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SEQUÊNCIA DE ENSINO PARA INSERÇÃO DA HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE FÍSICA Ítalo Nelson Dantas dos Santos Orientadora: Profª Drª Joelma Monteiro de Souza Co-Orientador: Prof. Dr. Francisco Augusto Silva Nobre Juazeiro do Norte - CE Janeiro de 2017

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SEQUÊNCIA DE ENSINO PARA INSERÇÃO DA HISTÓRIA E FILOSOFIA DA

CIÊNCIA NO ENSINO DE FÍSICA

Ítalo Nelson Dantas dos Santos

Orientadora: Profª Drª Joelma Monteiro de Souza

Co-Orientador: Prof. Dr. Francisco Augusto Silva Nobre

Juazeiro do Norte - CE Janeiro de 2017

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Sequência de Ensino

A sequência de ensino que será descrita aqui tem como objetivo auxiliar o professor de

Física que deseja conduzir suas aulas sob uma perspectiva histórica e filosófica, por

reconhecer a importância desse tipo de abordagem no bom ensino de ciências e por acreditar

que dessa forma é possível promover uma visão menos distorcida da Natureza da Ciência.

A aplicação dessa sequência consiste em cinco passos que buscam dar ao aluno uma

compreensão mais coerente da ciência, que lhe faça reconhecê-la como uma produção

humana, que carrega consigo ideologias, preconceitos e às vezes resultados inconsistentes,

mas que se aperfeiçoa através do trabalho coletivo de cientistas que seguem obcecados na

busca por respostas sobre a natureza das coisas.

Objetivamos com essa sequência os seguintes resultados:

Promover uma aprendizagem crítica;

Desfazer a visão dogmática que muitos têm sobre o conhecimento científico;

Contextualizar o conhecimento e relacioná- lo com outras áreas;

Destacar uma relação mais coerente entre as equações e conceitos físicos.

A sequência sugerida segue os seguintes passos:

Passo 1: O primeiro passo consiste em uma abordagem do contexto histórico

no qual se elaborou a teoria a ser ensinada, devendo ser feita de forma internalista1 e

externalista2. Essa abordagem pode ser feita através da leitura de um texto,

apresentação de um vídeo ou qualquer outro material que mostre aspectos da época em

que se deu a elaboração do conhecimento que está sendo ensinado, conforme seja mais

conveniente.

1 A abordagem internalista, como o próprio nome pressupõe, corresponde à análise dos fatores internos da

ciência, como as limitações apresentadas pelas teorias em análise ao explicar velhos ou novos fenômenos, as

discussões filosóficas entre os cientistas que defendem a ideia A ou B, e assim por diante. Esse tipo de

abordagem pode levantar questionamentos em sala de aula bastante enriquecedores, levando os alunos a

defenderem alguma das ideias defendida pelos cientistas da época.

2 A abordagem externalista mostra a influência que o conhecimento científico exerce em outras áreas do

conhecimento, tais como sociologia, religião, economia, etc. Esse tipo de abordagem desmistifica a ideia de que

a ciência se desenvolve de forma isolada do mundo, além de esclarecer que as ideias dos cientistas muitas vezes

são influenciadas pela cultura do local em que vivem.

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Passo 2: Esse momento consiste em apresentar para os alunos os conceitos da

teoria predominante (teoria A) no contexto histórico abordado no passo 1, podendo

essa apresentação ser feita através da ferramenta dos mapas conceituais. É possível

que esses conceitos coincidam com o senso comum da turma, podendo ser um ponto

de partida para que, através do direcionamento do professor, possam ser construídas

novas ideias, conforme pretende-se fazer no passo seguinte.

Passo 3: Nesse terceiro ponto, o professor levanta questionamentos, de forma

oral, que contraponham as principais ideias referentes a teoria A e ao conteúdo a ser

trabalhado (teoria B). Até então, ainda não se apresentou a teoria B, o que será feito

apenas no passo seguinte, porém, os questionamentos devem ser feitos com base em

exemplos em cujas respostas direcionem os alunos para essas novas ideias.

