Sergio Ferro - Entrevista Vitruvius

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027.01ano 07, jul. 2006 Sérgio Ferro Daniela Colin Lima 1. Introdução Residência Bernardo Issler, Cotia, 1961. Arquiteto Sérgio Ferro Entrevista com Sérgio Ferro Daniela Colin Lima Quando ainda cursava o colégio técnico, eu já me incomodava com a distância existente entre o pensar e o fazer dentro de um canteiro de obras. Numa tentativa de aliar o trabalho intelectual, como projetista, ao trabalho manual do operário, passei a freqüentar um curso de prática em alvenaria e revestimentos, oferecido pelo SENAI e no qual, como era de se esperar, eu era a única participante que possuía algum conhecimento de desenho na área da construção civil. Contudo, minhas indagações sobre a opressão no canteiro de obras e sobre a nítida e violenta separação entre o trabalho intelectual e o manual permaneciam. Em 2001, eu ingressei na Universidade Estadual Paulista e durante o curso de arquitetura e urbanismo, consegui obter algumas respostas. Foi quando um professor do departamento de ciências humanas me apresentou o livro “O Canteiro e o Desenho” escrito por Sérgio Ferro, e que, junto com o estudo das experiências realizadas a partir do final da década de 50 pelo grupo Arquitetura Nova, formado pelos arquitetos Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèvre e Flávio Império, me levaram a pesquisar o tema do canteiro de obras, com ênfase na divisão do trabalho e nas relações sociais de produção nele existentes. Com o financiamento da FAPESP, desenvolvi durante o ano de 2005, uma pesquisa de iniciação científica sobre a questão pedagógica no canteiro de obras e pude, então, contar com a generosa e valiosa colaboração do Arquiteto Sérgio Ferro, que sempre atendeu prontamente as minhas solicitações. A entrevista a seguir foi realizada em duas etapas, ambas por telefone, tendo em vista que eu me encontrava no Brasil e Sérgio Ferro na França. A primeira parte foi feita em novembro de 2005, para integrar o relatório final de pesquisa e para fundamentar o meu trabalho final de graduação. Já a segunda entrevista, foi realizada alguns meses depois, em julho de 2006, com o objetivo de complementar algumas questões que surgiram após a reflexão e o amadurecimento do tema. Espero com esta publicação, ampliar a discussão entre estudantes, professores, operários e arquitetos; oprimidos e opressores, para a importância de um assunto ainda hoje pouco discutido dentro da universidade e, muito menos, dentro do canteiro de obras. Meus sinceros agradecimentos a Sérgio Ferro.

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Entrevista de Sergio Ferro à Vitruvius, transformado em formato pdf.

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027.01ano 07, jul. 2006

Sérgio FerroDaniela Colin Lima

1. Introdução

Residência Bernardo Issler, Cotia, 1961. Arquiteto Sérgio Ferro

Entrevista com Sérgio FerroDaniela Colin LimaQuando ainda cursava o colégio técnico, eu já me incomodava com a distância existente entre o pensar e o fazer dentro de um canteiro de obras. Numa tentativa de aliar o trabalho intelectual, como projetista, ao trabalho manual do operário, passei a freqüentar um curso de prática em alvenaria e revestimentos, oferecido pelo SENAI e no qual, como era de se esperar, eu era a única participante que possuía algum conhecimento de desenho na área da construção civil.

Contudo, minhas indagações sobre a opressão no canteiro de obras e sobre a nítida e violenta separação entre o trabalho intelectual e o manual permaneciam. Em 2001, eu ingressei na Universidade Estadual Paulista e durante o curso de arquitetura e urbanismo, consegui obter algumas respostas. Foi quando um professor do departamento de ciências humanas me apresentou o livro “O Canteiro e o Desenho” escrito por Sérgio Ferro, e que, junto com o estudo das experiências realizadas a partir do final da década de 50 pelo grupo Arquitetura Nova, formado pelos arquitetos Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèvre e Flávio Império, me levaram a pesquisar o tema do canteiro de obras, com ênfase na divisão do trabalho e nas relações sociais de produção nele existentes.

