Sergio Carrara Resenha Ilusões Da Liberdade Nina Rodrigues

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CRÍTICA 198 NOVOS ESTUDOS N.° 55 A ANTROPOLOGIA SOCIAL BRASILEIRA E SEUS FANTASMAS As ilusões da liberdade, a escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil, de Matiza Corrêa. São Pau- lo: Editora da Universidade São Francisco, 1999, 488 pp. Sérgio Carrara Escrito originalmente como tese de doutoramen- to para o Departamento de Ciência Política da USP, este trabalho da antropóloga Mariza Corrêa esperou quatorze anos para ser publicado. Graças aos inson- dáveis desígnios do mercado editorial brasileiro e da eficiência das copiadoras, o texto já vinha circulando desde 1984 em nosso meio acadêmico. Desde então, tem inspirado historiadores, sociólogos e antropólo- gos sociais interessados no estudo do desenvolvi- mento da ciência no Brasil — especialmente das cha- madas ciências biológicas e sociais — e da atuação de algum de seus "braços armados" — como a psiquia- tria, a medicina legal, a eugenia ou a higiene. Consi- derando o contexto intelectual em que a obra foi gestada (finais dos anos 70 e início dos 80), o leitor deve ter muito claro que ela expressa de modo exem- plar algumas linhas de transformação que moldaram o atual perfil das ciências sociais brasileiras. O traba- lho de Mariza Corrêa contribuiu decisivamente para consolidar abordagens hoje mais familiares e para

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    198 NOVOS ESTUDOS N. 55

    A ANTROPOLOGIA SOCIAL BRASILEIRAE SEUS FANTASMAS

    As iluses da liberdade, a escola Nina Rodrigues e aantropologia no Brasil, de Matiza Corra. So Pau-lo: Editora da Universidade So Francisco, 1999,488 pp.

    Srgio Carrara

    Escrito originalmente como tese de doutoramen-to para o Departamento de Cincia Poltica da USP,este trabalho da antroploga Mariza Corra esperouquatorze anos para ser publicado. Graas aos inson-dveis desgnios do mercado editorial brasileiro e da

    eficincia das copiadoras, o texto j vinha circulandodesde 1984 em nosso meio acadmico. Desde ento,tem inspirado historiadores, socilogos e antroplo-gos sociais interessados no estudo do desenvolvi-mento da cincia no Brasil especialmente das cha-madas cincias biolgicas e sociais e da atuao dealgum de seus "braos armados" como a psiquia-tria, a medicina legal, a eugenia ou a higiene. Consi-derando o contexto intelectual em que a obra foigestada (finais dos anos 70 e incio dos 80), o leitordeve ter muito claro que ela expressa de modo exem-plar algumas linhas de transformao que moldaramo atual perfil das cincias sociais brasileiras. O traba-lho de Mariza Corra contribuiu decisivamente paraconsolidar abordagens hoje mais familiares e para

  • disseminar o interesse por certos temas e problemas.Foi assim referncia fundamental para inmeras ou-tras dissertaes e teses que, diferentemente dele,mereceram publicao bem mais precoce. Seu apare-cimento em livro dever ampliar ainda mais sua in-fluncia, permitindo que um nmero muito maior deleitores possa avaliar sua importncia.

