas paredes se foram, havia um banco, um

pote e um fogão. Era ali que a família cozinhava e comia. De resto, o terreiro liso, despido

de qualquer plantação.

Nessa casa os conheci, e ali a família morou por alguns meses até se transferir para

a localidade de origem de José. Os dois filhos maiores, que já moravam com os avós,

Emília e Januário, permaneceram na Olaria.

Com a saída de Nena e sua família, a pequena casa foi ocupada por seu irmão,

Manoel José Lopes, apelidado Zé Bagre (E34), sua mulher, Rita (E32), que vem a ser filha

do primeiro casamento de Lora, e o filho Gleison (F37), que chegavam de São Paulo. No

ano seguinte, em 1999, nasceu Gleiciane (F38). Em 2002 a família estava instalada numa

nova casa, bem melhor do que a anterior, de dois quartos, construída em substituição à

primeira.

32

No início de 2004, Zé, Rita e os filhos foram embora da localidade para, como

afirmaram “tentar a vida em São Paulo”. Segundo outros moradores, Rita lhes havia

confessado querer afastar-se do local por não suportar ver a mãe e o padrasto bêbados

diariamente, situação que estava afligindo não só a ela como a seus filhos também. Em fins

de 2005, a família estava de volta à Olaria, e a casa foi reaberta.

Casa 18: dona Avelina (D18), seu Lucílio (D17) e o filho Adenaldo (E21)

Dona Avelina é irmã de Januário, morador da casa 14. Embora não seja louceira,

durante muitos anos integrou o mundo da louça como intermediária. Sempre que sobrava

um capital, destinava-o à compra de potes e outras peças, que estocava à espera do

comprador, termo pelo qual o intermediário é designado no local. Com isso, obtinha algum

lucro, pequeno, é verdade, e “ajudava quem tinha mais precisão do que eu, precisava de

um dinheiro e não tinha no momento. Como eu tinha uma sobrinha, aí comprava a louça e

depois vendia para o Ademilson ou outro comprador que viesse.”

Adenaldo que, em 1998, era solteiro, posteriormente se casou, vindo a construir sua

casa, a de número 24 da localidade, quase geminada à da mãe.

Casa 19: dona Eugênia (C32) e seu Leonel (C31)

Trata-se do único casal vivo que integra a geração C na genealogia local. Neste ano

de 2006, ele completou 83, e ela, 75 anos. Vivem do outro lado do riacho, numa área

denominada Mané Véio. No entanto, as relações de parentesco que mantêm com os

moradores da Olaria e o fato de também terem sido oleiro e louceira são fatores que os

aproximam do grupo da Olaria e minimizam as distâncias geográficas. Com eles, vive um

neto, Renato (E41), o que aponta para a possível existência de um padrão de moradia na

localidade que prescreve a coabitação de pelo menos um neto com seus avós. Dos oito

33

casais que são avós, cinco deles estão encarregados da criação de netos (casas: 1, 8, 11, 14

e 19).

Casa 20: Benita (D30), Batista (D31) e filhos

Benita, que é filha de seu Leonel e de dona Eugênia, talvez seja a louceira que mais

vê no ofício de lidar com o barro uma profissão. Diariamente ela faz o serviço doméstico,

especialmente a comida, e vai para o galpão, onde passa o dia trabalhando. A casa fica

entregue às filhas menores, Regina (E39) e Renata (E42), que se encarregam de arrumá-la,

servir o almoço, levar os irmãos para a escola do povoado, enfim, de diversas atividades

até que a mãe retorne, ao final da tarde.

Batista cuida das plantações que cercam a casa e de algumas cabeças de gado que

cria numa manga, isto é, um pasto próximo. É daí que extrai a renda com que mantém a

família: “fazendo rolo com o gado”, isto é, negociando com gado, conforme descreveu

Benita, ao dar notícia de Nêgo, como chama o marido:

Nêgo tá no mundo por aí. Fazendo rolo de gado. Ele trabalha na roça, planta roça, mas só que ele mexe com negócio de gado também. Compra e vende. Ele compra, vai e pesa pra aquele dono de açougue. Aí pega a percentagem dele. Vamos supor, ele compra a vaca de você por R$ 550,00, ele vai e vende por R$ 600,00. Ou então, ele vai e compra uma vaca e, no matar daquela vaca, ele vai e tira uns quatro, cinco quilos de costela, tira um quilo de fígado, tira outra coisa e outra. Aí, depois que tirou aquilo ali, ele vai e pesa. O que pesou a pessoa vai e paga pra ele.

Casa 21: Coim (D15) e Adriano (E20)

No início da pesquisa, essa casa estava desocupada e assim permaneceu por um

longo tempo, até que foi morar nela Adriano (E20), filho de Coim (D15), o proprietário,

que é irmão de dona Arlinda, da casa 11.

34

Além dessas casas, nos últimos sete anos, 10 novas construções foram erguidas na

localidade, sendo uma para funcionar como venda e as demais destinadas a moradias. São

elas:

Casa 22, construída para Eliane e Leonardo poucos meses após se casarem;

Casa 23, onde foram morar Eliane e Zezinho, ao retornar de São Paulo, como já

explicado;

Casa 24, onde foi morar Adenaldo (E21) ao se casar;

Casa 25, ocupada por José (E7) ao se separar da primeira mulher (E8) e se casar

novamente;

Casa 26, de Edwiges, moradora nova na localidade;

Casa 27, de Geralda e filhos, moradores novos na Olaria;

Casa 28, construída por Raimundo (E13), filho de Arlinda (D12), onde passou a

morar com Andréia (E14) ao retornar de São Paulo;

Casa 29, venda construída por Geraldo;

Casa 30, de Geraldo e Vânia, moradores novos na Olaria;

Casa 31, recentemente construída por Raimundo (E9), para abrigar a família, no

terreno vizinho à casa 2, onde mora a mãe, Hermínia (D9).

Como numa aldeia Ndembu descrita por Turner (1996), cada unidade doméstica da

Olaria é, portanto, composta de indivíduos que possuem laços de parentesco a uni-los. Em

geral, cada uma dessas unidades está estruturada por um casal e seus filhos solteiros,

embora essa regra possa apresentar exceções, como é o caso da casa 2, onde moram duas

irmãs já idosas, Bia e Hermínia, e de todas as outras moradias onde residem mais de duas

gerações sucessivas, como na casa 11, que abriga pais, filho e uma neta, e as muitas casas

onde moram gerações alternadas, avós e netos.

Do universo das 20 casas efetivamente ocupadas em 1998, cinco (as de números 1,

8, 11, 14 e 19), correspondendo, portanto, a 25% da totalidade, eram ocupadas por um

casal que cuidava de, pelo menos, um neto.15 O alto índice da variação induz a pensar que

não se trata de mero acaso e aponta para a busca de uma explicação que retire a ocorrência

do quadro de exceção e a entenda como parte naturalmente integrante do sistema de

parentesco e de moradia da população local. Observa-se que os netos criados por avós

tendem a ser os filhos mais velhos de seus filhos, casal que está vivendo a fase de expansão

do núcleo familiar, de acordo com as categorias definidas por M. Fortes. Assim, pode-se

15 Com Emília e Januário, na casa 14, moravam dois netos: Mazinho e Jôse.

35

supor que, pelos laços que unem pais e filhos, os avós estariam colaborando com a jovem

família e auxiliando-a no encargo, muitas vezes considerado árduo, de cuidar das crianças.

Ao mesmo tempo, se pensarmos que os avós vivem sua fase de substituição, é de supor que

cuidar de netos após ter casado todos os filhos é retardar a entrada nessa fase, vista como a

última etapa do ciclo de vida de um grupo doméstico.

Nos estudos que realizou sobre representação de famílias no universo de camadas

médias urbanas, Myriam Moraes Lins de Barros destaca a importância dos avós na

constituição do grupo familiar e o papel de mediadores que desempenham, unindo seus

antepassados e seus descendentes (cf. Barros, 1989). O papel de guardião de memória que

a autora atribui aos avós que se dedicam a “lembrar, com dados do presente os fatos do

passado” (cf. Halbwachs, 1989), com certeza pode ser aplicado também aos avós na Olaria,

apontando para uma dimensão a mais que vem a ser desempenhada pelos “io-iôs” e pelas

“ia-iás”, termos impregnados de afeto com que os moradores da Olaria designam seus avôs

e avós. Além disso, vários são os relatos acerca da iniciação no trabalho com o barro pelos

quais as louceiras atribuem a suas avós o papel principal na transmissão de saber, o que

reforça a condição dessas mulheres como guardiãs das memórias das histórias do grupo,

dos saberes e dos fazeres locais.

Ao realizar o censo em 1998, não me preocupei em quantificar e estabelecer a

média de moradores por casa, uma vez que, no decorrer do ano, pode ser grande a variação

no número de integrantes de uma mesma unidade doméstica, principalmente em se

tratando de famílias cujos filhos já tenham ultrapassado a fase de infância. No relato sobre

os moradores de cada casa, conforme acabamos de ver, é intenso o fluxo de indivíduos que

migram para São Paulo, por exemplo. Quando não é toda a família que vai embora, como

fizeram Rita e Zé Bagre com os filhos pequenos e Eliane e Leonardo, são especialmente os

jovens que partem em busca de inserção no mercado de trabalho, em geral como

empregados domésticos e da construção civil. Muitos deles retornam, ao menos uma vez

ao ano, geralmente por ocasião das festas de final de ano – Natal, Ano-Novo e Dia de Reis.

Por isso, é grande a alteração da composição do grupo doméstico na Olaria. Conforme

apontou M. Fortes (1971), dependendo da fase de vida, um grupo pode variar muito:

Um grupo doméstico compreendendo apenas duas gerações que se sucedem está num estágio diferente de um outro formado por três gerações, o que também acontece com aquele em que a geração dos filhos é inteiramente de pré-adolescentes quando comparado com outro em que alguns ou todos os filhos estão em idade de casar. O fator de desenvolvimento é intrínseco à organização doméstica, e ignorar isso implica sério erro de interpretação dos fatos descritos (op. cit.:3).

36

De forma análoga, não me detive em definir padrões de residência dos moradores

da Olaria, se é que existem regras rigidamente estabelecidas que definam o local de

moradia de um casal que se forma. Embora registre as casas existentes e quem as habita,

não investiguei os princípios que operam na determinação do local de moradia da

população. No entanto, não pude deixar de observar, pela análise da composição dessas

famílias e por ser testemunha da construção de nove novas moradias no período em que

estive indo à localidade, a tendência de o filho homem, ao casar, estabelecer residência no

terreno pertencente ao pai, permanecendo, portanto, próximo a seu grupo familiar de

origem. Isso, no entanto, não me põe à vontade para afirmar que o princípio da

patrilocalidade seja dominante na Olaria, pois não disponho de dados relativos à

composição total de cada grupo doméstico observado. Qualquer conclusão pode incorrer

em erro, pois posso supor que ali aconteça o que apontou Fortes em relação à realidade dos

Iban, de Borneo:

Poder-se-ia dizer que a residência pós-marital é tanto virilocal quanto uxorilocal, havendo liberdade de escolha. O que de fato ocorre é que o casamento precipita a fissão e a concomitante divisão econômica, no grupo doméstico original de um dos cônjuges, que dele se afasta. A escolha de qual dos cônjuges se afasta depende do estágio no ciclo de desenvolvimento alcançado pelo grupo doméstico por ocasião do casamento. (idem, ibidem: 4).

Memória como processo social

Na Olaria, relações de parentesco consangüíneo ou advindas do casamento ligam

entre si as 20 famílias16 residentes no local, que guardam a memória e o sentimento de

pertencimento a um mesmo tronco genealógico, o que se torna explícito quando afirmam:

“aqui, todos são parentes”. No entanto, nem sempre o grau de parentesco que relaciona

dois indivíduos é reconhecido de imediato, exigindo certo exercício de memória para sua

reconstituição. Para isso, os moradores da Olaria tomam por referência os avós, sejam

maternos ou paternos, sendo então capazes de refazer a relação de parentesco que liga

entre si dois indivíduos. Nesse sentido, os avós são mediadores de seus ascendentes e

descendentes, mortos e vivos, conforme apontado por Barros (1989) no artigo citado, e

também unem entre si todos os indivíduos vivos que constituem o grupo de parentela dos

tempos atuais.

10 Tomo como referência o censo que realizei em 1998. Embora o número de famílias se altere no decorrer dos anos subseqüentes, a afirmação permanece verdadeira, pois, a partir de então, poucos indivíduos se estabeleceram na localidade sem que houvesse laços de parentesco, consangüíneo ou por casamento, que os unissem aos demais.

37

As pessoas guardam a memória de sua genealogia até três gerações ascendentes e a

referência a esses parentes é feita pelo emprego das expressões “pai ou mãe do meu avô” e

“pai ou mãe da minha avó”, estejam eles ligados por relações patrilineares ou

matrilineares, indistintamente. Isso talvez se deva ao fato de não haver bisavós vivos na

comunidade, o que impossibilita o convívio e, portanto, a proximidade e o conhecimento

entre indivíduos da primeira e da quarta gerações. As relações de parentesco mais

distanciadas de ego estão referidas, portanto, a seus avôs e avós e podem se estender às

categorias pais, primos e irmãos desses avós. Com base nesse sistema, que pode ser

entendido como um mapa, os indivíduos se orientam nas relações atuais de parentesco

assim como se referem às gerações ascendentes, “lembrando-se” até mesmo daqueles

indivíduos que morreram e com os quais nem sequer tiveram contato efetivo, muitas vezes

referidos como “os antigos”. Nilda (F43), 29 anos, que integra a sexta geração (F) ao se

referir aos primeiros moradores de local, afirma:

É louceira. Aqui, a mulher que faz louça de barro é louceira. Isso começou

antigamente. Os antigos já fazia assim. Tudo do mesmo jeito. A mulher

acordava, cuidava da casa, fazia a comida e ia pro terreiro fazer louça. Sentava

debaixo de um pé de árvore e ficava fazendo, fazendo, até dar a hora de entrar

pra dentro, pra fazer a comida do jantar. (Nilda, 29 anos).

Em, Verdade e Poesia, Goethe17 afirma: “Quando queremos lembrar o que

aconteceu nos primeiros tempos da infância, confundimos muitas vezes o que se ouviu

dizer aos outros com as próprias lembranças”. Como fenômeno ligado à memória social

(Halbwachs, op. cit.), a lembrança pode ultrapassar mesmo o tempo de infância e se

estender a um passado muito distante, conforme aconteceu no relato de Nilda.

Noções como espaço, tempo e gênero são formas de pensamento que, desde a

antigüidade, constituem-se em categorias e objeto do conhecimento. Muitos foram os

pensadores que se dedicaram a estudá-las, buscando entender sua origem e natureza, sua

existência e seu significado. No século 19, a filosofia enfocava a questão por duas

perspectivas distintas: por um lado, acreditava-se que as categorias do pensamento eram

imanentes ao “espírito humano”, preexistindo aos próprios indivíduos. Estes, ao nascer, já

as portavam e, orientados por elas, conduziam suas vidas e as experiências no meio social.

Outros, porém, havia, para quem tais categorias eram produto de indivíduos concretos, e

17 Goethe apud Bosi, E., 1979.

38

sua existência dependia da maneira como eles as atualizavam na realidade empírica

(Durkheim, 1973a: 516).

O debate estendeu-se, até que, na segunda metade do século, tendo por base os

postulados do positivismo de Augusto Comte, Durkheim deslocou a discussão do campo

da especulação filosófica até então dominante para o campo sociológico (id., ibid.:516ss).

Segundo esse autor, o pensamento e a ação humanos são organizados pelas

categorias que informam a vida social. Móveis e contingentes, algumas delas podem

mesmo não existir em algumas sociedades, enquanto outras estão presentes na base de toda

ação, exercendo papel dominante na vida social.

Elas correspondem às propriedades mais universais das coisas. Elas são como

quadros rígidos que encerram o pensamento; este parece não poder libertar-se

delas sem se destruir, pois não parece que possamos pensar objetos que não

estejam no tempo ou no espaço, que não sejam numeráveis, etc. (id., ibid.: 513).

Essas categorias – “ossatura da inteligência” – são intrínsecas ao “funcionamento

normal do espírito”, conforme diz o autor, que localiza sua origem na religião. Essa

proposição foi central para que Durkheim apresentasse a questão das representações

coletivas. Segundo ele, porque nascidas da religião, as categorias do pensamento são

naturalmente fatos religiosos e, portanto, “coisas” sociais. São produtos do pensamento

coletivo e exprimem realidades coletivas (id., ibid.: 514).

As categorias são representações essencialmente coletivas, elas traduzem, antes

de tudo, estados da coletividade: dependem da maneira pela qual esta é

constituída e organizada, de sua morfologia, de suas instituições religiosas,

morais, econômicas, etc. Portanto, entre estas duas espécies de representações

[individuais e coletivas] existe toda a distância que separa o individual do social e

tanto não se pode derivar as segundas das primeiras quanto não se pode deduzir

a sociedade do indivíduo, o todo da parte, o complexo do simples. A sociedade é

uma realidade sui generis; ela tem seus caracteres próprios que não se

reencontram, ou não se reencontram sob a mesma forma, no resto do universo. As

representações que a exprimem têm, portanto, um conteúdo completamente

diferente que as representações puramente individuais e pode-se de início estar

seguro de que as primeiras acrescentam alguma coisa às segundas. (id., ibid.:

518).

De acordo com esses postulados, os fenômenos de ordem psicológica individual

estão em estreita relação com o fato social e o sistema social. Os estudiosos da psique e do

39

“espírito” voltam cada vez mais a atenção para as representações e idéias do homem como

integrante de um grupo e da sociedade em geral. Conseqüentemente, este novo enfoque – a

preexistência do social sobre o individual – acaba por transformar a visão que se tinha de

fenômenos considerados exclusivamente pertencentes ao domínio psicológico, como a

percepção, a consciência e a memória.

A questão da memória, como categoria, pode ser vista em dois importantes

pensadores contemporâneos de Durkheim: Henri Bergson, filósofo e autor da obra Matière

et mémoire, escrita em 1896, e Maurice Halbwachs, discípulo de Durkheim e autor de Les

cadres sociaux de la mémoire (1925) e La mémoire colletive (1950).

Bergson procurou explicar por meio de método introspectivo o fenômeno da

memória em si mesma, como uma evocação pura, “onírica”, do passado, subjetivamente

vivida pelo indivíduo. Para ele, não se cogitava de estabelecer correlações entre memória e

realidade social ou cultural. Seu esforço científico e especulativo buscou demonstrar que as

experiências vividas pelo indivíduo – seu passado – se vão progressivamente conservando

no “espírito”, onde permanecem de modo total, livre, independente. Quando solicitadas

pelo presente, ressurgem desse estado de latência, aflorando subjetivamente à consciência

sob forma de imagens-lembranças. Como afirma Ecléa Bosi, que analisa em profundidade

o pensamento do autor, “não há, no texto de Bergson, uma tematização dos sujeitos-que-

lembram, nem das relações entre os sujeitos e as coisas lembradas; como estão ausentes os

nexos interpessoais, falta, a rigor, um tratamento da memória como fenômeno social”

(Bosi, 1983:16).

Deve-se a Halbwachs o deslocamento da investigação sobre memória para o

domínio social ao transpor para o campo psicossocial as concepções formuladas pela

Escola Sociológica Francesa. Baseando-se em Durkheim, para quem os fatos sociais

“consistem em maneiras de agir, pensar e sentir exteriores ao indivíduo, e dotadas de um

poder coercitivo em virtude do qual se lhe impõem” (Durkheim, 1973b:390), Halbwachs

liberta a concepção de memória dos componentes que lhe vinham sendo imputados pela

filosofia especulativa e pela psicologia introspectiva. Assim, transforma-a num fenômeno

social ao suprimir a subjetividade imposta por Bergson, a quem se contrapõe, afirmando

que

Não há na memória vazio absoluto, quer dizer, regiões de nosso passado saídas de nossa memória de sorte que toda imagem que ali projetamos não pode agarrar-se a nenhum elemento de lembrança e descobre uma imaginação pura e simples, ou uma representação histórica que nos permaneça exterior. Não esquecemos nada, porém esta proposição pode ser entendida em sentidos diferentes. Para Bergson, o passado permanece inteiramente dentro de nossa

40

memória, tal como foi para nós... Para nós, ao contrário, não subsistem, em alguma galeria subterrânea de nosso pensamento, imagens completamente prontas, mas na sociedade, onde estão todas as indicações necessárias para reconstruir tais partes de nosso passado, as quais nos representamos de modo incompleto ou indistinto, ou que, até mesmo, cremos que provêm completamente de nossa memória (Halbwachs, 1989:77).

Para fundamentar suas colocações, Halbwachs argumenta que, na reconstrução das

lembranças individuais, o grupo social em que o indivíduo está inserido detém grande

importância e é responsável por fornecer os “quadros sociais” por meio dos quais e graças

aos quais podemos lembrar. Recordamos dentro de uma estrutura de experiências com a

família, os amigos, a escola, a Igreja, o grupo profissional, enfim, como membros da

sociedade, pois “um homem para evocar seu próprio passado, tem freqüentemente

necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros. Ele se reporta a pontos de referência

que existem fora dele, e que são fixados pela sociedade” (id., ibid.:54).

Investigando o fenômeno memória junto a indivíduos de camadas médias na cidade

do Rio de Janeiro, Myriam Lins de Barros (1987, 1989, 1999 entre outros) tem utilizado as

formulações de Halbwachs no desenvolvimento de suas análises. Ela declara que “o social

das lembranças individuais está presente quando precisamos dos outros para reconstruir o

passado. No esforço de rememoração, o grupo nos fornece as pistas para as lembranças.

Não há memória individual isolada do contexto social” (Barros, 1999:36).

A relação que Halbwachs estabelece entre o indivíduo que lembra e o grupo social,

base de suas lembranças, permite ao autor referir-se à noção de memória coletiva. A

vinculação com Durkheim é flagrante. No entanto, o determinante social, princípio tão

marcante na sociologia durkheimiana, é relativizado por Halbwachs quando esclarece que

a existência de uma memória coletiva, condicionada às lembranças do grupo social, se

concretiza por meio da memória de cada um de seus membros. E, mais ainda, como bem

lembrou Barros, “a memória coletiva não se reduz à soma das memórias individuais,

sendo, estas últimas, pontos de vista da memória coletiva” (idem).

Halbwachs aponta ainda o fato de as lembranças que afloram à consciência serem

resultado de um processo que se dá no momento mesmo em que o indivíduo se põe a

lembrar. Portanto, são produtos de um momento presente, nascidas desse momento, e não

sobrevivências do passado, como apontava Bergson (Bosi, op. cit.). Assim colocado, o

fenômeno da memória tem redefinida sua importância. O ato de lembrar não significa um

deslocamento no tempo como fuga presente, ato saudosista de reencontro de uma realidade

41

que não mais existe. Nesse sentido, lembrar significa construir ou, melhor, reconstruir a

realidade a cada novo momento. Afirma Bosi que

Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, ‘tal como foi’, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor (id., ibid.:17).

A memória é processo que se afirma mediante transformações permanentes, posto

que advém da condição presente do sujeito que a elabora no interior de um grupo que

também não é imutável. Esse processo de elaboração é seletivo. Lembramos o que

significa, como atesta Barros, para quem “as lembranças escolhidas são as que melhor

narram a história dos grupos e dos indivíduos” (Barros, 1999:36).

Uma genealogia dos moradores da Olaria

Seguindo as pistas indicadas pela memória social, que se traduz na afirmação:

“aqui, todos são parentes”, e pela oralidade, que os faz remontar ao “tempo dos antigos”,

encontrei em seus próprios relatos acerca do passado e nas certidões de batismo que

conservam guardadas referências a três casais a partir dos quais o grupo se originou. Foram

eles João Bispo (A1) e sua mulher, Laura (A2), Matias Gonçalves de Souza (A3) e Joana

da Silva Pinheiro (A4) e Júlio de Tal (A5) e Maria Lopes de Jesus (A6).

Uma vez que não achei dados relativos a nenhum ascendente desses casais,

considerei-os a geração A, aquela que veio a dar origem ao grupo e que se situa a sete

gerações ascendentes em relação aos últimos indivíduos nascidos na localidade, integrantes

da geração G.

A análise desse diagrama permite verificar a posição central que o segundo casal,

Matias e Joana, desempenhou na formação do grupo, pois para ele convergem todos os

indivíduos que constituem a rede de parentesco consangüíneo atual, sendo, portanto, seus

descendentes diretos. Os outros dois casais da geração A são ascendentes de uma ou de

outra parcela da população local atual.

Matias e Joana tiveram a memória preservada pelo grupo que, no entanto, não

conservou o conhecimento sobre o grau de parentesco que os une. Eugênia (C32) e Leonel

42

(C31) são os únicos representantes vivos da geração C. Leonel, que está com 83 anos e é

neto de Matias e Joana, não se recorda dos avós, nem sequer de seus nomes. Os integrantes

da geração D são capazes de reconstituir suas genealogias até a geração ascendente

imediatamente posterior ao casal, isto é, referem-se a seus avós, da geração B, sendo que

alguns deles são filhos de Matias e de Joana. O mesmo ocorre com aqueles que ocupam a

geração E, que são capazes de fazer referência aos avós, da geração C e assim

sucessivamente.

Tal fato não significa, por outro lado, que não haja referências ao casal da geração

A. O relato do passado, dos “tempos antigos”, acusa sua existência em frases como:

“antigamente, tinha um tal de Matias que também fazia telha e tijolo”, conforme falou

Benita (D30), que vem a ser bisneta de Matias e Joana, por linha paterna. Como Benita,

Miguel (D27), também bisneto de Matias por linha paterna, ao falar da ocupação primeira

da Olaria, cita o bisavô como um antigo morador local, sem fazer referência ao parentesco

que os une:

Isso aqui é muito antigo, esse negócio de mexer com barro, de olaria, vem dos

tempos de antigamente, dos antigos. Meu pai já falava dos antigos que morava

aqui. Tinha o Matias, o Estevo. Era tudo gente antiga que mexia com tijolo e telha

(Miguel, 55 anos).

Assim, Matias e Joana são participantes do “tempo dos antigos”. Dissociados da

rede que conforma as relações de parentesco, como se saídos do tempo histórico, o casal

integra o tempo mítico da ancestralidade, das origens. Fundadores do grupo, eles aparecem

nas histórias sem datação e delas participam como personagens, como no relato de Idalina

sobre “como Matias morreu de fome porque Joana lhe negou o caldo de coelho”.

Estabelecer relações de parentesco distante não é uma equação simples para o

grupo, conforme já afirmei. Sempre que indagado a esse respeito, a resposta pressupôs

certa hesitação, expressa no tempo que decorria até que o indivíduo pudesse reconstituir

oralmente toda a genealogia até chegar à relação em questão. Assim, para a pergunta: o

que Regina é de Teresa?, a resposta foi: “Regina é neta de Seu Leonel, filho da finada

Emídia, que é irmã do finado Estevão, pai de dona Francisca que é mãe de dona Nenite que

é a mãe de Teresa”.

Assim, reconstituem-se as relações de parentesco pari passu, o que aponta a um só

tempo para a existência de um mapa que orienta a leitura da genealogia e para a presença

de um sistema classificatório que não aprofunda as relações colaterais nem emprega

43

categorias do tipo primos em segundo ou terceiro graus, nem mesmo faz uso de uma

fórmula simplificadora como dizer simplesmente que Regina é prima de Teresa,

independente do grau de parentesco implicado na relação que possa existir entre elas.

Emídia Estevão

Leonel Francisca

--- Nenite

Regina Teresa

Ao mesmo tempo, é pelo recurso à memória genealógica que os moradores da

Olaria constroem e reconstroem permanentemente a rede de relações que preside a vida

social. Assim, tomando como ponto de partida a declaração de que “todos são parentes”,

pode-se reconstituir a genealogia do grupo, compreendendo sete gerações que se sucedem

em linha direta. No topo, estão aqueles que dão início ao sistema genealógico, o casal

Matias e Joana, habitante da região ainda no século 19, há cerca de 130 anos.18 A partir

dele o grupo se constituiu e, embora a memória coletiva não retenha o conhecimento pleno

dessa genealogia, subsiste a certeza da origem comum – “todos são parentes” –,

determinando as bases de uma extensa rede de parentesco e orientando, na atualidade, as

relações sociais entre os moradores do local. Aí reside a importância do conhecimento,

mesmo que difuso como é o caso, da memória de que são possuidores de uma mesma

origem. Isso lhes dá o sentimento de pertencimento a um grupo e lhes ordena o quadro no

qual estabelecem as relações sociais do momento presente. Tanto internamente nas

relações sociais e na prática diária de uns com os outros quanto nas relações para fora, os

18 Para esse cálculo, tomo como base a data de nascimento de Leonel Gonçalves Pinheiro (C31), nascido em 11/02/1923, que integra a terceira geração do mapa genealógico, e considero a existência de duas gerações acima, já que vem a ser neto de Matias e de Joana.

44

habitantes da Olaria conservam ainda o sentimento de unidade, de pertencimento a um

mesmo grupo, e se apresentam como “o povo da Olaria”.

Essas famílias ocupam moradias, umas próximas, outras afastadas, que se

distribuem ao longo da estrada estreita, ora à esquerda, ora à direita, em lotes sobre os

quais não detêm título de propriedade, embora reivindiquem sua posse pelos anos em que

ali habitam, há várias gerações, e por terem recebido a área como herança de seus

ascendentes, pais e avós. As casas são construções modestas com poucos cômodos,

geralmente uma sala e um ou dois quartos que se separam por meias paredes. O piso é feito

na maioria das vezes de terra batida, quando não de cimento. Não há banheiros, e, muitas

vezes, a cozinha é construída separadamente, ao lado do corpo principal da moradia.

Uma vez que a observação se dá a partir de dados coletados ao longo de sete anos

de contato com o campo e numa realidade que durante este período vem vivendo um

processo de contínua transformação, dada a diacronia, a descrição etnográfica se torna

complexa. É importante ter em mente a natureza processual e dinâmica dos fatos em jogo,

cuja descrição se faz a partir da análise de situações sociais, conforme proposto por V.

Turner ao estudar os Ndembu. Como é a localidade de Olaria, como são as residências,

quantos são os moradores e em que condições vivem são perguntas cujas respostas em

dados absolutos por vezes se tornam impossíveis. Por se tratar de uma realidade

processual, os dados se alteram ao longo dos anos, em especial como decorrência da

própria presença e da ação do antropólogo no local. A natureza do Programa de Apoio a

Comunidades Artesanais, em sua proposta de intervenção social, está também na base da

transformação que ocorreu na realidade. A cada afirmação seria necessário colocar um

aposto. Em cada parágrafo precisaria introduzir uma nota de rodapé para explicar, por

exemplo, que já não são 20, mas 30 os grupos domésticos, que novas moradias foram

construídas, que as casas passaram a ter água potável, que muito piso de casa, antes de

terra batida, é agora de cimento. Optei por explicar essas questões no próprio corpo do

texto, datando a informação sempre que necessário.

Ao mesmo tempo, com toda a mudança que a localidade vem experimentando,

existe um princípio que permanece orientando a ocupação do espaço. Os terrenos foram

herdados de acordo com as regras de sucessão de pais para filhos, e a tendência, como já

apontada, é a de que, ao se casar, o filho construa uma nova moradia para a família que se

forma no terreno que é dos pais. Assim, observa-se a tendência a que famílias nucleares

diretamente ligadas por relações de paternidade/filiação morem próximas.

45

Olhada por essa ótica, percebe-se que a localidade de Olaria é habitada por famílias

extensas que se unem e formam uma única e grande rede de parentela. Cada uma dessas

famílias extensas, formada por pai, mãe, seus filhos solteiros e seus filhos casados ocupa

mais de uma moradia, pois os filhos casados, com suas famílias nucleares, têm suas

próprias casas.

Isso posto, observamos que a Olaria pode ser remapeada, pois, o que antes era

representado como um conjunto formado por 30 casas, cada qual vista como uma unidade,

agora pode ser percebido como subconjuntos que se organizam nas bases da relação

paternidade/filiação e se estruturam do seguinte modo:

Conjunto 1: reúne as casas de Teresa (E4) e de sua filha Eliane (F3) – (casas1 e 23);

Conjunto 2: reúne as casas de Hermínia (D9) e de seu filho Raimundo (E9) – (casas

2 e 31);

Conjunto 3: representado pela casa de Nilza (D29), onde mora sua neta Nilda (F43)

com a família, estendendo-se à casa da filha, Chitinha (E37) – (casas 8 e 15);

Conjunto 4: reúne as casas de Arlinda (D12) e de seus filhos Aparecida (E11),

Edson (E15), Manoel (E17) e Raimundo (E13) – (casas 11, 12, 13 e 28);

Conjunto 5: reúne as casas de Emília (D26) e de seus filhos Manoel (E33) e Zé

Bagre (E34) – (casas 14, 16 e 17);

Conjunto 6: reúne as casas de Avelina (D18) e de seu filho Adenaldo (E21) – (casas

18 e 24);

Conjunto 7: reúne as casas de Eugênia (C32) e de sua filha Benita (D30) – (casas

19 e 20).

A exemplo do que ocorria na aldeia Ndembu, na qual a irrupção de uma crise

deflagrava os alinhamentos de parentesco (Turner, op. cit.), esses conjuntos se revelam

especialmente em momentos de conflito, em situações que envolvem disputas entre duas

ou mais unidades domésticas. Nessas ocasiões, que no dia-a-dia podem passar

despercebidas, as segmentações tendem a aparecer, organizando em unidades autônomas

os integrantes de uma mesma família extensa, unidos na defesa de interesses considerados

comuns, bem como do sentimento de pertencimento ao mesmo grupo. Nesse caso, surgem

no tecido social clivagens que se superpõem àquela máxima de que “aqui todos são

parentes”.

O olhar externo

46

Retomando o discurso nativo, agora já não referido ao que pensam e dizem os

moradores da Olaria, mas ao que expressam os habitantes do povoado do Candeal a

respeito dos primeiros, observa-se que a Olaria é percebida e representada principalmente a

partir dos ofícios de lidar com barro, em especial da feitura de louça, tornada mais evidente

numa das etapas do processo de trabalho: o momento da queima.

“Ah! Eles parecem índios que fazem aquelas fogueiras atrás da casa”, dizem os

moradores da vila. Assim, aos moradores da Olaria se associa uma suposta origem

indígena devida ao ofício que mais os identifica. São índios, ou descendentes de índios,

porque têm o hábito de fazer fogueiras, conclui o imaginário popular referindo-se mais

apropriadamente aos fornos para queima de louça existentes nos quintais de algumas casas.

Em termos mais precisos, na Olaria há quatro diferentes tipos de fornos com os

quais os moradores preenchem necessidades do cotidiano. Cada um implica tecnologia

específica, tanto para sua construção quanto para seu uso. São fornos para torrar farinha,

para assar alimentos como pão de queijo e biscoitos de goma, para queimar telhas e tijolos

e para queimar louça de barro. Nem toda casa os possui. Em 1998, havia na localidade:

� cinco fornos para queima de louça, nas casas de Teresa (E4), Arlinda (D12),

Emília (D26), Chitinha (E37) e Benita (D30), que atendiam a um grupo maior de louceiras,

tendo como base a organização das famílias extensas e uma rede de aliança que se

estruturava de forma a atender à necessidade de todas elas.

Como já observei, em 1998 as artesãs estavam extremamente desmobilizadas, e

muitas delas já não mais produziam com regularidade. Algumas, como Santinha (E8) e

Idalina (D19), que já haviam tido fornos em casa, não os refizeram quando ruíram. Já

Joventina, Carmen e Bia, esta última até que interrompesse a produção, prosseguiram

queimando suas louças no forno da casa de Teresa, provavelmente obedecendo aos

princípios do parentesco e da vizinhança.

� oito fornos para preparo de alimentos que, igualmente podiam ser

coletivizados a partir do princípio organizador das famílias extensas, sendo suas

proprietárias: Teresa (E4), Hermínia (D9), Arlinda (D12), Aparecida (E11), Emília (D26),

Avelina (D18), Eugênia (C32) e Benita (D30).

Observei que a esses fornos o acesso era mais restrito do que à categoria anterior,

sendo seu uso mantido apenas entre famílias diretamente aparentadas, isto é, ligadas pelas

relações de paternidade/filiação. Isso talvez ocorra porque, dado o princípio de

reciprocidade que prescreve a retribuição pelo favor prestado, o uso do forno alheio entre

47

parentes mais distantes, por implicar a doação de parte do alimento assado, pode significar

privar uma família de parte do sustento que é básico para a dieta alimentar.

� três fornos para torrefação de farinha, nas casas de Teresa (E4), Arlinda

(D12) e Emília (D26).

Não tive oportunidade de ver esses fornos em funcionamento. Segundo

depoimentos das mulheres, seu uso podia ser coletivo. Nesse caso, pelo “aluguel” do

equipamento, a pessoa deveria pagar com uma parte da farinha produzida. Embora não se

estipulasse rigidamente a quantidade, falava-se que ficava em torno de dois litros o

“pagamento” de cada 10 litros de farinha torrada.

Fornos para queima de telhas e tijolos, as

atividades masculinas de lidar com barro, são

comumente construídos junto aos terrenos de

extração da argila. Naquela ocasião, na

localidade, havia apenas um forno em

atividade, de propriedade de Januário (D25),

casado com Emília (D26), construído nos

fundos do terreno de sua propriedade, à margem do riacho Mané Véio.

Talvez seja a esse conjunto de fornos e ao fogo que deles sai que se referiam os

moradores do povoado quando “viam” fogueiras acesas pelos quintais das casas na Olaria,

tomando-as como indicativo da cultura indígena.

A representação do índio que come, dança, dorme em torno de uma fogueira parece ser

uma imagem de ampla veiculação no imaginário social do país. Essa formulação

estereotipada está presente em ilustrações de revistas, em programas humorísticos de

televisão, em representações teatrais que acontecem, em especial, nas escolas em

comemoração ao Dia do Índio, 21 de abril. A esse respeito Everardo Rocha escreveu:

Existem vários caminhos para estudar as representações do índio que se incorporam e se fixam no imaginário do senso comum. Os meios de comunicação de massa são um bom exemplo. As notícias, reportagens, anúncios, filmes ou programas infantis veiculam estranhas imagens dos índios. A literatura ou a música popular brasileira também abrem possibilidades interessantes (Rocha, 1996:53).

Tomando para análise livros didáticos adotados em uma escola de Zona Sul da

cidade do Rio de Janeiro voltada para a educação de crianças e jovens da elite carioca, o

autor observa o papel central que desempenham os estabelecimentos educacionais na

veiculação de estereótipos acerca dos grupos tribais indígenas. Nesse processo, o livro

48

didático é um dos principais fatores de disseminação de certezas etnocêntricas sobre “o

outro”:

A criação de um modelo de índio é algo fundamental. Assim, uma coisa que chama muito atenção no material de pesquisa é a redundância absoluta das informações ali contidas. Praticamente todos os livros informam coisas semelhantes, privilegiando sempre as mesmas imagens da sociedade tribal. Quem ler os livros aprenderá que índios fazem canoa, andam nus, comem mandioca, gostam de se enfeitar (id., ibid.:57).

Não procedi a uma pesquisa das representações do indígena que possam estar sendo

veiculadas pelo sistema educacional em operação na escola do povoado do Candeal, mas

tudo leva a crer que elas existam e que, em essência, não difiram muito do estereótipo

arrolado por Everardo Rocha e que contribuam para compor, junto ao imaginário da

população do Candeal, as mesmas representações que o autor cita.

Para além do estereótipo, parece plausível que os objetos cerâmicos que são

produzidos na Olaria tenham fortes componentes das tradições indígenas incorporados na

técnica de elaboração das peças. O processo de confecção de um objeto implica profundo

conhecimento sobre os diversos tipos de barro e as maneiras corretas de sua coleta e

armazenagem, domínio sobre o processo tecnológico de transformação do que, a princípio,

é uma simples matéria bruta – o barro – numa pasta uniforme. Com ele o artesão vai

“levantando” a peça, isto é, dando forma ao objeto com emprego de instrumental simples,

como pedaços de cabaça, “coité”, seixos e sementes que também funcionam como

alisadores e brunidores. Técnicas como “acordelado” e “levante” – esta última a que mais

comumente é empregada pelas louceiras da Olaria –, e o instrumental de trabalho

construído basicamente pela adaptação de “objetos” naturais – vegetais ou minerais –

costumam ser descritos como integrantes da tecnologia de produção de cerâmica de

tradição indígena:

A tradição da arte oleira encontrava-se firmada entre os aborígenes do Brasil muitos séculos antes da ocupação e domínio do território pelo europeu... [Atualmente, no Brasil,] no trabalho de moldagem utilizam-se instrumental bastante simples e uma técnica quase toda herdada do indígena: vasilha com água, onde se colocam instrumentos menores e molham-se os dedos, cacos de cuia, sabugos de milho, pedaços de sola, facas, formas, tintas e misturas, pincéis, molambos, tacos de madeira, etc. Alguns desses objetos servem para as tarefas de moldagem, outros para o acabamento e a decoração. Conforme o tamanho da peça, o molde é por vezes insuficiente e o trabalho prossegue mediante um processo herdado dos indígenas, o dos rolinhos (“torcidas” em Goiás e Mato Grosso)... (Salles, 1978: 29-30).

Também a pintura dos objetos sugere sua associação à tradição das culturas

autóctones existente desde épocas remotas na região. A louça produzida na Olaria tem nos

49

padrões decorativos a marca maior de sua expressão. Sempre pintados com pigmentos

naturais, os desenhos feitos na cerâmica do Candeal, devido às características formais com

que são elaborados e à originalidade, constituem um estilo que identifica a procedência

particular dos objetos. Ao mesmo tempo, a matéria-prima da pintura, o “toá”, leva à

associação do fazer artesanal a tradições indígenas amplas, próprias tanto de grupos da

atualidade (Lima, 1986; Willey, 1986) quanto daqueles já desaparecidos, do litoral e de

áreas do interior do país (Etchevarne, 1994).

A designação “toá” é a nomeação local do tauá, pigmento de origem mineral, de

coloração vermelha devido à existência de óxido de ferro em sua composição. No Brasil,

seu emprego é bastante comum na decoração dos objetos cerâmicos de procedência

indígena e popular, bem como sua presença é registrada em pinturas rupestres de muitos

sítios arqueológicos (Bartaburu, 2004; Pessis, 2005).

Na região, é possível verificar o uso do tauá como elemento de expressão de

culturas arqueológicas graças às excepcionais pinturas encontradas em paredões e grutas

das veredas do Peruaçu,19 parque ambiental localizado a 47km de Januária, pela Rodovia

MG 135, portanto a cerca de 90km do Candeal. Muito embora a população local declare

não ter conhecimento dele, em linha reta o parque está há distância de cerca de 30km e

aparece registrado em alguns mapas feitos pelos alunos da escola.

Segundo o imaginário da população regional, as pinturas rupestres que atestam a

presença das culturas arqueológicas no norte de Minas Gerais estão associadas às

sociedades indígenas que ali havia por ocasião da ocupação branca, no século 17. Diversas

19 A área integra o Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, criado em 1999 e compreende mais de 150 cavernas e mais de 80 sítios arqueológicos catalogados. Além de abrigar vestígios muito antigos da presença humana em território americano, como fragmentos de pedras, conchas, carvão e ossos, datados de 12 mil anos, o Parque preserva paredões de até 40 metros de comprimento revestidos por monumentais painéis pictóricos datados de 3 mil anos em que predominam os desenhos feitos com óxido de ferro (cf. Bartaburu, 2004: 28-41).

50

pessoas, professores, jornalistas, comerciantes, donas-de-casa, com quem conversei acerca

do Peruaçu estabeleciam relação direta entre essas pinturas e “os índios”. “Esses desenhos

nas pedras são dos índios. Eles pintavam com urucum e carvão”, afirmava com convicção

o dono da loja de fotografias, em Januária, onde adquiri as reproduções acima, que ali eram

vendidas como cartões-postais. “São os índios que fizeram aquilo tudo ali. Eles gostavam

muito de pintar. Pintavam as cavernas, as paredes, se pintavam, no rosto, no corpo todo.

Antigamente, aqui era terra de índio. Tinha muito índio aqui quando chegaram os

bandeirantes para colonizar a região e Januária foi fundada.” Assim falou uma professora

da cidade, responsável por uma das principais instituições da cultura do Município de

Januária.

Assim, as pinturas rupestres são inicialmente relacionadas aos “índios”, isto é,

àqueles que, no passado, foram os primeiros a habitar a região. Mas os índios não

desapareceram e estão presentes também nos tempos atuais, representados pelos Xacriabá,

a maior nação indígena de Minas Gerais. São em torno de sete mil indivíduos organizados

em 22 aldeias que vivem ao norte do rio Peruaçu, no Município de São João das Missões,

cerca de 100km a nordeste do Candeal, na direção da Bahia (Bartaburu, op. cit.:41).

Para muitos, não é por acaso que os Xacriabá estão na região. Eles habitariam a

área desde milhares de anos passados quando seus ancestrais fizeram as pinturas rupestres

do Peruaçu.

O sistema de representações que relaciona os Xacriabá à arte rupestre também

insere nesse mesmo universo o grupo produtor de cerâmica da Olaria, pois, afinal, “têm

aquelas fogueiras atrás da casa” e fazem a louça – que pintam da cor vermelha do tauá,

como os “índios do passado” pintaram os paredões do Peruaçu. Tudo integra um só

sistema, fogueiras, cerâmica, pinturas rupestres, índios xacriabá, louceiras da Olaria. Todos

se relacionam, tudo se ordena, se comunica.

Não é apenas a sociedade regional que associa os artesãos da Olaria aos índios.

Alguns artesãos também fazem referência aos Xacriabá, especialmente quando falam a

respeito de suas origens. Nesses termos, Emília (D26) relembra uma de suas avós, com

quem viveu após a morte da mãe, ocorrida quando ela estava com cerca de 10 anos de

idade:

Minha vó se chamava Emídia [B10], era a ia-iá, e o io-iô era Teotônio (B9). Ela aprendeu com os pais dela. Quando ela morreu, já era uma velha de quase 100 anos, se é que não tivesse mais. Eu sei que eles era de lá, daqueles índios pra lá, daqueles índio. Dos caboclos que mora pra lá. Daqueles caboclo que mora pra lá, são índio mesmo. Diz que a finada minha vó, a mãe do meu vô, diz que foi pegada foi com cachorro, no mato. Era tale qual índio (Emília, 65 anos).

51

Outra louceira, Idalina (D19), conhecida por Véia, irmã do marido de Emília,

também se refere aos Xacriabá quando, pela fenotipia, se vê identificada ao povo indígena.

Relata ela:

Eu sei que a minha mãe dizia que a finada minha vó era de lá. Um dia, eu tava lá no Cônego, entonce tava lá um homem mais uma mulher e ele falou assim: – A senhora tem sangue de caboclo? Eu disse: – Tenho sim. Então ele falou: – Moça, porque tem lá [na Reserva Indígena] uma mulher que é a senhora escritinha.

E, ao ser perguntada sobre o que é caboclo, Véia responde: “Caboclo é índio e eles

mora pra lá de Itacarambi, na Funai. Povo de caboclo é igual a nós”.

Visitei a área indígena em 2002, não encontrando evidência que permitisse inferir

que dali tenham migrado os ascendentes dos atuais moradores da Olaria. Estive em

diferentes pontos da reserva, e nem os índios nem os funcionários da Funai com os quais

tive contato e pude conversar sobre a Olaria, o Candeal, seus moradores e a produção de

cerâmica demonstraram qualquer conhecimento desse universo externo à área.

Panela xacriabá fotografada na reserva

Na ocasião, o único produtor de cerâmica que

conheci era autor de uma louça que não apresenta

semelhança com os produtos do Candeal. Trata-se de

uma cerâmica resultante de técnica muito rudimentar,

totalmente diferente do que é produzido na Olaria e até

mesmo difícil de ser relacionada a qualquer exemplar

de cerâmica de origem indígena no

Brasil. Seu autor, índio xacriabá, é ferrenho defensor de uma “tradição” indígena,

empenhando-se em “resgatar” valores, características, traços identificadores de sua nação,

que no caso dos Xacriabá se perderam no tempo. Voltado para a reconstrução de uma

identidade indígena para si e para os moradores da reserva, toma como instrumentos de

ação a reelaboração da pintura corporal feita com jenipapo e carvão e a confecção de

artefatos de madeira, como pilões, bordunas, arcos e flechas, adornos corporais como

brincos e colares de sementes, panelas de cerâmica, cestos e chocalhos trançados,

buscando nesses elementos a reafirmação da marca tribal. Seus modelos? Aqueles que

observa junto a outros índios por ocasião dos encontros de nações indígenas e

52

especialmente junto aos povos indígenas, como os Pataxó, do sul da Bahia para onde viaja

com certa regularidade.

Com o título Os índios reinventados, na revista Terra foi publicada uma matéria

sobre o Peruaçu e os Xacriabá. Nela chama atenção o depoimento de Alvino de Barros,

ilustrativo do processo vivido pelo grupo indígena na atualidade:

[Entre os Xacriabá] você verá caboclos, mamelucos e poucos rostos marcadamente indígenas. Isso porque os xacriabás ficaram décadas sem existir, duramente perseguidos pelos fazendeiros da região. “A gente perdeu a língua, perdeu nossa tradição. Fomos forçados a não falar xacriabá”, lembra o vice-cacique Alvino de Barros. Deixaram de ser índios para ser brasileiros e foram dados como extintos. “Os véio foi misturando esse povo. Tem negro, tem branco. Se for tirá os índio apurado, fica pouco”, diz Celestina dos Santos, 89 anos de sangue 100% xacriabá... Hoje são 22 aldeias e um povo tentando reinventar-se. “Estamos reaprendendo nossa cultura e nossa língua”, diz Alvino (revista Terra, 2004:41).

Esse depoimento torna claro que entre os Xacriabá a reconstrução de indicadores

que dêem visibilidade, e mesmo existência, ao grupo não é um projeto particular daquele

indivíduo que conheci na reserva indígena, mas se constitui numa estratégia de conduta

coletivamente concebida.