Passo 4: Após a turma chegar a um consenso quanto às respostas para os

problemas propostos, o professor apresenta os novos conceitos e leis científicas

concernentes ao conteúdo, comparando-os com as respostas da turma, corrigindo as

possíveis divergências, e usando-as para resolver os problemas propostos no passo

anterior.

Passo 5: Nesse momento, as ideias que até então haviam sido apresentadas

apenas de forma conceitual, devem ser demonstradas de forma matemática,

explorando cada detalhe das equações.

Passo 6: Nesse último passo, apresenta-se exemplos de aplicações que tornem

claras as novas ideias, consolidando de forma definitiva a assimilação dos novos

conceitos e tirando as dúvidas que ainda restarem.

Esta é a sequência que entendemos ser uma facilitadora para a transposição didática de

conteúdos de HFC para o ensino de Física, pois através dela, os aspectos históricos e

filosóficos do conteúdo deixam de ser uma simples nota de rodapé ou capítulos isolados que

resumem processos complexos a poucos nomes e datas, para serem elementos importantes no

processo de construção do conhecimento, de forma a estimularem o pensamento crítico e

desmistificarem o conhecimento científico.

Para facilitar a compreensão e aplicação dos passos propostos na sequência sugerida,

decidimos confrontar a FísicaAristotélica e a formulação newtoniana como forma de

exemplificar o uso desse material em sala de aula, conforme apresentaremos a seguir,

expondo inicialmente um resumo sobre as Leis de Newton.

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Leis de Newton: Uma abordagem histórica, filosófica e

conceitual

As notas históricas contidas nos livros de ciências geralmente omitem as diversas

personagens que contribuíram na construção de determinada teoria científica, exaltando a

figura de um único “gênio” e, no mínimo, sendo injusta com outros pensadores que foram

essenciais no processo. Com o nascimento da Física Clássica não é diferente, temos Isaac

Newton como o nome mais lembrado, pois sua contribuição foi inestimável para essa área de

conhecimento, porém, o mérito não se restringe a ele. Um olhar sobre a época em que Newton

viveu nos revela a pluralidade de pensamentos que influenciou seus trabalhos,

desmistificando a idiossincrasia de sua filosofia e mecânica (BARBATTI, 1998). Faremos

então, uma breve análise do contexto em que Newton viveu.

No século IV, a Igreja Católica, inseriu as ideias de Platão em sua filosofia, porém,

devido à complexidade de seus textos, a sua interpretação e adaptação aos dogmas católicos

resultaram no que a historiografia apresenta como neoplatonização. Já no século XII, foi a vez

da filosofia aristotélica, cujos escritos, de fácil entendimento, eram lidos principalmente nas

universidades (BARBATTI, 1998).

A figura de Deus era presente na filosofia medieval, pois era através dele que se

explicava a complexidade da natureza e sua forma orquestrada de funcionamento. Devido a

esse pensamento mítico, a filosofia natural era uma mistura de filosofia, teologia, alquimia,

astrologia e outras formas de conhecimento (OSTERMANN e CAVALCANTE, 2011). Foi

então que o filósofo inglês Francis Bacon (1562-1626) propôs através do seu livro “Novum

Organum” o que ficou conhecido como o método científico, que estabelecia um conjunto de

regras através do qual se poderia estabelecer uma teoria científica. O método baconiano

baseava-se principalmente na experimentação e na indução.

Porém, vale ressaltar que apesar do método baconiano, a ideia de Deus continuava

bastante presente na explicação de alguns fenômenos naturais. Parte dos filósofos acreditava

que Deus era o agente primário de sua criação, responsável em iniciar seu funcionamento, e a

partir dessa intervenção inicial, a natureza passou a funcionar sozinha, obedecendo às leis

matemáticas; a outra parte, à qual Newton se incluía, acreditava que Deus agia

constantemente na natureza desde a sua criação, sendo responsável por todos os fenômenos

naturais; porém, através da Mecânica Clássica, muitos Físicos viram que a natureza age de

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forma independente, controlada pelas suas leis, dispensando a necessidade de um agente que a

controlasse, resultando em um processo de ateização dos seus adeptos (BARBATTI, 1998).

