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    Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 8 - n. 1 - p. 49-70 - jan./jun. 2012

    Texto como discurso:

    uma visão semiolinguística

      Maria Aparecida Lino Pauliukonis* 

     Lúcia Helena Martins Gouvêa**

     Resumo

    Data de submissão: mar. 2012 – Data de aceite: maio 2012

    *  Docente Associado IV do Programa de Pós-Graduaçãode Letras Vernáculas da UFRJ. Coordena o projeto

    integrado de pesquisa Ciad-Rio (Círculo Interdiscipli-nar de Análise do Discurso), juntamente com Patrick

    Charaudeau, do CAD (Centre d'Analyse du Discours),em Acordo de Cooperação científica entre a UFRJ e a

    Universidade Paris 13. Desenvolve atualmente projeto

    de pesquisa sobre modalidades e enunciação na mídia jornalística impressa. E-mail: [email protected]

    ** Docente Adjunto III do Programa de Pós-Graduaçãode Letras Vernáculas da UFRJ. Membro do projeto

    integrado de pesquisa Ciad-Rio (Círculo Interdiscipli-nar de Análise do discurso). Atualmente, desenvolve

    um projeto de pesquisa intitulado Modalidades e tiposde lexicalização: um estudo em gêneros informativos

    midiáticos. E-mail: [email protected]

    Este artigo propõe a análise deum texto como discurso, sob o viésda Teoria Semiolinguística do dis-curso (CHARAUDEAU, 1983, 2008).Pretende-se caracterizar o ato de lin-guagem como interenunciativo e fazerconsiderações a respeito do projeto deinfluência do emissor sobre o receptor,regulado por um contrato de comuni-cação, realizado em uma dada situa-

    ção comunicativa. Por meio da análi-se de uma crônica de Luís Fernando Verissimo, publicada em O Globo,  em2009, focaliza-se a ação dos sujeitosenunciadores nos processos de trans-formação e de transação, responsáveispela construção do sentido dos váriosgêneros textuais-discursivos e dos mo-dos de organização do discurso.

     Palavras-chave: Enunciação. Ato de

    linguagem. Contrato comunicativo.

    Introdução

    Este artigo tem como proposta discutira noção de texto como discurso sob oaporte teórico da Teoria Semiolinguísticado discurso (CHARAUDEAU, 2008), umadas vertentes da Análise do Discurso debase interativa/comunicacional. Um dosobjetivos é analisar como se dá a apreen-são do sentido de um texto, tomando por

    base o exame de operações discursivasrealizadas pelos sujeitos enunciadores

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    durante o ato de comunicação, em umadeterminada situação social, reguladaspor um contrato comunicativo.

    Para tanto, pretende-se analisaro processo enunciativo, utilizado na

    produção de uma crônica, de Luís Fer-nando Verissimo, publicada em O Globo,intitulada “O futuro do GPS”, e verificarcomo se realiza a inclusão de marcas daidentidade dos sujeitos da enunciação,por meio da observação dos índices desubjetividade mais frequentes.

    Por se tratar de uma análise queopera com o universo linguístico e si-

    tuacional, fundamenta-se em algunsconceitos básicos da Teoria Semiolinguís-tica, a saber: o ato de linguagem  comoenunciação; a imagem dos  sujeitos dodiscurso e a situação social; o contratode comunicação e a mise-en-scène dosdispositivos utilizados para os diferentes

     gêneros textuais e os modos de organiza-ção do discurso.

    O ponto de vista adotado busca, as-sim, abranger o que a análise discursivadenomina de problematização do sentidoou interpretação de um texto em funçãode operações linguístico-discursivasespecíficas. Tal perspectiva consiste emcompreender e analisar o significado tex-tual em função do projeto de influênciae da ação do sujeito enunciador sobre o

    sujeito receptor/destinatário em deter-minado contexto situacional.

     A proposta apresenta a seguinte dis-posição: um breve histórico das teoriasda enunciação e da Análise do Discurso,com o fim de situar os precursores edestacar os mais recentes teóricos que

    possibilitaram a passagem dos enfoquesestruturalistas do código para os estu-dos dos usos linguísticos sob o prismadiscursivo; especial destaque será dadopara a contribuição da Semiolinguística

    no enfoque da análise da ação de sujei-tos interagentes e da “mise-en-scène”enunciativa na produção de um textoopinativo.

    Breve histórico da enunciação

    Tido como um conceito central emFilosofia, o termo enunciação tornou-se

    recorrente na referência aos estudoslinguístico-enunciativos, a ponto de hojese tornar central nas discussões sobre arelação entre o sujeito, a linguagem e omundo.

    Se se recuar no tempo, dentre osprecursores dessa nova abordagem dalíngua, podem ser citados Bréal (1897)que, no capítulo sobre a subjetividade

    na língua, destaca as escolhas lexicaisque os sujeitos realizam e processam,em função das circunstâncias de seutempo, o que caracteriza a intervençãoda subjetividade na construção do texto,e Bakhtin (1929), que propôs a análiseda dinamicidade da linguagem e danatureza social da enunciação. Segun-do tais perspectivas, a língua aponta

    possibilidade de orientação de sentidopara o interlocutor, para os contextosconstitutivos e para as inter-relaçõescom outras enunciações.

    Podem ser lembrados outros expoen-tes, mas as contribuições de Benveniste(1966) foram decisivas para o desen-

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    volvimento dos estudos enunciativos eda intersubjetividade na linguagem; aoapregoar a impossibilidade de se reco-nhecerem certos elementos linguísticosdissociados da atividade dos falantes, ele

    instaurou, de vez, a Teoria da Enuncia-ção, que direcionou os estudos enuncia-tivos posteriores.

    O tratamento dado à enunciaçãosempre foi relevante para a perspectivado discurso; desde o início, colocou-seem pauta a produção discursiva deuma dada sociedade por meio de suasdistintas formas de expressão; nesse

    sentido, tornaram-se centrais as noçõesde intersubjetividade, os princípios daPragmática e os desdobramentos e osavanços das teorias sobre o texto consi-derado como discurso.

     Atualmente a AD configura-se emvárias correntes de investigação da lin-guagem que guardam entre si um pontocomum: um modo de reflexão sobre as

    relações intersubjetivas e as condiçõesenunciativas de realização, base deseu funcionamento. Dessa forma, asabordagens do discurso privilegiam acompreensão dos mecanismos que sãoinerentes à prática linguística, conce-bem a ação interativa e cognitiva dasentidades subjetivas e propiciam umquestionamento sobre a participação do

    ambiente social (situação) na produçãodo ato de comunicação.

    Em meio à profusão de teorias sobreo discurso, atualmente não se pode maisconsiderar uma única abordagem para osdiversos enfoques discursivos; assim, osvários aportes teóricos mantêm pontos

    de contato, mas conservam suas especi-ficidades. Dentre eles, serão feitas aquiconsiderações sobre uma importante cor-rente de base comunicacional, que trataa  problemática do ato de linguagem, a

    partir das perspectivas da enunciação.Trata-se da Teoria Semiolinguística ,

    de Patrick Charaudeau (1983, 1996),segundo a qual a construção do sentidose faz por meio de uma relação forma/ sentido, que pode ocorrer em diferentessistemas semiológicos, e é resultantede operações discursivas de entidadessubjetivas, a partir de uma situação bem

    determinada, sob a égide de um contratocomunicativo. Seu ideólogo é criador doCAD, Centre d´Analyse du Discours daUniversidade de Paris 13, laboratório depesquisa que congrega vários pesquisa-dores de outras universidades da Françae que mantém convênios de cooperaçãocientífica com universidades em váriospaíses.