    O objetivo mais geral do trabalho o deproduzir uma "leitura antropolgica" (p. 27) dahistria da constituio da prpria antropologia,particularmente da antropologia social, como disci-plina autnoma no Brasil. Ainda hoje carentes deuma reflexo que estabelea a especificidade deseus procedimentos, abordagens antropolgicas dedados histricos eram muito mais raras poca emque As iluses da liberdade foi escrito. Se verdadeque muitos antroplogos sociais brasileiros j toma-vam ento como objeto sua prpria sociedade,poucos se dispunham a abandonar o clssico mo-delo do trabalho de campo para realizar anlisesinteiramente subsidiadas por fontes histricas. Aoconstruir a "leitura" que agora se publica, MarizaCorra foi portanto pioneira nesse tipo de aborda-gem. Aplicou ao material histrico coletado nosomente os princpios terico-metodolgicos que jvinham orientando a observao antropolgica emcontextos mais tradicionais, mas agregou a elesainda outros, hauridos tanto na filosofia da cinciade Thomas Kuhn quanto na histria arqueolgica deMichel Foucault. Articulando tais princpios, a auto-ra procurou, antes de mais nada, afastar qualqueriluso presentista, colocando entre parnteses aorganizao disciplinar que hoje nos familiar. Emseu trabalho, a crtica a uma abordagem anacrnicado passado amplia e desdobra a crtica abordagemetnocntrica de sociedades no-ocidentais, j entocentral para a antropologia social. Conforme escreveCorra: "Para compreendermos o universo em quese moviam os autores que estaremos analisandoaqui, preciso deixar de lado as demarcaesinstitucionais e tericas que definem as fronteirasdos vrios campos cientficos tais como os conhece-mos atualmente e tentar recuperar o sentido queestes autores davam aos conceitos que utilizavamem seu prprio momento histrico" (p. 29). sobreessa postura mais geral que a autora desenhar ummovimento intrigante e paradoxal, voltando aosprprios antroplogos o olhar relativizador que eleshaviam desenvolvido para a explorao de realida-des aparentemente mais distantes.

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    Tal abolio preliminar de fronteiras e demarca-es supe, claro, uma concepo radicalmenteno-positivista da cincia, considerando-a no comoum espelho mais ou menos fiel da realidade, mascomo trabalho ativo de construo dessa mesmarealidade. Isso implica abordar a cincia como ativi-dade eminentemente poltica, como faz a autora deum modo bastante elegante. E, para Corra, a cincia atividade poltica em um duplo sentido. De umlado, intimamente associado ao modo pelo qual opoder se exerce nas sociedades modernas, o empre-endimento cientfico tem conseqncias prticas paraos indivduos ou os grupos sociais sobre os quais seaplica e cujas identidades ajuda a consolidar. Deoutro, em sua realidade quase "totmica", as teorias,os mtodos e os fatos operam tambm como sinaisdiacrticos no mbito da organizao do mundointelectual, pautando as disputas de poder entre osprprios cientistas. Mariza Corra confere assim im-portncia crucial anlise da prtica ou atuaoprofissional concreta de seus "informantes". E, para acompreenso de seu mundo, vai alm das grandesdisputas acadmicas, perseguindo, como diz, as"pequenas informaes, as intrigas de bastidores, asacusaes de bruxaria..." (p. 27), to importantespara os antroplogos desde Malinowski.

    Assim, a "leitura antropolgica" proposta pelaautora se constri em clara oposio maioria dosrelatos histricos que haviam sido produzidos at oincio dos anos 80 sobre o desenvolvimento dadisciplina. Neles, como ela afirma, conjurava-se opassado mais para estabelecer, consolidar e justificaras fronteiras disciplinares e os alinhamentos ideol-gicos do presente do que para compreender osantepassados em seus prprios termos. Mariza Cor-ra no deixa, entretanto, de perceber os limites detal abordagem e no se deixa capturar por qualqueringnua iluso de neutralidade absoluta: "No finaldas contas, tentar fazer a histria de qualquer disci-plina pode ser um exerccio ilusrio, j que nopodemos nos livrar do peso de nossa prpria manei-ra atual de pratic-la, sem correr o risco de dissolveros contornos do objeto que nos propomos enten-der" (p. 45). E se no podemos dizer que a intenode Mariza Corra , ao contrrio daqueles que elacritica, subverter fronteiras consagradas, definiescannicas e hierarquias consolidadas, , sem nenhu-ma dvida, problematiz-las de modo radical, reve-lando sua artificialidade irremissvel, frutos que sode uma histria e de uma cultura singulares. Desse

