SERAPHINA - A GAROTA COM CORAÇÃO DE DRAGÃO

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Neste livro, você vai conhecer Seraphina Dombergh, uma garota de 16 anos com grande talento para música e que possui um terrível segredo. A história se passa no reino medieval de Goredd, onde seres humanos e dragões convivem em harmonia durante décadas, desde a assinatura do Tratado de Paz.

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RACHEL HARTMAN

Tradução:DENISE DE C. ROCHA DELELA

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Título do original: Seraphina.Copyright do texto © 2012 Rachel Hartman.Copyright da edição brasileira © 2013 Editora Pensamento-Cultrix Ltda.Publicado mediante acordo com Random House Children’s Books, uma divisão da Random House, Inc., New York.Texto de acordo com as novas regras ortográficas da língua portuguesa.1a edição 2013.Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou usada de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópias, gravações ou sistema de armazenamento em banco de dados, sem permissão por escrito, exceto nos casos de trechos curtos citados em resenhas críticas ou artigos de revistas. A Editora Jangada não se responsabiliza por eventuais mudanças ocorridas nos endereços convencionais ou eletrônicos citados neste livro.Esta é uma obra de ficção. Todos os personagens, organizações e acontecimentos retratados neste romance são também produto da imaginação do autor e são usados de modo fictício.Design e ilustração da capa: Chris NurseEditor: Adilson Silva RamachandraEditora de texto: Denise de C. Rocha DelelaCoordenação editorial: Roseli de S. FerrazPreparação de originais: Maria Theresa OrnellasProdução editorial: Indiara Faria KayoAssistente de produção editorial: Estela A. MinasRevisão: Nilza Agua e Yociko OikawaEditoração eletrônica: Fama Editora

Jangada é um selo editorial da Pensamento-Cultrix Ltda.Direitos de tradução para o Brasil adquiridos com exclusividade pelaEDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA.,que se reserva a propriedade literária desta tradução.Rua Dr. Mário Vicente, 368 — 04270-000 — São Paulo, SPFone: (11) 2066-9000 — Fax: (11) 2066-9008E-mail: [email protected]://www.editorajangada.com.brFoi feito o depósito legal.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hartman, RachelSeraphina : a garota com coração de dragão / Rachel Hartman ; tradução

Denise de C. Rocha Delela. — São Paulo : Jangada, 2013.

Título original: Seraphina.ISBN 978-85-64850-28-61. Ficção - Literatura infantojuvenil I. Título.

13-01707 CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático:1. Ficção : Literatura infantojuvenil 028.5

2. Ficção : Literatura juvenil 028.5

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Em memória de Michael McMechan.Dragão, professor, amigo.

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Prólogo

Eu me lembro do dia em que eu nasci.Na verdade, lembro-me de um período anterior a esse. Não havia luz, mas

havia música: articulações rangendo, sangue bombeando, a canção de ninar em staccato do coração, uma rica sinfonia de indigestão. O som me envolvia, e eu me sentia segura.

Então meu mundo se rompeu e fui atirada na direção de uma claridade fria e silenciosa. Tentei preencher o vazio com gritos, mas o espaço era vasto demais. Eu me enfureci, mas não havia como voltar.

Não me lembro de mais nada. Eu era um bebê, embora peculiar. Sangue e pânico não significavam quase nada para mim. Não me lembro da parteira horrorizada, do meu pai chorando ou do padre encomendando a alma de mi-nha mãe.

Minha mãe me deixou uma herança complicada e difícil de carregar. Meu pai escondeu os detalhes mórbidos de todos, inclusive de mim. Ele nos levou de volta a Lavondaville, a capital de Goredd, e retomou sua prática em leis. Inventou para si mesmo uma categoria mais aceitável para a esposa morta. Eu acreditava na minha mãe assim como algumas pessoas acreditam no Céu.

Eu era uma criança enjoada; não mamava se a ama de leite não cantasse no tom certo.

— A coisinha tem ouvido para música — comentava Orma, um conhe-cido do meu pai, alto e ossudo, que nos visitava com muita frequência naquela época. Orma me chamava de “a coisinha”, como se eu fosse um cachorro; eu me sentia atraída pelo seu jeito quase indiferente, assim como os gatos rodeiam as pessoas que preferem evitá-los.