    No Brasil, pesquisadores das Uni-versidades UFMG, (Grupo NAD), UFRJ,UFF, UERJ (Grupo Ciad-Rio) e daUniversidade do Vale do Rio dos Sinos(Unisinos), entre outras, mantêm pes-quisas em cooperação científica comCharaudeau e utilizam essa perspectivateórica para fundamentar seus estudos,por entenderem que corresponde a uma

    proposta de trabalho consistente e inte-gradora de diferentes domínios do estudoda linguagem e propõem questionamen-tos acerca de aspectos internos (linguís-ticos) e externos (extralinguísticos) aosvários gêneros de textos.

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    Já se podem destacar algumas temá-ticas que direcionam as pesquisas em

     Análise Semiolinguística do discursoatualmente: (1) estudos sobre entidadessubjetivas – os sujeitos sociais e discur-

    sivos – no quadro da interação social;(2) pesquisas que privilegiam as situa-ções sociais de comunicação linguageira(o uso desse termo abrange, além dodiscurso, os elementos da mis-en-scène enunciativa); (3) análises que articulamas funções linguístico-discursivas com asituação de produção/recepção (posiçõesideológicas e sociais); (4) trabalhos que

    focalizam, em primeiro plano, a organi-zação macro e microtextual dos textos, ostipos e gêneros do discurso e as marcaslinguístico-discursivas dos sujeitos daenunciação.

    De um modo geral, todas essas abor-dagens do discurso apresentam umareação à teoria do representacionismotradicional ou do estruturalismo do Códi-

    go, que o considerava como um reflexo ouespelho da realidade, cuja função básicaé informar sobre o mundo. Pela visão dodiscurso, a língua serve, primeiramente,para colocar os indivíduos em intera-ção, para que eles possam falar sobre omundo, recriando-o, discursivamente, dediferentes formas.

    Situam-se nessa direção os trabalhos

    de pesquisa do Grupo Ciad-Rio, labora-tório de pesquisa que congrega pesqui-sadores das principais universidadespúblicas do Rio de Janeiro, engajados emum projeto integrado com vários outrossubprojetos, que apresentam como di-

    retriz investigações sobre as “operaçõesenunciativas e a construção do ethos dossujeitos enunciadores em textos midiáti-cos e literários”.

    Com interface e propostas para o en-

    sino de língua, tais pesquisas têm cons-tatado a importância de se estudarem asestratégias argumentativo-discursivasque são reconhecidas nos processos de in-terpretação e de produção textual. Paramelhor situar tal enfoque nas váriascorrentes do discurso, apresenta-se, aseguir, um breve histórico das correntesda AD.

    Um histórico da Análise

    do Discurso

    Disciplina relativamente recente, a AD, em sentido lato, abrange os estudosde discurso e, em sentido estrito, o examede certas teorias que o tomam como ob-

     jeto. É difícil traçar uma história linearda AD, visto não ter ela um ato fundador,como a Linguística, por exemplo, queteve como marco o lançamento do Coursde linguistique général, de Ferdinand deSaussure.

    Como disciplina ela é resultado daconvergência de uma série de correntes,com pressupostos diferentes, de práticasde estudos de textos filiadas à Retórica, à

    Filologia à Estilística e à Hermenêutica.Esses movimentos surgiram nos anos1960, na Europa e nos Estados Unidos,e se desenvolveram com estudos de pro-duções transfrásticas, em que se buscacompreender a significação social.

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    Foi nas décadas de 1960-70 que aLinguística, com o avanço do estrutu-ralismo e do gerativismo, renovou osestudos filológicos e gramaticais comnovas considerações e hipóteses sobre o

    funcionamento da linguagem, propondonovos métodos de análise dos sistemaslinguísticos. Ao mesmo tempo, recebeuinúmeras contribuições de outras disci-plinas como a Psicolinguística, a Socio-linguística, a Pragmática, a Etnografiada comunicação, a Psicossociologia dalinguagem, permitindo um conjunto desaberes que passaram a constituir as

    “ciências da linguagem”.O termo AD foi usado pela primeira

    vez por Harris (1952), que estendeua observação a análises que iam paraalém da frase; já o linguista romeno,Eugenio Coseriu, em 1956, no artigo“Determinação e entorno”, lança a ideiade um enfoque analítico a partir do usoda língua em textos, numa perspectiva

    de análise que se fizesse a partir da Parole, em vez da Langue, enfoque esseque direcionava para uma Linguística dotexto e do contexto. Nos anos sessentaainda surgem várias teorias de estudosdo texto que vão delinear ideias básicasdo que hoje se entende por Análise doDiscurso.

    Nessa época fértil de ideias, prospe-

    raram várias teorias ligadas ao texto e aodiscurso, como a Etnografia da comuni-cação, Gumperz e Hymes (1964), a Aná-lise da Conversação, Garfinkel (1967), aTeoria dos Atos de Fala, Austin (1962), aEscola Francesa da AD, Michel Pêcheux

    (1968). Também tiveram papel impor-tante as ideias provenientes das teoriasda Enunciação com Émile Benveniste(1966), das máximas de Grice (1975) edas primeiras abordagens da Linguística

    do Texto com Schimidt (1968), seguidasdas propostas de estudiosos como VanDijk (1972) Brown e Yule (1983), Beau-grande e Dressler (1981) e M. Charolles(1976), cujas preocupações versavam so-bre diversos problemas de textualidade,progressão textual, coesão e coerênciaem textos, entre outros. Não se podeignorar também a influência de outros

    campos do saber, com as propostas de M.Foucault ( Arqueologia do saber, 1969),e as ideias pioneiras e precursoras deBakhtin (discípulo Voloshinov), cujosconceitos de polifonia e de dialogismosempre estiveram presentes na obser-vação da atividade discursiva.

     A abrangente etiqueta AD de linhafrancesa foi de grande poder de influên-

    cia e permitiu designar uma prática co-mum de análise que imperou na décadade 1960 na França. Em 1969 apareceuum número especial da Revista Langa-

     ges, com o título “Analyse du discours”,que caracterizava a nova tendência.Pêcheux é considerado o autor maisrepresentativo dessa corrente que seprendia à análise de textos de cunho

    político, feita por linguistas e historiado-res, com uma metodologia própria sobreo discurso e a ideologia de grupos daesquerda; suas análises foram inspira-das em releituras das ideias de Max, nalinha da Psicanálise de Lacan e nas do

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    filósofo Althusser – com a possibilidadede teorias sobre ideologia.

     Ao colocar o discurso entre os estudosda linguagem, visto a partir da Linguís-tica da Langue e da ideologia, Pêcheux

    provocou uma revolução nas CiênciasSociais. Denunciava-se a ilusão que teriao sujeito de ser a fonte do sentido, umavez que, segundo o autor, o sujeito erauma instância sempre assujeitada peloinconsciente e pela ideologia coletiva,privilegiando-se a desestruturação dostextos, para se revelar a força inconscien-te da ideologia social. Em sentido amplo,

    pode-se definir essa corrente como umatentativa de aproximação com a linhaanalítica do discurso de modelo psicana-lítico, em que se decompõe a totalidadepara se chegar ao sentido. Esse modeloopõe-se a outro modelo integrativo deanálise, de cunho mais social, que buscaarticular o discurso com uma rede inter-disciplinar de acontecimentos textuais

    e sociais.No Brasil, pesquisadores expandi-

    ram as ideias inspiradas nas obras dePêcheux, que contam hoje com muitosseguidores que procuram aplicar a con-textos brasileiros os princípios da ADfrancesa. A partir do final dos anos 1980,com a morte de Pêcheux, a teoria passoua concorrer com outras tendências fran-

    cesas de AD, a ponto de não se poderfalar mais em uma Escola Francesa de

     AD, mas de várias correntes teóricas,com pontos de contato e com suas espe-cificidades.

