Seredipenlidade Acaso Urbanidade
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22/3/2014 Prosa Online: blog da equipe do caderno Prosa e Verso sobre literatura - Prosa: O Globo
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Enviado por O Globo - 15.3.2014 | 6h50m
Serendipidade: encontros com o acaso
Em um mundo cada vez mais racionalizado e programado, que limita a
liberdade na cincia, nas relaes sociais e na internet, pesquisadores
defendem o retorno serendipidade, a arte de descobrir o inesperado
Por Bolvar Torres
Inventado em 1754 pelo ingls Horace Walpole, o termo serendipidade
expressa um conceito velho como o mundo: a arte de encontrar o que no
se est procurando. Sua origem est na milenar lenda oriental Os trs
prncipes de Serendip, sobre viajantes que, ao longo do caminho, fazem
descobertas felizes sem nenhuma relao com seu objetivo original. Trata-se
de um estado de esprito, um poder de percepo aberto experincia,
curiosidade, ao acaso e imaginao, que ao longo dos sculos esteve na
origem de grandes eventos histricos (como a inveno acidental da
penicilina por Alexander Fleming ou a descoberta da Amrica por Cristvo
Colombo).
Embora obscura e de difcil pronncia, a palavra est cada vez mais presente
em pesquisas acadmicas. Esquecido por muito tempo, o conceito virou
bandeira de diversos especialistas, que encontraram na antiga lenda oriental
um contraponto a uma sociedade demasiadamente controlada e programada,
que no deixa margem para o risco e as descobertas fortuitas. Em artigos,
livros e conferncias, eles lamentam a perda da capacidade de se deixar
levar pelo acaso, seja na pesquisa cientfica, nas relaes sociais e at
mesmo na internet, onde os caminhos antes sinuosos do hipertexto se
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encontram ameaados.
Autora de Serendipit: Du conte au concept (Serendipidade: Do conto ao
conceito, em traduo livre), lanado em janeiro na Frana pela ditions du
Seuil, Sylvie Catellin acredita que a histria de Serendip nos devolve uma
maneira mais livre de apreender o mundo e de se relacionar com o
conhecimento.
Em todos os campos, seja cientfico, pessoal ou artstico, vivemos uma
ditadura do nmero, da rentabilidade, dos modelos fechados e
hiperracionalizados aponta Sylvie, professora de cincia, cultura e
comunicao na universidade de Versailles-Saint-Quentin-en-Yvelines. O
sucesso da serendipidade uma resposta a este mal-estar contemporneo.
algo muito forte, porque vem l de trs, de um conto milenar, que viajou
por todas as culturas, lnguas e pocas. Com a serendipidade, voc inventa
suas regras e desvia dos caminhos batidos. Ela reumaniza o mundo e nos
devolve a fantasia, a imaginao, a conscincia, o prazer de ver aquilo que
os outros no veem.
Segundo Sylvie, h um mal-entendido recorrente quando o assunto
serendipidade. Ao contrrio do que muitos pensam, a palavra no remete
apenas a achados acidentais, mas a uma mistura de sagacidade e acaso.
Para fazer grandes descobertas, necessrio prestar ateno aos sinais e
saber interpret-los. Afinal, as revelaes dos prncipes de Serendip s foram
possveis porque eles sondaram as surpresas sua volta, expandindo seus
horizontes com a mente preparada.
Todas as grandes descobertas tiveram em seu processo de origem a
serendipidade, porque nunca sabemos exatamente onde preciso pesquisar
afirma Sylvie. E isso mostra que no podemos programar as
descobertas. Por outro lado, h toda uma corrente da cincia atual que
trabalha com objetivos, resultados e calendrios pr-definidos. So
pesquisas que acabam seguindo apenas uma nica direo.
A prpria lgica do mundo contemporneo, dividido em nichos e grupos de
afinidades, no promoveria o esprito explorador. Diretor do Centro para Mdia
Cvica do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e autor de diversos
livros sobre a liberdade na internet, o americano Ethan Zuckerman um dos
principais crticos da homofilia a tendncia das pessoas em criar vnculos
com aqueles que compartilham os mesmos interesses, valores,cultura, etc.
Um fenmeno crescente tanto na estrutura de nossas cidades, fragmentada
em guetos sociais, culturais e econmicos, quanto na mentalidade
comunitria que tomou conta da internet. Como os sistemas de pesquisa, os
aplicativos para celular e os filtros das redes sociais nos oferecem a
possibilidade de buscar exatamente aquilo que queremos (ou, pelo menos,
aquilo que acreditamos que queremos), estaramos, em todos os aspectos de
nossas vidas, trocando o risco pela segurana, sugere Zuckerman.
Serendipidade e risco esto intimamente conectados explica
Zuckerman. E um dos problemas do mundo contemporneo que no h
estmulo para o risco.
Deslocamentos previsveis
Zuckerman v semelhanas entre a evoluo dos espaos urbanos e do
funcionamento das redes digitais. Em sua origem, ambos se apresentavam
como um motor de serendipidade ao ligar diferentes tipos de pessoas e
promover o encontro com o estranho e o inesperado. Mas, assim como at
mesmo os moradores das capitais cosmopolitas se isolam em guetos, a
internet passou a fechar seus usurios em bolhas de afinidades. As redes
sociais conectam cada vez mais indivduos s que a maioria deles com
interesses muito parecidos.
A maior parte dos moradores das cidades se desloca por um nmero muito
pequeno de lugares analisa. Poucas pessoas experimentam o que uma
cidade pode oferecer. E essa tenso entre a oportunidade de diversidade
oferecida pela cidade e a realidade do nosso isolamento muito prxima do
nosso uso da internet. Por exemplo, eu me considerava uma pessoa muito
plural. Mas, quando George W. Bush foi reeleito, me dei conta que quase
todos os meus contatos nas redes tinham posies polticas parecidas com
as minhas.
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Pulso
Segundo Zuckerman, nossa perspectiva muito menos diversa do que
pensamos e a limitao no data de agora. Em 1952, o socilogo francs
Paul-Henry Chombart de Lauwe j mostrava que os deslocamentos de uma
estudante parisiense podiam ser bastante previsveis; ao transcrever os
percursos cotidianos da jovem em um mapa da cidade, notou que se
sobressaa um tringulo ligando o apartamento dela universidade em que
estudava e residncia da sua professora de piano. O esquema traduzia a
estreiteza da verdadeira Paris em que cada indivduo vive.
Algo parecido aconteceu com a internet. At pouco tempo, o hipertexto era,
de fato, uma ferramenta notvel de serendipidade. Em um simples clique,
pulava-se livremente de uma pgina a outra, viajando sem muita lgica entre
contedos discrepantes. Partia-se de uma busca sobre fsica quntica na
Wikipedia e acabava-se em um blog annimo sobre compls aliengenas. Nos
ltimos anos, porm, a navegao se tornou menos dispersa e mais
centralizadora. Um punhado de grupos como Yahoo, Google, Facebook e
Microsoft formaram uma espcie de condomnio, do qual poucos usurios
costumam se afastar.
Ao entregar nossos dados para essas empresas, permitimos que elas
personalizassem nossa experincia na web. Baseando-se num histrico
pessoal de navegao, sites como Google e Facebook criam uma hierarquia
de contedo, priorizando aquilo que eles consideram mais pertinente para
seus usurios. o que muitos chamam de ditadura do algortimo: as
mquinas teriam criado uma iluso de serendipidade, nos fazendo acreditar
que nossos achados na internet so obra do acaso, quando na verdade
foram guiados por um rob.
Autor de O filtro invisvel o que a internet est escondendo de voc
(Zahar), o ativista Eli Pariser acredita que nossa experincia na web se
tornou uma espcie de bolha de filtro. Em um mundo com sobrecarga de
informao, os algortmos praticariam uma forma muito sutil de censura,
escolhendo as notcias s quais estamos interessados mas que no so
necessariamente aquela que precisamos ver. Esta curadoria, admite Pariser,
sempre existiu: a diferena que ela no mais feita por humanos, e sim por
mquinas. Outro problema que se trata de uma edio invisvel, que se
apresenta como neutra quando na verdade no .
O que estamos vendo agora a passagem de tocha dos editores humanos
para os algortimos lembrou Pariser, em uma de suas palestras no TED.
S que os algortimos no tm o mesmo tipo de tica embutida dos editores.
Se so mesmo os algortimos que vo fazer a curadoria do mundo para ns,
ento precisamos nos certificar que eles no iro apenas se basear em
relevncia. Precisamos nos certificar que eles tambm nos mostraro coisas
que nos deixam desconfortveis, coisas que so desafiadoras e importantes.
Terra incgnita
O prximo desafio do mundo digital, acredita Ethan Zuckerman, repensar
uma internet que, de fato, nos conecte com estranhos e nos faa descobrir
o impensado.
possvel construir ferramentas que aumentem a serendipidade avalia
Zuckerman. No momento, tenho uma aluna que est trabalhando em um
projeto chamado Terra Incgnita. Com sua permisso, a ferramenta entra no
seu browser, olha para os artigos que voc l e percebe quais tpicos voc
se interessa de forma geral, e em que pases voc est procurando por eles.
Digamos que, depois de uma semana, a ferramenta descobre que voc se
interessa por direitos humanos, mas tambm pelo Brasil. Ela ento lhe prope
artigos sobre este tpico, mas em diferentes partes do mapa, oferecendo
uma maior diversidade. Para se ter serendipidade, voc precisa saber o que a
pessoa quer, mas tambm aquilo que ela no sabe, e tendo conscincia de
que h partes do mundo que ela no conhece.
O futuro promete novas ferramentas, mas nem todas parecem estimular a
serendipidade. Sylvie Catellin teme a popularizao do Google Glass, um
acessrio em forma de culos que possibilita a interao dos usurios com
contedos em realidade aumentada (Como o 1984, de George Orwell, vo
nos dizer o que devemos ver, justifica) e de sites e aplicativos de
relacionamento, como o Lulu e Tinder, que reduzem os encontros afetivos
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efetividade da lgica de mercado.