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Ele nos acompanhou até a catedral numa manhã de primavera, onde o jovem sacerdote ungiu meus cabelos ralos com óleo de lavanda e me disse que, aos olhos do Céu, eu era uma rainha. Chorei alto como qualquer bebê que se preze, meus gritos ecoando por toda a nave da igreja. Sem se incomodar em erguer os olhos do trabalho que trouxera consigo, meu pai prometeu que iria me criar piamente no credo de Todos os Santos. O padre deu na minha mão o saltério do meu pai e eu o deixei cair na página que continha uma mensagem para mim. Ele abriu na página da ilustração de Santa Yirtrudis, cujo rosto ti-nha sido escurecido.

O padre beijou a própria mão com o mindinho levantado:— Seu saltério ainda inclui a herética!— É um saltério muito velho — disse meu pai, sem olhar para o padre — e

eu detesto mutilar um livro.— Aconselhamos os fiéis bibliófilos a colarem as páginas de Yirtrudis para

que essa falha não aconteça. — O padre folheou o livro. — O Céu certamente se referiu a Santa Capiti.

Meu pai murmurou alto e bom som alguma coisa sobre falsificações su-persticiosas para o padre ouvir. Então se seguiu uma discussão feroz entre meu pai e o padre, mas não me lembro dela. Eu fitava, extasiada, uma procis-são de monges atravessando a nave. Eles passaram com seus sapatos macios, uma agitação de vestes escuras e farfalhantes e de contas batendo umas contra as outras, e tomaram seus lugares no coro da catedral. Bancos estalaram e ran-geram; vários monges tossiram.

E começaram a cantar.A catedral, reverberando com as vozes masculinas, pareceu se expandir

diante dos meus olhos. O sol brilhou através dos vitrais altos; dourado e car-mesim tingiram o chão de mármore. A música fez meu corpinho flutuar, pre-encheu-me e cercou-me, tornando-me maior do que eu era na verdade. Era a resposta a uma pergunta que eu nunca tinha feito, uma maneira de preencher o terrível vazio em que eu tinha caído ao nascer. Eu acreditava — não, eu sabia — que podia transcender a vastidão e tocar o teto abobadado com a mão.

Tentei fazer isso.Minha ama deu um grito agudo quando me contorci no seu colo e quase

caí. Ela me pegou pelo tornozelo, num ângulo estranho. Olhei atordoada para o chão; ele pareceu se inclinar e girar.

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Meu pai me levantou, as mãos longas ao redor do meu tronco rechon-chudo, e me segurou com os braços esticados, como se tivesse descoberto um sapo gigantesco e assombroso. Fitei seus olhos cinza-mar, que tinham rugas de tristeza nos cantos.

O padre se afastou tempestuosamente sem me dar sua bênção. Orma observou-o desaparecer no interior da Casa Dourada, depois disse:

— Claude, explique isso. Ele foi embora porque você o convenceu de que a religião dele é uma fraude? Ou estava... Como se diz? Ofendido?

Meu pai pareceu não ouvir; algo em mim tinha atraído a atenção dele. — Olhe os olhos dela. Eu poderia jurar que ela nos entende.— É um olhar muito lúcido para um bebê — concordou Orma, suspen-

dendo os óculos e fixando olhar penetrante em mim. Os olhos dele eram cas-tanho-escuros como os meus, mas, ao contrário dos meus, eram tão distantes e inescrutáveis quanto o céu noturno.

— Não tenho sido a pessoa mais adequada para esta tarefa, Seraphina — disse meu pai suavemente. — Talvez eu nunca seja a pessoa mais adequada, mas acredito que possa melhorar. Precisamos encontrar um jeito de ser uma família um para o outro.

Ele beijou minha cabeça penugenta. Nunca tinha feito isso antes. Arregalei os olhos para ele, deslumbrada. As vozes suaves dos monges nos cercavam e mantinham nós três juntos. Por um único e glorioso momento, recuperei aquele primeiro sentimento, aquele que tinha perdido ao nascer: tudo estava como tinha que ser e eu me encontrava exatamente no lugar a que pertencia.

