Sentimento Do Mundo

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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 1 Sentimento do mundo (Carlos Drummond de Andrade) 1. BIOGRAFIA Carlos Drummond de Andrade nasceu em 31 de outubro de 1902, em Itabira, que não ficou famo- sa apenas pelo seu minério de ferro, mas por ter sido berço do maior poeta brasileiro. Iniciou sua atividade jornalística no Colégio dos Jesuítas em Belo Horizonte (Aurora Colegial). Em 1918, teve um poema em prosa publicado (“Onda”) na revista Maio de Itabira. Em 1912, teve seu conto Joaquim do Telhado premiado pela Novela Mineira. Pouco depois iniciou suas atividades no Diário de Minas e na Ilustração Brasileira. Em 1923, iniciou seus contatos literários com Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Oswald de An- drade, Tarsila do Amaral e Blaise Cendrars. Corres- pondeu-se com Mário de Andrade, envolvendo-se na ebulição modernista da década de 1920. Fundou, em 1925, A Revista junto com outros companheiros. Fo- ram publicados três números da revista. Tornou-se professor de português e geografia no Ginásio Sul-Americano de Itabira, o que não durou muito tempo. Voltou a Belo Horizonte e tornou-se redator-chefe do Diário de Minas. Perdeu o primeiro filho: Carlos Flávio, a quem dedicou o poema “ser” (do livro Claro Enigma). Em 1928, nasceu Maria Julieta. No mesmo ano publicou “No meio do caminho”, o que causou uma enorme polêmica e um verdadeiro escândalo. Iniciou sua carreira de funcionário público em Minas Gerais. Transferiu-se como jornalista para o Minas Gerais, tornando-se auxiliar de redator, logo depois redator e cronista. Assinava suas crônicas sob o pseudônimo de Antônio Crispim. Em 1930, publi- cou Alguma poesia. Em 1934, Brejo das almas. Tornou-se chefe de gabinete do amigo Gustavo Capanema que, ao se tornar Ministro da Educação e Saúde Pública levou o poeta para o Rio de Janeiro. No Rio, colaborou na Revista Acadêmica, Correio da Manhã, Folha Carioca, Revista Euclides, A Manhã, Leitura, Tribuna Popular, Políticas e Letras. Em 1940, voltou às páginas do Minas Gerais. Deixou a chefia do gabinete de Capanema e pas- sou a trabalhar na chefia da Seção de História da Di- retoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Em 1945, empenhou-se na campanha pela anistia. Aposentando-se em 1962, dedicou-se integralmente ao trabalho literário. Faleceu em 17 de agosto de 1987. 2. INTRODUÇÃO A publicação de Sentimento do mundo, em 1940, marca a entrada da poesia drummondiana no conteú- do social, mais especificamente no que o próprio po- eta chamou de “na praça de convites” (choque social) ao organizar os poemas em nove temas centrais para a sua Antologia poética. Esse tema representa o con- flito social, a consciência do poeta de que seu cora- ção não é maior do que o mundo, como afirmara em Alguma poesia, pois seu coração é igual ao mundo, identificado com o sofrimento da humanidade. Sua publicação coincide com o período histórico-social da Guerra Civil Espanhola, da Segunda Guerra Mun- dial, do Estado Novo de Getúlio Vargas e com o cres- cimento do fascismo e do nazismo. BIP

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Sentimento do mundo(Carlos Drummond de Andrade)

1. BIOGRAFIA

Carlos Drummond de Andrade nasceu em 31de outubro de 1902, em Itabira, que não ficou famo-sa apenas pelo seu minério de ferro, mas por ter sidoberço do maior poeta brasileiro.

Iniciou sua atividade jornalística no Colégio dosJesuítas em Belo Horizonte (Aurora Colegial). Em1918, teve um poema em prosa publicado (“Onda”)na revista Maio de Itabira. Em 1912, teve seu contoJoaquim do Telhado premiado pela Novela Mineira.Pouco depois iniciou suas atividades no Diário deMinas e na Ilustração Brasileira.

Em 1923, iniciou seus contatos literários comManuel Bandeira, Mário de Andrade, Oswald de An-drade, Tarsila do Amaral e Blaise Cendrars. Corres-pondeu-se com Mário de Andrade, envolvendo-se naebulição modernista da década de 1920. Fundou, em1925, A Revista junto com outros companheiros. Fo-ram publicados três números da revista.

Tornou-se professor de português e geografia noGinásio Sul-Americano de Itabira, o que não durou muitotempo. Voltou a Belo Horizonte e tornou-se redator-chefedo Diário de Minas. Perdeu o primeiro filho: Carlos

Flávio, a quem dedicou o poema “ser” (do livro ClaroEnigma). Em 1928, nasceu Maria Julieta. No mesmoano publicou “No meio do caminho”, o que causou umaenorme polêmica e um verdadeiro escândalo.

Iniciou sua carreira de funcionário público emMinas Gerais. Transferiu-se como jornalista para oMinas Gerais, tornando-se auxiliar de redator, logodepois redator e cronista. Assinava suas crônicas sobo pseudônimo de Antônio Crispim. Em 1930, publi-cou Alguma poesia. Em 1934, Brejo das almas.

Tornou-se chefe de gabinete do amigo GustavoCapanema que, ao se tornar Ministro da Educação eSaúde Pública levou o poeta para o Rio de Janeiro.No Rio, colaborou na Revista Acadêmica, Correio daManhã, Folha Carioca, Revista Euclides, A Manhã,Leitura, Tribuna Popular, Políticas e Letras. Em 1940,voltou às páginas do Minas Gerais.

Deixou a chefia do gabinete de Capanema e pas-sou a trabalhar na chefia da Seção de História da Di-retoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.Em 1945, empenhou-se na campanha pela anistia.Aposentando-se em 1962, dedicou-se integralmenteao trabalho literário.

Faleceu em 17 de agosto de 1987.

2. INTRODUÇÃO

A publicação de Sentimento do mundo, em 1940,marca a entrada da poesia drummondiana no conteú-do social, mais especificamente no que o próprio po-eta chamou de “na praça de convites” (choque social)ao organizar os poemas em nove temas centrais paraa sua Antologia poética. Esse tema representa o con-flito social, a consciência do poeta de que seu cora-ção não é maior do que o mundo, como afirmara emAlguma poesia, pois seu coração é igual ao mundo,identificado com o sofrimento da humanidade. Suapublicação coincide com o período histórico-socialda Guerra Civil Espanhola, da Segunda Guerra Mun-dial, do Estado Novo de Getúlio Vargas e com o cres-cimento do fascismo e do nazismo.

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A presença do social é sugerida pelo próprio títu-lo, que remete o leitor ao sentimento de solidarieda-de do poeta para com todos os homens. A busca deuma fraternidade universal está entre os anseios dopoeta que, entretanto, encontra grandes dificuldadespara identificar-se com esse Outro. Drummond nãoabandona a temática do eu, a presença da persona-gem dramática do gauche,1 bem como outros temasque permanecerão em toda a sua obra, mas procuracontribuir na luta contra o fascismo e as injustiças deseu tempo. O indivíduo assimilará o mundo que ocerca, não obstante a tensão entre ele e o mundo.

Alguns poemas da coletânea Sentimento do mun-do traduzirão a esperança de um mundo melhor, deum tempo mais claro, mas o tom de niilismo (pessi-mismo) do poeta não será abandonado por completo.

Essa mudança temática, entretanto, não será com-pleta, já que poemas como “Madrigal lúgubre”, “Can-ção da moça-fantasma de Belo Horizonte” e “Poemada necessidade” mantêm o mesmo estilo dos livrosanteriores.

3. ANTOLOGIA COMENTADA

Sentimento do mundo

Tenho apenas duas mãose o sentimento do mundo,mas estou cheio de escravos,minhas lembranças escorreme o corpo transigena confluência do amor.

[…]

Os camaradas não disseramque havia uma guerrae era necessáriotrazer fogo e alimento.Sinto-me disperso,anterior a fronteiras,humildemente vos peçoque me perdoeis.