    Dentre elas, citam-se duas correntesde análise que têm em comum os estu-dos da enunciação e o enfoque na teoriaargumentativa. A primeira, a Semântica

     Argumentativa do Discurso, de Oswald

    Ducrot e Jean Claude Anscombre (1987),focaliza a função semântico-enunciativade elementos linguísticos, como conecto-res e operadores argumentativos no dis-curso, numa perspectiva que denominamde Teoria da Argumentação na Língua(TAL). A segunda, a Teoria Semiolinguís-tica do Discurso, proposta por PatrickCharaudeau (1983), fundamenta-se em

    bases comunicacional e interativa, se-gundo as quais o sentido é resultantede operações enunciativo-discursivasde entidades subjetivas no discurso, apartir de uma situação social bem de-terminada.

     Ao lado dessas correntes do discurso,de cunho social e histórico, apareceramtambém outras teorias sensíveis aos

    fenômenos discursivos, dentre as quaisas teorias funcionalista e variacionista,os estudos etnográficos de cunho socioin-teracional, os estudos semântico-lexicais de base semiótica e teorias mais recentesque ganharam impulso, na década de1980: as chamadas  semânticas cogniti-vas ou mais amplamente denominadosestudos sociocognitivos.

    De um modo geral, todas essas corren-tes do discurso apresentam uma críticaà teoria do representacionismo tradicio-nal que considerava a Língua como umreflexo da realidade, cuja função básicaé informar sobre o mundo, como foi de-

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    fendido em parte pela tradição do estru-turalismo. Com contraponto, as teoriasdo discurso estabelecem um consensosobre a maneira de tratar os problemasda significação discursiva, subordinando

    a referência ao mundo (sentido proposi-cional), à intersubjetividade dos interlo-cutores (sentido relacional).

    Um balanço geral e crítico das váriasteorias da Análise do Discurso pode serencontrado no Dicionário de análise dodiscurso, organizado por Charaudeau eMaingueneau, publicado em 2002, pelaEditora Seuil e traduzido em 2004 e pu-

    blicado pela Contexto, no Brasil. A obratraça uma panorâmica das diversas cor-rentes mundiais da AD, especificando osconceitos básicos, a definição dos termosutilizados e as propostas de cada áreados estudos do discurso.

    Com essa efervescência de ideias emuitas publicações, é natural que hajacerta confusão sobre os limites das

    várias linhas de pesquisa em discurso.No entanto, já podem ser definidas asprincipais características e os objetivosda área de pesquisa, que concerne à te-mática deste artigo, ou seja, a correnteintitulada Teoria Semiolinguística, quetem por objetivos principais:

    a) analisar corpora de textos escritosinstitucionalizados (daí o menor

    interesse pela análise da conversa-ção, que é área maior de interessedos estudos interativos conversa-cionais);

    b) dar relevo ao intertexto e ao inter-discurso – todo texto é perpassadopor outros textos/discursos;

    c) enfatizar o dialogismo, em umarelação privilegiada com as teoriasda enunciação;

    d) interessar-se não só pela funçãodiscursiva, como principalmente

    por visões discursivas de unidadesda Língua. O maior interesse dospesquisadores está em fatoreslinguístico-discursivos;

    e) fazer reflexões sobre como se dá ainserção dos sujeitos no discurso,com ênfase no estudo das modali-dades da enunciação, os tipos detexto, os gêneros e os modos de

    organização do discurso.Como as temáticas são bastante

    abrangentes e refletem a influência devárias outras correntes sobre o discurso,apenas as temáticas da enunciação e daintersubjetividade serão objeto de consi-derações, a seguir.

    Enunciação: a perspectiva da

    Semiolinguística

    No âmbito das teorias da enunciação,a Semiolinguística considera todo ato delinguagem como resultante da combina-ção de dois componentes – o verbal e osituacional – e privilegia a análise daimagem que o sujeito enunciador pro-

     jeta de si mesmo em seu discurso, num

    emprego de restrições e de manobras. Aconstituição dessa imagem pode ser visu-alizada por meio de um duplo recorte: oda enunciação ampliada – em que se fazo exame do contexto, incluindo os prota-

     gonistas e parceiros e as circunstâncias

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    de produção do ato comunicativo – e o da enunciação restrita – com o enfoque deprocedimentos linguísticos que se consti-tuem como marcas sinalizadoras (pistas)na construção de uma imagem ou de um

     ethos legitimador da fala enunciada.No espaço enunciativo considerado de

    forma mais ampla, ganham relevânciadois princípios básicos que fundamentamtodo ato comunicativo: o  princípio daalteridade e o princípio da identidade.

    O princípio da alteridade postula quetodo ato de linguagem é um fenômenode troca entre dois parceiros (presentes

    ou ausentes) que devem se reconhecercomo semelhantes – pois compartilhamsaberes e possuem finalidades comuns –e como diferentes – cada um desempenhaum papel particular: de sujeito emissor/ produtor do ato de comunicação (o sujeitocomunicante) e de sujeito receptor desseato de comunicação (o  sujeito interpre-tante).

    Dessa forma, cada um dos parceirosda troca linguageira está engajado numprocesso recíproco – mas não simétri-co – de reconhecimento do outro e dediferenciação; segundo Charaudeau,cada um se legitimando e legitimandoo outro através de uma espécie de olharavaliativo, o que permite dizer que aidentidade social se constrói por meio de

    um “cruzamento de olhares”  (CHARAU-DEAU, 2007).

    O  princípio da identidade, por suavez, centra-se no próprio indivíduo; éele que permite dizer: quem sou real-mente? Que imagem de mim projeto

    para o outro? A identidade desse sujeitoé bastante complexa. Nela se articulamdados biológicos, dados psicossociaisatribuídos pelos outros e dados construí-dos pelo próprio comportamento (o que se

    pretende ser). Todos esses componentesconduzem à construção de duas identi-dades: a identidade social e a identidadediscursiva.

     A identidade social precisa ser tam-bém criada pelo comportamento lingua-geiro do sujeito falante, podendo ser,portanto, reconstruída ou mascarada.Já a identidade discursiva necessita de

    uma base que se encontra na identidadesocial. É esta última que dá ao sujeitoseu “direito à palavra”, o que está fun-damentado na sua legitimidade e na suacredibilidade.

    Por sua vez, todo ato de comunicaçãoconstitui-se num problema, pois comuni-car é também se arriscar à incompreen-são ou à negação, o que faz o autor afir-

    mar que comunicar é sempre se lançarem uma “aventura”. A ameaça constituio próprio ato de comunicação em si e oreconhecimento recíproco que tem de serconstruído socialmente pelos parceirosenvolvidos no ato de comunicação. Comotodo sujeito se situa no centro de uma si-tuação de comunicação e está em relaçãocom um parceiro, é essa relação que de-

    fine as características identitárias e con-tratuais do ato comunicativo: presençaou ausência (física) dos parceiros, o canalusado na transmissão, a diversidade decódigos, os comportamentos discursivosesperados na troca, enfim, inúmeros são

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    os elementos que participam dos rituaise caracterizam uma situação interativa.