E então o momento se foi. Passamos pelas portas da catedral com rele-vos em bronze, a música se desvanecendo às nossas costas. Orma afastou-se a passos largos na direção da praça sem se despedir, o manto se agitando como as asas de um enorme morcego. Meu pai me passou para a ama, enrolou-se no próprio manto e curvou os ombros para enfrentar as rajadas de vento. Eu chorei, querendo seu colo, mas ele não se voltou para mim. Acima de nós ar-queava-se o céu, vazio e remotamente distante.

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Falsificação supersticiosa ou não, a mensagem do saltério era clara: A verdade não pode ser dita. Eis uma mentira aceitável.

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Não que Santa Capiti — que ela me guarde em seu coração — tenha se tornado uma pobre santa substituta. Ela foi assustadoramente apropriada, na verdade. Santa Capiti ofereceu a própria cabeça numa bandeja, como se fosse um ganso assado; ela saltava da página, desafiando-me a julgá-la. Representava a vida da mente, em total divórcio das sórdidas atividades do corpo.

Passei a gostar dessa divisão à medida que ficava mais velha e era surpre-endida pelas próprias bizarrices corporais, mas, mesmo quando jovem, sen-tia uma simpatia visceral por Santa Capiti. Quem conseguiria amar alguém com a cabeça separada do corpo? Como ela conseguia alcançar qualquer coisa significativa neste mundo enquanto suas mãos estavam ocupadas com aquela bandeja? Será que ela tinha quem a compreendesse e a visse como amiga?

Meu pai tinha permitido que minha ama colasse as páginas da Santa Yir-trudis; a pobre senhora não conseguiu sossegar na nossa casa enquanto não fez isso. Eu nunca tinha dado nem uma espiada na herética. Se colocava a pá-gina contra a luz, conseguia perceber os contornos das duas santas, fundidas e transformadas numa santa monstruosa. Os braços abertos de Santa Yirtrudis se espalhavam pelas costas de Santa Capiti como um par de asas inúteis; a cabeça dela sombreada assomava-se onde a de Santa Capiti deveria estar. Ela era uma santa dupla na minha vida dupla.

Meu amor pela música acabou me tirando da segurança da casa de meu pai e me impelindo em direção à cidade e à corte real. Corri um risco terrível, mas não conseguiria agir de outro modo. Eu realmente não entendia que car-regava a solidão diante de mim numa bandeja e essa música seria a luz que, por detrás, iluminaria meu caminho.

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Um

No centro da catedral havia um modelo do Céu chamado Casa Dourada. Seu telhado se abria como uma flor, para revelar uma cavidade do tama-

nho de um homem, na qual jazia o corpo do pobre Príncipe Rufus, coberto por uma mortalha branca e dourada. Seus pés repousavam na borda abençoada da Casa; a cabeça, aninhada entre estrelas douradas.

Pelo menos deveria ser assim. No entanto, o assassino do Príncipe Rufus o decapitara. A Guarda tinha vasculhado a floresta e os pântanos, procurando em vão pela cabeça do Príncipe, mas ele teve que ser sepultado sem ela.

Eu estava de pé nos degraus do coro da catedral, de frente para o funeral.Do púlpito alto em forma de balcão, à minha esquerda, o bispo rezava

diante da Casa Dourada, da família real e da nobreza enlutada, reunida no cen-tro da igreja. Além de uma grade de madeira, gente do povo aglomerava-se na nave cavernosa. Tão logo o bispo concluísse a oração, eu tocaria a Invocação a Santo Eustace, que acompanhava os espíritos ao longo da Escada Celestial. Eu oscilava vertiginosamente, apavorada, como se tivesse sido convidada para tocar flauta sobre um despenhadeiro açoitado pelo vento.

Na verdade, eu não tinha sido convidada para tocar. Eu não fazia parte da programação; tinha prometido ao meu pai, quando fui embora de casa, que não iria me apresentar em público. Eu tinha ouvido a Invocação uma ou duas vezes, mas nunca antes tocado. Aquela nem sequer era minha própria flauta.

Meu solista escolhido, no entanto, tinha se sentado sobre sua flauta e en-tortado a palheta do instrumento; o solista substituto tinha bebido libações demais à alma do Príncipe Rufus e estava no jardim do claustro, nauseado de arrependimento. Não havia um segundo substituto. O funeral ficaria arrui-

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nado sem a Invocação. Eu era responsável pela música, por isso cabia a mim tocá-la.