Com o financiamento da FAPESP, desenvolvi durante o ano de 2005, uma pesquisa de iniciação científica sobre a questão pedagógica no canteiro de obras e pude, então, contar com a generosa e valiosa colaboração do Arquiteto Sérgio Ferro, que sempre atendeu prontamente as minhas solicitações. A entrevista a seguir foi realizada em duas etapas, ambas por telefone, tendo em vista que eu me encontrava no Brasil e Sérgio Ferro na França. A primeira parte foi feita em novembro de 2005, para integrar o relatório final de pesquisa e para fundamentar o meu trabalho final de graduação. Já a segunda entrevista, foi realizada alguns meses depois, em julho de 2006, com o objetivo de complementar algumas questões que surgiram após a reflexão e o amadurecimento do tema.

Espero com esta publicação, ampliar a discussão entre estudantes, professores, operários e arquitetos; oprimidos e opressores, para a importância de um assunto ainda hoje pouco discutido dentro da universidade e, muito menos, dentro do canteiro de obras.

Meus sinceros agradecimentos a Sérgio Ferro.

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Residência Bernardo Issler, Cotia, 1961. Arquiteto Sérgio Ferro

2. Divisão do trabalho

Acrópole 319, número especial sobre o Grupo Arquitetura Nova. Capa de autoria de Arnaldo Martino

e Mateus Gorovitz

Daniela Colin: O grupo Arquitetura Nova propôs uma metodologia de trabalho que, até então, não era muito comum nos canteiros de obras no Brasil. Na sua opinião, vocês conseguiram atingir o objetivo do canteiro realmente participativo?Sérgio Ferro: Eu acho que nós não conseguimos nunca realizar efetivamente nossa experiência por uma razão bastante simples: o operariado com o qual a gente trabalhava era operariado, isto é, assalariado, que vendia a própria força de trabalho e, portanto, no momento em que se transformava em assalariado, já se vendia, já se alienava. Se transformava em propriedade do outro. Isso impedia fundamentalmente que a participação atingisse os níveis que a gente desejava, a verdade da equipe participativa que a gente desejava. Havia uma participação mais ou menos comedida, ligada à nossa simpatia, ao fato de a gente se aproximar deles e dar liberdade. Quando era possível, até de aumentar

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salário em conseqüência mesmo dessa participação, que diminuía custos, etc. Mas eu acho que é utopia pensar em experiências de liberdade participativa no meio da não-liberdade, no meio da sociedade em que a gente vive. Entretanto, eu acho que hoje em dia, em certos bolsões de liberdade que começam a se criar – junto ao Movimento Sem Terra, o Movimento Sem Teto ou da auto-gestão participativa, etc. – muito mais do que no meu tempo, é possível avançar nessa experiência. Aí há realmente um chão menos destruído, menos corrompido do que era o nosso chão, no nosso tempo.DC: Então a relação dos trabalhadores com o produto do trabalho no canteiro era como em um canteiro tradicional?SF: Exatamente.DC: Como vocês [grupo Arquitetura Nova] explicavam suas intenções para os operários?SF: A gente tentava explicar um pouquinho a partir do Marx, a lógica da exploração, a lógica da divisão do trabalho injusta, a exclusão deles do ato de pensar, essas coisas todas. E pouco a pouco, de uma maneira lenta, gradativa, eles iam compreendendo a mola do sistema, as regras do sistema e tentando, conosco, partir para uma prática alternativa que não fosse só exterior ao ato de fazer, mas que transformasse o ato produtivo ele mesmo.DC: O senhor acha que nos mutirões autogeridos, hoje, se consegue algum avanço em relação a isso?SF: Eu acho que sim, sem dúvida nenhuma. E o próprio fato que me interessa muito nos trabalhos do Pedro [Arantes], por exemplo, é a participação das mulheres que muda, já é uma coisa radicalmente nova, não só pela presença delas, mas porque elas trazem de outro tipo de consideração do trabalho, outro tipo de carinho e isto é bastante importante.DC: De que maneira vocês trabalhavam o conceito de Marx com os operários? Pergunto isso porque são conceitos meio densos, não acha?SF: Sim, mas olha, o Marx mesmo dizia: são muito mais os burgueses intelectuais que tem dificuldade de entender o Marx do que os operários. Muito mais! Isso é frase do Marx, não é minha não. Quem tem isso na carne, na vida cotidiana, no dia-a-dia. Mesmo que eles não tenham os conceitos preparadinhos para traduzir, quando eles encontram esses conceitos, para eles é evidente na hora. Na hora!