     Além dos dois princípios citados –alteridade e identidade –, no ato delinguagem, estão presentes dois outros

    que o fundamentam: o da influência eo da regulação, que contribuem paracompletar o quadro enunciativo: en-quanto aquele procura envolver e afetaremocionalmente o parceiro, alvo de suainfluência, o princípio da regulação,que consiste no conjunto de restriçõesdo sistema, torna possível e necessáriorecorrer-se a estratégias que regulam e

    permitem a intercompreensão.Se, para comunicar-se, como se está

    vendo, há sempre a necessidade de umoutro, o modelo comunicacional da Se-miolinguística compreende um ato detroca entre dois parceiros, ligados peloprincípio da intencionalidade e da regu-lação, realizado em uma determinadasituação de influência comunicativa e

    regulado por um contrato comunicativo.Por se tratar de um conceito-chave naconstituição do ato de linguagem, esteserá considerado, mais detalhadamente,a seguir.

     O contrato de

    comunicação

     A noção de contrato assenta-se nopressuposto de que seres sociais per-tencentes a um mesmo corpo social es-tabelecem uma relação de “conivência”e de cumplicidade quanto ao uso doselementos de sua comunicação, por isso

    lançam mão de estratégias que permi-tirão colocar em cena suas intenções (oque pode ser feito de forma conscienteou não).

    Pode-se afirmar, então, que todo ato

    de comunicação social supõe um de-terminado contrato  social. Esse termo,tomado de empréstimo do domínio jurí-dico, pressupõe que os indivíduos sejamcapazes de entrar em acordo a propósitodas representações de linguagem. Naspalavras de Charaudeau (2008, p. 56),

     A noção de contrato pressupõe que os in-divíduos pertencentes a um mesmo corpo

    de práticas sociais estejam suscetíveis dechegar a um acordo sobre as representaçõeslinguageiras dessas práticas sociais. Emdecorrência disso, o sujeito comunicantesempre pode supor que o outro possui umacompetência linguageira de reconhecimentoanáloga à sua. Nessa perspectiva, o ato delinguagem torna-se uma proposição que oEU faz ao TU e da qual espera uma contra-partida de conivência.

    O contrato de comunicação permite

    aos parceiros se reconhecerem um aooutro por meio de traços identitáriose reúne as condições necessárias paraa realização do ato de comunicação: oobjetivo do ato – que os sobredetermina,o objeto temático de troca e as coerçõesmateriais determinadas pelas circuns-tâncias. Dessa forma, o ato compõe-sede um  espaço de restrições, isto é, deregras que não podem ser infringidaspelos parceiros, sob pena de não havera comunicação, e de um espaço de mano-bras que compreende os diferentes tiposde configurações discursivas de que osujeito comunicante dispõe para atingirseus objetivos.

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     Ao propor que no ato de linguagemhá uma situação de troca que dependede uma intencionalidade e se realiza emespaços de restrição, Charaudeau propõeum modelo de estruturação desse con-

    trato em três níveis: situacional, comu-nicacional e discursivo. O atendimentoa essas condições permite que se chegueà construção do texto como um processodiscursivo, foco de interesse de análisenesta abordagem.

     Assim, o nível situacional dá contado espaço externo, “lugar” que deter-mina a  finalidade do ato (para que se

    fala?), a identidade dos parceiros (quemfala a quem?), o domínio do saber queé veiculado pelo objeto da troca (sobreo que se fala?) e o dispositivo (por meiodo que se fala?). O nível comunicacional constitui-se no “lugar” onde estão as ma-neiras de falar, ou seja, o que vai definiros papéis linguageiros dos sujeitos, o quevai também lhes garantir o direito à fala,

    em função dos dados situacionais (comose fala?). Por fim, o nível discursivo corresponde ao “lugar” de intervençãodo sujeito enunciador e deve atender àscondições de legitimidade, de credibili-dade e de captação.

    De acordo com a Teoria Semiolin-guística, o ato de comunicação  é umfenômeno que combina o dizer e o fazer,

    articulados num duplo circuito comuni-cativo – circuito externo ( fazer) e circuitointerno  (dizer) – indissociáveis um dooutro. O  fazer  é o lugar da instância

     situacional em que atuam os parceiros– sujeitos comunicante e interpretante– que são os seres sociais da troca; já o

    dizer é o lugar da instância discursiva, éo espaço da encenação do dizer, da qualparticipam os  protagonistas – sujeitosenunciador e sujeito destinatário – quesão os seres da palavra.

    Nesse sentido, o ato de comunicação não pode ser visto como uma simplesprodução de uma mensagem feita porum emissor em direção a um interlo-cutor, mas como um encontro dialéticode quatro instâncias subjetivas que vaideterminar os dois processos:

    • o processo de produção: um EU--comunicante que se dirige a um

    Tu-destinatário;• o processo de interpretação: um

    Tu-interpretante que constrói umaimagem do Eu-comunicante peloque ele apresenta como sujeitoenunciador.

    Os sujeitos comunicante (EUc) einterpretante (EUi) são, portanto, naconcepção do autor, “sujeitos de ação”

    que realizam uma encenação ou mise-en--scène discursiva no ato de comunicação,quando atuam como  parceiros. A essessujeitos, no entanto, se ligam mais dois,que são de “ordem discursiva”: o sujeitocomunicante se anuncia como sujeitoenunciador (EUe) e constrói uma ima-gem de si, ao mesmo tempo em que sedirige a um destinatário (TUd), também

    idealizado. Assim, por esse processo in-terlocutivo, ocorre um desdobramentodos lugares enunciativos, realizados porquatro enunciadores.

    Dessa forma, a Semiolinguística con-sidera o ato de comunicação como um“jogo”, ou seja, o ato de comunicação se

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    mantém em uma constante manobrade equilíbrio e de ajustamento entre asnormas (restrições) de um dado discursoe a margem de manobras permitida pelomesmo discurso.

    Nessa perspectiva, todos os atos decomunicação são considerados como “en-cenações” (no sentido teatral mesmo dotermo), que resultam da combinação deuma determinada situação de comunica-ção com uma determinada organizaçãodiscursiva e com um determinado empre-go de marcas linguísticas. Isso mostraa necessidade de uma competência de

    produção/interpretação, que ultrapassao simples conhecimento das palavras esuas regras de combinação, que requerum saber bem mais global, sobre asoperações discursivas realizadas e quecompreende os elementos contextuaispróprios da interação social.

     Operações discursivas

    (na língua)

    O processo de discursivização nalíngua corresponde a um conjunto de es-tratégias capaz de transformar a línguaem discurso, ou seja, são as operaçõesque permitem fazer a passagem do sig-nificado (sentido de língua) para a sig-nificação (sentido de discurso). De fato,

    vocábulos, como homem, mulher, viagem,por exemplo , têm sentido potencial e sóganham sentido real quando atualizadosdiscursivamente. Assim, no enunciado“O homem é mortal” (Sócrates), o termorefere-se ao ser humano, mas colocado

    numa placa, em uma porta ao fundo deum bar, por exemplo, HOMEM ganhasignificação de banheiro masculino eMULHER, de banheiro feminino.

     A criação de um significado discur-

    sivo não depende apenas de relaçõesmorfossintáticas ou semânticas entreos elementos da língua (entidades, atri-butos e processos no contexto verbal),mas ganham sentido na relação desseselementos com a situação social dos in-teragentes, ou com o conjunto de fatoresextralinguísticos ou contextuais.

    Nesse processo de semiotização do

    mundo, ou nessa passagem do mundo asignificar para o mundo significado dis-cursivamente, podem-se distinguir duasoperações fundamentais – o processoda transformação e o processo da transa-ção –, que ocorrem em níveis frasal etextual, permitindo a transferência domundo real para o mundo do discurso.