[…]

esse amanhecermais que a noite. (p. 120)

O poema mostra a dificuldade de saída do poetapara o mundo, bem como o seu encontro com as te-máticas sociais. As mãos simbolizam a consciência ea ação social. A tensão entre o eu e o mundo pode serrevelada pelo estranhamento, pela perplexidade do eu

lírico, que se sente disperso, / anterior a fronteiras.E capaz de ceder diante da convergência do amor.Ele possui apenas duas mãos / e o sentimento domundo, o que confirma seu sentimento de impotên-cia, porque lhe parece que seria necessário mais. Suacrise de consciência decorre do fato de que a espe-rança de comunhão com os outros homens foi inútildiante de sua incapacidade de completa integração.O vocabulário empregado (camaradas, guerra, fron-teiras) sugere os acontecimentos reais de seu tem-po, que desencadeariam na Guerra Civil Espanhola.

O final do poema traduz a ambigüidade dos senti-mentos do eu lírico: esse amanhecer / mais que a noite,com a prevalência do escuro sobre o claro. A imagemfinal sugere a consciência da necessidade da integra-ção Eu e Mundo, mas é ainda obscura pela incapaci-dade de ação efetiva por parte dele mesmo.

“Confidência do Itabirano” marca pela sua impor-tância a temática da terra natal (“uma cidadezinhaqualquer”) em Sentimento do mundo. Nele, o eu líri-co deixa claro o conflito entre a origem provinciana ea visão universal da poética drummondiana. Não sepode esquecer que, para um indivíduo nascido no in-terior de Minas Gerais, até mesmo o fazer poético jáé uma atitude de audácia e rompimento com o pro-vincianismo “numa sociedade prosaicamente estru-turada”, como observa Affonso Romano deSant’Anna. A poesia reflete uma forma de rupturacom os padrões daquele mundo de indivíduos comunsdentro da província. Ainda assim, o poema pode servisto como resultante da alienação que atormenta opoeta de Sentimento do mundo.

Alguns anos vivi em Itabira.Principalmente nasci em Itabira.Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.Noventa por cento de ferro nas calçadas.Oitenta por cento de ferro nas almas.E esse alheamento2 do que na vida é porosidade e

comunicação.[…]

O poeta identifica-se com a terra natal desde otítulo do poema, que se reveste de intenso caráter líri-co, já que é uma confidência, uma revelação secretae pessoal sobre suas próprias origens. A sua raiz mi-neira pode ser verificada nessa primeira estrofe atra-vés do jogo entre os verbos viver e nascer, empregadosno pretérito perfeito do indicativo como para justifi-car a personalidade do eu lírico como reflexo de suaorigem geográfica. O verbo viver refere-se ao fato deque o eu lírico morava em Itabira; enquanto nascerrepresenta uma identificação mais profunda com as

1 Do francês: esquerdo, torto, errado, contrário.2 Alienação, alheação, afastamento.

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raízes da cidade, ampliando e reforçando semantica-mente a ligação do indivíduo com a terra natal. A in-fluência do espaço físico será traduzida na tristeza eno orgulho, legados recebidos pelo poeta de sua ori-gem e que influenciaram na formação de sua perso-nalidade.

O emprego do verbo ser no presente do indicativoconfirma a identidade existencial do eu lírico: Porisso sou triste, orgulhoso: de ferro. A expressão deferro, repetida na estrofe, indica algo resistente, de-terminado, forte e nada maleável, aproximando a per-sonalidade do eu lírico aos aspectos geológicos dacidade de Itabira: Noventa por cento de ferro nas cal-çadas. / Oitenta por cento de ferro nas almas. O poe-ta une, por meio desses versos, o elemento materialdas calçadas ao elemento imaterial das almas. Demaneira confessional, partilha com o leitor que a ter-ra natal influencia em seu caráter, em seu comporta-mento. O afastamento de tudo o que não é resistentereitera e reforça seu caráter pouco maleável e nadacomunicativo: E esse alheamento do que na vida éporosidade e comunicação. “Este passado rígido eférreo parece impedir toda comunicação”. (John Gle-dson)

Assim, o eu lírico herdou de Itabira a tristeza, oorgulho, a firmeza e a timidez, elementos que se jun-tam na formação da personalidade daquele ser queele considera um itabirano, porque é herança ineren-te à “terra natal”.

Outras heranças de sua personalidade formadasem Itabira serão sugeridas na segunda estrofe:

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres

[e sem horizontes.E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,é doce herança itabirana.

Essa estrofe é uma confissão da presença de Eros,que faz o eu lírico continuar a trabalhar, porque dese-ja o amor físico durante as noites de Itabira, sem mu-lheres e sem horizontes. Não há amores e não háperspectivas dentro do mundo provinciano que cercao eu poemático e o empurra para uma solidão aindamais intensa. A tristeza e o sofrimento tomam contado eu lírico, tornando-se sua maneira usual de ser esua indiferença diante do sofrimento, como ele afir-ma no poema: E o hábito de sofrer, que tanto me di-verte. O emprego do adjetivo brancas, que atribui umaqualidade ao substantivo noites, não chega a estabe-lecer uma antítese, uma vez que não acreditamos queas noites sejam brancas, mas puras, imaculadas, ino-centes, no sentido de que, apesar da vontade de amar,não havia mulheres disponíveis nas noites itabiranas.

Tomando esse caminho da temática da “terranatal” como recurso de uma poesia centrada na

memória, pode-se afirmar que o poeta não conse-gue se libertar completamente das lembranças daterra natal, ainda que estas lhe tragam sofrimen-to. Essa poesia da memória é construída por frag-mentos, objetos e impressões, metonímias (partespelo todo) que prenunciam o todo, e que se unemaos sentimentos do eu lírico, impedindo-o deromper com os arquétipos (representações) pro-vincianos.

De Itabira trouxe prendas que ora te ofereço:esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;este orgulho, esta cabeça baixa…

O eu lírico conseguiu deixar fisicamente a terranatal, buscar o litoral (mudança para o Rio de Janei-ro), mas sem esquecer o passado, sem negar a pro-víncia. O mito da origem está marcado em seu sercomo característica indelével, aonde quer que vá. Oeu lírico trouxe de Itabira para a cidade grande cer-tos objetos, como a pedra de ferro, este São Benedi-to, este couro de anta, que permanecem comovestígios materiais da “terra natal”, mas trouxe tam-bém aspectos comportamentais que influenciam emsua personalidade e que permanecem como herançasitabiranas, como este orgulho e esta cabeça baixa,que podem ser considerados para ele como atitudespositivas herdadas do clã familiar, mas que reforçamseu conflito. A timidez do eu lírico está representadana cabeça baixa.

O verbo trazer, no pretérito perfeito do indicativo,marca a distância entre o presente e o passado. Asprendas são as oferendas trazidas do passado para umpronome oblíquo te (… que ora te ofereço). O eu líri-co provavelmente se dirige ao leitor. Espaço e temposão construídos por meio das reminiscências ofereci-das em forma de objetos ao interlocutor, ainda que amaior oferenda seja realmente a própria confidênciafeita pelo eu lírico.

O distanciamento entre o presente e o pretéritoparece se ampliar nos versos da última estrofe, comose estivesse acentuado pela antítese social entre umpassado rural e provinciano de riqueza e um presenteurbano e funcional:

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.Hoje sou funcionário público.Itabira é apenas uma fotografia na parede.Mas como dói! (p. 121)

O mundo material de riqueza é representado porum passado que o poeta sequer conheceu, ligado maisàs origens de seus antepassados do que propriamentea ele. Ao eu lírico coube estar mais próximo de umaherança rural nem tão rica assim, mas da qual ele pa-

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rece ter abdicado em favor da poesia, desde sempre“fazendeiro do ar”.

Os verbos viver e crescer, empregados na primei-ra estrofe, e o verbo trazer, da segunda, serão substi-tuídos pela repetição do verbo ter no pretérito perfeitodo indicativo e que se ligará ao verbo ser, ambos nopresente do indicativo. Os tempos verbais utilizadosreforçam, ainda uma vez, a distância entre o passadoe o presente.

O eu lírico junta os fragmentos espalhados por todoo poema num único objeto do mundo físico, represen-tação última de todas as reminiscências: a fotografiade Itabira. A lembrança é apenas mais um objeto naparede, mas cuja memória ainda machuca o eu lírico,e cuja última confidência, pouco típica de um provin-ciano mineiro, normalmente reservado e tímido comoele mesmo se confessa, é o último verso do poema:Mas como dói! A conjunção mas abre um primeirocaminho para a explicação, já que induz a adversidadeem relação ao que foi dito e que deveria ter sido ape-nas uma lembrança na parede, como os outros objetostrazidos de Itabira, e, como tal, esquecida. O advérbiocomo atribui o valor circunstancial à frase exclamati-va. O verbo doer no presente do indicativo faz crer quea lembrança da terra natal lhe causa uma dor continu-ada. Em outros termos, pode-se observar que a cidadeficou gravada numa fotografia, mas sua recordação ain-da emociona o eu lírico, porque permaneceu, para sem-pre, em sua memória afetiva; ao contrário dos demaisobjetos, apenas circunstanciais, e que ficaram como lem-branças físicas de um passado.