Esquemas de de montagem de abóbadas. Rodrigo Lefèvre, dissertação de mestrado na FAU-USP, 1981

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3. Pedagogia de Paulo Freire

Residência Heládio Capisano, São Paulo, 1960. Arquitetos Rodrigo Lefévre e Sérgio Ferro

Daniela Colin: Paulo Freire diz que um homem que simplesmente apreende as idéias de outro, como ocorre com os operários na divisão mão-mente do trabalho, não consegue desenvolver sua capacidade crítica em relação ao mundo e à sua própria condição. Vocês [grupo Arquitetura Nova] conseguiram fazer com que os operários compreendessem e passassem efetivamente a fazer parte desse processo de crescimento mútuo?Sérgio Ferro: Eu acho que sim. Por duas razões: primeiro alguns dos operários que trabalharam conosco fizeram casas para eles mesmos, com sistemas bem parecidos com que a gente pregava. Espontaneamente, em auto-construção e tudo. Este é o primeiro caso. O segundo, quando nós fomos presos, o Rodrigo e eu, havia um canteiro em andamento e eles mesmos continuaram o canteiro, dentro da nossa lógica, dentro dos princípios do “desenho e o canteiro”, tendo assimilado completamente as idéias, os princípios, etc. Então eu acho que eles assimilaram bem.DC: Ainda segundo Paulo Freire, todo homem é um ser inacabado e que, por isso, não pode existir aprender sem ensinar e ensinar sem aprender. O que você aprendeu com a experiência de canteiro do Arquitetura Nova?SF: Aprendi enormemente. Enormemente! E até hoje, em qualquer canteiro que eu acompanhe, faça, etc. há um aprendizado. Na verdade, exatamente pelos princípios que a gente tinha, que têm, ser atento ao canteiro, ao processo produtivo, às necessidades, dificuldades e problemas do trabalho, vivendo com o canteiro, vivendo no canteiro, e seguindo o canteiro, o aprendizado é constante. Exatamente em função da atenção que a gente dá às condições de produção. As condições de produção, variam, evoluem, etc. Então o aprendizado nosso é e era constante.DC: Vocês [grupo Arquitetura Nova] usavam Paulo Freire no canteiro?SF: O Rodrigo [Lefèvre] usava muito. O Rodrigo gostava muito do Paulo Freire.DC: E como o Lefèvre fazia isso?SF: Você conhece o trabalho do Rodrigo, a tese dele, né? Lá ele explica direitinho como ele utilizou o Paulo Freire e o quê do Paulo Freire foi útil para ele. O Rodrigo utilizou muito mais o Paulo do que eu.

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Residência Heládio Capisano, São Paulo, 1960. Arquitetos Rodrigo Lefévre e Sérgio Ferro

4. Mutirões auto-geridos

Residência Pery Campos, São Paulo, 1970. Arquitetos Rodrigo Lefévre e Nestor Goulart Reis Filho

Daniela Colin: Tendo em vista o caso do mutirão auto-gerido, em que o usuário projeta e participa da construção da moradia, você acredita que na prática, a relação do usuário-projetista-construtor é diferente em relação ao produto do seu trabalho, em comparação com o modo convencional de produção?Sérgio Ferro: É. E aí em São Paulo vocês já têm experiências boas, novas. Sobretudo o pessoal do USINA, lá, do Pedrinho [Pedro Arantes] Isso fica evidente, né? A posição do usuário produtor é completamente diferente do cliente normal do arquiteto, como é diferente do simples construtor que não é usuário.DC: Uma vez, inclusive, eu tive a oportunidade de comparar. Eram dois conjuntos habitacionais, um ao lado do outro. Um feito por mutirão, participativo, e o outro feito por um mutirão que simplesmente recebeu o projeto já pronto e eu senti que a apropriação

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do espaço era completamente diferente.SF: É muito diferente! Muito diferente. Eu acho que inclusive, um aspecto novo e bonito que no nosso tempo, inclusive, isso não existia, no tempo do “desenho e o canteiro”, é o papel forte, ativo e criador da mulher.DC: O senhor enxerga alguma mudança no canteiro que possa acontecer a partir dessa experiência de mutirão auto-gerido?SF: Eu acho que essas experiências, se forem sempre conduzidas com espírito crítico, analítico, bem miúdo, bem próximo da realidade, poderão, pouco a pouco, começar a produzir, não só – como é o nosso caso do Arquitetura Nova, o Rodrigo, Flávio e eu – não só produzir algum conhecimento negativo que denuncia o que é ruim, o que é torto e o que é podre, mas, ao contrário, um tipo de análise que começa já a poder propor aspectos positivos de transformação e de modificação.