Gilberto Velho, que se tem dedicado a refletir acerca da relação entre complexidade

e heterogeneidade da sociedade moderno-contemporânea e construção de identidades em

seus mais diferentes aspectos, destaca a importância da noção de projeto para a

compreensão do comportamento de indivíduos em interação social. Citando Alfred Schutz,

para quem projeto é uma “conduta organizada para atingir finalidades específicas” (Velho,

1994:101), o autor declara que, muito embora o ator do projeto possa ser um grupo social,

um partido ou outra categoria qualquer, a idéia de projeto pressupõe a noção de indivíduo-

sujeito – “é indivíduo-sujeito aquele que faz projetos”, esclarece (idem). A consciência da

individualidade, associada à memória – base da biografia –, permite a formulação e a

condução dos projetos. Portanto, é o jogo de memória (passado) e projeto (futuro) que

concede ao indivíduo a possibilidade de traçar estratégias (meios) para alcançar

determinados resultados (fins). “A consistência do projeto depende, fundamentalmente, da

memória que fornece os indicadores básicos de um passado que produziu as

circunstâncias do presente, sem a consciência das quais seria possível ter ou elaborar

projetos” (idem).

Embora enfatize que a noção de projeto está associada à concepção de indivíduo-

sujeito, muito apropriada a sociedades ou segmentos em que predominam as ideologias

individualistas, Velho reconhece que “mesmo nos sistemas hierarquizantes, holistas

53

tradicionais, mais fechados, podem ocorrer fenômenos usualmente alocados à sociedade

moderna” (Velho, op. cit.:104-105).

Essa é uma das maneiras pelas quais podemos apreender o projeto coletivo xacriabá

de re(construção) da cultura indígena que visa dotar o grupo de princípios “étnicos” que

balizem, na atualidade, o comportamento dos membros da sociedade, seja ela holista, se

considerada tribal, formada por unidades englobantes, como a nação, a linhagem, o grupo

de parentesco ou a família, seja individualista, se vemos ali apenas as seqüelas deixadas

pelos anos de dominação branca.

Por outro lado, Eric Hobsbawn, cunhou a expressão “tradição inventada” para se

referir a “um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou

abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos

valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente,

uma continuidade em relação ao passado” (Hobsbawn e Ranger, 1984:9). Sem dúvida, toda

e qualquer tradição, nessa perspectiva, de algum modo foi inventada. Resultado da vida

social, não poderia ser de outro modo. No entanto, o autor procura dar refinamento ao

termo ao chamar atenção para o que pode ser considerado uma “nova tradição”, distinta de

tradições mais antigas e sobre as quais torna-se impossível definir origem e tempo de

surgimento.

Para ele, muitas tradições que parecem antigas ou chegam mesmo a ser

consideradas como tal, podem perfeitamente ser bastante recentes, quando não são o

resultado de invenção deliberada, tendo, portanto, autor ou autores responsáveis por sua

invenção, que procuram quase sempre estabelecer laços, bastante artificiais, com o passado

histórico – que não precisa ser remoto, perdido no tempo.

Por “tradição inventada”, Hobsbawn compreende tanto aquelas tradições realmente

inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas quanto as tradições cuja origem

é mais vaga, que surgiram de maneira mais difícil de explicar e que se estabeleceram com

enorme rapidez num período limitado e determinado de tempo.

Reconhecendo que toda tradição tem uma origem, o autor distingue, no entanto,

entre “tradição genuína”, categoria que é compatível com práticas sociais consagradas na

sociedade, e a “nova tradição”, que surge em momentos de transformação social, quando

as velhas tradições perdem a capacidade de adaptação e a flexibilidade que até então lhes

permitiam acompanhar o processo de mudança da vida social (Hobsbawn, 1984:16).

Nas últimas duas décadas a antropologia vem acompanhando os grupos indígenas

do Nordeste do Brasil (Barbosa, 1999; Oliveira Filho, 1993 e Arruti, 1995) em processo de

54

construção de identidades, o que tem implicado a invenção de tradições, de acordo com a

expressão de Hobsbawn. As análises realizadas têm demonstrado o crescimento de

movimentos de reafirmação étnica junto a populações que durante décadas vinham

negando a condição de índio e que aparentemente haviam perdido por completo os

referenciais identitários indígenas.

A busca e a (re)construção das identidades étnicas foram estudadas por Wallace

Barbosa, que se refere ao processo como “etnogênese”, termo que atribui a Melvin

Goldestein, e que “vem sendo aplicado, no caso brasileiro, àqueles grupos indígenas cujas

denominações não encontravam registro na literatura especializada ou documentos oficiais,

até bem pouco tempo” (Barbosa, op. cit.:200).

Esse processo de afirmação de etnia permite que se agreguem grupos de indivíduos,

até então referidos como “caboclos” pela população regional, que retomam práticas tidas

como tradicionais, como a produção artesanal e rituais, e, quando possível, também

recriam um idioma próprio.

Segundo Barbosa,

Esse movimento resultou em um intenso intercâmbio cultural, com a invenção e propagação entre os grupos locais, de determinadas práticas culturais e na criação de uma série de objetos e adornos, feitos com materiais e técnicas nativas, além do estabelecimento de uma terminologia sumária para designar os itens mais significativos de sua cultura material (id., ibid.:199).

É ainda Barbosa quem destaca a importância da produção artesanal como um dos

instrumentos de que lançam mão os índios do Nordeste para a construção de uma

identidade indígena nesse novo contexto, lembrando que o artesanato, como uma categoria,

foi inicialmente fomentado pela Funai, órgão de assistência ao índio que acabou por

transformar a produção de objetos da cultura material indígena. Segundo o autor, o

artesanato constitui-se em

um dos principais elementos de legitimação da identidade étnica indígena, ao lado da língua e das práticas performáticas e/ou rituais. Não tardou que a cultura material fosse reelaborada e utilizada de forma emblemática pelos grupos emergentes que buscavam seu reconhecimento oficial (id., ibid.:200).

Barbosa não está só ao afirmar a importância dos objetos de cultura material e a

possibilidade de seu uso como marca identitária. Refletindo acerca do universo mais amplo

da sociedade urbano-industrial contemporânea, A. A. Arantes lembra que:

o artesanato é um dos principais atores do jogo de tradições perdidas, achadas e reiventadas, que caracteriza a dinâmica cultural contemporânea. De fato, ele é um dos responsáveis pela produção dos sentidos de lugar, tão fortemente valorizados pela economia e pela indústria cultural nestes tempos de vida social globalizada (Arantes, 2000).

55

Hoje, as terras dos Xacriabá constituem-se numa área indígena legalmente

reconhecida. Entretanto, no passado, muito conflito foi enfrentado para que esse povo

tivesse assegurado o direito a seu território. A área só foi demarcada nos anos 70 após

longo tempo de reivindicação por parte da população indígena. Não obstante, a tensão

continuou até que, em 1986, quatro mil índios armados de rifles e ferramentas expulsaram

cerca de mil posseiros das terras. O assassinato de três líderes xacriabá pôs fim aos

conflitos com a homologação definitiva da área de reserva em 1987 (Bartaburu, op.

cit.:41). Até hoje, a despeito da garantia sobre a terra que habitam, reforçar a identidade

étnica é para os Xacriabá uma questão de sobrevivência. A produção de artesanato é parte

dessa luta.

Esse parece ser o propósito que move o índio xacriabá que encontrei na área

indígena. Rompidos os elos materiais que uniam o povo a uma tradição passada, ele busca

criar, no tempo presente, por meio de um projeto que é coletivo, novos laços com o

propósito de reforçar a origem da nação xacriabá, aliançando todos entre si e religando-os

ao território e à ancestralidade comuns.

O processo de produção do artesanato em Olaria é, entretanto, de outra natureza,

aproximando-se da idéia de tradição “genuína” distinguida por Hobsbawn. Em que pesem

os problemas do adjetivo genuíno, é importante assinalar a diferença do processo de

memória ativado no fabrico da louça do Candeal.

Na Olaria, a família, o grupo, os amigos são instâncias da vida em sociedade que

constituem os “quadros sociais” que levam às lembranças (Halbwachs, 1990). Na

localidade, exceto os depoimentos de Emília e de Idalina mencionados, “aparentemente”

nada há para ser lembrado que ligue os moradores da Olaria à história dos Xacriabá. É bem

verdade que um fluxo efetivamente perpassa a reserva indígena estabelecendo um vínculo

entre ela e o povo do Candeal, mas na direção contrária da que uma abordagem superficial

poderia sugerir, pois é a louça de barro produzida hoje na Olaria que abastece a população

da reserva,20 como tive oportunidade de verificar in loco. Em especial os potes para guarda

de água estão presentes em quase toda residência da área indígena. São peças que chegam

à reserva pela ação dos “compradores” atendendo à necessidade da população do norte

mineiro e da área baiana vizinha.21

20 Em menor escala encontram-se na área potes originários da localidade de Buriti do Meio, pólo produtor de cerâmica no Município de São Francisco, também no norte de Minas Gerais. 21 A questão do intermediário local estará sendo analisada com mais precisão no Capítulo 3.

56

Na reserva indígena, há referências a apenas uma família produtora de potes, que

mora em região distante, dentro da própria reserva. Segundo depoimentos, são pessoas

chegadas de fora, originárias de um local “pros lados de Januária”. De acordo com essa

informação e pela descrição dos potes que produzem, há grandes possibilidades de se tratar

de pessoas procedentes da Olaria. Infelizmente, não as pude encontrar. De qualquer forma,

é interessante o registro, uma vez que a área é tida como habitada atualmente apenas pela

nação xacriabá, o que pode significar a possibilidade de ser essa família formada por índios

xacriabá que moravam fora da reserva. Se isso pudesse ser constatado, abrir-se-ia a

possibilidade de aceitação da existência de outros Xacriabá morando fora da reserva, em

localidades como a Olaria, por exemplo.

Na Olaria, por outro lado, como se vê nos depoimentos, são duas as moradoras que

têm os Xacriabá por referência. Uma delas, Emília, cita, aliás, a reserva como o local em

que passou parte da infância e de onde saiu, ainda menina, para residir com sua mãe no

Candeal, sem esclarecer onde nasceu. Pode-se supor, então, a partir desses dados e

depoimentos, ter havido no passado um fluxo significativo entre as duas localidades.

Revendo a genealogia de Emília (D26), verifica-se que ela integra, por nascimento, a rede

de parentesco dos moradores da Olaria, vindo a ser bisneta de Matias Gonçalves de Souza

e Joana da Silva Pinheiro. Teria também esse casal por ascendentes os Xacriabá?

Na sede do Município de Cônego Marinho, em entrevista em que falava acerca da

formação histórica da região da Olaria, da propriedade das terras, do povoamento local, um

funcionário aposentado do cartório de registro civil afirmou que:

Quando Josino Costa [antigo fazendeiro da região] chegou ali, nós não podia nem adivinhar há quantos anos eles [os moradores da Olaria] já existiam lá. Inclusive esse Matias é descendente dali. Eles são descendentes de índio, de caboclo. São índios. Não sei que índio, mas sei que eles são índios. Eles até nem sabem disso. Eles eram conhecidos lá por caboclo. Meus pais falavam que eles eram caboclo, e caboclo é mistura de índio (Anízio Madureira, 77 nos, chefe do cartório local, aposentado).

Caboclo. “O indígena, o nativo, o natural; mestiço de branco com índia; mulato

acobreado com cabelo corrido... Diz-se comumente do habitante dos sertões, caboclo do

interior... Hoje indica o mestiço e mesmo o popular, um caboclo da terra.” Assim Câmara

Cascudo (1962:156) registra o significado primeiro atribuído ao termo, que corrobora a

sinonímia presente no discurso nativo acima, segundo a qual as categorias índio, caboclo e

descendente ou “mistura” de branco e índio se equiparam.

O termo, empregado no Brasil desde a época de colônia, surgiu impregnado de

valor negativo por também conter o significado de indivíduo grosseiro, boçal, a ponto de

57

El-Rei D. José de Portugal, pelo alvará de 04 de abril de 1755, haver proibido que os

súditos, nascidos de portugueses brancos com índias, fossem assim denominados (idem).

Não obstante, a categoria se manteve, bem como seu caráter etnocêntrico, sendo referida

aos indígenas e a seus descendentes, os mestiços, moradores das áreas rurais.

Véronique Boyer, em interessante artigo, analisa o uso da categoria no Pará, onde

se refere tanto ao nativo, morador das áreas rurais, de interior, quanto a entidades dos

cultos mediúnicos.

Segundo a pesquisadora, dos vários sentidos da palavra, conforme registrados por

Câmara Cascudo, resultou “a elaboração cultural do caboclo enquanto categoria do mundo

invisível” (Boyer, 1999:30). No contexto religioso, a categoria reúne representações que

em outros sistemas de crença do país podem surgir como “entidades” distintas umas das

outras, como pretos velhos, crianças e exus, formando, no Pará, uma totalidade que não se

divide em função de fenótipos ou de claras origens étnicas. “Os médiuns dos cultos

preferem classificá-los em função do seu pertencimento ao domínio da mata ou do mar e,

dentro de cada um, em função de suas afinidades com subgrupos como ‘boiadeiros’,

‘flecheiros’, ‘marinheiros’, ‘turcos’” (id., ibid.:36).

Em relação à outra vertente semântica do termo, isto é, como categoria de

classificação de indivíduos do “mundo visível” ou, como diz a autora, para designar “um

tipo de população humana”, em Belém o uso do substantivo, que de início se referia aos

índios e aos mestiços de índio e branco, ampliou-se para além do referencial étnico,

abarcando imigrantes de diferentes partes do mundo e, em especial, os migrantes

nordestinos que, na segunda metade do século 19, fugindo da seca, se deslocaram para a

Amazônia, atraídos pelo ciclo da borracha. Esses contingentes populacionais que fizeram a

ocupação do território, com o fracasso da borracha, migraram para outras regiões. Muitos,

no entanto, permaneceram e fizeram “alianças, através do casamento e do compadrio, com

os seus vizinhos instalados há mais tempo. Esses colonos, o termo sendo usado para

diferenciá-los dos grupos com ocupação mais remota, integraram-se progressivamente à

população local e, receberam o rótulo de ‘caboclos’” (id., ibid.: 39), conservando o termo,

no entanto, a referência ao morador das zonas rurais.

Abandonado o sentido de índio ou de mestiço de índio e branco, caboclo, para a população atual da cidade, designa geralmente o habitante do meio rural qualquer que seja a sua origem, muitas vezes apresentando-o como crédulo e idiota. De fato, o uso do termo tem uma forte carga negativa. Denota a pouca consideração que se tem para com aquele que se qualifica dessa forma, quando não torna explícito o desejo de ofendê-lo (id., ibid.: 30).

58

Assim, a autora demonstra como, no Norte, ao longo do tempo, a categoria foi-se

afastando do referencial exclusivamente indígena para, a seguir, se revestir de novo

significado, marcado pelo caráter positivo da representação, fato ocorrido também no

Nordeste do país conforme consta em diversos dicionários publicados na década de 1930,

nos quais a palavra caboclo é registrada como termo expressivo de afeto e carinho em

relação a esse homem habitante do mundo rural.

A construção da imagem valorizada do caboclo, segundo a autora, assume cunho

claramente ideológico, como resultado da ação de intelectuais que pretendiam reverter o

modo pelo qual a região era representada no imaginário social. No surto de “progresso”

proporcionado pela extração da borracha, a elite local vislumbrara a oportunidade de seu

nivelamento cultural ao sul do país e o ingresso da região na “modernidade e civilização”.

O sonho, no entanto, teve curta duração – do final do século 19 aos primeiros anos do

século 20 –, restando a frustração, sentimento que a intelectualidade local buscou dirimir

na construção da imagem de um novo homem nativo. Permaneceu, contudo junto ao senso

comum, o caráter negativo atribuído ao termo.

Esse novo registro de expressão não significa que tenham desaparecido as conotações pejorativas associadas ao termo. Em boa parte da literatura, ‘caboclo’ permanece uma palavra injuriosa e negativamente definida. Além do que, na realidade das relações sociais, o forte estigma associado ao termo caboclo faz com que as populações, ainda hoje, não aceitem ser caracterizadas dessa forma (id., ibid.: 39).

No Candeal, o substantivo parece ter conservado fortemente o significado primeiro,

referido ao indígena e aos mestiços, filhos de indígenas. Assim, caboclo e índio são a

mesma coisa. No entanto, o caráter negativo que lhe é imputado não é evidenciado com

clareza, muito embora não se possa dizer que não esteja presente nas relações sociais entre

índios e não-índios, e a história dos Xacriabá aponte na direção contrária, tornando

explícita a tensão entre caboclos e a população regional.

Se admitimos a hipótese da existência de vínculos a ligar os produtores da cerâmica

do Candeal ao grupo indígena xacriabá, se reconhecemos o discurso nativo como evidência

de que o grupo é formado por caboclos, resta indagar sobre as razões que fazem a memória

coletiva ser tão diluída, fragmentada, já que ao longo dos anos encontrei raros depoimentos

nativos a esse respeito. A resposta talvez possa vir a ser encontrada no processo de

marginalização a que estão sujeitos os contingentes indígenas politicamente não

organizados em confronto com as populações regionais. Já foi suficientemente descrito

59

pelos estudos de antropologia indígena o fato de que é justamente junto à população

regional que se expressa o mais forte etnocentrismo em relação ao índio.

Definindo essa realidade pela expressão “fricção interétnica”, Roberto Cardoso de

Oliveira assim se manifesta:

Se o homem das modernas cidades do Rio ou de São Paulo deixou de atribuir à noção de índio os qualificativos de traiçoeiro, indomável e preguiçoso, o das regiões circunvizinhas às habitadas por populações tribais ainda continua a perfilhar os mesmos conceitos depreciativos Na negação da alteridade portanto residem os preconceitos e se legitimam os atos de violência a que muitos grupos indígenas estão sujeitos no Brasil... A proximidade competitiva e muitas vezes conflitual, do homem regional frente às populações indígenas, anima sua atitude negativista, agressiva e comumente impiedosa, responsável por quantos massacres e destruições de aldeias inteiras, que foram registrados pela história das relações entre índios e brancos no Brasil” (Oliveira, 1972: 67-68).

Os Kambiwá são exemplo dessa situação vivida por grupos indígenas. Segundo

Barbosa (1999), no passado o grupo permaneceu quase indiferenciado da população

regional, adotando uma “estética da dissimulação” ou do “desaparecimento”, em resposta

aos conflitos, acusações, perseguições aos quais foi submetido durante longo tempo, até

que chegou o momento em que as insígnias, os indicadores da etnicidade indígena foram

apagados, ou invisibilizados. Só posteriormente, quando se deu o que vem sendo

denominado processo de “etnogênese”, e que outros autores denominam “emergência

cultural” ou “reafirmação étnica” (Arruti, op. cit.), é que os Kambiwá ressurgiram com sua

cultura e se fizeram notar na cena regional, aderindo a uma estética de diferenciação, de

ostentação sígnica (Barbosa,1999: 212), e até inventando tradições,22 num processo similar

àquele pretendido pelos Xacriabá.

Considerando a possibilidade de filiação dos artesãos da Olaria à etnia xacriabá,

pode-se pensar que uma das razões do não-reconhecimento da identidade índia no Candeal

talvez se deva ao medo, pelo tratamento estigmatizador a que o grupo está sujeito, de

conflitos com a população regional.

Na relação diária, as pessoas da Olaria, até o final da década de 1990, portanto até

muito recentemente, eram hostilizadas e submetidas a diferentes formas de discriminação.

Tidas como ignorantes, briguentas e cachaceiras, quase todas analfabetas, agricultoras

numa região de difícil agricultura, produtoras desanimadas de objetos cerâmicos de valor

diminuto e que, ainda assim, no pouco que faziam, eram exploradas por intermediários,

22 De acordo com Barbosa, o próprio termo Kambiwá é uma invenção recente, um “rótulo étnico” adotado pelo grupo nos inícios dos anos 70, como um requisito para o reconhecimento oficial enquanto grupo indígena, o que não significa que o grupo não existisse anteriormente, sendo conhecido, no passado, como Índios da Serra Negra.

60

essas pessoas eram mantidas à margem da vida social local, especialmente do convívio

com os moradores do povoado do Candeal. Bastante emblemática é a porteira que ainda

hoje existe e, até início da década de 2000, estava quase sempre fechada, delimitando os

espaços e mantendo apartados o mundo do povoado do Candeal e mundo da Olaria, “o

povo do Candeal”.

A partir de 1998, com o início do projeto de apoio aos artesãos, as transformações

que ocorreram no local tiveram reflexo no cotidiano dos moradores da Olaria, na imagem

auto-atribuída e na maneira como eram percebidos pela população regional. Graças à louça

de barro que eles produziam, o município se projetou para além das fronteiras locais e

regionais, atingindo, por meio de exposições, os grandes centros, como Belo Horizonte,

capital do estado, Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília.23 Transformados em cartão-postal,

a louça do Candeal, a Olaria e seus produtores passaram a ser valorizados e representados

com orgulho pela população do município. Não obstante, isso não foi suficiente para

transformar completamente seus comportamentos – continuaram, até onde pude

acompanhar, briguentos e cachaceiros –, dando margem a que o processo de acusações,

embora arrefecido, tivesse continuidade. De forma pejorativa, continuam a ser, por vezes,

chamados de caboclos e comparados a animais: “são igual a bicho”. Em outros momentos,

são ainda a personificação do mal, do diabo, associados ao inferno representado pelas

“fogueiras”, isto é, os fogos dos fornos de fundo de quintal.24

23 A relação com o mundo externo, para além das fronteiras da região, será discutida no Capítulo 5. 24 A associação do fogo ao universo do mal, do inferno, é ocorrência freqüente no imaginário popular brasileiro. É notório o caso de Mestre Vitalino (Vitalino Pereira dos Santos, 1909-1963), exímio artista de

61

Então, ainda marginalizados, os moradores da Olaria parecem ter de alguma forma

“escolhido” manter na invisibilidade sua possível condição indígena. Neste capítulo

procurei apontar dados fragmentados, porém plausíveis e verossímeis, que indicam uma

provável ligação do povo do Candeal com ascendentes de etnia indígena, colhidos aqui e

ali nos relatos locais, nas representações da população regional, na observação da

realidade. São referências que resultam do jogo de lembranças e esquecimentos, da

memória que o tempo consagrou e a oralidade torna perene, uma vez que a importância da

narrativa é maior do que os fatos e acontecimentos por ela relatados (Detienne: 1992).

Identidade que se faz nas semelhanças físicas a aproximar artesãos e índios, semelhanças

que muitas vezes corroboram um processo acusatório, de discriminação, de preconceito:

“são igual a bicho”. Identidade evocada pelos objetos cerâmicos; inferida no vermelho do

tauá com que as louceiras pintam sua louça, nas volutas e nos arabescos com que enfeitam

potes, pratos e moringas. Identidade lida nas fogueiras de fundo de quintal que,

transformando natureza em cultura, marcam objetos e pessoas; que evocam os desenhos

deixados por povos de outras eras nas paredes do Peruaçu, a poucas léguas dali. Uma

densa e silenciosa trama de memória, aprendizado, transmissão de saberes que constrói um

tecido social. Sua percepção só é possível no deslindamento dos pequenos nós que se atam

uns aos outros, dando significado à vida de cada morador dessa localidade.

Caruaru, no agreste pernambucano, que criava no barro retratos de seu universo, seu mundo cotidiano, mágico, mítico e religioso, tendo, no entanto, durante toda a vida se recusado a modelar figuras de santos do catolicismo por considerar pecado colocar tais imagens no forno para cozer (Frota, 1986:23). A única exceção foi um crucifixo, feito a pedido do bispo do Crato, e com a garantia de que, sob sua proteção, submeter a imagem do Cristo à alta temperatura do forno e ao fogo não consistiria pecado mortal e, portanto, sua própria condenação de padecimento eterno nas labaredas do inferno.

62

Maria Bia

63

Capítulo 2 – Processo de produção, gênero e organização social

Na Olaria, o barro constitui matéria-prima com que são atendidas diversas

necessidades humanas. Da construção da moradia à modelagem de objetos, sua presença é

marcante e tem haver até mesmo com a nomeação da localidade, uma vez que o termo

olaria se refere à “indústria de tijolos, telhas, manilhas, cerâmicas ou quaisquer outras

louças de barro” (Sacconi, 1996).

Com barro se fazem objetos como panelas, potes e pratos, constroem-se fogão a

lenha, bancas de potes e diferentes tipos de fornos que atendem a necessidades diversas e

específicas, conforme assinalado no capítulo precedente. Na Olaria, do barro também são

feitos tijolos com que erguem paredes e telhas para cobertura das casas, que também têm

nessa matéria a feitura do piso.

Até a década de 1960, na Olaria se produzia um tipo específico de tijolo quadrado,

às vezes retangular, que na região era utilizado para cobertura de piso nas construções. Em

Januária, encontrei-o em algumas residências do bairro da Rua de Baixo - local de moradia

das camadas de baixa renda, especialmente dos pescadores -, procedente, segundo me foi

informado, do Candeal. Aparentemente, esse tipo de revestimento deixou de ser feito

quando surgiram ladrilhos e outros pisos industrializados, possivelmente mais baratos e

mais ao gosto das populações urbanas. Ou, arrisco sugerir, seu desaparecimento talvez se

tenha devido à concorrência do cimento que, mais resistente, misturado à tinta xadrez,

tornou-se altamente popular na feitura de piso das casas dos segmentos de baixa renda da

população.

Em 1998, sete moradias da Olaria, especificamente as casas 1, 4, 5, 6, 8, 11,e 18,

tinham piso cimentado. A maior parte das residências (doze casas), no entanto, apresentava

chão de barro socado, sendo elas as casas 2, 3, 9, 10, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 19 e 21 (ver

desenho no capítulo anterior). Já as casas 7 e 20 tinham pisos mistos, isto é, sala com piso

revestido de cimento, e as demais dependências com chão de terra batida.

Benita (D30), em 2003, reformou sua casa, a de no 20, cobrindo o piso com

cimento; e, em 2005, os moradores das casas 14 e 16 construíram novas moradias cujos

pisos também foram, em partes, revestidos de cimento.

Assim, tanto na feitura dos objetos quanto na construção das moradias, a população

especializou-se no domínio do barro. Praticamente todo homem adulto é capaz de construir

uma casa, pois a feitura de telha canal e de dois tipos de tijolo, o adobe e o maciço, são

processos acerca dos quais os homens detêm grande conhecimento - muito embora esse

64

conhecimento não lhes seja exclusivo, pois, a não ser o costume local, nada existe que

impeça as mulheres de participar da confecção desses objetos, havendo mesmo aquelas que

auxiliam seus maridos na modelagem de telhas ou assumam sozinhas a feitura do tijolo de

adobe. De maneira geral, entretanto, ao falarem sobre a produção de tijolos e telhas, os

moradores da Olaria invariavelmente a associam ao universo masculino, atribuindo aos

homens a responsabilidade pelo ofício.

A produção de tijolo de adobe

O tijolo de adobe, que denominam “adobro”, mede cerca de 30x17x10cm.

Reforçando a corruptela do termo, seu volume se aproxima do dobro do volume do tijolo

maciço ali modelado, que mede cerca de 20x10x6cm.

Foto Ana Alaide

O adobe, na Olaria,

raramente se destina à venda.

Sua produção é voltada

basicamente para atender às

necessidades da família e se dá

no âmbito do grupo doméstico,

sempre que dele se necessita:

uma nova casa, um puxado no

quintal para abrigar galinhas ou,

num ano de boa chuva e fartura,

a colheita de milho e abóbora, uma parede que proteja o forno de torrar farinha ou assar

biscoito são motivos para a unidade doméstica produzir uma quantidade suficiente que

permita atender à necessidade da família.

Isso não significa que uma pessoa, necessitando de tijolos de adobe e

impossibilitada de modelá-los ela mesma, não recorra a vizinhos ou parentes, que se

dispõem a fazer, emprestar ou vendê-los. É comum, nesses casos, que passem a operar os

mecanismos de reciprocidade que asseguram coesão social (Sahlins, 1970). Tijolos são

cedidos a quem deles necessita, na certeza de que, um dia, serão devolvidos, em produtos,

como contraprestação de serviço ou de qualquer outra maneira, não necessariamente

quantificável, variações de formas que, nem por isso são menos importantes para a

manutenção das relações e da vida social. Por essa razão, porque não integra

necessariamente o circuito dos bens comercializáveis, o tijolo de adobe significa a

65

atualização de redes de aliança e de reciprocidade, importantes para a vida de cada unidade

doméstica local.

Esse tipo de tijolo é feito por um indivíduo, sozinho ou contando com ajuda, em

geral, de outro membro da família. Por vezes, trabalha só a mulher nos intervalos dos

afazeres domésticos; outras, só o homem; há também ocasiões em que, juntos, trabalham

marido e mulher, com ou sem o auxílio dos filhos. Variam as situações, varia o número de

pessoas envolvidas na atividade, mas sempre obedecendo ao princípio de que cabe ao

homem a responsabilidade primeira pela construção a ser erguida em benefício de seu

grupo doméstico, o que não isenta, no entanto, os demais integrantes da participação na

atividade, envolvendo-se na produção.

A época de feitura é a estação da seca, período que dura de março/abril a

setembro/outubro, quando a ausência de chuvas interrompe o ciclo de cultivo e quase

paralisa o trabalho agrícola, além de o forte sol e a diminuição da umidade do ar

favorecerem a secagem rápida das peças.

Em função da fragilidade e do peso, o tijolo de adobe é produzido no mesmo

espaço em que a nova construção será erguida. Evitam-se, assim, seu transporte e o risco

de quebra.

No período de sete anos, de 1998 a

2005, muitas casas foram (re)construídas

na Olaria. Por isso, tive oportunidade de,

por mais de uma vez, assistir ao processo

de manufatura desse tipo de tijolo, cuja

fabricação é bastante simples: num

terreno limpo é colocada uma quantidade

de barro à qual se adiciona água. Com os

pés, por vezes utilizando enxada ou mão de pilão,25 o artesão amassa o barro para formar

uma pasta de consistência mole. Não há preocupação em limpar essa massa. Ao contrário,

impurezas como ciscos, pequenos gravetos e capim permanecem misturadas ao barro e

atuam como aderentes, tornando os tijolos mais sólidos e resistentes.

Pronta, a massa é colocada em uma caixa de madeira, sem fundo – para que adquira

o formato retangular. Por vezes, essa fôrma, que denominam grade, é colocada diretamente

25 A expressão “mão de pilão” não é dicionarizada, embora seja corriqueiramente usada, sobretudo em zonas rurais, onde o uso do objeto é mais freqüente. Os dicionários registram “mão de almofariz”.

66

sobre o solo liso, para só então ser enchida com a massa. Após um tempo, retirada a fôrma,

o tijolo está pronto e ali permanece para secar ao sol. Outras vezes, a fôrma é assentada

sobre uma tábua, que lhe serve de fundo. Colocada a massa, tudo é transportado até o local

onde o tijolo é retirado da fôrma e da tábua e depositado diretamente sobre o terreno para

secar.

Depois de secos, os tijolos são empilhados. Como são feitos em pleno período de

estiagem, é muito reduzido o risco de chuva. Caso chova, têm de ser imediatamente

cobertos, do contrário desmancham. Por vezes isso realmente acontece, porque o artesão

está ausente, se descuida ou não dispõe de plástico ou lona para cobrir o que produziu.

Nesse caso, a produção se perde e todo o trabalho tem que ser refeito.

Uma ocasião vi isso acontecer.

Tratava-se da ampliação da casa 20,

de Benita (D30) e Batista (D31). Em

1998, eles tinham quatro filhos. No

ano seguinte, nasceu Mateus (E43) e,

em janeiro de 2001, Marina (E44). A

casa era pequena, com apenas dois

quartos, também pequenos, o que fez

o casal decidir pela reforma. Construiriam mais um quarto. E, como obra nunca é simples e

um cômodo puxa outro, Benita quis construir também uma cozinha nova, transformando a

que estava em uso em novo espaço, uma copa para as refeições da família. Incluíram na

empreitada um banheiro, já que não dispunham de um. Diante de tudo isso, Benita passou

a reservar algumas horas do dia, geralmente pela manhã antes de começar a modelar louça,

para fazer tijolos de adobe, cerca de 30 diariamente. Era fazer, deixar ao sol para secar e,

uma vez secos, empilhá-los. O tempo corria bem seco, o que contribuía para a rapidez com

67

que as peças ficavam prontas. Logo, a pilha estava crescida, com cerca de 500 tijolos. Era

preciso providenciar uma lona, ou plástico, para cobri-los caso ameaçasse chover. A

providência não foi tomada, e, numa tarde, a chuva ameaçou e chegou. O que conheci foi

um monte disforme de barro, no terreiro da casa, onde a história me foi contada por Benita,

num tom que era mistura de resignação, arrependimento e determinação para recomeçar. A

casa ampliada ficou pronta em setembro de 2003. Foi quando também recebeu melhorias

como o piso de cimento. Um ano além do prazo inicialmente previsto, pois o bom senso

aconselhou esperar a próxima estação de seca para fazer novos tijolos sem que o tempo

pusesse tudo a perder novamente.

A produção de tijolo maciço

Com relação ao tijolo maciço, diferente do adobe, a produção local não é feita por

um indivíduo isoladamente e não está organizada tendo por base a unidade familiar. Assim

como em muitas outras localidades do país, o fazer artesanal desse tipo de tijolo é trabalho

masculino.26 Podendo ser feito tanto para consumo próprio quanto para venda, os homens

se associam em sua produção. Por ser uma fonte de renda, muitos oleiros destinam ao

mercado toda a produção de que são capazes numa temporada. Assim, a despeito do fato

de se tratar de um tijolo que vai ao forno, portanto de maior durabilidade e resistência à

chuva e ao tempo, reconhecido como de qualidade superior em comparação com o tijolo de

adobe,27 é comum encontrar muitos produtores que têm suas casas construídas

integralmente com tijolos de adobe. “Casa de ferreiro, espeto de pau” - exímios oleiros,

capazes de queimar alguns milhares de tijolos maciços a cada ano, os artesãos da Olaria,

por imposição de ordem econômica, premidos pela necessidade de produzir bens vendáveis

para fazer frente às múltiplas demandas do dia-a-dia, privam-se dos benefícios que o tijolo

maciço pode oferecer, não o destinando a seu uso próprio. A produção é integralmente

encaminhada à venda, negociada antes mesmo de ficar pronta. Muitas vezes os oleiros

trabalham por encomenda, estando toda a produção de antemão comprometida.

26 Tenho observado a associação entre produção de tijolo maciço e mão-de-obra masculina em diferentes localidades do país, como Belém (PA), Rio Real (BA), Januária (MG), Itaperuna e Itaboraí (RJ), independente do fato de se tratar de indústria ou de produção de pequena escala. 27 Refiro-me à qualidade desse tipo de tijolo sem entrar no mérito de que, para muitos, o tijolo de adobe tem como vantagem o fato de ser um produto “ecologicamente correto” por não ser queimado e, portanto, não poluir o ar nem consumir madeira na queima.

68

É também comum na região que as casas sejam feitas segundo técnica mista,

coexistindo, nesse caso, numa mesma construção, paredes de adobe e de tijolos maciços.

Por vezes associa-se outra técnica, a taipa.

A importância desse fato reside na possibilidade de relativização do pensamento

evolucionista de que o adobe vem a ser o precursor do tijolo cozido, como asseguram

pesquisadores da chamada construção espontânea e estudiosos da arquitetura colonial

brasileira (Kopte, 1979). O emprego concomitante de várias técnicas de construção, longe

de significar a evolução tipológica dos materiais, aponta para a diversidade e a riqueza das

expressões culturais que o homem é capaz de criar e delas se apropriar.

Na Olaria, a época de produção do tijolo maciço é a mesma do adobe: a estação da

seca, quando os homens estão menos comprometidos com o trabalho agrícola.

A atividade é desenvolvida no barreiro, ponto onde se encontra a matéria-prima

apropriada à feitura dos tijolos maciços, bem como das pequenas telhas do tipo canal que

também são produzidas na localidade.

Os barreiros se localizam nas fazendas que circundam o local de moradia dos

oleiros, tratando-se, então, de propriedades privadas. Embora muitas pessoas não tenham

título de propriedade das terras que exploram ou nas quais residem, reconhece-se o direito

privado sobre elas, com base no princípio de que foram herdadas ou adquiridas por

compra. Enquanto bens passíveis de apropriação, as terras em geral e os barreiros podem

ser comercializados: vendidos ou arrendados.28

O dono de uma propriedade em que se localiza um barreiro pode explorá-lo

diretamente. Isso aconteceu, conforme o relato de Idalina (Véia), registrado no capítulo

anterior, ao narrar o episódio da morte de Matias Gonçalves de Souza quando trabalhava

num barreiro. Essa possibilidade é menos teórica e mais real quando o “proprietário” do

terreno é também oleiro, o que acontece especialmente com os moradores da Olaria, onde

todos se consideram fazedores de telhas e de tijolos,29 como Januário que, em 1998,

explorava o único barreiro em atividade na Olaria.

O fato de ser “proprietário” de terra não significa necessariamente que o indivíduo

se veja diferente de um trabalhador braçal. Embora exista uma hierarquia que determina

graus diferenciados de poder e de prestígio entre aqueles que detêm a “propriedade” da

terra e aqueles que não a detêm - clivagem que é mais marcante em especial entre o

28 Não disponho de dados sobre o valor da taxa de arrendamento de barreiros. Não houve ocorrência dessa modalidade no período em que a pesquisa foi feita, embora me fosse garantido pelos artesãos que ela era real. 29 Não existe uma categoria nativa que corresponda ao termo oleiro. Quando o indivíduo quer se referir ao fato de trabalhar como oleiro, diz: “eu faço tijolo”, “eu faço telha”, “eu mexo com barro”.

69

fazendeiro (o “proprietário” de uma extensão grande de terra em que cria gado) e o não-

fazendeiro -, em relação à visão de mundo e ao estilo de vida não se notam distinções

significativas. Em muitos casos, principalmente quando o indivíduo é dono de um lote

pequeno, ele é também o que se encarrega de todo o trabalho com a terra. É o que acontece

com os moradores da Olaria quando dispõem de barreiro próprio e resolvem ser oleiros.

Como já anunciado, a denominação da localidade tem origem nesse tipo de atividade. Ali

funcionou uma grande olaria na qual a população regional se abastecia. Sua existência é

atestada nas depressões profundas deixadas no terreno de onde o barro era retirado e na

memória da população regional, conforme demonstra o depoimento (gravado em fevereiro

de 2004) de Nato, 55 anos, prefeito municipal e comerciante, nascido e morador na cidade

de Cônego Marinho.

Eu conheço ali, desde que eu tinha a idade de oito anos e nós ia lá comprar telha e tijolo cru. Meu pai tinha engenho e comprava daqueles tijolinho de 10x15cm cru pra fazer o forno e assentar o tacho. Aí bota fogo pra fazer o mel e o tijolo vai queimando junto. Esse povo de Cônego Marinho, Candeal, Cruz dos Araújos, todas as telhas que têm, desse modelo de telha antiga, foi tirado tudo dali daquela olaria. Ali onde está hoje o galpão. Desde a idade de 55 anos de idade que eu tenho, já conheci esse povo fazendo essas louças.

Embora qualquer um possa, teoricamente, “mexer com barro”, o mais comum é que

o “proprietário” do terreno onde se encontra um barreiro o ceda para exploração de algum

oleiro. Trata-se, nesse caso, de arrendamento do barreiro. Outra modalidade de acordo

entre fazendeiros e oleiros é o sistema de “pagar a renda”, como afirmam, pelo qual o

“proprietário” fica com 30% do total da produção, sejam telhas ou tijolos maciços, a título

de pagamento pela cessão do direito sobre a matéria-prima, o barro.

Daqueles que se associam para a produção, muitos não residem na Olaria. Moram

no povoado do Candeal, em Candealzinho, Bandeiras, Cruz dos Araújos ou em qualquer

outra localidade da unidade territorial, conforme demonstram os mapas feitos pelos

estudantes e apresentados no capítulo anterior. A construção dessa rede supralocal torna-se

provavelmente mais viável quando o barreiro está situado fora dos limites da localidade,

em áreas nas quais residem outros oleiros.

No barreiro, o barro é amassado e moldado em fôrmas de madeira. Logo após, já

em formato de tijolo, é retirado da fôrma e posto ao sol para secar. Finalmente, quando se

tem uma quantidade suficiente, os tijolos vão para o forno a lenha, onde são cozidos ou

70

queimados.30 Após pagar a renda, a produção é dividida em partes iguais entre os

responsáveis por ela.

A produção de telha canal

Outro produto feito com o barro e cuja ação resulta do trabalho marcadamente

masculino é a telha canal. O fato de a produção estar associada ao labor do homem não

implica a impossibilidade total da participação feminina nesse tipo de atividade.

Eventualmente, a mulher é vista trabalhando em etapas de feitura das telhas. Nesse caso,

em geral, trata-se de uma esposa, e seu trabalho é percebido como auxiliar ao do marido.

O processo de confecção de telhas

guarda muitas especificidades quando

comparado à produção de tijolos.

Geralmente em duplas, os oleiros

do Candeal constroem, próximo ao

barreiro, uma “masseira’, isto é, cavam o

chão fazendo um buraco de cerca de 2m

de diâmetro e com aproximadamente 50cm de profundidade. No centro, fixam uma estaca,

que serve de apoio àquele que pisoteia o barro.

Extraído do barreiro, o barro seco é socado com um pedaço de madeira, quase

sempre uma mão de pilão. A seguir, é colocado na masseira e molhado para ser pisoteado

30 No Candeal, empregam-se indiscriminadamente os termos assar, cozer e queimar para referir o processo de colocar o objeto de barro no forno, onde, pela ação do calor do fogo, se transforma em cerâmica, seja o tijolo, telha ou louça.

71

até que se transforme em pasta uniforme. A massa fica então pronta para uso imediato,

sendo retirada da masseira e coberta com plástico para que não resseque. A seguir, com ela

são feitas bolas de cerca de 20cm de diâmetro. É a quantidade certa para a modelagem de

uma telha, o que se faz sobre a “banca”: um cavalete de madeira no qual é fixada uma

tábua inclinada em ângulo de cerca de 30 graus.

Além da banca, na modelagem artesanal da telha canal, dois instrumentos são da

maior importância: o “quadro” e o “garlapi”.

O quadro, um retângulo de ripa, é utilizado

sobre a banca. Em seu interior é aberta a bola de

barro. Ao mesmo tempo que serve para definir o

tamanho da telha, é também o quadro que define

sua espessura.

O garlapi, armação de madeira em formato trapezoidal, é a peça responsável pelo

formato da telha canal, uma espécie de molde. Na Olaria ela é de tamanho pequeno,

moldando telhas que têm cerca de 37cm de comprimento, 17cm de largura na extremidade

maior e 6cm de altura.

No início da modelagem de cada telha, para que o barro não grude na banca, esta é

coberta com cinza retirada dos fornos e dos fogões a lenha. A seguir, sobre ela é colocado

o quadro e espalhado o barro em seu interior. Aproximando o garlapi, o quadro é “puxado”

da banca, e o barro é transferido para o garlapi, que também está recoberto de cinza.

Assentado sobre o garlapi, o barro toma então seu formato, e a telha moldada é transferida

para o solo, onde secará ao sol. Uma vez secas, as telhas são armazenadas à espera do dia

de cozimento em forno a lenha.

72

Foto: Ana Alaide Foto: Ana Alaide

O fazer artesanal é responsável pela irregularidade que as telhas apresentam após

cozidas. E a condição que as torna especiais,31 o fato de serem artesanais, peças únicas,

modeladas uma a uma, é, também, o fator de sua desqualificação, o que se reflete no baixo

valor de mercado quando comparado ao preço do similar industrializado, feito numa

indústria cerâmica de Januária.32

Assim como no caso do tijolo maciço, após pagar a renda, se for o caso, o lucro

obtido com a venda das telhas é dividido entre os oleiros que se associaram para produzi-

las. 31 Refiro-me à preferência que alguns arquitetos e decoradores, como Janete Costa, dão ao produto artesanal. Para esses profissionais da construção civil, o artesanal é exemplo de técnica de construção espontânea, possibilidade de resistência à arquitetura hegemônica que, empregando apenas produtos industrializados, homogêneos, estaria distanciada da realidade de grande parcela do povo brasileiro e da riqueza que a variação da forma oferece. Essa seria condição do artesanato, em que o irregular e a beleza se equivaleriam (Costa, 2002). 32 Em 2002, o milheiro da telha artesanal era vendido a R$ 80,00. Já o da telha industrializada custava R$ 150,00.

73

Hoje, o volume de produção é reduzido devido principalmente a dois fatores. De

um lado, observa-se o esgotamento dos depósitos naturais de argila, em especial nos

terrenos possuídos pelos habitantes da Olaria, onde o barro próprio para fazer tijolo maciço

e telha praticamente desapareceu ou se encontra em grande profundidade, o que dificulta

ou até mesmo inviabiliza sua exploração. Nos últimos anos, o único barreiro na Olaria está

em terreno pertencente a Januário (D25), que não mais o explora. Fala-se que no terreno de

Arlinda (D12), casada com Augusto (D11), que faleceu em 2003, também existe “barro

bom” para feitura de telha e tijolo. A categoria “barro bom” decorre do conhecimento acerca das propriedades dos

diversos tipos de barro existentes no local e que são destinados a diferentes usos. Observei

que tanto os homens quanto as mulheres utilizam a mesma técnica para determinar se um

barro é bom ou não, isto é, se é ou não apropriado à modelagem: comprimem o barro entre

os dedos, esfarelando-o para sentir a textura (a “liga”) e constatar ou não a presença de

areia, considerada impureza que pode fazer a peça rachar no momento da queima.

O segundo fator que vem contribuindo para o decréscimo da produção local de

telhas e tijolos se refere à implantação pelo governo federal de uma política de assistência

às populações de baixa renda, voltada em especial para famílias de zonas rurais e que estão

sujeitas aos efeitos da seca. Desde a década de 1960, com a criação da Sudene,33 a região

do norte de Minas Gerais foi incluída como área a ser beneficiada pelo órgão. A cada

período continuado de seca, medidas são adotadas no intuito de assistir as populações

sujeitas ao flagelo. Às ações, sobremaneira assistencialistas, como a doação de gêneros

alimentícios, com o tempo foram sendo acrescidas de outras tentativas de solução que se

pretendem mais duradouras, tais como a construção de cisternas, o incentivo à criação de

caprinos e muitos outros mecanismos que têm sido experimentados como forma de fazer

frente aos males causados pela seca. Nos últimos tempos, o governo federal instituiu as

frentes de trabalho, pelas quais homens adultos são contratados por período temporário,

isto é, para executar trabalhos coletivos que duram o tempo da seca, como abertura e

conserto de estradas, construção de pontes, drenagem e ampliação de açudes, enfim, obras

que trazem benefício à coletividade.

33 A Sudene foi criada pela Lei 3.692 em 1959 e regulamentada pelo Decreto 47.890, no ano seguinte. Embora localizado no Sudeste do país, o norte de Minas Gerais passou a integrar a área de atuação do órgão em 1963, pela Lei 4.239, portanto, oficialmente. No entanto, por estar compreendida na região definida como polígono da seca, desde a criação do órgão federal a área já vinha sendo beneficiada, com recursos e providências de melhoria de infra-estrutura previstos no Plano Diretor 1960-1962.

74

Para a população de baixa renda do norte de Minas, e acredito que em outras áreas

isto possa também acontecer, integrar uma frente de trabalho passou a constituir valor,

gerando grande expectativa junto ao contingente masculino da população, formado por

jovens e adultos, solteiros e casados. “Ser da frente” significa a certeza do trabalho e do

ganho financeiro durante os meses em que dura o flagelo. Significa também o

reconhecimento público da condição de homem capaz, potente, apto ao trabalho, pois para

as frentes são considerados incapazes crianças, velhos e doentes. “Ser da frente” é também

percebido positivamente porque existe a expectativa de o trabalhador vir a tornar-se um

servidor público do governo federal ou, no mínimo, da prefeitura municipal, instância

administrativa que viabiliza a contratação e por intermédio da qual a frente se instala, a

partir de convênio assinado entre os poderes federal e municipal. Não saberia dizer até que

ponto esta última possibilidade é real ou, em outras palavras, se existem trabalhadores que

tenham, a partir da inserção numa frente de trabalho, galgado a condição de servidor

público. Fato é que a expectativa existe, e o argumento é invocado por parte dos

administradores das obras, que assim instigam os trabalhadores a dar o máximo de si

durante a execução das tarefas para as quais foram contratados.

Todo esse universo que se abre ao habitante da Olaria quando se pensa a seca como

flagelo tem como conseqüência direta a possibilidade de abandono ou o decréscimo da

atividade do antigo ofício de oleiro. Tradicionalmente quanto maior era o período de seca

na região maior era a produção de telhas e tijolos, que só cessava quando chegava a

estação das chuvas, e o oleiro, dublê de agricultor, retornava ao plantio das roças. Hoje, a

expectativa gira em torno da data em que o governo irá decretar o novo período de

estiagem, pois a partir dela instaura-se o tempo de abundância de oferta de emprego e de

dinheiro. Portanto, diante dessa “nova leitura” da seca que é vista como um flagelo e, ao

mesmo tempo, como possibilidade de ganho, e não mais como a estação de ausência de

chuvas, observa-se uma tendência a que se desarticulem os modos tradicionais de lidar

com barro na feitura dos objetos artesanais como telhas e tijolos.

A louça de barro: o domínio da produção

Produtores de tijolos e telhas, é, no entanto, na produção de louça utilitária que

os moradores da Olaria mais se singularizam, tanto pelo volume do que produzem quanto

pelas particularidades dos objetos produzidos.

75

Quem chega à localidade, tem a atenção voltada para a profusão de objetos de

cerâmica que, dispersos pelos quintais das casas, atestam sua importância no cotidiano das

famílias que ali residem. São travessas, pratos, pequenas tigelas e principalmente potes.

Despojados e simples, esses objetos são um fio condutor. Revelam um processo cultural

cuja natureza e significado busquei investigar.