Também encontramos as lendas assombrosas emSentimento do mundo, como em “Canção da Moça-Fantasma de Belo Horizonte”, que dá continuidade àtemática da “terra natal”.

Eu sou a Moça-Fantasmaque espera na rua do Chumboo carro da madrugada.Eu sou branca e longa e fria,a minha carne é um suspirona madrugada da serra.Eu sou a Moça-Fantasma.O meu nome era Maria,Maria-Que Morreu-Antes.

Sou a vossa namoradaque morreu de apendicite,no desastre de automóvelou suicidou-se na praiae seus cabelos ficaramlongos na vossa lembrança.Eu nunca fui deste mundo:Se beijava, minha bocadizia que outros planetasem que os amantes se queimamnum fogo casto e se tornamestrelas, sem ironia.

Morri sem ter tido tempode ser vossa, como as outras.Não me conformo com isso,e quando as polícias dormemem mim e fora de mim,meu espectro itinerantedesce a Serra do Curral,vai olhando as casas novas,ronda as hortas amorosas(Rua Cláudio Manuel da Costa)pára no Abrigo Ceará,não há abrigo. Um perfumeque não conheço me invade:é o cheiro de vosso sonoquente, doce, enrodilhadonos braços das espanholas…

[…]

Meu reflexo na piscinaDa Avenida Paraúna(estrelas não se compreendem),ninguém o compreenderá. (p. 122-123)

O poema é uma mistura de lenda e metáfora, queainda está presente no folclore da capital mineira.A fantasia do amor irrealizado, da virgindade parasempre, parece dar vida ao mito urbano que aindapreenche os delírios dos noctívagos que percorrem anoite de Belo Horizonte. O poema é construído a par-tir de versos brancos e heptassílabos (redondilhos mai-ores), empregando estrofação irregular.

“O operário no mar” é um poema em prosa deteor surrealista e temática social, no qual o operárioanda sobre o mar, sugerindo a recriação da passa-gem bíblica de Cristo caminhando sobre as águas.A primeira parte é mais descritiva, a segunda, sur-realista, mágica. O operário é “um homem comum,apenas mais escuro que os outros”, mas o poeta evi-ta sua aproximação material com um operário pa-drão das propagandas políticas do período do EstadoNovo. A distância entre o eu do poeta e o operário éconstruída a partir de um contexto de relações declasse. O estranhamento nasce exatamente dessa dis-tância alienante que impede o poeta de enxergar-seno outro.

A visão de um tempo marcado pela opressãosurge, às vezes, de maneira inesperada, por meiode representações metafóricas inusitadas, anteci-pando criações que se tornariam mais comuns apartir de A rosa do povo.

Menino chorando na noite

Na noite lenta e morna, morta noite sem ruído, um[menino chora.

O choro atrás da parede, a luz atrás da vidraçaperdem-se na sombra dos passos abafados, das vo-

zes extenuadas.E no entanto se ouve até o rumor da gota de remédio

[caindo na colher.

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Um menino chora na noite, atrás da parede, atrás da rua,longe um menino chora, em outra cidade talvez,talvez em outro mundo.

E vejo a mão que levanta a colher, enquanto a outra[sustenta a cabeça

e vejo o fio oleoso que escorre pelo queixo do menino,escorre pela rua, escorre pela cidade (um fio apenas).E não há ninguém mais no mundo a não ser esse me-

[nino chorando. (p. 124)

O poema traduz, de maneira metafórica e banal,como era habitual entre os poetas que viveram sob oregime de Vargas, uma visão do “choque social” pelarepresentação de um menino obrigado a tomar umremédio. Essa representação metonímica pode sermais bem percebida pela sugestão final de que o fiooleoso escorre pelo queixo do menino, pela rua, pelacidade. A segunda estrofe projeta essa visão além dasfronteiras do poeta (longe um menino chora, em ou-tra cidade talvez, / talvez em outro mundo), sugerin-do os regimes autoritários que se espalhavam pelomundo na época da publicação de Sentimento domundo.

A percepção de um lirismo puro também está pre-sente em alguns poemas de Sentimento do mundo,como pode ser percebido em “Morro da Babilônia”,especialmente em sua última estrofe, ainda que emcertos momentos do poema a temática da divisão declasses sociais se imponha.

À noite, do morrodescem vozes que criam terror(terror urbano, cinqüenta por cento de cinema,e o resto que veio de Luanda ou se perdeu na língua

[geral).

Quando houve revolução, os soldados se espalharam[no morro,

o quartel pegou fogo, eles não voltaram.Alguns, chumbados, morreram.O morro ficou mais encantado.

Mas as vozes do morronão são propriamente lúgubres.Há mesmo um cavaquinho bem afinadoque domina os ruídos da pedra e da folhageme desce até nós, modesto e recreativo,como uma gentileza do morro.

A alienação é resultado das “divisões sociais e darepressão armada”, embora o poeta não negue a im-portância destes elementos; também provém de me-dos irracionais e da ignorância que cava um abismoentre as duas classes” (John Gledson) A sugestão ge-ral de medo pode vir dos nomes dos morros cariocas(Assombração, por exemplo). O próprio título sugere

a lembrança trágica de Babel e da dificuldade de co-municação entre grupos sociais diversos (incomuni-cabilidade), o do poeta e o dos compositores desambas, perseguidos no início do século XX pelapolícia como malandros.

A presença do social se fortalece mais a partir dapublicação de Sentimento do mundo, de José, emPoesia até agora, e de A rosa do povo, abrindo asperspectivas da poesia de Drummond para o mundo.De maneira geral, em Sentimento do mundo, encon-tra-se a figura do intelectual carregado de problemasde consciência e suas tentativas de compreender eunir-se ao mundo que o cerca.

Congresso internacional do medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,não cantaremos o ódio porque esse não existe,existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das

[igrejas,cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos demo-

[cratas,cantaremos o medo da morte e o medo de depois da

[morte,depois morreremos de medoe sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e

[medrosas. (p. 125)

Em “Congresso internacional do medo”, classifi-cado por Drummond entre os poemas de temática do“amar-amaro”, percebe-se mais evidentemente a pre-sença da temática do medo de um tempo marcadopelas opressões sociais dos ditadores, que sufoca ocantar de amor, sugerido no primeiro verso. O medofísico transforma-se, no decorrer do poema, em medopolítico e, finalmente, em metafísico da morte e dodesconhecido depois dela. O poema sugere os con-gressos de escritores que se realizavam naquela épo-ca para impedir o crescimento do fascismo.

Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.Tempo de absoluta depuração.3

Tempo em que não se diz mais: meu amor.Porque o amor resultou inútil.E os olhos não choram.E as mãos tecem apenas o rude trabalho.E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.Ficaste sozinho, a luz apagou-se,mas na sombra teus olhos resplandecem4 enormes.És todo certeza, já não sabes sofrer.E nada esperas de teus amigos.

3 Aperfeiçoamento, purificação.4 Brilham, luzem.

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Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?Teus ombros suportam o mundoe ele não pesa mais que a mão de uma criança.As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifíciosprovam apenas que a vida prosseguee nem todos se libertaram ainda.Alguns, achando bárbaro o espetáculo,prefeririam (os delicados) morrer.Chegou um tempo em que não adianta morrer.Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.A vida apenas, sem mistificação. (p. 131-132)

O poema exemplifica a presença do monólogointerior na poesia de Drummond. Classificado pelopoeta entre os poemas da temática do “amar-amaro”(desencontro amoroso), por sugerir a renúncia amo-rosa diante de um tempo de guerras, fome, discus-sões, o poema subentende que a felicidade só poderáresultar do enfrentamento e da resolução dos proble-mas do mundo. O título sugere o peso das responsa-bilidades do indivíduo diante das injustiças sociais,das misérias humanas e da alienação dos que não selibertaram ainda.