Residência Pery Campos, São Paulo, 1970. Arquitetos Rodrigo Lefévre e Nestor Goulart Reis Filho

5. Trabalho no canteiro

Residência Pery Campos, São Paulo, 1970. Arquitetos Rodrigo Lefévre e Nestor Goulart Reis Filho

Daniela Colin: O senhor acha que no canteiro de obras pode-se ter uma estrutura de trabalho que não se tenha na indústria, por exemplo?

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Sérgio Ferro: Não. Eu acho que, para que haja realmente uma transformação no canteiro de obras, é indispensável que haja uma transformação em toda a sociedade, em todos os níveis da produção, em todos os aspectos da produção. Acho que não há nenhuma incompatibilidade entre a indústria e o trabalho livre. Trata-se, evidentemente, de que esse trabalho livre na indústria não se fará ou não será conduzido da mesma maneira que na manufatura. Haverá uma outra lógica, uma outra maneira de proceder, etc. Mas nada impede que as mesmas exigências de liberdade, de auto-determinação e responsabilidade surjam na indústria, na manufatura, no campo ou seja onde for.DC: O senhor chegou a trabalhar com canteiro de obras na França?SF: Tentei muitas vezes trabalhar com sindicatos... mas é uma mentalidade difícil, muito próxima do “partidão”, daquela coisa “produção pela produção”, “vamos avançar a produção!”, aquela história toda.DC: Você já teve conhecimento de algum grupo de operários da construção civil que tenha desenvolvido uma forma diferente de trabalho por si só?SF: Aqui na França houve várias experiências. De cooperativa operária, mais nos anos 70, 80. Hoje isso diminuiu, mas houve bastante experiências de grupos de trabalho auto-geridos, trabalhadores em associação, inclusive com arquitetos também, dentro. E faziam coisas bonitas, agora, com a pressão do mercado e as dificuldades do sistema em financiar, dar verba, escolher, esse tipo de cooperativas acabou diminuindo muito em importância. Muito menos porque tenham sido ineficazes, mas muito mais por causa do sistema mesmo, que prefere o bom e velho liberalismo e dá tudo para a iniciativa privada tradicional.

Residência Pery Campos, São Paulo, 1970. Arquitetos Rodrigo Lefévre e Nestor Goulart Reis Filho

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6. Universidade

Flávio Império em aula na FAU-USP, 1975

Daniela Colin: Quando o arquiteto se fecha num saber parcial, destinado a trazer soluções técnicas aos problemas formulados tecnicamente, também corre o risco de alienar seu conhecimento intelectual. Em relação a isso, que arquiteto você acredita que está sendo formado pela universidade hoje no Brasil?Sérgio Ferro: Aí eu vou ter dificuldade em responder porque eu estou muito longe do ensino atual brasileiro. Aqui na França, essa distância tem se traduzido por um crescente formalismo. Mesmo as questões técnicas, etc. começam a ser afastadas e deixadas para o construtor. Há uma tendência crescente aqui em cortar voluminho em isopor, triangulinho, essas coisas assim, como se arquitetura fosse só isso. No Brasil eu tenho uma certa dificuldade em responder para você porque há anos, há mais de 30 anos que eu estou longe do ensino concreto das universidades do Brasil.DC: Eu vejo um interesse crescente sobre o tema da participação popular no canteiro e auto-gestão, pelo menos no Brasil, dentro da área acadêmica. Não sei como isso acontece no resto do mundo...SF: Eu fico muito feliz com tudo isso e, inclusive, esse interesse pela dimensão social da arquitetura e do ato de construir é bem brasileiro, atualmente. Quero dizer, bem típico dos países subdesenvolvidos, nos países como o nosso, em que as carências e a miséria estão ali, na carne, evidentes. Na França [o interesse] é menor. A dor é menos evidente, a exploração mais disfarçada. Mas não que [a exploração] seja menor ou inexistente. É a mesma, mas aqui o pessoal consegue, com favores laterais e compensações marginais, esquecer um pouco a questão da produção.DC: Você acha que seria papel da universidade oferecer assessoria técnica a movimentos sociais para construção, por exemplo, de habitação de caráter social em regime de mutirão auto-gerido?SF: Sem dúvida nenhuma! Sem dúvida nenhuma! É um dever, não é só uma possibilidade não. Se a universidade não fizer isso, barbaridade! Quem vai fazer? Teoricamente, a idéia da universidade é de um ensino que é dado a todos e atendendo os problemas específicos de cada grupo social. Sem dúvida que a universidade tem o dever de fazer isso.DC: Principalmente as universidades públicas, eu acredito.SF: Sem dúvida nenhuma! Sem dúvida nenhuma!DC: Minha intenção, depois de concluir esta parte da pesquisa, é partir para um estudo da relação entre a participação popular no canteiro e a apropriação do espaço construído...