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    modo, a anlise incorpora plenamente certas con-cepes que, poca em que Corra a desenvolvia,eram divulgadas por Michel Foucault. Ao que pare-ce, na proposta foucaultiana de uma histria dascincias como arqueologia dos saberes que MarizaCorra encontra os meios de articular os mtodos eas perspectivas da antropologia social e da histria.Poderamos dizer com Foucault que, tambm paraCorra, " preciso despedaar o que permitia o jogoconsolante dos reconhecimentos", e que "o saber,mesmo na ordem histrica, no significa 'reencon-trar' e sobretudo no significa 'reencontrar-nos'. Ahistria sendo efetiva na medida em que reintrodu-zir o descontnuo em nosso prprio ser"1. exata-mente nos termos dessa "histria efetiva", inquietan-temente crtica, que a leitura antropolgica de Mari-za Corra enfrenta os fantasmas do passado de suaprpria disciplina.

    Conforme deixa entrever a autora, o "ser" doantroplogo social contemporneo foi em muitos deseus aspectos plasmado a partir de uma "radical edefinitiva ruptura terica e metodolgica", que, con-forme diz, ocorreu nos anos 50 (p. 293). Tal rupturatransformaria alguns de "nossos antepassados", comoNina Rodrigues, Afrnio Peixoto, Leondio Ribeiro ouArthur Ramos, "em seres completamente estranhos imagem que os modernos antroplogos fazem de simesmos". Imagem um tanto herica, pode-se dizer,identificada luta contra a discriminao racial etnica e radical afirmao da cultura como realida-de sui generis, no redutvel a determinismos psico-lgicos e, sobretudo, biolgicos.

    Um dos principais mritos do trabalho de Mari-za Corra justamente recuperar essa (para ns)estranha ordenao do saber sobre o humano que,at muito recentemente, supunha, sem gerar gran-des sobressaltos, uma estrita continuidade entre osfenmenos biolgicos, psicolgicos e culturais. Aautora vai ento reatar esses "laos cuidadosamenteignorados, ou rompidos, nas anlises cujo ponto departida so definies contemporneas do ofcio doantroplogo" (p. 31), fazendo com que nos miremosno perturbador espelho da medicina legal, da antro-pologia criminal, da psiquiatria, da eugenia, confor-me cultivadas por Nina Rodrigues esse "cavaleirosolitrio da cincia" nacional (p. 117) e seuspolivalentes "discpulos". E esse espelho do passado

    (1) Foucault, Michel. Microfisica do poder. Rio de Janeiro:Graal, 1981, p. 2.

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    que a autora desvela nos mostra que o bero daantropologia social contempornea no consistiuapenas nos gabinetes metropolitanos, onde, como jse assumia em finais dos anos 70, as estratgiascolonialistas das potncias europias se instrumen-talizaram. Ela tambm se desenvolveria ali onde osantroplogos sociais do mundo ps-colonial menosgostariam de v-la: entre ns mesmos, em gabinetesde medicina legal, laboratrios de antropologiacriminal, asilos psiquitricos, prises, tribunais einstitutos de identificao. Era nesses espaos que anascente antropologia brasileira comprometia-secom um projeto de "colonizao interna", como diza autora (p. 22), situando no mbito de um mesmoaf civilizador e disciplinar o conhecimento e ainterveno no s sobre os "primitivos" ou as "raasinferiores", mas tambm sobre os loucos, as crian-as, os criminosos, as mulheres, os homossexuais...