    Em um primeiro nível, o emprego da

    língua envolve diversas operações discur- sivas de transformação: as operações deidentificação, ou nomeação de todos osseres, processos e entidades, as opera-ções de caracterização, ou de adjetivaçãoem sentido amplo, as de processualiza-ção, que pertencem ao universo do verbo,as de modalização ou de cunho modali-zador e as de relação, responsáveis pela

    conexão entre os elementos. Em um segundo nível, estão as ope-

    rações que concorrem para a construçãotextual, constituindo-se o  processo detransação, ou de expressão do conteúdotextual. As operações do  processo de

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    transformação são efetuadas sob liber-dade vigiada, segundo as diretivas do

     processo de transação (CHARAUDEAU,2008, p. 68), que confere a elas uma orientação de sentido. Ou seja, não se

    pode considerar isoladamente cada pro-cesso, uma vez que são interdependentese complementares.

    Resumindo, qualquer ato de comu-nicação pode ser representado por umdispositivo, cujos componentes são osseguintes:

    a) a  situação de comunicação, deordem psicossocial, quadro físico

    e mental no qual se encontram osparceiros de uma troca linguagei-ra, ligados pelo contrato comunica-tivo, em função da identidade dosparceiros e das intenções comuni-cativas do sujeito e de seu projetode  fala;

    b) os modos de organização do discur- so, que se constituem de princípios

    de organização da matéria lingua-geira, que constam do processode transação e são dependentesda finalidade comunicativa dosujeito falante (descrever, narrar,argumentar). Esses procedimentossão expressos em quatro modos: o

     enunciativo, o descritivo, o narra-tivo e o argumentativo, cada um

    com uma função de base, que é afinalidade discursiva do projetode fala do locutor: enunciar, des-crever, narrar e argumentar, emais um princípio de organização ou modo enunciativo que marca a

    posição do locutor em relação aointerlocutor, ao dito e aos outrosdiscursos;

    c) a língua, que constitui o materialverbal organizado em sistemas

    formais significantes;d) o texto – resultado material do ato

    de comunicação – que é testemu-nha das escolhas conscientes ouinconscientes que os sujeitos rea-lizam dentro das categorias de lín-gua e dos modos de organização dodiscurso, em função das restriçõeslinguístico-discursivas impostas

    pelo quadro físico e mental de cadasituação.

    O enunciativo, nos demais modos, de-termina a organização peculiar da cons-trução descritiva, da lógica narrativa eda lógica argumentativa, como tambémos aspectos da encenação de cada umdeles – seus efeitos e procedimentos. As-sim, no descritivo, observam-se a forma

    de caracterizações, identidades e status do narrador e dos demais atores; nonarrativo, os procedimentos semânticose discursivos que se dão no decorrer dasações e dos acontecimentos; e, no argu-mentativo, elementos que compõem o

     status próprio de cada um desses modos. A preferência do autor pela expressão

    modo de organização do discurso, em lu-

    gar do termo tipo textual, empregado poralguns teóricos, parece atender priorita-riamente à necessidade de se destacaro papel da pessoa do discurso em todosos passos da escolha das categorias dalíngua e da organização do discurso, e,

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    mais ainda, à relação de dependência detudo quanto acontece no ato de comuni-cação aos parceiros desse ato, que sãoos verdadeiros organizadores de cada“encenação” discursiva.

     A função desses sujeitos é, então, atu-alizar o discurso no ato de comunicação,adotando o signo verbal como suporte.Por outro lado, a expressão modo deorganização sinaliza a organização doscomponentes que são reciprocamente as-sociados e gerenciados pela subjetividadedos interlocutores que produzem senti-dos, por meio dos signos linguísticos.

    Por fim, uma observação importantea respeito do modo de organização enun-ciativo, que se define como um direcio-nador dos outros modos de organização eque, por isso também, dispõe de um sta-tus especial na organização do discurso:o modo enunciativo “comanda” os outrose intervém na mise-en-scène de cada umdos outros três, dando testemunho da

    maneira pela qual o “sujeito comunican-te” se apropria da língua e intervém paraorganizar o discurso. São três as funçõesdo modo enunciativo, as quais apontam,respectivamente, para o estabelecimentode três atos locucionários, de acordo coma ação do locutor/enunciador:

    • modo alocutivo: estabelece umarelação de influência  do locutor

    sobre o interlocutor (posição emrelação ao interlocutor: EUTU);

    • modo elocutivo: revela o  pontode vista  do locutor (posição queassume em relação ao mundo:EUELE);

    • modo delocutivo: testemunha odito (posição em relação a outrosdiscursos: ELE).

    Convém lembrar que, sempre aotomar a palavra, o sujeito comunicante

    constrói uma imagem de si próprio e deseu interlocutor e é inegável que toda“maneira de dizer” induz a uma ima-gem que pode facilitar ou condicionara boa realização de um projeto. Em ou-tras palavras, por meio da enunciação,revela-se a personalidade, o caráter dosenunciadores.

     A construção de uma imagem de si

    está, pois, fortemente ligada à noçãode enunciação, que já fora colocada nocentro de atenção da análise linguísticapelos trabalhos de Émile Benveniste.Com efeito, o ato de produzir um enun-ciado remete necessariamente a um lo-cutor que utiliza a língua e nela inscrevesua subjetividade e dialoga com outrassubjetividades.

    Essa imagem de si, projetada pelolocutor através de seu discurso, é de-signada, na Retórica tradicional, como

     ethos. Nesse caso, está mais em jogo acapacidade de transmitir credibilidade,de persuadir o alocutário pelo discursodo que o caráter propriamente dito dolocutor.

    No âmbito da análise do texto como

    discurso, deve-se enfatizar a importânciadesse novo paradigma do enfoque enun-ciativo que prioriza observar a presençado sujeito emissor no discurso em relaçãodireta com seu interlocutor. Nessa pers-pectiva, a língua deixa de ser encarada

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    como um meio de informação ou de re-ferência ao real e passa a ser vista peloâmbito da influência e da interatividadedos seres discursivos na reconstrução darealidade.

     A seguir, apresenta-se uma propostade análise textual discursiva, segundoparâmetros da Teoria Semiolinguística.

    Análise textual-discursiva

    sob o ponto de vista da

    Semiolinguística

    Considerando-se a Teoria Semiolin-guística do Discurso, de Patrick Charau-deau, e os principais conceitos propostospor ele – e já apresentados na parte teó-rica deste artigo –, observe-se, a seguir,a análise de uma crônica jornalísticaintitulada “O futuro do GPS”, escrita por

     Verissimo e publicada no jornal O Globo,em 31 de dezembro de 2009.

     Veja-se a crônica:

    O futuro do GPS 

    Verissimo

     Ainda não me refiz da primeira vez em quevi um GPS funcionando. GPS, já sabia todomundo menos eu, quer dizer Sistema deposicionamento Global, em inglês. É umaparelho que mostra onde estamos numa

    telinha e diz como chegar aonde queremosir. Diz, literalmente. O danado do aparelhonão apenas fala como é poliglota: você podeescolher a língua com a qual será guiado.Durante a Copa na Alemanha, que foiquando conheci o engenho mágico, éramosorientados por uma simpática portuguesa

    que não nos deixava confundir ingang comaufgang, chamava rotatória de “rotunda”e nunca nos falhou. Nem comecei a tentarcompreender como a visão de um satéliteestacionado sobre nossas cabeças chegavano carro e se transformava em voz comsotaque português. Eu ainda não sei comofunciona grampeador.Mas posso imaginar como será o futuro doGPS. É provável que um dia ele assuma ovolante e dispense o motorista, eliminandouma etapa no processo de dar direções e sóusando sua voz para gritar com as criançasno banco de trás.E não é impossível que, com o tempo, surjauma espécie de GPS moral, um sistema de

    orientação não para veículos, mas para gen-te, que mostre o caminho a ser seguido, osdesvios éticos a serem evitados e a melhorsaída para qualquer “rotunda” de incerte-zas que possa nos comprometer. O aparelhonão seria maior que um celular que cadaum carregaria no bolso ou na bolsa.Porque a verdade é que todos os nossosantigos sistemas de orientação – o reli-gioso, o familiar, o jurídico, o filosófico– falharam, somos uma geração à deriva,

    sem giroscópio. Com o aperfeiçoamento doGPS, seríamos guiados por uma entidadesuperior que tudo vê e tudo sabe, um sa-télite estacionário sem nenhuma dúvidasobre o que é certo e o que é errado e o quenos convém. Bastaria levar o aparelho aoouvido e escutar seus conselhos. Na voz queescolheríamos.

