Seredipenlidade Acaso Urbanidade

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22/3/2014 Prosa Online: blog da equipe do caderno Prosa e Verso sobre literatura - Prosa: O Globo http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/ 1/62 PRINCÍPIOS EDITORIAIS EDIÇÃO DIGITAL CELULAR KINDLE IPAD LOGIN CADASTRE-SE BLOGS 12:53 SÁBADO 15.3.2014 PESQUISAR OK A PARTIR DE R$ 50 Cômoda A PARTIR DE R$ 6.000 Asia Towner PUBLICIDADE Links Patrocinados Filmes Completos Netflix Assista a Filmes Online Na Hora e sem downloads. Aqui! www.netf lix.com/Filmes Janelas Acústicas Janelas e portas anti ruido, para Indústrias, Escritorio, Residências www.silenceacustica.com.br/Janela Aprender Inglês grátis Aprende Inglês já e em casa. De forma natural e eficaz. Grátis! www.busuu.com SITES DE COLUNISTAS Ancelmo Gois Artur Xexéo Fernando Moreira Jorge Bastos Moreno Míriam Leitão Patrícia Kogut Renato Maurício Prado Ricardo Noblat BOA CHANCE Blog Verde Conversa de elevador Espaço empreendedor Inteligência Empresarial Na hora do cafezinho Vagas abertas CIÊNCIA Blog Verde Nosso planeta Só Ciência CULTURA A literatura na poltrona Amplificador Animação S.A. Arnaldo Blog Big Blog Blog do Bonequinho Em cartaz na web Enoteca Gente Boa Gibizada Jam Sessions Juarez Becoza Overdubbing Papo série Prosa Repinique Ronald Villardo Saideira Ultimatum ECONOMIA Blog do Adriano Blog Verde Conversa de elevador Dois dedos de colarinho Enviado por O Globo - 15.3.2014 | 6h50m Serendipidade: encontros com o acaso Em um mundo cada vez mais racionalizado e programado, que limita a liberdade na ciência, nas relações sociais e na internet, pesquisadores defendem o retorno à serendipidade, a arte de descobrir o inesperado Por Bolívar Torres Inventado em 1754 pelo inglês Horace Walpole, o termo serendipidade expressa um conceito velho como o mundo: a arte de encontrar o que não se está procurando. Sua origem está na milenar lenda oriental “Os três príncipes de Serendip”, sobre viajantes que, ao longo do caminho, fazem descobertas felizes sem nenhuma relação com seu objetivo original. Trata-se de um estado de espírito, um poder de percepção aberto à experiência, à curiosidade, ao acaso e à imaginação, que ao longo dos séculos esteve na origem de grandes eventos históricos (como a invenção acidental da penicilina por Alexander Fleming ou a descoberta da América por Cristóvão Colombo). Embora obscura e de difícil pronúncia, a palavra está cada vez mais presente em pesquisas acadêmicas. Esquecido por muito tempo, o conceito virou bandeira de diversos especialistas, que encontraram na antiga lenda oriental um contraponto a uma sociedade demasiadamente controlada e programada, que não deixa margem para o risco e as descobertas fortuitas. Em artigos, livros e conferências, eles lamentam a perda da capacidade de se deixar levar pelo acaso, seja na pesquisa científica, nas relações sociais e até mesmo na internet, onde os caminhos antes sinuosos do hipertexto se Resenhas Escolha Outras prosas Arts & Letters Daily Bookslut Guardian Books La Nación - Cultura Le Monde Livres London Review of Books New York Review of Books New York Times Books Portal Literal The Paris Review Estante digital Estante virtual Internet Book List LibriVox Pesquisa de livros do Google Project Gutenberg Tell a tale weekly The Online Books Page Traça Online Novos Bestiário Caixote Cronópios Buscar Busca por palavra-chave: Prosa & Verso A versão digital do suplemento literário de O Globo [email protected] notícias esportes entret. vídeos ENTRE CAPA PAÍS RIO CARNAVAL ECONOMIA MUNDO TECNOLOGIA CULTURA ESPORTES MAIS +

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A arte de explorar os fluxos do presente em busca de uma nova possibilidade. O tempo Kairós e sua abertura do tempo Cronos através da constante abertura ao acaso, evitando a releitura e repetição que planifica o presente. Estas são algumas das estratégias presentes na seredipenlidade.

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    ECONOMIA

    Blog do AdrianoBlog VerdeConversa de elevadorDois dedos de colarinho

    Enviado por O Globo - 15.3.2014 | 6h50m

    Serendipidade: encontros com o acaso

    Em um mundo cada vez mais racionalizado e programado, que limita a

    liberdade na cincia, nas relaes sociais e na internet, pesquisadores

    defendem o retorno serendipidade, a arte de descobrir o inesperado

    Por Bolvar Torres

    Inventado em 1754 pelo ingls Horace Walpole, o termo serendipidade

    expressa um conceito velho como o mundo: a arte de encontrar o que no

    se est procurando. Sua origem est na milenar lenda oriental Os trs

    prncipes de Serendip, sobre viajantes que, ao longo do caminho, fazem

    descobertas felizes sem nenhuma relao com seu objetivo original. Trata-se

    de um estado de esprito, um poder de percepo aberto experincia,

    curiosidade, ao acaso e imaginao, que ao longo dos sculos esteve na

    origem de grandes eventos histricos (como a inveno acidental da

    penicilina por Alexander Fleming ou a descoberta da Amrica por Cristvo

    Colombo).

    Embora obscura e de difcil pronncia, a palavra est cada vez mais presente

    em pesquisas acadmicas. Esquecido por muito tempo, o conceito virou

    bandeira de diversos especialistas, que encontraram na antiga lenda oriental

    um contraponto a uma sociedade demasiadamente controlada e programada,

    que no deixa margem para o risco e as descobertas fortuitas. Em artigos,

    livros e conferncias, eles lamentam a perda da capacidade de se deixar

    levar pelo acaso, seja na pesquisa cientfica, nas relaes sociais e at

    mesmo na internet, onde os caminhos antes sinuosos do hipertexto se

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    encontram ameaados.

    Autora de Serendipit: Du conte au concept (Serendipidade: Do conto ao

    conceito, em traduo livre), lanado em janeiro na Frana pela ditions du

    Seuil, Sylvie Catellin acredita que a histria de Serendip nos devolve uma

    maneira mais livre de apreender o mundo e de se relacionar com o

    conhecimento.

    Em todos os campos, seja cientfico, pessoal ou artstico, vivemos uma

    ditadura do nmero, da rentabilidade, dos modelos fechados e

    hiperracionalizados aponta Sylvie, professora de cincia, cultura e

    comunicao na universidade de Versailles-Saint-Quentin-en-Yvelines. O

    sucesso da serendipidade uma resposta a este mal-estar contemporneo.

    algo muito forte, porque vem l de trs, de um conto milenar, que viajou

    por todas as culturas, lnguas e pocas. Com a serendipidade, voc inventa

    suas regras e desvia dos caminhos batidos. Ela reumaniza o mundo e nos

    devolve a fantasia, a imaginao, a conscincia, o prazer de ver aquilo que

    os outros no veem.

    Segundo Sylvie, h um mal-entendido recorrente quando o assunto

    serendipidade. Ao contrrio do que muitos pensam, a palavra no remete

    apenas a achados acidentais, mas a uma mistura de sagacidade e acaso.

    Para fazer grandes descobertas, necessrio prestar ateno aos sinais e

    saber interpret-los. Afinal, as revelaes dos prncipes de Serendip s foram

    possveis porque eles sondaram as surpresas sua volta, expandindo seus

    horizontes com a mente preparada.

    Todas as grandes descobertas tiveram em seu processo de origem a

    serendipidade, porque nunca sabemos exatamente onde preciso pesquisar

    afirma Sylvie. E isso mostra que no podemos programar as

    descobertas. Por outro lado, h toda uma corrente da cincia atual que

    trabalha com objetivos, resultados e calendrios pr-definidos. So

    pesquisas que acabam seguindo apenas uma nica direo.

    A prpria lgica do mundo contemporneo, dividido em nichos e grupos de

    afinidades, no promoveria o esprito explorador. Diretor do Centro para Mdia

    Cvica do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e autor de diversos

    livros sobre a liberdade na internet, o americano Ethan Zuckerman um dos

    principais crticos da homofilia a tendncia das pessoas em criar vnculos

    com aqueles que compartilham os mesmos interesses, valores,cultura, etc.

    Um fenmeno crescente tanto na estrutura de nossas cidades, fragmentada

    em guetos sociais, culturais e econmicos, quanto na mentalidade

    comunitria que tomou conta da internet. Como os sistemas de pesquisa, os

    aplicativos para celular e os filtros das redes sociais nos oferecem a

    possibilidade de buscar exatamente aquilo que queremos (ou, pelo menos,

    aquilo que acreditamos que queremos), estaramos, em todos os aspectos de

    nossas vidas, trocando o risco pela segurana, sugere Zuckerman.

    Serendipidade e risco esto intimamente conectados explica

    Zuckerman. E um dos problemas do mundo contemporneo que no h

    estmulo para o risco.

    Deslocamentos previsveis

    Zuckerman v semelhanas entre a evoluo dos espaos urbanos e do

    funcionamento das redes digitais. Em sua origem, ambos se apresentavam

    como um motor de serendipidade ao ligar diferentes tipos de pessoas e

    promover o encontro com o estranho e o inesperado. Mas, assim como at

    mesmo os moradores das capitais cosmopolitas se isolam em guetos, a

    internet passou a fechar seus usurios em bolhas de afinidades. As redes

    sociais conectam cada vez mais indivduos s que a maioria deles com

    interesses muito parecidos.

    A maior parte dos moradores das cidades se desloca por um nmero muito

    pequeno de lugares analisa. Poucas pessoas experimentam o que uma

    cidade pode oferecer. E essa tenso entre a oportunidade de diversidade

    oferecida pela cidade e a realidade do nosso isolamento muito prxima do

    nosso uso da internet. Por exemplo, eu me considerava uma pessoa muito

    plural. Mas, quando George W. Bush foi reeleito, me dei conta que quase

    todos os meus contatos nas redes tinham posies polticas parecidas com

    as minhas.

    A literatura na poltrona

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    As histrias em

    quadrinhos no seu

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    Pulso

    Segundo Zuckerman, nossa perspectiva muito menos diversa do que

    pensamos e a limitao no data de agora. Em 1952, o socilogo francs

    Paul-Henry Chombart de Lauwe j mostrava que os deslocamentos de uma

    estudante parisiense podiam ser bastante previsveis; ao transcrever os

    percursos cotidianos da jovem em um mapa da cidade, notou que se

    sobressaa um tringulo ligando o apartamento dela universidade em que

    estudava e residncia da sua professora de piano. O esquema traduzia a

    estreiteza da verdadeira Paris em que cada indivduo vive.

    Algo parecido aconteceu com a internet. At pouco tempo, o hipertexto era,

    de fato, uma ferramenta notvel de serendipidade. Em um simples clique,

    pulava-se livremente de uma pgina a outra, viajando sem muita lgica entre

    contedos discrepantes. Partia-se de uma busca sobre fsica quntica na

    Wikipedia e acabava-se em um blog annimo sobre compls aliengenas. Nos

    ltimos anos, porm, a navegao se tornou menos dispersa e mais

    centralizadora. Um punhado de grupos como Yahoo, Google, Facebook e

    Microsoft formaram uma espcie de condomnio, do qual poucos usurios

    costumam se afastar.