Todo progresso traz junto uma regresso opina Sylvie. Mas no a
tcnica em si que nos desumaniza, e sim a maneira como a usamos. O
importante que a tcnica no nos simplifique, no nos coloque em padres
e nmeros. Por isso a serendipidade um chamado para a liberdade, para a
desprogramao da nossa vida. algo que no podemos modelizar, mas
podemos assimilar para ir alm das nossas vontades, alm dos nossos
encontros.
Enviado por O Globo - 15.3.2014 | 6h40m
Ao cultural, mudana social: artigo de George Ydice
Projetos nas periferias do Brasil vencem diviso entre alta cultura e arte
popular, diz pesquisador americano, que participa de debate no Oi Futuro do
Flamengo dia 18, s 19h30
Por George Ydice
H 40 anos, os futurlogos vaticinavam uma economia da experincia, onde
as emoes e as interaes seriam o combustvel do crescimento econmico.
Nesse futuro, os sujeitos so encorajados a se expressar e elaborar sua
sensibilidade esteticamente, para aproveitar melhor o mundo onde se nivelam
e consubstanciam as necessidades hierarquizadas de Maslow, segundo o qual
as de nvel mais baixo (as fisiolgicas e de segurana) devem ser satisfeitas
antes das de nvel mais alto (relaes interpessoais, a estima e a realizao
pessoal). s pensar nas atividades de coletivos como o AfroReggae para
perceber que elaborao esttica, estima, comunicao, interao e
segurana no podem ser separadas. Uma dimenso fortalece outra.
esse o futuro em que vivemos hoje em dia. Mas ele encontra-se dividido
entre a enorme explorao consumista voltada ao lucro e as mltiplas
iniciativas que adestram e puxam a criatividade dos sujeitos para facilitar o
discernimento das possibilidades do mundo e incidir nele. Existem pontes
entre as duas tendncias por exemplo, a espetacularizao e o branding
da experincia, o uso das novas tecnologias e a participao nas redes
sociais mas a segunda que procura levar adiante aes propositivas.
Dlar continuar subindo?empiricus.com.br/Dlar_cotao
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A cultura ocupa um lugar privilegiado neste futuro em que vivemos, tanto
para o consumismo quanto para a ao social. Mas que cultura essa?
uma cultura que ultrapassa a diviso moderna entre arte autnoma e
transcendente e cultura de massas ou popular. As caractersticas atribudas
a uma ou outra categoria acham-se distribudas de outra maneira, o que se
verifica prestando ateno experincia dos sujeitos. Quem diz que um funk
ou tecnobrega no so transcendentes? Quem diz que Clarice ou Kafka no
interessam aos adeptos do hip hop? Como classificar a cultura nos saraus,
onde se recitam poemas clssicos, amadores, depoimentos, narraes,
msicas de vrios tipos e, sobretudo, o rap? Grande parte do pblico do
Sarau da Cooperifa vem do bairro nos arredores do Bar do Z Batido, em
Chcara Santana (em So Paulo), mas tambm inclui pessoas de classe
mdia interessadas pela poesia e a cultura da periferia. H velhos, crianas,
adolescentes e adultos de todas as profisses. Cada sarau apresenta uma
grande variedade de estilos, para todos os gostos. Como explica Helosa
Buarque de Hollanda, perifrico no gosta s de pagode, funk e hip hop, mas
tambm dos grandes escritores. Uma visita Livraria Suburbano Convicto, do
escritor Alessandro Buzo, tambm em So Paulo, confirma esse ecletismo:
acham-se Kafka, Bukowski, Pessoa, Neruda e Joo Cabral de Melo Neto ao
lado de Ferrz, a coletnea Poetas do Sarau Suburbano (organizada por
Buzo) e a coleo inteira Tramas urbanas, da Aeroplano, editora dirigida
por Helosa. Achamos tambm Racionais MCs, Emicida, funk e outro milho
de rappers dando cotoveladas com os Beatles, Lady Gaga, Tim Maia, Chico
Buarque e Piaf.
A ao cultural que como prefiro chamar o ativismo heterogneo dos
coletivos culturais cumpre hoje em dia grande parte do que o ensino
formal no consegue prover. Alis, a educao massiva nunca alcanou
incorporar a vivncia dos marginalizados, alavancar as suas capacidades
criativas. A ao cultural explora repertrios muito diversos de cdigos que
nos permitem articular as competncias cognitivas humanas: visuais,
dramatrgicas, lgicas, emocionais, gastronmicas etc. A abordagem mais
integral, abrange todas as maneiras de ser e fazer e no estabelece
hierarquias entre o passado e o presente, o que permite relacionar-se melhor
com o outro, com quem no como eu.
A ao cultural tem uma vantagem que a diferencia das iniciativas da
modernidade: no se movimenta segundo compartimentos autnomos (arte,
emprego, lazer, educao, mercado, direito, segurana etc). Seus gestores
operam em complexas cadeias de articulao, possibilitando a
intersetorialidade e a abertura da arte e da cultura a novas linguagens e
narrativas.
Considere-se a Escola Livre de Cinema de Nova Iguau. Segundo seu
fundador, Marcus Vincius Faustini, no s uma escola, mas um recurso
para pesquisar a realidade circundante e reinventar o territrio por meio de
imagens que revelem seu olhar e seu lugar no mundo, recebendo estmulos
de diversas tcnicas, circulando pelas artes plsticas, cordel, literatura,
tcnicas fotogrficas, edio de imagens, do som, da luz e o universo da
palavra. Os alunos exploram a cidade, que se assume como uma srie de
locais para pesquisa, construo do conhecimento e de representao
audiovisual. Eles se integram vida da cidade e procuram incidir nela.
Tambm se profissionalizam e entram no mercado audiovisual.
Uma grande diversidade de iniciativas de ao cultural opera de maneira
anloga. A interveno no territrio se amplia no projeto mais recente do
Faustini, a Agncia de Redes para a Juventude, uma incubadora de ideias
para serem implementadas na transformao das suas comunidades. Um caso
interessante o Coletivo Puraqu, em Santarm (PA), que forma jovens na
separao de resduos slidos, consegue computadores e oferece
capacitao em desenho de software livre e servios digitais. Combina a
ao ambiental com a tecnolgica e a cultural (web rdio, web TV, estdio
de msica) e opera na economia solidria com sua prpria moeda,
administrada pelo Banco Muiraquit.
O futuro j est aqui. Podemos v-lo no ethos que compartilha todas essas
iniciativas e protagoniza o ciclo Espaos de Reencantamento, Afetos e
Utopias de um Novo Mundo, projeto realizado com o Oi Futuro, que rene
muitos dos agentes que levam para frente a mudana social a partir da arte
e a cultura.
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George Ydice professor de Estudos Latino-Americanos da Universidade de
Miami e autor de A convenincia da cultura: usos da cultura na era global
(UFMG), entre outros livros. Dia 18, s 19h30m, ele participa do debate O
futuro da cultura e a ao social no Oi Futuro do Flamengo (R. Dois de
Dezembro 63), parte do ciclo Espaos de Reencantamento, com curadoria
de Ana Lcia Pardo
Enviado por O Globo - 15.3.2014 | 6h30m
Resenha de 'A origem do mundo', de Jorge Edwards
Romance do premiado autor chileno chega com 18 anos de atraso ao pas
Por Diogo de Hollanda*
As angstias amorosas de um setento ciumento so o fio condutor de A
origem do mundo, romance de Jorge Edwards que, com 18 anos de atraso,
chega agora ao Brasil. Vencedor do prmio Cervantes, o maior para a
literatura de lngua espanhola, Edwards um dos escritores chilenos mais
importantes desde a dcada de 1950. Sua msera presena nas livrarias
brasileiras antes deste, apenas dois livros haviam sido editados um
enigma insondvel do mercado editorial, ainda mais quando se l a obra que
acaba de ser publicada.
Ambientado em Paris, poucos anos depois da queda do regime de Augusto
Pinochet (1973-1990), o romance tem como protagonista e narrador em
oito dos 11 captulos o mdico chileno Patricio Illanes, que se exilou na
capital francesa durante a ditadura militar. Ex-membro do Partido Comunista
chileno e defensor at a ltima hora dos governos de Cuba e da Unio
Sovitica, Illanes chegou a ser um dos cabeas do exlio chileno, mas agora,
bem entrado nos 70 anos, leva uma vida mais sossegada, com o respaldo
prudencial das sestas e dos indefectveis sucos de limo.
Seu apego racionalidade, contudo, se mostra invariavelmente falho na hora
de conciliar suas duas grandes referncias afetivas: a mulher Silvia e o amigo
Felipe Daz, um inveterado sedutor que, em inmeros aspectos, representa o
exato oposto do mdico. Enquanto Illanes cuida da sade e est casado h
trinta anos, Daz no dispensa o usque e se deita a cada noite com uma
mulher diferente. Enquanto o primeiro protelou ao mximo o abandono do
comunismo, o segundo mandou Fidel e Stalin prontamente s favas,
encontrando na luxria uma aparente compensao para a perda das iluses
polticas.
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22/3/2014 Prosa Online: blog da equipe do caderno Prosa e Verso sobre literatura - Prosa: O Globo
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Nutrindo pelo amigo um sentimento ambguo
de admirao e repulsa, Illanes tem a
suspeita permanente de que Daz e Silvia
tambm chilenos e bem mais jovens
mantm um caso de amor s escondidas. A
desconfiana beira as raias da convico
quando Daz, aps um indito fracasso
sexual, decide se suicidar com um coquetel
de usque e comprimidos. Ao v-lo morto,
Silvia reage com um choro histrico,
descomunal, que Illanes interpreta como
evidncia clara de sua paixo sufocada.
Desesperado, o mdico sai em busca de uma
confirmao e a primeira pista que encontra
aterradora: um 3x4 de Silvia em meio coleo de fotos erticas feitas por
Daz. A segunda a fotografia de uma mulher idntica: as mesmas coxas, o
mesmo ventre, o mesmo pbis. Mas impossvel ter certeza, porque o
retrato uma aparente reconstituio do quadro A origem do mundo, de
Gustave Courbet (1819-1877) deixa encoberto o rosto da mulher
fotografada.