     Levando-se em conta que a Semiolin-

    guística, ao estudar o texto, privilegia aimagem do sujeito enunciador projetadano seu discurso e que essa imagem podeser observada na perspectiva da enuncia-ção ampliada (exame do contexto situa-cional) e da enunciação restrita (exame

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    dos procedimentos linguísticos), inicia-seesta análise, abordando-se os princípiosda identidade e da alteridade.

    O sujeito produtor do ato de comuni-cação é o cronista Verissimo, e o sujeito

    receptor desse ato é o leitor da crônica. Ambos se reconhecem, na medida emque partilham saberes, o que, aliás,torna possível o primeiro escrever parao segundo, e o segundo interpretar oprimeiro. Tem-se, assim, identificado, o

     princípio da alteridade nesse processo.O  princípio da identidade , para

    Charaudeau, porém, é mais complexo,

    pois o indivíduo tem duas identidades,sendo uma social e outra discursiva.

     A identidade social de Verissimo estárelacionada à figura de um homem emtorno dos setenta anos, gaúcho e queé cronista do jornal O Globo. A identi-dade discursiva está relacionada a umindivíduo que tem direito à palavra eque, por meio dela, constrói sua própria

    imagem, transmitindo para o leitor suasvivências, suas concepções do mundo,sua opinião sobre os acontecimentos,comportamentos, invenções, tais como ainvenção do GPS. Destaque-se que umaidentidade é determinada pela outra:

     Verissimo tem direito à palavra por serquem ele é socialmente – um cronista doO Globo –, e é um cronista do O Globo 

    por criar, através de seu comportamentolinguageiro, o homem que representa ser.

    Partindo-se das duas identidades,encontram-se os quatro sujeitos identifi-cados por Charaudeau: ligados aos seres

     sociais estão os sujeitos que “fazem”, ou

    seja, o EU comunicante (EUc) – Veris-simo, o ser “de carne e osso” – e o TUinterpretante (TUi) – o leitor de suascrônicas, também ser “de carne e osso”;ligados aos  seres discursivos, estão os

    sujeitos que “dizem”, isto é, o EU enun-ciador (EUe) – o falante/escritor ideal,o ser discursivo – e o TU destinatário(TUd) – o ouvinte/leitor ideal.

    No primeiro parágrafo, o cronistaintroduz a temática de sua crônica – oGPS – e a trata da seguinte forma.

    O EUc produz atos de linguagem,construindo a imagem de um EUe que

    se surpreende com o funcionamento deum objeto chamado GPS, ao relembraro episódio em que ele (EUc) viu pelaprimeira vez um aparelho daquele tipo,funcionando. EUe descreve a funcionali-dade do GPS ( É um aparelho que mostraonde estamos numa telinha e diz comochegar aonde queremos ir) e expressaa admiração de EUc, ao declarar que o

    aparelho realmente fala e é poliglota.Para defender a tese do poliglotismo,dirige-se ao leitor (TUd), afirmandodizer que o aparelho é poliglota porqueele, leitor, ao usar um, poderá escolhera língua com a qual será guiado.

    EUe narra e descreve o episódio emque EUc conheceu um GPS ( Durantea Copa na Alemanha, que foi quando

    conheci o engenho mágico éramos orien-tados por uma simpática portuguesa quenão nos deixava confundir ingang comaufgang, chamava rotatória de “rotunda”

     e nunca nos falhou.), mas diz não tertentado compreendê-lo, já que não sabia

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    bem como um grampeador – aparelhomanual tão mais simples – funcionava.

    Depois de reconhecer que não en-tendia bem o funcionamento de umgrampeador, concedendo razão a outros

    pontos de vista existentes ( Eu ainda não sei como funciona grampeador), EUe, noterceiro parágrafo, faz uma restrição,dizendo, de seu ponto de vista, que podeimaginar como será o futuro de um GPS.Descreve o funcionamento do GPS dofuturo ( É provável que um dia ele as-

     suma o volante e dispense o motorista, eliminando uma etapa no processo de

    dar direções e só usando sua voz para gritar com as crianças no banco de trás)e apresenta a tese/hipótese de que, como tempo, poderia surgir uma espécie deGPS moral, cuja função seria orientaras pessoas quanto a questões éticase quanto a melhores soluções para osproblemas.

    No quinto parágrafo, EUe defende a

    tese da necessidade de um GPS moral, ao justificá-la: Porque a verdade é que todosos nossos antigos sistemas de orientação

     – o religioso, o familiar, o jurídico, o filo- sófico – falharam, somos uma geração àderiva, sem giroscópio. Por fim, concluio texto, explicando o seu funcionamento(Com o aperfeiçoamento do GPS, sería-mos guiados por uma entidade superior

    que tudo vê e tudo sabe, um satélite es-tacionário sem nenhuma dúvida sobre oque é certo e o que é errado e o que nosconvém. Bastaria levar o aparelho aoouvido e escutar seus conselhos. Na vozque escolheríamos.).

    Paralelamente à construção de umEUe, EUc imagina um TUd (leitor ideal)com quem EUe se comunica e a quemrevela, de maneira insólita, a preocupa-ção de EUc com o fracasso dos antigos

    sistemas de orientação do homem – oreligioso, o familiar, o jurídico, o filosófico– e com sua consequente falta de rumo.

     A par do processo de produção, existeo processo de interpretação segundo oqual o TUi (ouvinte/leitor real) constróia imagem de um EUe (falante/escritorideal) a partir das estratégias utilizadaspor este e, dessa forma, formula hipóte-

    ses sobre o EUc (falante/escritor real).No caso da crônica em apreço, o ob-

     jetivo do EUc é que o TUi, por meio dodiscurso do EUe, atente para os proble-mas morais da vida hodierna. O modo,porém, por intermédio do qual o EUechama a atenção do TUd para a crisemoral, é surpreendente: fala do seu des-conhecimento acerca do funcionamento

    de um aparelho chamado GPS, relatadescritivamente a circunstância emque o conheceu, declara que imagina ofuturo do aparelho e revela a possibili-dade/necessidade do surgimento de umGPS moral, defendendo rapidamentesua tese. Dessa forma, o TUi formulauma hipótese sobre o EUc de que este(Verissimo) preocupa-se com as questões

    morais de sua contemporaneidade, mastrata de um assunto sério, de maneiraagradável e até graciosa, usando umaestratégia bastante singular: um textoque trata do futuro do GPS.