    Ao entregar nossos dados para essas empresas, permitimos que elas

    personalizassem nossa experincia na web. Baseando-se num histrico

    pessoal de navegao, sites como Google e Facebook criam uma hierarquia

    de contedo, priorizando aquilo que eles consideram mais pertinente para

    seus usurios. o que muitos chamam de ditadura do algortimo: as

    mquinas teriam criado uma iluso de serendipidade, nos fazendo acreditar

    que nossos achados na internet so obra do acaso, quando na verdade

    foram guiados por um rob.

    Autor de O filtro invisvel o que a internet est escondendo de voc

    (Zahar), o ativista Eli Pariser acredita que nossa experincia na web se

    tornou uma espcie de bolha de filtro. Em um mundo com sobrecarga de

    informao, os algortmos praticariam uma forma muito sutil de censura,

    escolhendo as notcias s quais estamos interessados mas que no so

    necessariamente aquela que precisamos ver. Esta curadoria, admite Pariser,

    sempre existiu: a diferena que ela no mais feita por humanos, e sim por

    mquinas. Outro problema que se trata de uma edio invisvel, que se

    apresenta como neutra quando na verdade no .

    O que estamos vendo agora a passagem de tocha dos editores humanos

    para os algortimos lembrou Pariser, em uma de suas palestras no TED.

    S que os algortimos no tm o mesmo tipo de tica embutida dos editores.

    Se so mesmo os algortimos que vo fazer a curadoria do mundo para ns,

    ento precisamos nos certificar que eles no iro apenas se basear em

    relevncia. Precisamos nos certificar que eles tambm nos mostraro coisas

    que nos deixam desconfortveis, coisas que so desafiadoras e importantes.

    Terra incgnita

    O prximo desafio do mundo digital, acredita Ethan Zuckerman, repensar

    uma internet que, de fato, nos conecte com estranhos e nos faa descobrir

    o impensado.

    possvel construir ferramentas que aumentem a serendipidade avalia

    Zuckerman. No momento, tenho uma aluna que est trabalhando em um

    projeto chamado Terra Incgnita. Com sua permisso, a ferramenta entra no

    seu browser, olha para os artigos que voc l e percebe quais tpicos voc

    se interessa de forma geral, e em que pases voc est procurando por eles.

    Digamos que, depois de uma semana, a ferramenta descobre que voc se

    interessa por direitos humanos, mas tambm pelo Brasil. Ela ento lhe prope

    artigos sobre este tpico, mas em diferentes partes do mapa, oferecendo

    uma maior diversidade. Para se ter serendipidade, voc precisa saber o que a

    pessoa quer, mas tambm aquilo que ela no sabe, e tendo conscincia de

    que h partes do mundo que ela no conhece.

    O futuro promete novas ferramentas, mas nem todas parecem estimular a

    serendipidade. Sylvie Catellin teme a popularizao do Google Glass, um

    acessrio em forma de culos que possibilita a interao dos usurios com

    contedos em realidade aumentada (Como o 1984, de George Orwell, vo

    nos dizer o que devemos ver, justifica) e de sites e aplicativos de

    relacionamento, como o Lulu e Tinder, que reduzem os encontros afetivos

  • 22/3/2014 Prosa Online: blog da equipe do caderno Prosa e Verso sobre literatura - Prosa: O Globo

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    efetividade da lgica de mercado.

    Todo progresso traz junto uma regresso opina Sylvie. Mas no a

    tcnica em si que nos desumaniza, e sim a maneira como a usamos. O

    importante que a tcnica no nos simplifique, no nos coloque em padres

    e nmeros. Por isso a serendipidade um chamado para a liberdade, para a

    desprogramao da nossa vida. algo que no podemos modelizar, mas

    podemos assimilar para ir alm das nossas vontades, alm dos nossos

    encontros.

    Enviado por O Globo - 15.3.2014 | 6h40m

    Ao cultural, mudana social: artigo de George Ydice

    Projetos nas periferias do Brasil vencem diviso entre alta cultura e arte

    popular, diz pesquisador americano, que participa de debate no Oi Futuro do

    Flamengo dia 18, s 19h30

    Por George Ydice

    H 40 anos, os futurlogos vaticinavam uma economia da experincia, onde

    as emoes e as interaes seriam o combustvel do crescimento econmico.

    Nesse futuro, os sujeitos so encorajados a se expressar e elaborar sua

    sensibilidade esteticamente, para aproveitar melhor o mundo onde se nivelam

    e consubstanciam as necessidades hierarquizadas de Maslow, segundo o qual

    as de nvel mais baixo (as fisiolgicas e de segurana) devem ser satisfeitas

    antes das de nvel mais alto (relaes interpessoais, a estima e a realizao

    pessoal). s pensar nas atividades de coletivos como o AfroReggae para

    perceber que elaborao esttica, estima, comunicao, interao e

    segurana no podem ser separadas. Uma dimenso fortalece outra.

    esse o futuro em que vivemos hoje em dia. Mas ele encontra-se dividido

    entre a enorme explorao consumista voltada ao lucro e as mltiplas

    iniciativas que adestram e puxam a criatividade dos sujeitos para facilitar o

    discernimento das possibilidades do mundo e incidir nele. Existem pontes

    entre as duas tendncias por exemplo, a espetacularizao e o branding

    da experincia, o uso das novas tecnologias e a participao nas redes

    sociais mas a segunda que procura levar adiante aes propositivas.

    Dlar continuar subindo?empiricus.com.br/Dlar_cotao

    O que acontecer com o Dlar nos prximos meses?

    Saiba agora aqui.

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  • 22/3/2014 Prosa Online: blog da equipe do caderno Prosa e Verso sobre literatura - Prosa: O Globo

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    A cultura ocupa um lugar privilegiado neste futuro em que vivemos, tanto

    para o consumismo quanto para a ao social. Mas que cultura essa?

    uma cultura que ultrapassa a diviso moderna entre arte autnoma e

    transcendente e cultura de massas ou popular. As caractersticas atribudas

    a uma ou outra categoria acham-se distribudas de outra maneira, o que se

    verifica prestando ateno experincia dos sujeitos. Quem diz que um funk

    ou tecnobrega no so transcendentes? Quem diz que Clarice ou Kafka no

    interessam aos adeptos do hip hop? Como classificar a cultura nos saraus,

    onde se recitam poemas clssicos, amadores, depoimentos, narraes,

    msicas de vrios tipos e, sobretudo, o rap? Grande parte do pblico do

    Sarau da Cooperifa vem do bairro nos arredores do Bar do Z Batido, em

    Chcara Santana (em So Paulo), mas tambm inclui pessoas de classe

    mdia interessadas pela poesia e a cultura da periferia. H velhos, crianas,

    adolescentes e adultos de todas as profisses. Cada sarau apresenta uma

    grande variedade de estilos, para todos os gostos. Como explica Helosa

    Buarque de Hollanda, perifrico no gosta s de pagode, funk e hip hop, mas

    tambm dos grandes escritores. Uma visita Livraria Suburbano Convicto, do

    escritor Alessandro Buzo, tambm em So Paulo, confirma esse ecletismo:

    acham-se Kafka, Bukowski, Pessoa, Neruda e Joo Cabral de Melo Neto ao

    lado de Ferrz, a coletnea Poetas do Sarau Suburbano (organizada por

    Buzo) e a coleo inteira Tramas urbanas, da Aeroplano, editora dirigida

    por Helosa. Achamos tambm Racionais MCs, Emicida, funk e outro milho

    de rappers dando cotoveladas com os Beatles, Lady Gaga, Tim Maia, Chico

    Buarque e Piaf.

    A ao cultural que como prefiro chamar o ativismo heterogneo dos

    coletivos culturais cumpre hoje em dia grande parte do que o ensino

    formal no consegue prover. Alis, a educao massiva nunca alcanou

    incorporar a vivncia dos marginalizados, alavancar as suas capacidades

    criativas. A ao cultural explora repertrios muito diversos de cdigos que

    nos permitem articular as competncias cognitivas humanas: visuais,

    dramatrgicas, lgicas, emocionais, gastronmicas etc. A abordagem mais

    integral, abrange todas as maneiras de ser e fazer e no estabelece

    hierarquias entre o passado e o presente, o que permite relacionar-se melhor

    com o outro, com quem no como eu.

    A ao cultural tem uma vantagem que a diferencia das iniciativas da

    modernidade: no se movimenta segundo compartimentos autnomos (arte,

    emprego, lazer, educao, mercado, direito, segurana etc). Seus gestores

    operam em complexas cadeias de articulao, possibilitando a

    intersetorialidade e a abertura da arte e da cultura a novas linguagens e

    narrativas.

    Considere-se a Escola Livre de Cinema de Nova Iguau. Segundo seu

    fundador, Marcus Vincius Faustini, no s uma escola, mas um recurso

    para pesquisar a realidade circundante e reinventar o territrio por meio de

    imagens que revelem seu olhar e seu lugar no mundo, recebendo estmulos

    de diversas tcnicas, circulando pelas artes plsticas, cordel, literatura,

    tcnicas fotogrficas, edio de imagens, do som, da luz e o universo da

    palavra. Os alunos exploram a cidade, que se assume como uma srie de

    locais para pesquisa, construo do conhecimento e de representao

    audiovisual. Eles se integram vida da cidade e procuram incidir nela.

    Tambm se profissionalizam e entram no mercado audiovisual.

    Uma grande diversidade de iniciativas de ao cultural opera de maneira

    anloga. A interveno no territrio se amplia no projeto mais recente do

    Faustini, a Agncia de Redes para a Juventude, uma incubadora de ideias

    para serem implementadas na transformao das suas comunidades. Um caso

    interessante o Coletivo Puraqu, em Santarm (PA), que forma jovens na

    separao de resduos slidos, consegue computadores e oferece

    capacitao em desenho de software livre e servios digitais. Combina a

    ao ambiental com a tecnolgica e a cultural (web rdio, web TV, estdio

    de msica) e opera na economia solidria com sua prpria moeda,

    administrada pelo Banco Muiraquit.

    O futuro j est aqui. Podemos v-lo no ethos que compartilha todas essas

    iniciativas e protagoniza o ciclo Espaos de Reencantamento, Afetos e

    Utopias de um Novo Mundo, projeto realizado com o Oi Futuro, que rene

    muitos dos agentes que levam para frente a mudana social a partir da arte

    e a cultura.

  • 22/3/2014 Prosa Online: blog da equipe do caderno Prosa e Verso sobre literatura - Prosa: O Globo

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    George Ydice professor de Estudos Latino-Americanos da Universidade de

    Miami e autor de A convenincia da cultura: usos da cultura na era global

    (UFMG), entre outros livros. Dia 18, s 19h30m, ele participa do debate O

    futuro da cultura e a ao social no Oi Futuro do Flamengo (R. Dois de

    Dezembro 63), parte do ciclo Espaos de Reencantamento, com curadoria

    de Ana Lcia Pardo

    Enviado por O Globo - 15.3.2014 | 6h30m

    Resenha de 'A origem do mundo', de Jorge Edwards

    Romance do premiado autor chileno chega com 18 anos de atraso ao pas

    Por Diogo de Hollanda*

    As angstias amorosas de um setento ciumento so o fio condutor de A

    origem do mundo, romance de Jorge Edwards que, com 18 anos de atraso,

    chega agora ao Brasil. Vencedor do prmio Cervantes, o maior para a

    literatura de lngua espanhola, Edwards um dos escritores chilenos mais

    importantes desde a dcada de 1950. Sua msera presena nas livrarias

    brasileiras antes deste, apenas dois livros haviam sido editados um

    enigma insondvel do mercado editorial, ainda mais quando se l a obra que

    acaba de ser publicada.