Fabuladores desenfreados e investigadores compulsivos, os ciumentos so
tradicionalmente personagens promissores, alicerando estruturas
detetivescas e intensificando a trama com uma geografia de extremos que
sai do cu para o abismo numa frao de segundos. Coube ao talento de
Jorge Edwards criar um tipo singular, que, s preocupaes profundas
provocadas pelo cime, acrescenta o temor constante de uma sncope ou
uma parada cardiorrespiratria.
Influncia de Machado de Assis
Suas aflies parecem-lhe incompatveis com as vulnerabilidades fsicas de
um idoso. Ainda assim, ele parte para o tudo ou nada e, decidido a
esclarecer o enigma, comea a ouvir cada uma das pessoas que
compareceram ao enterro de Daz. As impagveis entrevistas que se
sucedem com o mdico encabulado, cavalheiresco, e logo francamente
insano constituem um dos pontos altos do romance, cujo humor, bem
como a sofisticao e a temtica, exibe as marcas inconfundveis de
Machado de Assis, sobre quem Edwards, apaixonado pelo Bruxo, chegou a
escrever um ensaio.
A Paris do romance, castigada por um vero implacvel, se assemelha a uma
cidade tropical, como diz o narrador em um momento. tambm, sob vrios
aspectos, um emblema de projetos frustrados. Mas o que impera no relato
o reconhecimento de um espao frtil e eletrizado pelo desejo. Nas andanas
cada vez menos sbrias, cada vez mais imprudentes de Illanes, como no
pensar no apelo ertico que, desde os poetas modernistas, a capital
francesa exerceu sobre os escritores hispano-americanos? Como no
associar, apesar da extrao dostoievskiana, a voluptuosa Madame Lotard
com as inefveis marquesas que povoam os jardins do nicaraguense Rubn
Daro (1867-1916)?
Neste sentido, atiada pelo medo, mas sobretudo pelo desejo, a imaginao
incoercvel de Illanes e o surpreendente desfecho de seu priplo no
deixa de honrar a fecundidade que a capital francesa ofereceu por tanto
tempo. No pude resistir a Paris, comentou Jorge Edwards, ao relevar o
cansao com a diplomacia e aceitar, em 2010, o inesperado convite de
Sebastin Piera para assumir a Embaixada do Chile na Frana. Agora,
quando outras cidades, como Berlim e Barcelona, assumem a preferncia dos
novos autores, o prprio Edwards, aos 82 anos, acaba de anunciar sua
aposentadoria e a iminente mudana para Madri. Antes disso deixou esse
eplogo a um dos casamentos mais profcuos da literatura hispano-americana.
*Diogo de Hollanda jornalista, tradutor e doutorando em literaturas
hispnicas pela UFRJ
Enviado por O Globo - 8.3.2014 | 7h00m
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22/3/2014 Prosa Online: blog da equipe do caderno Prosa e Verso sobre literatura - Prosa: O Globo
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Wilson Baptista: biografia resgata mestre esquecido do samba
Reverenciado por sambistas mas pouco lembrado pelo grande pblico,
Wilson Baptista ganha sua primeira biografia de flego. O livro do
pesquisador Rodrigo Alzuguir mostra que a trajetria do compositor de
clssicos como Meu mundo hoje e Acertei no milhar vai alm da famosa
polmica musical com Noel Rosa
Por Paulo da Costa e Silva, caricatura de Loredano
J faz tempo que Wilson
Baptista merecia uma biografia
de flego, que fizesse jus a
sua importncia na msica
popular brasileira. Tal biografia
acaba de sair, sob o ttulo
Wilson Baptista: o samba foi
sua glria (Casa da Palavra),
assinada pelo pesquisador e
msico carioca Rodrigo
Alzuguir. Wilson foi o autor de
preciosidades como Meu
mundo hoje, Preconceito,
Chico Brito e Louco, s
para ficar entre aquelas que
foram gravadas por dois dos
mais exigentes cultores do
samba, Joo Gilberto e
Paulinho da Viola.
Seu nome se tornou
conhecido pela polmica
musical que sustentou com
Noel Rosa, em meados dos
anos 1930, e de algum modo
foi tambm obscurecido por
ela. Tinha 20 anos na poca,
trs a menos que Noel, e,
apesar do talento
demonstrado em canes
como Leno no pescoo,
ainda no era o compositor
brilhante que viria a ser. Entre
ataques e respostas, Noel saiu
da polmica com dois
clssicos absolutos Feitio
da Vila e Palpite infeliz enquanto Wilson saiu como o antiptico autor da
perversa Frankenstein da Vila, na qual zombava abertamente da proverbial
feiura de Noel, de seu rosto deformado. O fato que Noel era, nesse
momento, um artista superior a Wilson, que seria assim relegado a uma zona
de penumbra. como se at hoje a remisso da figura de Wilson ao mito
Noel Rosa continuasse dificultando o reconhecimento de seu justo valor.
Leia mais: Entrevista com Rodrigo Alzuguir, autor da biografia de Wilson
Baptista
Outros fatores tambm contribuiriam para isso. Dentre eles, o mais decisivo
talvez seja a grande disperso que tornou difcil associar uma penca de
obras-primas ao nome de Wilson Baptista. Disperso que se deu numa
quantidade imensa de composies (cerca de 600), feitas ao longo de mais
de trs dcadas de atividade musical ao lado de vrios parceiros. Como
outros compositores da poca, Wilson no pensava em termos de obra.
Vivia, antes, para o sucesso imediato do rdio, para a msica da temporada.
Um dos grandes mritos do livro de Alzuguir conseguir juntar os cacos
espalhados e apresentar ao leitor a imagem mais inteiria de um legado
musical.
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As mais de quinhentas pginas do livro
perfazem cronologicamente a vida do
compositor, conduzindo de seus
antepassados em Campos dos Goytacazes
palco de fascinantes embates
abolicionistas no fim do sculo XIX at os
ltimos e melanclicos dias no Rio de
Janeiro, onde morre quase esquecido, vtima
de um corao fraco, aos 55 anos.
Pesquisador minucioso e timo contador de
causos, Alzuguir oscila entre a saborosa
anedota e certo efeito de compilao,
desfilando em cada esquina do livro uma
profuso de datas, nomes e detalhes
incidentais que fazem a leitura perder ritmo.
Mas da tambm deriva seu ponto forte.
que tal paixo do detalhe contribui para cerzir o biografado no contexto
histrico e afetivo do seu tempo, fazendo com que por vezes seja impossvel
discernir entre figura e fundo. As anedotas vo aos poucos formando o
retrato palpvel de uma poca crucial na formao da msica popular
brasileira.
Detalhes aparentemente sem relevncia ajudam a trazer mais nitidez a tal
retrato. a camisa de seda japonesa dos malandros, a narrao do enterro
do romntico bandido Meia-Noite, menes mais famosa cafetina da Lapa
(Alice Cavalo de Pau), detalhes do ltimo encontro de Noel com Cecy (na
Taberna da Glria), cenas dos derradeiros momentos do cantor Vassourinha,
descries de Geraldo Pereira, da briga de Ary Barroso com Villa-Lobos, da
amizade de Wilson com o craque Zizinho, e por a vai. Temas capitais de
nossa histria cultural a relao entre o poder poltico e a msica do
povo, o elo que une samba e futebol, a dialtica entre malandragem e moral
burguesa, a articulao porosa entre erudito e popular (Wilson usou Balzac
e Rousseau, entre outros, em suas letras), a sombra do passado escravista
vo sendo enfocados indiretamente por uma pletora de petites histoires.
Nos melhores momentos, o livro de Alzuguir parece uma maquete da vida
carioca nos anos 1930/40/50, no trecho que vai da Praa Tiradentes Lapa.
De suas pginas vai surgindo uma cidade intensamente musical. Uma
indstria cultural nascente primeiro com as revistas musicais e depois com
a ampliao das rdios e da venda dos discos em 78 rotaes
transformava as canes numa espcie de moeda corrente local. Nos cafs
do Centro, sambas eram vendidos, roubados, trocados por refeies, favores
e at por pernoites em penses baratas. Mercadoria com liquidez imediata,
embalada por grande demanda social, a cano passou a ocupar o centro da
vida cultural da cidade. O Rio existia na medida em que havia canes para
filtrar a experincia comum, demarcando os perodos do ano, os assuntos do
momento, os movimentos da sensibilidade coletiva.
Poucos compositores vivenciariam tudo isso de forma to intensa quanto
Wilson Baptista. Ele foi, nas palavras de um comentador, o ltimo malandro
para quem s havia um trabalho digno: fazer samba. Muitas de suas msicas
se tornaram presenas vivas na poca. H, no livro de Alzuguir, pginas
memorveis sobre o impacto causado pelo clssico Oh, seu Oscar, feito em
parceria com Ataulfo Alves, samba que desafiava a moral machista dos anos
1940, trazendo uma personagem que abandona o marido para viver na
orgia, e que caiu na boca do povo, tornando-se o tema de acaloradas
discusses nos jornais. Graciliano Ramos chegaria mesmo a promover, numa
crnica, o casamento entre o recm-abandonado Seu Oscar e a dissimulada
Aurora, da marchinha de Mrio Lago e Roberto Roberti.
Outras passagens do livro contam a saga do samba cvico O bonde So
Janurio, no qual Wilson trocou, sintomaticamente, a palavra operrio por
otrio na hora de submet-lo censura, levando o parceiro Ataulfo Alves a
ser convocado a dar explicaes ao prprio Getlio. Ou ainda o episdio da
primorosa marchinha do Pedreiro Waldemar aquele que, mestre no ofcio /
constri o edifcio e depois no pode entrar , censurada por seu teor
comunista. O caso ganhou dimenso pblica nos jornais, e o compositor
Haroldo Barbosa saiu em apoio da marchinha escrevendo em sua coluna que
nunca ningum conseguiu dizer tanta verdade numa simples quadra.
Observador refinado do cotidiano do Rio, Wilson foi um comentador
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insupervel da vida carioca, algum que viveu atravs de canes, para as
canes. Sem tocar instrumento harmnico criou melodias inspiradas,
surpreendentemente sofisticadas, embalando versos com imagens poderosas,
como a da Nega Luzia, que recebeu um Nero e queria botar fogo no
morro. O livro de Alzuguir ajuda a recolocar Wilson Baptista entre os grandes
de nossa msica, oferecendo boa oportunidade de redescobrir a obra do
genial autor de Me solteira, Mariposa e Mulato calado s para ficar
entre aquelas que comeam com a letra M.