A oração do bispo tornou-se menos fervorosa; ele descreveu a gloriosa Morada Celestial, habitação de Todos os Santos, onde todos iríamos descansar um dia em eterna bem-aventurança. Não mencionou exceções; não precisava. Meus olhos tremeram involuntariamente quando vi o Embaixador dragão e os benevolentes representantes de sua Embaixada, todos sentados atrás da nobreza, mas à frente da multidão de pessoas comuns. Eles estavam em suas saarantrai — suas formas humanas —, mas eram perfeitamente distinguíveis mesmo a essa distância pelos sinos de prata nos ombros, os assentos vazios ao seu redor e sua aversão ao costume de curvar a cabeça durante uma oração.

Os dragões não têm alma. Ninguém esperava religiosidade da parte deles.— Amém! — entoou o bispo. Aquela era a minha deixa para começar a

tocar, mas naquele exato momento percebi a presença de meu pai na nave abarrotada, sentado além da barreira. O rosto dele estava pálido e abatido. Eu podia ouvir na minha cabeça as palavras que ele me dissera no dia em que saí de casa para morar na corte apenas duas semanas antes: Em nenhuma circuns-tância você deve chamar a atenção para si mesma. Se não pensa em sua própria segurança, pelo menos lembre-se de tudo o que eu tenho a perder!

O bispo limpou a garganta, mas eu estava gelada por dentro e mal podia respirar.

Busquei desesperadamente algum foco melhor em que me concentrar.Meus olhos se depararam com a família real, três gerações sentadas uma ao

lado da outra diante da Casa Dourada; um quadro de dor. A Rainha Lavonda tinha deixado os cachos de cabelos grisalhos soltos sobre os ombros; os olhos azuis-claros estavam vermelhos de tanto chorar pelo filho. A Princesa Dionne sentava-se empertigada e com um olhar feroz, como se planejasse vingança contra os assassinos do irmão mais novo ou contra o próprio Rufus, por não chegar ao seu quadragésimo aniversário. A Princesa Glisselda, filha de Dionne, recostara a cabeça dourada no ombro da avó para confortá-la. O Príncipe Lu-cian Kiggs, primo e noivo de Glisselda, estava sentado um pouco mais afastado da família e olhava tudo sem ver. Não era filho do Príncipe Rufus, mas parecia tão chocado e pesaroso como se tivesse perdido o próprio pai.

Eles precisavam da paz celestial. Eu sabia muito pouco dos Santos, mas conhecia a tristeza e sabia que a música era o melhor bálsamo contra ela. Esse

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era um conforto que eu podia oferecer. Ergui a flauta até os lábios e os olhos na direção do teto abobadado, e comecei a tocar.

Comecei muito baixo, sem saber direito a melodia, mas as notas pareciam vir ao meu encontro e minha confiança aumentou. A música fluiu de mim como uma pomba liberta na vastidão da nave; a própria catedral lhe empres-tava uma nova riqueza e lhe dava algo em troca, como se esse glorioso edifício também fosse meu instrumento.

Há melodias que falam de modo tão eloquente quanto as palavras, que fluem lógica e inevitavelmente de uma emoção única e pura. A Invocação é esse tipo de melodia, como se o compositor tivesse procurado destilar a mais pura essência do luto, para dizer: Isto é que significa perder alguém.

Repeti a Invocação duas vezes, relutante em deixá-la terminar, antecipando o final da música como outra perda palpável. Deixei a última nota soar livre-mente, apurei os ouvidos para o eco agonizante final e me senti murcha por dentro, exausta. Não haveria aplausos, como mandava a dignidade da ocasião, mas o silêncio era ensurdecedor. Olhei através da planície de rostos, da con-gregação de nobres e outros convidados ilustres, para a multidão esmagadora além da barreira, composta de gente do povo. Não vi nenhum movimento, mas os dragões se agitaram desconfortavelmente nos assentos e Orma, pressionado contra o corrimão, pendeu absurdamente a aba do chapéu para mim.

Eu estava esgotada demais para me sentir embaraçada. Baixei a cabeça e me retirei.

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Eu era a nova assistente do compositor da corte e, para conseguir o emprego, tinha derrotado outros 27 músicos, desde trovadores itinerantes até mestres consagrados. Fui uma surpresa; ninguém no conservatório prestava muita atenção em mim por eu ser protegida de Orma, um humilde professor de teoria musical, não um músico da corte. Ele tocava espineta com competência, mas era como se o instrumento tocasse por si quando ele apertava as teclas certas. Faltava-lhe paixão e musicalidade. Ninguém esperava que uma aluna de Orma em período integral fosse ascender a alguma coisa.