    Ambientado em Paris, poucos anos depois da queda do regime de Augusto

    Pinochet (1973-1990), o romance tem como protagonista e narrador em

    oito dos 11 captulos o mdico chileno Patricio Illanes, que se exilou na

    capital francesa durante a ditadura militar. Ex-membro do Partido Comunista

    chileno e defensor at a ltima hora dos governos de Cuba e da Unio

    Sovitica, Illanes chegou a ser um dos cabeas do exlio chileno, mas agora,

    bem entrado nos 70 anos, leva uma vida mais sossegada, com o respaldo

    prudencial das sestas e dos indefectveis sucos de limo.

    Seu apego racionalidade, contudo, se mostra invariavelmente falho na hora

    de conciliar suas duas grandes referncias afetivas: a mulher Silvia e o amigo

    Felipe Daz, um inveterado sedutor que, em inmeros aspectos, representa o

    exato oposto do mdico. Enquanto Illanes cuida da sade e est casado h

    trinta anos, Daz no dispensa o usque e se deita a cada noite com uma

    mulher diferente. Enquanto o primeiro protelou ao mximo o abandono do

    comunismo, o segundo mandou Fidel e Stalin prontamente s favas,

    encontrando na luxria uma aparente compensao para a perda das iluses

    polticas.

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    Nutrindo pelo amigo um sentimento ambguo

    de admirao e repulsa, Illanes tem a

    suspeita permanente de que Daz e Silvia

    tambm chilenos e bem mais jovens

    mantm um caso de amor s escondidas. A

    desconfiana beira as raias da convico

    quando Daz, aps um indito fracasso

    sexual, decide se suicidar com um coquetel

    de usque e comprimidos. Ao v-lo morto,

    Silvia reage com um choro histrico,

    descomunal, que Illanes interpreta como

    evidncia clara de sua paixo sufocada.

    Desesperado, o mdico sai em busca de uma

    confirmao e a primeira pista que encontra

    aterradora: um 3x4 de Silvia em meio coleo de fotos erticas feitas por

    Daz. A segunda a fotografia de uma mulher idntica: as mesmas coxas, o

    mesmo ventre, o mesmo pbis. Mas impossvel ter certeza, porque o

    retrato uma aparente reconstituio do quadro A origem do mundo, de

    Gustave Courbet (1819-1877) deixa encoberto o rosto da mulher

    fotografada.

    Fabuladores desenfreados e investigadores compulsivos, os ciumentos so

    tradicionalmente personagens promissores, alicerando estruturas

    detetivescas e intensificando a trama com uma geografia de extremos que

    sai do cu para o abismo numa frao de segundos. Coube ao talento de

    Jorge Edwards criar um tipo singular, que, s preocupaes profundas

    provocadas pelo cime, acrescenta o temor constante de uma sncope ou

    uma parada cardiorrespiratria.

    Influncia de Machado de Assis

    Suas aflies parecem-lhe incompatveis com as vulnerabilidades fsicas de

    um idoso. Ainda assim, ele parte para o tudo ou nada e, decidido a

    esclarecer o enigma, comea a ouvir cada uma das pessoas que

    compareceram ao enterro de Daz. As impagveis entrevistas que se

    sucedem com o mdico encabulado, cavalheiresco, e logo francamente

    insano constituem um dos pontos altos do romance, cujo humor, bem

    como a sofisticao e a temtica, exibe as marcas inconfundveis de

    Machado de Assis, sobre quem Edwards, apaixonado pelo Bruxo, chegou a

    escrever um ensaio.

    A Paris do romance, castigada por um vero implacvel, se assemelha a uma

    cidade tropical, como diz o narrador em um momento. tambm, sob vrios

    aspectos, um emblema de projetos frustrados. Mas o que impera no relato

    o reconhecimento de um espao frtil e eletrizado pelo desejo. Nas andanas

    cada vez menos sbrias, cada vez mais imprudentes de Illanes, como no

    pensar no apelo ertico que, desde os poetas modernistas, a capital

    francesa exerceu sobre os escritores hispano-americanos? Como no

    associar, apesar da extrao dostoievskiana, a voluptuosa Madame Lotard

    com as inefveis marquesas que povoam os jardins do nicaraguense Rubn

    Daro (1867-1916)?

    Neste sentido, atiada pelo medo, mas sobretudo pelo desejo, a imaginao

    incoercvel de Illanes e o surpreendente desfecho de seu priplo no

    deixa de honrar a fecundidade que a capital francesa ofereceu por tanto

    tempo. No pude resistir a Paris, comentou Jorge Edwards, ao relevar o

    cansao com a diplomacia e aceitar, em 2010, o inesperado convite de

    Sebastin Piera para assumir a Embaixada do Chile na Frana. Agora,

    quando outras cidades, como Berlim e Barcelona, assumem a preferncia dos

    novos autores, o prprio Edwards, aos 82 anos, acaba de anunciar sua

    aposentadoria e a iminente mudana para Madri. Antes disso deixou esse

    eplogo a um dos casamentos mais profcuos da literatura hispano-americana.

    *Diogo de Hollanda jornalista, tradutor e doutorando em literaturas

    hispnicas pela UFRJ

    Enviado por O Globo - 8.3.2014 | 7h00m

  • 22/3/2014 Prosa Online: blog da equipe do caderno Prosa e Verso sobre literatura - Prosa: O Globo

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    Wilson Baptista: biografia resgata mestre esquecido do samba

    Reverenciado por sambistas mas pouco lembrado pelo grande pblico,

    Wilson Baptista ganha sua primeira biografia de flego. O livro do

    pesquisador Rodrigo Alzuguir mostra que a trajetria do compositor de

    clssicos como Meu mundo hoje e Acertei no milhar vai alm da famosa

    polmica musical com Noel Rosa

    Por Paulo da Costa e Silva, caricatura de Loredano

    J faz tempo que Wilson

    Baptista merecia uma biografia

    de flego, que fizesse jus a

    sua importncia na msica

    popular brasileira. Tal biografia

    acaba de sair, sob o ttulo

    Wilson Baptista: o samba foi

    sua glria (Casa da Palavra),

    assinada pelo pesquisador e

    msico carioca Rodrigo

    Alzuguir. Wilson foi o autor de

    preciosidades como Meu

    mundo hoje, Preconceito,

    Chico Brito e Louco, s

    para ficar entre aquelas que

    foram gravadas por dois dos

    mais exigentes cultores do

    samba, Joo Gilberto e

    Paulinho da Viola.

    Seu nome se tornou

    conhecido pela polmica

    musical que sustentou com

    Noel Rosa, em meados dos

    anos 1930, e de algum modo

    foi tambm obscurecido por

    ela. Tinha 20 anos na poca,

    trs a menos que Noel, e,

    apesar do talento

    demonstrado em canes

    como Leno no pescoo,

    ainda no era o compositor

    brilhante que viria a ser. Entre

    ataques e respostas, Noel saiu

    da polmica com dois

    clssicos absolutos Feitio

    da Vila e Palpite infeliz enquanto Wilson saiu como o antiptico autor da

    perversa Frankenstein da Vila, na qual zombava abertamente da proverbial

    feiura de Noel, de seu rosto deformado. O fato que Noel era, nesse

    momento, um artista superior a Wilson, que seria assim relegado a uma zona

    de penumbra. como se at hoje a remisso da figura de Wilson ao mito

    Noel Rosa continuasse dificultando o reconhecimento de seu justo valor.

    Leia mais: Entrevista com Rodrigo Alzuguir, autor da biografia de Wilson

    Baptista

    Outros fatores tambm contribuiriam para isso. Dentre eles, o mais decisivo

    talvez seja a grande disperso que tornou difcil associar uma penca de

    obras-primas ao nome de Wilson Baptista. Disperso que se deu numa

    quantidade imensa de composies (cerca de 600), feitas ao longo de mais

    de trs dcadas de atividade musical ao lado de vrios parceiros. Como

    outros compositores da poca, Wilson no pensava em termos de obra.

    Vivia, antes, para o sucesso imediato do rdio, para a msica da temporada.

    Um dos grandes mritos do livro de Alzuguir conseguir juntar os cacos

    espalhados e apresentar ao leitor a imagem mais inteiria de um legado

    musical.

  • 22/3/2014 Prosa Online: blog da equipe do caderno Prosa e Verso sobre literatura - Prosa: O Globo

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    As mais de quinhentas pginas do livro

    perfazem cronologicamente a vida do

    compositor, conduzindo de seus

    antepassados em Campos dos Goytacazes

    palco de fascinantes embates

    abolicionistas no fim do sculo XIX at os

    ltimos e melanclicos dias no Rio de

    Janeiro, onde morre quase esquecido, vtima

    de um corao fraco, aos 55 anos.

    Pesquisador minucioso e timo contador de

    causos, Alzuguir oscila entre a saborosa

    anedota e certo efeito de compilao,

    desfilando em cada esquina do livro uma

    profuso de datas, nomes e detalhes

    incidentais que fazem a leitura perder ritmo.

    Mas da tambm deriva seu ponto forte.

    que tal paixo do detalhe contribui para cerzir o biografado no contexto

    histrico e afetivo do seu tempo, fazendo com que por vezes seja impossvel

    discernir entre figura e fundo. As anedotas vo aos poucos formando o

    retrato palpvel de uma poca crucial na formao da msica popular

    brasileira.

    Detalhes aparentemente sem relevncia ajudam a trazer mais nitidez a tal

    retrato. a camisa de seda japonesa dos malandros, a narrao do enterro

    do romntico bandido Meia-Noite, menes mais famosa cafetina da Lapa

    (Alice Cavalo de Pau), detalhes do ltimo encontro de Noel com Cecy (na

    Taberna da Glria), cenas dos derradeiros momentos do cantor Vassourinha,

    descries de Geraldo Pereira, da briga de Ary Barroso com Villa-Lobos, da

    amizade de Wilson com o craque Zizinho, e por a vai. Temas capitais de

    nossa histria cultural a relao entre o poder poltico e a msica do

    povo, o elo que une samba e futebol, a dialtica entre malandragem e moral

    burguesa, a articulao porosa entre erudito e popular (Wilson usou Balzac

    e Rousseau, entre outros, em suas letras), a sombra do passado escravista

    vo sendo enfocados indiretamente por uma pletora de petites histoires.

    Nos melhores momentos, o livro de Alzuguir parece uma maquete da vida

    carioca nos anos 1930/40/50, no trecho que vai da Praa Tiradentes Lapa.