Paulo da Costa e Silva doutor em Letras pelas universidades Paris
VII e PUC-Rio
Enviado por Guilherme Freitas - 8.3.2014 | 6h55m
Bigrafo de Wilson Baptista fala sobre legado do compositor
Rodrigo Alzuguir analisa a relao de Wilson Baptista com o Rio e a atuao
do compositor numa fase decisiva da histria do samba
Por Guilherme Freitas
O msico e pesquisador carioca Rodrigo Alzuguir passou mais de uma dcada
pesquisando sobre a vida e a obra de Wilson Baptista. Os frutos desse
trabalho foram surgindo aos poucos. Em 2010, ele montou o espetculo "O
samba carioca de Wilson Baptista", que no ano seguinte rendeu um CD
homnimo, com o registro do musical e gravaes de Mart'Nlia, Teresa
Cristina, Wilson das Neves e muitos outros. Alguns convidados do disco,
como Cristina Buarque, Elza Soares e Marcos Sacramento, participaram em
2013 do show "Meu mundo hoje: homenagem a Wilson Baptista", que foi
gravado e estreou esta semana no SescTV (ser exibido hoje s 19h). Em
2013, ano que marcou o centenrio de nascimento do compositor, Alzuguir
lanou o livro "Cancioneiro comentado", com 105 partituras do autor de
"Acertei no milhar". E recentemente chegou s livrarias a biografia "Wilson
Baptista O samba foi sua glria!" (Casa da Palavra). Nesta entrevista por
telefone, Alzuguir fala sobre a importncia de Wilson Baptista para o Rio e a
histria do samba, relembra a famosa polmica que o ento jovem msico
manteve com o consagrado Noel Rosa nos anos 1930 e diz que ele menos
lembrado hoje do que deveria: "Wilson merece esttua na Lapa".
Leia mais: Resenha da biografia "Wilson Baptista - O samba foi sua glria"
Como surgiu a ideia da biografia?
Em 2000, fiz o projeto grfico de um disco da Cristina Buarque, Ganha-se
pouco mas divertido, o primeiro dedicado s a Wilson Baptista. Foi quando
conheci melhor a obra dele e percebi que era um tesouro reverenciado pelos
sambistas, mas desconhecido do grande pblico.
Qual a razo desse esquecimento?
Ele morreu em 1968, momento de transio no mundo do samba. Havia um
movimento de resgate, com o Zicartola, o espetculo Rosa de Ouro" e
outras iniciativas de gente como Srgio Cabral, Hermnio Bello de Carvalho,
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Ricardo Cravo Albin, Srgio Porto. Compositores como Nelson Cavaquinho,
Cartola, Adoniran Barbosa e Ismael Silva foram redescobertos, voltaram a
fazer shows e gravar discos. Mas Wilson j estava com problemas de sade,
amargurado e afastado da cena artstica. Se tivesse vivido mais tempo em
boas condies, poderia ter chegado a ns hoje com a fora desses outros
compositores.
A polmica com Noel Rosa prejudicou a
imagem dele?
Nos anos 1930, a polmica no ecoou alm
dos botequins. A partir dos anos 1950, o
bigrafo de Noel, Almirante, consolidou a
verso de que Noel estava preocupado com a
exaltao do malandro feita por Wilson,
quando todos sabiam que o motivo era cime
de uma danarina da Lapa. Wilson passou a
figurar na vida de Noel como vilo. Ele mesmo
reconhecia que passou dos limites com
Frankenstein da Vila, embora no visse
problema em chamar homem de feio. Mas
passou os ltimos anos sendo procurado s para falar disso. No teve
arautos to fortes quanto Noel.
Paulinho da Viola j chamou Wilson Baptista de o maior sambista
brasileiro de todos os tempos". Que inovaes ele trouxe para o
samba?
Wilson era um sambista completo, fazia msica e letra. Era original e ousado
nas duas vertentes. O pianista Custdio Mesquita, um dos maiores
compositores da poca, achava incrvel Wilson criar melodias sofisticadas
sem conhecimento formal de msica. E olha que ele compunha na caixinha de
fsforo.
E as letras?
Tinham um olhar avanado para a poca. Um samba como Lealdade falava,
j nos anos 1940, de uma relao aberta em que a mulher estava livre para ir
embora. Wilson tem muitos sambas na primeira pessoa feminina, escritos para
cantoras, em que a mulher tem posturas modernas. Tambm tinha letras
crticas sobre a sociedade, como Pedreiro Waldemar, aquela sobre o peo
que no pode entrar no prdio que construiu.
Como era a relao dele com o mundo do samba?
Ele estava na contramo dos clichs. Era um bomio que no bebia, um
sambista sem ligao com escolas de samba nem morros. Admirava a
liberdade e a esttica dos malandros, mas era um operrio do samba, autor
de pelo menos 600 composies, mais que Noel ou Ary Barroso. Atuou
sobretudo no teatro de revista, e depois no disco e nas rdios. Estava
sempre no Caf Nice, na Avenida Rio Branco, ponto de encontro de artistas e
intelectuais. O Rio dele era o Centro, uma regio demarcada por Lapa, Rio
Branco e Praa Tiradentes.
Como o Rio aparece nos sambas dele?
Srgio Cabral diz que se pode contar a histria do Rio dos anos 1930 aos 60
pelos sambas do Wilson. Est tudo l: carnaval, futebol, poltica, costumes.
um Rio bomio, alegre, mas tambm com seus problemas. Chico Brito,
sobre um contraventor do morro, j sinalizava o poder paralelo nas favelas.
Me solteira foi inspirada em notcias sobre mulheres que se matavam por
causa do preconceito. Falava da cidade com amor, mas sem idealizao.
Wilson um patrimnio carioca que precisa ser mais reverenciado. Em 2013,
no centenrio dele, no foi lembrado tanto quanto deveria. Merece mais
shows, discos, selo comemorativo, esttua na Lapa.
Enviado por O Globo - 8.3.2014 | 6h50m
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Marguerite Yourcenar escreve sobre Yukio Mishima
Em livro sobre o japons Yukio Mishima, Marguerite Yourcenar analisa
relaes entre sua vida e obra, com nfase no suicdio ritual do escritor
Por Kelvin Falco Klein*
A Frana tem uma slida tradio de livros de escritores sobre escritores, ou
seja, monografias crticas cujo objetivo analisar detidamente a obra e/ou a
figura histrica de um escritor. Victor Hugo escreveu um volume sobre
Shakespeare; Thophile Gautier, sobre Balzac; e no sculo XX exemplos
possveis so os estudos de Andr Gide sobre Dostoivski e Henri Michaux ou
os de Sartre sobre Flaubert e Genet. So livros que oscilam criativamente
entre o prprio estilo e as ideias daquele que escreve e, por outro lado, a
busca pela compreenso de uma obra ou vida alheia. Mishima ou a viso do
vazio, de Marguerite Yourcenar, publicado originalmente em 1980, se
enquadra de forma bastante peculiar nessa tradio. Yourcenar agrega ao
horizonte j complexo desse subgnero o fato de, em paralelo sua anlise
da obra e da vida de Mishima, desenvolver tambm uma reflexo entre os
contatos e confrontos existentes entre Ocidente e Oriente desde a
poltica at o comportamento, a linguagem e a literatura.
Yukio Mishima preparou sua morte com antecedncia de anos, realizando-a
em 24 de novembro de 1970 no ritual do seppuku, em que o suicida rasga o
prprio ventre e , em seguida, decapitado por um assistente. A cena final
uma fixao para Yourcenar, assim como o foi para Mishima, e a autora
rastreia na fico do escritor japons inmeros momentos que parecem
comprovar esse desejo contraditrio de manter a vida, e o trabalho, sempre
atrelados a uma percepo da morte como uma escolha e como uma
condio honorfica. O Mishima que surge da leitura de Yourcenar, um
escritor vaidoso (tanto com seu corpo quanto com sua obra literria), que
esperava o Nobel e se surpreendeu quando ele foi dado a Kawabata em
1968, mesclou de forma indissocivel vida e obra, e ambas foram forjadas em
iguais medidas de rigor, abnegao, e uma vasta confiana na memria das
geraes futuras.
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Mesmo se tratando de um livro curto,
Yourcenar consegue captar cenas
fundamentais dos principais trabalhos de
Mishima, articulando-as dentro de seu
sistema de leitura e interpretao. Desse
modo, o leitor pode entrar em contato no
apenas com o irretocvel trajeto estilstico de
Yourcenar, mas, no percurso, ter tambm
uma noo bastante satisfatria da trajetria
artstica de Mishima. Seus temas recorrentes,
como a morte, a honra e o erotismo, alm de
sua sutil e continuada fascinao pela cultura
ocidental, surgem de forma clara e concisa
na argumentao de Yourcenar, que comenta
livros de Mishima conhecidos no Brasil, como
Confisses de uma mscara ou Mar
inquieto, e tambm produes de circulao restrita fora do Japo, como
o caso das obras teatrais e dos contos de Mishima (como aquele intitulado
Patriotismo, que prefigura e antecipa ficcionalmente seu suicdio ritual e,
por conta disso, tem um lugar de destaque no desenvolvimento do ensaio de
Yourcenar).
Quase se pode dizer que, at a idade de cerca de quarenta anos, escreve
Yourcenar sobre Mishima, esse homem que a guerra deixou ileso ao
menos ele assim acreditava concluiu em si a evoluo que foi a de todo o
Japo, passando rapidamente do herosmo dos campos de batalha
aceitao passiva da ocupao, reconvertendo suas energias no sentido
dessa outra forma de imperialismo que so a ocidentalizao renhida e o
desenvolvimento econmico a qualquer preo. Nessa passagem, a autora
deixa delineado seu projeto de leitura da obra e da vida de Mishima, um
esforo que passa tanto por uma aproximao microscpica aos textos e um
posicionamento dessa aproximao em um quadro maior.