A Filosofia Natural, como era chamada a Física do século XVII, se dividia em duas

correntes, a da filosofia mecânica, que defendia a descrição matemática de algo como sendo a

única forma de garantir sua certeza, reduzindo a natureza a categorias geométricas; e a da

filosofia empírica, argumentando sobre a incapacidade humana diante da diversidade das

coisas, de propor grandes sistemas coerentes, defendia, num pré-positivismo, que o

experimento criterioso é fundamental para o estabelecimento de verdades(BARBATTI, 1998).

Apesar do trabalho de Newton ser predominantemente mecânico, sua filosofia também

apresenta traços empíricos. Na verdade, o trabalho dele é uma combinação dos resultados

obtidos por alguns pensadores que lhe antecederam, tais como Copérnico, Galileu, Brahe e

Kepler e das discussões filosóficas contemporâneas, as quais envolveram personagens como

Descartes, Thomas Hobbes, Henry More, Isaac Barrow, Pierre Gassendi e Robert Boyle.

Outro ponto que deve ser considerado é o movimento renascentista que ocorreu em

parte da Europa, com início no século XIV, que resgatou produções humanas da Grécia e

Roma antiga, como a arte, filosofia e ciência, carregando consigo o antropocentrismo que

encorajou filósofos da época a questionar os dogmas impostos pela igreja, sendo um marco

para o fim do feudalismo. Foi nessa época que alguns filósofos voltaram a propor a ideia de

um sistema planetário heliocêntrico, como pensavam alguns gregos antigos, sendo um ponta

pé inicial para que a FísicaAristotélica e ptolomaica fossem abandonadas. Nesse processo de

modernização da ciência, temos como um marco o livro “Diálogo sobre os dois principais

sistemas do mundo”, em que Galileu contrapõe suas ideias à Física de Aristóteles e Ptolomeu.

Apesar desse panorama simples que fizemos até aqui sobre a filosofia na época de

Newton, podemos concluir que o nascimento da Mecânica Clássica foi um tanto quanto

dinâmico e resultou em um avanço científico que impulsionou as produções tecnológicas e

modificou de forma profunda a sociedade europeia e, posteriormente, o restante do mundo,

sendo um aspecto que não pode ser deixado de fora no ensino dessa área da Física, pois

desfaz visões inadequadas da ciência, que muitas vezes são adquiridas pelos estudantes em

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salas de aula tradicionais. A Mecânica Clássica, tal como descrita por Newton, está registrada

em seu livro “Princípios Matemáticos da Filosofia Natural”3.

Aristóteles dividia o movimento na superfície terrestre entre natural e violento, o

primeiro seria a trajetória natural seguida pelos corpos, os pesados caem em direção ao solo

(exemplo: um instrumento feito de ferro cairia em direção ao solo porque o lugar natural do

ferro é o solo) e semelhantemente os leves sobem em direção ao céu (fogo, fumaça, etc);

movimentos contrários a esses eram chamados de violentos e resultariam da ação de forças de

contato. De acordo com a FísicaAristotélica, um corpo só se manteria em movimento se

houvesse a ação contínua de uma força sobre ele e essa força seria o resultado do contato

entre os corpos. Naquela época ainda não se tinha a ideia de forças de campo, como a

eletromagnética ou gravitacional, apesar da descoberta da propriedade atrativa do âmbar ao

ser atritado.

Galileu Galilei mostrou em seu livro “Diálogo sobre os dois principais sistemas do

mundo” que o pensamento de Aristóteles estava equivocado em sua explicação sobre o

movimento dos corpos, demonstrando que, se colocarmos uma esfera em um plano inclinado

sem atrito e sem resistência do ar, a tendência natural dela seria descer com um movimento

continuamente acelerado. Se ela fosse lançada para se mover no sentido contrário, seria

continuamente freada até parar e voltar ao seu movimento natural de descida. Essas situações

mostram que o declive acelera e o aclive retarda o movimento, levando Galileu a concluir que

em um plano horizontal, não haveria causa nem para a aceleração e nem desaceleração da

esfera, levando-o a formular o Princípio da Inércia, que afirma que um corpo parado ou em

movimento uniforme em relação a um referencial, tende a manter seu estado de movimento.