    De suas pginas vai surgindo uma cidade intensamente musical. Uma

    indstria cultural nascente primeiro com as revistas musicais e depois com

    a ampliao das rdios e da venda dos discos em 78 rotaes

    transformava as canes numa espcie de moeda corrente local. Nos cafs

    do Centro, sambas eram vendidos, roubados, trocados por refeies, favores

    e at por pernoites em penses baratas. Mercadoria com liquidez imediata,

    embalada por grande demanda social, a cano passou a ocupar o centro da

    vida cultural da cidade. O Rio existia na medida em que havia canes para

    filtrar a experincia comum, demarcando os perodos do ano, os assuntos do

    momento, os movimentos da sensibilidade coletiva.

    Poucos compositores vivenciariam tudo isso de forma to intensa quanto

    Wilson Baptista. Ele foi, nas palavras de um comentador, o ltimo malandro

    para quem s havia um trabalho digno: fazer samba. Muitas de suas msicas

    se tornaram presenas vivas na poca. H, no livro de Alzuguir, pginas

    memorveis sobre o impacto causado pelo clssico Oh, seu Oscar, feito em

    parceria com Ataulfo Alves, samba que desafiava a moral machista dos anos

    1940, trazendo uma personagem que abandona o marido para viver na

    orgia, e que caiu na boca do povo, tornando-se o tema de acaloradas

    discusses nos jornais. Graciliano Ramos chegaria mesmo a promover, numa

    crnica, o casamento entre o recm-abandonado Seu Oscar e a dissimulada

    Aurora, da marchinha de Mrio Lago e Roberto Roberti.

    Outras passagens do livro contam a saga do samba cvico O bonde So

    Janurio, no qual Wilson trocou, sintomaticamente, a palavra operrio por

    otrio na hora de submet-lo censura, levando o parceiro Ataulfo Alves a

    ser convocado a dar explicaes ao prprio Getlio. Ou ainda o episdio da

    primorosa marchinha do Pedreiro Waldemar aquele que, mestre no ofcio /

    constri o edifcio e depois no pode entrar , censurada por seu teor

    comunista. O caso ganhou dimenso pblica nos jornais, e o compositor

    Haroldo Barbosa saiu em apoio da marchinha escrevendo em sua coluna que

    nunca ningum conseguiu dizer tanta verdade numa simples quadra.

    Observador refinado do cotidiano do Rio, Wilson foi um comentador

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    insupervel da vida carioca, algum que viveu atravs de canes, para as

    canes. Sem tocar instrumento harmnico criou melodias inspiradas,

    surpreendentemente sofisticadas, embalando versos com imagens poderosas,

    como a da Nega Luzia, que recebeu um Nero e queria botar fogo no

    morro. O livro de Alzuguir ajuda a recolocar Wilson Baptista entre os grandes

    de nossa msica, oferecendo boa oportunidade de redescobrir a obra do

    genial autor de Me solteira, Mariposa e Mulato calado s para ficar

    entre aquelas que comeam com a letra M.

    Paulo da Costa e Silva doutor em Letras pelas universidades Paris

    VII e PUC-Rio

    Enviado por Guilherme Freitas - 8.3.2014 | 6h55m

    Bigrafo de Wilson Baptista fala sobre legado do compositor

    Rodrigo Alzuguir analisa a relao de Wilson Baptista com o Rio e a atuao

    do compositor numa fase decisiva da histria do samba

    Por Guilherme Freitas

    O msico e pesquisador carioca Rodrigo Alzuguir passou mais de uma dcada

    pesquisando sobre a vida e a obra de Wilson Baptista. Os frutos desse

    trabalho foram surgindo aos poucos. Em 2010, ele montou o espetculo "O

    samba carioca de Wilson Baptista", que no ano seguinte rendeu um CD

    homnimo, com o registro do musical e gravaes de Mart'Nlia, Teresa

    Cristina, Wilson das Neves e muitos outros. Alguns convidados do disco,

    como Cristina Buarque, Elza Soares e Marcos Sacramento, participaram em

    2013 do show "Meu mundo hoje: homenagem a Wilson Baptista", que foi

    gravado e estreou esta semana no SescTV (ser exibido hoje s 19h). Em

    2013, ano que marcou o centenrio de nascimento do compositor, Alzuguir

    lanou o livro "Cancioneiro comentado", com 105 partituras do autor de

    "Acertei no milhar". E recentemente chegou s livrarias a biografia "Wilson

    Baptista O samba foi sua glria!" (Casa da Palavra). Nesta entrevista por

    telefone, Alzuguir fala sobre a importncia de Wilson Baptista para o Rio e a

    histria do samba, relembra a famosa polmica que o ento jovem msico

    manteve com o consagrado Noel Rosa nos anos 1930 e diz que ele menos

    lembrado hoje do que deveria: "Wilson merece esttua na Lapa".

    Leia mais: Resenha da biografia "Wilson Baptista - O samba foi sua glria"

    Como surgiu a ideia da biografia?

    Em 2000, fiz o projeto grfico de um disco da Cristina Buarque, Ganha-se

    pouco mas divertido, o primeiro dedicado s a Wilson Baptista. Foi quando

    conheci melhor a obra dele e percebi que era um tesouro reverenciado pelos

    sambistas, mas desconhecido do grande pblico.

    Qual a razo desse esquecimento?

    Ele morreu em 1968, momento de transio no mundo do samba. Havia um

    movimento de resgate, com o Zicartola, o espetculo Rosa de Ouro" e

    outras iniciativas de gente como Srgio Cabral, Hermnio Bello de Carvalho,

  • 22/3/2014 Prosa Online: blog da equipe do caderno Prosa e Verso sobre literatura - Prosa: O Globo

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    Ricardo Cravo Albin, Srgio Porto. Compositores como Nelson Cavaquinho,

    Cartola, Adoniran Barbosa e Ismael Silva foram redescobertos, voltaram a

    fazer shows e gravar discos. Mas Wilson j estava com problemas de sade,

    amargurado e afastado da cena artstica. Se tivesse vivido mais tempo em

    boas condies, poderia ter chegado a ns hoje com a fora desses outros

    compositores.

    A polmica com Noel Rosa prejudicou a

    imagem dele?

    Nos anos 1930, a polmica no ecoou alm

    dos botequins. A partir dos anos 1950, o

    bigrafo de Noel, Almirante, consolidou a

    verso de que Noel estava preocupado com a

    exaltao do malandro feita por Wilson,

    quando todos sabiam que o motivo era cime

    de uma danarina da Lapa. Wilson passou a

    figurar na vida de Noel como vilo. Ele mesmo

    reconhecia que passou dos limites com

    Frankenstein da Vila, embora no visse

    problema em chamar homem de feio. Mas

    passou os ltimos anos sendo procurado s para falar disso. No teve

    arautos to fortes quanto Noel.

    Paulinho da Viola j chamou Wilson Baptista de o maior sambista

    brasileiro de todos os tempos". Que inovaes ele trouxe para o

    samba?

    Wilson era um sambista completo, fazia msica e letra. Era original e ousado

    nas duas vertentes. O pianista Custdio Mesquita, um dos maiores

    compositores da poca, achava incrvel Wilson criar melodias sofisticadas

    sem conhecimento formal de msica. E olha que ele compunha na caixinha de

    fsforo.

    E as letras?

    Tinham um olhar avanado para a poca. Um samba como Lealdade falava,

    j nos anos 1940, de uma relao aberta em que a mulher estava livre para ir

    embora. Wilson tem muitos sambas na primeira pessoa feminina, escritos para

    cantoras, em que a mulher tem posturas modernas. Tambm tinha letras

    crticas sobre a sociedade, como Pedreiro Waldemar, aquela sobre o peo

    que no pode entrar no prdio que construiu.

    Como era a relao dele com o mundo do samba?

    Ele estava na contramo dos clichs. Era um bomio que no bebia, um

    sambista sem ligao com escolas de samba nem morros. Admirava a

    liberdade e a esttica dos malandros, mas era um operrio do samba, autor

    de pelo menos 600 composies, mais que Noel ou Ary Barroso. Atuou

    sobretudo no teatro de revista, e depois no disco e nas rdios. Estava

    sempre no Caf Nice, na Avenida Rio Branco, ponto de encontro de artistas e

    intelectuais. O Rio dele era o Centro, uma regio demarcada por Lapa, Rio

    Branco e Praa Tiradentes.

    Como o Rio aparece nos sambas dele?

    Srgio Cabral diz que se pode contar a histria do Rio dos anos 1930 aos 60

    pelos sambas do Wilson. Est tudo l: carnaval, futebol, poltica, costumes.

    um Rio bomio, alegre, mas tambm com seus problemas. Chico Brito,

    sobre um contraventor do morro, j sinalizava o poder paralelo nas favelas.

    Me solteira foi inspirada em notcias sobre mulheres que se matavam por

    causa do preconceito. Falava da cidade com amor, mas sem idealizao.

    Wilson um patrimnio carioca que precisa ser mais reverenciado. Em 2013,

    no centenrio dele, no foi lembrado tanto quanto deveria. Merece mais

    shows, discos, selo comemorativo, esttua na Lapa.

    Enviado por O Globo - 8.3.2014 | 6h50m

  • 22/3/2014 Prosa Online: blog da equipe do caderno Prosa e Verso sobre literatura - Prosa: O Globo

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    Marguerite Yourcenar escreve sobre Yukio Mishima

    Em livro sobre o japons Yukio Mishima, Marguerite Yourcenar analisa

    relaes entre sua vida e obra, com nfase no suicdio ritual do escritor

    Por Kelvin Falco Klein*

    A Frana tem uma slida tradio de livros de escritores sobre escritores, ou

    seja, monografias crticas cujo objetivo analisar detidamente a obra e/ou a

    figura histrica de um escritor. Victor Hugo escreveu um volume sobre

    Shakespeare; Thophile Gautier, sobre Balzac; e no sculo XX exemplos

    possveis so os estudos de Andr Gide sobre Dostoivski e Henri Michaux ou

    os de Sartre sobre Flaubert e Genet. So livros que oscilam criativamente

    entre o prprio estilo e as ideias daquele que escreve e, por outro lado, a

    busca pela compreenso de uma obra ou vida alheia. Mishima ou a viso do

    vazio, de Marguerite Yourcenar, publicado originalmente em 1980, se

    enquadra de forma bastante peculiar nessa tradio. Yourcenar agrega ao

    horizonte j complexo desse subgnero o fato de, em paralelo sua anlise

    da obra e da vida de Mishima, desenvolver tambm uma reflexo entre os

    contatos e confrontos existentes entre Ocidente e Oriente desde a

    poltica at o comportamento, a linguagem e a literatura.

    Yukio Mishima preparou sua morte com antecedncia de anos, realizando-a

    em 24 de novembro de 1970 no ritual do seppuku, em que o suicida rasga o

    prprio ventre e , em seguida, decapitado por um assistente. A cena final

    uma fixao para Yourcenar, assim como o foi para Mishima, e a autora

    rastreia na fico do escritor japons inmeros momentos que parecem

    comprovar esse desejo contraditrio de manter a vida, e o trabalho, sempre

    atrelados a uma percepo da morte como uma escolha e como uma

    condio honorfica. O Mishima que surge da leitura de Yourcenar, um

    escritor vaidoso (tanto com seu corpo quanto com sua obra literria), que

    esperava o Nobel e se surpreendeu quando ele foi dado a Kawabata em

    1968, mesclou de forma indissocivel vida e obra, e ambas foram forjadas em

    iguais medidas de rigor, abnegao, e uma vasta confiana na memria das

    geraes futuras.