Dos primeiros escritos ao ritual suicida, Mishima surge como uma construo
artstica deliberada, algo que Yourcenar v comprovado desde o fato
primordial da escolha de um pseudnimo (seu nome verdadeiro era Kimitake
Hiraoka). Esse movimento pendular se justifica na medida em que a autora
defende a ideia de que Mishima era um escritor expansivo, que buscava em
sua fico uma relao com o mundo externo, e no a construo
progressiva de um universo particular irredutvel. nesse gesto de expanso
em direo ao mundo que Yourcenar se posiciona, levando consigo tambm o
seu leitor.
*Kelvin Falco Klein doutor em Teoria Literria pela Universidade
Federal de Santa Catarina
Enviado por O Globo - 8.3.2014 | 6h45m
O retorno de intrpretes esquecidos do Brasil
Ao reabilitar pensadores heterodoxos ao lado de clssicos, coletnea
organizada por Lincoln Secco e Lus Bernardo Perics abre debate sobre
outros nomes que recebem pouca ateno da academia
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Por Francisco Carlos Teixeira da Silva*
com o subttulo Clssicos, rebeldes e renegados que dois professores da
USP, Lus Bernardo Perics e Lincoln Secco, apresentam seu novo livro:
Interpretes do Brasil (Boitempo). O trabalho rene para realizar o
balano proposto 26 coautores, entre jovens e consagrados
pesquisadores de diversas universidades do pas.
Lincoln Secco, um pesquisador de longa trajetria, e Luiz Perics, um jovem
brilhante e inquieto, optam na organizao do livro por nomes heterodoxos e
inovadores. Ao lado de pensadores reconhecidamente clssicos e que de
forma cotidiana frequentam as bibliografias universitrias, tais como Srgio
Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado Jnior e Darcy Ribeiro,
buscaram outros pensadores que foram, em especial no ambiente
universitrio, relegados como autores menores. Na expresso prpria dos
autores, so renegados, marginalizados. As trajetrias, carreiras e obras de
homens como Octvio Brando, Astrojildo Pereira, Lencio Basbaum, Heitor
Ferreira Lima, Rui Fac e Everardo Dias emergem em ensaios de grande valia,
na busca de corrigir tais falhas.
As escolhas so bem marcadas e bem explicitadas pela dupla organizadora do
livro: so autores que, mesmo tendo se debruado sobre variadas temticas
a organizao nacional, poltica, instituies, artes, literatura, educao e
partidos polticos , foram considerados menores e no aceitos ou no
incorporados pelo mundo acadmico. Assim, autores que pensaram o Brasil,
que participaram ativa e valentemente de tais debates muitos desde os
anos de 1920 e 1930 so, cada vez mais, esquecidos na elaborao de
bibliografias, dissertaes e teses universitrias.
O establishment intelectual em questo
A proposta de resgatar tais autores quase uma denncia contra o
establishment universitrio brasileiro (e a expresso dos organizadores)
faz justia, necessria, a homens que de forma intensa doaram suas vidas e
carreiras ao Brasil e mesmo ao sofrido e lutador continente latino-americano.
Surge da, de tais escolhas, no mnimo dois frutferos debates. Aceitando que
o establishment universitrio brasileiro se torna, cada vez mais, tecnicista,
fechado e com escolhas restritas e dirigidas nos seus quadros e nos seus
projetos, caberia pensar se tal fenmeno de fato generalizado e atinge o
conjunto do mundo universitrio. A prpria organizao do livro, com jovens
pesquisadores de universidades de So Paulo, Bahia, Rio Grande do Sul e
Pernambuco, por exemplo, nos mostra que, talvez, o pessimismo crtico dos
autores, embora muito bem-vindo como instrumento metodolgico,
exagerado. Afinal, so das universidades, do mesmo establishment, que
emergem os jovens autores, incluindo um dos organizadores da obra, e que
prope os nomes e carreiras dos esquecidos a serem resgatados. Assim, a
universidade brasileira no seria to conservadora, e haveria (ainda)
espao, aqui e acol, para estudos srios e rigorosos sobre tais autores
malditos. Talvez, uma ou outra universidade tenha se fechado ao debate;
alguns departamentos tenham, de fato, escolhido deuses tutelares, e
deixado decair autores seminais, como os aqui evidenciados. Mas, com
certeza, nem todas.
Em segundo lugar, emerge do livro um outro
debate, difcil e necessrio: por que os
clssicos fazem companhia aos rebeldes e
aos renegados? Talvez um livro s sobre os
esquecidos fosse, em si mesmo, mais
contundente, e abrisse espao para outros
tantos esquecidos, rebeldes e
renegados. Assim, nomes como Ansio
Teixeira faltam nesta lista de esquecidos
ao lado de outros, ainda uma vez,
esquecidos. O homem que permitiu a
emergncia de Darcy Ribeiro e Paulo Freire,
perseguido pelo Estado Novo e pela ditadura
civil-militar, exilado e morto de forma
vergonhosa para o Brasil, deveria constar
desta lista de rebeldes e de esquecidos. Indo alm, temos ainda dvidas
com Guerreiro Ramos e Josu de Castro, homens que explicaram o Brasil e
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que, por isso mesmo, tiveram sua morte intelectual decretada pelas elites.
Guerreiro Ramos e Josu morreram de tristeza, a tristeza dos tempos de
chumbo. Poderamos citar mais dois ou trs nomes, mas pode-se, tambm,
objetar que seria algo como organizar a lista dos melhores livros j escritos.
Ningum jamais concordaria. Correto, seria isso mesmo. Mas, insisto,
poderamos, com certeza, sem nenhuma injustia com os mestres j
consagrados inclusive contemplados num livro recente de Fernando
Henrique Cardoso abrir algumas pginas, mais espao, para estes outros
nomes, nomes daqueles que explicaram e sofreram o Brasil, e continuam no
silncio. Teramos, ento, um livro com sabor de resposta e de desafio.
Sem Ansio Teixeira, sem Josu de Castro e sem Guerreiro Ramos (e ainda
lvaro Vieira Pinto e, claro, um brasileiro que explicou os atavismos do
coronelismo e do mandonismo, Victor Nunes Leal, e foi punido por isso, ou um
rebelde de todo o sempre, Carlos Marighella, lido em todo o mundo e
esquecido entre ns como pensador), o Brasil rebelde fica bem menor. Em
vez de repetir aqueles que frequentam com assiduidade as nossas
bibliografias, talvez valeria dar voz a homens que morreram de tiro, bala ou
susto sem esquecer a tristeza, como diria o poeta para construir um
pas mais justo, tais como Teixeira, Castro, Pinto, Ramos. Este ltimo, alis,
foi um intelectual negro ridicularizado pelos agentes da represso por sua
negritude e abrir espao para vozes negras, como Ramos ou Abdias do
Nascimento, por exemplo, talvez fosse uma estratgia ainda mais rebelde.
Est aberta a porta ao debate. O livro de Lincoln Secco e de Lus Bernardo
Perics, desafiador, constitui-se, neste passo, indispensvel em direo a
fazer justia aos verdadeiros esquecidos.
*Francisco Carlos Teixeira da Silva historiador e professor titular do
Iuperj
Enviado por O Globo - 8.3.2014 | 6h40m
Sherlock Holmes e o homem moderno
Personagem criado h 126 anos ressurge como dolo pop e como um novo
heri alinhado com a tradio e a vanguarda
Por Alexandre Dines* e Arnaldo Bloch
Se, por mgica, Sherlock Holmes, o homem, no o mito, sasse, 126 anos
aps sua criao, das pginas originais das histrias de Sir Conan Doyle em
plena segunda dcada do novo milnio, o que pensaria ao constatar que se
transformou num dolo pop contemporneo espelhado num mosaico
polimiditico formado por livros, rdio, teatro, filmes e sries de TV? Como
explicaria o fato de a sombra do detetive com o cachimbo se moldar aos mais
variados formatos e gostos, fazendo surgir um novo heri, um explicador
universal (im)perfeitamente alinhado com a tradio e a vanguarda?
Seria este Holmes materializado de carne e osso e liberto das pginas,
teletransportado para 2014, ano que se iniciou com uma apoteose holmiana
que parou a Inglaterra aproximadamente 10 milhes de ingleses
acompanharam a estreia da terceira temporada de Sherlock, na BBC ,
capaz de decifrar o motivo de se ter tornado o modelo consumado no
apenas do detetive, mas do homem moderno ao qual todos aspiram e a que
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todos inspira?
Talvez, num primeiro momento, o narcisismo e a vaidade que lhe so to
caros o fizessem inferir que seu mtodo dedutivo praticamente infalvel e sua
poderosa inteligncia proseada em dilogos fleumticos; e uma certa energia
sexual oculta numa mscara misgina enfim, o charme do cara do
cachimbo, superaram a truculncia, a coero e o abuso de detetives
trogloditas, pelo poder da razo temperada de elegncia, com a emoo
vacinada contra transbordamentos que embotem a verdade. Utopia na veia.
Mas logo se confrontaria com um novo enigma: por que suas caractersticas
so replicadas no apenas em verses do personagem original, com Watson
e Moriarty a tiracolo, mas tambm em tipos completamente dissociados da
cartilha de Sir Doyle? Por exemplo, um genial mdico ctico atico com
transtorno de personalidade (House), um nerd afeminado (Sheldon, de
Big Bang Theory), ou mesmo, de forma mais indireta, em um top da scifi
como Spock e seu sucessor, o androide Data?
Ao refletir, esse sherlock ectoplasmtico perdido no terceiro milnio trataria
de minimizar, com frieza, a hiptese de um charme pessoal gerado pelo
texto e apropriado pelo espelho polimdia e lembraria que, em sua origem,
frio, pouco dado a simpatias, essencialmente antiptico, portanto. Alm disso
um workaholic que cai em profunda depresso quando no est fazendo
dedues lgicas em um novo caso e usa cocana para descansar a cuca, j
diagnosticado por estudiosos de seu perfil como manaco-depressivo, com
possveis traos de Sndrome de Asperger (um tipo de autismo de alto
desempenho funcional).