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SF: O trabalho a fazer é um trabalho lindo e necessário. É preciso que essas experiências não se percam no isolamento, no esquecimento, mas que, ao contrário, elas possam contribuir para um tipo de conhecimento novo. E esse tipo de pesquisa que você se propõe a fazer é essencial nesse caso.

Palestra de Rodrigo Lefévre na FAU-USP

7. Arquitetura e o arquiteto

Pintura de Sérgio Ferro

Daniela Colin: Apesar da admiração que eu tenho pelo seu trabalho, eu queria fazer uma pergunta um pouco amarga. É a seguinte: Alguns arquitetos dizem que você produziu pouco em arquitetura e que adotou uma postura contraditória quando “abandonou” o canteiro, e partiu para outras atividades como a pintura. O que você diz sobre isso?Sérgio Ferro: Olha, é simplíssimo! A partir do momento que escrevi o meu livro sobre o desenho e o canteiro, eu não tinha mais condições morais de participar de um canteiro tradicional. Tendo analisado, decodificado, mostrado a exploração que vai de alto a baixo dentro do canteiro, como que eu iria participar e fazer arquitetura nessas condições? Aqui na França eu tentei várias vezes fazer arquitetura experimental e a experiência era exatamente o canteiro, de um tipo diferente, uma relação com o trabalho diferente, etc. Encontrei uma resistência enorme da ordem dos arquitetos daqui e dos poderes que estavam envolvidos nisso. Não desisti de fazer arquitetura, desisti de fazer arquitetura nessas condições atuais. Adoro arquitetura, é o métier mais bonito! Só faço pintura por substituição e por não poder fazer arquitetura. Mas de jeito nenhum a minha crítica é dirigida à arquitetura em geral, a qualquer arquitetura. De jeito nenhum! É bem

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específica à arquitetura nas condições atuais de exploração violenta, vergonhosa, total do trabalhador. Só para dar um exemplo distante do Brasil, para ver um pouquinho o que está acontecendo. Em Dubai, no oriente médio. O país inteiro está vivendo da exploração do trabalho na construção civil. Uma vergonha. Uma vergonha total! [Dubai] É um emirado, que não tem petróleo, mas descobriu outro petróleo. Outra mina de riqueza que é a construção civil.DC: O que mudou na arquitetura desde a criação do grupo Arquitetura Nova?SF: Experiências novas de participação popular, de auto-gestão, que no nosso tempo eram níveis baixíssimos e que agora estão crescendo e estão podendo atuar de uma maneira diferente que nós encontramos no nosso tempo. As experiências que estão sendo feitas aí, novas, do pessoal novo, é coisa que não existia no nosso tempo, que nós nem imaginávamos que fosse possível com tanta eficácia, com tanta beleza, com tanta grandeza.DC: Do que você mais sente falta na arquitetura hoje, ainda?SF: É a mesma coisa sempre. Enquanto a arquitetura rejeitar a expressão do trabalho, do trabalho autêntico, do trabalho alegre, do trabalho autônomo, ela vai ser sempre essa coisa meio artificial, fria, cenário, decoração – decoração no mau sentido– gelada, desumana. Sem falar no canteiro, mas como resultado mesmo.

Pintura de Sérgio Ferro