  • 22/3/2014 Prosa Online: blog da equipe do caderno Prosa e Verso sobre literatura - Prosa: O Globo

    http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/ 13/62

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    Mesmo se tratando de um livro curto,

    Yourcenar consegue captar cenas

    fundamentais dos principais trabalhos de

    Mishima, articulando-as dentro de seu

    sistema de leitura e interpretao. Desse

    modo, o leitor pode entrar em contato no

    apenas com o irretocvel trajeto estilstico de

    Yourcenar, mas, no percurso, ter tambm

    uma noo bastante satisfatria da trajetria

    artstica de Mishima. Seus temas recorrentes,

    como a morte, a honra e o erotismo, alm de

    sua sutil e continuada fascinao pela cultura

    ocidental, surgem de forma clara e concisa

    na argumentao de Yourcenar, que comenta

    livros de Mishima conhecidos no Brasil, como

    Confisses de uma mscara ou Mar

    inquieto, e tambm produes de circulao restrita fora do Japo, como

    o caso das obras teatrais e dos contos de Mishima (como aquele intitulado

    Patriotismo, que prefigura e antecipa ficcionalmente seu suicdio ritual e,

    por conta disso, tem um lugar de destaque no desenvolvimento do ensaio de

    Yourcenar).

    Quase se pode dizer que, at a idade de cerca de quarenta anos, escreve

    Yourcenar sobre Mishima, esse homem que a guerra deixou ileso ao

    menos ele assim acreditava concluiu em si a evoluo que foi a de todo o

    Japo, passando rapidamente do herosmo dos campos de batalha

    aceitao passiva da ocupao, reconvertendo suas energias no sentido

    dessa outra forma de imperialismo que so a ocidentalizao renhida e o

    desenvolvimento econmico a qualquer preo. Nessa passagem, a autora

    deixa delineado seu projeto de leitura da obra e da vida de Mishima, um

    esforo que passa tanto por uma aproximao microscpica aos textos e um

    posicionamento dessa aproximao em um quadro maior.

    Dos primeiros escritos ao ritual suicida, Mishima surge como uma construo

    artstica deliberada, algo que Yourcenar v comprovado desde o fato

    primordial da escolha de um pseudnimo (seu nome verdadeiro era Kimitake

    Hiraoka). Esse movimento pendular se justifica na medida em que a autora

    defende a ideia de que Mishima era um escritor expansivo, que buscava em

    sua fico uma relao com o mundo externo, e no a construo

    progressiva de um universo particular irredutvel. nesse gesto de expanso

    em direo ao mundo que Yourcenar se posiciona, levando consigo tambm o

    seu leitor.

    *Kelvin Falco Klein doutor em Teoria Literria pela Universidade

    Federal de Santa Catarina

    Enviado por O Globo - 8.3.2014 | 6h45m

    O retorno de intrpretes esquecidos do Brasil

    Ao reabilitar pensadores heterodoxos ao lado de clssicos, coletnea

    organizada por Lincoln Secco e Lus Bernardo Perics abre debate sobre

    outros nomes que recebem pouca ateno da academia

  • 22/3/2014 Prosa Online: blog da equipe do caderno Prosa e Verso sobre literatura - Prosa: O Globo

    http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/ 14/62

    Por Francisco Carlos Teixeira da Silva*

    com o subttulo Clssicos, rebeldes e renegados que dois professores da

    USP, Lus Bernardo Perics e Lincoln Secco, apresentam seu novo livro:

    Interpretes do Brasil (Boitempo). O trabalho rene para realizar o

    balano proposto 26 coautores, entre jovens e consagrados

    pesquisadores de diversas universidades do pas.

    Lincoln Secco, um pesquisador de longa trajetria, e Luiz Perics, um jovem

    brilhante e inquieto, optam na organizao do livro por nomes heterodoxos e

    inovadores. Ao lado de pensadores reconhecidamente clssicos e que de

    forma cotidiana frequentam as bibliografias universitrias, tais como Srgio

    Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado Jnior e Darcy Ribeiro,

    buscaram outros pensadores que foram, em especial no ambiente

    universitrio, relegados como autores menores. Na expresso prpria dos

    autores, so renegados, marginalizados. As trajetrias, carreiras e obras de

    homens como Octvio Brando, Astrojildo Pereira, Lencio Basbaum, Heitor

    Ferreira Lima, Rui Fac e Everardo Dias emergem em ensaios de grande valia,

    na busca de corrigir tais falhas.

    As escolhas so bem marcadas e bem explicitadas pela dupla organizadora do

    livro: so autores que, mesmo tendo se debruado sobre variadas temticas

    a organizao nacional, poltica, instituies, artes, literatura, educao e

    partidos polticos , foram considerados menores e no aceitos ou no

    incorporados pelo mundo acadmico. Assim, autores que pensaram o Brasil,

    que participaram ativa e valentemente de tais debates muitos desde os

    anos de 1920 e 1930 so, cada vez mais, esquecidos na elaborao de

    bibliografias, dissertaes e teses universitrias.

    O establishment intelectual em questo

    A proposta de resgatar tais autores quase uma denncia contra o

    establishment universitrio brasileiro (e a expresso dos organizadores)

    faz justia, necessria, a homens que de forma intensa doaram suas vidas e

    carreiras ao Brasil e mesmo ao sofrido e lutador continente latino-americano.

    Surge da, de tais escolhas, no mnimo dois frutferos debates. Aceitando que

    o establishment universitrio brasileiro se torna, cada vez mais, tecnicista,

    fechado e com escolhas restritas e dirigidas nos seus quadros e nos seus

    projetos, caberia pensar se tal fenmeno de fato generalizado e atinge o

    conjunto do mundo universitrio. A prpria organizao do livro, com jovens

    pesquisadores de universidades de So Paulo, Bahia, Rio Grande do Sul e

    Pernambuco, por exemplo, nos mostra que, talvez, o pessimismo crtico dos

    autores, embora muito bem-vindo como instrumento metodolgico,

    exagerado. Afinal, so das universidades, do mesmo establishment, que

    emergem os jovens autores, incluindo um dos organizadores da obra, e que

    prope os nomes e carreiras dos esquecidos a serem resgatados. Assim, a

    universidade brasileira no seria to conservadora, e haveria (ainda)

    espao, aqui e acol, para estudos srios e rigorosos sobre tais autores

    malditos. Talvez, uma ou outra universidade tenha se fechado ao debate;

    alguns departamentos tenham, de fato, escolhido deuses tutelares, e

    deixado decair autores seminais, como os aqui evidenciados. Mas, com

    certeza, nem todas.

    Em segundo lugar, emerge do livro um outro

    debate, difcil e necessrio: por que os

    clssicos fazem companhia aos rebeldes e

    aos renegados? Talvez um livro s sobre os

    esquecidos fosse, em si mesmo, mais

    contundente, e abrisse espao para outros

    tantos esquecidos, rebeldes e

    renegados. Assim, nomes como Ansio

    Teixeira faltam nesta lista de esquecidos

    ao lado de outros, ainda uma vez,

    esquecidos. O homem que permitiu a

    emergncia de Darcy Ribeiro e Paulo Freire,

    perseguido pelo Estado Novo e pela ditadura

    civil-militar, exilado e morto de forma

    vergonhosa para o Brasil, deveria constar

    desta lista de rebeldes e de esquecidos. Indo alm, temos ainda dvidas

    com Guerreiro Ramos e Josu de Castro, homens que explicaram o Brasil e

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    que, por isso mesmo, tiveram sua morte intelectual decretada pelas elites.

    Guerreiro Ramos e Josu morreram de tristeza, a tristeza dos tempos de

    chumbo. Poderamos citar mais dois ou trs nomes, mas pode-se, tambm,

    objetar que seria algo como organizar a lista dos melhores livros j escritos.

    Ningum jamais concordaria. Correto, seria isso mesmo. Mas, insisto,

    poderamos, com certeza, sem nenhuma injustia com os mestres j

    consagrados inclusive contemplados num livro recente de Fernando

    Henrique Cardoso abrir algumas pginas, mais espao, para estes outros

    nomes, nomes daqueles que explicaram e sofreram o Brasil, e continuam no

    silncio. Teramos, ento, um livro com sabor de resposta e de desafio.

    Sem Ansio Teixeira, sem Josu de Castro e sem Guerreiro Ramos (e ainda

    lvaro Vieira Pinto e, claro, um brasileiro que explicou os atavismos do

    coronelismo e do mandonismo, Victor Nunes Leal, e foi punido por isso, ou um

    rebelde de todo o sempre, Carlos Marighella, lido em todo o mundo e

    esquecido entre ns como pensador), o Brasil rebelde fica bem menor. Em

    vez de repetir aqueles que frequentam com assiduidade as nossas

    bibliografias, talvez valeria dar voz a homens que morreram de tiro, bala ou

    susto sem esquecer a tristeza, como diria o poeta para construir um

    pas mais justo, tais como Teixeira, Castro, Pinto, Ramos. Este ltimo, alis,

    foi um intelectual negro ridicularizado pelos agentes da represso por sua

    negritude e abrir espao para vozes negras, como Ramos ou Abdias do

    Nascimento, por exemplo, talvez fosse uma estratgia ainda mais rebelde.

    Est aberta a porta ao debate. O livro de Lincoln Secco e de Lus Bernardo

    Perics, desafiador, constitui-se, neste passo, indispensvel em direo a

    fazer justia aos verdadeiros esquecidos.

    *Francisco Carlos Teixeira da Silva historiador e professor titular do

    Iuperj

    Enviado por O Globo - 8.3.2014 | 6h40m

    Sherlock Holmes e o homem moderno

    Personagem criado h 126 anos ressurge como dolo pop e como um novo

    heri alinhado com a tradio e a vanguarda

    Por Alexandre Dines* e Arnaldo Bloch

    Se, por mgica, Sherlock Holmes, o homem, no o mito, sasse, 126 anos

    aps sua criao, das pginas originais das histrias de Sir Conan Doyle em

    plena segunda dcada do novo milnio, o que pensaria ao constatar que se

    transformou num dolo pop contemporneo espelhado num mosaico

    polimiditico formado por livros, rdio, teatro, filmes e sries de TV? Como

    explicaria o fato de a sombra do detetive com o cachimbo se moldar aos mais

    variados formatos e gostos, fazendo surgir um novo heri, um explicador

    universal (im)perfeitamente alinhado com a tradio e a vanguarda?

    Seria este Holmes materializado de carne e osso e liberto das pginas,

    teletransportado para 2014, ano que se iniciou com uma apoteose holmiana

    que parou a Inglaterra aproximadamente 10 milhes de ingleses

    acompanharam a estreia da terceira temporada de Sherlock, na BBC ,

    capaz de decifrar o motivo de se ter tornado o modelo consumado no

    apenas do detetive, mas do homem moderno ao qual todos aspiram e a que

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    todos inspira?