    A narrativa concisa, precisa e envolvente daautora acompanha minuciosamente a trajetria que,entre os sculos XIX e XX, Raimundo Nina Rodri-gues descreveu desde a sua sada do Maranho ato estabelecimento definitivo na Bahia, retecendo osfios do contexto social, poltico e intelectual em queele se movia. Sem deixar nunca de apontar oautoritarismo implcito no pensamento de quemdefendia que a "igualdade poltica no podia com-pensar a desigualdade moral e fsica" (p. 176)supostamente existente entre as raas, os sexos ouas idades, Corra resgata o enorme legado deixadopelo mdico maranhense para a cincia brasileira e,em particular, para a antropologia social. Conformedescrito por Corra, este legado comporta, paraalm de sua notvel luta pela implantao de umaverdadeira cultura cientfica no pas e pelo reconhe-cimento do valor social do conhecimento especi-alizado, a valorizao do trabalho emprico acuradoe metdico e do mtodo comparativo como meioprivilegiado para operar generalizaes a partir deestudos de caso. Nina Rodrigues e seus "discpulos"teriam ainda papel crucial na prpria configuraode diferentes objetos de reflexo que ainda so osnossos, particularmente o tema das relaes raciais,moldando em larga medida o "inconsciente", o no-pensado das cincias sociais brasileiras.

    Mas se importa autora inventariar tal legado,importa igualmente compreender por que ele foiesquecido ou to desfigurado no somente pelosque se opunham s suas idias mas principalmentepor aqueles que, como Arthur Ramos, se diziam

  • seus seguidores. Para a autora, a razo no resideapenas na incmoda proximidade entre medicinalegal e antropologia que a trajetria de Nina Rodri-gues corporificava. Mais decisivo, em seu entender, que ele olhasse a sociedade brasileira a partir deuma perspectiva que negava frontalmente a ideolo-gia irenista, to cara ao projeto nacional que seconsolidaria a partir dos anos 30, em cujos termos sedifundiria o mito da democracia racial brasileira. Natica de Nina Rodrigues, conforme Corra a descre-ve, a histria das relaes raciais no Brasil deve serlida como uma histria marcada pela luta e peloconflito e no por acomodaes e aculturaesprogressivas. Mais do que a defesa de posiesracistas, sua percepo do Brasil como nao dividi-da que selaria tanto o seu esquecimento porlongas dcadas quanto o seu resgate pela autora.Para Corra, a opo de Nina Rodrigues em definira diferena cultural de ndios e negros como sinal desua inferioridade "pode ser avaliada negativamentehoje, mas no podemos desconhecer a importnciadessa lgica, em que a percepo da diferena e doconflito est presente, na fundamentao de umaperspectiva que s muito mais tarde seria retomadapelas cincias sociais no Brasil, com uma outralinguagem" (p. 155). Rearrumando a rvore genea-lgica da antropologia social brasileira, a anlise deCorra busca explicitamente contribuir para o forta-lecimento de uma perspectiva que ter no conflito eno poder as chaves para a compreenso da socieda-de brasileira.

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    Enfim, como toda boa etnografia, Iluses daliberdade no permite qualquer leitura fcil. Oresultado geral da anlise que Mariza Corra faz dahistria da implantao da antropologia no Brasilpode ser tudo, menos consolante. De um lado, omodo abrangente e corajoso como apresenta aatuao desses nossos antepassados e suas idiasno permite que as fronteiras da identidade profissio-nal do antroplogo contemporneo sejam estabele-cidas pelos jogos fceis do contraste ou da identifi-cao. Em sua anlise, eles emergem simultanea-mente como nossos "parentes" e nossos "inimigos",nossos iguais e nossos antpodas. De outro lado, omodo cuidadosamente contextualizado ou relativi-zador como apresenta vises divergentes sobre asociedade brasileira no convida nem adoo nem condenao de qualquer uma delas. Nesse senti-do, em As iluses da liberdade o leitor (antroplogoou no) encontrar uma realizao exemplar doprojeto intelectual da antropologia social contempo-rnea: suspender todos os apoios e todas as certezassobre as quais se edifica nossa conscincia e, fazen-do-a conversar com seus prprios fantasmas, abrirpara ns a possibilidade de ver o mundo e a nsmesmos com um olhar inteiramente novo. Talvezno seja de fato outra a maneira de conquistar umaliberdade que seja algo alm de mera iluso.

    Srgio Carrara antroplogo e professor do Instituto deMedicina Social da Uerj.

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