Atento a esta anlise, Sherlock redivivo possivelmente encontraria uma
primeira pista perturbadora: nessa era em que s se fala dele, e na qual
tanto se o copia e se o adapta, os transtornos em profuso foram enfim
classificados de forma a, simultaneamente, medicalizar e normalizar todo
tipo de comportamento, num paradoxo em que o estigma democratizado e
a especificidade se perde. Ele logo abandonaria essa hiptese como mera e
forosa digresso, e atentaria para o fato de que esse novo heri nascido do
cnone holmiano, este homus logicus, atende a uma angstia ansiosa do
homem moderno de encontrar explicaes definitivas para tudo, como se a
cincia se tivesse convertido num novo gerador de mitos e o Olimpo fosse
uma mesa de especialistas, a maioria sem vulto, meros explicadores sem
requinte ou bero humanista que batem cabea entre os dogmas e o
ceticismo.
Nesse mundo, Sherlock, o original, as imitaes ou as transfiguraes
funcionam como um farol que explica com um sonhado total conhecimento de
causa na arte de entender a causalidade, e vacinado contra as armadilhas
que a superstio, a crendice e a emoo interpem limpidez de uma razo
pura combinada a um empirismo radical, a inteligncia feita cincia em si.
Ao alcanar este ponto da investigao, Sherlock, contudo, teria um
sobressalto: mesmo na fico, ele no um androide. Teme as emoes,
mas as tem, em profuso, o que explica seu conflito com sentimentos como
amor, compaixo, empatia. Todos os personagens baseados nele tm esse
trao, e na srie Elementary, por exemplo, o famoso antagonista Moriarty,
o criminoso que seu arqui-inimigo intelectual, tambm o seu grande amor,
o que colocaria em cena o binmio inimigo/amor: amar um crime contra a
razo?
Enfim, concluiria que esse conflito entre a razo e a emoo, amor e sua
negao, altamente popular, gerador do conceito de inteligncia emocional
e grande fornecedor de material indstria da autoajuda, a maior motivao
para a gnese de si na pele de um novo heri no panorama da arte.
Um heri que, como o vulcano Spock, faz parte de uma espcie que dominou
as emoes e sacralizou a lgica mas, meio humano, digladia-se com a
primazia da emoo que atrapalha a marcha rumo verdade. A que o
enigma d a volta e se torna insolvel: prescindir do amor (ilgico, amorfo,
absurdo) uma soluo temporria: no h uma mente capaz de dissolver
todos os mistrios, do contrrio, os enigmas estariam destinados extino.
Por isso, em Sherlock, ferve o decantado conflito entre a razo e a emoo,
e por mais que a primeira prevalea, seu personagem sabe que lida com
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seres imperfeitos e, no fundo, tem conscincia de ser um deles. atravs da
sua humanidade, e no dos dogmas cientficos, que ele sempre resvala,
enfim, em alguma verdade. Jamais absoluta, isso sim o detalhe que o tortura,
e sempre torturar, como a todos ns, que sofremos junto com ele, e com
seus clones, espelhos da angstia humana. Mas Sherlock est l, aqui, em
toda parte, como um Houdini multiplicado em hologramas variados,
espalhando a essncia do heri que, em algum momento, far a mgica da
deduo, libertando a audincia, ilusoriamente, do inferno de seus limites,
inevitveis.
*Alexandre Dines jornalista
Enviado por O Globo - 8.3.2014 | 6h35m
Resenha de 'Mais cotidiano que o cotidiano', de Alberto Pucheu
Em nova obra, Alberto Pucheu lana olhar irnico e incomum sobre temas
que vo de amores desfeitos a crimes, do surfe a uma ida ao mercado
Por Marcos Pasche*
Cotidiano o todo dia de todo mundo. Assim, do novo livro de Alberto
Pucheu, por se chamar "Mais cotidiano que o cotidiano, poder-se-ia supor
um constante flagrar de situaes e pessoas as mais banais, sendo a
flagrncia registrada num discurso de tom menor, sem fragrncia e sem
mesclise.
e no isso o que se v pelas pginas do volume, aberto com uma srie
de cinco textos tematizados pelo surfe. Nada de incomum se o surfe em
destaque no fosse o Tow-in (ttulo da srie), a pegada de ondas gigantes:
surfar ou morrer. O desenrolar do livro vai confirmando o pressuposto,
infirmando-o ao mesmo tempo e com a mesma intensidade. Fala-se de
crimes, de amores desfeitos e da ida a um mercado, por exemplo, mas o que
se ouve est alm da mera observao, porque se busca o extremo aqum
do observado. Os assuntos referidos podem ser designados banais quando
vistos como tema, como a parte de um todo ou como objeto de um discurso.
A obra de Alberto Pucheu, no entanto, no se satisfaz com a abordagem das
coisas, quer com elas um encontro pleno: crimes so comuns para a
estatstica, no para quem os executa e quem os sofre; a falncia amorosa
est em todas as novelas e paradas de sucesso, mas o dia de seu anncio
o apocalipse de quem o recebe; a cmera de vigilncia pblica no grava
que, em sua caminhada para as compras, o poeta leva consigo a cidade e a
natureza ferina, a poesia/ do dedo que falta na mo do presidente. Mais
cotidiano que o cotidiano , ento, o cada dia de cada um.
Idioma da indiscernibilidade
Ainda acerca das implicaes entre o livro e
seu nome, destaquem-se duas hipteses.
Uma irnica, pois, a exemplo do que se
falou do surfe, os crimes evocados por
Alberto Pucheu (inscritos na seo
Cotidianamente) tm carter descomunal: a
chacina ocorrida em abril de 2011 numa
escola em Realengo e, em julho do mesmo
ano, uma chacina ainda maior, na Noruega. A
outra hiptese a de uma radical literalidade
o que, no caso, no abandona a ironia,
antes a aprofunda: como a poesia convoca
reeducao do olhar, este livro de Alberto
Pucheu confirma a vocao de toda a sua obra: o desguarnecer de
fronteiras dicotomizantes. Portanto, mais cotidiano que o cotidiano o
cotidiano, ele prprio incomum, porque todos os cavalos rodam em seu
carrossel, que baralha ou ignora as noes de ordinrio e extraordinrio.
Enquanto explodem ondas e armas (inclusive aonde as lentes no chegam), a
mquina do mundo prossegue sem alterar um s movimento de sua
engrenagem, e no v nisso qualquer contradio ou absurdo.
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A distino entre comum e incomum tambm diz respeito caracterizao da
linguagem literria, entendida, desde a Antiguidade, como o termo
surpreendente, a palavra que transfigura as referncias coerentes do real.
Tambm nesse territrio Alberto Pucheu fala o idioma da indiscernibilidade:
para ser literariamente mais cotidiano que o cotidiano, o livro no traz
apenas textos simples (por oposio a hermticos). Nele, o alcance do
extraordinrio se d pela via do intraordinrio, sem mediaes descarnadas:
os arranjos (talvez o fator textual mais peculiar da obra do poeta-filsofo)
no buscam representao ou metfora, e sim fazer ressoar a voz das coisas
de que, com que, em meio a que e alm de que a poesia fala. Vejam-se,
como exemplos, o Arranjo para tornar o mundo cada dia pior e mais
violento, com declaraes dos assassinos responsveis pelas referidas
chacinas, e, logo em seguida, o Arranjo para tornar o mundo cada dia
menos violento, formado somente com os nomes de vtimas daqueles dois
episdios. Assim, na bucha, a poesia entrou at mesmo onde a linguagem
potica no estava.
Mais cotidiano que o cotidiano um adensamento da obra de Alberto
Pucheu, que, com o livro, se reafirma, por to visceralmente urbano, um
poeta selvagem. Num poema em que se compara a surfistas (Como eles,
mas diferente), o autor se autodenomina languageman. Se comparado a
poetas, o canto ser fator de igualdade, sendo diferencial o sonorizar de
barulhos, vozes e escritos: um fazer do arranjador, um fazer potico.
*Marcos Pasche crtico literrio, autor de De pedra e de carne e
organizador, com Leonardo Barros Medeiros, do livro de ensaios Hoje
dia de hoje em dia: literatura brasileira da primeira dcada do sculo
XXI
Enviado por O Globo - 4.3.2014 | 7h00m
Adriana Lunardi: um conto indito
SELFIE
Enquanto ouo sem prestar ateno um longo depoimento sobre a
experincia de ser pai outra vez, deixo-me levar pela aterradora viso de um
crnio. Os cabelos, embora longos, produzem o mesmo efeito de uma
armao de arame cuja trama larga demais para esconder qualquer coisa
embaixo. luz que entra pela janela, os ossos que formam a cabea de
Frederico compem, com o vaso de flores e o telefone celular sobre a mesa,
um inesperado e assustador arranjo de memento mori.
a segunda vez que nos encontramos sem que o motivo seja a nossa filha.
Uma troca de mensagens no era o suficiente. Ele precisava de um encontro,
escreveu, uma conversa na qual pudesse medir o tamanho do problema que
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tinha de enfrentar. No pelo que eu diria, acrescentou, mas pelo meu
silncio. Voc boa de silncios, ps numa linha parte.
Ele se demora no elogio prole. Que os meninos usam qualquer aparelho
eletrnico com intimidade, que possuem uma habilidade verbal inacreditvel,
e so pessoas (trs e cinco anos) cheias de pensamentos prprios. Verdade
que ele sempre foi bom pai. Agiu de acordo ao ser empurrado para a
assustadora responsabilidade de pr no mundo um filho. Mas agora
diferente. Est tomado de perplexidade. Olha para as crianas e v sbios de
um templo que logo ser derrubado. Uma catstrofe que ele antecipa e sabe
que no pode controlar. Estica demais o assunto, evitando chegar, decerto,
ao ponto que realmente importa.
No tnhamos o costume de falar de nossos novos cnjuges a no ser de
passagem, rindo de alguma cena pattica da vida a dois. Se o nosso
casamento tinha fracassado, os outros tambm fracassariam era o que
ficava no ar, numa ltima fidelidade que prometamos um ao outro. Eu tinha
dois fracassos. Estaria Frederico no terceiro? No caso dele era pior. Ele no
conseguia estar com uma mulher sem formar uma famlia. Nossa filha o odiava
por isso. A mim tambm ela odiava, mas pelas razes tradicionais que filhas
odeiam mes.