Vistas na espacialidade dos terrenos em que se encontram – espalhadas pelo chão

ou sobre bancadas de madeira; sob árvores ou a céu aberto; inteiras ou quebradas; vazias,

contendo água ou barro de modelagem; encostadas a cercas e paredes das casas ou largadas

nos terreiros limpos; isoladas ou agrupadas em conjuntos de dois, três, cinco ou mais

unidades – essas vasilhas oferecem uma pista para o entendimento dos modos de viver de

seus produtores e usuários locais. Por meio delas pode-se apreender um pouco da história

daquelas pessoas e as relações que mantêm entre si e com a terra na qual se assentam e da

qual extraem sua sobrevivência, bem como sua visão e compreensão do próprio processo

de produção cultural.

Ao contrário de telhas e tijolos, esses objetos são o resultado da ação da mulher, e

as artesãs orientam a atividade da modelagem de louça tendo como pressuposto a divisão

do trabalho por gênero. O destino e o uso tradicionalmente domésticos desses objetos, na

visão dessas mulheres, é um atributo da produção feminina. Ao sexo masculino, como

76

regra geral, fica reservada a modelagem das telhas e dos tijolos, e, excetuando os

“dinossauros” modelados por José Leonardo (F2) e os escudos de times de futebol feitos

por Leonardo (F13), no início do Paca, em toda a comunidade, apenas um homem, Zé Pó

(E23), de 32 anos, filho da ceramista Idalina e casado com Aparecida, eventualmente se

dedica à modelagem de potes e moringas.

A participação do homem no processo de modelagem de louça de barro tem sido

registrada por outros pesquisadores que se dedicaram à análise do assunto em áreas

distintas do país, como Lélia Soares (1984), que a observou entre as ceramistas do Vale do

Jequitinhonha, no decorrer dos anos 70, e a atribui às mudanças ocorridas na região após a

atuação de um programa de desenvolvimento local promovido por agências

governamentais. Carla Dias, ao analisar a produção de panelas de barro em Goiabeiras,

localidade de Vitória, no Espírito Santo, também registra a presença de homens que

trabalham no galpão comunitário e, a esse respeito observa que

A presença de homens neste ambiente “tradicionalmente” feminino expressa um dos aspectos do processo de mudança vivido pelo grupo. São alguns os fatores que levam os homens a ingressarem neste fazer, de forma profissional, com dedicação exclusiva e não somente como um trabalho extra praticado nas horas vagas: o desemprego e a possibilidade de com as panelas, ter um ganho “regular”; a autonomia no trabalho, sem ter que obedecer a horários e chefes e, também ... pertencer a uma família de paneleiras (Dias, 1999: 105).

Ambas as pesquisadoras relacionam a presença do homem na modelagem ao

processo de mudança introduzido por elementos estranhos ao grupo, o que até certo ponto

se verificou também no Candeal, com a participação de José Leonardo e de Leonardo no

processo de produção. Por outro lado, a presença continuada, ainda que esporádica, tem

sido de Zé Pó que já atuava na localidade anteriormente à instalação do Paca.

A despeito dessa ocorrência, pode-se afirmar que a participação dos homens na

produção da louça da Olaria se restringe ao auxílio dado às mulheres nas tarefas

classificadas como árduas, como a coleta e o transporte de barro e lenha para a queima, e o

controle do forno no momento mais intenso da queima, muito embora seja comum que as

mulheres se incumbam sozinhas também dessas tarefas, além do desempenho das demais

etapas do processo.

Estudar a produção de objetos artesanais cuja origem está nos extratos populares da

sociedade, em especial a modelagem de louça de barro, é fazer o reconhecimento da

participação da mulher nessa produção. Eli Bartra assim justifica a importância desses

trabalhos:

77

Estudiar el arte popular desde el punto de vista de la división genérica – que permite ver a las mujeres – sigue siendo, pues, un verdadero reto en el mundo y en particular en América Latina. Es una cuestión absolutamente fundamental tomarla en consideración por dos razones ... Por un lado, estudiar lo que han creado y crean las mujeres ayuda a conocer sustancialmente mejor a este grupo social ... lo cual puede contribuir en la elaboración de una identidad femenina más íntegra y ayuda a cambiar la existencia, en la medida en que reconocer el trabajo creativo femenino significa tanto la recuperación de una historia ignorada como el reconocimiento de que una parte de la cultura es propia. Por otro lado ... sirve para entender más a fondo todo lo referente a la creación, la distribución, el consumo y la iconografía de este arte ... No es posible ya seguir entendiendo que el arte popular es un producto artístico del pueblo en geral, en abstracto y pretendidamente neutro (Bartra, 2004).

É também Bartra quem afirma haver, no contexto da arte, uma clara marginalização

intelectual da produção de cunho popular, situação que se agrava quando os produtores são

mulheres. Nesse contexto, a importância da produção feminina torna-se, como o trabalho

doméstico, invisível, o que coloca a mulher na dupla condição de marginalização

intelectual. Esse quadro, descrita pela autora para a realidade das mulheres na América

Latina, certamente pode ser referido também às mulheres da Olaria, que dividem seu

tempo diário entre os diferentes misteres que são atribuídos à condição feminina, entre o

“serviço” da casa e o “mexer com barro”, cujo processo longo, cansativo, exige da mulher

preparo e dedicação, tal como narra Teresa (E4), 51 anos:

Depois de quebrar [socar] o barro bem quebrado no couro do boi, com a mão de pilão, você sessa ele numa peneira. Depois de sessado, pega aquelas canjicas [o que não passou através da peneira] e coloca dentro de uma vasilha grande e depois coloca água e deixa amolecer. Depois que ele tiver mole, a gente pega ele, mistura naquele pó [peneirado] e amassa até ficar durinho no ponto de fazer, no ponto de levantar o bojo. Aí faz aquele bojo e deixa endurecer mais um pouco. Quando tiver durinho, a gente vai com aquela arrudilha [rodilha], põe assim no bojo e aí a gente pega e vai puxando, primeiro assim com a mão, aí depois que tiver armado como se tivesse uma fôrma, a gente pega e vai passando a cuiteba, até levantar o pescoço. Aí a gente vai com uma tarinha [tala pequena] de casca de cana, vai acerta aquela boca dele tudinho certinho. E depois que acertar ali, a gente vai com um paninho e ao redor alisa tudinho para dobrar o beicinho dele um pouco, para ficar do tipo de uma jarra. Depois a gente vai ter de pegar uma faca e raspar tudinho. Depois pega aquela outra faquinha mais lisa, vai ter que lisar assim tudinho. A gente aqui tem um lisadorzinho, é uma bolotinha que o povo chama de lisador, mucunã,34 a gente pega pra alisar tudinho. Depois a gente bota ele de boca pra baixo e deixa lá secando. Quando tá bem seco, a gente vira ele de boca pra riba e deixa lá pra assar. Aí vai juntando e quando tem uma porção assim que dá um forno, eu coloco no fogo. No dia de assar eu boto os potes no sol pra ficar bem sequinho. Aí, quando tá bem seco eu vou pintar ele, com toá. Aí deixo ele pintadinho e deixo secar. Depois que tá seco eu boto pra assar.

34 Trata-se da semente da Dioclea malacocarpa, Duck., da família das leguminosas-papilionáceas.

78

Esse relato apresenta a

compreensão nativa do longo

processo que envolve a modelagem

da louça na Olaria. O mérito da

síntese, pela qual a artesã foi capaz

de descrever as principais etapas, a

tecnologia e os poucos

instrumentos utilizados na produção

dos objetos, incorre no risco,no entanto, de minimizar a complexidade de todo o processo.

O lidar diário com o barro, o conhecimento prático/teórico associado a um processo de

aprendizado também prático/teórico, conjugam-se de modo que o fazer artesanal seja

representado pelas artesãs de forma "naturalizada", isto é, segundo elas, a modelagem de

uma peça é algo simples, “natural”, que pode ser praticada por qualquer mulher, bastando

para isso que se disponha a fazê-lo.

Embora expliquem a divisão do trabalho por gênero como fundada na natureza

pesada de algumas etapas de lidar com o barro, justificando assim sua associação aos

homens, de maneira geral todo o processo é tido como cansativo, estando as pessoas mais

fracas ou doentes incapacitadas de executá-lo na totalidade. Assim prossegue Teresa

explicando o processo da queima das peças em que a participação do marido se faz

fundamental:

Eu faço todo dia mas é assim: até meio-dia eu arrumo a casa, que eu tô sozinha em casa. Os meninos vão todos pra escola. Do meio-dia pra tarde é que eu faço. Cada dia eu faço um pouquinho. Faço dois, faço três potes por dia. Cada dia eu vou juntando naquele quartinho ali. Aí, quando tem uma porção assim, que dá um forno, eu coloco no fogo. Aí queima a fornada. Asso. Agora mesmo já tem uma fornada lá. Eu tou precisando de assar, só que o homem tá ocupado, trabalhando. Eu tenho que tirar um dia pra arrumar a louça no forno. A gente põe o forno pra esquentar um pouco. Aí quando é meio-dia, a gente arruma e começa a alentar o fogo. Aí vou alentando o fogo até umas quatro horas da tarde que é pra ele [o marido] chegar e acabar de encher que eu não posso pegar muita quentura assim por causa que eu sinto a pressão alta. Eu começo, eu vou alentando assim com uma lenhazinha fraca. Aí, já pelas quatro horas, a gente já começa a botar mais embocadura pra queimar. Ele chega e vai acabar de queimar. Quando dá a posição de a embocadura grande [cobrir completamente a boca do forno com lenha] ele vai queimar porque eu não agüento pegar aqueles pesos, aqueles paus pesados, grosso, pra pôr no forno. Aí ele pega aquelas embocaduras, enche o forno até no ponto. Aí ele vai e termina de queimar. Aí, quando é assim à base de umas sete horas da noite, tá queimando já, aí não precisa mais botar lenha não. Pode deixar que quando é no dia seguinte, cedo, assim às sete horas da manhã, já pode desencacar [tirar os cacos de cerâmica com que recobrem a louça no processo de queima] ele todo. Aí já pode tirar a louça pra fora.

79

Na produção da louça, há uma série

de saberes que são apreendidos das

gerações mais velhas pelas mais novas,

passados entre as mulheres pelo

ensinamento, pela observação e pelo

aprendizado prático, iniciados em sua

maioria na infância e adolescência.

A mãe ensina às filhas, a avó às netas, a mulher mais velha às mais novas como

fazer um pratinho e um potinho. Logo elas estarão modelando pratos, potes, panelas e toda

espécie de objeto do repertório local ou criando novos tipos de objetos.

Emília (D26), 65 anos, órfã quando ainda pequena, refere-se à mãe e à avó como

aquelas que a ensinaram a modelar as primeiras peças:

Eu aprendi a fazer a louça, minha mãe massava o barro e colocava pra mode eu formar. Eu formando e ela fazendo, consertando. A minha mãe morreu, eu podia ter uns 10 anos, eu fiquei sozinha mais a minha vó. Aprendendo com minha vó. De novo. Aí minha vó, o que ela podia me ensinar ela me ensinava. Aí não precisou mais ela me ensinar e eu mesmo fazia pelas minhas mãos. E fui crescendo, fazendo, fazendo e trabalhando e... daí pra cá, eu sozinha faço.

Foto: Marina Mello e Souza

Assim como Emília, outras mulheres registram em suas histórias de vida, o papel

desempenhado pela geração mais velha na transmissão do saber relativo à atividade de

fazer louça de barro. Uma delas é dona Odília que, ao ser entrevistada em 2000, tinha 68

anos de idade. Embora não resida na Olaria – é moradora de Bandeiras –, está diariamente

na localidade desde que passou a modelar suas peças no galpão. É dela o relato seguinte,

em que registra a importância do trabalho dos mais velhos para o processo de

aprendizagem, mesmo que aconteça de modo espontâneo e tendo como base apenas a

observação:

Eu tava com idade de 12 anos quando fiz a loucinha. Ninguém me ensinou. Eu chegava aqui, via fazendo, ia experimentar. Morava junto do meu avô lá no Candeal, pro lado do Bidia. Via a comadre Emídia fazendo.

80

do Bidia. Via a comadre Emídia fazendo. Ela era casada com Teotônio. Ela já tava bem velha, tinha cabelo branco, andava cumbucadinha. Nós sempre gostava de andar por aqui e via ela fazendo. Aí me dava aquela [in] fluência. Eu logo disse pro meu pai que tava com vontade de aprender. Ele disse: Oh! minha filha, você é curiosa, tá com vontade de aprender, então aprende. Aí fui pelejando. Fazia uns potinhos tudo alejado. Depois fui aprendendo. Eu vinha aqui, via quem fazia aqui, o armamento dele. Graças a Deus fui olhando e aprendendo. Com comadre Emídia. Ela fazia pote quando ela morreu. Fazia pote, prato, quartinha. Tudo ela fazia. Ela, comadre Virgínia, que é a mãe de comadre Mila [Emília], comadre Liô, comadre Leandra, tudo sabia fazer e morava aqui na Olaria.

Nilda (F43), com 25 anos em 2003, quando foi gravado o depoimento, é outra

artesã que se tornou órfã na infância. Seu relato prossegue no mesmo tom, a despeito da

passagem de tempo e do fato de ser bem mais jovem do que as artesãs cujas falas foram

aqui reproduzidas:

Quando eu comecei fazer eu tava com 12 anos no máximo. Minha vó era artesã antiga. Quando ela fazia, eu também fazia. Só que eu não sabia consertar. Aí ela arrumava porque todo mundo faz, mas não é todo mundo que tem habilidade pra fazer acabamento final. Aí ela arrumava e eu vendia. Aí eu parei um tempo. Fui com 17 anos pra São Paulo. Fiquei lá quatro anos. Quando eu voltei pra cá, fui cuidar da casa e estudar. Não fiz mais. Minha vó também não fazia. Tava muito velha. Aí começou o projeto, eu animei. Tava já com 23 anos, aí comecei a fazer. Aí eu fiz lá em casa, sem ninguém me ensinar, sem minha vó pegar nem nada.

Em algumas artesãs destacam-se a experiência, a destreza e o trabalho constante,

fatores que se refletem em peças mais bem acabadas, motivo pelo qual recebem mais

elogios e encomendas, realizam maiores vendas e conseqüentemente desfrutam de maior

prestígio. Assim acontece com Emília (D26) e Arlinda (D12), tidas como louceiras muito

experientes, com Benita (D30) e Teresa (E4), que têm ritmo de produção constante e

regular, com Lora (D24) e Chitinha (E37), admiradas pela delicadeza das peças e pelas

novidades que criam, a despeito do ritmo irregular de produção, constantemente

interrompido pelas fases de alcoolismo.

81

Acesso à matéria-prima e modelagem

Todo o processo de modelagem da louça de barro tem início na coleta de matéria-

prima feita nos barreiros das fazendas próximas. Até alguns anos passados era possível

extrair argila nos terrenos da própria localidade de Olaria. No entanto, a cada dia, essa

tarefa se torna mais difícil pelo esgotamento dos depósitos. A última extração realizada

necessitou do auxílio da prefeitura municipal que forneceu uma máquina para escavar o

terreno. O barro apropriado à modelagem foi encontrado em área muito próxima ao riacho

Mané Véio, a cerca de cinco metros de profundidade, o que tornava perigosa sua extração,

havendo risco de desmoronamento dos barrancos.

Assim, nos tempos atuais, praticamente toda a argila utilizada na produção advém

dos terrenos que circundam a localidade e o acesso a ela se faz por meio de três

mecanismos principais: a doação, “o pagamento da renda” e a sonegação ou o furto.

O primeiro deles, a doação, acontece quando aquele que detém a propriedade do

terreno em que se localiza o barreiro libera sua exploração para que a artesã extraia a argila

de que precisa para modelar a louça, não exigindo pagamento por ela. Há fazendeiros que

não se importam com a retirada de argila e apenas solicitam às artesãs que não deixem

Lora na porta da casa

82

buracos no terreno. Toda escavação feita deve ser coberta, de modo a evitar acidentes com

o gado. Assim, a artesã tem autorização do proprietário do terreno para extrair a argila sem

a obrigatoriedade do pagamento.

Tamanha “generosidade” não significa, no entanto, que não haja uma expectativa

de retribuição pela doação feita, o que pode acontecer não de imediato, a curto prazo, mas

vir a tornar-se público apenas a médio ou mesmo a longo prazo. O sistema de

reciprocidade generalizada (Sahlins, op. cit.) poderá ser reclamado, por exemplo, no

momento em que o fazendeiro solicitar o trabalho do marido da artesã para atividades

como a construção de uma cerca, a derrubada de uma mata, o preparo de uma “manga”.

Não dispor de quem roce um pasto numa determinada estação do ano pode implicar

prejuízo no decorrer do ano todo. Na perspectiva do proprietário de terras, um dos

significados de ceder o barro, hoje, é a garantia futura de mão-de-obra para as atividades

que a fazenda requer em momentos precisos e inadiáveis.

A doação constitui-se em mecanismo de estruturação das relações sociais que

Marshall Sahlins denominou “reciprocidade generalizada”. Integra um conjunto de ações

“supostamente altruístas, baseadas em linhas de assistência gratuita e, se possível e

necessário, assistência retribuída” (Sahlins, op. cit.:129). Na Olaria, a expressão tem seu

significado atualizado em anos de campanha eleitoral, quando os fazendeiros percorrem as

casas, indiretamente aludindo ao barro cedido e indicando diretamente candidatos a cargos

políticos em quem as artesãs e suas famílias deverão votar. É comum, nessas ocasiões, que

se fixem “santinhos” e cartazes de candidatos nas paredes das salas ou na porta de frente

das casas. Assim, os partidos têm a área mapeada numa espécie de prévia eleitoral. Casa a

casa, pode se prever quantos votos cada uma irá render. Candidato eleito, a foto pode

permanecer anos em exposição junto a imagens de santos do catolicismo e a fotografias da

família. Transformada em espaço simbólico, a parede expressa, num só plano, as

dimensões política, familiar e

religiosa da vida social, unindo a

família sob o olhar “protetor” dos

parentes, dos políticos e dos santos.

Por vezes, cumprindo a mesma

função de delimitar território

eleitoral, o nome do candidato a

cargo político e a sigla do partido

83

são escritos na parede externa da casa, transformada em outdoor.

Tendo por justificativa dificuldades de acesso ao barro, as artesãs, nos últimos anos,

por duas ocasiões, receberam da prefeitura municipal a doação de argila proveniente de

uma olaria de Januária. O transporte, feito em caminhão, foi assumido pelo prefeito. Essa

doação supriu as necessidades do grupo por um período, garantindo a matéria-prima para a

feitura dos objetos. O barro, que era de natureza diversa daquela com que o grupo estava

familiarizado, tratando-se de uma pasta já preparada para modelagem, mais homogênea e

de coloração bem avermelhada, não apresentou dificuldades para a mulheres. Em suas

palavras, tratava-se de “barro bom”.

A segunda maneira de apropriação de barro percebida em campo toma a forma da

compra, que, na Olaria se realiza pelo pagamento em produtos, denominado “pagamento

da renda”. Assim como o produtor de telhas e tijolos maciços, também a mulher louceira

pode estar sujeita a entregar ao proprietário da terra parte de sua produção como forma de

pagamento pela matéria-prima utilizada,35 como testemunha Teresa:

O Benedito cobrava a renda. Tinha que pagar. O tanto de louça que fizesse, um quarto era dele. Se a gente fizesse mais ou menos 15 potes, ele tinha cinco. É assim a renda. De tudo que fazia. Aí ele recebe a renda, leva pra Januária e vende. Diz que é a renda que ele tem. Ele sabia quanto ele tinha pelo tanto de barro que tirava. Ele avaliava o buraco, que era grande, nas terras dele lá, que ele sempre vai lá.

Em 1998, na verdade, algumas mulheres destinavam ao proprietário do barro que

utilizavam cerca de 30% da louça que produziam. De cada 100 potes modelados, 30

ficavam com os fazendeiros, como forma de pagar a renda. Aliado às dificuldades de

comercialização e ao baixo valor recebido pelos objetos, o fato era percebido pela artesã

como uma forma de exploração e apontado pelo grupo como a causa principal do

desinteresse das mulheres em manter o antigo ofício. Libertar-se de imediato desse

sistema, no entanto, em alguns casos tornava-se impraticável ou, pelo menos, muito

improvável de acontecer, dados a subordinação a que estava sujeita a artesã, os

compromissos que havia assumido e para cuja quitação dependia da produção e

conseqüente venda dos produtos e o receio de represálias por parte do dono do barro que,

ao lhe recusar o acesso à matéria-prima, poderia impedir o exercício do ofício.

As mulheres, no entanto, buscavam desenvolver algumas estratégias que lhes

assegurassem o barro necessário ao desempenho da atividade sem sujeição tão completa ao

proprietário dos terrenos dos quais o extraíam. Essas estratégias implicavam lograr o 35 No Capítulo 4 há o relato de um caso presenciado, e vivido, por mim que traduz bem a tensão decorrente dessa forma de pagamento pelo barro que as artesãs consomem.

84

fazendeiro, total ou em parte, reduzindo, assim, a exploração a que estavam sujeitas. O

mecanismo acionado tomava duas formas: na primeira, a sonegação, a artesã escondia

parte da produção, vendendo-a sem conhecimento do fazendeiro, a quem declarava

quantidade inferior de produtos modelados, e, consequentemente, pagando renda menor

sobre a produção efetivamente alcançada. A outra modalidade praticada era o furto e, para

realizá-lo, a artesã ia escondida aos barreiros e de lá retirava o barro de que necessitava.

Em ambos os casos havia o risco de ser descoberta, o que redundaria na explicitação da

situação de tensão e conflito que permeava as relações entre grande parcela de artesãs e

fazendeiros da região. Descoberto o furto da argila nos barreiros, alguns fazendeiros

reagiam espalhando sal nos terrenos, o que torna imprestável a argila para modelagem e

inutiliza o barreiro.

Lévi-Strauss (1976) apontou o fato de que da natureza os homens extraem recursos

que utilizam para finalidades práticas – recursos materiais são bons para usar – e, também,

como esses mesmos recursos são bons para pensar, isto é, convertem-se em categorias do

pensamento pelas quais grupos humanos classificam a natureza, a sociedade e a si mesmos.

Deve-se ao antropólogo a percepção de que o ato de classificar resulta de necessidade que

transcende a mera razão prática e é parte da “natureza” humana. Os homens necessitam

primeiro conhecer para depois ordenar, classificar. As coisas são classificadas úteis porque

são primeiro conhecidas. São objetos do pensamento.

Na Olaria, o conhecimento acerca de que espécie de barro é apropriada para a

modelagem de que tipo de objeto é parte do processo de formação de toda artesã. Qualquer

uma delas é capaz de identificar o “barro bom”, a boa matéria com que lida, e conhece suas

especificidades. Assim, há barro apropriado para o tijolo de adobe, diferente daquele

empregado para a modelagem das telhas e dos tijolos maciços. Este é semelhante ao barro

utilizado para fazer os objetos que vão diretamente ao fogo, como panelas e torradores,

cuja composição química é seguramente diferente do barro próprio à modelagem dos

demais objetos de uso doméstico feitos na Olaria. Tudo isso a artesã é capaz de perceber

pela análise visual do barreiro, pela observação de como se dá a superposição de camadas

do terreno em que se encontra a argila. Essa observação in loco é complementada pelo tato:

a artesã retira pequenas porções do solo, esfarela-as na mão e assim testa sua qualidade e

sua propriedade ou não para a modelagem de objetos.

85

Ao descrever o processo de confecção empregado pelas mulheres do Candeal, local

que, segundo Saul Martins, “possui grandes reservas de excelente barro, e as mais famosas

paneleiras”, afirma o pesquisador:

Antes de levantarem uma vasilha experimentam a liga do barro, se não o conhecem. Neste particular adotam vários meios, como apertar entre os dedos certa porção daquele a ver se moldam as impressões da mão, ou dele fazem biscoitinhos, a ver se estes não se fendem na operação, que são circunstâncias favoráveis. Quando o barro é muito forte, ou muito fraco, recusam-no. Ou, se não houver outro, abrandam-no com areia, na primeira circunstância, e robustecem-no com esterco de curral, ou pó de cacos de telha ou de quaisquer outros objetos de barro cozido, no segundo caso (Martins, 1959: 156-157).

Exceto o fato de que as mulheres enrolam o barro entre os dedos, como se fazendo

“biscoitinho”, nada observei em campo que permita assegurar a continuidade das

observações que Saul Martins registrou na década de 1950. Os dados por mim coletados

apenas apontam o fato de que, nos tempos atuais, o barro é empregado como encontrado na

natureza, sem misturas. É possível que, com o decorrer do tempo e a desmobilização das

mulheres para a produção, conforme pude verificar na década de 1990, grande parte do

conhecimento acerca da qualidade do barro venha se perdendo, não havendo repasse de

informação de uma para outra geração.

Comparando a produção atual a objetos do passado, não se pode afirmar ter havido

queda da qualidade dos objetos no que concerne à resistência. Como exemplares do

passado, refiro-me a um pote que coletei em campo, foto abaixo, modelado há cerca de 50

anos, a outro da mesma época, de propriedade do Professor Saul Martins, e aos exemplares

do acervo do Museu Nacional/UFRJ, coletados por Hermann Kruse, em 1940, comentados

adiante. Há que registrar, no entanto, problemas na pintura decorativa atual, que se

desprende com certa facilidade. Inquiridas a esse respeito, as artesãs dizem não saber o que

acontece, a não ser que o tauá, pigmento empregado, “está fraco”, não se encontrando mais

aquele de boa qualidade, que havia antigamente.

Extraído do barreiro, o barro é transportado para o espaço

de produção de peças, onde é armazenado – no passado a casa da

artesã e, desde 1999, também o Galpão da Associação dos

Oleiros do Candeal.36

Vai distante no tempo o momento em que, na Olaria, pela

primeira vez, o barro foi utilizado para a feitura de objetos de

cerâmica. Na memória dos habitantes perduram vagas referências

36 Sobre o galpão e a associação dos oleiros, falarei mais adiante, ainda neste capítulo.

86

àqueles que foram os iniciadores do ofício: “os antigos”, como falam. Segundo os mais

idosos, desde o “tempo dos antigos” já existiam as olarias para produção de telhas e tijolos.

Considerando “tempo dos antigos” categoria que expressa um período elástico, sinônimo

de tempo pretérito, de antigüidade,37 e em função das considerações acima acerca da

memória genealógica do grupo, pode-se datar em mais de um século os primórdios da

produção no local, embora seja possível que investigação mais detalhada faça recuar ainda

mais esse limite no tempo.

Pesquisa que realizei anteriormente (Lima, 1996), na localidade de Caatinguinha,

tradicional pólo produtor de louça de barro do município baiano de Barra, no baixo-médio

São Francisco, área geocultural relativamente próxima ao Candeal, aponta para grandes

semelhanças entre aquela produção e a cerâmica objeto do presente estudo. Em Barra, as

artesãs, pois também lá a produção é feita basicamente pelas mulheres, fazem referência às

gerações ascendentes que produziam a louça. Um dos pontos a destacar é que pela

memória oral da população da Caatinguinha, a produção de cerâmica no local teve origem

nos “tempos antigos” e é herança que receberam dos avós de seus avós. O cálculo de

tempo, possível de ser feito a partir do depoimento dos moradores mais idosos, na faixa de

70 anos de idade, indica a feitura de cerâmica no local há quatro gerações ascendentes. A

esse respeito escreveram autores como Carlos da Costa Pereira (Pereira, 1957) e Carlos

Etchevarne (Bahia, 1994), que consideram ser Barra um dos mais antigos pólos de

produção de louça na Bahia.

A antigüidade do ofício na Olaria é

também atestada pelo aspecto dos barreiros.

Um deles, situado logo após o riacho Mané

Véio, em direção ao Trigue (ver mapa no

primeiro capítulo), de exploração mais

recente e que em termos temporais sucedeu

os anteriores, segundo depoimento dos

moradores, tem cerca de 30 anos.À extensão desses buracos, que evidencia anos e anos de

retirada de barro, alia-se, nas áreas desativadas, uma cobertura vegetal formada por

espécies rasteiras, gramíneas e arbustos de pequeno e médio portes, vegetação típica dessa

área de transição entre o cerrado e a caatinga, em pleno processo de recuperação

37 Voltarei à questão da temporalidade no capítulo quatro.

87

espontânea do meio ambiente, fatores que contribuem para corroborar a antigüidade da

ocupação daqueles terrenos.

Quanto a fontes escritas, poucas são as referências bibliográficas relativas à

produção de cerâmica no Candeal. Uma das mais antigas encontrada, resulta da ação da

então Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro – CDFB, atual Centro Nacional de

Folclore e Cultura Popular/Iphan.

A CDFB foi criada em 22 de agosto de 1958, em decorrência da intensa

mobilização de intelectuais espalhados por todo o país, vindo a configurar ampla rede

nacional que se tornou conhecida como Movimento Folclórico Brasileiro. A ação movida

por esses intelectuais resultou da criação da Comissão Nacional do Folclore, em 1947, no

Instituto Brasileiro de Educação Ciência e Cultura – Ibec, organismo nacional filiado à

Unesco, com ramificações que se estenderam a quase todos os estados e a diversos

municípios brasileiros (Cavalcanti e outros, 1992; Vilhena, 1997).

Dotada de estrutura maleável, visando a atrair simpatizantes e a participação

voluntária e gratuita de colaboradores, a Comissão Nacional do Folclore deflagrou um dos

mais bem sucedidos movimentos intelectuais do país. Num curto espaço de tempo

construiu-se praticamente em todo o território nacional uma rede que foi responsável pela

realização de pesquisas, publicação de livros e artigos em revistas especializadas,

organização de cursos, seminários, semanas, congressos nacionais e um internacional, nos

quais participaram os folcloristas e muitos outros intelectuais. Muitos deles vieram a fazer

parte das ciências sociais que se estruturavam naquela época, tais como Luís da Câmara

Cascudo, Gilberto Freyre, Edison Carneiro, Artur Ramos, Manuel Diégues Júnior,

Florestan Fernandes e tantos outros.

Em 1959, portanto, um ano após ter sido criada, por sugestão de Clóvis Salgado,

então ministro da Educação e Cultura, a CDFB decidiu realizar sua primeira pesquisa de

campo. A escolha recaiu na região do médio São Francisco, mais especificamente em

Januária, município ao qual pertenciam o Candeal e a Olaria.

Sob coordenação de Joaquim Ribeiro, o levantamento foi realizado nos anos de

1959 e 1960, e seus resultados, publicados em Folclore de Januária (1970). Para o

pesquisador, o Candeal fez-se particular, exatamente porque seus moradores se distinguiam

em toda a região como exímios produtores de cerâmica.38 As diversas famílias ali

38 Conforme assinalei no primeiro capítulo, os objetos são conhecidos como “louça do Candeal” sempre que referidos fora do contexto local, pois neste a referência é a Olaria, local de moradia dos artesãos e de produção das peças.

88

residentes se haviam especializado no ofício e se constituído no que denominou “uma

verdadeira colônia de ceramistas”. A produção, cuja fatura considerou superior a de

localidades vizinhas, não nomeadas por ele, atendia à demanda de vasta região. À época,

em tropas de burro, essa “poterie típica e original” era transportada para o Mercado

Municipal de Januária, sendo a partir dali comercializada por toda a região.

Na obra publicada, o item intitulado A cerâmica é parte do capítulo que inventaria o

repertório da “vida material” dos habitantes da região, marcados pela pobreza extrema,

pelo analfabetismo, pelas doenças e pela fome. Embora sucinto ao descrever aspectos da

tecnologia de produção e a situação sociocultural dos produtores, o texto aponta questões

relevantes até mesmo para a análise da realidade de hoje, já que muitas delas permanecem

atuais.

Na obra, o autor faz referência à coleta de exemplares da cerâmica do Candeal.

Infelizmente, essas peças não constam do livro de tombo do acervo do Museu de Folclore

Edison Carneiro, em princípio seu provável depositário, já que o museu integra o CNFCP –

anteriormente CDFB, órgão realizador da pesquisa – embora só tenha sido criado em 1968,

e, assim, não foi possível precisar o destino da coleção. Além da publicação, a pesquisa

gerou documentação fílmica e fotografias que se encontram depositadas no Centro de

Documentação Sonoro e Visual da Biblioteca Amadeu Amaral do CNFCP.

Embora apresente poucas e curtas cenas filmadas no local, o documentário

constitui-se num precioso registro da produção da Olaria daquela época. Nele, aparecem

tijolos, telhas e, especialmente, objetos de barro feitos para uso doméstico. São potes,

moringas, quartinhas e bules para café, exibidos com orgulho, supostamente pelos

moradores da Olaria.39 O registro fílmico permite que se estabeleçam comparações com a

produção da louça contemporânea e auxilia a perceber como se mantêm a tipologia e os

padrões decorativos desses objetos, bem como o que se transformou no decorrer desses

anos.

O filme registra, por exemplo, que os potes eram peças bem maiores que os

exemplares modelados atualmente. Também aparece a botija, peça feita para transportar

39 Infelizmente o filme perdeu a fita áudio, restando penas as imagens. Em 2000, a cópia foi transcodificada para vídeo e exibida para os artesãos atuais numa sessão em que vivi um dos momentos de maior emoção em campo. Rever parentes há muito falecidos, interpretar suas expressões e gestos, com eles “dialogar” como se vivos estivessem, mostrá-los aos filhos e netos presentes – tudo isso em meio ao riso e ao choro, ao grito e ao embargo da voz – foram reações que presenciei e que com certeza não esquecerei jamais. Para mim é impossível transformar em texto aquele momento mágico, em que fui solicitado a exibir a fita vezes e vezes seguidas, testemunhando, a cada vez, a mesma explosão de sentimentos.

89

água do riacho para casa, assemelhada a um pote, porém menor e com o pescoço mais

estreito.

Hoje não é mais produzida, havendo caído em desuso pelo surgimento de vasilhas

de plástico, bem mais leves e práticas para o transporte d’água. Essas peças podem ser

vistas nas fotografias aqui reproduzidas, do acervo do CNFCP, em que são exibidas por

moradores da Olaria, feitas pela equipe de pesquisa de Joaquim Ribeiro.

Se, no passado, os objetos cerâmicos eram modelados pelas mulheres

individualmente, no espaço de suas moradias, atualmente – ou, melhor, desde a construção

do galpão para produção, armazenagem e comercialização da louça, inaugurado em 1999 –

a produção passou a ser realizada também em conjunto, nesse novo espaço. No Galpão dos

Oleiros do Candeal, a artesã tanto tem feito seus objetos sozinha quanto vem

experimentando novas formas de trabalho, como a associação, por exemplo, em que duas

ou mais artesãs se juntam para produzir um lote de peças que, uma vez concluído, é

vendido ou então dividido entre elas, cabendo a cada uma um número certo de objetos. No

caso de venda, o lucro é dividido entre as mulheres produtoras daqueles objetos.

Tanto em casa quanto no galpão, a artesã busca constituir um estoque de barro para

seu uso, conforme relatado páginas atrás, no depoimento de Teresa. O barro estocado em

potes velhos, latas e sacos plásticos é retirado em porções suficientes para que a quantidade

exata de peças planejada seja modelada. Esse barro é socado com mão de pilão sobre um

couro de boi e a seguir, peneirado. Os grãos que não sessam na peneira são colocados de

molho para, nos dias seguintes, amolecidos, ser acrescentados ao barro peneirado, dando

90

consistência e liga à pasta que será trabalhada. O preparo da pasta requer extremo cuidado,

pois impurezas como pedras e gravetos, uma vez não eliminados podem pôr a perder todo

o trabalho, fazendo com que as peças estourem no momento de queima.

Peças pequenas são modeladas de uma só vez, enquanto as maiores são feitas por

etapas, de modo que a parte modelada adquira consistência suficiente antes que o trabalho

prossiga e para que a peça não venha a desmoronar durante o processo de modelagem.

Assim, um pote é feito em duas ou três etapas: primeiro faz-se a base e ergue-se o bojo até

a metade, interrompendo-se aí o processo; a seguir, quando a parte modelada já está

suficientemente seca e resistente, o que não acontece em período menor do que um dia, a

depender do tamanho da peça e da umidade relativa do ar (daí a relação da produção com

as estações do ano), completa-se o bojo, faz-se o pescoço e, a seguir, a boca da peça. Todo

esse processo é feito basicamente com as mãos, sendo poucos os instrumentos que a artesã

utiliza. Resumem-se a pedaço de cabaça, sabugo de milho e um pequeno pano com que

alisa e dá forma à peça.

Concluída a modelagem, a peça é posta a “descansar”, permanecendo no mínimo

por mais um dia, até que a artesã retome o trabalho para cortar com uma faca os excessos

de barro, aperfeiçoar a forma e brunir a peça com lâmina de faca, semente de olho de boi

ou de mucunã. A partir daí, a peça aguarda a queima, que é determinada pela existência de

estoque que permita completar uma fornada. Esse dia geralmente também é determinado

pelas condições atmosféricas: não pode haver risco de chuva e deve haver sol, de modo

que as peças sejam aquecidas antes de ser colocadas no forno.

A pintura das peças: os padrões de decoração

91

Modelada à mão pelas mulheres da comunidade, a louça do Candeal tem como

principal característica a decoração feita com tauá, o pigmento mineral que é extraído do

solo, em pequenos torrões, e que a artesã conserva embrulhado em pano, papel ou plástico

ou guarda em latas ou pequenos potes de cerâmica. Seu uso implica ser socado, peneirado

e, a seguir, diluído em água, tornando-se espesso, de consistência semelhante à da tinta

guache.

Mais do que pela forma que adquirem ao ser modelados, os objetos do Candeal têm

pronto reconhecimento especialmente pelos desenhos em tauá com que são decorados. São

eles que lhes garantem e atestam a origem onde quer que estejam.

O tauá é aplicado sobre a superfície da peça poucas horas antes que ela seja levada

ao forno. Na manhã do dia definido para queima, uma das primeiras medidas que a artesã

adota é retirar para o terreiro toda a louça a ser queimada. Colocadas ao tempo, as peças ali

permanecem para que esquentem ao calor do sol. Junto com elas vai a pequena vasilha

contendo a tinta, que também deve ser aquecida. Segundo o conhecimento nativo, é

imprescindível o aquecimento natural, feito ao sol, para que se tenha uma boa decoração.

Levar o tauá ao fogo faria com que, ao serem queimadas as peças, o desenho ficasse

craquelado ou até mesmo não aderisse ao barro. Uma vez as peças aquecidas ao sol, a

artesã procede à etapa de decoração. Com uma talisca confeccionada da casca de cana-de-

açúcar, como um bico de pena, ela executa os desenhos que são criados à mão livre.

Concluído o processo de decoração, as peças são “enfornadas”, isto é, arrumadas dentro do

forno e cobertas com cacos de louça, tendo então início a queima. O fogo vai sendo

“alentado’ paulatinamente até que, com a temperatura já suficientemente elevada,

preenchem com lenha toda a boca do forno, o que denominam “fazer a embocadura” ou

92

“embuchar”. Toda a fornalha é enchida de lenha, fogo e calor e assim permanece por um

período de cerca de oito horas, condição necessária a uma queima eficaz.40

Toda artesã desenha nas peças que produz os

motivos decorativos que melhor lhe aprouverem,

sejam eles criados por ela própria, ao sabor do

momento e da inspiração, ou fruto de um repertório

consagrado. Esses desenhos, aliados ao traço técnico

executado com a talisca de cana, constituem o fator

responsável pela originalidade da louça do Candeal.

Muitos desses padrões vêm-se repetindo ao

longo do tempo, conforme atestam exemplares

documentados em diferentes épocas. O desenho em

espiral, por exemplo, de grande ocorrência nos objetos

atuais, pode ser visto na moringa que consta da fotografia da equipe de Joaquim Ribeiro,

reproduzida páginas atrás, datada de 1959/1960, e num pote, que identifico como sendo do

Candeal, cuja fotografia que reproduzo abaixo, ilustra artigo publicado pelo folclorista

Saul Martins (1973:66) que, em função da data de publicação, penso ser do final dos anos

60 ou início dos 70, muito embora o autor não faça a identificação da procedência da peça.

Esse mesmo padrão – a espiral – ilustra aquele que vem a ser o exemplar mais

antigo da cerâmica do Candeal a que tive acesso. Trata-se de um prato, de

aproximadamente 20cm de diâmetro, registrado sob o no 34.070 e que integra o acervo do

Setor de Etnografia do Museu Nacional/UFRJ. A consulta ao livro de tombo do Museu 40 Em 30/03/2001, a queima da louça do Candeal foi verificada por uma equipe de técnicos do Departamento de Química da Universidade Federal de São Carlos, SP, sob coordenação do professor José Wilson Gomes, que acompanhou o processo in loco, determinando como ponto máximo de cocção das peças temperatura acima de 800°, o que é considerado o padrão de queima da cerâmica popular no Brasil.

93

Nacional aponta a existência de quatro peças semelhantes, descritas como sendo “pratos de

barro para comida”, procedentes de “um lugar a 20 léguas de dentro dos Gerais”,

oferecidas ao Museu Nacional pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,

em 1945.

De acordo com Vianna, em trabalho inédito (s/d), desde sua criação, em 1937, o

SPHAN, a par das ações voltadas para a preservação do patrimônio afeto às elites

nacionais, também buscava desenvolver “ações pontuais de pesquisa e colecionamento” do

patrimônio popular, pondo em prática assim o ideário expresso pela Constituição Brasileira

de 1937 (Estado Novo) que, em seu artigo 57, define o artesanato como atividade a ser

incentivada pelo Estado, cabendo-lhe uma das seções do Conselho da Economia Nacional.

Segundo esse autor, citando Mário de Andrade – que conclama a adoção de critério

histórico e não puramente estético na eleição dos bens a serem consagrados –, isso

equivaleria a uma reclamação contra a lista de bens tombados em 1938, todos da maior

importância, mas que, referidos exclusivamente ao universo da elite nacional, nada

significavam em termos de uma proposta inovadora no tratamento do patrimônio e da

cultura do país (Vianna, s/d:42).

Assim é que, a partir da década de 1940, se intensificam no Brasil a preocupação

com a preservação do saber popular e a criação de instituições dedicadas aos estudos desse

universo. Data de 1941 a Sociedade Brasileira de Folclore, criada por Luís da Câmara

Cascudo, em Natal, RN, bem como, nessa mesma década, se verifica a constituição de

acervos especializados sobre arte popular conjugados ao conhecimento da história nacional

e à evolução das técnicas do trabalho popular, como se deu com a criação do Museu da

Inconfidência, em Ouro Preto, em 1944, do Museu do Ouro de Sabará, em 1945 e do

Museu Sergipano de Arte e Tradição, em 1948, todos citados por Vianna (s/d: 42).

Creio ser possível estender esse princípio de ação para à década seguinte, tendo em

vista a criação, nos anos 50, sob auspícios das comissões estaduais de folclore, de museus

de folclore nos seguintes estados da federação: Espírito Santo e Paraná, em 1953; São

Paulo, em 1954; e Distrito Federal, em 1956. Estas iniciativas, consideradas em sua

totalidade, integram o já referido Movimento Folclórico Brasileiro, exemplarmente

estudado por Luís Rodolfo Vilhena (1997), que dá como marco de criação do Movimento a

data de 1947, quando foi instituída a Comissão Nacional de Folclore. No entanto, diante

das ações ocorridas nos anos 40, parece-me que o Movimento teve início no Brasil já nos

primórdios dessa década.

94

Acervo Museu Nacional/UFRJ

Nessas instituições serão reunidas coleções etnográficas, resultantes de expedições

a campo, testemunhos das múltiplas formas de vida e variados segmentos sociais do país.

Nesse caso insere-se a expedição de Hermann Kruse, realizada no período de 1939-1940,

subvencionada pelo SPHAN, ao interior da Bahia e sertão mineiro, que coletou os pratos

que hoje integram o acervo do Museu Nacional, procedentes do Candeal, um deles

exibindo o padrão em espiral aqui referido.

Ao constatar a diversidade e a riqueza dos desenhos da cerâmica do Candeal, decidi

proceder ao registro e à análise desses padrões de decoração.Para isso, fotografei o que vim

a denominar “uma coleção”, conjunto de 726 peças reunidas pelos artesãos, segundo seus

próprios critérios, e enviadas em 2000 ao Rio de Janeiro para comercialização no Centro

Nacional de Folclore e Cultura Popular. Interessava-me estudar o universo dos padrões

decorativos do grupo, isto é, verificar se havia desenhos que eram utilizados por mais de

uma artesã e qual era a freqüência de ocorrência, se havia uma nomenclatura que definisse

especificamente cada desenho e o processo de sua reprodução.

A análise do material, no entanto, revelou tamanha complexidade, que não

encontrei um caminho que possibilitasse sua exploração sem que a realidade saísse

empobrecida. Os motivos decorativos mostraram-se tão ricos, e suas variações, tão

infinitas, que se tornou impossível para mim classificá-los, separá-los em tipologia, a não

ser grosso modo.

Tomando a espiral como um exemplo, podemos verificar que esse padrão é

progressivamente alterado à medida que comparamos uma peça a outra, de tal forma que,

numa seqüência de seis ou mais peças, o padrão pode resultar tão modificado que há

dificuldade em afirmar tratar-se do mesmo desenho, conforme podemos perceber nos

padrões do anexo 3.

Desistindo da pretensão de fazer o levantamento exaustivo do repertório de padrões

decorativos da cerâmica do Candeal, apresento exemplos, em anexo, de modo a deixar um

registro sincrônico de sua ocorrência que possa vir a ser apropriado com vistas a estudos

95

comparativos atuais e uso futuro pelos próprios artesãos, que passam a dispor de uma

memória gráfica das expressões visuais que praticam neste momento preciso de sua

história, quando ocorreu o registro.

Observando a produção atual, posso afirmar que os motivos decorativos aparecem

indiscriminadamente na quase-totalidade dos objetos produzidos pelo grupo. Exceção é a

panela feita para cozimento dos alimentos, única peça produzida atualmente que vai ao

fogo, e também a única peça que jamais recebe pintura. Quanto aos demais objetos feitos

na Olaria, é muito raro que não sejam pintados. No entanto, a aplicação do desenho no

corpo da peça raramente a recobre por inteiro. Desse modo, quase sempre, a artesã elege

uma área restrita do objeto para aplicar o desenho. Assim ele está presente na borda dos

pratos, em redor do pescoço dos potes e das moringas, circularmente ao longo da parede

externa ou interna de uma fruteira, uma tigela ou uma travessa.

travessa alt.6 cm, dm 23 cm

autoria: Nilda

potinho - alt. 17 cm, dm / boca 9 cm

autoria: Benita

Os motivos que as artesãs utilizam tendem para a representação de formas

orgânicas, da natureza, em que se podem identificar plantas, folhas, flores, enfim,

representações do mundo vegetal. Inteiros ou em parte, esses elementos aparecem

geralmente separados, um a um, ou se unem nos vultos redondos, fechando o círculo ao

redor da peça. Não existem termos específicos para cada padrão desenhado, muito embora,

96

por vezes, sejam referidos pelas mulheres pelo termo geral “bordado”41 e não apresentem

nomenclatura específica que os distinga uns dos outros.

Quase invariavelmente, esses padrões são aplicados formando composições que

podem ser entendidas como totalidades. Muitas vezes é um mesmo motivo que se repete,

justapõe-se, liga-se seqüencialmente e dispensa qualquer outro traço gráfico que atue como

elemento de ligação. Outras vezes o padrão se repete, em série, mas cada desenho se liga

ao outro por um fio ou traço. Em ambos os casos o resultado traz a impressão de uma

forma única, integrada, total. Raras vezes o padrão aparece isoladamente numa peça.

Travessa: alt. 7cm dm. 35cm

Autoria: Arlinda

Potinho: alt. 16cm dm/boca 10cm

Autoria: Odília

Tendo em vista analisar mais atentamente o repertório das expressões visuais das

mulheres do Candeal pedi, em campo, que fizessem em papel os desenhos que costumam

“bordar” na louça. Essa segunda coleção pictórica, já que a primeira é constituída pelos

mapas que os estudantes fizeram, totaliza perto de 100 pranchas em tamanho A4, pintadas

com tauá, tinta guache, lápis cera e caneta pilot.

A coleta de desenhos que são utilizados como instrumento de acesso à informação é

procedimento adotado por diversos pesquisadores, em especial, da realidade indígena.

Berta Ribeiro (1989) cita, entre outros, Hermann Krause que os coletou junto aos Karajá;

Von den Steinen, entre os Bororo e os Nahukuá; M. H. Fénelon Costa, também com os

Karajá e os Mehinaku; Thomas Gregor, entre estes últimos; Egon Schaden, entre os

41 O termo “bordado” tem ocorrência constante quando referido aos desenhos que decoram a cerâmica popular no Brasil, em especial na área que recobre o norte de Minas Gerais e o Estado da Bahia, havendo sido por mim registrado nas comunidades de Barra (Lima, 1996), Passagem (Mendonça e Lima, 2003) e Rio Real (pesquisa de 1999-2000, observação referendada em Vianna e Lody, 2001).

97

Kayová-Guarani, além da própria pesquisadora, que constituiu coleções de desenho entre

os Yawalapití e os Desâna.

A expressão desenho espontâneo foi consagrada por Fénelon Costa – a quem se

deve “o estudo mais completo feito até agora sobre desenhos em papel coletados por ela e

outros pesquisadores entre índios do alto Xingu, especialmente os Mehinaku”42 (Ribeiro,

1989: 68)–, para se referir à coleta de informação acerca de um universo específico, tendo

como medium privilegiado o desenho feito pelo informante, muito embora não despreze a

informação oral complementar. O depoimento gráfico-pictórico permite discutir questões

de estética, de arte e de antropologia, pois abre um caminho para penetrar o rico universo

das classificações nativas (Costa, 1988).