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    Partindo-se do princípio de que umato de linguagem pode ser produzidoou interpretado, isto é, que no ato delinguagem há uma situação de troca, éimportante analisar a crônica, conside-

    rando-se o modelo de estruturação dosatos de linguagem nos seus três níveis:

     situacional, comunicacional e discursivo.Os atos de linguagem que constituem

    o texto em estudo têm por  finalidade chamar a atenção do leitor para umproblema que vive a sociedade: a faltade ética. A identidade dos parceiros datroca comunicativa é caracterizada pela

    presença do EUc, o cronista Verissimo,e o TUi, o leitor real da crônica. O do-mínio do saber corresponde à temáticade que se fala: no caso em estudo, “ofuturo do GPS”. Por fim, o dispositivo, ascircunstâncias materiais por intermédiodas quais ocorre a troca comunicativa,equivale ao jornal O Globo. Esses dadosconfiguram o primeiro nível de estru-

    turação do ato de linguagem: o nívelsituacional.

    O nível comunicacional de estrutu-ração do ato de linguagem, que está re-lacionado aos modos de dizer, aos papéislinguageiros dos sujeitos, materializa-seno texto em estudo por intermédio, porexemplo, de encadeamentos semântico--discursivos como estes: um enunciado

    funciona, ao mesmo tempo, como justi-ficativa para o que se diz no enunciadoanterior e como concessão ao ponto devista de outro enunciador (TUd), sendo,a seguir, anulado argumentativamentepelo enunciado restritivo imediato. É oque se percebe no recorte

    Nem comecei a tentar compreender comoa visão de um satélite estacionado sobrenossas cabeças chegava no carro e se trans-formava em voz com sotaque português. Euainda não sei como funciona grampeador.

    Mas posso imaginar como será o futuro do

    GPS.[...],

    em que o enunciado  Eu ainda não seicomo funciona grampeador: a) é justi-ficativa para o fato de o cronista nãoter tentado entender o funcionamentodo GPS; b) funciona como enunciadoconcessivo em relação ao seguinte, Mas

     posso imaginar como será o futuro doGPS,  tendo este último poder de anu-

    lar argumentativamente o anterior. Aanulação é observada na sequência dotexto cujo teor são as características doGPS do futuro, e não algo relacionado aofuncionamento do grampeador.

    O nível discursivo de estruturaçãodo ato de linguagem, aquele que constituio lugar de intervenção do sujeito enuncia-dor e que deve atender a determinadas

    condições de realização, é identificado apartir das seguintes características de

     Verissimo:a) Ele é detentor de legitimidade, o

    que lhe confere o direito de chamara atenção do leitor sobre proble-mas da atualidade, discorrendosobre um GPS. A autoridade dealertar o leitor, por meio de uma

    técnica insólita, lhe é dada pelo jornal O Globo, empresa da qualele é cronista;

    b) Ele também tem credibilidade, ouseja, é considerado um indivíduocujas opiniões e forma de expô-

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    -las são pertinentes, fato que lhepermite tratar de um assunto sériopor meio de recursos nos quaismistura realidade e ficção;

    c) Ele atende à condição de capta-

    ção, na medida em que investena sedução e persuasão do leitor.Para isso, escolhe variadas atitu-des discursivas que revelam suafinalidade, identidade e propósito,construindo, ao mesmo tempo, suaprópria legitimidade, credibilidadee captação. Como exemplo, pode--se observar o texto do ponto de

    vista dos modos de organizaçãodo discurso, identificando-se, emsua construção, o emprego dos va-riados modos, quando ele descreveum GPS, narra a situação em queconheceu o aparelho, apresentauma tese acerca do seu futuro eargumenta para defendê-la.

     Tem-se, assim, no preenchimento das

    condições de l egitimidade, credibilidadee captação, o terceiro nível do modelo deestruturação dos atos de linguagem, istoé, o nível discursivo.

    Observando-se, agora, a crônica jor-nalística quanto ao contrato de comu-nicação em que ela se constitui, tem-seum texto que apresenta semelhançascom o texto exclusivamente informativo,

    pois, assim como o repórter, o cronistase inspira nos acontecimentos diáriospara constituir a base da crônica. Poroutro lado, distingue-se da reportagempelo fato de o cronista dar a esses acon-tecimentos um toque próprio, incluindo

    em seu texto elementos como ficção,fantasia, elementos que o texto essen-cialmente informativo não contém.

     A crônica de Verissimo é um textoque trata de um aparelho que, não ha-

    via muito tempo, surgira como mais uminvento tecnológico; portanto, se inspiraem acontecimentos diários. O surgimen-to do GPS, entretanto, é tratado fantasio-samente pelo autor, pois este o imagina,no seu futuro, como um aparelho que,provavelmente, conduzirá o automóvel,dispensando o próprio motorista. Afantasia se estende ao levantamento da

    possibilidade do surgimento de um GPSmoral, fato que caracteriza o apelo à fic-ção. Tem-se, assim, sob esses aspectos,uma crônica jornalística.

    No que se refere às característicasformais, a crônica, na maioria dos casos,é um texto curto e narrado em primeirapessoa, ou seja, o próprio escritor dialo-

     ga com o leitor. Geralmente, apresenta

    linguagem simples, espontânea, situadaentre a linguagem oral e a literária. Taiscaracterísticas são observáveis no textoem apreço: Ainda não me refiz da primei-ra vez em que vi um GPS funcionando.

     / O danado do aparelho não apenas falacomo é poliglota: você pode escolher alíngua com a qual será guiado.

    Como se constata, o texto de Verissi-

    mo segue o espaço de restrições do contra-to de comunicação, em que se constitui.Identifica-se um texto construído em 1ªpessoa, o que significa que o locutor ex-pressa seu ponto de vista, configurando--se linguisticamente. Esta é a marca da

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    modalidade elocutiva, de Charaudeau,modalidade constitutiva do modo enun-ciativo de organização do discurso, sendoesse modo de organização uma categoriade discurso que testemunha o modo como

    o sujeito falante trata a mise-en-scène comunicativa.

    O uso da expressão “danado apa-relho”, que, ao mesmo tempo em queretoma o referente GPS, introduz umnovo referente – não se trata mais deum simples GPS, mas de um aparelhoque faz coisas que não se imagina, jáque fala e é poliglota –, também é uma

    prova de que o  espaço de restrições  érespeitado: trata-se do emprego de umaexpressão de caráter informal, típica daoralidade, e das crônicas jornalísticas. Apropósito, no segundo parágrafo, o GPS évisto como “engenho mágico”, expressãotipicamente lúdica e informal, caracte-rísticas do contrato de comunicação dogênero em estudo.

    No que diz respeito ao espaço de estra-tégias (ou de manobra), que todo contratode comunicação permite seja construído,verificam-se variados caminhos discursi-vos percorridos pelo colunista.

    Destaca-se, em primeiro lugar, o modocomo a matéria linguageira é organiza-da. A finalidade comunicativa do sujeitoescritor é falar do GPS, dizer o quanto a

    invenção o surpreende, o que o seu sur-gimento provoca em sua imaginação e, apartir do imaginário, despertar o leitorpara um problema daquele momento:a ausência de valores que orientem ohomem em sua caminhada.

    Para cumprir a finalidade comuni-cativa, o locutor descreve, narra, argu-menta, utilizando-se dos quatro modosde organização do discurso.

    Como se observa nas crônicas jorna-

    lísticas dos últimos tempos, o recurso atodos os modos de organização tem-seconstituído numa marca do  espaço de

     estratégias, na medida em que cada cro-nista privilegia um dos modos, ou usaigualmente ou variavelmente todos. Nacrônica “O futuro do GPS”, observa-sea recorrência a todos os modos de orga-nização do discurso. O modo descritivo 

    é observado, por exemplo, no momentoem que Verissimo define funcionalmenteum GPS: É um aparelho que mostra onde

     estamos numa telinha e diz como chegaraonde queremos ir.