Meu anonimato era intencional. Meu pai tinha me proibido de confra-ternizar com os outros alunos e professores; eu sabia que ele tinha razão, no

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entanto eu era uma pessoa solitária. Ele não me proibira expressamente de me candidatar a um emprego, mas eu sabia perfeitamente bem que ele não iria gostar. Era assim que as coisas normalmente aconteciam entre nós: ele estabelecia limites rígidos e eu concordava até não aguentar mais. Era sempre a música que me impulsionava a ir além do que ele considerava seguro. Ainda assim, eu não tinha previsto a profundidade e amplitude da sua fúria quando descobriu que eu estava saindo de casa. Eu sabia que sua ira era na verdade temor por mim, mas isso não a tornava mais fácil de suportar.

Agora eu trabalhava para Viridius, o compositor da corte, que estava com a saúde debilitada e precisava desesperadamente de um assistente. O quadragé-simo aniversário do tratado entre Goredd e os dragões estava se aproximando rapidamente, e o próprio Ardmagar Comonot, o grande general dragão, che-garia à cidade para as comemorações dentro de apenas dez dias. Concertos, bailes e outros entretenimentos musicais eram da responsabilidade de Viri-dius. Eu estava encarregada de ajudar nos testes de audição dos artistas e or-ganizar a programação, além de dar aulas de cravo à Princesa Glisselda, o que Viridius achava tedioso.

Isso me mantivera ocupada nas minhas primeiras duas semanas, mas a interrupção inesperada provocada pelo funeral do Príncipe tinha provocado um acúmulo de trabalho extra. A gota de Viridius o obrigara a se afastar do trabalho, de modo que toda a programação musical acabou sendo deixada em minhas mãos.

O corpo do Príncipe Rufus foi levado para a cripta, acompanhado apenas pela família real, o clero e os convidados mais importantes. O coro da catedral cantou a Partida e a multidão começou a se dissipar. Cambaleei de volta para a abside. Nunca havia me apresentado para uma plateia composta de mais de uma ou duas pessoas; não tinha previsto a ansiedade que senti antes nem o esgotamento em que fiquei depois.

Santos do Céu! Era como estar nua na frente do mundo inteiro. Andei por ali num passo hesitante, parabenizei meus músicos e super-

visionei sua retirada. Guntard, meu autonomeado assistente, trotou atrás de mim e bateu uma mão indesejada no meu ombro.

— Mestra! Isso foi além da beleza! Fiz um aceno cansado com a cabeça em sinal de agradecimento, con-

traindo o corpo para sair do seu alcance.

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— Há um velho aqui querendo falar com a senhorita — continuou Gun-tard. — Apareceu durante o seu solo, mas nós o colocamos para fora. — Ele mostrou com o dedo uma capela, onde um homem idoso aguardava. A tez es-cura indicava que ele tinha vindo da distante Porfíria. O cabelo grisalho estava preso em tranças bem feitas; tinha o rosto franzido em um sorriso.

— Quem é ele? — perguntei. Guntard jogou com desdém seus cachos cortados em forma de tigela. — Ele veio com um bando de dançarinos de pigegíria e a ideia maluca de

que queremos que dancem no funeral. Os lábios de Guntard se curvaram na risadinha de escárnio, entre crítica e

invejosa, que os goreddi ostentam quando falam de estrangeiros decadentes. Eu nunca teria pensado na hipótese de incluir pigegíria na programação;

nós, goreddi, não dançamos em funerais. No entanto, não poderia deixar que a zombaria de Guntard passasse em branco.