A expressão, porém, é passível de crítica por aqueles que nela não reconhecem o

caráter espontâneo da execução e acusam de indução o coletor por sugerir o tema a ser

desenhado. Como técnica, sua aplicação à realidade indígena é considerada por alguns ato

profanador da “pureza” das expressões de arte primitiva porque introduziria junto a esses

grupos material heteróclito, não integrante de sua cultura tradicional. Essa visão, que

idealiza um índio “puro”, apartado do mundo moderno, contemporâneo, está mais de

acordo com representações românticas do século 19. A esse respeito, pronunciou-se Laraia,

na apresentação da obra de Fénelon Costa:

Quanto às críticas que costumam surgir, atribuindo ao coletor um papel

indutivo, torna-se necessário lembrar que – independentemente da existência do

etnólogo e do material de desenho que fornece – os índios do Xingu não perdem

a oportunidade de fazer os seus desenhos. E utilizam os mais diferentes espaços:

cascas de árvores, areias da praia, colunas das casas, superfícies das cerâmicas

ou das máscaras rituais e até mesmo o próprio corpo humano. No caso da coleta

apenas se utilizaram de um novo espaço, o papel. (Laraia, in: Costa, op cit.: 11-

12)

Na coleção por mim constituída junto às mulheres da Olaria, destacam-se os

desenhos feitos com tauá sobre papel. Trata-se de 46 pranchas que foram desenhadas por

algumas artesãs. Tanto a quantidade de desenhos quanto o número de desenhistas deu-se

42 Em dezembro de 1975, ainda como estudante de graduação em ciências sociais e estagiário do Setor de Etnografia do Departamento de Antropologia do Museu Nacional, acompanhei a professora Maria Heloísa Fénelon Costa numa pesquisa de campo junto aos Mehinaku. Na ocasião tive o privilégio de vê-la atuar e coletar os desenhos que hoje integram coleção no referido setor do Museu Nacional. Integraram à equipe Beatriz Nogueira Junqueira e Tânia Maria Cunha Neiva, tendo esta última também recolher desenhos, especialmente junto aos mais jovens da aldeia.

98

de forma aleatória. Numa determinada viagem a campo, em 2001, no encerramento de uma

reunião que aconteceu no galpão de produção, ofereci papel às artesãs pedindo que

fizessem os “ bordados” para mim. Cerca de 20 mulheres estavam presentes, e quase todas

pegaram algumas folhas e as levaram para suas casas. Quando retornei, alguns meses

depois, sete mulheres, Idalina, Emília, Arlinda, Benita, Santinha, Socorro e Odília deram-

me os desenhos que haviam feito e que constituem documento precioso dos padrões

ornamentais com que elas decoram os objetos cerâmicos. Esses desenhos permitem que eu

aborde o campo da estética nativa com mais segurança, posto que alicerçado na obra

concreta. Infelizmente a opção por essa metodologia não me permitiu acompanhar a

elaboração dos desenhos e paralelamente coletar a fala de suas autoras acerca do que

realizavam, o que poderia representar interessante material para estudo.

A análise demonstra que, assim como acontece na cerâmica, neles há uma nítida

tendência para o emprego dos motivos orgânicos, fitomorfos. Folhas e flores estão

maciçamente presentes, com acentuado predomínio das primeiras. Assim, todos

representam vegetais, mesmo considerando aquelas pranchas que mais tendem para a

geometrização e o abstracionismo.

Prancha 1 – autoria: Emília Prancha 2 – autoria: Idalina

99

Prancha 3 – autoria: Benita Prancha 4 – autoria: Santinha

No entanto, comparados uns aos outros, os desenhos não são todos iguais. Em

primeiro lugar coloca-se a questão do desempenho individual de cada artesã. Nota-se que,

comparativamente, existem aquelas cuja produção apresenta mais elaboração plástica. São

artistas que revelam maior preocupação com a forma, fazem o traço, contornam-no com

outro traço idêntico, que dá relevo ao desenho, preenchem seu interior com pontilhismo,

como demonstram as pranchas 5 e 6, de autoria de Odília.

Prancha 5 Prancha 6

A par dessa questão de virtuosismo, a observação primeira revelou que em alguns

artesãos os traços eram mais fortes (pranchas 1 e 2) e em outros mais fracos (pranchas 3 e

4), resultando numa pintura ora mais, ora menos delicada, no sentido em que suas autoras

haviam usado quantidade maior ou menor de tinta em sua execução.

Separados por autoria, comparei os desenhos das sete artesãs e pude perceber que

formavam dois grupos distintos: de um lado estavam aqueles cujos traços eram mais finos,

100

feitos por três artesãs, que identifiquei como as mais novas: Socorro, Santinha e Benita

que, à época, estavam com 42, 43 e 44 anos, respectivamente; de outro, desenhos de traços

grossos, feitos por quatro mulheres mais idosas: Arlinda (59), Emília (61), Idalina (63) e

Odília (supostamente com 70 anos). Eu poderia afirmar que, com o avançar da idade, a

artesã passa a desenhar com traços fortes, movida talvez por deficiência visual e pela perda

do controle motor fino, problemas não encontrados no grupo das mais novas, o que

explicaria a maior delicadeza de seus desenhos. No entanto, a diferenciação entre elas não

se resume a apenas essa situação aqui apresentada, senão vejamos:

As artesãs mais idosas revelam forte tendência à verticalização do desenho, que se

evidencia até na utilização da folha de papel em pé, no sentido vertical, conforme as

pranchas 7 e 8, de autoria de Emília e Idalina, contrapondo-se ao grupo das artesãs mais

novas, que desenham horizontalmente na folha de papel, o que pode ser visto nas pranchas

9 e 10, feitas por Benita e Santinha respectivamente.

Prancha 7 – autoria: Emília Prancha 8 – autoria: Idalina

Prancha 9 – autoria: Benita Prancha 10 – autoria: Santinha

101

Diferentemente do que se observa quando se analisam os desenhos feitos

diretamente no corpo dos objetos cerâmicos e que, conforme assinalado, nunca revestem

toda a superfície da peça, no caso do desenho sobre papel, percebe-se que as artesãs de

idade mais avançada buscam ocupar plenamente todo o espaço que o papel oferece. Como

algumas pranchas evidenciam (ver pranchas 5, 6, 8 e 11, de autoria de Arlinda), seus

desenhos esparramam-se por toda a superfície, chegando ao limite, à margem do papel.

Diria que esse primeiro grupo de desenhos expressa a idéia de totalidade, contrapondo-se

aos desenhos fragmentados que caracterizam a composição do grupo de artesãs mais

jovens aqui representado pelas pranchas 4, 9 e 12, feita por Santinha.

Prancha 11 – autoria: Arlinda Prancha 12 – autoria: Santinha

O sentido de totalidade que o primeiro grupo imprime ao que realiza faz com que o

desenho, ao se distribuir por toda a folha de papel, predomine de tal forma que o fundo

quase desapareça. Já no desenho da geração mais jovem há como um equilíbrio entre a

forma desenhada e o fundo do papel. Há áreas em branco em que o papel se impõe, ao

contrário dos desenhos da primeira geração, em que, à observação, é o traço que é

percebido de imediato posto que se sobrepõe ao fundo, o que pode ser confirmado nas duas

pranchas acima.

Com exceção de poucos trabalhos geométricos, representando “gregas”, como num

desenho de Santinha (prancha 13), praticamente não existem formas abstratas feitas pelas

artesãs, seja no grupo das mais idosas ou no das mais jovens.

102

Prancha 13: Santinha

São também as artesãs mais idosas aquelas que realizam desenhos mais claramente

figurativos, no sentido de que, por vezes, podem mesmo representar plantas inteiras,

compostas por caules, folhas e flores. Em algumas pranchas, esses elementos chegam,

aliás, a se assentar sobre linhas que podem ser identificadas com a terra, o solo, conforme o

desenho 14, de autoria de Arlinda, ou o desenho 15, feito por Emília, que reproduz uma

planta num vaso.

Prancha 14 – autoria: Arlinda Prancha 15 – autoria: Emília

As artesãs mais jovens apresentam desenhos mais estilizados, no sentido de que

induzem a percepção do objeto, revelam o tema, a partir de apenas um dos elementos

componentes do todo, metonimicamente, como na prancha 16, em que Santinha toma a flor

pela planta, a folha pela planta. Em contraposição, são as artesãs mais idosas aquelas que

103

realizam desenhos nitidamente orgânicos, representações do mundo natural, em que os

elementos fitomorfos podem ser identificados com grande facilidade.

Prancha 16 – autoria: Santinha

Assim, pelas características descritas, ou seja, verticalidade e horizontalidade,

totalidade e fragmentação, relação figura e fundo, figurativismo e abstracionismo,

naturalismo/organicismo e estilização, posso afirmar a existência de dois estilos

responsáveis por particularizar e caracterizar os desenhos das duas classes de idade

analisadas no grupo das ceramistas do Candeal. A questão das diferenças inicialmente

percebidas e que se expressam no emprego dos traços fortes e fracos, grossos e finos, não

se explicam, portanto, como decorrência de mais ou menos capacidade e destreza da cada

artesã em particular.

Recorrendo a Gaston Bachelar (1990 e 1991), para quem a verticalidade, a linha

ascendente, sinaliza a busca do sublime, do transcendente, do mundo espiritual,

caracterizando aqueles que já superaram, ou se encontram em processo de superação dos

problemas terrenos, eu diria que os desenhos das artesãs da primeira geração são o

resultado de suas experiências de vida, das vivências acumuladas que deram ao grupo

condições de ultrapassar o plano das preocupações meramente terrenas, da sobrevivência

cotidiana estrita. A visão totalizadora de mundo, que o estado de maturidade lhes permitiu

alcançar, expressa-se em seus “bordados”, esparramados por todo o papel, de forma

integrada, una. É um atributo que surge como prerrogativa da classe de idade mais elevada.

Já a horizontalidade, segundo Bachelar, está referida aos indivíduos presos ao

mundo sensível, à terra. A linha horizontal aponta para o aqui e o agora, sendo própria,

portanto, das gerações mais jovens, daqueles que têm suas energias concentradas na

solução dos problemas do dia-a-dia, que estão atrelados às demandas que a vida diária

impõem aos indivíduos, à construção de suas histórias de vida. Neles, o foco de atenção

104

está muito mais freqüentemente concentrado em questões pontuais, em detrimento de uma

visão globalizada da vida social.43 Esse quadro, que poderia caracterizar o grupo de artesãs

mais jovens, nos fornece uma chave para o entendimento das diferenças de estilo presentes

nos desenhos das artesãs.

É necessário acrescentar que a diferenciação de suportes sobre os quais as artesãs

expõem suas concepções plásticas, variações da estética nativa, pode ser altamente

definidora dos resultados apresentados. Refiro-me ao fato de que uma coisa é o desenho

executado sobre a superfície da cerâmica tridimensional, objeto de vulto redondo, e outra é

o desenho aplicado sobre a superfície bidimensional, plana, da prancha de 30 x 21cm. Se o

papel fornecido às artesãs apresentasse outras dimensões ou fosse outra a superfície a ser

pintada, talvez outras concepções plásticas pudessem ser reveladas.

Essa possibilidade se evidencia quando pensamos nos desenhos executados pelas

artesãs na parede do galpão de produção, armazenagem e comercialização construído na

Olaria.

Ao dar início ao projeto de apoio aos artesãos do Candeal, em 1998, numa das

primeiras reuniões realizadas, as mulheres expressaram o desejo de dispor de um espaço

que permitisse o desenvolvimento coletivo do ofício. Segundo o modo como vinham

produzindo, isoladamente, cada mulher modelava suas peças no ambiente doméstico.

Algumas delas dispunham de um espaço no quintal, espécie de oficina, onde reuniam a

matéria-prima e os poucos instrumentos de trabalho, necessários ao desempenho do ofício.

Outras havia, porém, que, para “mexer com barro”, ficavam ao tempo, nos quintais,

quando muito abrigadas pela copa de uma árvore, que não as resguardava totalmente do sol

inclemente e do calor. Trabalhar o barro, tarefa árdua, sujeitava artesã e produção também

43 Agradeço a Kátia Jakobson, artista plástica, a quem apresentei os desenhos, algumas observações aqui contidas, assim como a indicação da obra de Bachelar, como um dos autores que poderiam ajudar-me no entendimento dos estilos que percebi existirem entre os dois grupos. Falhas na interpretação dos desenhos e no entendimento da obra de Bachelar, no entanto, devem ser creditadas integralmente a mim.

105

a alguma chuva repentina, principalmente ao final da estação seca, ameaçando botar a

perder a produção ainda não queimada e o trabalho realizado.

Além das razões práticas que as mulheres alegavam, um espaço coletivo

significaria também a possibilidade de maior interação entre elas, a intensificação de

trocas, o compartilhamento de experiências, o apoio mútuo que favorecesse a todas, então

altamente desmobilizadas para a produção de louça de barro, situação que havíamos

diagnosticado e sobre a qual o projeto proposto pretendia atuar, promovendo uma mudança

na realidade de forma a favorecer a todos.

Atuar num projeto de transformação da realidade social não incorrendo em risco de

decidir pelos reais agentes sociais e preocupados em não paternalizá-los com atitude

assistencialista era a maneira que nos impúnhamos44 de conduzir o trabalho de campo.

Entre as estratégias de desenvolvimento do projeto, em seu primeiro ano de curso, a

equipe promovia, semanalmente, reuniões para que os problemas fossem debatidos, as

soluções coletivamente buscadas e as providências tomadas a partir das decisões que o

grupo viesse a apontar. Reunir-se tornou-

se uma experiência nova para essas

mulheres que, até então, não se percebiam

como um grupo. Nem sequer tinham a

oportunidade de expressar coletivamente

os problemas que cada uma vivia

individualmente, tais como o acesso ao

barro, o pagamento da renda, a dupla

jornada de trabalho como donas-de-casa e louceiras, a dependência e subordinação a

agentes de comercialização que se responsabilizavam por distribuir a louça pela região.

Essas questões foram se esclarecendo nas reuniões, possibilitadas pela auto-reflexão acerca

de suas vidas e de sua inserção na família e na coletividade.

Nesse contexto, o discurso acerca do ofício de ceramista surgia com bastante força

e era expressivo da insatisfação das mulheres com sua condição de artesãs que se

percebiam desprestigiadas por um ofício que lhes fora legado por suas ascendentes, ofício

“naturalizado” que onerava a mulher em mais um mister diário, muito embora apresentasse

aspectos positivos, como o prazer do fazer e a geração de renda por menor que fosse o

44Além de mim, que atuei no decorrer dos cinco anos (1998 a 2003) como coordenador, e de colegas e técnicos do CNFCP, integraram a equipe Marina de Mello e Souza, historiadora, com quem dividi a coordenação nos dois primeiros anos, e Teresa Cristina do Carmo Pereira, assistente social residente em Januária, contratada como agente local do projeto.

106

ganho obtido com a venda das peças. Como afirmou Benita (D30), numa das primeiras

reuniões, realizada em fevereiro de 1999:

O que a gente pode fazer? Se a gente não faz louça, de onde vem o dinheiro? Aqui a gente não tem emprego. Eu não quero mais ir pra São Paulo. Já fui duas vezes, deixei meus filhos aqui com mãe, fiquei lá, me empreguei e não agüentei. Quase morri de tanto chorar. Já me acostumei a trabalhar nesse serviço. A minha arte é essa. Aqui o dinheiro é pouco mas é algum. Só que as pessoas não dão valor no que a gente faz. Quer comprar barato. Se comprar, não dá dinheiro pra gente, quer trocar a troco de besteirinha, um quilo de arroz, um quilo de feijão, qualquer coisa. Também é porque não tem valor mesmo. E a gente tem que trocar, senão ... Não dá dinheiro de jeito nenhum. Às vezes, pra gente receber uns troquinhos tem que juntar umas cargas de pote e levar em Januária. Como era antigamente, que punha nas bruacas dos jegues. A gente vendia que tirava uns troquinhos, comprava alguma coisa, mas aqui mesmo eles nunca dava valor ao serviço.

Mudar o valor dos objetos e do ofício de louceira, já que sua arte era aquela, como

colocava Benita, era o desafio posto para transformar a visão que as mulheres tinham de si

mesmas, fazendo-as se perceber positivamente. Um objetivo que, caso não fosse

alcançado, poderia comprometer toda a ação proposta de apoio ao grupo. Assim, tornava-

se necessário que essas mulheres passassem a ver no ofício de “mexer com barro” um

valor que as distinguia de modo positivo. A situação exigia que se construísse um novo

quadro social em que, valorizados o contexto de produção, o saber de que eram portadoras

e as representações acerca do que faziam, essas mulheres tivessem valorizada sua condição

de artesãs.

Esses princípios, que presidiram o projeto de intervenção na realidade, orientaram

também a construção do galpão para produção e venda dos objetos de cerâmica, espaço

que, ao atender à reivindicação das mulheres, lhes deu a dimensão da importância do

conhecimento que detinham e que se tornava explícito na excelência das peças de barro

que modelavam. Ao mesmo tempo, o galpão se converteu num mecanismo impulsionador

das mudanças sociais que se buscava implementar junto ao grupo.

Nesse sentido, tornou-se, simultaneamente, um espaço físico de trabalho – local de

guarda de matéria-prima, de modelagem e queima dos objetos, de estocagem de peças

concluídas, de venda – e um espaço representativo da política pública que buscava

enfatizar o valor atribuído ao universo de atuação e de representações das louceiras da

Olaria.

Sua concepção procurou valorizar as expressões da cultura local integrando

elementos da realidade ao projeto arquitetônico de todo o conjunto, como, por exemplo,

em vez de muros para cercar a construção, foram adotadas cercas de arame que formam

107

desenhos altamente criativos e são utilizadas na região para delimitar as “mangas” de

criação de gado; a sinalização dos sanitários masculino e feminino foi feita com pequenas

figuras de barro, modeladas pelas próprias artesãs; dois fornos para queima da louça foram

erguidos segundo a técnica local; a cozinha construída no local tem fogão a lenha similar

àquele encontrado na casa de toda artesã.

As cores a serem utilizadas para pintura das paredes, definida pelas equipe do projeto,45

seguiram o mesmo princípio. O tempo das chuvas e o tempo da seca tinge a região de

verde e marrom. Quem chega à localidade, observa que, em parte do ano, o verde das

folhas desaparece. Tudo se torna seco, cor de terra, marrom. Já, se o tempo for outro, se

entrarem as chuvas, tudo será imensamente verde, recoberto pela vida vegetal que explode

com intensidade impressionante. Mudam as estações e, com elas, as etapas do ciclo da

produção agrícola, da produção artesanal, da vida social de toda a comunidade.A

arquitetura do galpão buscou refletir essa dupla realidade, ao reproduzir nas paredes as

duas cores que expressam essa região de transição entre o cerrado e a caatinga. E, entre

elas, foi pintada uma faixa verde-água, de cerca de 50cm de largura, na qual as mulheres

foram convidadas a “bordar” os padrões decorativos de sua cerâmica. O objetivo de fazê-

las perceber, e valorizar, sua própria estética, estampando nas paredes os motivos da

pintura nativa, revelou-se importante mecanismo de construção de auto-estima para o

grupo. Nas paredes do galpão, como assinaturas, permanecem impressos os desenhos de

cada uma. São pequenos mostruários de padrões seriados, bordados diferentes das

45 Na definição das cores do galpão a equipe contou com as sugestões e o senso estético de Luís Carlos Ferreira, responsável pela museografia das exposições temporárias do Museu de Folclore Edison Carneiro e das mostras da Sala do Artista Popular do CNFCP.

108

totalidades que elas expressam na louça e também distintos das pinturas executadas sobre

papel.

Nilda

Benita

Arlinda e Chitinha

109

Capítulo 3 – Cerâmica, parentesco e reciprocidade: autoconsumo e circulação de

louça pelas unidades domésticas locais

Atualmente, embora venha sendo modelada em grande parte no galpão, a louça do

Candeal continua a ter como forte característica o fato de constituir uma produção familiar.

Nela predomina a forma de organização tradicional que orienta todo o modo de fazer.

Resultado do trabalho da mulher, é o marido aquele que mais contribui para a coleta e o

transporte do barro e da lenha usada na queima das peças. É ele também que ajuda a

ceramista a manter aceso o fogo no decorrer das oito horas de duração do processo de

queima, assumindo a frente do trabalho a partir do momento em que se torna necessário

intensificar o calor no interior do forno, implicando aumentar a quantidade de lenha que se

põe a queimar, a “embocadura”, como denominam.

Além do marido, é na própria família, em especial junto às filhas, que a mulher

encontra auxílio para socar e peneirar o barro, para cortar e brunir uma peça, para pintá-la,

etapas de um processo que é, ao mesmo tempo, de trabalho e de aprendizado. É no seio da

família que, observando e fazendo, convivendo com a mãe e ceramista, imitando seus

gestos, trabalhando e brincando, tudo ao mesmo tempo, num processo único, que a menina

se socializa e, num determinado momento de sua vida, aparentemente sem rito que marque

a passagem, ela se vê também ceramista, provendo seu próprio grupo familiar. Nesse

sentido, explica Benita (D30) como ensinou o processo a sua filha Regina (E39), segundo

110

o modelo de seu próprio aprendizado junto à mãe, dona Eugênia (C32), louceira idosa que,

aos 75 anos de idade, já não produz louça:

Eu ensinei em primeiro lugar pra minha filha, em casa. Ela aprendeu a fazer tinha uns 15 anos. Ela demorou mais do que eu, agora já faz peça, esses dias mesmo, quando eu ganhei a neném, a Marina, eu não podia trabalhar, fiquei cinco meses sem trabalhar, ela fez peça que mandou pro Rio. As peças dela é ótima também. Tá igualmente eu mesmo, pra trabalhar. E olha que ela começou assim, brincando, e eu ensinei pra ela e ela já tá fazendo igualmente eu.

Mas a louça do Candeal não fica restrita à circulação só no plano das unidades

domésticas que a produziram; extrapola os limites do autoconsumo e vai muito além. Ao

fazê-lo, ao ultrapassar as fronteiras das unidades familiares em que foram produzidos e se

distribuir por todas as casas da localidade, ao alcançar consumidores que se situam além

dessas fronteiras, espalhando-se pela ampla região circunvizinha e, ao avançar os limites

regionais, indo até outros mercados, nacionais e internacionais, os objetos produzidos na

Olaria atingem diferentes “mundos sociais”, cada vez mais amplos, e participam de

variados contextos em que lhes podem ser atribuídos múltiplos significados. Pensar esse

caminho, que tem início a partir do ponto em que o objeto é finalizado, está pronto para o

consumo, é o propósito deste e dos próximos capítulos.

A noção de “mundo social” aqui empregada obedece aos princípios estabelecidos

por Howard Becker, que a define como “a totalidade de pessoas e organizações cuja ação é

necessária à produção do tipo de acontecimento e objetos caracteristicamente produzidos

por aquele mundo” (Becker, 1977:9). Tomando o universo da arte como o “mundo” a ser

pensado, o autor assim se exprime: “um mundo artístico será constituído do conjunto de

pessoas e organizações que produzem os acontecimentos e objetos definidos por esse

mesmo mundo como arte” (idem). A partir daí, tratando a arte como um tipo de trabalho

cuja essência não é distinta das demais formas de trabalho e o artista como um trabalhador

cuja obra, para ser realizada, necessita da cooperação de diversos outros trabalhadores

igualmente necessários e importantes, Becker se volta mais para entender os padrões de

cooperação que se estabelecem entre as pessoas que realizam os trabalhos do que

propriamente para sua análise ou daqueles que são convencionalmente definidos como

seus criadores.

Diferente da crítica de arte, que toma por proposição o julgamento estético da obra,

e da teoria sociológica, que coloca no centro da análise do fenômeno artístico o artista

como o ser onipresente e a obra que realiza, Becker propõe entender a arte como uma ação

coletiva, como uma forma de organização social que vai além da ocorrência estética.

111

Assim, ao falar em “mundo da arte”, o autor está interessado em analisar como as pessoas

produzem e consomem os trabalhos artísticos, a partir de redes que se ampliam envolvendo

variados produtores e consumidores (Becker, 1982:ix).

É nesse sentido que me permito ver no mundo da Olaria o paralelo com as

colocações de Becker acerca especificamente do mundo artístico e do mundo social em

geral. Também na Olaria, a produção integra indivíduos em redes sociais amplas, formadas

por trabalhadores/produtores que se somam aos grupos de consumo e se estendem por

contextos sociais diferenciados e cada vez mais distanciados do local de produção.

Talvez a melhor maneira de pensar o vasto mundo social que o objeto do

Candeal adentra no deslocamento que faz da produção ao consumo seja visualizá-lo como

se se dispersando sobre um plano, em círculos concêntricos e a partir de um ponto de

produção, conforme o gráfico.

O desenho demonstra que o deslocamento do objeto, do locus da produção ao ponto

de consumo, implica um afastamento. Esse afastamento, embora se verifique efetivamente

no plano físico-geográfico, não tem aí, na dimensão espacial, sua principal característica. O

que define o deslocamento do objeto do ponto de produção ao ponto de consumo é,

sobretudo, a mudança do significado que lhe pode ser atribuído. A cada fronteira cultural

transposta, o objeto ingressa em um novo mundo social que o reorienta e ressignifica.

Assim, ao cruzar os limites das unidades familiares produtoras, ao circular pela

comunidade local constituída por grupos de parentela e de vizinhança, ao integrar o

mercado regional ou o mercado nacional, o objeto artesanal se distancia de seu mundo de

origem e passa a ser parte de distintos mundos sociais. Nessa transposição,

consumo doméstico

consumo local

consumo regional

linha de consumo

consumo nacional e internacional

ponto de produção

112

redimensionando seu valor e significado, tem ampliada sua tipologia e transformados seus

usos e funções.

Louça para autoconsumo

A artesã do Candeal, ao exercer seu ofício, está voltada para atender a um mercado

que aguarda os objetos que ela produz. Mas, em sua atividade, também visa atender a

necessidades de consumo de louça de barro de seu próprio grupo familiar. Para isso,

Teresa, Benita, Emília, Chitinha, enfim, todas as mulheres, ao produzirem louça na Olaria

destinam alguns exemplares para seus usos próprios e de suas famílias. Nesse caso,

verifica-se perfeita igualdade entre unidade de produção e unidade de consumo, pois tanto

o ato de produzir, como já assinalado, quanto o uso do objeto se realizam no interior de um

único e mesmo grupo doméstico.

O repertório dos objetos feitos para autoconsumo é constituído, principalmente, de

potes, panelas e pratos. Objetos, portanto, que se voltam para a guarda, o preparo e o

serviço de alimentos. Ao lado do vidro, do plástico, da louça e do alumínio, o barro é

matéria-prima recorrente na constituição dos objetos de cozinha da casa de toda artesã. Tal

fato remete a algumas implicações que estão diretamente relacionadas à forma como a

sociedade local se estrutura e se pensa, ao espaço ocupado pela mulher na rede das relações

sociais que configuram essa sociedade, ao modo segundo o qual é concebido o trabalho

que a mulher executa, à maneira como o grupo classifica o universo feminino e, por

conseguinte, o modo como ele próprio se vê inserido na sociedade.

No Candeal, o objeto de barro é referência ao mundo social feminino. De acordo

com a tradição local, sua produção se dá no ambiente familiar, pela ação das mulheres,

para atender a necessidades dos grupos domésticos, seja o da própria artesã ou de outra

unidade familiar qualquer, de dentro da localidade ou a ela externa.

Feito para circular nesse domínio, no caso do autoconsumo o objeto tem reforçada

sua ligação a esse universo, que Roberto DaMatta define como o “mundo da casa”, por

oposição complementar ao “mundo da rua”.

Segundo DaMatta (1994), casa e rua, mais que espaços físicos, geográficos,

remetem a realidades sociológicas distintas na cultura brasileira. Constituem-se em esferas

sociais que não apenas separam contextos e definem atitudes como também e

principalmente demarcam visões de mundo ao circunscrever códigos de interpretação que

são peculiares a cada um desses espaços. Trata-se de “esferas de significação social onde o

113

comportamento é normatizado (e moralizado) por perspectivas próprias” (DaMatta,

1984:9). Assim, segundo o autor, no Brasil casa e rua são gramáticas que nos possibilitam

ler e explicar o mundo. Enquanto a rua se constitui num lugar de “luta”, de “batalha”, do

trabalho, a casa ordena um mundo à parte, onde não deve haver trabalho e onde “não

devemos comprar, vender ou trocar. O comércio está excluído da casa como o Diabo se

exclui do bom Deus” (DaMatta, 1994:27).

Nesse aspecto, o mundo do Candeal não é distinto do universo brasileiro como um

todo, e também ali estão presentes esses princípios gerais que segundo DaMatta norteiam a

vida dos brasileiros. Nega-se ali o estatuto de trabalho e se denomina “serviço” às

atividades de rotina que as mulheres realizam no dia-a-dia, voltadas para os cuidados com

o marido e os filhos, a manutenção da casa, o preparo de alimento, o trato com as plantas e

os animais domésticos. Por extensão, à mulher é negado o estatuto de trabalhadora quando

está em pauta sua condição de força de trabalho que contribui para manter o grupo

familiar, despendendo energia na execução de ações produtivas que se realizam no mundo

familiar.

Na medida em que trabalho é categoria que tende a não ser percebida como

integrando o universo da casa no Candeal, os objetos de barro aí produzidos e que são

consumidos no interior do mesmo grupo familiar de produção, embora resultantes de

atividade produtiva, não são percebidos como bens econômicos. A esse objeto que transita

no interior de uma única unidade doméstica, da feitura ao consumo final, é negado o

caráter de mercadoria. Não lhe é imputado valor econômico.

Reforça essa visão o fato de que, conforme demonstrado, segundo o costume local,

a feitura de louça é realizada pela mulher quase sempre nos momentos que lhe sobram do

trabalho diário, geralmente no período da tarde, quando já encerrou toda atividade de

cuidado da casa e da família, conforme enunciado no capítulo anterior, em que Teresa

relata a inserção do trabalho artesanal em seu dia-a-dia.

Inventário de bens de cozinha realizado em 1998

casa objeto Quantidad

e

finalidade modo de aquisição

observação

pote 3 depositar água produção própria pote 3 guardar cereais produção própria pote 1 depositar barro produção própria panela 1 cozinhar feijão doação

1 Teresa

enfeite 1 decorar produção própria

114

pote 8 depositar água produção própria uma peça feita em parceria

pote 7 depositar barro produção própria prato 3 servir alimento produção própria

2 Bia e Hermínia

travessa 1 servir alimento produção própria

pote 4 depositar água produção própria peças feitas em parceria

pote 1 guardar cereais produção própria 3 Senhorinha

pote 1 depositar lavagem para porco

produção própria

pote 15 depositar água produção própria pote 2 depositar

cereais produção própria

pote 2 cultivar plantas produção própria tacho 1 fazer beiju produção própria

tacho 2 cultivar plantas produção própria originalmente para fazer sabão

prato 4 servir alimento produção própria panela 1 cozinhar produção própria

4 Joventina

caco 1 servir água para criação de quintal

produção própria peça quebrada (já foi um pote)

pote 2 depositar água doação prato 2 servir alimento doação 5 Eliane panela 2 cozinhar doação pote 1 depositar água compra

6 Pernambuco prato 1 servir alimento compra

pote 2 depositar água produção própria e compra

pote 1 servir água para criação de quintal

produção própria 7 Santinha

prato 1 servir alimento produção própria

8 Nilza pote 5 depositar água doação pote 5 depositar água 2 produção

própria; 3 doação 9 Idalina prato 3 servir alimento produção própria

pote 2 depositar água compra 10 Maria

prato 2 servir alimento compra

pote 4 depositar água doação 11 Arlinda

prato 1 servir alimento doação pote 4 depositar água produção própria

12 Aparecida prato 3 servir alimento produção própria

13 Lurdes pote 4 depositar água doação pote 3 depositar água produção própria 14 Emília prato 2 servir alimento produção própria

115

cuscuzeiro

1 cozinhar cuscuz produção própria

tacho 1 torrar farinha produção própria também denominado torrador

pote 4 depositar água produção própria 15 Chitinha

prato 5 servir alimento produção própria

pote 3 depositar água doação pote 1 servir água para

criação doação 16 Lora

prato 1 servir alimento doação

pote 3 depositar água doação 17 Nena

prato 2 servir alimento doação

18 Avelina pote 4 depositar água compra e doação pote 4 depositar água doação

19 Eugênia prato 2 servir alimento doação

pote 2 depositar água produção própria pote 1 servir água para

criação produção própria

pote 1 cultivar plantas produção própria panela 1 cozinhar feijão produção própria enfeites 4 decorar produção própria

20 Benita

potinho 1 guardar talheres produção própria

Em 1998, realizei um inventário dos bens de cozinha existentes nas 20 moradias

que efetivamente compunham os grupos domésticos da Olaria.46 Com base nesse

inventário procurei analisar o consumo interno dos objetos de barro que são produzidos na

localidade, dimensionando-os comparativamente aos produtos similares, mas de

procedência externa à localidade, como pratos, travessas e panelas de origem industrial.

Assim, não me ocupei em registrar a existência e o consumo de outros implementos de

cozinha, como copos e talheres, pois não integram a categoria de bens de produção local,

estando, portanto, fora de meu propósito de análise. Meu interesse centrava-se

particularmente em dimensionar o grau de absorção que a louça local tinha junto aos

próprios produtores. Buscava responder a questões como: os objetos modelados pelas

artesãs integram seu cotidiano, sendo por elas utilizados? Que objetos produzidos são

consumidos localmente? Eles estão presentes no uso diário, por exemplo, no preparo e

serviço de alimentos das famílias? Existem objetos

46 Conforme apresentado no Capítulo 1, a localidade era composta de 21 casas,e uma delas, de propriedade de Coim (D15), encontrava-se fechada naquela ocasião. Só veio a ser ocupada pela família de seu filho posteriormente à realização do inventário.

116

que são feitos exclusivamente para o consumo local? Ou, como ocorre em muitos casos,47

a totalidade da produção destina-se ao mercado externo, estando sujeita, assim, a

determinações estéticas, ao gosto ou à moda impostos por esse mercado?

As respostas a essas perguntas, quando baseadas na observação de realidades

específicas, obtidas de dados coletados diretamente em campo, falam com mais

propriedade acerca do denominado objeto artesanal, muitas vezes abordado com

generalizações extremas em trabalhos aos quais faltam o suporte do dado concreto.

O universo pesquisado demonstra que cerca de 83,6% dos exemplares, isto é, 102

das 122 peças de barro encontradas nas residências de 13 artesãs em atividade naquela

ocasião, eram provenientes do trabalho da própria dona da casa, o que evidencia um grau

elevado de autoconsumo da louça feita pela mulher para prover seu próprio grupo

doméstico.

Esse fato, que tem reflexos evidentes no orçamento familiar, não é elaborado

verbalmente pelas artesãs. A louça que a mulher produz para consumo do próprio grupo

familiar aparentemente tem importância relativa, pois não é percebida como um fator

econômico, e as artesãs nunca se referem a ela quando discutem acerca de ganhos,

benefícios, alcances da atividade que desempenham.

Numa ocasião, indagadas acerca dos objetos que produziam e que utilizavam em

casa, num primeiro momento, as artesãs tendiam a menosprezar sua relevância e seu

significado. Ao lhes serem apresentados os dados resultantes do levantamento feito, ao ser

revelado o volume de louça existente em cada moradia, mostravam-se extremamente

47 Refiro-me ao fato de muitas vezes não haver correlação entre unidade de produção e unidade de consumo do objeto artesanal. Comunidades como Tracunhaém e Alto do Moura (PE), Icoaraci (Belém, PA) e tantas outras que produzem objetos cerâmicos, para nos atermos a apenas uma categoria de produto, consomem poucos objetos de suas próprias produções, quer se trate de peças utilitárias ou das chamadas decorativas. Poderíamos supor que tal se deva à questão de ordem econômica, já que muitos desses objetos podem alcançar alto valor de mercado, o que os coloca acima do poder econômico do próprio artesão, como é o caso da boneca criada por Isabel Mendes, de Santana do Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, avaliada no mercado de arte popular atual a preços que variam de cinco a 10 mil reais. Indagados a esse respeito, muitos artesãos dessas localidades citadas explicam que objetos utilitários como pratos, travessas e panelas são mais resistentes e práticos para o uso quando feitos em materiais como alumínio, vidro ou plástico e que objetos de decoração como bibelôs e enfeites em geral são mais bonitos quando feitos em louça, porcelana, resina, isto é, produtos industrializados. Relativizada, a explicação tem a razão de ser numa cultura que valoriza o produto industrial, atribuindo-lhe qualidades que, aliás, nem sempre são reais. Entre a cerâmica de origem artesanal, o vidro e a louça industrial, a resistência e a durabilidade destes últimos não necessariamente são superiores. Então, o foco da questão pode ser deslocado para outra direção, ou seja, a subordinação do grupo à cultura hegemônica que se impõe, fazendo com que absorva valores que, em princípio, lhe são estranhos. A estética nativa, definidora dos modelos que são produzidos pelos grupos, é preterida por eles, que vêem nos objetos industriais originários das grandes cidades o ideal da forma, da funcionalidade e da beleza.

117

surpresas, ainda mais ao verificar que a maior parte da produção existente em cada casa

havia sido criada pela própria artesã que lá morava.48 Nada extraordinário num universo

que, como acabamos de ver, também não reconhece a categoria trabalho na jornada diária

da mulher ao prover a família.

Para que se tenha noção mais precisa acerca da importância da louça

nativa para a economia familiar local e do trabalho feminino subjacente,

responsável por sua produção, basta que tomemos como exemplo uma categoria

do rol dos bens de uso doméstico na comunidade: o prato.

Modelado em tamanhos diversos, numa escala que em geral oscila de 10cm a 40cm

de diâmetro, invariavelmente redondo, o prato do Candeal é, também invariavelmente,

fundo. Na localidade não se utilizam peças rasas.

Se levamos em consideração a forma sempre igual e as dimensões variáveis do

prato do Candeal, à categoria nativa corresponde mais de um objeto do mundo urbano-

industrial contemporâneo brasileiro. Assim, no Candeal, definem-se como “prato” vários

objetos que, em outros contextos, recebem nomenclatura que varia de acordo com a

48 Durante o período de trabalho de campo, era comum a realização de reuniões, ocasiões em que se discutiam, em especial, questões relativas à produção e à comercialização da louça de barro, além de muitos outros assuntos relevantes para a vida social dos moradores do Candeal. Conforme indiquei, é importante frisar a especificidade da pesquisa realizada, altamente comprometida com uma proposta de intervenção e transformação da realidade social. Como já enunciado, um dos pontos trabalhados durante todo o projeto dizia respeito ao fortalecimento da auto-estima das mulheres que produziam a louça de barro. Nesse contexto, era importante destacar a relevância dos objetos que produziam tanto como marca de identidade quanto como bem gerador de renda.

118

utilização que lhes é atribuída ou o detalhamento do uso: prato, prato de sopa, prato de

sobremesa, prato de bolo, prato fundo, prato raso, tigela, travessa.

Longe de querer “classificar borboletas” (Leach, 1974), essa digressão que remete a

sistemas classificatórios busca o entendimento de planos diversos da vida social na

localidade. A palavra prato, como terminologia nativa, auxilia a desvelar hábitos da

população. A inexistência de subcategorias para o termo, a generalização do objeto

segundo a forma, a ausência de tipologia por função, tudo isso nos ajuda a perceber a

inexistência de uma louça de serviço específica do sistema culinário local, isto é, uma

louça “para servir” alimentos.

No Candeal, não existe o hábito de a família se reunir em torno de uma mesa à qual

todos se sentam para fazer as refeições e em que o alimento seja disposto. No dia-a-dia,

pronta a comida, no almoço ou jantar, cabe à mulher, dona da casa, “fazer o prato” dos

membros da família. Se toda a família se encontra presente, ela inicia servindo o marido, a

seguir os filhos, e a si mesma por último. Caso não estejam todos presentes, comem

aqueles que lá estão: o marido que chegou mais cedo da roça, as crianças que vão para a

escola... Assim, após receber o alimento das mãos da dona da casa, todos comem,

acocorados pelos cantos, sobre um banco, encostados à parede da casa, debaixo de uma

árvore no quintal. O prato fica na mão, raramente apoiado sobre uma mesa.

A dispersão pelo quintal, especialmente para o almoço, é bastante comum,

justificada pelo calor excessivo principalmente no interior das casas, cujo pé-direito é

muito baixo. A arquitetura vernacular, cujo padrão prescreve a cozinha como uma

construção apartada do corpo principal da moradia, uma espécie de varanda aberta

diretamente para o quintal e onde são servidas as refeições, reforça o hábito do comer fora.

Nas residências, aliás, nem sempre existem mesas. Em muitos casos, apenas junto ao fogão

a lenha há uma bancada, por vezes simples tábua sobre quatro paus que se fixam no chão

de terra batida.

A aparente ausência de formalidade que caracterizaria os momentos de refeição na

Olaria não significa que não haja alguma forma de ritualização. Como afirmou Maria

Laura Cavalcanti ao comentar a obra de Mary Douglas acerca do consumo de bens,

Ao eleger a comida mais apropriada para cada dia da semana, a dona de casa não apenas consome como ordena significações, espelhando seu pertencimento a um determinado grupo social, criando e compartilhando um estilo de vida. Se a comida alimenta, não comemos apenas para nos alimentarmos. As refeições são pequenos rituais que envolvem a comunicação, fixam significados, expressam o próprio sistema de relações interior à família, marcam a passagem das semanas, dos anos, dos ciclos da vida individual e coletiva (Cavalcanti, 25/12/2004).

119

Aprofundando a ligação entre o ritual e o ato de consumir, até em seu sentido mais

amplo, prossegue Cavalcanti afirmando que “consumir é estabelecer vínculos pessoais e

sociais através das coisas. É ato ritual por excelência; ato público e convencional no

sentido em que corresponde a definições coletivas da realidade e a um padrão geral de bens

e serviços disponíveis”.

Portanto, ao distinguir o ato ritual, aquele pelo qual “coisas” são ditas, do ato

formal, que prescreve a contenção de comportamento em determinadas ocasiões

ritualizadas de vida, podemos apreender os muitos significados que estão contidos em cada

pequeno “sinal” que dão forma ao conjunto de atos que integram as maneiras de comer no

Candeal. O espaço para cozinhar e o espaço para comer; o que se come e o modo de fazê-

lo; a maneira como se come, aquilo que Marcel Mauss denominou técnicas corporais

(Mauss, 1974c), e com quem se come, tudo isso constitui um sistema complexo, rico e

pleno de significados culturais.

Mesmo em situações de maior formalidade na Olaria, quando, por exemplo, o

pesquisador é convidado a comer com a família, a tendência é não haver louça de serviço e

a comida, quando há mesa, é para ela levada nas próprias panelas em que foi cozida, das

quais ele se servirá diretamente. Nessas ocasiões, apenas o dono da casa acompanha a

visita, sentando-se com ela à mesa. Os filhos, crianças ou adultos, permanecem comendo à

parte, e as mulheres, em geral, aguardam que todos terminem para só então se servir. No

entanto, na deferência à visita é mantida a etiqueta diferenciada que prescreve que ele se

sirva diretamente do alimento e em primeiro lugar, antes mesmo do dono da casa, que

permanece sendo servido pela mulher.

Nesse contexto de uso, o prato está presente em 100% das moradias do local, onde

desempenha diferentes funções: o mais comum é que nele se coloque a comida a ser

consumida por cada um dos membros do grupo familiar nas duas principais refeições do

dia: o almoço e o jantar. No entanto, não só ele é utilizado nessa circunstância, existindo

aqueles que dão preferência a marmitas, latas ou tigelas plásticas para consumir alimentos.

É comum especialmente crianças comerem nessas vasilhas em vez de utilizarem pratos,

devido, talvez, ao fato de que são mais leves, não se quebram facilmente, e é menor o risco

de a comida derramar.

Num quadro em que o repertório de objetos ligados à culinária é bastante

reduzido, o emprego do prato pode ser bastante amplo. Ele também é utilizado para

120

guardar o alimento já cozido e que sobrou de uma refeição, para guardar produtos in

natura e também é usado como tampa para os potes que contêm água ou cereais.

De acordo com o inventário, os pratos de cerâmica da produção local estão

presentes nas residências observadas como o segundo item mais importante do

autoconsumo, só inferiores aos potes: eles somaram 32 peças, o que representou 20,9%

do total de objetos cerâmicos produzidos e consumidos pelos grupos domésticos locais.

Sua freqüência estatística só não é maior em face da presença de similares cuja origem é

a indústria nacional, conforme se pode inferir da tabela abaixo.

Consumo de pratos segundo a matéria-prima de confec ção e sua distribuição pelas

20 residências

matéria-prima presente não presente

cerâmica local 14 (70%) 6 (30%)

louça (tipo porcelana) 10 (50%) 10 (50%)

Plástico 8 (40%) 12 (60%)

Vidro 7 (35%) 13 (65%)

Esmalte 3 (15%) 17 (85%)

Alumínio 3 (15%) 17 (85%)

Consumidos em 14 das 20 residências, o que significa presença em 70% desse

universo, os pratos de cerâmica da produção local são maioria frente aos similares

industriais.

Muito já se escreveu acerca da produção artesanal e seu confronto com os objetos

de origem industrial. A esse respeito, alguns autores asseguram que o artesanato, porque

participante de um mundo do passado, tenderia a desaparecer em decorrência dos avanços

da sociedade moderna, avassaladora dos hábitos locais e homogeneizadora das culturas

particulares. Participou dessa visão Cecília Meireles, poeta e folclorista que, na década de

1950, escrevia, denunciando a situação pouco promissora para o desenvolvimento das artes

plásticas resultantes do fazer popular. Segundo ela, o campo das “artes plásticas populares”

tomava forma nos objetos artesanais de uso cotidiano e vinha perdendo prestígio dada a

crescente industrialização que no Brasil ofertava produtos mais práticos a uma sociedade

cujos hábitos se transformavam rapidamente devido ao processo de modernização.

121

Em interessante artigo em que busca analisar a correlação entre folclore e educação

na obra de Cecília Meireles, Joana C. Abreu identifica

dois pólos opostos e complementares, que orientam todo o pensamento de Cecília no campo do folclore: o “mundo da máquina”, a que estão associados os valores negativos, e o “mundo da magia”, que encerra os valores positivos. O mundo da máquina é associado à lógica, à ciência, à indústria. O mundo da magia, por sua vez, é recorrentemente relacionado à inspiração, à sabedoria, à autenticidade, à liberdade e à ingenuidade (Abreu, 2001: 220).

Ao mundo da magia estão associados os objetos artesanais que, segundo Cecília, o

público consumidor urbano já não mais via – àquela época – como bens a serem

consumidos e, por extensão, preservados. Cecília critica esse tipo de mudança e tece as

seguintes considerações a respeito:

Ora, o mercado certo é um dos obstáculos ao estímulo da cerâmica popular dos nossos dias. Mesmo as peças utilitárias estão sendo todas pouco a pouco abandonadas. As moringas que refrescam a água são substituídas por geladeiras; o vasilhame de barro, com todas as virtudes que possa ter, encontra inimigos invencíveis em louças mais duráveis, ou em caixas e latas que oferecem outras vantagens; a não ser por moda, ou num outro caso, ninguém quer saber de comida em caçoletas nem em pratos de barro; os alguidares arranham os mármores das cozinhas, e as salgadeiras e travessas de barro tornaram-se incômodas. O mundo feito à máquina não compreende os bordos irregulares do barro, não gosta dos vidrados escorridos desigualmente, não aprecia a boniteza torta das canecas, das jarrinhas sem equilíbrio total, e não há mais palitos para os paliteiros nem moedas para os cofres de barro (Meireles, 1953: 53-54).

Em outra obra, ainda escrevendo sobre os objetos de cerâmica, observa:

Entre as primitivas louças de barro e a cerâmica utilitária atual vai uma grande distância, na qualidade da pasta. Quanto à parte decorativa não se pode dizer que tenha havido um desenvolvimento tradicional de valor artístico, sobretudo no que se refere à grande indústria, que não se comove com a Arte (Meireles, 1968: 62).

A autora reclama da hegemonia do “tudo igual”, da mesmice, da regularidade de

uma estética uniforme que a indústria propicia. No novo mundo criado pela máquina, não

há lugar para a imaginação, a verdadeira expressão do espírito humano, porque o objeto

industrial não suscita em nós a força criadora, mas paralisa as forças imaginantes, os

sonhos e os devaneios, nas palavras de Gaston Bachelard (op. cit.). Com a indústria, tudo

tenderia à horizontalidade da estética, ao empobrecimento do espírito.

E, ainda, acrescenta Cecília:

Desconexa, perdida na imensidade da terra, dividida por circunstâncias inerentes à formação da própria nacionalidade, a Arte Popular desponta no Brasil daqui e dali, sufocada ainda, em seu desenvolvimento, pelo cosmopolitismo nivelador, e pelo industrialismo, que tudo desorienta. A História não permite lamentações sobre o passado. E em vão se pretenderia reconquistar o que ficou perdido. Nem o que está vivo no presente podemos dizer até quando, até onde pode ser acautelado (id., ibid.: 154-155).

122

E, finalmente:

Conseguíssemos nós conhecer tudo o que temos de artes populares! Saberíamos exatamente o que somos. Saberíamos afinal, o ‘estilo’ a que somos levados; que não é o indígena nem o colonial – que é um mistério, no tempo em que o manual se fez mecânico, a técnica substituiu o impulso sentimental, e as matérias naturais vão sendo esquecidas, em concorrência com os produtos sintéticos (id., ibid.: 156).

Na discussão acerca das transformações sofridas pela sociedade nacional, e mesmo

internacional, decorrentes do processo de modernização promovido pela industrialização,

Cecília Meireles não estava só. Ela integrou a rede de intelectuais do Movimento

Folclórico anteriormente comentado (Cavalcanti et alli, 1990; Vilhena, op. cit.) que buscou

fazer com que o país enfrentasse a inevitável modernidade sem abdicar, no entanto, de

formas de criação e vida que os folcloristas consideraram “a essência do ser nacional”

(Vilhena, op. cit.). E o artesanato tradicional era, para eles, um desses alicerces definidores

da nacionalidade. A proposta desse grupo de intelectuais implicava valorização dessa

classe de objetos ameaçada de desaparecimento.

Decorridos mais de 50 anos da criação do Movimento, e a despeito dos

prognósticos pessimistas, os objetos artesanais aí estão, por vezes em embate com os

artefatos industriais, mas sempre resistindo. E, nessa disputa, o plástico e o alumínio são

tidos como as matérias-primas que mais concorrem com a peça artesanal.49

No inventário realizado no Candeal, cujo resultado é apresentado no quadro acima,

no entanto, é o prato de louça, e não os de alumínio e plástico, aquele que mais ameaça a

hegemonia da cerâmica local, estando presente em 10 das 20 residências pesquisadas,

enquanto, junto com o de esmalte, o de alumínio ocupa o último lugar da relação.