    Talvez, num primeiro momento, o narcisismo e a vaidade que lhe so to

    caros o fizessem inferir que seu mtodo dedutivo praticamente infalvel e sua

    poderosa inteligncia proseada em dilogos fleumticos; e uma certa energia

    sexual oculta numa mscara misgina enfim, o charme do cara do

    cachimbo, superaram a truculncia, a coero e o abuso de detetives

    trogloditas, pelo poder da razo temperada de elegncia, com a emoo

    vacinada contra transbordamentos que embotem a verdade. Utopia na veia.

    Mas logo se confrontaria com um novo enigma: por que suas caractersticas

    so replicadas no apenas em verses do personagem original, com Watson

    e Moriarty a tiracolo, mas tambm em tipos completamente dissociados da

    cartilha de Sir Doyle? Por exemplo, um genial mdico ctico atico com

    transtorno de personalidade (House), um nerd afeminado (Sheldon, de

    Big Bang Theory), ou mesmo, de forma mais indireta, em um top da scifi

    como Spock e seu sucessor, o androide Data?

    Ao refletir, esse sherlock ectoplasmtico perdido no terceiro milnio trataria

    de minimizar, com frieza, a hiptese de um charme pessoal gerado pelo

    texto e apropriado pelo espelho polimdia e lembraria que, em sua origem,

    frio, pouco dado a simpatias, essencialmente antiptico, portanto. Alm disso

    um workaholic que cai em profunda depresso quando no est fazendo

    dedues lgicas em um novo caso e usa cocana para descansar a cuca, j

    diagnosticado por estudiosos de seu perfil como manaco-depressivo, com

    possveis traos de Sndrome de Asperger (um tipo de autismo de alto

    desempenho funcional).

    Atento a esta anlise, Sherlock redivivo possivelmente encontraria uma

    primeira pista perturbadora: nessa era em que s se fala dele, e na qual

    tanto se o copia e se o adapta, os transtornos em profuso foram enfim

    classificados de forma a, simultaneamente, medicalizar e normalizar todo

    tipo de comportamento, num paradoxo em que o estigma democratizado e

    a especificidade se perde. Ele logo abandonaria essa hiptese como mera e

    forosa digresso, e atentaria para o fato de que esse novo heri nascido do

    cnone holmiano, este homus logicus, atende a uma angstia ansiosa do

    homem moderno de encontrar explicaes definitivas para tudo, como se a

    cincia se tivesse convertido num novo gerador de mitos e o Olimpo fosse

    uma mesa de especialistas, a maioria sem vulto, meros explicadores sem

    requinte ou bero humanista que batem cabea entre os dogmas e o

    ceticismo.

    Nesse mundo, Sherlock, o original, as imitaes ou as transfiguraes

    funcionam como um farol que explica com um sonhado total conhecimento de

    causa na arte de entender a causalidade, e vacinado contra as armadilhas

    que a superstio, a crendice e a emoo interpem limpidez de uma razo

    pura combinada a um empirismo radical, a inteligncia feita cincia em si.

    Ao alcanar este ponto da investigao, Sherlock, contudo, teria um

    sobressalto: mesmo na fico, ele no um androide. Teme as emoes,

    mas as tem, em profuso, o que explica seu conflito com sentimentos como

    amor, compaixo, empatia. Todos os personagens baseados nele tm esse

    trao, e na srie Elementary, por exemplo, o famoso antagonista Moriarty,

    o criminoso que seu arqui-inimigo intelectual, tambm o seu grande amor,

    o que colocaria em cena o binmio inimigo/amor: amar um crime contra a

    razo?

    Enfim, concluiria que esse conflito entre a razo e a emoo, amor e sua

    negao, altamente popular, gerador do conceito de inteligncia emocional

    e grande fornecedor de material indstria da autoajuda, a maior motivao

    para a gnese de si na pele de um novo heri no panorama da arte.

    Um heri que, como o vulcano Spock, faz parte de uma espcie que dominou

    as emoes e sacralizou a lgica mas, meio humano, digladia-se com a

    primazia da emoo que atrapalha a marcha rumo verdade. A que o

    enigma d a volta e se torna insolvel: prescindir do amor (ilgico, amorfo,

    absurdo) uma soluo temporria: no h uma mente capaz de dissolver

    todos os mistrios, do contrrio, os enigmas estariam destinados extino.

    Por isso, em Sherlock, ferve o decantado conflito entre a razo e a emoo,

    e por mais que a primeira prevalea, seu personagem sabe que lida com

  • 22/3/2014 Prosa Online: blog da equipe do caderno Prosa e Verso sobre literatura - Prosa: O Globo

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    seres imperfeitos e, no fundo, tem conscincia de ser um deles. atravs da

    sua humanidade, e no dos dogmas cientficos, que ele sempre resvala,

    enfim, em alguma verdade. Jamais absoluta, isso sim o detalhe que o tortura,

    e sempre torturar, como a todos ns, que sofremos junto com ele, e com

    seus clones, espelhos da angstia humana. Mas Sherlock est l, aqui, em

    toda parte, como um Houdini multiplicado em hologramas variados,

    espalhando a essncia do heri que, em algum momento, far a mgica da

    deduo, libertando a audincia, ilusoriamente, do inferno de seus limites,

    inevitveis.

    *Alexandre Dines jornalista

    Enviado por O Globo - 8.3.2014 | 6h35m

    Resenha de 'Mais cotidiano que o cotidiano', de Alberto Pucheu

    Em nova obra, Alberto Pucheu lana olhar irnico e incomum sobre temas

    que vo de amores desfeitos a crimes, do surfe a uma ida ao mercado

    Por Marcos Pasche*

    Cotidiano o todo dia de todo mundo. Assim, do novo livro de Alberto

    Pucheu, por se chamar "Mais cotidiano que o cotidiano, poder-se-ia supor

    um constante flagrar de situaes e pessoas as mais banais, sendo a

    flagrncia registrada num discurso de tom menor, sem fragrncia e sem

    mesclise.

    e no isso o que se v pelas pginas do volume, aberto com uma srie

    de cinco textos tematizados pelo surfe. Nada de incomum se o surfe em

    destaque no fosse o Tow-in (ttulo da srie), a pegada de ondas gigantes:

    surfar ou morrer. O desenrolar do livro vai confirmando o pressuposto,

    infirmando-o ao mesmo tempo e com a mesma intensidade. Fala-se de

    crimes, de amores desfeitos e da ida a um mercado, por exemplo, mas o que

    se ouve est alm da mera observao, porque se busca o extremo aqum

    do observado. Os assuntos referidos podem ser designados banais quando

    vistos como tema, como a parte de um todo ou como objeto de um discurso.

    A obra de Alberto Pucheu, no entanto, no se satisfaz com a abordagem das

    coisas, quer com elas um encontro pleno: crimes so comuns para a

    estatstica, no para quem os executa e quem os sofre; a falncia amorosa

    est em todas as novelas e paradas de sucesso, mas o dia de seu anncio

    o apocalipse de quem o recebe; a cmera de vigilncia pblica no grava

    que, em sua caminhada para as compras, o poeta leva consigo a cidade e a

    natureza ferina, a poesia/ do dedo que falta na mo do presidente. Mais

    cotidiano que o cotidiano , ento, o cada dia de cada um.

    Idioma da indiscernibilidade

    Ainda acerca das implicaes entre o livro e

    seu nome, destaquem-se duas hipteses.

    Uma irnica, pois, a exemplo do que se

    falou do surfe, os crimes evocados por

    Alberto Pucheu (inscritos na seo

    Cotidianamente) tm carter descomunal: a

    chacina ocorrida em abril de 2011 numa

    escola em Realengo e, em julho do mesmo

    ano, uma chacina ainda maior, na Noruega. A

    outra hiptese a de uma radical literalidade

    o que, no caso, no abandona a ironia,

    antes a aprofunda: como a poesia convoca

    reeducao do olhar, este livro de Alberto

    Pucheu confirma a vocao de toda a sua obra: o desguarnecer de

    fronteiras dicotomizantes. Portanto, mais cotidiano que o cotidiano o

    cotidiano, ele prprio incomum, porque todos os cavalos rodam em seu

    carrossel, que baralha ou ignora as noes de ordinrio e extraordinrio.

    Enquanto explodem ondas e armas (inclusive aonde as lentes no chegam), a

    mquina do mundo prossegue sem alterar um s movimento de sua

    engrenagem, e no v nisso qualquer contradio ou absurdo.

  • 22/3/2014 Prosa Online: blog da equipe do caderno Prosa e Verso sobre literatura - Prosa: O Globo

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    A distino entre comum e incomum tambm diz respeito caracterizao da

    linguagem literria, entendida, desde a Antiguidade, como o termo

    surpreendente, a palavra que transfigura as referncias coerentes do real.

    Tambm nesse territrio Alberto Pucheu fala o idioma da indiscernibilidade:

    para ser literariamente mais cotidiano que o cotidiano, o livro no traz

    apenas textos simples (por oposio a hermticos). Nele, o alcance do

    extraordinrio se d pela via do intraordinrio, sem mediaes descarnadas:

    os arranjos (talvez o fator textual mais peculiar da obra do poeta-filsofo)

    no buscam representao ou metfora, e sim fazer ressoar a voz das coisas

    de que, com que, em meio a que e alm de que a poesia fala. Vejam-se,

    como exemplos, o Arranjo para tornar o mundo cada dia pior e mais

    violento, com declaraes dos assassinos responsveis pelas referidas

    chacinas, e, logo em seguida, o Arranjo para tornar o mundo cada dia

    menos violento, formado somente com os nomes de vtimas daqueles dois

    episdios. Assim, na bucha, a poesia entrou at mesmo onde a linguagem

    potica no estava.

    Mais cotidiano que o cotidiano um adensamento da obra de Alberto

    Pucheu, que, com o livro, se reafirma, por to visceralmente urbano, um

    poeta selvagem. Num poema em que se compara a surfistas (Como eles,

    mas diferente), o autor se autodenomina languageman. Se comparado a

    poetas, o canto ser fator de igualdade, sendo diferencial o sonorizar de

    barulhos, vozes e escritos: um fazer do arranjador, um fazer potico.

    *Marcos Pasche crtico literrio, autor de De pedra e de carne e

    organizador, com Leonardo Barros Medeiros, do livro de ensaios Hoje

    dia de hoje em dia: literatura brasileira da primeira dcada do sculo

    XXI

    Enviado por O Globo - 4.3.2014 | 7h00m

    Adriana Lunardi: um conto indito

    SELFIE

    Enquanto ouo sem prestar ateno um longo depoimento sobre a

    experincia de ser pai outra vez, deixo-me levar pela aterradora viso de um

    crnio. Os cabelos, embora longos, produzem o mesmo efeito de uma

    armao de arame cuja trama larga demais para esconder qualquer coisa

    embaixo. luz que entra pela janela, os ossos que formam a cabea de

    Frederico compem, com o vaso de flores e o telefone celular sobre a mesa,

    um inesperado e assustador arranjo de memento mori.

    a segunda vez que nos encontramos sem que o motivo seja a nossa filha.

    Uma troca de mensagens no era o suficiente. Ele precisava de um encontro,

    escreveu, uma conversa na qual pudesse medir o tamanho do problema que

  • 22/3/2014 Prosa Online: blog da equipe do caderno Prosa e Verso sobre literatura - Prosa: O Globo

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    tinha de enfrentar. No pelo que eu diria, acrescentou, mas pelo meu

    silncio. Voc boa de silncios, ps numa linha parte.