O Princípio da Inércia corresponde à Primeira Lei de Newton, é definida por ele da

seguinte forma: “Todo corpo continua em seu estado de repouso ou de movimento uniforme

em linha reta, a menos que ele seja forçado a mudar aquele estado por forças imprimidas

sobre ele.” (NEWTON, 1686, p. 53). O estado de movimento de um corpo é mantido devido

ao que Newton chamou de vis insita, ou força inata da matéria, que corresponde ao poder que

o corpo tem de resistir à mudança de movimento (NEWTON, 2008).

3 Além de tratar do movimento dos sólidos, o “Principia”, como também é chamado o

livro de Newton, descreve o comportamento dos fluidos e a interação entre os corpos celestes, tudo de forma matemática, conforme característica principal da Filosofia Mecânica

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De acordo com a primeira lei, uma condição para que um corpo se mantenha em

repouso ou em movimento uniforme é que a soma de todas as forças que ajam sobre ele seja

nula, ∑ �⃗�𝑖𝑛𝑖=1 = 0, caso contrário, o corpo seria acelerado ou freado, dependendo do sentido

da força resultante. Assim, concluímos que a ação de uma força causa uma variação na

quantidade de movimento4, nos levando à segunda lei: “A mudança de movimento é

proporcional à força motora imprimida, e é produzida na direção da linha reta na qual aquela

força é imprimida” (NEWTON, 2008, p. 54), descrita matematicamente da seguinte forma:

�⃗� =𝑑�⃗⃗�

𝑑𝑡

Em que �⃗⃗� = 𝑚�⃗�é a quantidade de movimento ou momento linear. Teremos assim:

�⃗� = 𝑚�⃗�

Onde�⃗�, m e �⃗� são a força resultante, amassa do corpo e a aceleração, respectivamente. A

equaçãoacimanão define o que é força, mas dá a relação de proporcionalidade que ela tem

com a aceleração.

A Terceira Lei, apesar de poder ser comprovada experimentalmente, provavelmente

tenha sido obtida de forma teórica, a partir do princípio da conservação do momento linear5.

Como em um sistema conservativo o somatório dos momentos de cada partícula é constante

para todo instante t, ou seja,

∑𝑃𝑖

𝑛

𝑖=1

= 𝐶𝑜𝑛𝑠𝑡𝑎𝑛𝑡𝑒

se considerarmos a interação entre duas partículas isoladas do meio, e aplicarmos o princípio

da conservação do momento, teremos:

𝑃 = 𝑃1 +𝑃2

onde 𝑃1 e 𝑃2 são os momentos das partículas 1 e 2 no instante t, respectivamente, e:

𝑃′ = 𝑃′1 +𝑃′2

4 “A quantidade de movimento é a medida do mesmo, obtida conjuntamente a partir

da velocidade e da quantidade de matéria.” (NEWTON, 1686, p. 40) 5 A quantidade de movimento, que é obtida tomando-se a soma dos movimentos

dirigidos para as mesmas partes, e a diferença daqueles que são dirigidos a partes contrárias, não sofrem mudanças a partir da ação de corpos entre si. (NEWTON, 2008, p. 57)

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onde 𝑃′1 e 𝑃′2 são os momentos das partículas 1 e 2 no instante t’, respectivamente. Logo, a

variação dos momentos no intervalo de tempo de t a t’ será:

∆𝑃

∆𝑡=∆𝑃1∆𝑡

+∆𝑃1∆𝑡

Como P é constante, o lado esquerdo da equação fica nulo, e sabendo que 𝑃 = 𝑚�⃗�, nossa

equação acima ficará da seguinte forma:

0 = 𝑚∆�⃗�1∆𝑡

+ 𝑚∆�⃗�2∆𝑡

Onde �⃗�1e �⃗�2 são as velocidades das partículas 1 e 2 respectivamente. Como ∆�⃗⃗�1

∆𝑡= �⃗� é a

aceleração, aplicando a segunda lei obteremos:

�⃗�1→2 = −�⃗�2→1

Onde no lado esquerdo da equação temos a força que a partícula 1 imprime na partícula 2 e no

lado direito a força que a partícula 2 imprime na partícula 1. Obtivemos assim a Terceira lei

de Newton: “A toda ação há sempre oposta uma reação igual ou, as ações mútuas de dois

corpos um sobre o outro são sempre iguais e dirigidas a partes opostas.” (NEWTON, 2008, p.