A circulação da louça e o consumo local

“Os bens são neutros, seus usos são sociais; podem ser usados como cercas

ou como pontes.” Assim, Mary Douglas e Baron Isherwood concluem o prefácio de uma

obra que pode ser tida como pioneira ao propor pensar em termos antropológicos a questão

do consumo. Em O mundo dos bens – para uma antropologia do consumo, os autores

demonstram que essa não é uma questão meramente econômica, mas que deve ser vista

49 Se, na década de 1950, especialmente o plástico e o alumínio foram tidos como “vilões” pela ameaça que representaram a um mundo tradicional percebido como harmônico e equilibrado, nos dias atuais eles continuam a desempenhar o mesmo papel junto a outros produtos da indústria. A mudança havida está no universo que é tido sob ameaça: na atualidade, o meio ambiente. Deslocou-se o discurso para o campo da ecologia, e os produtos da indústria são condenados porque implicam índices elevados de poluição.

123

como integrando a ordem da cultura, o campo dos bens simbólicos, portanto, o universo da

antropologia. Como reforça Everardo Rocha na apresentação da obra: “O consumo é algo

ativo e constante em nosso cotidiano e nele desempenha um papel central como

estruturador de valores que constroem identidades, regulam relações sociais, definem

mapas culturais” (Rocha in Douglas e Isherwood, 2004: 8).

Assim, a par de preencher necessidades naturais, o consumo supre outras,

simbólicas, tratando-se, portanto, de sistema de significação. Como tal, é um código que

expressa relações sociais e “permite classificar coisas e pessoas, produtos e serviços,

indivíduos e grupos”. Nessa perspectiva, ao analisar o consumo na ótica da antropologia,

Douglas e Isherwood percebem aí um processo simbólico que possibilita o surgimento de

um sistema de comunicação ou, como afirmam, o consumo não ocasiona mensagens

simplesmente, mas constitui o próprio sistema de mensagens. Por meio dele um

consumidor, independente da condição social e de sua capacidade de consumir, se envolve

com outras pessoas numa série de trocas.

Quando se trata de manter uma pessoa viva, a comida e a bebida são necessárias como prestações físicas; mas quando se trata da vida social, são necessárias para ativar a solidariedade, atrair apoio, retribuir gentilezas, e isso vale tanto para os pobres quanto para os ricos (Douglas e Isherwood, op. cit.: 39).

Como apontou Maria Laura Cavalcanti ao comentar a obra desses autores, por meio

da troca de bens, são classificados e colocados em hirarquia objetos e indivíduos; valores

são comunicados, pois “todo sistema é significação e o consumo deve ser compreendido

como um sistema classificatório que correlaciona simultaneamente a totalidade de duas

séries significativas: a dos agentes consumidores e a dos bens e serviços que eles

consomem”.

Assim, Mary Douglas e Baron Isherwood retiram da escuridão a legitimidade da

análise antropológica do mundo do consumo, colocando-a ao lado dos estudos da produção

de bens.

Voltado para a análise do consumo dos objetos de barro da produção local, por

meio do inventário realizado, construí o seguinte quadro de consumo interno dos

moradores da Olaria para a louça produzida no local:

124

Louça de barro e consumo local

objeto casa

pote prato travessa

panela

torrador

cuscuzeiro

enfeite

outros total

1 Teresa

7 1 1 9

2 Bia e Hermínia

15 3 1 19

3 Senhorinha

6 6

4 Joventina

19 4 1 1 350 28

5 Eliane

2 2 2 6

6 Pernambuco

1 1 2

7 Santinha

3 1 4

8 Nilza

5 5

9 Idalina

5 3 8

10 Maria

2 2 4

11 Arlinda

4 1 5

12 Aparecida

4 3 7

13 Lurdes

4 4

14 Emília

3 2 1 1 7

15 Chitinha

4 5 9

16 Lora

4 1 5

17 Nena

3 2 5

18 Avelina

4 4

19 Eugênia

4 2 6

20 Benita

4 1 4 151 10

Total 103 32 1 5 2 1 5 4 153

A análise do quadro acima permite verificar que:

50 Trata-se de dois torradores cuja função primeira não é mais exercida, sendo utilizados como vaso para plantas, e uma panela quebrada e aproveitada para servir água às galinhas. 51 Trata-se de um pequeno pote que Benita utiliza na cozinha como porta-talheres.

125

� foram inventariadas todas as 20 casas que, em 1998, somavam 100% das

moradias efetivamente ocupadas na localidade e nas quais moravam as 79 pessoas que

compunham a totalidade da população local, perfazendo a média de 3,95 moradores

por residência;

� nessas residências foram encontrados 153 objetos cerâmicos resultantes da

produção local, confeccionados em épocas distintas: poucos haviam sido modelados há

menos de um ano, a maior parte há mais de um ano, e poucos há mais de cinco anos;

� 7,65 foi a média de objetos encontrados por residência, considerando-se

aqueles em uso real (objetos que estavam sendo efetivamente utilizados no momento

da pesquisa) e aqueles potencialmente em uso (peças inteiras que, mesmo fora de uso

no dia da pesquisa, tinham nas condições de guarda, sobre bancadas e em prateleiras, o

indicativo de sua utilização). Assim, não foram consideradas as inúmeras peças

quebradas, especialmente potes, pratos e panelas, que são descartadas e ficam ao

tempo, jogadas pelos terreiros e quintais das casas. Outrossim, foram computadas as

vasilhas que, embora quebradas e encontradas nas áreas externas das residências,

permaneciam em uso servindo, por exemplo, como bebedouro para animais domésticos

e depósitos de barro para modelagem; é evidente que uma vasilha aparentemente

descartada hoje pode vir a ser reutilizada amanhã. Esses dados numéricos, portanto,

devem ser relativizados, e não os tomo como valores absolutos, mas simplesmente

como indicativos que me auxiliam no entendimento da realidade da Olaria.

� considerando a totalidade da população local, o consumo individual per

capita foi de 1,94 objeto por pessoa;

� a maior quantidade de objetos cerâmicos encontrada em uma única

residência, na casa 4, onde moram três adultos, Joventina, seu marido e o irmão,

correspondeu a 28 peças, índice bem acima da média local. O fato chama atenção

especialmente porque não há ampliação do repertório de objetos em uso nessa

residência e sim o incremento do número de potes, que totalizam 19 exemplares,

enquanto a média local de consumo familiar desses objetos, excluindo-se essa mesma

casa e a casa 2, de Bia e Hermínia, que também apresenta número elevado (15 peças), é

de 8,6 exemplares. Indagada a esse respeito, Joventina explicou que vinha chovendo –

estávamos na estação das chuvas –, e ela aproveitava para recolher água com que

poderia cozinhar e lavar roupa, não precisando fazer a caminhada diária ao riacho.

� a menor quantidade de objetos encontrada em uma única residência (casa 6)

inclui apenas um pote e um prato; esse caso de consumo extremamente reduzido tem

126

explicação no fato de tratar-se da família de imigrantes pernambucanos, formada por

pai e filho, que havia chegado ao local recentemente – menos de três meses;

� existe flagrante predominância dos objetos utilitários em uso nessas

residências, totalizando 148 peças entre potes, pratos, panelas e outras de menor

incidência, quando comparados às cinco peças decorativas encontradas: quatro

jarrinhas na casa de Benita e um bibelô em forma de cachorro, num canto da sala da

casa de Teresa;

� entre as peças utilitárias destaca-se o pote como o objeto de maior

freqüência (103 potes presentes em 100% das residências), seguido pela categoria dos

pratos (32 exemplares);

� os demais itens, que aparecem em quantidades bem menores, são: cinco

panelas; os cinco enfeites acima especificados; dois objetos variados usados como

vasos de plantas; dois torradores de farinha; uma travessa; um cuscuzeiro; um pote

pequeno usado como porta-talher e uma vasilha de água para animais domésticos.

Em termos percentuais, esses objetos podem ser assim quantificados:

Objeto % Pote 67,3 Prato 20,9 Panela 3,2 Enfeite 3,2 Vaso de planta 1,3 Torrador 1,3 Travessa 0,7 Cuscuzeiro 0,7 Porta-talher 0,7 Bebedouro de animal 0,7 Total 100

Esta tabela confirma potes (67,3%) e pratos (20,9%) como aqueles itens da

produção local mais consumidos pelas unidades familiares produtoras. Analisados no

sistema mais amplo dos objetos de consumo da comunidade, podemos observar a

importância dos potes frente a todos os demais itens ali produzidos e consumidos.

127

O pote: importância e significado na cultura local

foto Francisco da Costa

Além de predominar numericamente, o pote é praticamente o único objeto utilizado

para guardar e esfriar água, não enfrentando a concorrência de similares. Na localidade

foram encontradas apenas duas talhas de origem industrial com filtro. Num dos casos o

filtro encontrava-se quebrado e, portanto, sem serventia para a filtragem de água, embora

sua proprietária, Teresa, se mostrasse bastante orgulhosa por possuí-lo e não houvesse

nenhum outro recipiente que estivesse sendo usado para armazenar água.

Naquela época, não existiam geladeiras na comunidade. Algumas famílias vieram a

adquiri-las nos anos subseqüentes, totalizando quatro delas em 2003, nas casas de Nilda

(F43), Arlinda (D12), Teresa (E4) e Rita (E32).

Assim, até a presente data, o pote reina soberano entre os objetos cerâmicos de uso

doméstico, sendo utilizado principalmente para armazenar água. Sua importância pode ser

dimensionada não só em termos numéricos como também na disposição espacial que lhe é

destinada no interior das residências, onde se constata o extremo zelo com que é guardado

e cuidado.

Como já foi dito, o Candeal está situado numa região demasiadamente seca e,

portanto, sujeita a períodos de estiagem que podem perdurar por longos meses. A

recorrente ausência de chuvas e as mudanças climáticas devidas aos desmatamentos e às

queimadas constantes comprometem os mananciais fazendo secar o Mané Véio, riacho que

corta a localidade e era até recentemente a única fonte de abastecimento da população, até

que, por intermédio do projeto de apoio aos artesãos, um poço artesiano foi perfurado e

passou a fornecer água para as moradias do local e de uma ampla área em seu entorno. Até

então, nos períodos de estiagem prolongados, o acesso à água tornava-se sobremaneira

128

dramático, havendo ocasiões em que a total ausência de fontes de abastecimento era

remediada com caminhões-pipa providenciados pela prefeitura municipal, o que nem

sempre ocorria de modo satisfatório para atender a toda a população.

Nesse contexto, a água torna-se líquido ainda mais precioso e precisa ser guardado

com cuidado. Atestam isso as bancas de pote que guarnecem as moradias.

Foto Ana Alaide

129

As casas são extremamente simples, erguidas com madeira da região, cobertas com

telha ou palha de buriti. Poucos cômodos, geralmente uma sala e um ou dois quartos, de

chão batido52 e separados por meias paredes. Nessas casas não há banheiros, e as pessoas

usam o mato para fazer as necessidades fisiológicas. O banho é tomado no riacho, onde

também se lava roupa e louça. Nada que, no cômputo geral, as distinga da habitação das

populações de baixa renda de grande parte do mundo rural brasileiro.

A arquitetura dessas casas segue um “padrão”, isto é, determinados princípios que

informam o modo de morar de grande parcela da população, podendo ser encontrado

também em áreas urbanas, especialmente em favelas, como descreveu Ana Heye, que fez

do tema, na década de 1970, o objeto de sua dissertação de mestrado.53

Heye, que estudou a casa na Mata Machado, favela do Alto da Boa Vista, bairro da

cidade do Rio de Janeiro, faz excelente e perspicaz registro de alguns princípios

ordenadores da moradia no local, enfatizando, em especial, as noções de público e privado

que tornam distintos os espaços da casa e da rua; os usos diferenciados da frente e dos

fundos da casa que, com entradas separadas, apontam para significados também diferentes

desses espaços; a sala e a cozinha – áreas de ocupação diária, de atividades rotineiras e

também espaços simbólicos que remetem ao sistema de representações da população; a

distribuição, a ocupação e o uso dos poucos cômodos, baseados em distinções de gênero e

posição que o indivíduo ocupa no grupo doméstico. Num interessante artigo publicado

posteriormente, registra a pesquisadora que:

Todas as casas têm “frente” e “fundos”, mesmo que não tenham uma porta para a frente e outra para os fundos (a maioria as tem). “Frente” é a parte orientada para fora, para a rua, para o domínio público, “fundos” a área designada para a preparação de comida e eliminação da mesma, banho, lavagem de roupa, de lixo... A cozinha parece ter uma posição intermediária entre casa e fora de casa – uma área de transição entre natureza e cultura, uma área ambivalente em que se por um lado então o fogão e o armário de comida, por outro, ocupando o espaço designado como “menos nobre”, “inferior” é colocada simbolicamente quase fora de casa. (Heye, 1980: 120/21).

A despeito da diferenciação decorrente dos contextos socioculturais distintos,

algumas observações que a antropóloga faz em relação a Mata Machado poderiam ser

estendidas, seguramente, à Olaria. Suas considerações acerca da cozinha e a posição que

52 Conforme apontado no capítulo precedente, apenas muito recentemente, algumas, e poucas, casas tiveram o piso pavimentado com cimento. 53 Heye, A. M., Mata Machado: um estudo sobre moradia urbana. Dissertação de Mestrado, PPGAS/UFRJ, mimeo., 1979.

130

ocupa no sistema de espaço doméstico, por exemplo, são altamente pertinentes se aplicadas

à Olaria. Assim como em Mata Machado, a cozinha, espaço intermediário entre o mundo

de fora e o de dentro da casa, faz mediação entre os domínios público e privado. É também

na cozinha que, pela preparação dos alimentos e da comida,54 se faz a transição da natureza

para a cultura.

Na Olaria, a importância da cozinha como mediadora entre mundos distintos é

especialmente enfatizada quando é construída apartada do corpo principal da moradia. Na

maior parte das casas isso acontece, e a cozinha é construção anexa, um espaço

intermediário, que se coloca entre o dentro e o fora, o familiar e o público. Trata-se

geralmente de um espaço aberto, cujas paredes não unem o piso ao teto, mas se

interrompem a meio caminho, formando uma espécie de varanda, o que favorece

sobremaneira a ventilação e alivia o calor e a fumaça do fogão a lenha.

A particularidade da moradia na Olaria não decorre apenas das características da

arquitetura e do uso que é feito de seus espaços. Ela advém também do fato de que as casas

foram erguidas pelos próprios moradores com telhas de tipo canal, tijolos maciços, cozidos

ou de adobe, feitos por eles mesmos, segundo as técnicas artesanais legadas de pai para

filho, que atestam a ancestralidade do ofício e a importância do barro na construção do

mundo social local.

A casa na Olaria tem mobiliário sobremaneira reduzido: na sala, um ou dois bancos

de madeira, por vezes uma mesa, numa prateleira um rádio que, quando funciona à pilha,

está quase sempre mudo e, quando ligado à rede elétrica, faz a mediação com o mundo

54 Refiro-me aqui à distinção que DaMatta faz entre as categorias alimento e comida, assim definidas: “Alimento é tudo aquilo que pode ser ingerido para manter uma pessoa viva; comida é tudo que se come com prazer, de acordo com as regras mais sagradas de comunhão e comensalidade” (DaMatta, 1994: 55).

131

externo;55 invariavelmente, calendários, estampas de santos, cartazes e os “santinhos” de

políticos locais já referidos, guarnecem as paredes; no quarto, uma cama, em sua ausência

um estrado de varas da madeira ou de talos de buriti, coberta por uma espuma fina, esteira

de taboa ou panos, em que as pessoas dormem; uma ou mais caixas de madeira, ou de

papelão, guardam os bens mais preciosos: documentos, fotografias, eventualmente uma

arma e algumas peças de roupa, geralmente as de festa, como o paletó domingueiro do

dono da casa, a blusa, a saia e o vestido, imaculadamente brancos, com que a mulher dança

para São Gonçalo; outras roupas, de menor importância, ficam empilhadas num canto,

sobre prateleiras ou mesmo penduradas pelas paredes; a cozinha é demarcada pelo fogão a

lenha, bancada e prateleiras, onde ficam os objetos da lida diária. Nesse conjunto

parcimonioso, nas salas e cozinhas de todas as residências, os potes ocupam o lugar de

primazia, geralmente aos pares, nas bancas de potes.

As bancas são construídas em alvenaria, junto a uma parede, e apresentam um ou

dois rebaixamentos circulares nos quais se assentam os potes. Podem também ser feitas de

madeira, uma tábua com pés, geralmente com dois furos circulares em que se encaixam os

potes. O cuidado com o objeto fica explícito nessas bancas, em que o rebaixamento em

forma de calota favorece o encaixe e garante maior estabilidade às peças de barro.

Algumas famílias demonstram tal zelo para com seus potes de água, que eles ficam

guardados em armários de madeira, como o exemplar abaixo, da casa de Teresa. Essa

espécie de mobiliário com porta protege o pote que preserva a água. Todo o conjunto se

torna tão especial, que pode até mesmo ser coberto com toalha rendada e enfeitado com

flores, extremo requinte em residências cuja tendência é a simplicidade e ausência de

ornamentos. Esse conjunto tem valor simbólico análogo ao armário de cozinha em que os

moradores da favela de Mata Machado guardam os mantimentos, segundo relato de Ana

Heye (op. cit.: 120).

55 Ao iniciar a pesquisa, nem todas as casas dispunham de energia elétrica sendo mais presente o rádio de pilha. Na ocasião, metade da população (10 casas) dispunha de um aparelho, embora a maioria não funcionasse por falta das pilhas e de dinheiro para comprá-las. Em apenas três residências, nas casas de Teresa, sua filha Eliane e de dona Nilza, havia televisão. Em 2003, mais duas famílias, as de Emília e de Rita, sua nora, adquiriram aparelhos, segundo elas com a renda obtida na venda de louça.

132

Potes, botijas e quartinhas. A memória dos atuais moradores do Candeal registra

que, no passado, a armazenagem de água era feita em potes bem maiores do que os atuais,

com capacidade para conter até 50 litros de água. Dadas suas grandes dimensões, era

impossível removê-los com facilidade do local em que ficavam abrigados

permanentemente nas casas. Daí existir um segundo modelo, denominado botija, muito

semelhante ao pote atual porém com gargalo mais estreito a

que chamam pescoço. Com capacidade para conter de 10

até 20 litros, a botija era empregada no transporte da água

do riacho até a casa, onde era transferida para o pote

grande, conforme pode ser visto na fotografia a seguir, de

Maria José de Araújo Costa, dona Zezé, então com 16 anos

de idade, do povoado do Candeal, tirada em 1956 pelo

médico sanitarista Dr. Vale Filho. Com o surgimento do

plástico e das garrafas pet, a botija entrou em desuso.

Havia ainda outro recipiente, ainda hoje presente no repertório de produção local,

muito embora eu não tenha registrado nenhum em uso na localidade, que é a quartinha,

denominação dada à peça que em outros pontos do país é também conhecida como bilha

ou moringa. O termo quartinha deve-se à capacidade da peça de conter cerca de dois litros

133

e meio, ou seja, um quarto da capacidade da botija de 10 litros. A produção atual é voltada

quase integralmente para atender ao mercado externo à localidade.

Além da decoração feita com tauá, os potes que são produzidos atualmente têm

como característica a padronização das dimensões e da forma que se repetem. Pesam em

torno de quatro quilos, têm cerca de 40 centímetros de altura, 30 centímetros de diâmetro

do bojo e 15 centímetros de diâmetro de boca. São de excelente fatura e resistem ao tempo

quando colocados em lugar apropriado, como as bancas.

134

Uma única forma, básica, matricial, se repete sempre e sempre a cada novo

exemplar de pote modelado. Se não os soubéssemos artesanais, construídos manualmente

pelo processo técnico da modelagem, sem o auxílio do torno, poderíamos até julgá-los

produtos da manufatura mecanizada que propicia a produção em série. A padronização

observada advém do conhecimento que consagrou determinado modelo como o que

melhor realiza a destinação para a qual foi primeiramente concebido: a de conter água.

Esse saber é resultante de um longo processo que compreende pesquisa de

matérias-primas, observação da realidade, experimentação de materiais e de técnicas de

manufatura, transmitido de geração a geração, já há muitas e muitas décadas. Os potes do

Candeal realizam aquilo que Octavio Paz (1991) observa em relação ao universo do

artesanato em geral: aliam o útil ao belo. Pela tradição, como acentua o ensaísta, são

capazes de muito ensinar acerca do real equilíbrio entre função e forma, questão sempre

presente quando se pensa o campo do design contemporâneo.

De imediato associado à água, e por isso a ele atribuída relevância, fato

compreensível numa região de seca, o pote tem utilização maciça em toda residência. A

observação em campo revela, além disso, que seu emprego é muito amplo. Existem pelo

menos seis situações em que o utensílio tem uso recorrente na localidade:

Pote: distribuição e uso pelas residências locais

Recipiente

Casa

guarda de água potável de uso

da família

depósito de água

para plantas e animais

armazenagem de cereais

armazenagem de barro

para modelagem

depósito de comida

para porco

vaso para

plantas

total

1 Teresa 3 3 1 7

2 Bia e Hermínia 6 2 7 15

3 Senhorinha 2 2 1 1 6

4 Joventina 2 13 2 2 19

5 Eliane 2 2

6 Pernambuco 1 1

7 Santinha 2 1 3

8 Nilza 4 1 5

9 Idalina 5 5

10 Maria 2 2

135

11 Arlinda 4 4

12 Aparecida 4 4

13 Lurdes 4 4

14 Emília 3 3

15 Chitinha 4 4

16 Lora 3 1 4

17 Ana Maria 3 3

18 Avelina 4 4

19 Eugênia 4 4

20 Benita 2 2

Total 64 22 6 8 1 2 103

É portanto o pote, e especialmente aquele destinado a conter água, o objeto que

apresenta maior índice de consumo na localidade em que residem os oleiros. Observando a

tabela acima, verifica-se que, das 103 peças em uso, 86 estavam destinadas a conter água

para consumo da família, de animais domésticos, especialmente galinhas e porcos,56 e para

molhar plantas.

A circulação da louça: a dádiva e a reciprocidade

Teoricamente as mulheres são detentoras dos conhecimentos necessários para a

modelagem da cerâmica, estando, portanto, aptas a produzi-la. No entanto, nem todas são

ceramistas. Além daquelas que não foram socializadas no ofício de fazer louça de barro e

não dominam todas as etapas da produção porque não nasceram no Candeal, local em que

ingressaram pelo casamento, há outras que também não participam do processo de

modelagem ou por ser ainda muito novas ou por já ser muito idosas, ou por estar doentes,

ou por estar vivendo um momento de interdição como o resguardo. Enfim, há mulheres

para quem o ofício de fazer louça de barro está permanente ou temporariamente vedado.

À medida em que nem todos produzem louça, e, em meio àquelas artesãs que o

fazem, nem todas se dedicam a todos os objetos do repertório local, como se dá o acesso

aos objetos de barro?

56 A categoria dos animais domésticos compreende no Candeal galinhas, porcos, cães e gatos. Aos dois últimos não se dedica atenção, no que concerne ao fornecimento de água. Talvez porque, criados livres, e não presos em cercados como os primeiros, possam saciar a sede no riacho Mané Véio.

136

Além do autoconsumo das peças, verifica-se que existem entre os moradores da

localidade dois princípios socialmente aprovados que orientam a apropriação da louça ou,

em outras palavras, a maneira como a população local se abastece dos objetos de cerâmica

para seu uso próprio. Esses princípios não são excludentes e geralmente se combinam,

organizando o fluxo de objetos pela comunidade.

O primeiro deles é a “dádiva” que, no Candeal, relaciona em especial produção,

família e parentesco. É como se o indivíduo assim se expressasse: “ eu consumo porque

integro uma família em que há uma artesã que abastece as necessidades de meu grupo

familiar”.

A importância da dádiva na estruturação de relações sociais tem sido apontada por

inúmeras análises antropológicas, destacando-se a obra clássica Os argonautas do

Pacífico, de Malinowski (1978). Nela se descreve a instituição kula, sistema de troca

cerimonial em que colares de conchas vermelhas e pulseiras de conchas brancas, objetos

totalmente destituídos de valor econômico, são reciprocados entre um círculo restrito de

ilhéus do oeste do Pacífico. Os dois tipos de bens que circulam em direções opostas, como

presentes que se trocam, consolidam uma rede de aliança por meio da qual cada integrante

do sistema dispõe de dois tipos de parceiros: aqueles de quem recebe braceletes e aos quais

retribui com colares e aqueles dos quais recebe colares que retribui com braceletes.

Malinowski, que busca na cultura a razão de existência de cada forma de comportamento,

de cada costume e instituição, explica que o kula, sistema de troca institucionalizada e não

econômica, tem por finalidade um aspecto expressivo pois, por meio dele, os trobriandeses,

grupo estudado por ele, afirmam e reafirmam status social, dimensionado pelo número de

presentes que um indivíduo recebe e, conseqüentemente, de parceiros que possui. Ao

mesmo tempo, o sistema simbólico tem por função pôr em operação um outro sistema,

esse, sim, de natureza prática e econômica, que viabiliza a construção de canoas e o

comércio de mercadorias entre as diversas ilhas que compõem o circuito da troca

cerimonial, que ocorre paralelamente ao kula, em cada incursão feita por um grupo para

visitar parceiros. Assim, Malinowski indica como o kula, aparentemente um mero

mecanismo de doação de presentes, põe em operação sistemas de trocas econômicas e de

alianças que estruturam ampla esfera da vida social dos trobriandeses.

Também Marcel Mauss viu nos sistemas de troca um componente que extrapola a

dimensão do econômico, fazendo do ato de reciprocar uma experiência igualmente social e

cultural. Em Essai sur le don (1974), a partir dos dados coligidos entre diversas

sociedades, muitas delas distanciadas no tempo e no espaço, entre eles aqueles descritos

137

por Malinowski sobre as expedições de navegação kula e informações sobre o potlatch,

mecanismo ritualizado de distribuição competitiva de propriedade praticado por tribos do

noroeste da América, Mauss evidenciou que presentes doados geram a expectativa de

retribuição, de forma a tornar imposto o que em princípio é livre. Para alguns povos, a

dádiva não é algo inerte, mas carrega em si a “alma” do doador, possui mana e exerce

ascendência mágica sobre quem a recebe. Dar alguma coisa a alguém é dar algo de si

mesmo.

A dádiva, ou doação de presentes, na medida em que implica reciprocidade também

implica hierarquia e confronto, conforme demonstrou Mauss, sendo componente da vida

social que põe em relevo três pontos: várias categorias de coisas, além dos bens

econômicos, podem ser trocadas; sempre há a expectativa de retribuição a um presente

dado, isto é, acredita-se no princípio da reciprocidade, porque dar algo a alguém é dar uma

parte de si mesmo, e, por último, a troca de presentes entre as pessoas viabiliza as relações

sociais entre elas (Mauss, op.cit.), igualando posições ou reforçando a assimetria da

relação.

Assim, objetos doados se constituem em modo de atualizar laços sociais, estreitar

amizade e solidariedade em muitas e diferentes sociedades e se revestem da maior

importância, em especial junto àquelas de pequena escala nas quais o contato face a face é

característico das relações entre os indivíduos.

Também Evans-Pritchard, ao descrever o sistema social dos Nuer, afirma que “a

cultura material pode ser considerada como parte das relações sociais, pois os objetos

materiais são correntes ao longo das quais correm os relacionamentos sociais” (Evans-

Pritchard, 1978:101).

É ainda esse autor quem afirma que

um único artefato pequeno pode ser um vínculo entre pessoas; por exemplo, uma lança que passa de pai a filho como presente ou legado é um símbolo de seu relacionamento e um dos vínculos pelos quais esse relacionamento é mantido. Assim, as pessoas não apenas criam sua cultura material e vinculam-se a ela, como também constroem seus relacionamentos em torno dela e vêem-nos em termos daquela (id., ibid.:102).

Portanto, a par do valor econômico que um objeto doado possa conter, a

antropologia tem demonstrado a importância do reconhecimento do valor simbólico que

está contido numa dádiva, já que ela cria ou consolida, iguala ou hierarquiza a relação

social entre as partes, assim como negar o princípio da reciprocidade e não retribuir o

138

presente recebido, ou retribuí-lo num nível não esperado, pode significar o término da

relação.

No Candeal, nas unidades domésticas em que existem artesãs em atividade, cabe a

elas serem agentes do sistema de dádivas, ao abastecer grupos familiares específicos,

provendo, sob forma de doação, determinadas casas com os objetos de que necessitam.

Potes, pratos e panelas constituem as categorias de objeto passível de doação,

predominando o pote como o objeto mais doado entre eles, conforme expressa o quadro

abaixo:

Doações

objeto quantidade

pote 31

prato 8

panela 3

À medida que a doação cria e fortalece relações, conforme fartamente demonstrado

na literatura antropológica, os objetos doados integram um sistema de comunicação que

informa sobre a realidade e, mais do que isso, constituem mesmo a própria realidade.

Quais os indivíduos que acionam o mecanismo da dádiva e dão e recebem os objetos

cerâmicos no Candeal? O quadro a seguir sintetiza essas relações e evidencia que elas

ocorrem principalmente entre determinadas categorias de parentes.

Doadores

de para quantidade de peças doadas

Mãe filha 14

Filha mãe 11

sogra (mãe do marido) nora (esposa do filho) 10

tia (irmã da mãe) sobrinha (filha da irmã) 1

Sobrinha (filha da irmã) tia (irmã da mãe) 3

Cunhada (esposa do irmão) cunhada (irmã do marido) 1

tia-bisavó (irmã da bisavó

materna)

sobrinha-bisneta (neta da

filha da irmã)

1

não parentes 1

139

Assim, pela observação da realidade e análise dos dados coletados por ocasião de

realização do inventário doméstico, conforme refletido no quadro acima, constata-se que a

doação de louça de barro se constitui num sistema ativo que deflagra um fluxo de

sentimentos e afeições femininas. As dádivas se circunscrevem praticamente entre

categorias de parentes envolvendo díades específicas: mãe e filha e sogra e nora, sendo a

mãe, a filha e a sogra aquelas que mais doam na comunidade. Assim, a artesã, além de

fazer a louça para seu uso próprio, também o faz para abastecer principalmente a família

nuclear de sua filha casada e de seu filho casado.

Neste último caso, no entanto, a dádiva não é atribuída ao filho, mas sim a sua

esposa, a nora. Entendendo que a louça integra um domínio essencialmente feminino, é

modelada pelas mulheres e, em primeiro lugar, por elas manuseada na vida doméstica

cotidiana, é dito que a louça é feita para a nora, e não para o filho, isto é, para integrar a

casa da nora e não para suprir as necessidades de louça da unidade familiar do filho

casado, embora seja ele o elo entre as duas pessoas diretamente envolvidas na relação: a

sogra e a nora.

Não é demais voltar a afirmar que, no Candeal, não apenas a louça, mas todo o

universo da casa está ligado à figura feminina, de modo efetivamente marcante. A

identificação da residência se faz pela referência à mulher que nela mora, razão pela qual

optei por fazer a referência das 20 casas inventariadas associando-as à mulher que nelas

residem, a dona da casa. “Na casa de Emília” ou “na casa de Emília de Januário” – é assim

que se diz quando se quer referir à casa de Emília e de Januário ou à casa em que moram

Emília e Januário. É interessante notar que a frase não apenas aponta para o pertencimento

do universo doméstico à figura feminina, como também, em contrapartida, sugere a

subordinação da mulher a seu marido, conforme indicado pela preposição “de” ligando

seus nomes. Durante os muitos períodos de trabalho de campo e nas entrevistas, que

totalizam cerca de 30 horas de gravação em fita, não foi registrado o uso da preposição

“de” para associar o homem à mulher mas apenas o inverso, isto é, a mulher ao homem.

Assim sendo, não ocorre a fórmula “Januário de Emília”, mas sim, “Januário, marido de

Emília” ou “Januário, casado com Emília”, formas diametralmente opostas aquela usada

para a mulher, que, sempre que haja necessidade de especificação maior de sua identidade,

é referenciada ao marido.

Como conseqüência, podemos dizer que no Candeal a louça de barro transita entre

famílias nucleares, principalmente sendo transferida de mãe para filha e de sogra para nora

e nunca de mãe para filho. Nesse circuito entre grupos familiares cuja relação se

140

caracteriza pela proximidade dos laços de parentesco, como nos casos citados em que

famílias nucleares se ligam por relação de filiação, o objeto é destituído de valor

econômico e assume a forma da dádiva. A transação não é concebida como uma relação

comercial, e o bem, assumindo significado distinto, ingressa em outro circuito, em que

passa a ser importante elemento na definição do sistema de prestação e contraprestação de

serviços e de consolidação de laços de solidariedade que unem os indivíduos.

Assim, no Candeal a transferência de louça de uma unidade familiar para outra, sob

forma de doação, extrapola as fronteiras da economia política. Por meio dela as pessoas se

ligam umas às outras e, ao fazê-lo, se colocam, por assim dizer, umas nas mãos das outras,

questão essa que se reveste de especial característica quando está em jogo especificamente

a relação sogra e nora, questão a que voltarei adiante.

Fazer do objeto cerâmico uma dádiva, por outro lado, não implica a impossibilidade

de transação comercial entre unidades familiares próximas. No entanto, essa é uma

assertiva muito mais teórica do que real. Indagados a respeito, os moradores do Candeal

afirmam não haver prescrição que defina a quem se dá ou para quem se vende um objeto.

Já a realidade não registra um único caso de compra e venda que se tenha realizado entre

mãe e filha, por exemplo.

Por outro lado, é perfeitamente legítimo, e possível, que a nora venha a

encomendar à sogra a feitura de uma peça pela qual pague. No entanto, no decorrer dos

anos de observação em campo, toda vez que o fato foi constatado, ele dizia respeito a

transações que envolviam apenas potes para guarda de água. Não observei um único caso

em que um prato, por exemplo, ou qualquer outra categoria de objeto fosse vendido à nora,

excetuando o pote. A explicação nativa para tal fato é que se atribui pouca importância a

um objeto como o prato, cujo valor monetário é muito baixo, não se justificando cobrar por

ele, especialmente da nora que “é quase uma filha”, conforme explicou Emília (D26) ao se

referir ao prato doado a Lora (D24), sua nora.

Nesse nível de relação de parentesco, portanto, a peça parece estar revestida de um

valor tão insignificante, que o próprio ato de doação tende a ter sua importância também

diminuída. Aparentemente, nessa ação de dar nem sequer se reconhece o objeto dado como

um presente, uma dádiva. Indagadas a respeito das doações de pratos e de outras classes de

objetos a parentes próximos, invariavelmente Emília, Arlinda e Teresa, as artesãs que mais

fizeram doações de objetos, conforme pude constatar, manifestaram extrema surpresa

diante de minha observação. Vendo-se como artesãs, como mulheres que faziam muita

louça quase que diariamente, segundo elas era “natural” que destinassem a suas filhas e

141

noras os objetos dos quais necessitavam. Como se pratos existissem por si mesmos e sua

doação fosse algo natural, elas estranhavam a questão por mim colocada. Não percebiam

que não eram os pratos que eram desprovidos de importância podendo por isso ser dados,

mas era a importância das relações entre mãe e filha e entre sogra e nora que tornava

“natural” a doação dos pratos.

Isso não significa que o mesmo argumento seja invocado quando é o pote que está

em questão mediando a relação de sogra e nora. Nesse caso, o discurso muda de eixo: não

mais se trata de considerar a maior ou menor importância da peça, mas sim de enfatizar o

fato de que se trata de uma “encomenda”, que deve, portanto, ser atendida para que se

possa levar a bom termo uma transação econômica realizada entre parentes muito

próximos.

Assim, o mecanismo que retira do sistema de doação determinada categoria de bem

– o pote – permitindo sua inserção em outro, a compra e venda, aponta para a

especificidade da relação sogra / nora e para a possível tensão existente entre ambas, numa

realidade a que talvez se aplique a máxima popular “case uma filha e ganhe um filho, case

um filho e perca um filho”. De outro modo, como explicar que a sogra venda o pote à nora

enquanto vários outros objetos de cerâmica são invariavelmente doados? Seria esse um

indicativo de que, de acordo com o sistema nativo de parentesco, a nora é uma categoria de

parente que não é tão parente quanto outros parentes? Que ela pertence e, ao mesmo

tempo, não pertence ao grupo familiar de sua sogra?

Do ponto de vista da nora, comprar da sogra é estabelecer distância social,57 de

modo a marcar posição, recusando-se a se submeter integralmente a regras e comandos

que, de outro modo, poderiam facilmente ser estabelecidos? Reforçar distância social é um

mecanismo que regula as relações entre elas, considerando uma realidade em que muitas

noras residem em terreno dos sogros, estando em contato diário com eles?58

Excetuando-se o fato de que o pote ocupa um lugar simbólico no sistema de

representação dos moradores da Olaria, podendo, portanto, sua venda ser decorrência de

sua condição especial, para essas perguntas não tenho respostas e infelizmente não

disponho de relatos nativos em que possa me basear para tratá-las. São hipóteses, fruto da 57 Gilberto Velho aponta para o fato de que a vida social é marcada pelas diferenças e descontinuidades, mesmo naquelas sociedades tidas como extremamente homogêneas e igualitárias. A existência de distâncias que podem ser derivadas de razões sociais, culturais, psicológicas determinam e estabelecem clivagens internas aos grupos sociais, definem posições e marcam identidades individuais e coletivas. Acerca da noção de distância social, ver Velho, 2004. 58 Atualmente, na Olaria, existem 14 mulheres casadas cujas sogras estão vivas. Como há uma tendência a que o homem ao casar construa sua casa no terreno do pai, oito dessas mulheres residem próximo às sogras.

142

observação de uma realidade em que chamam atenção os dados levantados que apontam

para a possibilidade de apenas uma categoria de objeto produzido no local ser passível de

compra e venda entre sogra e nora.

Marcel Mauss nos lembra que os objetos têm mana e carregam consigo uma parte

do doador. E, mais do que isso, que a doação exige reciprocidade. Outro antropólogo,

Marshall Sahlins (1970), trabalhando a noção de reciprocidade, relembra a tipologia criada

por Elman Service, para quem existiria um contínuo que vai de um sistema de

“reciprocidade generalizada”, que vigora entre indivíduos de uma mesma família e

organiza as relações entre eles, a um sistema de “reciprocidade negativa”, que tende a

presidir as relações comerciais entre estranhos. Diz Sahlins que, na reciprocidade

generalizada não existe a expectativa de retorno material direto e imediato.

O aspecto social da relação supera o material e de certa forma oculta-o como se não tivesse nenhuma importância. Simplesmente não se deve computar. Não que não exista nenhuma obrigação de retribuir, mas a expectativa de reciprocidade fica indefinida, não-especificada quanto ao momento, quantidade e qualidade... A obrigação de retribuir é difusa... os bens movem-se em uma direção, em favor dos despossuídos (Sahlins, op. cit.:130).

No Candeal, o pote é um bem de valor elevado, um dos itens mais caros no sistema

de compra e venda, assim como de maior valor simbólico. Saber fazê-lo é indicativo da

conclusão do processo de aprendizado, e, para que seja considerada uma artesã plena, a

mulher precisa ser capaz de modelar potes. Mais que isso, é ele que consagra a grande

artesã, a mestra. Existem ótimas ceramistas que, entretanto, não costumam modelá-lo.

Talvez por isso se explique a posição de menor prestígio que essas artesãs parecem ocupar

no grupo. Nessa realidade em que o pote se reveste de tanta magnitude, além de estar

impregnado pelo mana da doadora, se atentamos para o que diz Mauss acerca das dádivas,

não seriam essas razões suficientes para que a nora relute em tê-lo como presente?

Em face de um objeto de tamanho valor e significado, aceitá-lo como presente

inserido no sistema de reciprocidade generalizada não coloca aquele que o recebe, nesse

caso a nora, na condição de eterno devedor? Será isso que impede a doação do pote de

sogra para nora, ou, em outras palavras, a aceitação por parte da nora, do presente,

conforme descrito?

Ao que tudo indica, no Candeal existe uma correlação entre certas categorias de

presentes e de parentes. Dar e receber determinados presentes e não outros, como se

verifica em relação a pratos e potes, parece definir parâmetros para as relações sociais.

143

Sogra e nora são parentes “até certo ponto”. Até o limite do “não-parente”. Pratos, panelas

e especialmente potes falam isso. E mais, são instrumentos que estabelecem esses limites.

Essa afirmação é corroborada pelo tipo de conduta que parece prevalecer entre nora

e sogra no Candeal, ao qual se aplica o termo “evitação”, conforme descrito por Radcliffe-

Brown (1973), para quem a análise da realidade de povos primitivos revela que a relação

de parentesco entre um homem e seus sogros ou entre uma mulher e os pais de seu marido

é quase sempre marcada pelo visível respeito e pelo constrangimento. Isso se deve à

diferença de classe de idade entre genro e nora e seus sogros, condição que se acentua nos

casos em que o casamento se dá entre grupos exogâmicos, resultando numa situação de

ambivalência, pois envolve indivíduos, em princípio, estranhos, talvez mesmo inimigos

potenciais e que são, ao mesmo tempo, pessoas amigas, tanto que legaram seus filhos nessa

aliança.

Como afirma o autor,

um casamento implica reajustamento da estrutura social pela qual as relações da mulher com sua família são grandemente modificadas e ela entra em nova e muito íntima relação com seu marido. Este é ao mesmo tempo posto em relação especial com a família da esposa, para a qual, contudo, é um estranho (Radcliffe- Brown, 1973:117)

Essa situação de estranhamento é vivida pelos dois lados e envolve não apenas

marido e mulher, mas as duas famílias – e nelas os sogros ocupam posição central – que

passam a se relacionar pelo casamento. E, segundo Radcliffe-Brown, a situação de

estranhamento não se dissolve com o casamento, constituindo-se numa disjunção social,

que pode implicar divergência de interesses, conflito e hostilidade. E como é possível

encerrar, ou pelo menos manter sob controle, a situação de disjunção?

Para se lidar com tal situação, de acordo com o autor, as sociedades encontraram

duas formas de conduta: a jocosidade e a evitação. Enquanto as relações jocosas ou o

“parentesco por brincadeira” se caracteriza pela mútua licenciosidade e pelo aparente

desrespeito entre as partes, a evitação como modelo de conduta prescreve a adoção do

respeito recíproco e a limitação do contato pessoal direto entre elas.

Adam Kuper (1978), ao comentar a proposição de Radcliffe-Brown, esclarece

haver dois tipos gerais de comportamento associados ao parentesco e que estão contidos

nas oposições: respeito versus familiaridade e gracejo versus evitação, sendo que este

último é característico do relacionamento entre certos parentes e afins que não pertencem à

mesma linhagem.

144

São formas extremas de familiaridade e respeito... a evitação é mais típica das relações entre membros de gerações alternadas, entre homens e mulheres e seus sogros. Mas tanto o gracejo como a evitação servem a um propósito semelhante: ambos protegem a delicada relação entre pessoas que estão unidas por um conjunto de vínculos mas divididas por outros; por exemplo, entre os membros de diferentes linhagens que estão aliados pelo casamento (Kuper, 1978:79).

Se abstrairmos a condição de linhagens diferentes citada por Kuper e pensarmos em

termos de grupos sociais distintos, mas da mesma forma exogâmicos, perceberemos

vigorar no Candeal o modelo do relacionamento por evitação a definir as regras de conduta

entre sogra e nora. Regras essas que, ao impor o distanciamento formal das relações

sociais, prescrevem também o princípio da “reciprocidade equilibrada”, nos termos

descritos por Sahlins (op. cit.: 130), pelo qual a nora efetivamente paga em espécie à sogra

pelo pote comprado.

Portanto, “eu consumo porque faço” e “eu consumo porque ganho” são frases

hipotéticas que possibilitam a presença e a circulação da louça pelas famílias produtoras e

pela localidade do Candeal como um todo. Nesse nível de consumo local existe outro

princípio que, embora de importância mais reduzida, não deixa de se fazer presente. Ele se

encontra na expressão também hipotética “eu consumo porque compro”. O fato de a nora

adquirir por compra o pote feito pela sogra torna real a afirmativa.

De acordo com o quadro abaixo, a compra da louça de barro para consumo interno,

embora presente, é mecanismo pouco utilizado no Candeal, representando 6% do total de

peças que ali circulam. O dado, bastante inexpressivo quando comparado à taxa de

autoconsumo (64%) e de doações (27%), tem razão de ser se considerarmos tratar-se de

um universo em sua quase-totalidade formado por ceramistas e no qual predominam as

relações de parentesco. Como afirmam, “aqui é tudo parente”, e, como tal, nesse universo

sobressai a dádiva como forma de transferência do conhecimento acerca da técnica de

fabricação dos objetos artesanais, de propriedade e de uso dos mesmos. De fato, a compra

e venda se efetivam entre indivíduos que podemos classificar como parentes afastados ou

não-parentes.59

A venda dentro da comunidade, implicando transação entre não-parentes ou entre

parentes distantes ou não aliançados em conjunturas específicas, é feita com potes,

quartinhas e panelas para cozinhar. Como vimos, os demais objetos se transformam em

presentes, permanecendo na categoria dos bens de pouca ou nenhuma importância.

59 É o caso dos objetos comprados pelos migrantes pernambucanos que se instalaram no local e que não tinham parentes na comunidade.

145

Acesso à louça, segundo as unidades familiares

forma de acesso total de peças percentual produção própria 98 64 doação 42 27 compra 9 6 produção em meia60 4 3 Total 153 100

Fazer, ganhar ou comprar são, portanto, as formas consagradas e legitimamente

reconhecidas pelo grupo de apropriação de louça produzida no local.

O presente constitui também um mecanismo de distribuição da louça excluída do

sistema comercial de compra e venda. A atividade de produção apresenta considerável

margem de perda, que é verificada após a queima. Acidentes com a louça no momento da

modelagem, como a quebra de um objeto, fazem com que se perca o tempo de trabalho

despendido na feitura daquele objeto, no entanto, a matéria-prima (o barro) é, nesse caso,

integralmente reaproveitado. Já com os objetos danificados após a queima isso não é

possível, pois o barro sofre um processo irreversível ao se transformar em cerâmica. Daí

ser a queima um momento de cuidado especial, tensão e muita expectativa. Nunca se sabe

o resultado do trabalho enquanto não se conclui o processo. Ao retirar as peças do forno, a

artesã poderá ser surpreendida desagradavelmente com a perda total de seu trabalho, ou vê-

lo ser satisfatoriamente recompensado pelo aproveitamento integral da produção. A perda

total se coloca mais como uma possibilidade teórica do que como um dado de realidade,

uma vez que geralmente o que se constata é o aproveitamento quase integral da produção.

Entretanto, pode acontecer que algumas fornadas apresentem peças com pequenos defeitos

que inviabilizem sua comercialização, embora não seu uso. Peças tortas ou com a borda

lascada (muitas vezes devido ao mau manuseio) ficam destinadas a alimentar o sistema de

presentear.

Existe ainda um quarto princípio que assegura o acesso aos objetos de barro entre

os moradores na localidade e que pode ser referido pela frase: “eu consumo porque roubo”.

Esse princípio é impossível de ser equacionado como tal, uma vez que ninguém se

60 A produção em meia, que aparece aqui como dado estatístico, ganhou maior importância a partir da construção do galpão onde as ceramistas se encontram para a feitura das peças. Estar juntas, num mesmo espaço físico, tem induzido ao trabalho conjunto, forma de produção associativa que, em parte, é decorrente das avaliações promovidas pelos agentes do Programa de Apoio a Comunidades Artesanais.

146

reconhece no ato que tem reprovação pública.61 O roubo, embora ocorra e seja uma

possibilidade real de consumo, por ser um ato moralmente condenado não é socialmente

assumido, sendo objeto de processo de acusação em situações de conflito e de

desentendimento entre os moradores do Candeal.

Em fevereiro de 2004, chegando a campo, encontrei todos extremamente agitados.

Nos dois últimos meses o corpo policial baseado em Cônego Marinho havia comparecido à

Olaria em três ocasiões distintas, atendendo a solicitações de seus moradores que se

queixavam de que alguns indivíduos da comunidade, associados a outros do povoado do

Candeal, estavam causando problemas à vida de todos, provocando brigas e roubos no

galpão, de onde retiravam peças com que compravam cachaça nas vendas locais. Dois

homens eram nominalmente citados como aqueles que mais criavam conflitos, embora

cerca de seis pessoas, homens e mulheres fossem nomeados como os alcóolatras

problemáticos do local. Repreendidos pelos policiais, que também foram às vendas

apontadas como aquelas que vinham receptando os objetos roubados e promovendo o

escambo, os infratores não foram detidos, e o caso não teve desdobramento pois ninguém

registrou queixa formal pelo que vinha acontecendo.

Em resumo, na Olaria os objetos de uso doméstico movimentam a vida social.

Presentes no cotidiano daqueles que os fazem e que também os consomem, eles preenchem

funções que estão ligadas à reprodução física e simbólica do grupo de moradores do local.

Esses objetos, bens de uso cotidiano, constituem um sistema hierárquico porque possuem

diferentes graus na escala de valores local. Na forma de potes, pratos, panelas, travessas,

têm diferente valor monetário e simbólico, ocupando lugares distintos no sistema de

representações de produtores e usuários. Mais do que isso: enquanto um sistema, de

“objetos” passam a “sujeitos” da vida social e ordenam as relações entre os indivíduos,

também classificando e hierarquizando quem os produz e quem os usa.

61 Na tipologia de Service, retomada por Sahlins, o roubo é definido como um caso extremo de reciprocidade negativa, aquele em que a tentativa de se conseguir algo não se faz acompanhar pela doação de algo em troca (Sahlins, op. cit.: 130).