    Ele se demora no elogio prole. Que os meninos usam qualquer aparelho

    eletrnico com intimidade, que possuem uma habilidade verbal inacreditvel,

    e so pessoas (trs e cinco anos) cheias de pensamentos prprios. Verdade

    que ele sempre foi bom pai. Agiu de acordo ao ser empurrado para a

    assustadora responsabilidade de pr no mundo um filho. Mas agora

    diferente. Est tomado de perplexidade. Olha para as crianas e v sbios de

    um templo que logo ser derrubado. Uma catstrofe que ele antecipa e sabe

    que no pode controlar. Estica demais o assunto, evitando chegar, decerto,

    ao ponto que realmente importa.

    No tnhamos o costume de falar de nossos novos cnjuges a no ser de

    passagem, rindo de alguma cena pattica da vida a dois. Se o nosso

    casamento tinha fracassado, os outros tambm fracassariam era o que

    ficava no ar, numa ltima fidelidade que prometamos um ao outro. Eu tinha

    dois fracassos. Estaria Frederico no terceiro? No caso dele era pior. Ele no

    conseguia estar com uma mulher sem formar uma famlia. Nossa filha o odiava

    por isso. A mim tambm ela odiava, mas pelas razes tradicionais que filhas

    odeiam mes.

    Ele contava com o meu silncio, escreveu, apontando como qualidade o que

    fora um defeito monstruoso noutros tempos. O meu cetro imperial, Frederico

    dizia, no auge da revolta, quando queria um nome, um motivo, uma

    explicao. Eu tinha um nome, e um caderno de motivos, que nunca

    revelaria. Precisava aguentar a crise, s isso, esperar aquele solo

    ininterrupto de bateria virar o som de outro instrumento, um cello, um piano

    com longos intervalos entre as notas. O silncio que nos salvou dos

    ferimentos graves, eu poderia dizer agora, e me calo. Gosto de pensar que

    tenho um cetro.

    A garonete de avental preto vem mesa. Prometi a mim mesma no beber

    lcool. Da outra vez, quando ele precisou do meu conselho sobre a troca de

    editora, acabamos num hotel. A conversa, verdade, tinha sido melhor,

    nada desse pasmo com a prpria capacidade afetiva. Uma prova, afinal, do

    climatrio que avanou sobre ele do mesmo modo que avana sobre mim,

    amarrotando as ltimas folhas de um suposto papel que tnhamos no mundo.

    Qualquer papel.

    Um expresso duplo e uma gua mineral, peo. Frederico hesita. Pela primeira

    vez parece interessar-se pelo que acontece sua volta, pelo instante em

    que vive.

    Se importa se eu beber?

    Qualquer coisa que faa voc trocar de assunto, respondo, provocativa.

    Frederico faz um muxoxo de estudante repreendido. A garonete recita a

    carta de cervejas. Quando ele no identifica uma das marcas, ela repete a

    lista inteira, erguendo a voz, como a dirigir-se a um av que no escuta

    direito. Tem vinte e trs anos, vinte e cinco no mximo. Aperto os olhos e

    leio um nome na gargantilha. Jade. Uma pedra. Quem a batizou esperava

    muito dessa menina. No vai durar no emprego, voluntariosa demais para o

    cargo. Quer ser gerente, mas vai ser atropelada logo, logo pelo colega, que

    sorri mais que ela e, ainda por cima, homem.

    Frederico pergunta que marca ela sugere, pondo na fala um tom suave de

    flerte. No consegue evitar, uma segunda natureza nele. Talvez a primeira.

    Sempre gostou de mulheres, sabe conversar com elas. O que piora a sua

    culpa em relao filha, sua nica filha, com quem no se entende.

    Jade aconselha a cerveja mais cara do cardpio. Bingo. Ele no percebe, ou

    finge no perceber, a simetria que se estabelece no par. O coroa rico e a

    moa ambiciosa. Ela passa a elogiar o gosto de Frederico, como se a escolha

    tivesse partido dele. Um cara de meia idade, endinheirado, avalia, a um

    passo da cremao. Dificilmente enxergar, diante dela, duas ovelhas negras

    disfaradas sob o talco da idade. Jamais atribuir a origem de nossas rugas a

    tinas de vodka e a uns bons punhados de cocana. A noitadas a trs. Em

    grupo. Com pessoas do mesmo sexo. No adivinhar tampouco a ficha

    corrida das traies, das louas quebradas e das portas batendo com

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    violncia. Para todos os efeitos, somos o equivalente a duas corujas

    aboletadas num canto, um pouco feias, mas dignas s vsperas da extino.

    Quando ela se vai, Frederico massageia as tmporas. As plpebras, com o

    tempo, desenharam uma tristeza falsa em seu semblante. Ele as mantm

    baixas, concentrado nos prprios punhos, e quando me encara um lume de

    sagacidade atravessa o seu rosto, me puxando para outro lugar. Uma

    fogueirinha, um fsforo aceso no fundo de seus olhos bastam: j estamos em

    outro lugar.

    Num movimento rpido ele estica os braos sobre a mesa e segura as minhas

    mos, que se congelam sem retribuir, enquanto ele insiste em mant-las

    firmes, pressionando-as e sacudindo-as, como se quisesse me tirar de um

    sonho.

    Estou ficando cego, diz.

    E comea a medir o meu silncio.

    Um riso irrompe no outro lado da cafeteria. Vozes se elevam sem controle,

    numa reao que teriam se um p de vento ameaasse estragar a cena de

    um piquenique. Todas as conversas parecem ter subido o tom. Ou foi s a

    nossa que se enforcou em uma frase. Frederico abranda a fora com que me

    continha e se afasta, retomando a postura na cadeira. Sinto as mos vazias

    num primeiro instante, depois a impresso de ter entre elas um objeto

    incorpreo, pulsante e levemente frio. A descrio que eu faria ao segurar,

    se fosse possvel, uma nuvem.

    Ele desvia o olhar e estala a lngua, como a reconhecer a inutilidade de tudo.

    Tenho palavras para dizer, ao contrrio do que ele imagina. Um palavro,

    para comear. Depois perguntas sobre o diagnstico, a tecnologia existente,

    os tratamentos em outros pases. Mas no foi para isso que Frederico me

    chamou. Os joelhos dele tremulam de impacincia, sacudindo o piso de

    madeira at incluir-me no territrio instvel onde a vida foi parar. Ainda

    assim, posso marcar com um alfinete o centro do seu desespero.

    Tem de dar um jeito de continuar escrevendo, digo.

    s no que eu penso, ele concorda.

    no que deve pensar, afirmo, e sinto o cho alisar-se sob os meus ps.

    No preciso dizer mais nada. Os minutos frente iro retomar as rdeas e

    ditar o que deve ser feito. A normalidade ser reencontrada, luta para isso.

    Lutar at no leito de um hospital ou no outro. Mas no ela, penso,

    sentindo um alvio de quem escapou por pouco. No a morte, ainda.

    A garonete traz os pedidos. Reacomoda o vaso de flores perto da janela

    enquanto Frederico recolhe o telefone. Ela inclina o corpo sobre a mesa,

    alterando sutilmente a luz e o calor do espao que ocupamos. Dispe

    primeiro a xcara, depois o copo de cerveja e o lquido dentro. Mtodo.

    Ordem. Leve trao de lavanda. Quando se vai, Frederico a segue com o

    olhar, apreciando, como se movido por uma fora maior, o balano de quando

    ela caminha. Ao voltar-se, suspira e, sem dizer, inclui mais esta s coisas

    que vo se perder na neblina. Ento comea a falar de Dora. No tenta

    escond-la, como fazia antes, na tentativa de separar os mundos e pr-se

    no centro de uma rivalidade que, admito, existia.

    A xcara minha frente permanece intocada. O motivo que me levou a

    escolher o caf se apequena, envergonhado por sua pretenso. Eu no

    cansava de fazer esse teste. Tinha de saber, a cada vez, a minha

    importncia para Frederico. Vinha preparada para um escrutnio devastador.

    Trocara de vestido trs vezes e gastara meia hora para prender o cabelo

    nesse coque frouxo, falsamente desajeitado, soltando duas mechas no alto

    da cabea, uma de cada lado, que se encontravam no queixo para emoldurar

    o rosto, e afin-lo, num dos infinitos truques para diminuir os estragos da

    idade e combinar com os cosmticos caros, feitos para dar a impresso de

    no se ter aplicado maquiagem nenhuma. Tudo para avaliar-me aos olhos de

    Frederico, encontrar no discreto tremor de suas pupilas uma sentena de

    vida.

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    A estabilidade uma boa coisa, Frederico prossegue, referindo-se ao

    casamento com Dora, serenidade com que ela recebeu a notcia e o quanto

    isso os aproximou. No nosso tempo era diferente, diz, como se ao mencionar

    as vantagens de agora me devesse um crdito por outra espcie de

    felicidade. Extremada. Selvagem. Instvel. Em lugar de ironia, contudo, h

    um tom de arrependimento em sua voz.

    uma despedida, compreendo. Uma nova separao.

    Tenho de me acostumar, penso, a viver num tipo de exlio. Sem aquele olhar,

    serei s o resultado de uma primeira impresso, da avaliao rpida que se

    faz de algum sentado em uma cafeteria onde circulam Jades cada vez mais

    jovens. Por enquanto, trato de preencher as pausas da fala de Frederico.

    Peo que me mostre a foto dos filhos e ele busca um lbum no telefone,

    voltando derramar-se de afeto.

    A luz atenuou a fria de antes. No lugar de traos firmes, uma nesga

    dourada reflete partculas suspensas entre mim e Frederico. Aqui comeam,

    penso, nossas bodas de p. E mantenho a voz viva, tagarela, como a de

    uma moa que entretm as visitas na sala, sabendo que s quando estiver

    sozinha, no fundo da lavanderia, onde um poo de luz se abre sem janelas

    para os vizinhos, poder dizer de verdade o que sente.