54)

Através das três leis aqui descritas, acrescida da Teoria da Gravitação Universal,

podemos descrever a natureza que nos envolvem, porém a Mecânica Clássica tem suas

limitações. A continuação dessa análise histórica nos levaria à incapacidade da teoria de

Newton, alguns séculos depois de sua formulação, por exemplo, em descrever a órbita de

Mercúrio, ou sua inconsistência com as Transformações de Lorentz, através das quais

Einstein formulou seu princípio da Relatividade Especial; poderíamos assim reafirmar o

caráter transitório das teorias científicas, dirimindo a visão dogmática que um ensino acrítico

promove.

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Exemplo de Aplicação da Sequência de Ensino: Leis de

Newton

Passo 1

A sequência de ensino pode ser iniciada com a leitura de um texto que está contido no livro

“Uma breve história do tempo” de Stephen Hawking, ao qual atribuímos o título “É tudo

tartaruga...”, o qual está transcrito abaixo:

“Um conhecido homem de ciência (segundo as más línguas, Bertrand

Russel) deu uma vez uma conferência sobre astronomia. Descreveu

como a Terra orbita em volto do Sol, e como o Sol, por suas vez,

orbita em redor do centro de um vasto conjunto de estrelas que

constitui a nossa galáxia. No fim da conferência, uma velhinha, no

fundo da sala, levantou-se e disse: ``O que o senhor nos disse é um

disparate. O mundo não passa de um prato achatado equilibrado nas

costas de uma tartaruga gigante." O cientista sorriu com ar superior e

retorquiu com outra pergunta: ``E onde se apoia a tartaruga?" A

velhinha então exclamou: ``Você é um jovem muito inteligente, mas

são tudo tartarugas por aí abaixo!” (Hawking, 2015, p. 5).

A leitura do citado texto é oportuna para se iniciar uma discussão sobre a

transitoriedade das teorias científicas e conduzir os alunos às concepções antigas sobre o

universo e o funcionamento da natureza, além de mostrar ideias que antes eram aceitas pela

maioria das pessoas como verdade absoluta, mas que se tornaram ultrapassadas com a

evolução do pensamento científico.

Essa discussão deve ser usada pelo professor para conduzir a turma ao primeiro passo

da sequência didática, onde se deve mostrar que no séc. XVII a Física e as demais ciências

naturais se confundiam entre si e entre mitos e outras formas de conhecimento, o que

conduziu alguns filósofos a ideias equivocadas sobre o funcionamento da natureza, como foi

o caso de Aristóteles ao explicar o movimento dos corpos. Deve-se destacar também que a

Filosofia Natural, como era conhecida a Física nessa época, dividia-se em Filosofia Mecânica

e Filosofia Empírica, onde através da primeira procurava-se matematizar o conhecimento

sobre a natureza, pois se acreditava na existência de um Deus como criador de tudo, e sua

perfeição era expressa através da regularidade dos fenômenos naturais, que obedecia às leis

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matemáticas; no segundo, construía-se o conhecimento a partir de observações, através das

quais os filósofos extraíam explicações e criavam suas leis naturais. Deve-se abordar também

a questão da repressão, exercida pelas autoridades da época, à diversidade de pensamento, da

qual foram vítimas, entre outros, Giordano Bruno (1548 – 1600) e Galileu Galilei (1564 –

1642), mas que apesar dessa repressão, havia uma disputa entre as ideias de Aristóteles

(defendida pela igreja) e de Copérnico, conforme representada no livro “Diálogo sobre os dois

principais sistemas do mundo” de Galileu Galilei.

Passo 2

Nesse passo, deve-se apresentar as explicações dada pela FísicaAristotélica, o que pode ser

feito através de um pequeno mapa conceitual, conforme representado abaixo:

Figura 1: Física Aristotélica

Fonte: Produzida pelo próprio autor

É importante destacar que a teoria de Aristóteles não era a única, mas que havia sido abraçada

pela Igreja Católica através dos filósofos cristãos, que a resgataram do pensamento grego

antigo adequando-a a sua teologia.