Ele contava com o meu silncio, escreveu, apontando como qualidade o que
fora um defeito monstruoso noutros tempos. O meu cetro imperial, Frederico
dizia, no auge da revolta, quando queria um nome, um motivo, uma
explicao. Eu tinha um nome, e um caderno de motivos, que nunca
revelaria. Precisava aguentar a crise, s isso, esperar aquele solo
ininterrupto de bateria virar o som de outro instrumento, um cello, um piano
com longos intervalos entre as notas. O silncio que nos salvou dos
ferimentos graves, eu poderia dizer agora, e me calo. Gosto de pensar que
tenho um cetro.
A garonete de avental preto vem mesa. Prometi a mim mesma no beber
lcool. Da outra vez, quando ele precisou do meu conselho sobre a troca de
editora, acabamos num hotel. A conversa, verdade, tinha sido melhor,
nada desse pasmo com a prpria capacidade afetiva. Uma prova, afinal, do
climatrio que avanou sobre ele do mesmo modo que avana sobre mim,
amarrotando as ltimas folhas de um suposto papel que tnhamos no mundo.
Qualquer papel.
Um expresso duplo e uma gua mineral, peo. Frederico hesita. Pela primeira
vez parece interessar-se pelo que acontece sua volta, pelo instante em
que vive.
Se importa se eu beber?
Qualquer coisa que faa voc trocar de assunto, respondo, provocativa.
Frederico faz um muxoxo de estudante repreendido. A garonete recita a
carta de cervejas. Quando ele no identifica uma das marcas, ela repete a
lista inteira, erguendo a voz, como a dirigir-se a um av que no escuta
direito. Tem vinte e trs anos, vinte e cinco no mximo. Aperto os olhos e
leio um nome na gargantilha. Jade. Uma pedra. Quem a batizou esperava
muito dessa menina. No vai durar no emprego, voluntariosa demais para o
cargo. Quer ser gerente, mas vai ser atropelada logo, logo pelo colega, que
sorri mais que ela e, ainda por cima, homem.
Frederico pergunta que marca ela sugere, pondo na fala um tom suave de
flerte. No consegue evitar, uma segunda natureza nele. Talvez a primeira.
Sempre gostou de mulheres, sabe conversar com elas. O que piora a sua
culpa em relao filha, sua nica filha, com quem no se entende.
Jade aconselha a cerveja mais cara do cardpio. Bingo. Ele no percebe, ou
finge no perceber, a simetria que se estabelece no par. O coroa rico e a
moa ambiciosa. Ela passa a elogiar o gosto de Frederico, como se a escolha
tivesse partido dele. Um cara de meia idade, endinheirado, avalia, a um
passo da cremao. Dificilmente enxergar, diante dela, duas ovelhas negras
disfaradas sob o talco da idade. Jamais atribuir a origem de nossas rugas a
tinas de vodka e a uns bons punhados de cocana. A noitadas a trs. Em
grupo. Com pessoas do mesmo sexo. No adivinhar tampouco a ficha
corrida das traies, das louas quebradas e das portas batendo com
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violncia. Para todos os efeitos, somos o equivalente a duas corujas
aboletadas num canto, um pouco feias, mas dignas s vsperas da extino.
Quando ela se vai, Frederico massageia as tmporas. As plpebras, com o
tempo, desenharam uma tristeza falsa em seu semblante. Ele as mantm
baixas, concentrado nos prprios punhos, e quando me encara um lume de
sagacidade atravessa o seu rosto, me puxando para outro lugar. Uma
fogueirinha, um fsforo aceso no fundo de seus olhos bastam: j estamos em
outro lugar.
Num movimento rpido ele estica os braos sobre a mesa e segura as minhas
mos, que se congelam sem retribuir, enquanto ele insiste em mant-las
firmes, pressionando-as e sacudindo-as, como se quisesse me tirar de um
sonho.
Estou ficando cego, diz.
E comea a medir o meu silncio.
Um riso irrompe no outro lado da cafeteria. Vozes se elevam sem controle,
numa reao que teriam se um p de vento ameaasse estragar a cena de
um piquenique. Todas as conversas parecem ter subido o tom. Ou foi s a
nossa que se enforcou em uma frase. Frederico abranda a fora com que me
continha e se afasta, retomando a postura na cadeira. Sinto as mos vazias
num primeiro instante, depois a impresso de ter entre elas um objeto
incorpreo, pulsante e levemente frio. A descrio que eu faria ao segurar,
se fosse possvel, uma nuvem.
Ele desvia o olhar e estala a lngua, como a reconhecer a inutilidade de tudo.
Tenho palavras para dizer, ao contrrio do que ele imagina. Um palavro,
para comear. Depois perguntas sobre o diagnstico, a tecnologia existente,
os tratamentos em outros pases. Mas no foi para isso que Frederico me
chamou. Os joelhos dele tremulam de impacincia, sacudindo o piso de
madeira at incluir-me no territrio instvel onde a vida foi parar. Ainda
assim, posso marcar com um alfinete o centro do seu desespero.
Tem de dar um jeito de continuar escrevendo, digo.
s no que eu penso, ele concorda.
no que deve pensar, afirmo, e sinto o cho alisar-se sob os meus ps.
No preciso dizer mais nada. Os minutos frente iro retomar as rdeas e
ditar o que deve ser feito. A normalidade ser reencontrada, luta para isso.
Lutar at no leito de um hospital ou no outro. Mas no ela, penso,
sentindo um alvio de quem escapou por pouco. No a morte, ainda.
A garonete traz os pedidos. Reacomoda o vaso de flores perto da janela
enquanto Frederico recolhe o telefone. Ela inclina o corpo sobre a mesa,
alterando sutilmente a luz e o calor do espao que ocupamos. Dispe
primeiro a xcara, depois o copo de cerveja e o lquido dentro. Mtodo.
Ordem. Leve trao de lavanda. Quando se vai, Frederico a segue com o
olhar, apreciando, como se movido por uma fora maior, o balano de quando
ela caminha. Ao voltar-se, suspira e, sem dizer, inclui mais esta s coisas
que vo se perder na neblina. Ento comea a falar de Dora. No tenta
escond-la, como fazia antes, na tentativa de separar os mundos e pr-se
no centro de uma rivalidade que, admito, existia.
A xcara minha frente permanece intocada. O motivo que me levou a
escolher o caf se apequena, envergonhado por sua pretenso. Eu no
cansava de fazer esse teste. Tinha de saber, a cada vez, a minha
importncia para Frederico. Vinha preparada para um escrutnio devastador.
Trocara de vestido trs vezes e gastara meia hora para prender o cabelo
nesse coque frouxo, falsamente desajeitado, soltando duas mechas no alto
da cabea, uma de cada lado, que se encontravam no queixo para emoldurar
o rosto, e afin-lo, num dos infinitos truques para diminuir os estragos da
idade e combinar com os cosmticos caros, feitos para dar a impresso de
no se ter aplicado maquiagem nenhuma. Tudo para avaliar-me aos olhos de
Frederico, encontrar no discreto tremor de suas pupilas uma sentena de
vida.
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A estabilidade uma boa coisa, Frederico prossegue, referindo-se ao
casamento com Dora, serenidade com que ela recebeu a notcia e o quanto
isso os aproximou. No nosso tempo era diferente, diz, como se ao mencionar
as vantagens de agora me devesse um crdito por outra espcie de
felicidade. Extremada. Selvagem. Instvel. Em lugar de ironia, contudo, h
um tom de arrependimento em sua voz.
uma despedida, compreendo. Uma nova separao.
Tenho de me acostumar, penso, a viver num tipo de exlio. Sem aquele olhar,
serei s o resultado de uma primeira impresso, da avaliao rpida que se
faz de algum sentado em uma cafeteria onde circulam Jades cada vez mais
jovens. Por enquanto, trato de preencher as pausas da fala de Frederico.
Peo que me mostre a foto dos filhos e ele busca um lbum no telefone,
voltando derramar-se de afeto.
A luz atenuou a fria de antes. No lugar de traos firmes, uma nesga
dourada reflete partculas suspensas entre mim e Frederico. Aqui comeam,
penso, nossas bodas de p. E mantenho a voz viva, tagarela, como a de
uma moa que entretm as visitas na sala, sabendo que s quando estiver
sozinha, no fundo da lavanderia, onde um poo de luz se abre sem janelas
para os vizinhos, poder dizer de verdade o que sente.