    Enviado por O Globo - 3.3.2014 | 7h00m

    Luiz Ruffato: um conto indito

    AS VANTAGENS DA MORTE

    Ouvi um toc-toc-toc, virei de lado, tentava pegar no sono, calor e

    pernilongos, ouvi de novo o toc-toc-toc, levantei, escancarei a janela e

    deparei com meu irmo montado em sua Grick preta com frisos dourados,

    segundo andar do prdio do conjunto habitacional onde morava,

    perguntando, daquele jeito bonachoso, Vai me deixar muito tempo aqui fora

    ainda, Tiquim? Ele pousou dentro do quarto sem dificuldade, abriu o

    descanso, estacionou a bicicleta num canto, E a, como vo as coisas? Foi

    quando notei que eu estava bem mais velho que ele, ele havia morrido com

    vinte e dois anos, um negcio esquisito, chegou da fbrica, trabalhava de

    torneiro mecnico na Manufatora, falou que no estava sentindo bem, jogou

    na cama de roupa e tudo, a me ainda perguntou se queria tomar um ch de

    boldo, disse que no, queria apenas dormir um pouco, deitou, dormiu, no

    acordou mais, e fiquei com a sensao de que uma manh eu ia despertar e

    l estaria ele na cozinha tomando caf, enfiado no macaco fedendo a

    graxa, pronto pra ir pra fbrica, mas os anos passaram, ele no levantou

    mais. E agora reaparece, como no tivessem decorrido trinta anos, a cara

    ainda com marcas de espinhas, o cabelo emplastrado de brylcreem, E a,

  • 22/3/2014 Prosa Online: blog da equipe do caderno Prosa e Verso sobre literatura - Prosa: O Globo

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    como vo as coisas? Intrigado, perguntei como me havia achado em So

    Paulo, to grande, ele riu, disse que tinha demorado um tanto pra encontrar,

    mas que precisava saber notcias, afinal desde que sa de Cataguases nunca

    mais ningum escutou falar de mim. Respondi que vivia preso na labuta, sabe

    como , mas na verdade havia jurado s voltar quando tivesse juntado

    dinheiro suficiente pra deixar todo mundo com inveja, o que nunca

    aconteceu. Ele olhou pra um lado e outro, mexeu no guarda-roupa,

    vasculhou debaixo da cama, abriu a gaveta da mesinha, Voc no est muito

    melhor do que quando a gente morava em Cataguases, falou, e comeou a

    criticar, Se a me visse voc assim, nessa dificuldade, ia ficar muito triste,

    Criar um filho pra isso!, posso at ouvir ela choramingando. Pra no aborrecer

    ainda mais, mudei de assunto, perguntei se via muito ela l onde estavam, e

    fiquei com medo de perguntar onde estavam, ele respondeu, Rapaz, uma

    felicidade aquilo, eu, o pai, a me, a vov, o vov, e desfilou um monte de

    nomes de parentes, vizinhos, colegas e amigos, nem sabia tanta gente

    assim, e disse que onde estavam era sempre uma festa, Depois que a gente

    morre junta todo mundo de novo, e fiquei com vontade de morrer tambm,

    pra encontrar com minha me, meu pai, sentia tanta falta deles!, e quis

    saber o que ficavam fazendo l, e ele explicou que onde estavam viviam em

    comunidade, todos se conheciam, o dia inteiro toa, a me cozinhava,

    comida no faltava, e o pai andava pra cima e pra baixo, vestido dentro do

    terno dele, chapu na cabea, pregando, que desde que virou crente tinha

    aquela mania de pregar, o dia inteiro s falava em Bblia, e na hora do almoo

    sentavam todos juntos numa mesa enorme, depois descansavam, porque

    fazia calor l tanto quanto em Cataguases, e eu desconfiei ento de onde

    eles estavam, mas a minha me, ser?, e ele, meu irmo, num dia saa cedo

    de casa e ia pescar no rio, que era igual ao rio Pomba, mas limpo, A gente v

    os peixes chegando e mordendo a isca, e quando pequeno demais a gente

    espanta ele, chipe, chipe, s aproveitamos os grandes, e noutro saa pro

    brejo pra caar r de noite, junto com o Chiquim Rzinha, Lembra dele?, Ele

    morreu?, perguntei espantado, Morreu, ele disse, tem uns anos j,

    atropelado, fiquei pasmo, o Chiquim era da minha idade, tinha ido pro Rio de

    Janeiro trabalhar num banco, gostava muito dele, Quando voltar, d um

    abrao nele, diz que mandei lembranas, puxa vida, que pena, Pena nada,

    meu irmo falou, ele est feliz agora, passa o dia inteiro toa, inventando

    armadilhas pra pegar r, e o bom que tomou gosto por bola, Mas ele nem

    gostava de futebol, falei, Pra voc ver, agora viciado em pelada, no joga

    grandes coisas no, mas titular do nosso time, Como chama o time,

    perguntei, Amor e Cana, respondeu, Opa!, e pode beber l?, e ele,

    gargalhando, Claro, voc bebe e bebe e bebe, fica de fogo, mas no dia

    seguinte acorda bonzinho, no tem ressaca no, uma maravilha, e eu

    sentia cada vez mais aumentar minha vontade de morrer, E a me, est

    bem?, Est tima!, continua naquela lida de lavar roupa pra fora, No parou

    no?, Parou nada, se parar, ela morre, e riu da prpria piada, Se parar, ela

    morre, repetiu. A madrugada ia alta, conversvamos baixo pra no incomodar

    os vizinhos, ele me falava da beleza que era a morte, e eu pensando no meu

    rol de contrariedades, sozinho, sem dinheiro, largado pela mulher, humilhado

    pelos filhos, e ele gabando que no precisava importar com nada, vivendo

    alegre ladeado pelos amigos, at que tocou no assunto que verdadeiramente

    tinha levado ele ali, minha famlia era assim, rodeava, rodeava, rodeava, at

    laar o sujeito, parecia uma coisa de gato brincando com rato, deixava fugir

    e pegava de novo, deixava fugir e pegava de novo, at cansar e dar o bote

    final, tchum! No caso, o que tinha levado ele ali, a mando da minha me, e

    do meu pai tambm, com certeza, porque em algumas coisas eles uniam, era

    meu estado de abandono. A fiquei bravo, falei, alterando a voz, Nem depois

    de mortos vocs deixam de meter na minha vida, e ele ficou bravo tambm,

    disse, Olha como voc fala comigo!, e eu, Por qu?, Porque sou mais velho

    que voc, voc tem que obedecer, a ri, falei, V se se enxerga! Eu sou mais

    velho que voc agora, voc que tem que obedecer, e ento notei que ele

    ficou confuso, tive pena, no queria brigar com meu irmo, gostava dele,

    devia muita coisa a ele, ele sempre tinha me protegido, nas brigas na rua,

    nas vezes que tinha feito alguma burrada em casa, ento falei, Deixa disso,

    somos sangue do mesmo sangue, e dei a mo pra ele e ele apertou e a gente

    se abraou. Ento me contou que a me e o pai estavam muito preocupados

    comigo, porque me viam angustiado, batendo cabea, e perguntavam se no

    era melhor eu voltar pro lugar de onde vim, afinal no viam vantagem

    nenhuma estar ali, daquele jeito, como fosse pago, dali a pouco meu tempo

    esgotava, e se eu morresse naquela lonjura, talvez no conseguisse juntar

    com eles, uma confuso danada na hora que a gente morre, explicou,

    Parece uma rodoviria lotada em vspera de feriado, se voc de repente se

    perde, pode no encontrar a gente nunca jamais, e essa era a grande aflio

  • 22/3/2014 Prosa Online: blog da equipe do caderno Prosa e Verso sobre literatura - Prosa: O Globo

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    da me, embora o pai discordasse dizendo que eu no era bobo, tinha at

    tirado diploma de contador, e gostei da defesa que meu pai fez de mim, mas

    pensei tambm que talvez por minha causa ele e a me deviam at ter

    brigado, porque eles eram assim, quando comeavam uma discusso levavam

    at o fim, e o fim era quando meu pai desistia, ia pra rua batendo o p, e

    minha me gritava, No falei?, quem cala, consente!, e ele, derrotado, saa

    cantarolando hinos da igreja e mastigando a dentadura, porque quando

    ficava nervoso tinha essa mania de mastigar a dentadura, e falei pro meu

    irmo que no precisava incomodar no, porque estava tudo bem, estava

    passando por um momento complicado, mas logo logo tudo se ajeitava, mas

    no fundo a verdade que, mesmo que quisesse, no tinha pra onde ir,

    estavam todos mortos, meu caminho era sem volta, condenado para sempre

    solido e amargura, mas no quis demonstrar isso pra ele no ficar

    desgostoso, ele no merecia, parecia to contente, e notei que a manh

    vinha querendo nascer, o firmamento j tinha uma barra avermelhada, meu

    irmo falou, Bom, Tiquim, acho que j vou indo, uma grande viagem de

    volta, pegou a bicicleta, recolheu o descanso, abraamos novamente, e ele

    saiu pedalando cu afora. Aparece de vez em quando, ainda falei, mas acho

    que ele no chegou a ouvir.

    Enviado por O Globo - 2.3.2014 | 7h00m

    Carola Saavedra: um conto indito

    RUMO AO SUL

    Era muito cedo ainda, o sol acabara de nascer. Um homem num barco

    remava em direo ao sul. No trajeto do rio em direo ao sul as terras iam e

    vinham, fugiam e se aproximavam. Numa dessas terras, o homem viu um

    bicho de quatro patas. O bicho pastava na beira da terra e no via o homem

    que ia e vinha e agora se aproximava. O bicho s pensava no pasto e, se viu

    o homem, no teve medo dele. possvel que o bicho de quatro patas nunca

    tenha visto um homem de duas patas num barco sem patas como os peixes.

    possvel que o bicho de quatro patas nunca tenha visto um homem de duas

    patas em lugar nenhum. possvel que por isso continuasse imvel, porque

    os bichos s veem o que sabem identificar. O homem viu o bicho que

    pastava na beira da terra.

    O homem ia rumo ao sul em seu barco. Debaixo do barco havia a gua e os

    peixes. Ao lado da gua e dos peixes havia a terra que ia e vinha e se

    aproximava. Debaixo da terra havia um morto e os caracis que saiam das

  • 22/3/2014 Prosa Online: blog da equipe do caderno Prosa e Verso sobre literatura - Prosa: O Globo

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    rbitas de seus olhos. Mas o homem estava vivo. O homem vivo tinha olhos

    estranhos, eles olhavam rumo ao sul, como se fossem levemente vesgos. Ao

    lado havia uma extremidade de terra que ia e vinha e o bicho que pastava e

    no olhava para lugar nenhum, s para dentro de si mesmo e do pasto

    dentro de si mesmo. O bicho sonhava sonhos estranhos e ao mesmo tempo

    conhecidos, como se sonhasse os mesmos sonhos de outros bichos e,

    talvez, at do prprio homem. O bicho mastigava o pasto que no acabava

    nunca e no acabava nunca de ser mastigado, o bicho no tinha pressa,

    como se tivesse todo o tempo do mundo. Mas o homem ia e vinha e se

    aproximava rumo ao sul. O homem era moreno e o bicho era branco, o

    homem no tinha pelos, o homem era liso, o bicho era branco e tinha pelos

    brancos sobre a pele rosa. O homem no tinha pelos sobre a pele morena. O

    homem tinha a barba recm-feita, o bicho tinha uma barbicha. O homem no

    pensava nessas coisas. O bicho no pensava nessas coisas. O homem se

    aproximou e o bicho no fugiu, apenas continuou ali mastigando, olhando

    para dentro de si mesmo e o pasto que ia e vinha dentro de si mesmo.

    O homem se aproximou e pegou o bicho pelo pescoo e o puxou para dentro

    do barco. O homem era forte e queimado pelo sol de quem anda de barco

    rumo ao sul. O bicho no sabia em que direo ficava o sul, o bicho tambm

    no sabia em que direo ficava o norte. O homem pegou o bicho pelo

    pescoo a com o faco que levava preso cintura fez um corte profundo e

    misterioso e transversal no pescoo do bicho que nem teve tempo de

    perceber que o tempo se esvaia e que o pasto em seu corpo no tinha mais

    como seguir sua trajetria, rumo ao norte rumo ao sul. O homem fez ento

    um rpido corte profundo e misterioso e longitudinal no ventre do bicho, que

    olhava para dentro de si mesmo, e que no teve tempo de perceber que o

    dentro de si tornara-se fora, tornara-se o mundo l fora. O bicho tornara-se