Passo 3

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O terceiro passo pode ser dado através da leitura do trecho a seguir de “Diálogo sobre os dois

principais sistemas do mundo” de Galileu Galilei:

"SALV.: ... Diga-me agora: Suponhamos que se tenha uma superfície

plana lisa como um espelho e feita de um material duro como o aço.

Ela não está horizontal, mas inclinada, e sobre ela foi colocada uma

bola perfeitamente esférica, de algum material duro e pesado, como o

bronze. A seu ver, o que acontecerá quando a soltarmos?

SIMP.: Não acredito que permaneceria em repouso; pelo contrário,

estou certo de que rolaria espontaneamente para baixo.

SALV.: ... E por quanto tempo a bola continuaria a rolar, e quão

rapidamente? Lembre-se de que eu falei de uma bola perfeitamente

redonda e de uma superfície altamente polida, a fim de remover todos

os impedimentos externos e acidentais. Analogamente, não leve em

consideração qualquer impedimento do ar causado por sua resistência

à penetração, nem qualquer outro obstáculo acidental, se houver.

SIMP.: Compreendo perfeitamente, e em resposta a sua pergunta digo

que a bola continuaria a mover-se indefinidamente, enquanto

permanecesse sobre a superfície inclinada, e com um movimento

continuamente acelerado.

SALV.: Mas se quiséssemos que a bola se movesse para cima sobre a

mesma superfície, acha que ela subiria?

SIMP.: Não espontaneamente; mas ela o faria se fosse puxada ou

lançada para cima.

SALV.: E se fosse lançada com um certo impulso inicial, qual seria o

seu movimento, e de que amplitude?

SIMP.: O movimento seria constantemente freiado e retardado, sendo

contrário à tendência natural, e duraria mais ou menos tempo

conforme o impulso e a inclinação do plano fossem maiores ou

menores.

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SALV.: Muito bem; até aqui você me explicou o movimento sobre

dois planos diferentes. Num plano inclinado para baixo, o corpo

móvel desce espontaneamente e continua acelerando, e é preciso

empregar uma força para mantê-lo em repouso. Num plano inclinado

para cima, é preciso uma força para lançar o corpo ou mesmo para

mantê-lo parado, e o movimento impresso ao corpo diminui

continuamente até cessar de todo. Você diz ainda que, nos dois casos,

surgem diferenças conforme a inclinação do plano seja maior ou

menor, de forma que um declive mais acentuado implica maior

velocidade, ao passo que, num aclive, um corpo lançado com uma

dada força se move tanto mais longe quanto menor o aclive. Diga-me

agora o que aconteceria ao mesmo corpo móvel colocado sobre uma

superfície sem nenhum aclive nem declive.

SIMP.: Aqui preciso pensar um instante sobre a resposta. Não

havendo declive, não pode haver tendência natural ao movimento; e,

não havendo aclive, não pode haver resistência ao movimento. Parece-

me portanto que o corpo deveria naturalmente permanecer em

repouso. Mas eu me esqueci; faz pouco tempo que Sagredo me deu a

entender que isto é o que aconteceria.

SALV.: Acredito que aconteceria se colocássemos a bola firmemente

num lugar. Mas que sucederia se lhe déssemos um impulso em alguma

direção?

SIMP.: Ela teria que se mover nessa direção.

SALV.: Mas com que tipo de movimento? Seria continuamente

acelerado, como no declive, ou continuamente retardado, como no

aclive?

SIMP.: Não posso ver nenhuma causa de aceleração nem deceleração,

uma vez que não há aclive nem declive.

SALV.: Exatamente. Mas se não há razão para que o movimento da

bola se retarde, ainda menos há razão para que ele pare; por

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conseguinte, por quanto tempo você acha que a bola continuaria se

movendo?

SIMP.: Tão longe quanto a superfície se estendesse sem subir nem

descer.

SALV.: Então, se este espaço fosse ilimitado, o movimento sobre ele

seria também ilimitado? Ou seja, perpétuo?