Mãos dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.Também não cantarei o mundo futuro.Estou preso à vida e olho meus companheiros.Estão taciturnos5 mas nutrem grandes esperanças.Entre eles, considero a enorme realidade.O presente é tão grande, não nos afastemos.Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da

[janela,não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.6

O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os[homens presentes,

a vida presente. (p. 132)

O poema traduz uma tendência ao mesmo tempometalingüística e social. O eu lírico recusa-se a serreconhecido como poeta de um mundo decadente efazer poesia para o mundo futuro. Ele insiste em seridentificado com o tempo presente, entretanto, de alie-nação social e política. Recusa a poesia sentimental, ro-mântica, baseada na própria história, no próprio cenário,na alienação obtida pelos entorpecentes; na evasão pormeio do suicídio ou da fuga para paraísos artificiais.Sua matéria é o mundo circundante, os homens e avida. Desde o título, o poeta defende a união e inte-gração com os outros homens de seu tempo e o fim

da alienação (Não nos afastemos muito, vamos demãos dadas).

A noite dissolve os homens

A noite desceu. Que noite!Já não enxergo meus irmãos.E nem tão pouco os rumoresque outrora me perturbavam.A noite desceu. Nas casas,nas ruas onde se combate,nos campos desfalecidos,a noite espalhou o medoe a total incompreensão.A noite caiu. Tremenda,sem esperança… Os suspirosacusam a presença negraque paralisa os guerreiros.E o amor não abre caminhona noite. A noite é mortal,completa, sem reticências,a noite dissolve os homens,diz que é inútil sofrer,a noite dissolve as pátrias,apagou os almirantescintilantes! nas suas fardas.A noite anoiteceu7 tudo…O mundo não tem remédio…Os suicidas tinham razão.

Aurora,entretanto eu te diviso, ainda tímida,inexperiente das luzes que vais acendere dos bens que repartirás com todos os homens.Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva

[noturna.O triste mundo fascista se decompõe ao contato de

[teus dedos,teus dedos frios, que ainda se não modelarammas que avançam na escuridão como um sinal verde e

[peremptório.8

Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,minha carne estremece na certeza de tua vinda.O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se

[enlaçam,os corpos hirtos9 adquirem uma fluidez,uma inocência, um perdão simples e macio…Havemos de amanhecer. O mundose tinge com as tintas da antemanhãe o sangue que escorre é doce, de tão necessáriopara colorir tuas pálidas faces, aurora. (p. 134-135)

Nesse poema, o eu lírico conhece a fadiga e o pes-simismo (niilismo), mas termina também encontran-do a esperança (as mãos dos sobreviventes se enlaçam,/ os corpos hirtos adquirem uma fluidez,/ uma ino-cência, um perdão simples e macio… / Havemos deamanhecer. O mundo / se tinge com as tintas da ante-

5 Que são de poucas palavras; calados; melancólicos, tristes, sombrios.6 Anjos.7 Pleonasmo, repetição enfática. Anoitecer pode ser tomado como escurecer.8 Que coloca um fim, definitivo, decisivo.9 Sem flexibilidade; tesos, retesados, duros.

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manhã / e o sangue que escorre é doce, de tão ne-cessário / para colorir tuas pálidas faces, aurora.). Anoite simboliza o elemento negativo, a tristeza, re-presenta a dissolução dos homens. A aurora pode servista aqui como o símbolo da esperança, capaz dedecompor O triste mundo fascista, contra o qual o eulírico se bate, ainda que saiba que o mundo não temremédio. A primeira estrofe é composta de versosheptassílabos (redondilhos maiores) e versos octassí-labos. A estrofe seguinte é de versos irregulares.

Elegia 1938

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,onde as formas e as ações não encerram nenhum

[exemplo.Praticas laboriosamente os gestos universais,sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a

[concepção.À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronzeou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerrae sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de

[morrer.Mas o terrível despertar prova a existência da Grande

[Máquina10

e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis pal-[meiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversassobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.A literatura estragou tuas melhores horas de amor.Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de se-

[mear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrotae adiar para outro século a felicidade coletiva.Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta

[distribuiçãoporque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhat-

[tan.11 (p. 136-137)

O poema não segue a forma da elegia clássica dosdísticos (estrofes de dois versos), empregando qua-dras em versos brancos e livres. Poema de profundoquestionamento social do homem e das suas açõesdiante da exploração criada por um “mundo caduco”.O poeta recusa os valores falsos de seu tempo: osheróis representados em estátuas nos parques ou quese escondem nos livros de sinistras bibliotecas e dei-xa patente que a felicidade individual só poderá exis-tir quando se tornar coletiva e que a infelicidade doindivíduo resulta da aceitação passiva dos males de

seu tempo diante da impossibilidade de destruir sozi-nho o símbolo dessa injustiça capitalista: Manhattan.Pode-se questionar, diante da destruição recente dastorres gêmeas, que causou comoção americana emundial, se não estaria o poeta prenunciando o efeitogeral na humanidade que a agressão aos símbolos docapitalismo causaria.

Madrigal lúgubre12

Em vossa casa feita de cadáveres,ó pricesa! ó donzela!em vossa casa, de onde o sangue escorre,quisera eu morar.

Cá fora é o vento e são as ruas varridas de pânico,é o jornal sujo embrulhando fatos, homens e comida

[guardada.Dentro, vossas mãos níveas e mecânicas tecem algo

[parecido com um véu.O mundo, sob neblina que criais, torna-se de tal modo

[espantosoque o vosso sono de mil anos se interrompe para

[admirá-lo.

[…]

… Enquanto fugimos para outros mundos,que esse está velho, velha princesa,palácio em ruínas, ervas crescendo,lagarta mole que escreves a história,escreve sem pressa mais esta história:o chão está verde de lagartas mortas…Adeus, princesa, até outra vida. (p. 135-136)

Apesar de o título sugerir a forma do madrigal(versos decassílabos e hexassílabos), apenas a primei-ra estrofe obedece essa estrutura, já que os demaissão livres. Seu conteúdo não valoriza o lirismo pasto-ril amoroso e o cenário campestre e matinal, fixandoimagens fúnebres e tétricas. O texto denuncia a alie-nação (Enquanto fugimos para outros mundos / queesse está velho, velha princesa), a morte e a estagna-ção. Estão presentes também a tendência à ironia e ohumor negro.

Dentaduras duplas

A Onestaldo de Pennafort

Dentaduras duplas!Inda não sou bem velhopara merecer-vos…Há que contentar-mecom uma ponte móvele esparsas coroas.(Coroas sem reino,os reinos protéticosde onde proviestes

10 Metáfora para o sistema social de exploração.11 Metonímia para o capitalismo americano e universal.12 O título sugere um paradoxo ou oxímoro pela contraposição entre a forma lírica e pastoril do madrigal, sugestão bucólica, e o adjetivolúgubre, que insere elemento macabro e mórbido.

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quando produzirãoa tripla dentadura,dentadura múltipla,a serra mecânica,sempre desejada,jamais possuída,que acabarácom o tédio da boca,a boca que beija,a boca romântica?…)

Resovin! Hecolite!Nomes de países?Fantasmas femininos?Nunca: dentaduras,engenhos modernos,práticos, higiênicos,a vida habitável:a boca mordendo,os delirantes lábiosapenas entreabertosnum sorriso técnicoe a língua especiosa13

através dos dentesbuscando outra língua,afinal sossegada…A serra mecânicanão tritura amor.E todos os dentesextraídos sem dor.E a boca libertadas funções poético-sofístico-dramáticasde que rezam filmese velhos autores.

Dentaduras duplas:dai-me enfim a calmaque Bilac não tevepara envelhecer.Desfibrarei convoscodoces alimentos,serei casto, sóbrio,não vos aplicandona deleitação convulsade uma carne tristeem que tantas vezesme eu perdi.

Largas dentaduras,vosso riso largome consolaránão sei quantas fomesferozes, secretasno fundo de mim.Não sei quantas fomesjamais compensadas.Dentaduras alvas,antes amarelase por que não cromadase por que não de âmbar?

de âmbar! de âmbar!feéricas14 dentaduras,admiráveis presas,mastigando lestas15

e indiferentesa carne da vida! (p. 132-133)

O longo poema composto em versos pentassíla-bos e outros versos curtos, focaliza e renova, comhumor, a temática do envelhecer, da corrosão pelotempo, empregando a técnica do “palavra-puxa-pala-vra”. Sua temática é a do indivíduo, do “eu todo re-torcido”. A visão da velhice “leva o patético até quaseo paroxismo, para fazê-lo concluir com uma imagemem que a distensão não é nada apaziguadora — umaimagem que, misto de horror e humor, é das maissurpreendentes metáforas do apetite onívoro do tem-po”, como observa Francisco Achcar.