    O modo narrativo – juntamente como descritivo – é encontrado no trecho emque o cronista relata a situação em queconheceu o aparelho:  Durante a Copa

    na Alemanha, que foi quando conheci o engenho mágico, éramos orientados poruma simpática portuguesa que não nosdeixava confundir ingang com aufgang,chamava rotatória de “rotunda” e nuncanos falhou.

    O modo argumentativo é verificado,por exemplo, no segundo e terceiro pa-rágrafos: E não é impossível que, com o

    tempo, surja uma espécie de GPS moral[...]. Porque a verdade é que todos osnossos antigos sistemas de orientação – oreligioso, o familiar, o jurídico, o filosó-

     fico – falharam, somos uma geração àderiva, sem giroscópio.

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    O modo enunciativo, sempre presentenos textos, já que assinala a posição dolocutor em relação ao interlocutor (mo-dalidade alocutiva), ao dito (modalidadeelocutiva) e aos outros discursos (modali-

    dade delocutiva), pode ser observado aolongo da crônica.

     A modalidade alocutiva é encontradano trecho você pode escolher a língua coma qual será guiado, pois o locutor implicao interlocutor (você) no momento em queo informa ter ele a opção de escolher alíngua que o guiará. Vale destacar queo trecho não representa apenas uma in-

    formação, mas também um argumentoque defende a tese de que o aparelho époliglota. O locutor dirige-se diretamen-te ao interlocutor, com a finalidade deconvencê-lo da veracidade de sua tese.

     A modalidade elocutiva está presenteem diversos excertos da crônica, taiscomo: Nem comecei a tentar compreendercomo a visão de um satélite estacionado

     sobre nossas cabeças chegava no carro e se transformava em voz com sotaque por-tuguês. Eu ainda não sei como funciona

     grampeador. Nesse recorte, observa-seque o locutor não implica o interlocutorno ato locutivo, mas revela o seu próprioponto de vista sobre aquilo que enuncia(comecei, nossas, Eu não sei): a sua igno-rância acerca do funcionamento do GPS

    e do próprio grampeador. A modalidade delocutiva é encontra-

    da em passagens como estas: É provávelque um dia ele assuma o volante e dispen-

     se o motorista, eliminando uma etapa no processo de dar direções e só usando sua

    voz para gritar com as crianças no bancode trás. /  E não é impossível que, com otempo, surja uma espécie de GPS mo-ral, um sistema de orientação não paraveículos, mas para gente, que mostre o

    caminho a ser seguido, os desvios éticosa serem evitados e a melhor saída paraqualquer “rotunda” de incertezas que

     possa nos comprometer. / [...] a verdade é que todos os nossos antigos sistemasde orientação – o religioso, o familiar, o

     jurídico, o filosófico – falharam [...].Nesses recortes, constata-se que o

    locutor e o interlocutor estão desligados

    do ato locutivo. No primeiro exemplo,observa-se a modalidade do provável sendo lexicalizada por uma oração moda-lizadora ( É provável que). O mesmo tipode lexicalização é verificado no segundoexemplo, identificando-se a modalidadedo possível (não é impossível que), e noterceiro, veiculando a modalidade dacerteza (a verdade é que). É importante

    assinalar que, embora os sujeitos nãoestejam diretamente envolvidos no atolocutivo – no sentido de que não ocorremmarcas de 1ª e 2ª pessoas –, o empregodo distanciamento tem um significado:trata-se de uma estratégia do sujeitoenunciador de inserir sua posição diantedo enunciado que produz, sem sinalizarconcretamente a sua presença.

     Vale destacar também que o cronista,a partir do segundo parágrafo, passa ausar modalidades que indicam a suafalta de certeza em relação ao que diz( É provável que; não é impossível que). Amesma falta de certeza é observável no

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    uso de verbos no futuro do pretérito: Oaparelho não seria maior que um celularque cada um carregaria no bolso ou nabolsa. / Com o aperfeiçoamento do GPS,

     seríamos guiados por uma entidade supe-

    rior que tudo vê e tudo sabe, um satélite estacionário sem nenhuma dúvida sobreo que é certo e o que é errado e o que nosconvém. / Bastaria levar o aparelho aoouvido e escutar seus conselhos. Na vozque escolheríamos.

    No primeiro parágrafo, não se encon-tram orações modalizadoras denotandoincerteza nem verbos no futuro do preté-

    rito, e isso se deve ao fato de que, nessaparte do texto, Verissimo está tratandode questões do mundo real, ou seja, domomento em que conheceu um GPS,da funcionalidade do aparelho e de suaincompreensão quanto ao seu funciona-mento.

    No segundo e terceiro parágrafos,entretanto, ele passa a tratar a temática

    do ponto de vista ficcional, fantasioso – oGPS do futuro que substitui o motoris-ta; o GPS moral que orienta o homemquanto ao caminho a trilhar –, o que oleva ao emprego de estratégias como ode orações modalizadoras, veiculando asmodalidades do provável e do possível,e de verbos no futuro do pretérito, ex-pressando o valor semântico de hipótese.

    Nesses dois parágrafos, identifica-se,mais uma vez, o espaço de estratégias aque todo contrato de comunicação per-mite recorrer, sendo ele explorado pelocronista para imprimir ao seu texto aideia de ficção.

    Destaque-se, porém, que o últimoparágrafo é introduzido por uma oraçãomodalizadora que veicula a modalidadeda certeza, bem como os tempos verbaisque expressam a realidade  – Porque a

    verdade é que todos os nossos antigos sistemas de orientação – o religioso, o familiar, o jurídico, o filosófico – falha-ram, somos uma geração à deriva, sem

     giroscópio.Essa alternância de estratégias se

    explica justamente pela intercalaçãoentre ficção e realidade. É real que todosos nossos antigos sistemas de orienta-

    ção – o religioso, o familiar, o jurídico,o filosófico – falharam; que somos uma

     geração à deriva, sem giroscópio. É ficçãoo surgimento de um GPS que substituio motorista e o surgimento de um GPSmoral. Verissimo usou a ficção como ummodo diferente de chamar a atençãodo leitor para o problema dos valoresmorais que acomete o homem. Tem-se,

    nessa alternância, mais uma prova deque o espaço de estratégias foi utilizado,e com mestria, como era de se esperardo cronista em apreço.

    Considerações finais

    Conclui-se esta análise com a ob-servação de que a Semiolinguística do

    Discurso é uma teoria que oferece outraspossibilidades de investigação do texto/ discurso, além das exploradas aqui –identidade social e identidade discursivaa partir da teoria dos sujeitos; os níveis

     situacional, comunicacional e discursivo 

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    de estruturação dos atos de linguagem;contrato de comunicação e espaços derestrição e manobra; modos de organiza-ção do discurso; modalidades elocutiva,alocutiva e delocutiva. Acredita-se, po-

    rém, que a exposição teórica e a análiseda crônica jornalística aqui propostaspermitam ao leitor deste artigo ter umavisão geral acerca da teoria de PatrickCharaudeau e de sua produtividade naleitura e interpretação de textos.

    Text as a discourse: a semiolinguistic

     way of analysis

    Abstract

    This article proposes the analysis ofa text as discourse, based on the Se-miolinguistique theory of discourse(Charaudeau, 1983, 2008). We intendto characterize the act of language asan interenunciative one, consideringabout the project of influence of thesubject over the receptor, regulated by

    one contract of communication and ina communicative situation. Throughthe analysis of a text by L. F. V, publi-shed in O GLOBO, in 2009, the articleis concentrated on the description ofsubjective action, in the process of“transformation and transation”, thatconstructs the different genres of textand discourse.

     Keywords: Enunciation. Act of langua-ge. Contract of communication.

    Referências

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