SIMP.: Parece-me que sim, desde que o corpo móvel fosse feito de

material durável. "

(NUSSENZVEIG, 2007, p. 66 apud Glilei, 1953).

Nesse momento, o professor lê as falas da personagem Salviat, que estão em forma de

perguntas, e pede para os alunos responderem, conferindo as respostas com as respostas da

personagem Simplício. O fato de serem perguntas fáceis de responder, faz com que as

respostas dos alunos coincidam com as de Simplício, que por sua vez, coincidem com o

princípio da inércia.

Passo 4

Após a conclusão da leitura, para se iniciar o passo “d”, apresenta-se a Lei da Inércia

conforme está no “Princípios Matemáticos da Filosofia Natural” de Sir Isaac Newton,

destacando que o mesmo concordava com as respostas dada pela turma. Para tornar mais clara

a Primeira Lei, pode-se usar como exemplo o Movimento Retilíneo Uniforme (MRU)

[𝑆 = 𝑆0 +𝑣𝑡], que mostra o caráter contínuo de um movimento em que não há aceleração, e o

Movimento Retilíneo Uniformemente Variado (MRUV) [𝑆 = 𝑆0 +𝑣0𝑡 +1

2𝑎𝑡2], que é a

situação em que há a ação de uma força e, portanto, vai contra a tendência natural do móvel

em manter sua velocidade constante, seja ela nula ou não.

A segunda lei pode ser apresentada de forma intuitiva, explorando o conhecimento empírico

dos alunos, destacando que essa é uma das formas na qual se obtém o conhecimento, a saber,

através da observação. Para tal, usa-se o seguinte exemplo:

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EXEMPLO: Se para imprimirmos uma aceleração �⃗�num corpo de massa 𝑀 precisamos de

uma força �⃗�, então para imprimirmos a mesma aceleração num corpo de massa 2𝑀

precisaremos de uma força 2�⃗�, para uma massa 3𝑀 teria que ser 3�⃗�, e assim por diante, ou

seja, quanto maior a massa, maior deve ser a força necessária para que tenhamos a mesma

aceleração, revelando uma relação de proporcionalidade entre elas, sendo �⃗� a constante de

proporcionalidade. Semelhantemente, se uma força �⃗� causa uma aceleração 𝑎 num corpo de

massa 𝑀, então para imprimirmos uma aceleração 2�⃗� teremos que aplicar uma força 2�⃗�, para

uma aceleração 3�⃗�a força teria que ser 3�⃗�. Dessa forma, na primeira situação, para

transformarmos a relação de proporcionalidade entre a força e massa em igualdade, usamos a

aceleração �⃗� como constante de proporcionalidade e no segundo caso, a constante de

proporcionalidade passou a ser a massa 𝑀, o que resultou na Segunda Lei:

�⃗� = 𝑀�⃗�

Para apresentarmos a Terceira Lei, utilizamos um exemplo extraído, com algumas

modificações, do livro “Curso de Física Básica” de Moysés Nussenzveig, que mostra a

colisão elástica entre duas esferas idênticas que se aproximam uma da outra com velocidade

de mesmo módulo e sentidos contrários em uma superfície sem atrito.

Figura 2: Sistema Conservativo

Fonte: http://mundoeducacao.bol.uol.com.br/fisica/colisoes-elasticas-inelasticas.htm

Antes da colisão, o momento linear total �⃗⃗�do sistema é dado por:

�⃗⃗�1 = �⃗⃗�1𝐴 + �⃗⃗�1𝐵 = 𝑚1�⃗�1𝐴 +𝑚2�⃗�1𝐵 = 0

onde �⃗⃗�1𝐴, 𝑚1 e �⃗�1𝐴 são o momento linear, a massa e a velocidade da esfera A antes da

colisão, respectivamente e �⃗⃗�1𝐵, 𝑚2 e �⃗�1𝑏 são, semelhantemente, o momento linear, a massa e

a velocidade da esfera B antes da colisão. Se as esferas são idênticas, então 𝑚1 = 𝑚2 = 𝑚.