Os mortos de sobrecasaca

Havia a um canto da sala um álbum de fotografias[intoleráveis,

alto de muitos metros e velho de infinitos minutos.em que todos se debruçavamna alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.

Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentese roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira

[dos retratos.Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentavaque rebentava daquelas páginas. (p. 125)

O poema remete a uma intertextualidade com asMemórias póstumas de Brás Cubas, de Machado deAssis, por causa da sugestão escatológica dos ver-mes que roem, no caso, a representação do passadodesse eu lírico por meio do álbum de fotografias.Drummond classifica o poema entre os da temáticada “tentativa de exploração e de interpretação do es-tar-no-mundo” por causa de seu caráter metafísico eexistencial. O “princípio da corrosão” pode ser ob-servado na destruição do passado, sugerido pelo ál-bum de fotograf ias. O poema é o primeiro deDrummond a tratar das relações entre os mortos e osvivos. Entretanto, os versos finais traduzem a idéiageral de que os vermes não poderiam roer o choro devida de “rebentava” emocionalmente das páginas dosálbuns. Essa imagem traduz as lembranças do passa-do que ainda causavam sentimentos ambíguos no eulírico, já que se confrontam com a imagem de “foto-grafias intoleráveis”.

A alienação do indivíduo diante da realidade serácriticada em vários poemas, como em “Inocentes doLeblon”.

13 Formosa, bela, atraente, delicada, gentil.14 Que turvam a vista por excesso de luz ou brilho; deslumbrantes, ofuscantes.15 Ligeiras, rápidas, ágeis.

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Os inocentes do Leblonnão viram o navio entrar.Trouxe bailarinas?trouxe imigrantes?trouxe um grama de rádio?Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,mas a areia é quente, e há um óleo suaveque eles passam nas costas, e esquecem. (p. 127)

A indiferença diante do mundo cruel (Mas tam-bém a carne não tem importância, / e doer, gozar,opróprio cântico afinal é indiferente / Quinhentos milchineses mortos, trezentos corpos de namorados so-bre a via férrea / e o trem que passa, como discurso,irreparável: / tudo acontece, menina, e não é impor-tante menina, e nada fica nos teus olhos.) e a ausên-cia de identidade com os homens poderá ser observadaem “Canção do berço”: Também a vida é sem impor-tância / Os homens não me repetem / nem me prolon-go até eles. / A vida é tênue, tênue. / O grito mais altoainda é o suspiro, / os oceanos calaram-se há muito.

Indecisão do Méier

Teus dois cinemas, um ao pé do outro, por que não se[afastam

para não criar, todas as noites, o problema da opçãoe evitar a humilde perplexidade dos moradores?Ambos com a melhor artista e a bilheteira mais bela,que tortura lançam no Méier! (p. 128)

O poema de uma única estrofe é símbolo de alie-nação, porque a indecisão do eu lírico diante da esco-lha de uma opção de lazer entre dois cinemas e doisfilmes denuncia a futilidade do cotidiano banal e aindiferença pequeno-burguesa diante dos verdadei-ros destinos da humanidade.

A imagem do mar aparece com mais freqüência apartir de Sentimento do mundo, em poemas como “Ooperário no mar” o que coincide com mudança dopoeta para o Rio de Janeiro. Entretanto, essa imagemnão é sempre símbolo de segurança ou tranqüilidade,mas de enigma, dúvida ou ameaça, como ficará su-bentendido durante a leitura do poema “Privilégio domar”.

Privilégio do mar

Neste terraço mediocremente confortável,bebemos cerveja e olhamos o mar.Sabemos que nada nos acontecerá.

O edifício é sólido e o mundo também.Sabemos que cada edifício abriga mil corposlabutando em mil compartimentos iguais.Às vezes, alguns se inserem fatigados no elevadore vem cá em cima respirar a brisa do oceano,o que é privilégio dos edifícios.

O mundo é mesmo de cimento armado.Certamente, se houvesse um cruzador louco,fundeado na baía em frente da cidade,

a vida seria incerta… improvável…Mas nas águas tranqüilas só há marinheiros fiéis.Como a esquadra é cordial!

Podemos beber honradamente nossa cerveja. (p. 126)

O eu lírico chega a transmitir uma idéia geral desegurança por meio desse poema que, aliás, contrariaalguns outros dessa mesma fase, como “Congressointernacional do medo”, “Revelação do subúrbio” ou“Noturno à janela do apartamento”. Sua angústia pa-rece substituída por uma estabilidade confortável,porém medíocre, alienante diante da visão social quea obra Sentimento do mundo pretende sugerir.

Apesar dessa idéia geral de segurança gerada pelapresença da tecnologia do elevador e da concretudedo edifício, percebemos que tudo isso fica questio-nável por causa do verso Sabemos que nada nosacontecerá, cuja afirmação serve para gerar a dúvi-da. Afinal, poderia acontecer alguma coisa? O poe-ta sabe que está fora da província, já que o mundourbano em que se encontra está cercado pelos valo-res da cidade grande, o que é confirmado pelo versoO mundo é mesmo de cimento armado. Entretanto,tudo fora da província é passível de transtorno, por-que a desconfiança do poeta não ficará de todo anu-lada.

A partir de Sentimento do mundo o poeta tem anoção de uma grandeza que até então desconhecia.

Mundo grande

Não, meu coração não é maior que o mundo.É muito menor.Nele não cabem nem as minhas dores.Por isso gosto tanto de me contar.Por isso me dispo,por isso me grito,por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente

[nas livrarias:preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.Só agora vejo que nele não cabem os homens.Os homens estão cá fora, estão na rua.A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.Mas também a rua não cabe todos os homens.A rua é menor que o mundo.O mundo é grande.

Ao contrário do que afirmou em “Poema de setefaces”, o poeta percebe que seu coração não é maiorque o mundo, e nele não cabe a humanidade toda.O poeta não se sente de todo preparado para igualar-se aos outros homens. A mais importante noção des-sa fase de sua obra é a de que o poeta se abre para omundo, o indivíduo toma contato com a grandeza domundo em comparação com a aparente insignificân-cia que sente diante dele. Isso gera o conflito entre oEu e o Mundo.

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Tu sabes como é grande o mundo.Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne

[e algodão.Viste as diferentes cores dos homens,as diferentes dores dos homens,sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo issonum só peito de homem… sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.Escuta a água nos vidros,tão calma, não anuncia nada.Entretanto escorre nas mãos,tão calma! Vai inundando tudo…Renascerão as cidades submersas?Os homens submersos — voltarão?

Meu coração não sabe.Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.Só agora descubrocomo é triste ignorar certas coisas.(Na solidão de indivíduodesaprendi a linguagemcom que homens se comunicam.)

O eu lírico descobre que seu coração não tem to-das as respostas. Em sua solidão e isolamento desa-prendeu a linguagem / com que os homens secomunicam. Espécie de torre de Babel, o coração dopoeta impede sua integração plena à atitude socialque procura defender a partir de Sentimento do mun-do, o que o conduz ao estado de solidão.

Outrora escutei os anjos,as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.Nunca escutei voz de gente.Em verdade sou muito pobre.

O eu lírico sente que o seu isolamento em relaçãoaos outros homens e também a perda da linguagem tor-naram-no muito pobre, deixando um grande vazio emtodo o seu ser. Há aqui uma supervalorização das rela-ções humanas como fator de crescimento do indivíduo.

Outrora viajeipaíses imaginários, fáceis de habitar,ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e con-

[vocando ao suicídio.

Meus amigos foram às ilhas.Ilhas perdem o homem.Entretanto alguns se salvaram etrouxeram a notíciade que o mundo, o grande mundo está crescendo to-

[dos os dias,entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.Entre o amor e o fogo,entre a vida e o fogo,meu coração cresce dez metros e explode.— Ó vida futura! Nós te criaremos. (p. 137-138)

A última estrofe do poema traduz uma mensagemde esperança ao anunciar que o coração do eu líricotambém poderá crescer junto com o mundo que seexpande. — Ó vida futura! Nós te criaremos. A idéiade que a vida futura poderá ser criada pelos homensjá é um prenúncio da esperança.