147

Capítulo 4 – O consumo regional

– O senhor andava pelo Candeal quando era pequeno? – Andei. Conheci essas pessoas antigas. – E eles já faziam louça? – Já. Era a profissão. Faziam telha, tijolo, panela, prato, xicrinhas, aqueles pratos de barro grandes, tacho grande. Minha mãe encomendava muito aquelas panelas grandes, pra encher de leite pra fazer queijo e requeijão, pra essa Emídia e Leolina. – E sua mãe fazia isso para vender? – Para consumo e vendia, né? – E o pessoal do Candeal, fazia louça para vender? – Para vender. – Eles mesmos que vendiam ou tinha alguém que ia lá, comprava e saía vendendo? – O pessoas de fora ia comprar lá. – Naquele matão todo? – Todo. Naquele tempo não tinha transporte. Iam pessoas de fora e compravam cargas nos burros e conduziam para sair vendendo pra outros lugares, para fora. – O senhor sabe onde eles iam vender essa louça? – Em Januária, pelo Brejo, Bonito [de Minas], Borrachudo, pra cá pra Cruz [dos Araújos], Sapé, aqui em Cônego Marinho, Peruaçu. Por todo o canto. – Que época foi isso? – Isso eu conheci em 1935, eu era criança, e 1940, quando eu conheci lá já era desse jeito. Em 1930 já era assim. – E o senhor morava onde? – Eu morava com meus pais lá na fazenda, lá perto. – E usava essa louça em casa também? – Se queria usar, usava. – Mas na casa do senhor tinha? – Tinha panela, às vezes para fazer queijo e tinha pote. Minha mãe gostava muito de panela de barro para fazer requeijão e queijo e os potes para esfriar água. Enrolava eles com um pano molhado e eles esfriava a água. Conservava a água geladinha. Eles fabricavam telhas e tijolos e aqueles ladrilhos para colocar em casa, para fazer chão.

O diálogo acima é parte de entrevista que, em fevereiro de 2004, fiz com um senhor

de 74 anos, morador na sede do Município de Cônego Marinho onde, durante muitos anos,

até que se aposentou, fora responsável pelo cartório local. Em certo sentido, o trecho

sintetiza as questões que serão explicitadas no presente capítulo. Refere-se às maneiras de

comercialização, ao tipo de objeto mais consumido e a seu uso numa ampla região que

extrapola em muito os limites geográficos do Candeal e mesmo do Município de Cônego

Marinho. Aborda também a questão do tempo. É um dos raros depoimentos em que o

entrevistado revelou precisão quanto à data de suas observações: as décadas de 1930 e

1940.

No decorrer da pesquisa, quando indagadas acerca do tempo em que se deram os

acontecimentos a que estavam se referindo, as pessoas se reportavam ao passado ou ao

presente, sem utilizar marcos objetivos que pudessem revelar datações precisas. A

referência se fazia pelo uso de expressões como “há muito tempo”, “naquele tempo”,

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“antes” ou “antigamente”, quando queriam se referir a fatos pretéritos, e “agora” e “hoje”,

ao falar do presente. Em que momento se dá a ruptura entre esses tempos, se é que existiu

tal ruptura, qual é o tempo de agora, quando era antigamente são questões a que não sou

capaz de responder. Se é que são passíveis de pesquisas e respostas.

Lévi-Strauss (1976) tece considerações interessantes a propósito das diferentes

formas de temporalidade. Segundo ele, haveria um tempo mítico que é de natureza

diferente do tempo histórico. O tempo mítico, que se refere a um passado muito distante, é

o tempo dos ancestrais, dos criadores da cultura, daqueles que deram forma a muitos

componentes da sociedade e à própria sociedade. Esse tempo, que explica, ou situa, as

origens da vida social, se caracteriza pela sincronia. “Naquele tempo”, as coisas eram

assim, estabelecidas, permanentes, eternas. Existe outra maneira de medir os

acontecimentos que é diferente desse tempo. É o tempo histórico. Porque sua natureza é

feita exatamente pelo registro de acontecimentos que se sucedem ou se repetem, o tempo

histórico é linear ou cíclico. Um tempo progressivo, de percepção de mudanças, de

transformações. Um tempo diacrônico. Sincronia e diacronia, colocadas nesses termos, não

são categorias que se antagonizem e se excluam. Elas podem até vir a ser complementares,

como se pode perceber nos mitos, a matéria por excelência do passado sincrônico, ao se

expressarem nos ritos que se atualizam no tempo histórico presente.

Neste sentido, pensar o “antes”, “o antigamente”, “os tempos antigos”, conforme

referências dos moradores da Olaria corresponde à volta à temporalidade mítica do grupo,

em que estão sua origem e o surgimento do ofício do barro. Ao fazê-lo, os moradores não

estão operando com a noção de temporalidade histórica, e, nesse sentido, a expressão

“naquele tempo era assim”, como dizem, atesta a imutabilidade do tempo passado

sincrônico. É especificamente essa temporalidade, que explica a origem de tudo, que,

segundo Lévi-Strauss, possibilita pensar o tempo presente definido pelo reconhecimento

do fluxo histórico. Segundo o autor, é pela referência à sincronia, marca de um tempo que

é sempre o mesmo, que se apreende a mudança do tempo, a diacronia. O morador da

Olaria distingue o agora, que está sempre mudando e predispõe o devir, e alguma coisa que

não é o agora, que está no passado, o qual é sempre imutável.

Assim é que, segundo testemunhos colhidos, “há muito tempo” a louça produzida

no Candeal destina-se não apenas ao uso interno da comunidade, mas também ao consumo

das populações de uma região mais ampla que circunda a localidade. Tempo e também

espaço. E, embora não se possa determinar com exatidão a extensão da área geográfica

tradicionalmente alcançada pela produção local, pelas observações que fiz nas viagens

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pelos municípios vizinhos a Cônego Marinho e também de acordo com os depoimentos

dos “compradores” que se encarregavam da revenda de louça, como se verá mais adiante,

pode-se constatar que a produção do Candeal se distribui não só pelos municípios que se

situam próximo a Cônego Marinho, como Januária, Bonito de Minas, Pedras de Maria da

Cruz e Itacarambi, mas também atinge centros mais distantes, como Manga e Montalvânia

e até a Reserva Indígena dos Xacriabá, no Município de São João das Missões, a cerca de

100km do Candeal, como vimos na primeiro capítulo.

Essa ampla área, em que predominam os objetos do Candeal, soma-se a um

território maior em que estão presentes objetos provenientes de outros pólos cerâmicos. No

período de 1992 aos dias atuais, fiz várias viagens que cobriram uma vasta área ao longo

do rio São Francisco e que permitiram colher dados em campo que apontam para o que

poderia ser denominado uma “geografia da louça de barro”.

A análise desses dados desenha um mapa no qual fica patente a hegemonia de

cerâmicas de procedências variadas sobre bases territoriais específicas nos estados de

Minas Gerais e Bahia, com o seguinte perfil:

1- cerâmica de Passagem: cobre a própria localidade de Passagem e seus arredores

indo até Xique-Xique e Barra, de onde se distribui para outros municípios à margem do rio

São Francisco e do interior;

2- cerâmica de Barra: também conhecida como “louça da Caatinguinha”, está

presente numa grande área, dominando os municípios baianos que se distribuem ao longo

do médio São Francisco até próximo à fronteira com Minas Gerais;

3- cerâmica do Candeal: cobre a área que tem início na fronteira dos estados da

Bahia e Minas Gerais, indo até a proximidade do Município de São Francisco, em território

mineiro. Essa mesma cerâmica, afastando-se das margens do rio, avança em direção a

Montes Claros, fazendo fronteira com outros pólos de produção de louça;

4- cerâmica de Janaúba: sua área de ocorrência, por um lado, vai até Montes

Claros e, por outro, se estende em direção ao Vale do Jequitinhonha, onde se encontra com

objetos modelados nos diversos pólos que integram esse vale e que lá predominam;

5- cerâmica de Buritis do Meio: a produção sobe o rio, a partir do Município de

São Francisco em direção à bacia do rio Urucuia.

Uma pesquisa acerca do consumo de louça de barro nos municípios limítrofes às

áreas visitadas certamente permitiria redesenhar o mapa traçado, ampliando suas divisas.

150

Ao descrever áreas e fazer uma espécie de cartografia da cerâmica popular,

deparamo-nos com a impossibilidade de estabelecer limites rígidos que delimitem de modo

preciso cada uma dessas áreas. Seus contornos se confundem de modo a criar regiões

híbridas em que mais de um exemplo de cerâmica pode estar presente. Isso ocorre

geralmente em cidades de maior expressão econômica e populacional, quase sempre sedes

de municípios, e que são pólos aglutinadores de toda uma região. Constata-se esse fato em

locais de intenso comércio como, por exemplo, nos mercados municipais de cidades como

Xique-Xique, onde é possível encontrar a louça de Passagem e de Barra, e em Montes

151

Claros onde se encontram peças provenientes de Janaúba, Buritis do Meio e de vários

outros pólos produtores do Vale do Jequitinhonha.

Embora proceda à cartografia da louça popular conforme sua distribuição por um

dado território, não estou interessado, em absoluto, em realizar uma análise difusionista de

acordo com o modelo preconizado pela antropologia clássica, como o fez C. Wissler no

também clássico Man and Culture (1923 apud Mercier, 1974: 61). Não é meu propósito

definir traços culturais, situando-os em complexos e áreas que sejam ao mesmo tempo

marcos geográficos e referências de culturas compartilhadas. Ao fazer o registro da

presença e da distribuição de louças de barro de distintas procedências em territórios

geográficos contíguos, ao proceder ao recorte da área e mapear o território, este trabalho

aponta em duas direções: primeiro, é necessário relativizar a designação “local” quando

aplicada ao consumo da cerâmica popular tradicional e, em especial, à louça do Candeal.

Se esses objetos possuem efetivamente um lugar de origem, seu consumo ultrapassa o

mundo das relações face a face que se verificam entre produtores e consumidores diretos.

Ao romper as fronteiras locais ampliam também o “mundo social” de seu pertencimento,

conforme conceito cunhado por Becker, para quem, como já dito, a noção se aplica a uma

“totalidade de pessoas e organizações cuja ação é necessária à produção do tipo de

acontecimento e objetos caracteristicamente produzidos por aquele mundo” (Becker,1977:

9);62 em segundo lugar, e também da maior relevância, é indicar que, para se expandir por

um vasto território, cada cerâmica requer um grande conjunto de atores, implicando a

constituição de uma ampla rede de relações sociais. Nesse sentido, também aos objetos

pode ser imputada a designação de “mediadores”. Nota-se ainda que, numa perspectiva

mais geral, a constatação da presença de objetos cerâmicos cobrindo grandes áreas

geográficas aponta para a relevância da produção artesanal de louça, mesmo na atualidade,

quando se poderia supor no país a predominância massiva dos objetos de origem industrial,

conforme apontei no capítulo anterior acerca das preocupações de Cecília Meireles e da

rede de folcloristas que se estruturou no Brasil.

A louça do Candeal: mediação entre mundos

A noção de “mediação” tem sido empregada especialmente para explicar o papel

de indivíduos que, ao transitar entre “mundos sociais” (Becker: 1977 e 1982) distintos, faz

a ponte entre eles e, se não abole as fronteiras, pelo menos as neutraliza, tornando

menores as distâncias sociais existentes.

62 Voltarei à noção de mundo social no próximo capítulo.

152

Segundo Michel Vovelle (1987), porque se coloca “entre” as culturas da elite e do

povo, o mediador cultural pode ser associado ora a uma, ora a outra camada social, assim

como pode se revestir de visibilidade própria porque assume posição ímpar entre culturas.

Maria Laura Cavalcanti, baseando-se na colocação de Vovelle, utiliza a noção e, ao

pesquisar o desfile das escolas de samba no Rio de Janeiro, vê o carnaval carioca integrado

por múltiplos atores que desempenham o papel de mediadores entre os diferentes níveis

socioculturais que constituem esse mundo cuja primazia o carnavalesco assume,

colocando-se em lugar de evidência (Cavalcanti, 1994). Prosseguindo nessa linha de

pesquisa, em outro trabalho, a autora aborda a escola de samba como um espaço “do

permanente diálogo, visto não necessariamente como harmonioso entendimento, entre as

chamadas cultura popular e de elite”, para pensar o carnavalesco “como um mediador

cultural e as escolas de samba como um lugar de ampla interação entre camadas e

segmentos sociais diferentes na complexa sociedade urbana contemporânea” (Cavalcanti,

1999: 30).

Outros antropólogos brasileiros, especialmente os que trabalham com o universo

urbano, com toda a complexidade e diferenciação de camadas sociais, têm visto na noção

de “mediação” um instrumento útil para a análise da realidade social. A esse respeito,

afirma Gilberto Velho que:

Um outro papel que assume importância extrema dentro da complexidade sociocultural analisada, é o de mediador cultural. Trata-se do papel desempenhado por indivíduos que são intérpretes e transitam entre diferentes segmentos e domínios sociais. De certa forma, é o oposto sociológico do homem marginal esmagado entre dois sistemas culturais. Esses brokers, mediadores, tornam-se especialistas na interação entre diferentes estilos de vida e visões de mundo. Embora, na origem, pertençam a um grupo, bairro ou região moral específicos, desenvolvem o talento e a capacidade de intermediarem mundos diferentes... Esses mediadores não são seres desenraizados ou marginais no sentido clássico. Desenvolvem a capacidade de lidar com dois ou mais códigos. Seu sucesso profissional e pessoal depende de seu desempenho como intermediários (Velho, op. cit.: 81-2).

Luiz Gonzaga é um desses mediadores que “costuraram” distintos tecidos sociais,

fazendo do baião “um dos gêneros referência da diversidade musical brasileira” (Vianna,

2001: 84). Para Letícia Vianna, ao transitar pelo mundo da música, o “rei do baião” recriou

a vida do sertão, levando aos indivíduos do Brasil urbano uma determinada visão do

cotidiano rural nordestino, do drama da seca e o sofrimento do migrante que vive nos

grandes centros do Sudeste do país.

Pensar a questão da mediação no contexto dos objetos cerâmicos do Candeal é

também falar dos intermediários, localmente designados pelo termo “compradores”, que

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são responsáveis pelo comércio na região em que o objeto circula. Não obstante, acredito

que a noção também possa ser estendida à própria classe dos objetos cerâmicos, que assim

se transformam em sujeitos, aos quais atribuo o papel de mediadores entre mundos sociais

distintos. Nesse caso, também é ampliado o universo em que a mediação se dá: não apenas

o meio urbano, mas principalmente o mundo rural de ampla região se transforma no

mundo a ser observado e onde a cerâmica tradicional tem atuado como agente de ligação

entre indivíduos e segmentos sociais diferenciados.

Com grande margem de segurança, é possível afirmar a presença da louça do

Candeal nos municípios que se estendem ao longo do Alto Médio São Francisco, onde

podem ser percebidos como “mediadores” e supor sua distribuição por grande extensão do

norte mineiro, atingindo talvez até mesmo os municípios do Estado da Bahia situados na

região de divisa com o Estado de Minas Gerais.

Não é de estranhar, portanto que, por essa vasta região, chegando numa venda de

beira de estrada ou numa residência, principalmente das zonas rurais, nos deparemos com

um pote que, devido à morfologia a que se associam os motivos decorativos, seja

facilmente identificável como tendo origem no Candeal.

Da Olaria para fora: passado e presente

Incorporando a temporalidade mítica nativa, eu diria ser de “muito tempo” então a

distribuição dessa louça pelo território. No continuum da temporalidade histórica, pessoas

mais idosas e moradores da região, ainda que não residam no Candeal, relembram épocas,

há três, quatro ou mais décadas, quando iam até a Olaria em busca dos produtos

confeccionados em barro necessários à vida diária, como telhas e tijolos. Aproveitando a

viagem, adquiriam também potes para água e louça para preparo e serviço de alimentos.

Embora qualquer pessoa pudesse ir até o Candeal em busca da louça de que

necessitava, não parece que tal fato fosse costumeiro. As dificuldades do deslocamento

eram grandes devido à condição precária dos caminhos de acesso ao lugar, sendo muito

comum que, ao se referirem à situação passada, as pessoas mencionem o isolamento do

local.

Eu me lembro quando a gente ia lá comprar telha com carro de boi. Fazia encomenda antes. E meu pai sempre aproveitava para trazer uma louça pra casa. O transporte era de carro de boi. Vinha com muito cuidado. Gastava seis horas de viagem do Candeal ao Cônego Marinho com carro de boi. Também não tinha estrada e nem carro por aqui. Os carros a gasolina aqui começou em 1958 (homem, 52 anos, comerciante e fazendeiro, residente na sede do município).

154

Relatos que se referem às décadas de 1930 a 196063 dão conta de que, além da

venda realizada no próprio Candeal, alguns artesãos se encarregavam eles mesmos da

distribuição da louça pelas regiões vizinhas. O transporte era feito em tropas de animais

que deixavam a localidade em busca de consumidores, principalmente da cidade de

Januária, como recorda dona Odília, uma das artesãs mais idosas:

Naquele tempo, fazia e vendia tudo aí pra esse povo daí do Candeal. Finado Josino comprava tudo. E o povo saía pra ir vender também. Eu mesmo, do Fabião pra cá, no Pandeiro, tudo já andei vendendo. Botava as carguinhas no jegue e lá se ia. Num animal sozinho ia seis potes: dois de um lado, dois de outro e dois no meio. Pra Januária nós ia com as carguinhas no jegue (dona Odília, artesã, idade estimada 70 anos).

Sair do Candeal para comercializar cerâmica não era uma empreitada fácil.

Transportar algumas dezenas de potes, pratos, moringas, panelas e outros objetos de menor

porte, carga pesada e, ao mesmo tempo, frágil, exigia planejamento, disposição, animais

vigorosos e cuidado especial no acondicionamento dos objetos em caçuás, grandes cestos

trançados em cipó, ou em esteiras de buriti, sob risco de quebra de toda a carga. Talvez

devido a esses fatores, alguns artesãos não se aventurassem a estar constantemente

empreendendo a viagem, embora vez por outra enfrentassem os desafios de sua realização.

Outros iam à cidade com regularidade e freqüência maiores, como o relata dona Arlinda

(D12), também artesã, nascida em 1942:

Nós fazia as cargas aqui nos animais e ia levar as cargas lá pra João de Cláudio, das Macaúbas, que comprava muito. Quando não levava lá, nós cortava com três, quatro cargas de jegue, de cavalo, pra Januária e ia vender lá. Dormia pro caminho, aí pro Sobradinho. Nós pusia dentro das bruacas ou nas esteiras. Nas esteiras nós enfardava tudo. Um jegue levava seis potes. Nos outros a gente tinha que levar os pratos, moringas, panela, tudo junto. Ia com uns três, quatro, cinco jegues. Chegava lá, nós vendia na feira, no mercadinho que tinha lá porque de primeiro lá tinha uma feira. Tirava os potes e pusia tudo lá assim. E o povo vinha, um queria e o outro queria. Comprava tudo. Era assim que nós vendia. Nós vinha de lá, enchia a carga de coisa e voltava pra trás. E isso nós fazia todo mês. Tinha mês de nós ir duas vezes. Quando não dava nós vendia aqui mesmo.

Como sair do distante Candeal não era um empreendimento fácil, uma

pessoa raramente fazia sozinha o percurso. Em geral vários indivíduos se juntavam para a

empreitada, da qual participavam duas, três ou até mesmo mais unidades familiares. A

participação masculina era fundamental nesse momento. Os homens organizavam o

empreendimento, cuidando dos animais, acomodando a carga no lombo dos burros,

63 A partir dos anos 60 o meio de transporte mais comum passou a ser o caminhão, a caminhonete e similares movidos a óleo e a gasolina. O carro de boi e outros meios de transporte assemelhados, movidos a tração animal, no entanto, não desapareceram e ainda hoje são comuns na região.

155

conduzindo-os pelos caminhos. Mesmo que as mulheres, artesãs, estivessem presentes,

uma vez chegando à cidade, eram eles que tomavam a frente das negociações.

Eles sabe mais. Negoceia mais. Vão mais na cidade. Então é mais fácil pra eles. E nós não sai tanto daqui pra negocear. Então é mais difícil pra nós vender. Isso agora que nós vai muito em Januária. Imagina antes. Aí mesmo é que nós dependia dos home pra ajudá, pra vender a louça lá (Santinha, artesã, 46 anos).

Negociar a louça em Januária também informa acerca dos papéis sociais

desempenhados por homens e mulheres no Candeal contemporâneo. Se, por um lado,

existe uma complementaridade que leva à interdependência entre os gêneros, por outro,

não se pode deixar de perceber a posição subordinada a que na relação está colocada a

mulher. Essa situação em que ela se vê tolhida de conduzir com plenitude todo o processo

de produção de louça, da modelagem à comercialização fora da comunidade, era mais

acentuada no passado. Atualmente, muitas mulheres já saem para comercializar sua

produção, o que, certamente, trará mudanças no quadro da divisão sexual do trabalho.

A viagem até Januária, cuja distância hoje é de 42km por estrada de terra nem

sempre em condições de tráfego, no passado era feita por picadas no mato, cruzando áreas

de cascalho e pedras soltas, em alguns pontos bastante acidentadas, a exigir atenção, de

modo que nenhum acidente ocorresse e pusesse a perder toda a carga. O percurso era feito

em dois dias, o que implicava um pernoite, conforme relatou dona Arlinda, muitas vezes a

céu aberto sob um pequizeiro, um umbuzeiro ou qualquer outra árvore frondosa. Caso a

partida fosse dada muito cedo, quando o dia ainda nem começara e o céu estrelado ainda

estivesse escuro, era possível alcançar a cidade ao anoitecer e lá pernoitar.

Os preparativos da viagem tinham início na véspera, com a embalagem das peças

que eram embrulhadas em esteiras de palha de buriti ou acondicionadas nos caçuás,

calçadas com capim seco, folhas de bananeira ou palha de milho. Como relata Arlinda, “o

que eles levavam pro mercado em Januária eram os potes, as botijas, as quartinhas, os

pratos. Levavam com tropas, levavam nas cargas de burro, jegue. Não era nem de carro de

boi, nem de caminhão”. É essa a tônica dos relatos sobre a viagem de “antigamente”.

Uma vez chegado à cidade, o grupo se dirigia ao mercado municipal e ao cais do

porto, onde permanecia por um ou dois dias para comercializar a produção.

Zanoni Neves (1998:141-143) reporta-se ao escambo que, desde um passado

longínquo até meados do século 20, ao longo do rio, era praticado pelos barqueiros do São

Francisco com a população regional, tanto urbana quanto rural. Referindo-se mais aos

produtos da agricultura e àqueles resultantes das indústrias caseiras de tecnologia

156

tradicional, como cachaça, rapadura e farinha de mandioca, o autor nomeia também a

cerâmica como integrante do rol dos artigos que eram objeto das transações. Embora, nesse

caso, sua referência seja à “louça da Caatinguinha”, pólo produtor do Município de Barra

do Rio Grande, no Estado da Bahia (ver Lima, 1996), tomando por base os depoimentos

dos artesãos, é possível supor a inclusão também da cerâmica proveniente do Candeal no

repertório dos produtos comercializados pelos barqueiros do Médio São Francisco. A essa

rede de comercialização, que incluía os próprios artesãos, tropeiros e principalmente

barqueiros, podemos creditar a dispersão da louça do Candeal por uma região tão ampla

quanto a acima citada.

Da renda obtida com a venda das peças pouco chegava em espécie ao Candeal. A

ida à cidade era ocasião de adquirir os artigos não produzidos na comunidade: um corte de

tecido para roupa, querosene, sal, algum remédio para males que a medicina caseira não

dava conta, instrumentos de trabalho para a lida do campo, como enxada, foice e facão,

cachaça, panelas de ferro, munição para caça, anzol para pesca e outros itens necessários à

manutenção da vida familiar.

É importante notar que, como descreveu Zanoni Neves, grande parte das vendas

realizadas pelo artesão não resultava em dinheiro em espécie. Tanto as vendas feitas em

Januária quanto aquelas que aconteciam na própria comunidade, sob forma de escambo,

tinham, pelo menos, uma parcela paga em produtos:

O dinheiro aqui era raro. Era na mão de poucos. Naquela época era do mil réis. Quem tinha mil réis era bem difícil. Mais ainda do que hoje. Então, fazia assim: encomendava as telhas, dava uma parte do dinheiro e quando ia buscar as telhas a gente levava o dinheiro para pagar o restante. Sempre teria que deixar uma entrada para eles porque eles não tinham condições de comprar alimentação, as despesa, como se falava antigamente. Aí a gente dava uma parte em dinheiro. Eu me lembro que meu pai trocava muito era rapadura e queijo a troco de telha. Levava rapadura, as coisas que eles não tinham a gente vendia pra eles também. A vida era dessa maneira (Homem, 52 anos, comerciante e fazendeiro, morador na sede do município).

O sistema de escambo, embora mais referido ao passado, vigorou com grande

intensidade até pelo menos muito recentemente e ainda hoje é possível que ocorra. Benita

(D30) queixa-se relembrando a situação por ela vivida e que com certeza foi

experimentada por muitas mulheres, se não por todas, produtoras de cerâmica no Candeal:

Quando eu trabalhava direto em casa, eu vendia a louça, recebia direto as despesas da feira. Era só para a alimentação. Tinha situação difícil mesmo. Antigamente era difícil mesmo porque a gente trabalhava muito, fazia bastante, mas o pessoal comprava as peças bem barato. Se comprava, não dava o dinheiro pra gente. Comprava a troco de besteirinha. Era um quilo de arroz, um quilo de feijão. Não dava dinheiro de jeito nenhum. Às vezes, pra gente conseguir um troquinho, tinha que arrumar uma carga de potes, pôr nas

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bruacas, nos jegues e levava pra Januária. A gente vendia, tirava uns troquinhos e comprava alguma coisa. Mas aqui mesmo, eles nunca dava valor ao serviço. Só trocava a troco de besteira. Eu trabalhava por causa da situação que era difícil. Só para a alimentação. A gente não conseguia comprar nada, naquela época, de roupa, calçado. Só trabalhava mesmo, como diz o povo, pra viver. Às vezes chegava alguém não era pra comprar, era pra trocar a troco de farinha, arroz. Como a gente tinha situação difícil, precisava muito, então a gente trocava. Às vezes nem compensava mas a gente fazia. A gente vendia peça a troco de comida, antigamente. Hoje, é muito difícil trocar por comida. Só quando vem uma pessoa da roça e fala assim: “Vamos trocar? Você troca esse pote por feijão?”.

Ter acesso direto ao dinheiro, portanto, parece ter sido menos difícil quando as

vendas eram realizadas em Januária. Entretanto, ir à cidade para comercializar a louça era

um empreendimento que não se esgotava na transação econômica que a cerâmica

proporcionava para a artesã e sua família. Cada viagem era ocasião importante para o

grupo, e cada fato ocorrido, cada novidade vista, cada experiência vivida era assunto para

conversas de anos e anos seguidos. A viagem tornava-se parte de suas histórias de vida.

A cidade com suas ruas e seu casario, o burburinho tão próprio da vida urbana, o

trânsito de pessoas, os vapores, as barcaças que chegavam e deixavam o cais com suas

figuras de proa aterrorizante, o movimento de carga e descarga de mercadorias, tudo

passava a ser parte da experiência vivida pelo indivíduo e contribuía para que seu mundo

se ampliasse e, ao fazê-lo, fosse ressignificado.

Habitantes de um território de transição do cerrado para a caatinga,64 região de

seca, cortada por riachos intermitentes, nessas viagens, o que talvez mais se impusesse a

todos, de forma indelével, fosse a visão do rio São Francisco. O volume das águas que

distanciava as margens e fazia com que, a depender da época do ano, quase se perdesse de

vista o outro lado do rio,65 sua extensão, as grandes embarcações que por ele transitavam,

compõem o quadro das lembranças que são evocadas pelos moradores mais idosos do

Candeal quando a conversa revive na atualidade os “tempos de antigamente”.

64 De acordo com Neves, “Do ponto de vista da vegetação, a região pode ser classificada como área de transição do cerrado para a caatinga. Na área mineira do Médio São Francisco, predominam os cerrados. Mas os chamados carrascais, onde vicejam o marmeleiro, o umbuzeiro, a umburana, a favela, o ouricuri, são encontrados por quem percorre a sub-região a montante de Januária” (Neves, 1998:43). 65 “Antes da construção das grandes barragens, as cheias do São Francisco iniciavam-se em outubro e prosseguiam até março. Em abril, de um modo geral, já era tempo de vazante. Cabe esclarecer que, sendo uma região assolada pelo fenômeno das secas, nem sempre observava-se essa periodicidade ... É evidente que, na atualidade, este processo continua, mas bastante modificado, pois as barragens de Três Marias e Sobradinho alteraram consideravelmente o regime das águas.” (Neves, op.cit.:45)

158

Maria Bia (D8), nascida em 1936, aposentada pelo Funrural, artesã que hoje não

mais produz louça e há anos não sai da localidade, logo ao início da pesquisa indagava

muito acerca do Rio de Janeiro, cidade que sabia grande e cuja dimensão procurava

precisar comparando-a a Januária. É maior? Tem casas tão grandes? Na conversa,

confidenciava as impressões de suas primeiras viagens a Januária, daquele mundo tão

maior e diferente do que habitava, e que era seu parâmetro para pensar o Rio de Janeiro. O

Rio/rio é igual ao São Francisco? E o mar? E os barcos? Como andavam sobre as águas

sem afundar? Isso ela nunca entendera. Como as pessoas tinham coragem de entrar neles,

sem medo de afundar? Isso ela nunca faria. O medo não deixava. Mas o fascínio persistia,

revelando seu desejo e o pedido para que, numa próxima viagem eu lhe levasse uma revista

que tivesse o Rio/rio, o mar e os navios – grandes como aqueles que no passado vira em

Januária e com os quais muito se impressionara.

Maria Bia era ainda menina quando pela primeira vez foi a Januária. Porém,

menina crescida, pois nessas incursões não tomava parte criança muito miúda. O relato dos

mais velhos sinaliza para os 10 ou 11 anos como sendo a idade a partir da qual geralmente

a menina era incorporada a essas viagens, o que nos permite supô-las como um ritual de

passagem, parte de um momento especial da vida, a sinalizar o término da infância para a

mulher no Candeal. Parece que no passado assim como nos dias de hoje, é por volta dessa

idade que se introduz de forma cabal a menina no universo da cerâmica. Isso porque, como

já relatado, até então, seu contato com o barro se faz de maneira totalmente informal, pelo

convívio com esse universo porque é testemunha da atividade exercida pela mãe e por

outras mulheres da localidade e porque brinca com a matéria-prima, amassando-a e criando

pequenos objetos. Embora não haja uma ritualização formal que determine a passagem, é

159

por volta dessa idade que a menina é chamada a participar amiúde do processo, como já

descrito.

A primeira viagem da artesã a Januária, referência presente no discurso das

gerações mais velhas, que pode ser tomada como um marco em sua história de vida, como

um marco de passagem, teve sua importância diminuída nos últimos tempos. Nas duas

últimas décadas, ir a Januária tornou-se um acontecimento corriqueiro na vida de todo

morador da região. Já não há mais distâncias geográficas e culturais tão grandes a serem

vencidas.66 Existem ônibus que trafegam em dias alternados, além de carros particulares,

especialmente caminhonetes, que fazem o percurso diariamente. Pelo acesso rodoviário,

pelo rádio e pela televisão, esses mundos, se no passado foram de algum modo distantes,

tornaram-se nos tempos contemporâneos muito mais próximos. E na cidade não há mais

tantas novidades e surpresas. Nem mesmo o rio existe mais na imensidão das águas que

passavam por Januária. Assoreado como está, não há mais o grande São Francisco com as

cheias, barcaças e movimento do passado que tamanha impressão causaram em Maria Bia.

Naquele tempo, ia eu mais os primos. Ia mais a irmã, a finada Jove mais eu, cumadre Julião em vida dele, meu cunhado ia, Silvio meu primo, que é filho de Izidro, ia junto. Se tivesse dois cargueiro ia dois, se tivesse só três ia três. Era assim. A gente ia num dia e voltava noutro. Dormia lá, na casa de finado Cristino. Ele fez uma casinha mesmo de dormir. De dormir assim: aquele povo que lá chegasse tinha um lugarzinho de dormir. A gente dormia e no outro dia já vinha embora (dona Odília, artesã idosa).

No passado, como testemunha dona Odília ao se referir, no depoimento acima, aos

irmãos, primos, cunhados, compadres e amigos, as redes de parentesco e de amizade da

artesã constituíam o princípio segundo o qual se estruturava a viagem. Atualmente isso não

é mais vigente. Tornou-se muito comum que algumas artesãs viajem sozinhas e com certa

regularidade à cidade, para uma consulta médica, uma compra ou outra providência

qualquer. Nessas ocasiões ela aproveita a oportunidade para levar algumas caixas com

louça para vender. Outras vezes, mesmo sem que haja outras providências a serem tomadas

na cidade, a artesã se desloca até o mercado municipal para comercializar diretamente com

os lojistas a louça que produz. Mesmo que para isso contrate uma caminhonete que faça o 66 A partir de meados da década de 1990 o contato com o Candeal foi grandemente favorecido pela melhoria das vias de acesso à região. Onde anteriormente só havia pouco mais que uma picada, foi aberta uma estrada de cerca de 10km, ligando a localidade à sede do Município de Cônego Marinho. Duas outras estradas, passando pelas localidades de Marrecas e Olhos d’Água, com pouco mais de 30km de extensão cada, atualmente fazem a ligação de Cônego com Januária. Embora não pavimentadas e apresentando sérios problemas de tráfego, especialmente no período de chuvas quando por vezes o trânsito fica praticamente interrompido, as condições atuais de deslocamento na região são extremamente melhores que no passado. Minha primeira viagem ao Candeal, também marco de vida, ocorrida em 1992, deu-se segundo as condições antigas e foi com muita dificuldade que consegui chegar e sair de lá.

160

frete da louça, como aponta o relato de Teresa (E4), uma das artesãs mais ativas da

localidade, cujo trabalho de modelagem é diário:

Eu pago R$ 16,00 para ir em Januária, no carro de João Raimundo, um homem que tem aí na Cruz [dos Araújos]. Pago pra levar umas caixinhas. Porque se a gente não vai, não ganha o dinheiro. Então a gente prefere porque a gente leva as coisinhas e vende. É assim que eu faço. Em um dia levei até 18 potes e mais umas caixinhas pequenas de coisa miúda. Isso quando eu comecei a levar, que tava tendo saída. Porque um contratava, outro contratava e eu levava. E dava um dinheirinho até bom. Recebia as coisas [produtos alimentícios] ainda recebia um dinheirinho bom.

No entanto, encarregar-se da comercialização em mercados externos à comunidade

não pode ser tomado como regra geral que seja seguida por todas as artesãs. A maioria

delas, seguindo o modelo do passado, não se desloca com a produção, enfrentando

dificuldades em fazê-lo. Os motivos são encontrados na interrupção que isso demandaria

no processo de produção e no “abandono” das obrigações familiares que prescrevem caber

à mulher dar assistência permanente ao núcleo doméstico. Assim, quase sempre, modelada

a louça, a artesã aguarda a presença do consumidor para efetuar a comercialização.

No processo de venda da cerâmica, além da artesã que se encarrega de fazê-lo no

próprio local ou deslocando-se para Januária, outro agente, que é conhecido pela

denominação de “comprador”, dedica-se à comercialização da louça, atendendo mais

regularmente às necessidades de consumo da população regional. Geralmente residente em

localidades próximas, como o próprio vilarejo do Candeal, Cruz dos Araújos e a sede do

Município de Cônego Marinho, esse intermediário se dedica ao exercício concomitante de

múltiplas atividades, em especial o comércio, e reserva parte de seu tempo à venda da

cerâmica, com o que amplia consideravelmente a renda familiar.

É também antiga a sua participação como um dos agentes do processo de

produção/comercialização da louça do Candeal:

Tinha um velhinho aí, chamado Laurindo, que comprava sempre pra levar de jegue, com uma tropinha de jegue para levar. Amarrava uma esteira e levava seis potes por jegue. Chegava na Olaria aí, arranchava, o povo vinha vender, ele comprava e saía vendendo. Ele vinha com três a cinco jegues. Trazia queijo, requeijão e fazia troca. Chegava na sexta, ficava aí fazendo troca e, no domingo, arribava a carga e saía (antigo “comprador”, hoje aposentado, morador no Candeal).

Abastecendo o mercado externo, em especial a cidade de Januária, tanto no passado

como também nos tempos presentes, o “comprador” não limita sua ação a esse importante

centro de onde a comercialização se irradia. Ele cobre uma área maior, viajando por toda a

região, anteriormente com tropa de animais e nos dias atuais em caminhonete. A extensão

161

da área a ser percorrida varia muito, e a prática pode ter ou não certa regularidade. Alguns

“compradores” percorrem um circuito de comercialização geograficamente mais bem

definido e de acordo com certa periodicidade. Isso não significa que não possa haver

variações, o que se verifica quando o vendedor se aventura por novas áreas, na busca de

novas praças de mercado.

Porque o ritmo de produção das artesãs não é regular e intenso, porque o

“comprador” não dispõe de capital financeiro que permita constituir estoques de louça a

longo prazo, ele empreende a viagem a partir do momento em que consegue reunir um

volume considerável de peças cuja venda lhe possibilite auferir lucro, a despeito das

despesas que se vê obrigado a fazer para sair viajando pela região. Isso não significa que

não haja planejamento de toda a atividade e uma previsão que se cumpre no decorrer do

ano. O planejamento é feito a partir do conhecimento das melhores praças e épocas para

comercialização e, geralmente, se faz tendo em vista o calendário das festas que acontecem

nos municípios da região em diferentes datas do ano.

Eu levava pra Januária, pra Bonito de Minas, pro Riacho da Cruz, levava pra Vereda – um vilarejo encostado no Peruaçu. Quando tinha festa aqui no Bonito eu ia pra lá com o carro cheio de pote pra vender pra esse povão aqui. Ia pras festas no Bonito, São José, Dourado, Forquilha. Então rodava esse mundo fazendo essas coisas. Eu comprava a quantidade de 100 potes de uma vez, que era um carro completo. Era 100 potes, fora panelinha, quartinha, pratinho. Isso era uma D20 carregada. Não tinha geladeira, então água gelada era nos potes. Vendi muito (“comprador”, cerca de 60 anos, dono de uma venda em localidade próxima).

As festas populares e comunitárias são acontecimentos que agregam verdadeiras

multidões na região. Geralmente elas se organizam em torno das comemorações a um

santo da Igreja católica, padroeiro de uma cidade, ou a quem foi dedicada uma igreja, uma

capela. São, ao mesmo tempo, ocasiões de cumprimento de votos religiosos e de lazer,

oportunidade de encontros e de alianças, de estreitamento de laços de parentesco e de

amizade, de consciência de pertencimento a grupos específicos ou, ao contrário, de

percepção do não-pertencimento a tais grupos. São momentos que realizam o que Marcel

Mauss denominou “fato social total”, “o instante fugidio em que a sociedade e os homens

tomam consciência sentimental deles mesmos e de sua situação face a outrem” (Mauss, op.

cit.: 180). Congregam fenômenos que são ao mesmo tempo jurídicos, econômicos,

religiosos, estéticos, morfológicos, etc. E, dessa polissemia de momentos que comportam

expressões variadas, implicam diferentes ações e agregam diferentes interesses e

significados, participa o “comprador”. Indo de festa em festa, de cidade em cidade, leva

consigo a louça do Candeal que adquiriu para comercializar e se torna o principal

162

distribuidor desses bens pela região do norte mineiro, qual argonauta trobriandês a perfazer

um amplo circuito de viagens.

Louceiras e “compradores”: vivendo uma “situação social”

Mas, afinal, qual é a natureza das relações que se estabelecem entre as artesãs e

esses intermediários, elos dos mais importantes na cadeia de comercialização da louça do

Candeal? Algumas delas expressam em seus discursos a complexidade das relações sociais

existentes entre eles. Não há um discurso geral que coloque o intermediário numa posição

única, seja ela favorável ou desfavorável, na relação com a artesã. Embora só exista uma

categoria para designá-los – “comprador” – isto não significa que os indivíduos assim

identificados sejam percebidos da mesma maneira por todas as artesãs. Embora se trate de

uma categoria aparentemente homogênea, nela estão reunidos indivíduos que gozam de

posições diversas e, como tal, são percebidos e representados de modo diferenciado pelas

artesãs.

O trabalho de campo viabilizou contato com vários indivíduos que eram, ou haviam

sido durante um determinado período de suas vidas, “compradores”. Com alguns deles

pude estabelecer uma relação mais continuada, entrevistá-los mais de uma vez e colher

seus depoimentos acerca da atividade e sobre as relações estabelecidas com as artesãs. Já

com outros, o contato deu-se em situação de conflito, tornando a ocasião extremamente

tensa e inviabilizando qualquer tentativa de aproximação que permitisse a coleta de dados,

a não ser aqueles provenientes da análise da própria situação que se apresentava no

momento.

De acordo com Gluckman as “situações sociais” constituem ocasião especial para o

trabalho de campo, pois grande parte do material coletado e registrado pelo antropólogo é

resultado da observação que se faz nesses momentos. Tomando como ilustração a

inauguração de uma ponte na Zululândia, momento em que estavam presentes vários

grupos sociais e forças políticas dos contingentes negros e brancos, o pesquisador buscou

elucidar a estrutura social, as relações sociais e as instituições que conformam a sociedade

nacional. Segundo ele, “uma situação social é o comportamento, em algumas ocasiões, de

indivíduos como membros de uma comunidade, analisado e comparado com seu

comportamento em outras ocasiões” (Gluckman, 1987: 238). São situações especiais cuja

excepcionalidade, percebida a partir da ruptura com as formas de comportamento rotineiras

assumidas pelos indivíduos envolvidos, põe em evidência determinados aspectos da

163

realidade social. Nesse sentido, a análise de uma situação social pode se converter em

oportunidade única para serem percebidas as correlações de força, alianças e segmentações

a que estão sujeitos os indivíduos e grupos que interagem.

Na Olaria, vivi uma dessas situações sociais, já na segunda viagem que realizei a

campo, em novembro de 1998. Entre várias questões que queria observar e muitas

providências a tomar relativas ao projeto de apoio ao grupo, aquela ida ao Candeal tinha

como um dos principais objetivos preparar uma exposição da cerâmica que aconteceria no

Rio de Janeiro ainda naquele mês.67 A mostra era importante porque consolidaria a

parceria entre o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular e o Programa Artesanato

Solidário, lançando as bases do que pretendia ser o programa oficial do governo federal

para o campo do artesanato no país. Ao mesmo tempo, a exposição estava sendo pensada

como uma estratégia de mobilização do grupo e mecanismo que impulsionasse sua adesão

ao projeto que se pretendia de desenvolvimento social, o que poderia significar a abertura

do mercado nacional para seus produtos. Tentava-se, assim, romper com o

estrangulamento da produção, a não-venda dos produtos, fato de que as artesãs se

queixavam, identificando-o como a causa da desmobilização para produzir. Numa viagem

anterior, ficara acertado que elas produziriam especialmente para essa mostra e que eu

retornaria em um mês para as providências, junto à prefeitura municipal, de transporte dos

objetos para o Rio de Janeiro. Assim retornei e constatei que as artesãs estavam

produzindo número considerável de peças, algumas já finalizadas enquanto outras

encontravam-se ainda sendo modeladas ou aguardavam o momento de queima.

Num determinado dia tudo ficou pronto e, no terreiro em frente à casa de Emília, a

produção foi reunida. As peças seriam listadas, etiquetadas com dados referentes a autoria

e preço, e embaladas para transporte. Tratava-se de um momento importante. Creio que

aquela era a ocasião em que pela primeira vez toda a comunidade, junta, estava

contemplando o repertório de objetos que produzia. Habituadas a modelar suas peças

isoladamente, cada qual em sua casa como prolongamento de suas tarefas caseiras, as

artesãs jamais haviam tido a experiência de reunir toda a produção num único espaço. E a

ocasião nova despertava naquelas mulheres sentimentos e emoções talvez até então jamais

vividos. Tecendo comentários, estabelecendo comparações, reconhecendo estilos que

tornavam única cada peça e identificavam cada artesã também como única, percebendo a

67 A mostra, que se chamou Mulheres do Candeal – impressões no barro, foi inaugurada em 27 de novembro de 1998 e foi mantida até 10 de janeiro de 1999, na Sala do Artista Popular do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular.

164

presença de padrões coletivos expressos na técnica de modelagem e na pintura decorativa,

as mulheres davam início a um processo de ressignificação do ofício que dominavam, até

então naturalizado e culturalmente pouco valorizado. Sempre fizeram louça, assim era o

costume. Até aquela ocasião, não tinham muito o que falar. E ali, surpresas, reviam o

mundo que vinham construindo no dia-a-dia de suas vidas, cada uma isolada em seu

próprio universo doméstico. E, ao fazê-lo, revelavam nos olhos e nos sorrisos o prazer do

trabalho realizado, a surpresa pela descoberta da variedade e importância do que criavam, a

expectativa pelas vendas e pela viagem que pela primeira vez algumas fariam ao distante

Rio de Janeiro.

Elas reuniram sua produção, seus sorrisos e comentários de genuína satisfação que

traduziam uma intimidade do lar ampliada para o grupo de pertencimento. Não se sentiam

como se houvessem saído da “casa” para a “rua”. Mas do lar para o social, onde era

possível ser do grupo sem perda da atenção ao que é imediato, do dia-a-dia, o sensorial e o

pessoal. Porque nesse compartilhamento com o grupo, cada artesã dava sua contribuição e

recebia em troca a consciência do valor do seu trabalho e do pertencimento ao grupo, cuja

experiência coletiva e visão de mundo comum, através dos objetos produzidos, podiam ser

vistas e tocadas.

A perspectiva da exposição tornou-se celebração, lazer, compartilhamento,

acolhimento, identificação e troca. A venda dos objetos ganhou um significado que

transcendia o caráter mercantilista e se tornou fecho e início de um processo de produção

que se confundia com a própria vida.

Ali estavam reunidas então as artesãs e suas famílias diante das peças que

modelaram e diante do futuro que se mostrava promissor. Era um momento de muita

alegria. As providências práticas iam se sucedendo em meio a risos e brincadeiras até que

se ouviu, vindo da estrada, o barulho do motor de uma motocicleta a anunciar a

aproximação de alguém. Tratava-se de um dos poucos intermediários que naqueles últimos

anos atuava na comunidade e advogava o monopólio sobre a produção de algumas artesãs.

O momento mágico fora rompido, e a realidade se transformou com a presença do

“comprador” que, já na chegada, de pronto, revelou sua insatisfação e estabeleceu posição

de confronto. Calou-se o grupo, tornou-se tenso.

Além da compra e venda da louça, esse intermediário, assim como outros com os

quais tive contato direto ou acerca dos quais se ouviam relatos, era dono de uma das

vendas em que se comercializavam gêneros alimentícios, medicamentos, etc. Entre ele e

algumas artesãs se havia desenvolvido a prática segundo a qual elas retiravam na venda os

165

artigos de que necessitavam, pagando-os com a produção de louça. Assim, tinham

garantidos os produtos básicos à manutenção do grupo familiar, artigos de primeira

necessidade imprescindíveis à vida cotidiana. Nesse sentido, o “comprador” significava

segurança para a artesã e a certeza de que não lhe faltaria, e a seu grupo familiar, os artigos

necessários à sobrevivência. Por outro lado, ao praticar essa forma de escambo, raramente

a artesã recebia em dinheiro o valor correspondente à louça entregue ao intermediário.

Mercadorias supervaloradas eram usadas como forma de pagamento das peças de

cerâmica, cujo valor era diminuído a quase nada, configurando a vigência do “barracão”,

sistema tantas vezes denunciado no Brasil e descrito como uma prática exploratória do

passado, no entanto ainda hoje comum em zonas rurais do país.

A situação vivida representava a dependência de diversas artesãs ao “comprador",

não se estabelecendo entre eles uma relação de igualdade, mas sim uma hierarquia que

subordinava as artesãs aos desígnios da outra parte. A dívida era eterna, pois, por mais que

produzissem, elas estavam sempre devedoras da venda, presas a contas que nunca podiam

ser quitadas, ainda mais considerando ser o “comprador” aquele que definia o valor tanto

dos produtos que vendia quanto da louça que adquiria.68 Essa situação era ainda agravada

pelo fato de que, nas poucas vendas locais e, em especial, na do intermediário em questão,

eram praticados preços bem acima dos que se verificavam na sede do município e em

Januária.69 Com isso, as artesãs estavam atreladas a uma pessoa para quem trabalhavam

permanentemente e a quem entregavam toda a produção que lhes restava, após “pagar a

renda” ao dono da terra, conforme exposto no capítulo relativo ao processo de produção.

Comercializar os produtos com outros, fossem “compradores” ou mesmo consumidores

diretos, era uma possibilidade que, quando surgia, não podia ser feita às claras, sob risco de

ser impedida pelo intermediário que se dizia dono, por antecipação, de toda a produção das

artesãs subordinadas a ele, dono exclusivo dos objetos por elas produzidos.

68 Na ocasião, um pote era avaliado em R$ 1,50 para venda no local, valor esse que estava acima do que o intermediário efetivamente pagava. Em Januária, o mesmo produto era revendido a R$ 3,00. 69 Uma das estratégias adotada por algumas mulheres para fazer frente a essa situação era aproveitar a ida à cidade e lá fazer compras, reservando para momentos de extrema necessidade o abastecimento na venda local. Tal comportamento gerava tensão e não era assumido claramente porque as artesãs tinham receio de represália. O comerciante poderia retirar o crédito de um momento para outro e assim, pela “quebra da lealdade”, a artesã poderia ficar desprovida do bem que necessitava, além de ver encalhada a produção de louça. Essa possibilidade, mais teórica que prática, era sempre colocada em conversas, não havendo relatos de sua concretização. Nenhuma das partes tinha interesse em sua realização, o que talvez só se desse em caso extremo.

166

Assim ocorria naquela tarde em que o grupo fora surpreendido pela chegada do

“comprador” e as atividades foram paralisadas. O homem, exaltado, ameaçava retirar dali

todas as peças ou mesmo quebrá-las uma a uma. Desafiando aqueles que porventura

viessem a pensar em enfrentá-lo, esbravejava e ao mesmo tempo exibia o imenso facão que

trazia preso à cintura e com o qual, dizia, já matara um.70 A situação era extremamente

tensa e expunha ao ridículo qualquer tentativa de convencê-lo, com argumentos “racionais”

como o alcance social do projeto pelo qual eu era responsável e cujos primeiros passos

para a implantação na localidade estavam sendo dados. Opunha-se ele ao projeto, de cujo

significado revelava ter a exata dimensão: a desarticulação da rede de relação, e

exploração, que havia urdido no correr dos anos.