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Como a colisão é elástica e as esferas são idênticas, as velocidades das partículas se invertem

e após a colisão o momento linear total do sistema será:

�⃗⃗�2 = �⃗⃗�2𝐴 + �⃗⃗�2𝐵 = 𝑚1�⃗�2𝐴 + 𝑚2�⃗�2𝐵 = 0

onde �⃗⃗�2𝐴, 𝑚1 e �⃗�2𝐴 são o momento linear, a massa e a velocidade da esfera 1 antes da colisão,

respectivamente e �⃗⃗�2𝐵, 𝑚2 e �⃗�2𝑏 são, semelhantemente, o momento linear, a massa e a

velocidade da esfera 2 antes da colisão.

Dessa forma, teremos �⃗⃗�1 = �⃗⃗�2, assim:

�⃗⃗�1𝐴 + �⃗⃗�1𝐵 = �⃗⃗�2𝐴 + �⃗⃗�2𝐵

�⃗⃗�2𝐴 − �⃗⃗�1𝐴 = −(�⃗⃗�2𝐵− �⃗⃗�1𝐵)

∆�⃗⃗�𝐴 = −∆�⃗⃗�𝐵

𝑚∆�⃗�𝐴 = −𝑚∆𝑣𝐵

Multiplicando ambos os lados por 1

∆𝑡, teremos:

𝑚∆�⃗�𝐵∆𝑡

= −𝑚∆�⃗�𝐵∆𝑡

Como ∆𝑣

∆𝑡 é a aceleração, a equação acima pode ser reescrita da seguinte forma:

𝑚�⃗�𝐴 = −𝑚𝑣𝐵

O que corresponde à Segunda Lei de Newton:

�⃗�𝐴 = −�⃗�𝐵

Onde �⃗�𝐴 é a força que a esfera A exerce sobre a esfera B e �⃗�𝐵 é a força que a esfera B exerce

sobre a esfera A no instante da colisão. Concluímos assim o primeiro encontro.

Passo 5

Para concluir a sequência, deve-se mostrar alguns exemplos de aplicação dos

novos conceitos, de preferência problemas gerais, que tratem das principais ideias que

envolvam o conteúdo. Os exemplos podem ser conforme os descritos a seguir:

EXEMPLO 1

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O bloco A, representado na figura abaixo, está em repouso em uma superfície sem atrito e sua

massa é 𝑚:

Figura 3: Bloco sobre uma superfície horizontal

Fonte: http://professor.bio.br/fisica/provas_vestibular_detalhe.asp?universidade=Faap-1997

a) Quais as forças que agem nesse corpo?

b) Se aplicarmos um pequeno impulso, de modo que ele comece a se deslocar, sua velocidade

será constante ou variada? Por quanto tempo durará seu movimento?

EXEMPLO 2

A figura abaixo representa um corpo de massa M sobre um plano com atrito, que faz um

ângulo θ com a horizontal:

Figura 4: Bloco sobre plano inclinado

Fonte: https://descomplica.com.br/blog/fisica/o-que-e-forca-de-atrito-e-como-ela-age-no-plano-inclinado/

a) O corpo está inicialmente em repouso, indique as forças que atuam sobre ele apontando os

pares ação e reação;

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b) O corpo desliza para baixo sobre superfície. Qual a força responsável por esse movimento?

Fica como sugestão o uso de avaliações antes e depois da aplicação da sequência,

como forma de perceber uma possível evolução da turma.

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Bibliografia

[Barbatti 1999], M. Barbatti, A filosofia natural à época de Newton. Revista Brasileira

de Ensino de Física, v. 21, n. 1, p. 153-160, 1999.

[Hawking 2015] S. Hawking, Uma breve história do tempo. Editora Intrinseca, 2015.

[Newton 2008] I. Newton, Principia: princípios matemáticos de filosofia natural.

Edusp, 2008.

[Nussenzveig, 2007] H. M. Nussenzveig, Curso de Física básica. Edgard Blücher,

2002. reimp. 2007.

[Ostermann e Cavalcanti 2011] F. Ostermann, C. J. H. Cavalcanti, Epistemologia:

implicações para o ensino de ciências / Fernanda Ostermann e Cláudio José de Holanda

Cavalcanti. - Porto Alegre: Evangraf; UFRGS, 2011.