A percepção de grandeza do mundo que cerca o eulírico também se multiplica por meio das injustiças, doerotismo, pois não há mais apenas Itabira com suas noi-tes brancas e sem mulheres. Agora existe o mundo grandee, conseqüentemente, as violências, as injustiças sociaise políticas, e há mulheres. Junto com a descoberta domundo há o encontro com o mar e a percepção de suagrandeza. Teria ficado para trás a lagoa?16 Com certezanão, apenas adiada e pouco depois redescoberta nosdesencontros do poeta com o mundo urbano.

O poeta parece arriscar seus primeiros passeiospela grande cidade através de alguns de seus poemas,ainda que apenas sugiram uns poucos pontos céle-bres, mas sem abandonar a ironia, traduzida pela idéiade provincianismo que a pátria brasileira representadiante da Europa.

La possession du monde

Os homens célebres visitam a cidade.Obrigatoriamente exaltam a paisagem.Alguns arriscam no Mangue,outros limitam ao Pão de Açúcar,mas somente Georges Duhamel17

passou a manhã inteira no meu quintal.Ou antes, no quintal vizinho do meu quintal.Sentado na pedra, espiando os mamoeiros,conversava com o eminente neurologista.

Houve uma hora em que ele se levantou(em meio a erudita dissertação científica).Ia, talvez, confiar a mensagem da Europaaos corações cativos da jovem América…Mas apontou apenas para a verticale pediu ce cocasse fruit jaune. (p. 128-129)

Enfim, pode-se observar que mesmo no últimopoema de Sentimento do mundo a visão do Rio deJaneiro ainda prevalece como um estranhamento parao poeta.

Noturno à janela do apartamento

Silencioso cubo de treva:um salto, e seria a morte.Mas é apenas, sob o vento,a integração na noite.

Nenhum pensamento de infância,nem saudade nem vão propósito.Somente a contemplaçãode um mundo enorme e parado.

16 A lagoa foi utilizada como imagem que metonimicamente representará a província, enquanto o mar simbolizará o mundo.17 Membro da Academia Francesa de Letras.

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A soma da vida é nula.Mas a vida tem tal poder:na escuridão absoluta,como líquido, circula.

Suicídio, riqueza, ciência…A alma severa se interrogae logo se cala. E não sabese é noite, mar ou distância.

Triste farol da Ilha Rasa.18 (p. 139)

A imagem predominante no poema é de tristeza emelancolia, costurada em vários momentos pela idéiageral da morte e da presença da escuridão. A combi-nação de elementos materiais e abstratos parece re-forçar as dúvidas do eu lírico diante de um noturnoque lhe parece desconhecido e não desperta nenhumpensamento de infância, o que confronta a noção dealegria que este momento do passado representariadiante das imagens tristes do presente. A reiteradaidéia do suicídio une-se ao clima sombrio represen-tado pelo noturno e pela escuridão geral. O verso fi-nal, isolado, solitário, parece representar a projeçãoda tristeza e isolamento do próprio eu lírico personi-ficado pelo farol.

A temática da “poesia contemplada” faz-se pre-sente em “Brinde no Juízo Final”, poema essencial-mente metalingüístico, presenteando o leitor com amais fina ironia no verso poetas jamais acadêmicos,último ouro do Brasil, que exalta os poetas popularesem detrimento dos poetas acadêmicos, sugerindomesmo a herança combativa e renovadora da geraçãomodernista da geração de 1922.

Poetas de camiseiro, chegou vossa hora,poetas de elixir de inhame e de tonofosfã,chegou vossa hora, poetas do bonde e do rádio,poetas jamais acadêmicos, último ouro do Brasil.

Em vão assassinaram a poesia nos livrosem vão houve putschs, tropas de assalto, depurações.Os sobreviventes aqui estão, poetas honrados,poetas diretos da Rua Larga.(As outras ruas são muito estreitas,só nessa cabem a poeira, o amore a Light.). (p. 126)

Ode no cinqüentenário do poeta brasileiro

Esse incessante morrerque nos teus versos encontroé tua vida, poeta,e por ele te comunicascom o mundo em que te esvais.

Debruço-me em teus poemase neles percebo as ilhaseu que nem tu nem nós habitamos

(ou jamais habitaremos!)e nessas ilhas me banhonum sol que não é dos trópicos,numa água que não é das fontesmas que ambos refletem a imagemde um mundo amoroso e patético.

Tua violenta ternura,tua infinita polícia,tua trágica existênciano entanto sem nenhum sulcoexterior — salvo tuas rugas,tua gravidade simples,a acidez e o carinho simplesque desbordam em teus retratos,que capturo em teus poemas,são razões por que te amamose por que nos fazes sofrer…

Certamente não sabiasque nos fazes sofrer.

É difícil de explicaresse sofrimento seco,sem qualquer lágrima de amor,sentimento de homens juntos,que se comunicam sem gestoe sem palavras se invadem,se aproximam, se compreendeme se calam sem orgulho.

Não é o canto da andorinha, debruçada nos telhados[da Lapa,

anunciando que tua vida passou à toa, à toa.Não é o médico mandando exclusivamente tocar um

[tango argentino,diante da escavação no pulmão esquerdo e do pulmão

[direito infiltrado.Não são os carvoeiros raquíticos voltando encarapita-

[dos nos burros velhos.Não são os mortos do Recife dormindo profundamente

[na noite.Nem é tua vida, nem a vida do major veterano da guer-

[ra do Paraguai,a de Bentinho Jararacaou a de Christina Georgina Rosset:19

és tu mesmo, é tua poesia,tua pungente, inefável poesia,ferindo as almas, sob a aparência balsâmica,queimando as almas, fogo celeste, ao visitá-las;é o fenômeno poético, de que te constituíste o miste-

[rioso portadore que vem trazer-nos na aurora o sopro quente dos

[mundos, das amadas exuberantese das situações exemplares que não suspeitávamos.

Por isso sofremos: pela mensagem que nos confiasentre ônibus, abafada pelo pregão dos jornais e mil

[queixas operárias;essa insistente mas discreta mensagemque, aos cinqüenta anos, poeta, nos trazes;e essa fidelidade a ti mesmo com que nos apareces

18 Idem, op. cit., pp. 138-139.19 Christina Georgina Rosset (1830-1894): poetisa inglesa. Usou o pseudônimo de Ellen Alleyne.

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sem uma queixa, no rosto entretanto experiente,mão firme estendida para o aperto fraterno— o poeta acima da guerra e do ódio entre os homens —,o poeta ainda capaz de amar Esmeralda embora a alma

[anoiteça,o poeta melhor que nós todos, o poeta mais forte— mas haverá lugar para a poesia?Efetivamente o poeta Rimbaud20 fartou-se de escrever,o poeta Maiakovski suicidou-se,o poeta Schmidt21 abastece de água o Distrito Federal…Em meio a palavras melancólicas,ouve-se o surdo rumor de combates longínquos(cada vez mais perto, mais, daqui a pouco dentro de nós).E enquanto homens suspiram, combatem ou simples-

[mente ganham dinheiro,ninguém percebe que o poeta faz cinqüenta anos,que o poeta permaneceu o mesmo, embora alguma

[coisa de extraordinário se houvesse passado,alguma coisa encoberta de nós, que nem os olhos traí-

[ram nem as mão apalparam,susto, emoção, enternecimento,desejo de dizer: Emanuel, disfarçado na meiguice elás-

[tica dos abraços,e uma confiança maior no poeta e um pedido lancinante

[para que não nos deixe sozinhos nesta cidadeem que nos sentimos pequenos à espera dos maiores

[acontecimentos.

Que o poeta no encaminhe e nos protejae que o seu canto confidencial ressoe para consolo de

[muitos e esperança de todos,os delicados e os oprimidos, acima das profissões e

[dos vãos disfarces do homem.Que o poeta Manuel Bandeira escute este apelo de um

[homem humilde. (p. 129-131)

O poema é uma homenagem de Carlos Drum-mond de Andrade a Manuel Bandeira. Nele a odefunciona mais como intenção do que propriamentecomo forma lírica a ser seguida, uma vez que pre-domina a forma livre. Como o título deixa claro, elevisa comemorar, já que tantos esqueceram, o cin-qüentenário de Bandeira, cujo paroxismo releva-sena contraposição de que o “incessante morrer” é aprópria vida do poeta cinqüentenário.