Era patente o poder de dominação desse indivíduo sobre o grupo e decorria não da

intimidação que usava como arma de convencimento e do fato de ser um “comprador” de

louça, mas também porque era fazendeiro e irmão de outro fazendeiro que residia em São

Paulo, e do qual se fizera representante, senhor de terras limítrofes à Olaria e das quais

diversos artesãos retiravam a argila para a feitura dos objetos. Como já apontado, para a

produção também havia tensões a permear as relações do grupo no exercício do ofício.

Uma delas resultava do “pagamento da renda”, instituição que as artesãs muitas vezes

buscavam burlar, retirando barro escondido ou declarando menor produção de louça do

que a realmente processada como forma de sonegação da taxa a ser paga ao dono da terra.

Naquele momento, tudo isso veio à tona, e o conflito tendia para uma solução

desvantajosa para as artesãs, conseqüentemente para mim também, quando surgiu o

funcionário da prefeitura, mediador entre nós e as autoridades locais e responsável pela

parceria que então se estabelecia entre os poderes federal e municipal na condução do

projeto de apoio àquele artesanato. Inteirado do que ocorria, afastou-se do grupo com o

“comprador” com quem teve uma conversa cuja natureza nunca foi tornada pública. Fato é

que o intermediário se retirou, e o conflito dissolveu-se. A situação social, segundo o

conceito de Gluckman, serviu para indicar-me as várias forças presentes na localidade. De

um lado, as mulheres, louceiras que se admiravam da produção que haviam realizado, nas

primeiras descobertas das possibilidades de uma atuação coletiva; de outro lado, o

intermediário, na defesa de seus interesses; a esses dois agentes veio-se somar o

funcionário da prefeitura que, por um lado firmava uma aliança comigo, agente do poder

70 Realidade ou simples bravata, o fato era confirmado posteriormente pelos artesãos que falavam da personalidade agressiva do intermediário e das muitas cenas de violência protagonizadas por ele no correr de anos.

167

federal atuando na promoção do desenvolvimento local, se colocando então também a

favor das artesãs, por outro lado, revelou-se aliançado do “comprador”, conforme posso

supor dada a conversa sigilosa que os dois mantiveram e que resultou no afastamento do

“comprador” e no encerramento momentâneo do conflito.

Os “compradores”

Em 1998, além desse intermediário, mais três agentes de comercialização vinham

atuando com certa regularidade, comprando a louça diretamente das artesãs para revendê-

la na região. Variava a freqüência com que o faziam, sendo aquele o mais presente, em

função do referido atrelamento a que a ele estavam submetidas as artesãs por ter que

“pagar a renda” da terra e devido à dívida permanente que contraíam com a compra de

mercadorias em sua venda. Outros dois vinham tendo atuação intermitente, sendo que um

deles praticamente havia paralisado a atividade por falta de tempo, já que se tornara

funcionário público municipal e não podia ausentar-se em viagens para revenda da louça

pela região. No entanto, assegurava, poderia retomar a atividade caso houvesse mudança

na política local, a oposição ganhasse a próxima eleição e viesse a ficar desempregado. O

terceiro intermediário, comerciante, passara a dividir seu tempo entre a venda que

administrava e o serviço de frete e transporte que fazia para a prefeitura municipal,

mantendo apenas esporadicamente o negócio de compra e venda de louça.

Atuando com regularidade restava um quarto intermediário, percebido de forma

especial pelas artesãs que, até os dias atuais, com ele mantêm laços bastante diferentes

daqueles que caracterizavam as relações com os demais, posto que extrapolam o interesse

meramente econômico.

Essa pessoa não reside na localidade de Olaria, mas logo após o vilarejo do

Candeal, à margem da estrada para Cruz dos Araújos. O distanciamento geográfico, no

entanto, é relativo e não impede que ele ocupe uma posição de pessoa “de dentro” da

comunidade e seja percebido como integrante do grupo com o qual tem relações de

parentesco, vindo a ser sobrinho e irmão de artesãs. O fato de não residir no local fica

neutralizado por sua presença quase diária ali. O vínculo com a comunidade se estreita

ainda mais por atuar como mediador entre muitos moradores da Olaria e o “mundo da rua”,

conforme expressão de DaMatta, 1984.

Embora apresente grandes dificuldades no domínio da escrita e leitura é

alfabetizado, o que lhe concede posição de prestígio junto aos demais. Muitos recorrem a

168

ele sempre que é preciso resolver problemas em bancos e repartições públicas em que

necessitam tratar de questões relativas, por exemplo, a registros de nascimento e de óbito,

aposentadoria, auxílio-doença, pensão alimentícia, bem como consultas médicas, exames

clínicos e internações hospitalares. Comparativamente, em termos monetários, é uma das

pessoas mais bem sucedidas no grupo, possuidor de uma motocicleta – quando nenhum

outro morador da Olaria é proprietário de qualquer veículo motorizado – e de uma casa um

pouco melhor do que aquelas em que vivem os artesãos. Nos últimos anos, havendo

reunido certo capital financeiro, adquirira uma casa em Januária que muitas vezes servia de

pouso para aqueles que se viam obrigados a pernoitar por um ou mais dias na cidade,71

geralmente para tratamento médico. Tornou-se membro de uma igreja evangélica e a

religião passou a exigir, e legitimar, o trabalho comunitário, assistencial. Com isso

aumentou seu empenho em socorrer o grupo da Olaria sempre que necessário. Sua

importância junto às artesãs tornou-se crescente nos últimos anos, livrando-as até da

dependência a outros intermediários e donos de venda da região quando, por exemplo,

quita dívidas por elas contraídas, sendo ressarcido com os objetos que elas produzem. Sua

atitude desperta comentários, ora elogiosos, ora de desconfiança. Afinal, se perguntam,

quando ele irá declarar sua candidatura a algum cargo político no município?

Entre a maioria dos moradores da Olaria e esse intermediário estabeleceu-se um

tipo de relação radicalmente diferente daquele que se observava entre eles e o primeiro

“comprador” aqui tratado. Construíram-se relações de caráter econômico fortemente

imbricadas em mecanismos de prestação e contraprestação de serviços e de troca de

favores, mediadas pelo parentesco e pelo sentimento de pertencimento ao grupo, pelo

assistencialismo e dever religioso. E a louça de barro vem tornando possível o

estabelecimento dessa forma de relação.

Na localidade, como já colocado, o dinheiro tem presença escassa, não se

verificando uma circulação intensa de moeda. Como a comunidade é constituída de

artesãos, camponeses e trabalhadores rurais meeiros e diaristas, não existem funcionários

públicos, assalariados ou empresários que possam carrear expressivos recursos financeiros

em espécie. O pouco dinheiro que circula com regularidade no local advém dos fundos

assistenciais criados pelo governo federal, tais como aposentadoria, bolsa família, bolsa

71 Neste sentido, revive o papel que fora desempenhado pelo “finado Cristino”, conforme as palavras de Dona Odília, reproduzidas páginas atrás, ao narrar as viagens feitas no passado a Januária, onde havia uma casa amiga à disposição para o pernoite.

169

escola, auxílio gás. A maior parte dos recursos financeiros ali existentes tem origem nessas

subvenções criadas pelo governo, havendo famílias que sobrevivem integralmente delas.

Outra forma de entrada de dinheiro na comunidade é resultado do trabalho daqueles

que deixaram o local passando a residir fora, sobretudo em São Paulo, onde se empregaram

sem, no entanto, romper totalmente os vínculos com o local. Em geral são filhos dos

moradores do Candeal, em sua maioria ainda solteiros e que a cada ano mandam aos pais

parte de seus ganhos. Os homens estão empregados majoritariamente na construção civil, e

as mulheres em casa de família. O dinheiro enviado costuma ser pouco, e a remessa é

irregular, pois parece depender de fatores variados, tais como estar efetivamente colocado

no mercado de trabalho, produzir excedente que possa ser disponibilizado para a doação

aos pais etc. Quase sempre, as doações acontecem no final do ano, por ocasião do Natal,

quando alguns retornam com presentes para as famílias.

Em decorrência da escassez de moeda corrente ainda atual, verificam-se inúmeras

formas de pagamentos por compra de bens e por serviços prestados em que o dinheiro não

é o principal veículo que viabiliza o contrato entre as partes envolvidas. Os camponeses

trocam dias de serviço e participam de mutirões; o trabalho rural é pago em produtos ou

combinado segundo o sistema de “meia” ou da “terça”, isto é, percentagens a que se tem

direito sobre o montante da produção final.

Assim também procedem as artesãs com relação àquele último “comprador”. Parte

da louça que ele revende é comprada diretamente das artesãs, geralmente quando

encomenda peças para as quais tem mercado garantido, pagando-as em espécie. Entretanto,

a maior parcela dos produtos que ele adquire assume a forma de pagamento por serviço

prestado, cujo valor fora acertado com a artesã em termos de um montante de produção.

Há ainda a dádiva, o “agrado”, como dizem, forma costumeira de retribuir pelo favor que o

intermediário presta e mecanismo que é acionado pela artesã que quer estreitar relações

com ele. Na condição de presente ou “agrado”, muitos potes, pratos e outros objetos

cerâmicos são trocados de propriedade e introduzidos no circuito informal da economia

pelo intermediário que os vende.

Portanto, no Candeal existe uma categoria – “comprador” – que o grupo de artesãs

reserva para denominar os intermediários que, tanto no passado quanto no presente,

constituem um dos principais agentes de comercialização da louça nas áreas externas à

comunidade. O termo, no entanto, agrega indivíduos que vivenciam relações bastante

heterogêneas com o grupo e que são percebidos, representados e tratados de formas

bastante diversas. Entre o “comprador” que é também fazendeiro e dono de venda, cujas

170

relações com o grupo estão pautadas exclusivamente no interesse econômico, e o

“comprador” que é também parente, pessoa “de dentro” do grupo, cujas ações extrapolam

o universo da economia e consolidam relações de amizade, existem diferenças marcantes.

As distinções se traduzem em termos nativos em categorias tais como “bom” ou “mau

comprador”, que revelam aqueles intermediários que, na visão das artesãs, são também a

pessoa amiga e a pessoa não amiga. Essas distinções estão presentes no discurso das

artesãs, como, por exemplo, quando uma delas diz:

Antes do projeto eu vendia aqui. Tinha os compradores. Dim, meu irmão comprava, saía pra fora. Benedito de Sifrônio, lá da Cruz, comprava. Ele mesmo levou quase uma carrada de louça minha pra Januária, e eu ainda fiquei brigando que ele não pagou bem pago. Aproveitava da gente. Comprava barato. Eu falei assim: “Oh! Nunca mais que eu vendo coisa pra Benedito, porque além dele comprar barato não me pagou bem pago. Fica enrolando a gente. Ele não é uma pessoa amiga”. Ademilson, da Cruz [dos Araújos], comprava muita louça de nós aqui e protegia nós lá no mercado dele, que ele tem uma venda lá na casa dele, na Cruz. Primeiro era no Sapé, depois ele comprou lá e construiu. Aí ele tinha a venda, aí ele protegia a gente na comida. A gente recebia pouquinho dinheiro [pela louça vendida] porque a gente precisava mais era das coisas pra comer. A gente não tinha nada, só trabalhava para comer. E ali ele levava a louça e a gente ia acertar e pegava mercadoria e algum dinheirinho. Pouco, porque esse tempo não tinha conta de luz, nada. E a gente recebia um dinheirinho pra comprar assim um querosene, porque não tinha luz, uma carne. E o mais era arroz, feijão ... Ele também era fraco de comércio. Ele vivia também mais com as louças da gente que cresceu mais o comércio dele. Dim, meu irmão, pagava frete pra sair vendendo. Pra ganhar um dinheirinho e ajudar a gente também. Eles vendiam lá pro Bonito, lugar longe, pro Borrachudo (Teresa, artesã, 50 anos).

O entendimento das categorias “bom” e “mau comprador”, “pessoa amiga” e

“pessoa não amiga” também não pode ser tomado de forma homogênea quando o discurso

é emitido por uma artesã. Não são todas elas que se referem ao último intermediário como

“pessoa amiga” ou “ bom comprador”. Na medida em que também existem clivagens

internas no grupo de artesãs, elas se refletem nas alianças e oposições que estabelecem

com aqueles que formam redes de relações, sejam elas representadas positiva ou

negativamente. Parentes mais próximos ou mais distantes, integrantes de grupos de aliança

e de interesse, todos contribuem para criar segmentações internas no grupo de moradores

da Olaria que constitui uma unidade apenas quando referido à realidade externa, isto é, na

relação com outros grupos, como os moradores do Candeal propriamente dito, aqueles que

residem na vila. No entanto, em relação ao primeiro intermediário aqui tratado é clara a

percepção generalizada da relação de desigualdade vivida por todos e o caráter negativo da

prática exploratória a que todos estão igualmente submetidos. De qualquer modo, não

importa se a referência é ao passado ou ao tempo atual, os intermediários sempre se fazem

171

presentes e, como um elo da cadeia produtiva, revelam sua importância na distribuição da

louça pelo mercado exterior à comunidade.

O mercado de Januária e a comercialização regional da louça

Afinal, em torno de que objetos se estrutura a rede de comercialização da louça do

Candeal voltada para o consumo da população regional? Em outras palavras, são todos os

objetos produzidos no Candeal destinados indiscriminadamente ao consumo regional ou

existe um recorte que delimita o universo de consumo? Nesse caso, que objetos integram

esse repertório, refletindo, assim, um uso específico para a louça e seu consumo junto à

população regional? Para pensar essas questões, representa oportunidade ímpar o Mercado

Municipal de Januária, principal centro de venda regular da louça do Candeal no norte de

Minas Gerais.

Quem visita Januária tem no mercado

municipal rica vitrina do muito que é

produzido na região. Nesse espaço expõe-se à

venda uma gama variada de produtos que

refletem o quadro complexo da economia e

dos fazeres da vasta área sobre a qual o

município significativamente atua como pólo.

Fotos: Francisco da Costa

Ali são encontrados legumes, verduras, frutas, carnes, cereais, ovos, peixes,

queijos,requeijões, cachaças, rapaduras, doces diversos, especiarias como pimentas de

diferentes tipos, cominho, açafrão e colorau, farinhas, buriti seco, mel, óleo de pequi e de

dendê, enfim, muitos artigos destinados à alimentação produzidos regionalmente, além de

172

fumo de rolo e ervas medicinais, como carqueja, barbatimão e semente de imburana,

produtos comuns em mezinhas ou preparados caseiros para combate a todo tipo de

doenças.

Em meio a tudo isso chamam atenção os objetos artesanais confeccionados com as

mais diversas matérias-primas. De madeira, geralmente espécies nativas da região de

cerrado e caatinga, como cedro, imburana, tamboril, são feitos pilões de mesa, verticais e

horizontais, pilões de pé, pratos, gamelas, colheres, dornas para cachaça, tábuas para carne,

cachimbos, suportes e cabides para parede, carrancas, miniaturas de canoas, vapores,

gaiolas e carros de boi, e brinquedos como mobília de sala de jantar e de quarto, máquinas

de costura, gamelinhas e pilõezinhos, alguns, invenção recente, com ímãs para fixar em

geladeira. Muitas peças são em escala reduzida, como as miniaturas, e trazem pirogravado

o dístico LEMBRANÇA DE JANUÁRIA, o que é indicativo de seu destinatário provável:

o consumidor de fora. Esse tipo de objeto está no mercado à disposição do turista de

passagem pelo local e também dos moradores da cidade, que os levam em viagem para

presentear.

Outros objetos são feitos das muitas palhas e dos variados cipós que a inventividade

humana foi capaz de aproveitar, convertendo-os em esteiras, vassouras de varrer e de

vasculhar teto, bolsas, cestos para roupa suja, cestos para usos diversos, balaios, redes

(especialmente de buriti, tingidas com pigmentos naturais), bauzinhos (“malerim”),

espanadores feitos com sisal, peneiras, abanos, chapéus, sacolas e miniaturas de muitos

desses objetos, que são utilizadas como brinquedo, como arranjo de mesa, para ornamentar

festa junina e para quaisquer outras destinações imagináveis.

Há também peças artesanais de material misto, como as lamparinas feitas de vidro e

metal, e aquelas de metal reciclado, de folhas de zinco ou flandres, como cuscuzeiros,

canecões, “chacolateiras”, espécie de canecão utilizado para ferver água, preparar chás e

outras bebidas, tabuleiros e fôrmas, funis, raladores, baldes, tachos, tudo isso em diversos

tamanhos e formatos, e também objetos confeccionados em couro, como bainhas de facão,

chapéus, sandálias, cintos, perneiras e gibões.

Enfim, o mercado apresenta o universo da cultura material, diversificado e rico.

Dentre todos esses bens de natureza artesanal, destacam-se aqueles feitos em barro e cuja

procedência é quase exclusivamente o Candeal.

Em 1998 realizei exaustivo registro da louça de barro que havia à venda no

mercado municipal. Além de inventariar a tipologia dos objetos encontrados e quantificar o

que havia, foram registrados os valores praticados pelos comerciantes locais. O resultado

173

apontou a existência de 605 peças de cerâmica à venda naquela ocasião nos espaços que

pertenciam a cinco dos nove comerciantes de artesanato do local.72 Esses dados

quantitativos, que apresentam a média de 121 peças por local de comercialização, têm

importância relativa, uma vez que não correspondem aos estoques reais existentes, pois os

comerciantes costumam armazenar mercadorias em outros espaços, como em suas

moradias, aos quais não tive acesso. De qualquer forma, os dados têm alguma relevância,

na medida em que, se não correspondem à totalidade das peças “disponíveis”, representam

o repertório real de peças existentes no mercado de Januária naquela data precisa. Graças a

esse registro, pode-se afirmar que, em 1998, o Candeal abastecia os compradores do

Mercado Municipal de Januária com os seguintes objetos de barro: potes, panelas,

moringas, pratos, tigelas, cumbucas, jogos de café, todas essas peças em diferentes

tamanhos, e ainda miniaturas diversas, conforme quadro a seguir:

Repertório de peças de cerâmica à venda no mercado de Januária

espaço objeto

1 2 3 473 5 total

Pote grande 2 30 2 16 2 52 Pote pequeno 24 24

Panela 12 20 8 40 Prato 126 62 10 20 218 Moringa 10 1474 6 6 30 66 Jogo de café 6 6 Miniatura de pote 38 38 Miniatura de panela 38 30 2 70 Miniatura de prato 46 2 48 Cumbuca 50 50

Tigela grande 1 1 Tigela pequena 2 2 Miniatura de tigela 4 4 Total 302 142 85 42 34 605

72 Conforme demonstro a seguir, a venda de artesanato no mercado local está concentrada em mãos de nove comerciantes que dominam os 26 pontos de comercialização. Deles, a cerâmica é comercializada em 22 pontos (oito lojas e 14 boxes) que são propriedade de apenas cinco comerciantes. 73 Esse espaço estava bastante desfalcado de estoque, pois, na véspera, havia feito uma grande venda para a Casa da Memória de Januária que iria participar da feira Mãos de Minas, em Belo Horizonte. 74 Foram encontradas 12 moringas de duas bocas e outros dois exemplares de uma boca. Segundo os lojistas, eram provenientes da Bahia, de localidade que ignoravam.

174

O mercado é uma grande construção em alvenaria, localizado no centro urbano e

comercial da cidade, e que ocupa o quadrilátero formado pelas ruas Quintino Bocaiúva e

Coronel Serrão e a Praça Raul Soares. Uma das extremidades do prédio é um grande vão

coberto por telhas, totalmente aberto em duas laterais. Nesse espaço estão distribuídas

cerca de 60 bancas que vendem gêneros alimentícios em geral, produtos como frutas,

legumes, verduras e cereais, e sete bancas que comercializam peixe, pescado na bacia do

rio São Francisco. Quando se encerra o expediente ao final do dia, essas bancas, feitas de

madeira, são cobertas com lona e plástico preto, e as mercadorias não perecíveis ali

permanecem até a manhã seguinte.

O restante da construção é um espaço totalmente fechado, ocupado por lojas e

boxes. A distinção entre essas categorias se define pela situação espacial que ocupam,

pelas características da arquitetura e pelo material com que foram construídas. As lojas

são construções erguidas ao redor de três lados do prédio. Feitas em alvenaria, possuem

amplas portas de aço que se abrem para fora, diretamente para as calçadas que

circundam a construção. Algumas delas, na extremidade oposta, se abrem para os

corredores de circulação internos do mercado, de modo que, atravessando-as, o público

pode ter acesso ao interior do prédio. Já os boxes estão todos localizados dentro do

prédio e foram construídos de madeira e tela de arame. Dispostos um ao lado do outro,

dividem o amplo espaço, criando corredores por onde circulam as pessoas e onde

também estão instaladas bancas para exposição das mercadorias à venda. A construção

dos boxes previu que funcionassem como espaços, ao mesmo tempo, de exposição e de

guarda das mercadorias, sem que o público precise entrar neles e circular em seus

interiores. Poucos são aqueles que a pessoa penetra, sendo o atendimento mais

comumente feito pelo comerciante, no corredor, do lado de fora.

Originalmente, segundo análise arquitetônica, existiam no mercado 45 lojas e 48

boxes. Com o correr do tempo, no entanto, o espaço foi sendo modificado. Algumas lojas

tiveram suas áreas unificadas, criando, aliás, os acessos de público ao interior do prédio,

conforme relatado. No centro da construção, em área próxima aos banheiros, seis boxes

tiveram as divisórias retiradas, criando-se uma área aberta, um espaço contínuo e de uso

indefinido. Alguns comerciantes juntaram dois ou mais boxes ou lojas, ampliando seus

espaços de comercialização e tornando fisicamente evidente a tendência à concentração

das atividades comerciais em mãos de apenas alguns poucos comerciantes.

A observação in loco permite que se apreenda o princípio que presidiu a ocupação

do prédio. Embora não exista uma ordenação rígida, percebe-se a segmentação a que foi

submetido o espaço e segundo a qual foram criados setores que definiriam o uso do

175

ambiente, concentrando em áreas diferenciadas segmentos comerciais distintos: açougues,

bares, lanchonetes, restaurantes, mercearias, sapataria, vestuário e venda de artesanato e de

alimentos em geral. Vê-se, no entanto, que a racionalidade pretendida subsiste apenas

como um princípio classificatório e ordenador do espaço, já que muitas lojas e boxes “têm

de tudo”, isto é, o restaurante também vende queijo, rapadura e temperos; um box de

alimentos regionais (queijo, óleo de pequi, rapadura, etc.) também vende colheres de pau;

uma loja especializada em artesanato vende ovos, queijos, temperos e buriti seco, outra

oferece um misto de produtos artesanais, ferramentas de procedência industrial destinadas

ao trabalho agrícola, objetos de uso doméstico como copos de vidro, louça e implementos

de cozinha em geral. Já outra, além da venda de artesanato e alimentos perecíveis,

comercializa mel, cachaça, fumo de rolo e também funciona como restaurante, servindo

prato feito.

Portanto, tomando por base o tipo de mercadoria que cada loja ou box comercializa,

o que, por princípio, definiria o tipo de comércio praticado, não se evidencia uma

classificação rígida que distinga um estabelecimento do outro. Entretanto, se apontada a

característica principal de cada um deles – açougue ou venda de artesanato, bar ou

sapataria –, é possível se chegar a uma síntese das atividades efetivamente praticadas no

mercado municipal. A partir da tipologia proposta pelos comerciantes locais, em especial

os donos de pontos de venda de artesanato, categoria de interesse maior para a pesquisa,

obteve-se a classificação seguinte:

tipo de comércio total de estabelecimentos açougues 15 artesanato 16 artesanato e artigos industriais diversos 2 artesanato e produtos alimentícios regionais 8 produtos alimentícios regionais 17 bares 15 bares / mercearias 2 mercearias 4 bares / restaurantes 2 restaurantes 2 vestuário 1 vestuário e sapataria 2 box vazio 1 total geral 87

176

O quadro evidencia o elevado número de espaços ocupados com artesanato. Entre

lojas e boxes voltados para a venda de objetos artesanais, exclusivamente ou misturados a

outros produtos, somam-se 26 estabelecimentos que perfazem 30% dos 87 espaços

inicialmente previstos para comercialização, que podem ser visualizados no desenho

abaixo.

177

Isso não significa que haja o mesmo total de comerciantes ocupados com o ramo.

Na realidade, em Januária, nota-se forte concentração do mercado de artesanato nas mãos

de poucos. Todo o movimento é realizado por nove comerciantes, sendo que, desses,

apenas cinco dominam 22 pontos do mercado municipal distribuídos entre lojas e boxes, de

acordo com o demonstrativo abaixo:

Comerciante 1 detém a propriedade de 2 lojas e 2 boxes;

Comerciante 2 detém a propriedade de 2 lojas e 1 box;

Comerciante 3 detém a propriedade de 6 boxes;

Comerciante 4 detém a propriedade de 1 box;

Comerciante 5 detém a propriedade de 1 box;

Comerciante 6 detém a propriedade de 1 box;

Comerciante 7 detém a propriedade de 1 loja;

Comerciante 8 detém a propriedade de 3 lojas e 4 boxes;

Comerciante 9 detém a propriedade de 2 boxes.

Os comerciantes mantêm entre si tratamento formal, respeitoso, quase de

“evitação”, conforme termo sugerido por Radcliffe-Brown (op. cit.). Entre eles predomina

forte concorrência, situação presente em outras realidades estudadas que, embora distantes

no espaço, podem apresentar similaridades com o universo aqui descrito. Refiro-me à Feira

de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, analisada por Lúcia Morales, que informa:

... as relações de competição parecem gerar uma situação de conflito iminente, para a qual os feirantes procuram manter uma certa observância quanto ao não estreitamento de laços. Através do uso da linguagem não-verbal marcam silenciosamente, de forma enfática, fronteiras entre si (Morales, 1993:27).

No mercado de Januária, cada comerciante passa o dia cuidando de suas

mercadorias. Ordena, limpa, arruma, confere e torna a ordenar, continuamente, as pilhas de

produtos expostos sobre bancas e em prateleiras. Ao mesmo tempo, no entanto, eles estão

voltados para a observação de todo o espaço que a visão é capaz de alcançar. O olhar busca

aqueles que chegam ao mercado, acompanha quem circula pelos corredores e a rotina do

comerciante é prontamente interrompida quando um comprador em potencial se aproxima

de sua loja ou de seu box. É quando o vendedor se mostra mais simpático, solícito e à

disposição do freguês. Todo seu esforço é no sentido de atender à necessidade do provável

comprador e assim efetuar uma venda.

178

Sua atenção, voltada ao zelo para com as mercadorias que comercializa e aos

“fregueses” que atende, busca um domínio mais amplo e se dirige também ao movimento

que acontece nos espaços concorrentes.

Lojas e boxes comportam um mundo essencialmente público, no sentido de que

tudo que ocorre nesses espaços não apenas envolve um vendedor e um comprador, mas

implica também uma assistência constituída principalmente pelos muitos vendedores que

se localizam nos espaços próximos.

Todo comprador, ao adquirir uma mercadoria qualquer, está sendo observado por

mais de uma pessoa, além do vendedor que o está atendendo, quer esteja no interior de

uma loja ou no corredor, em frente a um box. Não é raro que um comprador, ao sair de

uma loja de artesanato, seja abordado por outro lojista que, com discrição e utilizando-se

de artifício, como mostrar um determinado produto, em tom de voz baixo indaga sobre

quanto pagou pelo objeto comprado.

Três comerciantes, acima indicados pelos números 1, 8 e 9 e que detêm metade do

mercado local de comercialização do artesanato (13 dos 26 pontos de venda), pertencem a

uma mesma família. Trata-se de duas irmãs e uma cunhada.75 Entretanto, as relações de

parentesco não parecem contribuir para a consolidação de alianças entre elas. Ao contrário,

corroborando a existência da forte concorrência que predomina no mercado municipal, elas

disputam a freguesia e tentam monopolizar a produção de algumas artesãs.

Assim, na luta diária, na competição com os concorrentes, o comerciante

desenvolve estratégias diversas; tentar manipular a relação com a artesã é uma delas.

Há momentos em que se diz “pessoa amiga”, que está sempre a comprar os produtos da

artesã, mesmo em ocasiões em que não está precisando formar estoque. Compra porque

quer ajudar, porque sabe que a artesã precisa vender, que ela precisa disso para ter o

que comer. E por isso a ajuda. Por extensão, de modo sutil, sugere que a artesã lhe

devote exclusividade; outras vezes, ameaça não comprar mais nada, mas, temeroso de

que o concorrente se aproveite exatamente dessa situação e consiga a exclusividade da

artesã, nunca deixa de comprar uma peça que seja. Toda essa situação exige que a

artesã tenha controle sobre uma realidade que, quase sempre, se apresenta de modo

novo para ela, mundo sobre o qual raramente possui pleno domínio.

75 Embora um dos pontos de venda seja administrado por um casal (comerciante 8), o negócio é atribuído à mulher, uma das irmãs em questão. Percebe-se claramente no mercado de Januária a proeminência da mulher como responsável pela atividade comercial, principalmente em relação ao artesanato. Nesse setor de negócios, excluído o casal citado, apenas um homem está envolvido com a comercialização de artesanato (comerciante 2). Todas as demais lojas e todos os boxes estão em mãos de mulheres. Em contrapartida, excetuando-se a área das bancas de frutas, legumes e verduras, em que as mulheres também prevalecem, todos os açougues e a maioria dos bares, restaurantes e demais estabelecimentos estão sob controle masculino.

179

Como já dito, se, no passado, o acesso à cidade era difícil para as artesãs, nos

tempos atuais tornou-se facilitado pela melhoria das condições das estradas, ainda que

deficientes, e pela presença de ônibus e outros veículos que trafegam com certa

regularidade, ligando o Candeal a Cônego Marinho e a Januária. Assim, o contato direto da

artesã com os comerciantes do mercado, no passado muito mediado por pais, irmãos,

demais parentes e maridos ou pelos “compradores”, faz-se hoje muito mais constante. E

com isso um novo mundo se abre para as produtoras de louça que precisam entrar no jogo

do mercado, negociar em condições nem sempre vantajosas, impor regras e dominar as

relações que surgem no decorrer do processo de venda das peças produzidas. Trata-se de

um campo quase sempre desvantajoso para a artesã, que se vê explorada pela outra parte, à

qual quase sempre se submete. Exemplificando a situação vivenciada, assim se expressa

Teresa, uma das artesãs:

Até que ela [uma das comerciantes] diz pra gente assim, que a gente tem que vender as coisas mais barato, porque, se não vender barato, ela não compra. E eu digo: Meu Deus! E aí como é que a gente vai fazer? Aí, tem que ver os preços deles lá. Vender de graça, senão não tem é nada. Não compensa nem levar muito. Mas... que jeito? O que ajuda a gente é a venda lá do Rio e esses lugar aí pra fora. De lá que vem um dinheirinho que ajuda a gente. Aqui é só pra trocar. Januária é quase só pra trocar e não dá muito dinheiro não. Aquelas mulher ali ... elas quer que a gente ajuda elas e elas ajuda a gente. Elas tá ganhando mais porque elas compra pra revender e elas tá vendendo é caro. Esses povo sempre é assim. Eles aproveita da gente. Não tem jeito não. Eles compra as coisas da gente e vende mais caro. Eu fui discutir com ela, falei pra ela que a louça tava barata, que os preços no Rio era mais. E ela falou assim: Mas os preços lá é mais, mas você quer saber que os preços que você ganha mais por fora não dá pra você ir nem num quarto do caminho? A bicha quis discutir comigo. Disse que se eu fosse sair fora pra vender, que o dinheiro que vem de fora não dava pra eu ir nem num quarto do caminho. Eu falei: Ih! Meu Deus! Não dá pra discutir com essas mulheres não. Ela não paga muito não. Fica chorando e a gente precisa vender ... então a gente vende.

Chorar significa reclamar das condições do comércio nos tempos atuais. Segundo

os agentes do mercado, os lucros que obtêm praticamente não compensam a venda da

louça, um artigo que implica muita perda, devido ao alto índice de quebra na

armazenagem, e pelo qual as artesãs querem um preço que eles não são capazes de pagar.

Na competição, e buscando conquistar controle total sobre a atividade de

comercialização de artesanato, é comum que os lojistas e os donos de boxes procurem

denegrir a imagem uns dos outros e, junto a compradores, sempre a meia voz, se acusem

mutuamente de que são pessoas dominadas por inveja e ambição, que estão

permanentemente vigiando o movimento comercial alheio no intuito de encontrar maneiras

de prejudicar o concorrente.

180

A competição entre os comerciantes não se reflete no decréscimo de preço do

produto oferecido aos consumidores, conforme se poderia supor. Existe um conhecimento

generalizado acerca dos preços de cada produto efetivamente praticados no mercado. Sem

que entrem em acordo explícito acerca do preço a cobrar pelos objetos que vendem, todos

praticam preços muito semelhantes, conforme se pode ver no quadro a seguir:

Preços praticados em Januária (em R$) (1998)

espaço objeto

1 2 3 4 5

pote grande 5,00 5,00 4,00 5,00 5,00

pote pequeno 3,50

Panela 8,00 a 10,00 8,00 8,00

Prato 1,00 e 3,00 2,00 2,50 e 3,00 2,00 e 3,00

Moringa 3,50 e 4,00 3,50 3,50 3,50

jogo de café 10,00 e 12,00

miniatura de pote 1,00

miniatura de panela 2,00 2,50

miniatura de prato 0,50 a 3,00 0,50

Cumbuca 1,50 a 3,00

tigela grande 5,00

tigela pequena 2,50

miniatura de tigela 2,50

Ao observar o quadro acima, percebe-se a pouca variação nos preços praticados

pelos comerciantes para cada item do repertório colocado à venda, bem como certa

homogeneidade e compatibilidade existente entre praticamente todos os itens que, com

exceção de dois deles, as panelas e os jogos de café, não ultrapassam a cifra de R$ 5,00

(cinco reais).

Reconhecendo a existência de um sistema que hierarquiza os objetos, panelas e

aparelhos de café podem ser tomados como paradigmas de dois dos mundos a que se

destina a louça do Candeal: o mundo regional, circundante, e aquele de fora, mundo que se

situa para além dos limites geográficos e culturais da região.

181

No Candeal, diferentes dos potes destinados à guarda de água e dos demais objetos

feitos para o serviço de alimentos, como pratos, tigelas e travessas, as panelas são

modeladas com um tipo específico de barro, cuja composição química é responsável pela

alta resistência ao calor que o objeto adquire após a queima. Assim, graças à matéria-prima

com que é feita, a panela pode ser levada diretamente ao fogo, prestando-se, portanto, ao

cozimento dos alimentos. É o único item da produção do Candeal encontrada no mercado

municipal de Januária que apresenta tal qualidade.76

A panela é muito empregada especialmente no cozimento de feijão e de carnes, e

como tal é consumida pela população regional sobretudo das zonas rurais. Isso não

significa que não tenha espaço junto à população urbana das cidades da região. Ao

contrário, muitos revelam preferência por sua utilização e o fazem sempre que possível.

Famílias urbanas de origem rural ou com fortes vínculos com o mundo rural preservam

muitos hábitos identificados com esse universo. Não é raro que em residências da cidade

exista uma cozinha com fogão a lenha, geralmente no quintal, que é comumente utilizada

para o preparo diário de alimentos. Aí impera a panela de barro. Acredita-se que o sabor da

comida preparada nesse tipo de objeto seja diferente, especial, melhor.

Eu cozinho com panela de barro. Faço peixe, faço galinha com molho, carne ensopada, feijão. Eu boto na lenha porque a comida feita na panela de barro, no fogão de lenha, fica mais gostosa. Não é toda comida que eu faço na panela de barro, porque nem tudo fica bom. Nem todo mundo sabe cozinhar com ela, porque é uma panela perigosa. Ela guarda o calor e se você bobear ela seca a comida. Até queima. Eu cozinho tudo nela, peixe, feijão, galinha. Não fica gosto não. Eu lavo bem. Agora, só uso no fogão de lenha, porque suja tudo. Apesar que eu lavo, fica preto por baixo. É carvão. Aí não uso no gás não (dona-de-casa, originária da zona rural, moradora em Januária, 52 anos).

A mesma característica que desqualifica a panela de barro para um, isto é, o fato de

reter o calor por um longo período de tempo, ameaçando queimar a comida, pode ser

considerada positivamente por outro que assim destaca essa qualidade como a marca

distintiva do objeto: “Eu gosto porque a comida fica mais saborosa e tem outra coisa

também: a panela de barro deixa a comida mais quente por mais tempo. Ela mantém a

quentura da comida” (professora, nascida e moradora da cidade, família originária da zona

rural, 56 anos).

Segundo os comerciantes do mercado municipal, na comparação com outros itens

da louça de barro, a panela tem preço elevado porque sua produção é limitada. Além de

76 Outros itens do repertório da louça de barro do Candeal que podem ser colocados diretamente no fogo são o tacho, o torrador e o cuscuzeiro. Todas essas peças são feitas com o mesmo tipo de barro, distinto da matéria com que se modelam os demais objetos.

182

requerer um tipo especial de barro para a modelagem, nem toda artesã a produz, o que

torna a oferta do produto mais rara que a dos demais artigos, confeccionados por um

número maior de artesãs. A preferência que a população regional expressa por ela define

sua posição especial junto a esse segmento. Seu consumo se faz basicamente dentro desse

mundo e para cozimento de alimentos, utilidade que, entretanto, não esgota o significado

do objeto para essa mesma população. Ele também é marca de um modo de vida, um

estilo, uma maneira de viver que, na cultura regional, parece remeter a sentimentos de

pertencimento e a valores fortemente demarcados pelo universo rural. “Eu não cozinho

com panela de barro porque não tenho hábito. Não fui criada com isso. Sou da cidade.”

Assim se expressa uma dona-de-casa, integrante das camadas médias da sociedade de

Januária e moradora da cidade, contrapondo o mundo urbano ao rural ao se referir ao fato

de não utilizar em sua casa panelas de barro.

Se a panela de barro está associada ao preparo de alimentos, e seu consumo, é

majoritariamente definido pelo contexto do uso regional, o jogo de café, conjunto de peças

composto de uma bandeja, um bule e seis xícaras com seus respectivos pires, instaura uma

nova classe e um novo domínio para a louça de barro do Candeal.

O próximo capítulo aborda esse outro mundo.

Jogo de café – autoria: Nilda

183

Capítulo 5 – A ampliação do mundo da louça

– Agora nós estamos vendendo até pros Estados Unidos.

Com essa frase, fui recebido no Galpão dos Oleiros do Candeal, no dia 3 de maio

de 2003, quatro anos e meio após ter começado a trabalhar com os moradores da Olaria. A

declaração aponta para a participação atual das louceiras num vasto mundo social que já

não se circunscreve aos limites da região. O ano de 1998, em que foi implantado o

programa institucional (Paca) na localidade, pode ser tomado como o marco inicial desta

história, pois instaura um processo amplo de transformação social em que as louceiras

configuram o principal agente da mudança de uma realidade cujas divisas local e regional

são rompidas, e as peças passam a circular regularmente em áreas até então inconcebidas.

Esse processo teve início com a exposição Mulheres do Candeal: impressões no

barro, inaugurada na Sala do Artista Popular – SAP, no CNFCP, no Rio de Janeiro, e que,

pelo período de 27 de novembro de 1998 a 10 de janeiro de 1999, procurou tornar

conhecidos e aproximar do grande público a realidade do Candeal, a situação de vida das

artesãs e os objetos que produzem. A exposição das peças, que foram colocadas à venda

contextualizadas por textos e painéis fotográficos, fazia-se acompanhar por um catálogo

que registrava aspectos da realidade das louceiras, do processo tecnológico da produção e

do contexto social em que os objetos foram produzidos (Lima, 1998).

Durante a mostra, além da divulgação pela imprensa, as artesãs Benita, Emília e

Regina, que compareceram à inauguração, permaneceram por quatro dias no Rio de

Janeiro para contatos diretos com lojistas, de modo a criar mercado fora da região,

passando a dispor de novas oportunidades de venda. Esses contatos, que prosseguiram por

meio de material impresso, tendo sido elaborado um catálogo de produtos que foi, aliás,

encaminhado a lojistas de diferentes pontos do país, vem gerando encomendas, o que

resulta na ampliação do mercado da louça do Candeal. Foi um desses catálogos que deu

origem ao pedido de peças para a exposição nos Estados Unidos, feito por um lojista de

São Paulo.

184

Da esquerda para a direita: dona Maura, diretora da Casa da Memória de Januária; Regina, filha de Benita; Antônio Tupiná, prefeito de Cônego Marinho; Emília, artesã; Benita, artesã; e Ruth Cardoso, presidente do Conselho da Comunidade Solidária. Foto: Fernando Martinho.

Também a partir dessa data, a SAP tornou-se um espaço permanente de

comercialização da louça do Candeal que é vendida continuamente ali, junto a outras peças

consignadas. Com isso, o CNFCP passou a compor o mundo das artesãs do Candeal que

vieram a se relacionar com os técnicos da instituição, tendo em vista a reposição de

estoques, atendimento de encomendas, prestação de contas etc.

À primeira exposição na Sala do Artista Popular seguiram-se várias outras, em

espaços distintos, organizadas pela equipe gestora do Paca, em parceria com o Programa

Artesanato Solidário, ação oficial do governo federal voltado para o desenvolvimento

social e tendo como propulsor do processo o incremento do artesanato, percebido como

instrumento estratégico de geração de renda.77

Essas exposições têm procurado pôr em evidência o caráter cultural e etnográfico

do objeto artesanal, sentidos que o definem como documento de uma determinada

realidade social da qual foi extraído, configurando-o como porta-voz de grupos sociais

específicos (Lima, 1984). Privilegiar esses sentidos como condição de produto

77 O Programa, sob direção da antropóloga Ruth Cardoso, ao final do Governo Fernando Henrique Cardoso transformou-se na Central ArteSol, uma organização da sociedade civil de interesse público – Oscip, sem finalidade lucrativa. A louça do Candeal integra a rede ArteSol cuja sede atualmente é em São Paulo, onde dispõe de um showroom para viabilizar o escoamento do artesanato produzidos em cerca de 70 núcleos vinculados ao programa.

185

mercadológico do objeto artesanal, questão que discuti em outra ocasião (Lima, 2005), é o

que torna característico o contexto de exposições, universo geralmente associado a museus

e galerias de arte. Neste trabalho não me detive em analisar a inserção da louça do Candeal

no universo dos museus, em que o objeto de extração popular, por vezes denominado

artesanato, por vezes arte popular, se reveste de representações específicas. Adentrar esse

mundo significa a realização de uma nova pesquisa, conforme fizeram outros

pesquisadores brasileiros, dentre os quais se destacam Waldeck (2002) e Mascelani (1996

e 2001).

Aqui, a guisa de conclusão, teço algumas considerações a respeito do ingresso da

louça do Candeal no universo das exposições o que representou uma novidade para as

artesãs e implicou conseqüências diretas para a produção. Essas considerações

acompanham uma reflexão sobre as questões deixadas em aberto pelo projeto de apoio aos

artesãos implantado no local. Uma das influências imediatamente percebidas se deu nos

termos de auto-referência com que as mulheres se nomeiam e ao mundo dos objetos de

barro que modelam. A maneira tradicional de designar o ofício de modelagem no Candeal

se faz pelo emprego de expressões como “fazer louça de barro” e “mexer com barro”,

sendo a mulher que o pratica denominada “louceira”. Muitas vezes, essa categoria está

ausente, e a forma mais comum que a mulher utiliza para se auto-referir como louceira é

repetir as expressões “eu faço louça” ou “eu mexo com barro”. Termos como cerâmica e

ceramista, artesanato e artesão, aplicados aos objetos e aos agentes da produção, têm uso

novo na localidade, e seu emprego é a cada dia mais freqüente, tratando-se, com certeza,

de uma incorporação recente ao mundo das louceiras.

A demanda do público consumidor nos centros urbanos também tem-se refletido na

produção, em especial em relação ao acabamento dos objetos. Em 1998, as peças

modeladas na Olaria refletiam a desmotivação que as artesãs viviam naquele momento.

Aferindo preços baixos aos objetos que faziam, subordinadas à relação desigual com

agentes sociais, como fazendeiros e compradores, que as aviltava, as mulheres refletiam

essa condição nas peças que modelavam, muitas vezes descuidadamente, mal pintadas e

mal queimadas. As motivações resultantes das vendas realizadas no mercado nacional, os

novos preços conseguidos nessas vendas, o valor que perceberam ser atribuído aos objetos

que modelavam são fatores que contribuíram para que buscassem aperfeiçoar o ofício,

criando peças cuja qualidade tornou-se sem dúvida maior. Como atestou Ademilson, um

dos compradores que, nos últimos anos, tem feito o transporte da louça para o CNFCP, no

Rio de Janeiro, contratado pela prefeitura municipal:

186

As peças mudaram muito. As mulheres mudaram o acabamento, melhorou tudo. Melhorou muito porque tiveram mais empenho com essa saída pra fora, estão caprichando mais. Elas agora gostam quando a gente chega lá e fala que estão muito melhor. Elas ficam logo animadas.

Não só o acabamento, mas também a tipologia dos objetos foi altamente

transformada pelos contatos mais constantes das artesãs com o mercado externo à região.

Pelo costume local, potes, panelas, pratos, moringas e poucos outros itens, que não

totalizavam uma dúzia de objetos, constituíam o repertório da Olaria. Essas peças

bastavam para atender às necessidades da população local e regional, voltadas basicamente

para a guarda, o preparo e o serviço de alimentos, conforme exposto nos capítulos

anteriores. A partir de 2000, essa tipologia é bastante ampliada, sendo criados muitos

objetos que, segundo relato das artesãs, jamais haviam sido modelados no local. À medida

que têm contato contínuo com o mundo exterior e que passam a freqüentar exposições, a

participar de oficinas e feiras nacionais, como a Feira de Artesanato organizada

anualmente em Belo Horizonte, a Feira da Providência no Rio de Janeiro e eventos

promovidos pelo Programa Artesanato Solidário, as mulheres começam a viver novas

realidades e, instigadas pelo que vêem e pelo que lhes é solicitado, passam a criar outros

produtos, que destinam a atender a esse mercado.

Nesse aspecto, estabelece-se um sistema de troca de informações, e os novos

conhecimentos adquiridos são imediatamente compartilhados, fazendo com que uma

artesã, ao criar uma determinada peça, possa ser copiada pelas demais, sem que isso

implique acusações de cópia ou plágio, reservando-se o direito ao crédito da autoria

primeira à louceira responsável pela criação efetiva daquele objeto.

Assim, aproxima-se o Candeal de outras realidades do universo brasileiro em que

as invenções e descobertas são compartilhadas coletivamente por aqueles que se dedicam

ao ofício, conforme descrito por Lélia Coelho Frota ao se referir a Vitalino Pereira dos

Santos, o Mestre Vitalino, e à geração de contemporâneos que tornavam coletivas as

inovações criadas no dia-a-dia da modelagem dos conhecidos bonecos de barro (Frota,

1986 e 2005).

187

Jarras de Emília

Dentre os objetos criados recentemente no Candeal, ressaltam-se jarras, cachepôs,

queijeiras, fruteiras, cinzeiros, vasos para plantas, protetores de planta contra formiga,

diferentes tipos de fôrmas e de travessas, e também objetos que se diriam figurativos, que

tiveram início com a produção dos dinossauros feita por Leonardo, conforme relato no

primeiro capítulo. Atualmente são modeladas em geral figuras de animais, como patos,

cobras, bois, peixes, pássaros e outros.

Muitos desses objetos têm formas similares e, ao mesmo tempo, diversificadas. Não

se criou ainda, se é que algum dia virá a haver, consenso acerca de nomenclatura única

para designar um mesmo objeto. Por exemplo, uma peça feita atualmente é chamada,

simultaneamente, de “porta-treco”, “porta-coisas”, “porta-jóias”, “cachepô”, “potinho’,

entre outras designações, muitas delas apreendidas pelo contato com outros artesãos nas

feiras freqüentadas, nas oficinas de que participaram.78

Outra inovação, facilmente verificada no repertório da louça de barro do Candeal,

decorrente do contato com o mundo exterior se refere ao incremento do uso da categoria

“enfeite”. A palavra é parte do vocabulário das pessoas do Candeal, onde, ao que tudo

indica, vem sendo utilizada no sentido corriqueiro e generalizado que o senso comum lhe

atribui. Usa-se um enfeite, ou se enfeita uma pessoa, um ambiente, quando se quer torná-

los bonitos, atraentes. O termo, quando associado a indivíduos, é mais referido às mulheres

78 No período de 6 a 12 de agosto de 2000, os artesãos participaram de um encontro promovido pelo Programa Artesanato Solidário, realizado no Sesc Belenzinho, em São Paulo, oportunidade em que participaram de oficina de cerâmica em que conviveram com outros artesãos do barro, originários de Juazeiro do Norte (CE), Minas Novas e Turmalina (MG), Irará (BA) e Belém (PA), discutindo sobre suas realidades, conhecendo e experimentando processos diferentes de modelagem, pintura e queima de objetos de barro. Um relato da experiência pode ser encontrado em Machado, 2000.

188

que aos homens, e lhes é em geral aplicado nas situações em que se arrumam para uma

ocasião especial, um casamento, uma festa, uma ladainha ou reza – a forma mais comum

de prática do catolicismo popular na região – ou para dançar o São Gonçalo, momento de

lazer e de sociabilidade que causa grande mobilização e desperta entusiasmo extremo nas

mulheres.79 Aplicado a espaços físicos ou ambientes, o termo também está associado a

momentos especiais da vida social, às situações extraordinárias em que o espaço é

arrumado. Assim, enfeita-se com jarras de flores o altar improvisado sobre o qual é

colocada a imagem de São Gonçalo para a dança; enfeita-se o largo do povoado com

bandeirinhas para a realização da festa junina; enfeita-se a igreja com vasos de plantas e

flores para cerimônias de casamento e a missa dominical.

Como já relatado, no cotidiano, as casas da Olaria são pouco enfeitadas no sentido

em que os ambientes dispõem de raros elementos que possam cumprir essa função.