Enviado por O Globo - 3.3.2014 | 7h00m
Luiz Ruffato: um conto indito
AS VANTAGENS DA MORTE
Ouvi um toc-toc-toc, virei de lado, tentava pegar no sono, calor e
pernilongos, ouvi de novo o toc-toc-toc, levantei, escancarei a janela e
deparei com meu irmo montado em sua Grick preta com frisos dourados,
segundo andar do prdio do conjunto habitacional onde morava,
perguntando, daquele jeito bonachoso, Vai me deixar muito tempo aqui fora
ainda, Tiquim? Ele pousou dentro do quarto sem dificuldade, abriu o
descanso, estacionou a bicicleta num canto, E a, como vo as coisas? Foi
quando notei que eu estava bem mais velho que ele, ele havia morrido com
vinte e dois anos, um negcio esquisito, chegou da fbrica, trabalhava de
torneiro mecnico na Manufatora, falou que no estava sentindo bem, jogou
na cama de roupa e tudo, a me ainda perguntou se queria tomar um ch de
boldo, disse que no, queria apenas dormir um pouco, deitou, dormiu, no
acordou mais, e fiquei com a sensao de que uma manh eu ia despertar e
l estaria ele na cozinha tomando caf, enfiado no macaco fedendo a
graxa, pronto pra ir pra fbrica, mas os anos passaram, ele no levantou
mais. E agora reaparece, como no tivessem decorrido trinta anos, a cara
ainda com marcas de espinhas, o cabelo emplastrado de brylcreem, E a,
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22/3/2014 Prosa Online: blog da equipe do caderno Prosa e Verso sobre literatura - Prosa: O Globo
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como vo as coisas? Intrigado, perguntei como me havia achado em So
Paulo, to grande, ele riu, disse que tinha demorado um tanto pra encontrar,
mas que precisava saber notcias, afinal desde que sa de Cataguases nunca
mais ningum escutou falar de mim. Respondi que vivia preso na labuta, sabe
como , mas na verdade havia jurado s voltar quando tivesse juntado
dinheiro suficiente pra deixar todo mundo com inveja, o que nunca
aconteceu. Ele olhou pra um lado e outro, mexeu no guarda-roupa,
vasculhou debaixo da cama, abriu a gaveta da mesinha, Voc no est muito
melhor do que quando a gente morava em Cataguases, falou, e comeou a
criticar, Se a me visse voc assim, nessa dificuldade, ia ficar muito triste,
Criar um filho pra isso!, posso at ouvir ela choramingando. Pra no aborrecer
ainda mais, mudei de assunto, perguntei se via muito ela l onde estavam, e
fiquei com medo de perguntar onde estavam, ele respondeu, Rapaz, uma
felicidade aquilo, eu, o pai, a me, a vov, o vov, e desfilou um monte de
nomes de parentes, vizinhos, colegas e amigos, nem sabia tanta gente
assim, e disse que onde estavam era sempre uma festa, Depois que a gente
morre junta todo mundo de novo, e fiquei com vontade de morrer tambm,
pra encontrar com minha me, meu pai, sentia tanta falta deles!, e quis
saber o que ficavam fazendo l, e ele explicou que onde estavam viviam em
comunidade, todos se conheciam, o dia inteiro toa, a me cozinhava,
comida no faltava, e o pai andava pra cima e pra baixo, vestido dentro do
terno dele, chapu na cabea, pregando, que desde que virou crente tinha
aquela mania de pregar, o dia inteiro s falava em Bblia, e na hora do almoo
sentavam todos juntos numa mesa enorme, depois descansavam, porque
fazia calor l tanto quanto em Cataguases, e eu desconfiei ento de onde
eles estavam, mas a minha me, ser?, e ele, meu irmo, num dia saa cedo
de casa e ia pescar no rio, que era igual ao rio Pomba, mas limpo, A gente v
os peixes chegando e mordendo a isca, e quando pequeno demais a gente
espanta ele, chipe, chipe, s aproveitamos os grandes, e noutro saa pro
brejo pra caar r de noite, junto com o Chiquim Rzinha, Lembra dele?, Ele
morreu?, perguntei espantado, Morreu, ele disse, tem uns anos j,
atropelado, fiquei pasmo, o Chiquim era da minha idade, tinha ido pro Rio de
Janeiro trabalhar num banco, gostava muito dele, Quando voltar, d um
abrao nele, diz que mandei lembranas, puxa vida, que pena, Pena nada,
meu irmo falou, ele est feliz agora, passa o dia inteiro toa, inventando
armadilhas pra pegar r, e o bom que tomou gosto por bola, Mas ele nem
gostava de futebol, falei, Pra voc ver, agora viciado em pelada, no joga
grandes coisas no, mas titular do nosso time, Como chama o time,
perguntei, Amor e Cana, respondeu, Opa!, e pode beber l?, e ele,
gargalhando, Claro, voc bebe e bebe e bebe, fica de fogo, mas no dia
seguinte acorda bonzinho, no tem ressaca no, uma maravilha, e eu
sentia cada vez mais aumentar minha vontade de morrer, E a me, est
bem?, Est tima!, continua naquela lida de lavar roupa pra fora, No parou
no?, Parou nada, se parar, ela morre, e riu da prpria piada, Se parar, ela
morre, repetiu. A madrugada ia alta, conversvamos baixo pra no incomodar
os vizinhos, ele me falava da beleza que era a morte, e eu pensando no meu
rol de contrariedades, sozinho, sem dinheiro, largado pela mulher, humilhado
pelos filhos, e ele gabando que no precisava importar com nada, vivendo
alegre ladeado pelos amigos, at que tocou no assunto que verdadeiramente
tinha levado ele ali, minha famlia era assim, rodeava, rodeava, rodeava, at
laar o sujeito, parecia uma coisa de gato brincando com rato, deixava fugir
e pegava de novo, deixava fugir e pegava de novo, at cansar e dar o bote
final, tchum! No caso, o que tinha levado ele ali, a mando da minha me, e
do meu pai tambm, com certeza, porque em algumas coisas eles uniam, era
meu estado de abandono. A fiquei bravo, falei, alterando a voz, Nem depois
de mortos vocs deixam de meter na minha vida, e ele ficou bravo tambm,
disse, Olha como voc fala comigo!, e eu, Por qu?, Porque sou mais velho
que voc, voc tem que obedecer, a ri, falei, V se se enxerga! Eu sou mais
velho que voc agora, voc que tem que obedecer, e ento notei que ele
ficou confuso, tive pena, no queria brigar com meu irmo, gostava dele,
devia muita coisa a ele, ele sempre tinha me protegido, nas brigas na rua,
nas vezes que tinha feito alguma burrada em casa, ento falei, Deixa disso,
somos sangue do mesmo sangue, e dei a mo pra ele e ele apertou e a gente
se abraou. Ento me contou que a me e o pai estavam muito preocupados
comigo, porque me viam angustiado, batendo cabea, e perguntavam se no
era melhor eu voltar pro lugar de onde vim, afinal no viam vantagem
nenhuma estar ali, daquele jeito, como fosse pago, dali a pouco meu tempo
esgotava, e se eu morresse naquela lonjura, talvez no conseguisse juntar
com eles, uma confuso danada na hora que a gente morre, explicou,
Parece uma rodoviria lotada em vspera de feriado, se voc de repente se
perde, pode no encontrar a gente nunca jamais, e essa era a grande aflio
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22/3/2014 Prosa Online: blog da equipe do caderno Prosa e Verso sobre literatura - Prosa: O Globo
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da me, embora o pai discordasse dizendo que eu no era bobo, tinha at
tirado diploma de contador, e gostei da defesa que meu pai fez de mim, mas
pensei tambm que talvez por minha causa ele e a me deviam at ter
brigado, porque eles eram assim, quando comeavam uma discusso levavam
at o fim, e o fim era quando meu pai desistia, ia pra rua batendo o p, e
minha me gritava, No falei?, quem cala, consente!, e ele, derrotado, saa
cantarolando hinos da igreja e mastigando a dentadura, porque quando
ficava nervoso tinha essa mania de mastigar a dentadura, e falei pro meu
irmo que no precisava incomodar no, porque estava tudo bem, estava
passando por um momento complicado, mas logo logo tudo se ajeitava, mas
no fundo a verdade que, mesmo que quisesse, no tinha pra onde ir,
estavam todos mortos, meu caminho era sem volta, condenado para sempre
solido e amargura, mas no quis demonstrar isso pra ele no ficar
desgostoso, ele no merecia, parecia to contente, e notei que a manh
vinha querendo nascer, o firmamento j tinha uma barra avermelhada, meu
irmo falou, Bom, Tiquim, acho que j vou indo, uma grande viagem de
volta, pegou a bicicleta, recolheu o descanso, abraamos novamente, e ele
saiu pedalando cu afora. Aparece de vez em quando, ainda falei, mas acho
que ele no chegou a ouvir.
Enviado por O Globo - 2.3.2014 | 7h00m
Carola Saavedra: um conto indito
RUMO AO SUL
Era muito cedo ainda, o sol acabara de nascer. Um homem num barco
remava em direo ao sul. No trajeto do rio em direo ao sul as terras iam e
vinham, fugiam e se aproximavam. Numa dessas terras, o homem viu um
bicho de quatro patas. O bicho pastava na beira da terra e no via o homem
que ia e vinha e agora se aproximava. O bicho s pensava no pasto e, se viu
o homem, no teve medo dele. possvel que o bicho de quatro patas nunca
tenha visto um homem de duas patas num barco sem patas como os peixes.
possvel que o bicho de quatro patas nunca tenha visto um homem de duas
patas em lugar nenhum. possvel que por isso continuasse imvel, porque
os bichos s veem o que sabem identificar. O homem viu o bicho que
pastava na beira da terra.
O homem ia rumo ao sul em seu barco. Debaixo do barco havia a gua e os
peixes. Ao lado da gua e dos peixes havia a terra que ia e vinha e se
aproximava. Debaixo da terra havia um morto e os caracis que saiam das
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22/3/2014 Prosa Online: blog da equipe do caderno Prosa e Verso sobre literatura - Prosa: O Globo
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rbitas de seus olhos. Mas o homem estava vivo. O homem vivo tinha olhos
estranhos, eles olhavam rumo ao sul, como se fossem levemente vesgos. Ao
lado havia uma extremidade de terra que ia e vinha e o bicho que pastava e
no olhava para lugar nenhum, s para dentro de si mesmo e do pasto
dentro de si mesmo. O bicho sonhava sonhos estranhos e ao mesmo tempo
conhecidos, como se sonhasse os mesmos sonhos de outros bichos e,
talvez, at do prprio homem. O bicho mastigava o pasto que no acabava
nunca e no acabava nunca de ser mastigado, o bicho no tinha pressa,
como se tivesse todo o tempo do mundo. Mas o homem ia e vinha e se
aproximava rumo ao sul. O homem era moreno e o bicho era branco, o
homem no tinha pelos, o homem era liso, o bicho era branco e tinha pelos
brancos sobre a pele rosa. O homem no tinha pelos sobre a pele morena. O
homem tinha a barba recm-feita, o bicho tinha uma barbicha. O homem no
pensava nessas coisas. O bicho no pensava nessas coisas. O homem se
aproximou e o bicho no fugiu, apenas continuou ali mastigando, olhando
para dentro de si mesmo e o pasto que ia e vinha dentro de si mesmo.
O homem se aproximou e pegou o bicho pelo pescoo e o puxou para dentro
do barco. O homem era forte e queimado pelo sol de quem anda de barco
rumo ao sul. O bicho no sabia em que direo ficava o sul, o bicho tambm
no sabia em que direo ficava o norte. O homem pegou o bicho pelo
pescoo a com o faco que levava preso cintura fez um corte profundo e
misterioso e transversal no pescoo do bicho que nem teve tempo de
perceber que o tempo se esvaia e que o pasto em seu corpo no tinha mais
como seguir sua trajetria, rumo ao norte rumo ao sul. O homem fez ento
um rpido corte profundo e misterioso e longitudinal no ventre do bicho, que
olhava para dentro de si mesmo, e que no teve tempo de perceber que o
dentro de si tornara-se fora, tornara-se o mundo l fora. O bicho tornara-se