O eu lírico coloca-se como um leitor do velhomestre, cuja temática da morte está ligada à tuber-culose e se destaca em seus versos. Sugere que apoesia de Bandeira é um retrato capturado e que ofaz sofrer. O eu lírico afirma pela intertextualidadecom versos famosos de Bandeira que “a poesia nãoé inerente ao assunto do poema, mas ao poeta e àsua poesia, pois é o que lhe causa sofrimento” (Gle-dson). Ele questiona se há lugar para a poesia nessemundo, já que ouve-se o surdo rumor de combateslongínquos / (cada vez mais perto, mais, daqui apouco dentro de nós), numa clara referência às re-

voluções que se espalhavam pelo mundo e oprimiamos homens e a própria poesia.

4. ESTRUTURA DA OBRA

Sentimento do mundo apresenta 28 poemas de for-ma livre. Entretanto, três poemas sugerem formas lí-ricas tradicionais (ode, elegia e madrigal). Ainda queo título do livro traduza a ampla sugestão do social,Carlos Drummond de Andrade emprega também al-guns outros temas da divisão feita em sua Antologiapoética. Assim, podemos dividir os poemas da obra eenquadrar alguns deles nos seguintes temas, ainda queboa parte possa ser classificada em mais de um des-ses temas:

• O indivíduo (“um eu todo retorcido”) — po-emas centralizados no questionamento do próprio ser:“Dentaduras duplas”.

• A terra natal (“uma província, esta”) — poe-mas que se voltam à recordação de Itabira, de MinasGerais, do Brasil: “Confidência do itabirano”; “Can-ção da Moça-Fantasma de Belo Horizonte”.

• Cantar de amigos — poemas que homenagei-am amigos ou ídolos: “Ode no cinqüentenário dopoeta brasileiro”.

• O choque social (“a praça de convites”) —poemas participantes ou engajados: “Sentimento domundo”; “A noite dissolve os homens”; “Elegia1938”; “Mundo grande”; “Mãos dadas”; “Os ombrossuportam o mundo”; “Canção de berço”.

• O conhecimento amoroso (“amar-amaro”):“Sentimento do mundo”; “Congresso internacionaldo medo”; “Canção de berço”; “Os ombros supor-tam o mundo”; “Mãos dadas”; “Lembrança do mun-do antigo”.

• A própria poesia (“poesia contemplada”) —são poemas metalingüísticos: “Brinde no juízo final”.

• “Tentativa de exploração e de interpretaçãodo estar-no-mundo” — fechamento do círculo dapoesia drummondiana, esse tema retoma o primeiro,estabelecendo a presença do existencial e do metafí-sico: “Os mortos de sobrecasaca”.

A classificação de vários poemas de teor nitida-mente social ou político entre os temas do “amar-amaro” pode ser justificada pelo fato de que o poetanão se refere exclusivamente ao amor físico mas ànão-identificação do próprio eu com seu semelhante,

20 Arthur Rimbaud (1854-1891): poeta simbolista francês, considerado um dos mais geniais de toda a literatura mundial por causa de suapoesia visionária e de estranha beleza. Abandonou ainda jovem a poesia para dedicar-se a uma vida de aventuras na África.21 Augusto Frederico Schmidt (1908-1980): poeta brasileiro, moderno, filiado à poesia católica de raízes místicas. Em determinado artigo,“anunciou a morte da poesia, sob a pressão dos acontecimentos políticos”.

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justificando a presença da alienação e do desencon-tro do indivíduo com o próximo.

Em Sentimento do mundo, alguns temas se re-petem de maneira sistemática, bem como algumasfiguras cuja representação facilita a compreensãomais densa dos 28 poemas que compõem a cole-tânea.

A presença de uma poesia que denuncia a aliena-ção do próprio poeta ou dos homens diante das injus-tiças universais é uma dessas constantes. Ainda quesua poesia engaje-se numa luta social e política con-tra o mundo que o cerca, nota-se que o próprio Drum-mond ainda pressente a alienação que pareceu sempredominá-lo. Poemas como “Os Inocentes do Leblon”,“Privilégio do mar”, “Revelação do subúrbio”, “Mor-ro da Babilônia”, “Lembrança do mundo antigo”,“Tristeza do Império”, “Os mortos de sobrecasaca” e“Confidência do itabirano” exemplificam essa temá-tica. O poeta parece ressentir-se da separação do pas-sado e do presente, bem como incapaz de integrar-seaos outros homens de classes sociais diferentes dasua. Sente-se ainda separado dos outros homens emvários desses poemas.

Outro elemento constante é a presença de um ce-nário carioca, como em “Inocentes do Leblon”, “In-decisão do Méier”, “Morro da Babilônia”, “Revelaçãodo subúrbio”, “Noturno à janela do apartamento”.Entretanto, não há interesse evidente do poeta peladescrição de um cenário, do pitoresco local, mas deuma geografia que signifique alienação.

O mar aparece também em vários poemas, coin-cidindo com a mudança do poeta para o Rio de Janei-ro em 1934.

A noite é outra imagem constante em vários poe-mas. Simbolicamente, representa a separação e ani-quilação dos homens, ainda que permita a estes acomunicação. Sua ambigüidade surge em “A noitedissolve os homens”, pois adquire um caráter de uniãoatravés da dissolução, “ao mesmo tempo que os se-para espalhando o medo e a incompreensão” (Gled-son). Isso impede a crítica de uma interpretaçãoredutiva, evitando, em vários poemas, uma aproxi-mação com a idéia da morte. Seu papel é indicar umacarga de adjetivação, que está ausente, mas é sugeri-da metaforicamente para o leitor. Essas emoções nas-cem não do substantivo em si, mas de uma cargasemântica evidente em cada um dos poemas e que dávida à metáfora.

“Para compreendermos Sentimento do mundo, te-mos que apreciar a existência de três elementos, maisou menos identificáveis, na nova relação ‘não-con-traditória’ entre o poeta e o mundo. São o eu, os obje-tos, a gente do mundo exterior, e a substância que osjunta. […] A atitude característica do poeta neste li-

vro é a do contemplador — ‘Revelação do subúrbio’,‘Sentimento do mundo’, e ‘Noturno à janela do apar-tamento’ são exemplos.

[…] A fusão gradativa do poeta e do mundo resul-ta numa sensação de plenitude, mas também de limi-tação; Drummond se reconhece como membro de umaclasse, limitado por toda sorte de condições, inclusi-ve a humana em geral. Afinal de contas, somos todoshabitantes da noite, alcançando a sensação intermi-tente de compreender o mundo que habitamos, mastambém envolvidos na sua escuridão infinita”. (Gle-dson. p. 138)

5. ESTILO DE ÉPOCA

Sentimento do mundo está inserido na segunda fasedo Modernismo, no chamado Pós-Modernismo, clas-sificação feita por Alceu Amoroso Lima, ou seja, en-quadra-se cronologicamente dentro das perspectivasda geração de 1930.

Vejamos alguns traços de modernidade em suaobra:

• Emprego de uma linguagem coloquial, marca-da pela simplicidade vocabular.

• Emprego de versos brancos e livres (versilibris-mo).

• Temática social.• Emprego de versos nominais, ou seja, sem ver-

bos.• Emprego de substantivos isentos de qualificati-

vos: preferência pelo substantivo sem adjetivos.• Lirismo sem confidência personalíssima: Drum-

mond emprega um processo de transferência do tomconfessional para o leitor. Assim, ele ensina o leitor aver-se como um ser múltiplo e dividido.

• Vocação para o questionamento existencial(existencialismo).

• Questionamento metafísico: tomada de consci-ência e descoberta da morte e da velhice.

• Psicologismo: associação simbólica com ima-gens vertidas do subconsciente.

• Emprego da metalinguagem (discurso poéticovoltado ao seu próprio fazer).

• Ruptura com as formas tradicionais da poesiado passado (ainda que algumas sejam utilizadas nostítulos), quebrando normas rítmicas, melódicas, sin-táticas e rímicas.

A segunda geração moderna foi marcada por umaperspectiva social e política, o que justifica o enqua-dramento da obra Sentimento do mundo e de váriosde seus poemas dentro das tendências engajadas des-sa fase da literatura brasileira.