Excetuando talvez as fotografias de parentes, santos e políticos dispostas nas paredes da

sala e que, como vimos, podem ter múltiplos significados, não existe ocorrência de muitos

objetos aos quais se possa atribuir a condição de elemento decorativo de ambiente.

No pouco havido, raridade maior é encontrar uma peça de barro que tenha sido modelada

pelas mulheres do local. O inventário que realizei no início da pesquisa, em 1998, apontou

a existência de apenas cinco peças declaradamente decorativas nas residências: uma figura

de cachorro, na casa de Teresa e quatro jarrinhas na casa de Benita.

A partir de então, no Candeal a categoria enfeite passou a ser cada vez mais

recorrente e se destina a nomear uma classe de objetos que não têm função utilitária 79 Acerca da dança de São Gonçalo e sua importância para a cultura local de comunidades rurais baianas, que em muito se aproximam da realidade do Candeal aqui analisada, remeto aos trabalhos de Maria Isaura Pereira de Queiroz, 1972 e 1998, citados na bibliografia.

189

claramente definida. Segundo as artesãs, são “enfeites”, objetos usados para enfeitar,

decorar as casas e dos quais “as pessoas de fora gostam muito. Todo mundo quer comprar

pra botar na sala, na estante, junto da televisão, em cima da mesinha, que fica muito

bonito”, conforme explicou Emília. Dentre esses objetos, destacam-se cachorrinhos,

boizinhos, patinhos, jarrinhas e pequenos potes que, embora denominados “enfeite” pelas

artesãs, segundo elas próprias podem também ter múltiplos usos, para guardar coisas

diversas – a despeito de continuar constituindo uma classe de objetos não consumida pela

comunidade local, cuja produção é dirigida ao comércio exterior.

As mudanças na tipologia ocorrem tanto porque as mulheres saem da comunidade

e, no exterior, têm oportunidade de contato com peças que se transformam em modelos,

quanto porque novas demandas chegam até elas. Pessoas provenientes do Rio de Janeiro,

de São Paulo, Belo Horizonte e de muitos outros pontos do país atualmente ali chegam

para conhecer o local de produção da cerâmica do Candeal, identidade pela qual o pólo

vem sendo divulgado em catálogos, matérias de jornal e revistas. Muitos fazem

encomendas, e alguns desejam peças específicas, não integrantes do repertório das artesãs.

Para isso, levam fotografias dos objetos que querem adquirir, muitas vezes retiradas de

revistas ou mesmo os desenham ou descrevem para que as louceiras os executem. Uma vez

sendo o resultado bem-sucedido, o novo modelo é incorporado ao repertório local.

Assim aconteceu com a demanda por travessas em formato de peixe para servir o

surubim e outras espécies pescadas nas águas do São Francisco. Os objetos foram

encomendados, e, atendido prontamente o primeiro comprador, dono de restaurante de

Januária que teve a iniciativa de fazer a solicitação, outros pedidos surgiram. Muito

embora a demanda tenha vindo da própria região, seu destino final não deixa de ser o

190

mundo externo, pois os compradores são basicamente donos de restaurantes e hotéis

voltados, portanto, para consumidores de fora, em especial turistas que visitam a região.

A aceitação da louça do Candeal no mercado externo resultou em maior aceitação

também no mercado regional, no qual se percebe o incremento de seu consumo junto a

segmentos das camadas urbanas locais de centros como Januária, onde até então os objetos

eram comercializados basicamente no mercado municipal e, em menor expressão, na Casa

da Memória do Médio São Francisco e na Casa do Artesão. Em 2000, surgiu na cidade um

novo espaço, atualmente denominado Centro de Artesanato, criado por um grupo de

pessoas interessadas em divulgar a cultura da região, em que a louça do Candeal passou a

ser comercializada, respaldada em técnica expositiva que busca contextualizar os objetos

de acordo com o modelo fornecido pela Sala do Artista Popular, no Rio de Janeiro. Assim

como hotéis e restaurantes da cidade, em que a louça do Candeal recebe destaque, esse

espaço também está muito referido, em termos do consumo da louça, para o público

turista, embora desenvolva ações de apoio à cultura local voltadas para a própria

população, entre elas, a das formas de fazer em que se inclui a produção da louça do

Candeal.

Esses fatos têm propiciado também maior “refinamento” na modelagem e no

acabamento das peças. Os elementos decorativos – as pinturas em tauá – vêm recebendo

atenção redobrada das artesãs, que se preocupam em não deixar escorrer a tinta pela

superfície das peças. Quando ocorre, o tauá escorrido é removido, cuidado inexistente no

passado.

Acerca da melhoria da qualidade dos produtos, assim se pronunciou Nato, prefeito

municipal, em fevereiro de 2004:

Desde o tempo antigo que esse povo do Candeal fazia o pote, a botija, a quartinha, os pratinhos, só que fazia com um sistema bem diferente do que está hoje. Hoje eles estão trabalhando bem mais sofisticados, mais acabado. Eles estão trabalhando com uma perfeição melhor nas louças. Começaram a vender pra fora, ir pras exposições e viram que lá é diferente. Lá o povo quer coisas mais bonitas, com acabamento cuidado.

As modificações surgidas a partir do final da década de 1990 estão presentes não

apenas nos objetos, em sua tipologia e decoração, mas se expressam também na

organização social do grupo de artesãs e na maneira como ele se estrutura para produzir no

galpão construído em 1999 visando à produção, armazenagem e comercialização das

peças.

191

Conforme já relatado, antes da instalação do projeto na localidade, as mulheres

produziam a louça em suas casas, individualmente, cada uma auxiliada no máximo por

uma jovem, filha ou neta, que passava pelo processo de aprendizado. Com a construção do

galpão, reunidas nesse espaço único, as mulheres pela primeira vez produzem em conjunto,

coletivamente, experiência nova que vem implicando novas formas de associação para o

trabalho.

Parceria e mutirão representam novos aspectos da organização para o trabalho

vividos pelas mulheres louceiras do Candeal, uma vez que, anteriormente, existia, quando

muito, uma espécie de especialização que se evidenciava nas preferências pela confecção

de determinados objetos. Odília sempre modelou pratos grandes, assim como Chitinha, que

é igualmente exímia na modelagem dos potes. Emília gosta de modelar moringas, enquanto

Nilda tem preferência por peças pequenas, e assim por diante. Todas elas, no passado,

invariavelmente executavam seus objetos preferidos do início ao fim do processo. Hoje,

continuam a fazê-lo, embora também possam associar-se para modelar o mesmo objeto.

Ao fazê-lo, as preferência individuais já não são mais dirigidas para tipos diferentes de

produtos, mas para etapas diferenciadas do processo produtivo. Juntas preparam a pasta,

socam e peneiram o barro, que a seguir colocam de molho para que, então, umas amassem

e modelem, enquanto outras se inserem no trabalho a partir dessa etapa e se encarregam de

finalizar a peça: desbastam, brunem e alisam, responsáveis que se tornam pelo acabamento

da louça. Ao final, as duplas – ou grupos – se juntam novamente, no dia da queima, para

pintar as peças e pô-las no forno a assar. O montante da produção ou o resultado da venda

será então dividido entre elas.

Nesse sentido, observa-se que se instaura um novo princípio de divisão social do

trabalho. O mesmo objeto agora tem parte do processo de modelagem feita por uma

louceira diferente, o que muda fundamentalmente a relação por que as mulheres até então

se pautavam para trabalhar.

Isso não significa que anteriormente formas associativas de trabalho não houvessem

sido experimentadas pelas louceiras. Há relatos de que algumas vezes isso ocorreu,

tornando possível o trabalho conjunto de feitura de um único objeto. O fato, no entanto, era

muito raro e geralmente decorria do processo de socialização da atividade, quando uma

mulher mais experiente no ofício ensinava a uma jovem os procedimentos da modelagem,

finalizando as peças que a aprendiz iniciava até que esta viesse a ter prática suficiente para

fazer a modelagem integralmente. A experiência era esporádica e se encerrava quando

192

aquela que aprendia era considerada hábil o suficiente para prosseguir por si mesma e em

seu próprio ambiente doméstico o ofício que lhe fora ensinado.

Essa nova forma de produção, segundo a qual duas ou mais artesãs trabalham

associadas, se constituiu numa maneira de produzir muito mais corriqueira na atualidade e

vem resultando, portanto, em mudança no processo tecnológico e nas relações que as

artesãs estabelecem entre si. Reproduz-se entre as louceiras o modelo tradicional da

socialização pela qual a aprendiz tinha seu trabalho revisto, complementado e finalizado

pela mestra, fosse a mãe ou outra louceira com quem aprendia. Agora, no entanto, essa

relação passa a se estabelecer entre duas louceiras, uma considerada mais hábil e capaz de

dar às peças um bom acabamento, e outra que é tida como forte e ágil, capaz de imprimir

um ritmo regular e dinâmico à produção, responsabilizando-se pelo preparo das peças até o

ponto de acabamento. As duplas se organizam então, baseadas em critério de ordem

técnica e não mais de acordo com o princípio de filiação que anteriormente prevalecia.

Nesse momento, realinham-se as alianças entre artesãs, de forma a estabelecer as

parcerias. Passa a haver nítida hierarquia entre elas. Aquelas reconhecidamente mais

hábeis na finalização das peças são consideradas as grandes mestras, exercendo poder e

mando sobre as demais. Aquelas consideradas fortes e dinâmicas são chamadas a compor

as duplas, formando aliança com as mestras. Restam as louceiras tidas como menos hábeis,

mais fracas, que apresentam menor capacidade de associação na empreitada da produção

conjunta. O resultado observado é que algumas duplas produzem em ritmo mais intenso

que outras e que as duplas têm produção maior quando comparadas às artesãs que

continuam a trabalhar isoladamente. Ao final, esse quadro irá refletir o acesso desigual às

encomendas que chegam à localidade e, conseqüentemente, aos recursos que advêm das

vendas realizadas.

A situação que as louceiras recentemente passaram a viver e que trouxe como resultado o

realinhamento das relações sociais e a interferência nas maneiras de trabalhar o barro vem

reestruturando o grupo, que busca novas formas de relação para fazer frente às exigências

que se colocam. Organizar a produção em moldes coletivos e não mais isoladamente em

cada unidade doméstica foi uma delas. Assim, além de atuar em duplas, constituindo

parcerias, em ocasiões de grande demanda as louceiras passaram a trabalhar em unidade

maior, juntando-se para a realização de todo o processo da produção de modo a dar conta

das encomendas no tempo acordado com o comprador. Assim fizeram quando enfrentaram

o desafio de produzir em tempo recorde uma grande quantidade de louça que deveria

seguir para Nova York, conforme a citação que dá início a este capítulo. Ao receber a

193

encomenda das peças, a solução encontrada pelas mulheres para atender à demanda foi

produzir sob forma de mutirão,80 como relata Nilda:

A encomenda chegou através do telefone. O homem descobriu pelo catálogo. Aí ele ligou pra Dim, pediu e disse que era pra levar pros Estados Unidos. Aí ele perguntou como era que a gente embalava. Nós explicamos. Aí nós embalamos tudinho, do jeito que as peças saísse daqui ia chegar lá. Iam pros Estados Unidos, que ele ia levar. O prazo era muito curto. Nós tinha praticamente seis dias pra fazer. Nós fizemos. Por isso que foi feito de mutirão. Se não fosse, não dava certo não. Ele pediu 40 travessas grandes, 40 médias e 40 pequenas; 20 pratos grandes, 20 tigelas grandes, 20 médias e 20 pequenas; 35 potinhos, 20 travessas lisas grandes, 20 médias e 20 pequenas. Ele pediu na verdade canoa, só que a gente entende como travessa lisa. Então no cartãozinho nós pusemos travessa repicada e travessa lisa pra ele identificar. Nato emprestou o dinheiro para pagar o frete e tocou R$122,00 para cada um. Entre tudo, tirando a porcentagem da Associação.

O mutirão é modalidade de trabalho coletivo que ocorre na região, em especial quando se

trata de atividade agrícola a ser realizada em período curto de tempo e nos momentos da

vida social que demandam ação de muitas pessoas para que a tarefa a ser executada seja

feita a tempo. Nesse contexto é comum em festas coletivas, quando se faz necessário o

auxílio de muitos para limpeza do largo em frente à igreja, por exemplo, bem como nos

almoços de casamento, quando a prodigalidade é socialmente solicitada e grande é o

trabalho a ser realizado. Nesses momentos convoca-se um grupo maior de pessoas para a

cooperação, acionando-se os laços de parentesco e amizade que ligam as pessoas da

localidade. O mutirão não se configura como mero arranjo organizacional de força de

trabalho. Não se trata simplesmente de uma questão de análise de processo de produção

equacionando-o à distribuição de um número de trabalhadores de forma que cada um fique

responsável pela execução de uma etapa do processo. Mais do que isso, o mutirão é forma

solidária de ação, pressupõe uma motivação social para que as pessoas resolvam se juntar

para realizá-lo. Nos últimos tempos, essa modalidade de trabalho coletivo tem sido

aplicada no município, sempre que haja uma demanda por obras públicas que venham a

beneficiar os “cidadãos” em geral. Limpeza de uma área de uso coletivo qualquer, como a

praça do povoado, conserto de estradas, instalação de rede de água potável, como foi o

caso ao se perfurar o poço que abasteceu as localidades próximas da Olaria, são ocasiões

para se convocar um mutirão que já vêm se tornando corriqueiras no cotidiano da

população local. No caso em questão, havia a expectativa da produção a ser realizada em

curto espaço de tempo, de forma que só se reunindo as louceiras teriam possibilidade de

80 Acerca da organização do mutirão, de sua importância e significado, remeto a Caldeira, 1956; Galvão, 1959 e Candido, 1971.

194

sucesso na empreitada acordada, pois existia grande margem de risco, dado o volume de

peças a ser preparado, como relata Nilda:

No dia do mutirão, eu falava: Oh! Meu Deus, será que vai dar certo? Aí Benita falava: Deus ajuda que dá certo. Eu já esquecia do medo e partia pra fazer as coisas. Aí nós ficava fazendo. Mas aí eu falava: Oh! Meu Deus, me ajuda. Oh! Meu Deus, não estou conseguindo. Aí nós ia fazendo. Aí quando nós via aquele mundo de coisa aqui, tudo espalhado pelo chão... nós tava doidinha pra contar, pra ver quanta coisa já tinha. Daqui até naquela ponta lá, tava tudo tomado de peça. No outro dia: Oh! Meu Deus, será que nós consegue cortar tudo? Aí nós começamos. Não tinha paradeira não, e quando foi umas oito horas da noite, nós terminamos de cortar tudo. Aí umas foi embora, e eu fiquei com Rita aqui, ajeitando, consertando tudinho, umas coisinhas que ficaram aqui, uns risquinhos que precisava passar o lisador. Aí acabou. Quando foi no outro dia, eu tinha que ir em Januária. Aí, em Januária eu fiquei brigando mais o homem lá: Nós temos que ir embora agora porque eu tenho que fazer uma coisa urgente lá. Cheguei aqui, as mulheres tinham pintado, posto no forno, aí eu peguei, fui fazer etiqueta, deixei as etiquetas tudo pronto. Quando foi no outro dia nós tirou essas coisas tudo fervendo do fogo. Porque tava quente mesmo. Aí nós colocou tudo aqui. Os menino homem é que ajudou, porque eles tinham o braço grande, aí eles iam apanhando, eu ia fazendo os etiquetas. Eu mais Carmen, o resto que tava faltando. Umas colando com durex. Aí, na hora de arrumar foi todo mundo. Vania mais Carmen ficou contando peça por peça. Aí depois elas me chamaram: Vem ver, conferir Nilda. Quando foi umas seis horas tava tudo embalado. Nós fizemos 500 peças em três dias.

Segundo o relato de Nilda, assim começou um dos muitos mutirões que as louceiras vêm

realizando para dar conta de encomendas externas e demandam a modelagem de muitas

peças em curto espaço de tempo. De outra forma, quando o prazo de entrega da encomenda

é maior, o pedido é dividido entre as louceiras que podem fazer as peças individualmente.

Nem sempre, no entanto, tudo ocorre de forma tão harmônica, havendo momentos de

grande tensão e acusações de que algumas louceiras tentam pegar para si e para o grupo

mais restrito de suas aliadas as encomendas que chegam, não as repassando para o grupo

como um todo.

195

O pedido de São Paulo de peças que deveriam seguir para os Estados Unidos indica

uma questão que vem sendo debatida ao longo de décadas e que foi aqui apontada no

Capítulo 3, quando me referi à preocupação de Cecília Meireles para com o mundo do

objeto artesanal, na década de 1950. Ao revés do receio manifestado pela poeta e

folclorista de que o processo de industrialização mundialmente crescente viesse a

concorrer para o desaparecimento da forma artesanal de produção de objetos, a análise do

presente caso evidencia a existência de nichos na sociedade contemporânea urbana, em que

o artesanato pode encontrar espaço para existir, o que revela como mundos altamente

industrializados prosseguem demandando produtos artesanais.

Essa é uma das conclusões a que chego ao analisar a experiência vivida pela

comunidade do Candeal, pólo de produção de cerâmica que, passando por dificuldades

extremas para se manter, devido à ampliação de seu universo, isto é, à ligação com novos

centros de consumo, vem conseguindo dar continuidade ao ofício de produção de louça de

barro e à reprodução social do grupo. O isolamento, esse sim, produziria seu

desaparecimento, razão que se soma à falta de incentivo à produção, ao baixo valor dos

objetos no mercado regional e à dependência e subordinação das louceiras aos donos dos

barreiros e aos compradores de sua produção.

A suposta relação problemática entre a cerâmica local e o mundo industrializado,

que se revela nula no Candeal, é uma preocupação que se apresenta também em outras

realidades. A esse respeito, referindo-se às rendas produzidas no Baixo São Francisco, diz

Beatriz Dantas:

No conjunto dos trabalhos femininos tradicionais, o fazer renda manualmente com bilros e almofadas é uma referência constante entre escritores e observadores da vida social que, com freqüência, têm chamado atenção para o crescente desaparecimento da atividade em vários lugares, ou seu caráter apenas residual em muitos outros. Nesse processo, é atribuído um peso muito significativo ao avanço da industrialização como o principal responsável pelo emudecer dos bilros devido à substituição das rendas artesanais pelas rendas industrializadas (Dantas, 2005:139).

Tendo em vista ressaltar a impropriedade de uma correlação mecânica entre o

desaparecimento da produção artesanal e o mundo da industrialização, Dantas recorre a

Canclini, para quem:

As ideologias modernizadoras, do liberalismo do século passado ao desenvolvimentismo, acentuaram essa compartimentalização maniqueísta ao imaginar que a modernização acabaria com as formas de produção, as crenças e os bens tradicionais. Os mitos seriam substituídos pelo conhecimento científico, o artesanato pela expansão da indústria, os livros

196

pelos meios audiovisuais de comunicação (Canclini, 1998: 21; apud Dantas, 2005: 139).

Prossegue Beatriz Dantas referindo-se a muitos autores que têm chamado

atenção para a complexidade da relação entre tradição e modernidade e que mostram

como, nos interstícios das sociedades complexas, se abrem brechas para a manutenção de

certos fazeres tradicionais, pois a produção de objetos numa sociedade de classes é

diversificada não só pelos próprios mecanismos da produção, como também pelas

demandas diferenciadas dos grupos sociais.

Retomando o exemplo da renda de bilros feita no São Francisco, a autora

demonstra que o contato entre diferentes regiões e formas diversas de organização

socioeconômica não conduz, necessariamente ao desaparecimento de formas tradicionais

de trabalho.

A articulação entre regiões centrais e regiões periféricas do ponto de vista econômico e cultural muitas vezes fornece o suporte necessário à continuidade dessas atividades, quando conectadas a outros movimentos da sociedade, sejam eles de feição econômica, social, demográfica, sejam de feição cultural ou política, que quase sempre aparecem imbricados na trama da vida social (Dantas, op. cit.: 140).

Conforme demonstrado, isso é o que também acontece no Candeal, onde a ampliação das

divisas regionais e a possibilidade de acesso da louça localmente produzida têm significado

a revitalização do fazer local, a despeito dos problemas e obstáculos a serem enfrentados e

vencidos por suas produtoras no exercício do ofício que mais caracteriza aquelas mulheres.

Na análise do circuito nacional de consumo da louça do Candeal, não pude verificar

o tipo de pessoa que adquire os objetos. No entanto, pude perceber, com base num

levantamento sumário feito sobre o público comprador do espaço de venda do CNFCP, que

o consumo estava relacionado às seguintes motivações: uso no serviço doméstico,

especificamente para cozinhar, no caso da panela, e para depósito de água, no caso da

moringa; uso em rituais da umbanda e do candomblé, em que as peças são utilizadas como

recipientes para as oferendas às entidades e orixás em cumprimento de obrigações; uso da

louça como objeto decorativo de ambiente. Em todos esses casos, o discurso é marcado

pela questão do típico, do genuíno, do original. É o objeto de barro, feito no Candeal,

percebido como um elemento identificador do “modo de ser brasileiro”, integrando um

conjunto de representações da cultura brasileira, das origens e do passado do país. Não

aprofundei essas questões que mereceriam um estudo à parte sobre os consumidores

urbanos do objeto do Candeal. Uma crítica a essas concepções foi formulada por Luiz

Felipe Baêta Neves, que denominou “folclorizante” à visão que tem no objeto popular o

197

exemplo do “pitoresco”, do “típico” e do “original” e “museologizante” aquele que,

“baseando-se numa postura típica de um evolucionismo vulgar, acredita que a obra de arte

popular seja representativa de uma etapa anterior da civilização – como se só houvesse

uma “civilização” ou um único desdobramento possível para cada “civilização” (Neves,

1979, 20).

Na rápida enquete realizada no CNFCP, pude perceber que uma parcela do público

consumidor da louça do Candeal no Rio de Janeiro é composta de comerciantes que

buscam abastecer suas lojas, adquirindo ali objetos sem o ônus do transporte que encarece

sobremaneira o preço final do produto, em especial em se tratando de cerâmica, objetos

pesado e frágeis. Embora o espaço da Sala do Artista Popular tenha, desde sua criação, se

proposto a ser também uma ponte entre o artesão e lojistas que comercializam o artesanato

no Rio de Janeiro, eu não fiz uma análise do tipo de lojista nem do modo segundo o qual

eles vêem e representam os objetos com que trabalham, tal como fez Angela Mascelani

(1996) em sua dissertação de mestrado na Escola de Belas Artes. Nesse trabalho, a autora

analisa as representações da arte popular que fazem parte do ideário de artistas, lojistas,

consumidores, críticos, estudiosos e colecionadores, procurando identificar os pontos

coincidentes e de oposição existentes entre eles, que vêm a constituir o mundo da arte. Em

relação aos lojistas, Mascelani aponta a heterogeneidade desse mundo composto por uma

pequena fração de empresários que nem sempre compartilham das mesmas idéias sobre o

assunto. Esses comerciantes, que ora definem seu empreendimento como uma galeria de

arte, ora como lojas de venda de arte, artesanato e/ou decoração, ao iniciar o

empreendimento nem sempre têm idéia pronta a cerca da categoria de objeto com que irão

lidar. A noção se constrói aos poucos, no exercício da atividade, conservando aspectos

conflituosos no decorrer do tempo (Mascelani, op. cit.: 65 e ss).

O pouco contato que estabeleci com os compradores no CNFCP que destinam os objetos à

decoração de ambiente, permite-me observar que à louça de barro está reservado um

espaço muito específico, ao qual a maioria se refere e que é constituído pelas casas de

praia, de campo e serra. Certa parcela dos consumidores aponta para o fato de que os

objetos que adquirem destinam-se à casa que possuem fora da cidade, havendo o

deslocamento da função primeira do objeto pois, a princípio, o pote não mais conterá água,

porém flores em um canto da sala ou na varanda. O caráter mais decorativo que esses

objetos parecem assumir, implicando mudança de sentido, é, no entanto, parcial, já que

esse aspecto já estava contido no objeto desde sua origem. Junto ao caráter utilitário e ao

198

decorativo, outros existem, como o simbólico. Segundo Carlos Rodrigues Brandão, para

quem:

O folclore são símbolos. Através dele as pessoas dizem o que querem dizer. A mulher poteira que desenha flores no pote de barro que queima no fundo do quintal sabe disso. Potes servem para guardar água, mas flores nos potes servem para guardar símbolos. Servem para guardar a memória de quem fez, de quem bebe a água e de quem, vendo as flores, lembra de onde veio. E quem é. Por isso, há flores nos potes... (Brandão, 1984: 107).

Atender à demanda crescente por objetos que chega ao Candeal, vinda do mundo

exterior aos limites regionais, exigiu novas formas de organização diferentes daquelas que

eram familiares às louceiras. Unirem-se numa associação de produção foi uma das

maneiras experimentadas de prover uma estrutura para que pudessem produzir e ter seus

objetos comercializados.

A referência à exposição nos Estados Unidos com que iniciei essas considerações

finais, foi feita por Nilda, então com 27 anos. Ao falar, a louceira expressou orgulho pelo

trabalho que as artesãs vinham realizando, e pela amplitude de sua ação. A venda para fora

do país era um indício disso. Nilda era então a presidente da Associação dos Oleiros do

Candeal e havia sido eleita porque reunia uma série de características que a faziam

destacar-se. Era jovem e estava disposta a trabalhar pelo grupo; era alfabetizada e lidava

com facilidade maior que as demais artesãs com papéis, prestações de conta,

correspondência, enfim, com a burocracia que a condição de grupo de produção

formalizado exigia; já havia morado por cerca de quatro anos em São Paulo, razão pela

qual “dominava” os códigos externos à localidade e não se intimidava se tinha que viajar

para fora da região. Embora nem todas as mulheres aceitassem plenamente sua condição de

presidente do grupo, o que evidencia a existência de segmentação a perpassar as relações

sociais internas aos moradores da Olaria, Nilda exercia liderança e parecia apta a conduzir

as questões coletivas que, para outras mulheres mais velhas, significavam barreiras difíceis

de transpor. Por isso ela assumira a Presidência da associação.

É bem verdade que conquistar o posto de presidente da Associação dos Oleiros não

fora uma disputa acirrada. Houve mesmo alguma dificuldade em conseguir adesões, de

modo a compor uma diretoria que conduzisse a nova forma de organização, jamais

experimentada. Nesse contexto, ser ou não uma artesã consagrada pouco importava para o

grupo. A questão era eleger um mediador que viabilizasse as relações das louceiras com o

mundo da burocracia e com o mundo da louça que passava a extrapolar o espaço local e

regional.

199

Duas pessoas apresentavam condições de ocupar a posição de “mediador social”, na

acepção que Becker imprimiu à expressão, conforme visto no capítulo anterior. Uma delas

era Nilda. A outra era Dim (E5), dublê de oleiro e “comprador” de louça, cuja posição

junto às artesãs já foi relatada. Irmão de Teresa (E4) e sobrinho de Joventina (D6), portanto

pessoa aparentada com várias artesãs, ele fora o primeiro a ocupar a Presidência da

associação de oleiros, no período de 2000 a 2002. Muito embora não residisse na Olaria,

mas no extremo oposto do povoado do Candeal, na saída em direção a Cruz dos Araújos,

Dim é considerado pessoa de dentro da localidade e, há muitos anos, desempenha o papel

de mediador do grupo, atuando diretamente ou dando apoio em questões que implicam

instâncias exteriores à Olaria.

A criação da associação foi uma medida em princípio meramente burocrática

surgida na Olaria por ocasião da implantação do Paca. Ao lado das questões que objetivava

resolver, gerou outros problemas, já que seu funcionamento implicava em registro em livro

de atas de reuniões de diretoria e assembléia, de administração financeira, controle de

caixa, distribuição de recursos, retenção de percentual sobre vendas, pagamento de taxas,

enfim, uma série de questões que passaram a fazer parte do cotidiano daquelas mulheres,

verdadeiros problemas que elas não conseguiam resolver satisfatoriamente tendo em vista

a condição analfabeta da maioria absoluta das mulheres.

Não foi, entretanto, a única novidade chegada ao Candeal e que se introduziu no

sistema de produção de louça. Outras mudanças aconteceram, e a frase de Nilda

denunciava a situação relativamente nova que o grupo vivia. Transformava-se a realidade

social, e as artesãs viam romperem-se as divisas do mundo regional. Sua produção já não

mais se orientava para o autoconsumo e para cobrir as necessidades de consumo local e

regional. Passou-se a viver num mundo mais amplo, coberto por uma rede de atores sociais

muito mais diversa, integrada por indivíduos por vezes desconhecidos das artesãs.

No campo social, as principais mudanças ocorridas a partir de 1998, referem-se ao

aumento da renda familiar, o que de fato se refletiu diretamente nas condições de vida da

população. Um dos sintomas da mudança pode ser visto nas moradias da Olaria, onde, das

21 casas existentes no início das ações, 13 foram reformadas ou integralmente

reconstruídas. A construção do galpão e as melhorias na localidade, como a instalação de

rede de água potável, são fatores que vêm contribuindo para a construção de novas

residências.

O projeto, que propunha a melhoria de qualidade de vida da população local, pode

ser avaliado pelo acesso que as louceiras passaram a ter a bens de consumo, como

200

geladeira, televisão, móveis de sala e de quarto, liquidificador etc. Comparando os dados

colhidos em 1998 com aqueles de 2004, podemos perceber a mudança que se expressa

conforme a tabela a seguir:

bens de consumo percentual 1998 percentual 2004 Luz elétrica 80 92 Fogão a gás 10 38 TV 15 31 Rádio 50 80 Filtro de água 10 38 Garrafa térmica 20 69 Panela de pressão 25 62 Panela de ferro 35 46 Geladeira 0 23 Liqüidificador 0 62 Ferro elétrico 0 69

De acordo com esses dados, verifica-se sensível melhoria nas condições de vida da

população local. No entanto, algumas observações que extrapolam a frieza dos dados

quantificáveis, precisam ser colocadas. Com relação à luz elétrica, por exemplo, a despeito

do aumento percentual de casas que vieram a ter acesso à energia, o índice não foi de

100% porque a rede elétrica não chegou às casas de número 19 (dona Eugênia) e 20

(Benita), situadas para além do riacho Mané Veio. Conseqüentemente, essas casas também

não dispõem de equipamentos elétricos, como geladeira, liqüidificador, ferro elétrico e

televisão, bens que, se a rede elétrica tivesse chegado até lá, com certeza estariam

incorporados ao cotidiano dos moradores. Bens de consumo, como liqüidificador e ferro

elétrico, embora dependam de energia elétrica, apresentam um índice elevado de

incorporação à vida da população local. Esses bens, que não existiam na localidade em

1998, passam, em 2004, a apresentar um índice de 62% e 69%, respectivamente. Merece

também destaque o consumo da panela de pressão, que sobe de 25% para 62%, e da

garrafa térmica, que passa de 20% para 29%. Curiosamente, numa região rural, cercada de

mato, onde a preocupação com a depredação da natureza não inviabiliza o corte de árvores

e onde 100% das residências dispõem de fogão a lenha, ainda assim se verifica um

acréscimo no consumo de fogão a gás de 10% em 1998, para 38% em 2004, embora o

isolamento e as distâncias a serem vencidas, dificultem a aquisição e o transporte do bujão

de gás. Acredito que o fogão a gás, na Olaria, possa ser um daqueles objetos em que T.

Veblen (1983) reconhece o caráter ostentatório, podendo, portanto, ser-lhe atribuído valor

de consumo conspícuo. Nesse sentido, o fogão a gás estaria no Candeal não para preparar e

201

cozer alimentos, o que geralmente é feito no fogão a lenha, mas para indicar o poder e o

prestígio de quem o possui, o que se comprova pelo fato de o gás raramente ser usado, e

sua falta persistir por meses em algumas casas.

As transformações ocorridas na localidade vêm repercutindo nas representações

que a população do entorno formula sobre a Olaria e os artesãos. O galpão que por

determinado período foi a maior obra existente na região, tornou-se cartão de visita do

município. A Olaria, local anteriormente considerado vergonhoso, transformou-se em

ponto de referência ao qual são levados autoridades e turistas que visitam a região. A louça

do Candeal agora decora as salas da prefeitura municipal, é o orgulho do município e o

brinde que o prefeito de Cônego Marinho oferece a autoridades civis e de governo. A

imagem dos oleiros também se transforma. Aqueles indivíduos, antes sujeitos a um

processo discriminatório, acusados de serem “briguentos”, “violentos” e “quase igual a

bichos”, têm a imagem negativa suavizada, quando não plenamente reelaborada, como se

os componentes que os definiam tivessem se tornado invisíveis.

O projeto pressupõe, no entanto, uma análise aprofundada, de forma que os

resultados alcançados possam ser relativizados. Como salientou Antonio Augusto Arantes

(2003), entre cultura, economia e política existe uma interface que não pode ser

menosprezada nas ações de desenvolvimento social, sob pena de vermos fracassar os

objetivos pretendidos.

Portanto, um projeto de política pública deve se fazer de uma forma muito ampla

envolvendo antropólogos e outros especialistas das áreas de economia, saúde e educação,

dentre outras, além da cultural. Embora fique evidente que o projeto desenvolveu a

produção artesanal, transformando-a em fator do desenvolvimento social local, ele se viu

comprometido e enfrentou barreiras, como o analfabetismo e o alcoolismo. Portanto, a

política pública não pode olhar a sociedade de forma segmentada.

Um exemplo da dificuldade imposta pelo analfabetismo foi a experiência vivida

quando as artesãs receberam uma encomenda para produzir meia dúzia de cada objeto que

costumavam modelar. Somente no momento da entrega ficou constatado que as artesãs

haviam confeccionado 72 peças de cada produto pois, segundo sua interpretação, meia é

igual a seis e dúzia é igual a 12, logo: 6 x 12 = 72.

É certo que ao propor uma intervenção social, corre-se o risco de a implantação do

projeto englobar também um impacto negativo sobre a vida na localidade. No Candeal,

mais dinheiro implicou um consumo maior de cachaça, e, nos últimos anos, o alcoolismo

tem-se apresentado como um dos grandes problemas da localidade.

202

Por outro lado, alguns depoimentos podem atestar a melhoria das condições de

vida, como o de Benita, em setembro de 2001: “Nós tinha situação difícil mesmo. Veio

melhorar depois que eu passei a trabalhar aqui [no galpão]. Todo tempo que eu trabalhei

em casa era difícil”. Do mesmo modo, a artesã Teresa, em fevereiro de 2004, afirmou:

“...depois, como chegou o projeto, a gente deixou de vender pra essas pessoas aí, que não

dão valor ao trabalho da gente. Aí é que começou a melhorar. Ficamos só para mandar pra

lá pro Museu e receber o dinheirinho”.

203

Conclusão

Nas primeiras idas ao Candeal, eu encontrava dificuldades para explicar a natureza

de minha formação e o sentido de minha presença ali. No início, fui confundido com um

missionário religioso que buscava converter a população. Depois passei a ser visto como

uma espécie de pessoa desprendida do mundo urbano que, por alguma razão de ordem

pessoal, seguira para os confins dos Gerais para realizar, abnegado, um trabalho de cunho

social. Devidamente consideradas, essas primeiras representações a meu respeito não

variaram muito: a missão religiosa e o trabalho assistencialista se confundem em inúmeros

pontos e ambas poderiam dar conta, numa primeira instância, de minha presença no local.

O trabalho continuado, no entanto, permitiu o deslocamento das lentes pelas quais eu era

visto, fazendo com que minha posição de agente de uma instituição cultural fosse melhor

compreendida e eu pudesse ocupar a posição de mediador entre as realidades local e

nacional. A postura que adotara, favorecida pela prática antropológica do reconhecimento

da diversidade e do respeito à alteridade, fazia-me diferente de padres, pastores e beatos,

tipos sociais com os quais a população estava mais familiarizada.

Entretanto, ser antropólogo permaneceu como algo muito abstrato para explicar o

interesse que eu demonstrava pela maneira como viviam e pela louça que produziam. A

gravação das histórias, os registros fotográficos, as anotações em caderno, o discurso

acerca da importância do saber e do conhecimento que revelavam ao modelar objetos de

barro me aproximavam do universo da escola e me vali da imagem de professor para poder

assim realizar as observações que terminaram por construir este texto e que também me

permitiram atuar incentivando o processo de produção artesanal. Com o decorrer dos anos,

foi possível ser um dos atores desse processo de mudança da realidade social que alterou o

significado da louça de barro, a vida e as representações dos moradores do local.

Assim, atualmente, na Olaria, a louça ali produzida é consumida basicamente para

armazenagem e preparo de alimento e nunca percebida como objeto de decoração. Feita

para autoconsumo, atende às necessidades da própria louceira, que também é dona-de-casa,

e de seu grupo familiar. No circuito local raramente é comercializada, integrando o mundo

do parentesco e das alianças. Objeto de uso, se faz também mediador nas relações entre a

artesã, que o produziu, e as demais mulheres da localidade. Circulando em forma de

dádiva, principalmente entre determinadas categorias de parente, como mãe e filha e sogra

e nora, agenciam (Gell: 1998) o sistema de reciprocidade, tanto no momento de sua

204

produção, em que mais de uma artesã se associa para produzi-la, quanto na distribuição

que é feita para o consumo dos moradores da localidade.

Especialmente entre mãe e filha e sogra e nora, a louça de barro é responsável pela

configuração do caráter que as relações sociais assumem. Assim, o uso e os sentidos que a

comunidade local dá à louça é o mesmo concebido pelas unidades familiares que os

produzem. A diferença está no valor da dádiva que é agregado ao objeto com que se

presenteia ou se é presenteado nesse segundo nível de relação. Em certa medida, o mesmo

pode ser dito em relação ao consumo regional, pois nesses dois circuitos de consumo

prevalece o caráter dos objetos como um bem voltado para o serviço doméstico. No

entanto, ao romper as fronteiras locais, subtrai-se do objeto o caráter da dádiva. Em outras

palavras, os objetos que se inserem no mercado regional, assim como no mercado nacional,

estão claramente imbuídos do valor comercial percebidos, antes de mais nada, como bens

comerciais e comercializáveis, e portanto sujeitos às regras de compra e venda realizadas

pelo intermediário, denominado “comprador”, seja ele o agente individual ou o lojista do

Mercado Municipal de Januária, onde habitualmente a louça é comercializada e onde

aparece uma outra classe: o objeto souvenir, a lembrança de Januária, o “objeto típico”,

cujo consumidor é o público de fora, o turista, ou o público local que pretende levá-lo para

fora, para presentear amigos. Daí escolhem um objeto que seja característico do local, que

expresse uma identidade, que marque o local de onde veio.

Por vezes, ao ser introduzido no mercado nacional, o objeto artesanal adquire o

valor de bem cultural, valor que lhe é agregado, em especial quando esta introdução se faz

em espaços como museus e galerias, sob a forma de exposições e não mais em feiras ou

mercados81.

Há 14 anos, quando cheguei à localidade, pouco havia da louça de barro que, por

gerações, provera os lares da região, os Gerais que João Guimarães Rosa tornou imensos

ao referi-los como o grande sertão. Hoje, no entanto, a situação vivida pelas louceiras

parece indicar mais segurança para a expressão do fazer daquelas mulheres que voltaram

ao ofício da modelagem. Nesse processo de reconstrução, os sentidos da louça foram-se

transformando e, provavelmente, nisso reside a garantia de sua reprodução.

81 Para uma discussão acerca dessas categorias, ver o Capítulo 2, A Feira e a Exposição, da dissertação de mestrado de Guacira Waldeck (2002). Acerca da feira e o consumo urbano do artesanato, ver também Frade (1995).

205

Mas, o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de territórios, para sortimento de conferir o que existe? Tem seus motivos. Agora - digo por mim - o senhor vem, veio tarde. Tempos foram, os costumes demudaram. Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada (Riobaldo, em Grande Sertão Veredas).

Que Guimarães Rosa me permita discordar de seu personagem. Sim, os tempos são

outros, os costumes mudaram, mas sobrar, ainda sobra.

E o que sobrou foi suficiente para renascer com ímpeto e ganhar o mundo,

tornando-o menor. Hoje, o Candeal, pequeno pedaço dos Gerais, encontra-se também em

Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Estados Unidos, locais que exibem e

comercializam a louça lá produzida.

Foi o mundo da globalização que encolheu ou foi a louça que se fez um mundo

grande? Na ruptura das fronteiras que confinavam a louça ao universo limitado da região,

os objetos do Candeal colocam em trânsito todo o mundo social, variando de sentido à

medida que avançam por diferentes percursos.

206

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216

ANEXOS

217

Anexo 1 – Relação de alunos da Escola Estadual de Candeal

Aluno Idade 1. Agnaldo 17 anos 2. André 19 anos 3. David Oliveira Carneiro 18 anos 4. Débora Neves Costa 15 anos 5. Dionisio 17 anos 6. Eder Ramos Costa 14 anos 7. Edneize Pinheiro de Oliveira 15 anos 8. Edson de Farias Leandro 16 anos 9. Edson Guedes Lisboa 16 anos 10. Elaine 14 anos 11. Estélia 15 anos 12. Herlonjaques Santos 15 anos 13. Hizequias Pinheiro Nascimento 16 anos 14. Israel Oliveira Carneiro 16 anos 15. Ivanete Nunes 19 anos 16. Jaime Pereira Filho 15 anos 17. Joveni 16 anos 18. Marcilene Lopes da Silva 17 anos 19. Maria Nilza Lopes Pereira 18 anos 20. Marleide Santos Nascimento 18 anos 21. Mauriza Alves Carneiro 19 anos 22. Regina Pinheiro 16 anos 23. Silvânia Alves Costa 14 anos 24. Simone 16 anos 25. Vanderley Gonçalves de Freitas 26. Vera de Farias Leandro 14 anos 27. Vicente A. Magalhães 20 anos 28. Worley Costa Veloso 17 anos 29. Zoraide 22 anos

218

Anexo 2 – Quadro genealógico

219

220

Anexo 3 – Listagem nominal da genealogia segundo as gerações

A.

1. João Bispo 2. Laura 3. Matias Gonçalves de Souza 4. Joana da Silva Pinheiro 5. Julio de Tal 6. Maria Lopes de Jesus

B.

1. Estevão Dias de Souza (Estevo) 2. Leolina ou Leoline Maria do Nascimento ou Maria Dias do Nascimento (Liô) 3. Graciano da Silva Pinheiro 4. Ana Cardoso de Oliveira 5. Manoel Lopes dos Reis 6. Marcolina Pinheiro da Silva 7. Valentin Rodrigues da Silva 8. Graciana Pereira de Farias 9. Teotônio Pinheiro da Silva 10. Emídia Gonçalves Dias ou Emilda ou Emília Dias de Souza 11. Laureano 12. Maria Lopes dos Reis 13. Balduíno Amâncio de Souza 14. Antônia de Tal 15. Gerônimo Dias Muniz ou Gerônimo Muniz da Silva 16. Leandra Muniz ou Leandra Gonçalves de Souza 17. Manoel Francisco da Costa 18. Clementina José Muniz 19. João Nunes de Souza ou João Pinheiro da Silva 20. Ana Ribeiro da Silva ou Ana Pinheiro da Silva 21. Esteva Maria de Jesus

C.

1. Romão Pereira 2. Mulher de C-01 3. Vicente Xavier de Farias 4. Elvina Araújo Farias 5. Vitor Rodrigues de Oliveira 6. Júlia de Oliveira Neto 7. Ramiro Pinheiro da Silva ou Ramiro Nunes da Silva 8. Francisca Dias de Souza 9. Lourença Dias de Souza (Senhorinha) 10. Joana Dias de Souza (Ana) 11. Porfirio da Silva Pinheiro 12. Doroteu Cardoso da Silva 13. Ezídia José Muniz 14. Cândido Gonçalves Muniz 15. Leolina Cardoso de Souza ou Leolina Nunes de Souza 16. Ambrósio Pinheiro da Silva 17. Pedro Lopes Reis 18. Beatriz Rodrigues da Silva (Beata) 19. Manoel Lino de Oliveira

221

20. Júlia da Conceição Oliveira 21. Levino Pinheiro da Silva 22. Maria Muniz de Souza 23. Felipe Amâncio de Souza ou Felipe Muniz de Souza 24. Ana Dias Muniz ou Ana José Muniz 25. Camilo Gonçalves Dias 26. Santa Francisca da Costa 27. Nicolau 28. Severina 29. Carlos Nunes de Souza 30. Virgínia Gonçalves de Souza 31. Leonel Gonçalves Pinheiro DN: 11/02/1923 32. Eugênia Lopes Pinheiro DN: 15/02/1931

D.

1. Felix Pereira Farias Falecido 2. Rosa Xavier de Farias Falecida 3. Augusto de Oliveira Neto 4. Anita Dias de Souza (Nenite) Falecida 5. Anísio Dias de Souza (Natal) 6. Joventina Dias de Souza (Jove) DN: 13/09/1946 7. Afonso Lisboa Rodrigues DN: 25/10/1949 8. Maria da Silva Pinheiro (Maria Bia ou Bia) DN: 25/08/1938 9. Hermínia da Silva Pinheiro DN: 25/04/1936 10. Marido de D-09 11. Augusto Muniz da Silva DN: 30/08/1942

DM: 24/12/2003 12. Arlinda Gonçalves de Souza DN: 30/01/1942 13. Marido de D-14 14. Geralda 15. Coim 16. Mulher de D-15 17. Lucílio Nunes Pinheiro DN: 06/01/1953 18. Avelina Rodrigues Pinheiro DN: 23/06/1944 19. Idalina Lopes dos Reis DN: 08/09/1938 20. Feliciano José Muniz DN: 05/01/1932 21. Maria Rodrigues dos Reis DN: 02/02/1949 22. Lourival Conceição Oliveira (falecido) DN:25/11/1952 23. Primeiro marido de D-24 24. Maria do Amparo Muniz da Silva (Lora) DN: 08/09/1952 25. Januáiro Lopes dos Reis DN: 29/09/1932 26. Emília Nunes de Souza DN: 11/07/1940 27. Miguel Francisco Dias DN: 28/09/1951 28. Francisco Pereira da Silva ou Francisco Pereira de Faria 29. Nilza Amâncio de Souza ou Nilza José Muniz (Dezinha) DN: 20/09/1929

DM: 11/08/2003 30. Maria Benita Pinheiro DN: 10/10/1957 31. Batista Lisboa DN: 1956

E.

1. Francisco Sebastião da Silva ( Pernambuco) DN: 20/01/1949 2. Mulher de E-01 3. Mariano Xavier de Farias DN: 19/08/1950 4. Teresa Oliveira Farias (Teresinha) DN: 27/09/1954 5. Afonso (Dim)

222

6. Mulher de E- 05 7. José Oliveira Neto DN: 28/07/1952 8. Santa Silva Leite de Oliveira (Santinha) DN: 01/10/1958 9. Raimundo 10. Socorro 11. Maria Aparecida Silva DN: 20/03/1970 12. João Batista da Silva DN: 1975 13. Raimundo 14. Andréia 15. Edson Gonçalves da Silva DN: 1969 16. Maria de Lurdes Nunes dos Santos DN: 23/12/1970 17. Manoel da Panca 18. Dinha 19. Jacó 20. Adriano 21. Adenaldo Rodrigues Pinheiro DN: 24/04/1978 22. Cilene 23. José Muniz (Zé Pó) DN: 1973 24. Joelino José Muniz DN: 16/08/1981 25. Geraldo DN: 1975

DM: 23/04/1999 26. Pedro DN: 1977 27. Nilza DN: 1980 28. Beatriz Rodrigues de Oliveira DN: 17/08/1983 29. Daniel Rodrigues de Oliveira DN: 30/11/1985 30. Odair José Rodrigues de Oliveira DN: 10/07/1990 31. Adelso 32. Maria Rita Muniz Lopes DN: 20/01/1976 33. Manoel Lopes dos Reis 34. Manoel José Lopes (Zé Bagre) 35. Ana Maria Nunes Lopes (Nena) DN: 1975 36. José 37. Maria da Glória José Muniz (Chitinha) 38. Maria da Conceição Muniz 39. Regina DN: 12/10/1981 40. Reginaldo DN: 1985 41. Renato DN: 1987 42. Renata DN: 1990 43. Mateus DN: 19/10/1999 44. Marina DN: 11/01/2001

F.

1. Laurelice 2. José Leonardo da Silva DN: 06/12/1982 3. Eliane Oliveira Farias DN: 23/10/1983 4. José Francisco da Silva (Zezinho) DN: 1985 5. Maria Aparecida Oliveira Farias DN:1980 6. Elisangela Oliveira Farias DN: 1981 7. Marilene Oliveira Farias DN: 1983 8. Maria das Dores Oliveira Farias DN: 1986 9. Josimar Oliveira Farias DN: 1989 10. Gilmar Oliveira Farias DN: 1991 11. Jeane Oliveira Farias DN: 1992 12. Marcia DN: 1980

223

13. Leonardo DN: 1982 14. Gildete DN: 1984 15. Maria do Carmo DN: 1987 16. Lealdo DN: 1988 17. Lenaldo DN: 1993 18. José Santana DN: 1995 19. Gilvânia DN: 1997 20. Givaldo DN: 1998 21. Roseli 22. Fabio DN: 1991 23. Fabiana DN: 1993 24. Tatiane DN: 1995 25. Werley DN: 1997 26. Uelton DN: 1999 27. José Santana (Tana) 28. Maria Aparecida 29. Adenilson 30. Airís 31. Magna Francisca da Silva DN: 04/10/1991 32. José Carlos da Silva Lopes DN: 04/09/1994 33. Fagni da Silva Lopes DN: 11/09/1997 34. Ricardo da Silva Lopes DN: 19/08/1999 35. Rodrigo da Silva Lopes DN: 26/10/2001 36. Rubens da Silva Lopes DN: 23/11/2003 37. Gleison dos Santos Lopes DN: 1997 38. Gleiciane dos Santos DN: 1999 39. Lindomar DN: 1991 40. Joseane (Jôse) DN: 1993 41. Wanderléia DN: 1996 42. Jivanete Aparecido Almeida Silva DN: 06/11/1978 43. Nilda Muniz Farias DN: 25/10/1976

G. 1. Adriene 2. Leandro 3. Lucas 4. Leonice 5. Laiane Farias Almeida DN: 07/04/2001 6. Larissa Farias Almeida DN: 19/07/2002

224

Anexo 4 – Padrões de pintura

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