— Pigegíria é uma forma de dança antiga e respeitada em Porfíria.Guntard bufou. — Pigegíria significa literalmente “ginga dos quadris”! Ele olhou nervosamente para os Santos em suas alcovas, notou vários deles

franzindo a testa, e beijou os nós dos dedos piedosamente.— De qualquer forma, sua trupe está no claustro, baratinando os monges. Minha cabeça estava começando a doer. Entreguei a flauta a Guntard.— Devolva isto ao dono. E dispense essa trupe de dançarinos educada-

mente, por favor. — Já está indo embora? — perguntou Guntard. — Muitos de nós vamos

para o Macaco Feliz. — Ele pôs a mão sobre meu braço esquerdo. Eu congelei, lutando contra o impulso de empurrá-lo ou fugir. Respirei

fundo para me acalmar. — Obrigada, mas não posso — disse, tirando a mão dele de cima de mim,

com a esperança de que não ficasse ofendido. A expressão dele mostrou que tinha ficado, um pouco. Não era culpa dele; ele achava que eu era uma pessoa normal, cujo braço

podia ser tocado impunemente. Eu queria muito fazer amigos nesse trabalho, mas uma lembrança sempre me seguia, como a noite segue o dia: eu nunca poderia baixar a guarda completamente.

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Virei-me para o coro com a intenção de pegar meu manto; Guntard se afastou para cumprir minha ordem. Atrás de mim, o velho da trupe de dança-rinos gritou:

— Senhorita, espere! Abdo veio de muito longe só para conhecê-la!Mantive os olhos à frente, esquivando-me nos degraus para sair do seu

ângulo de visão. Os monges tinham acabado de cantar a Partida e começado novamente, mas a nave ainda estava quase cheia; ninguém parecia querer sair. O Príncipe Rufus tinha sido uma figura popular. Eu mal o conheci, mas ele havia me tratado com gentileza e um brilho nos olhos, quando Viridius me apresentou. Tinha sido amado por metade da cidade, a julgar pelo número de cidadãos que demorava a sair, falando em voz baixa e balançando a cabeça em descrença.

Rufus tinha sido assassinado enquanto caçava, e a Guarda da Rainha não tinha encontrado nenhum indício dos responsáveis. A cabeça decepada para alguns sugeria dragões. Imaginei que os saarantrai presentes no funeral esta-vam muito conscientes disso. Tínhamos apenas dez dias antes de o Ardma-gar chegar e quatorze dias até o aniversário do Tratado. Se um dragão tivesse assassinado o Príncipe Rufus, o momento escolhido havia sido completamente inoportuno. Os cidadãos já estavam suficientemente apreensivos com a espé-cie dragontina.

Comecei a descer o corredor sul, mas a porta estava bloqueada para uma reforma. Um amontoado de vigas de madeira e canos de metal tomava me-tade do assoalho. Continuei ao longo da nave em direção às grandes portas, mantendo-me atenta para que meu pai não me preparasse uma emboscada atrás de uma coluna.

— Obrigada! — exclamou uma dama de companhia idosa quando passei. Ela colocou as mãos sobre o coração. — Nunca fiquei tão emocionada.

Fiz uma meia reverência enquanto passava, mas o entusiasmo dela atraiu outros cortesãos ao redor. “Transcendente”, ouvi, e “Sublime!”. Agradeci com a cabeça polidamente e tentei sorrir enquanto me esquivava das mãos estendi-das que buscavam as minhas. Apressei o passo para me afastar da multidão, o sorriso tão rígido e oco quanto o de um saarantras. Ao passar por um grupo de cidadãos trajando túnicas brancas toscas coloquei o capuz do manto.

— Já enterrei mais gente do que posso contar; que estejam todos no ban-quete do Céu — declarou um membro corpulento de uma guilda, com um

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chapéu de feltro branco enterrado na cabeça — mas nunca tinha visto a Escada Celestial até hoje.

— Nunca ouvi ninguém tocar assim. Não foi lá muito feminino, não acha? — Talvez seja estrangeira. — Eles riram.Cruzei os braços firmemente em torno do corpo e acelerei o passo em

direção às grandes portas, beijando a articulação e erguendo-a em direção ao Céu, porque é isso o que se faz ao sair de uma catedral, mesmo quando essa pessoa é... alguém como eu.

Irrompi na pálida luz vespertina, enchendo os pulmões com o ar frio e limpo, sentindo a tensão se dissipar. O céu invernal era de um azul ofuscante; enlutados de partida deslizavam para todos os lados como folhas espalhadas pelo vento cortante.

Só então notei o dragão esperando por mim nos degraus da catedral, exi-bindo sua melhor imitação de um respeitável sorriso humano. Ninguém no mundo teria achado a expressão forçada de Orma reconfortante, só eu mesma.

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