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6.ESTILO INDIVIDUAL

Drummond representa a completa maturação doModernismo brasileiro, uma vez que o emprego dedeterminadas conquistas da geração de 1922 torna-se um apelo excessivamente forte na composição desuas duas primeiras obras, que seguem depois, a par-tir de Sentimento do mundo (1940), temáticas de maiorengajamento social e de maior apuro, até sua absolu-ta consagração em A rosa do povo. A partir de Claroenigma, sua poesia segue por caminhos existenciaise metafísicos, atingindo também maior relevânciaformal. O verso livre será trocado em vários momen-tos por formas mais tradicionais. Isso já poderá serpressentido na escolha de títulos que sugerem for-mas tradicionais como a ode, a elegia e o madrigal,como pode ser notado em Sentimento do mundo.O passo seguinte seria dado em Lição de coisas, cu-jas experiências poéticas aproximam-se dos exercíci-os poéticos do grupo concretista. Assim, Drummonduniu as conquistas da fase combativa de 1922 com asnovas perspectivas abertas pelo pós-modernismo de1930 e até mesmo com a poesia contemporânea.

Uma das marcas fortes do estilo de Drummond é,sem dúvida, a presença de um lirismo amargo, niilista,o que se pode mesmo considerar antilírico. Sua visãode mundo é cética e agnóstica. Em Sentimento do mun-do o lirismo surge de maneira inusitada, invertendo aimagem lírica habitual. É, sem dúvida, um tipo de an-tilirismo. Mesmo o amor é visto como necessidade fí-sica, objetivado pela necessidade de um corpo oumetonimicamente por parte dele, ou mesmo como re-sultante do desencontro entre os pares amorosos.

A técnica da repetição, surgida em sua obra desde“No meio do caminho”, torna-se outra constante es-tilística. Segundo Gilberto Mendonça Teles:

O poeta sabe que a vida não se repete (ou não passatudo de repetição, na velha forma de Eclesiastes), e que aarte deve ser compreendida como uma mimese progressi-va, porquanto o artista está sempre deformando o real…

A repetição é um processo expressivo que consti-tui uma das formas mais eficazes de intensificaçãoda linguagem. Ela apresenta, na obra, várias formasbásicas. Vejamos:

• Repetição binária: A vida é tênue, tênue. (“Can-ção de berço”) e no círculo ardente nossa vida parasempre está presa, está presa… (“Bolero de Ravel”)

• Repetição ternária: …. e os fios, os fios, osfios. (p. 122)

• Uso de anáfora (repetição no início de cada verso):

É preciso casar João,é preciso suportar Antônio,

é preciso odiar Melquíadesé preciso substituir nós todos. (“Poema da necessidade”)

o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das

[igrejas,cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos demo-

[cratas,cantaremos o medo da morte e o medo de depois da

[morte.

Congresso internacional do medo

Por isso gosto tanto de me contar.Por isso me dispo,por isso me grito,Por isso freqüento os jornais, me exponho

Mundo grande

Os poemas de Sentimento do mundo são:a) de tendência nitidamente social.b) marcados pela ironia.c) de teor sentimental.d) marcados muito mais pela prisão à memória do que

propriamente pelas preocupações com o presente.

Os trechos abaixo de Sentimento do mundo, de CarlosDrummond de Andrade, podem ser classificados dentro dastemática “a praça de convites” ou “uma província, esta…”.Coloque 1 para o primeiro tema e 2 para o segundo:a) ( )

“Os camaradas não disseramque havia uma guerrae era necessáriotrazer fogo e alimento.Sinto-me disperso,anterior a fronteiras,humildemente vos peçoque me perdoeis.”

b) ( )“Tive ouro, tive gado, tive fazendas.Hoje sou funcionário público.Itabira é apenas uma fotografia na parede.Mas como dói!”

c) ( )“Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.Tempo de absoluta depuração.Tempo em que não se diz mais: meu amor.Porque o amor resultou inútil.E os olhos não choram.E as mãos tecem apenas o rude trabalho.E o coração está seco.”

d) ( )“Não me conformo com isso,e quando as polícias dormemem mim e fora de mim,meu espectro itinerantedesce a serra do Curral,vai olhando as casas novas,

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ronda as hortas amorosas(rua Cláudio Manuel da Costa)pára no Abrigo Ceará,não há abrigo. Um perfumeque não conheço me invade:é o cheiro de vosso sonoquente, doce, enrodilhadonos braços das espanholas…”

Leia o poema seguinte para responder às questões 3 e 4.

Sentimento do mundo

Tenho apenas duas mãose o sentimento do mundo,mas estou cheio de escravos,minhas lembranças escorreme o corpo transigena confluência do amor.

[…]

Os camaradas não disseramque havia uma guerrae era necessáriotrazer fogo e alimento.Sinto-me disperso,anterior a fronteiras,humildemente vos peçoque me perdoeis.

[…]

esse amanhecermais que a noite.

O vocabulário utilizado por Carlos Drummond de An-drade sugere os acontecimentos reais de seu tempo, quedesencadeariam na Guerra Civil Espanhola. Transcreva trêsexpressões que indiquem esses acontecimentos. Expliquede que maneira as expressões estão ligadas ao período queantecede o fato histórico referido.

Por que o eu lírico pede perdão no final da segunda estrofetranscrita, depois de dizer-se disperso e anterior a fronteiras?

Leia o texto seguinte e responda ao que se pede.

Mãos dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.Também não cantarei o mundo futuro.Estou preso à vida e olho meus companheiros.Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.Entre eles, considero a enorme realidade.O presente é tão grande, não nos afastemos.Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da

[janela,não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os ho-

[mens presentes,a vida presente.

De que maneira a segunda estrofe de “Mãos dadas” indi-ca a crítica do eu lírico à poesia romântica? Que elementos dotexto caracterizam elementos semânticos (de significação)presentes na literatura anterior ao Modernismo?

Leia o texto abaixo para responder à questão 6.

Os mortos de sobrecasaca

Havia a um canto da sala um álbum de fotografias into-[leráveis,

alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,em que todos se debruçavamna alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.

Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentese roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira

[dos retratos.Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentavaque rebentava daquelas páginas.

Em que tema central da poética drummondiana pode-mos classificar o poema dado? De que maneira o poetarepresenta o “princípio da corrosão”? Que expressão dopoema é utilizada para demonstrar que a ação dos vermesnão consegue atingir os sentimentos do passado?

Considerando que a maior parte dos poemas de Senti-mento do mundo está ligada à temática do “choque social”,procure justificar o título da obra de Carlos Drummond deAndrade.

Respostas1. a 2. 1 – 2 – 1 – 23. As expressões que indicam os acontecimentos históricos são

camaradas, guerra e fronteiras. A primeira palavra indica aforma de tratamento entre os socialistas que se opuseram àditadura de Franco. O segundo termo é uma referência diretaao conflito desencadeado na Espanha. O terceiro vocábulosugere a separação entre as nações e os povos.

4. O eu lírico pede perdão porque não consegue engajar-se naluta de seu tempo por sentir-se disperso, alheio, alienado.

5. A segunda estrofe mostra uma recusa do eu lírico à poesiaalienada do Romantismo em sua proposta evasiva, de ideali-zação da mulher, de culto da morte e de fuga para paraísosartificiais. O poeta considera que o presente, a realidade cir-cundante e os homens de seu tempo são a sua matéria. Sãoelementos semânticos referentes ao Romantismo: Não sereio cantor de uma mulher (idealização da amada), não direi ossuspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela (idealiza-ção de cenário), não distribuirei entorpecentes ou cartas desuicida (alienação e culto da morte), não fugirei para as ilhasnem serei raptado por serafins (evasão ou escapismo).

6. O poema foi enquadrado pelo autor na “tentativa de explora-ção e de interpretação do estar-no-mundo” por causa de seucaráter metafísico e existencial. O poeta representa a corro-são por meio da figura dos vermes que roem a sobrecasaca.A expressão utilizada é imortal soluço de vida que rebenta-va, que representa a memória, elemento indestrutível na vi-são do poeta, porque é imaterial.

7. O título sugere de forma ambígua tanto a tendência solidáriae fraternal que marcará a publicação do livro e a fase do au-tor, como também a presença do eu, do gauche que não con-segue abandonar as próprias emoções e a individualidade.