Sérgio Vasconcelos - Mitos Gregos

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Paulo Srgio de Vasconcellos

MITOS GREGOS

MITOS

GREGOS

Paulo Srgio de Vasconcellos

MITOS GREGOS

So Paulo 1998

ndiceFaetonte e o carro do Sol . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11 Orfeu e Eurdice . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .14 Narciso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17 Prometeu, o primeiro benfeitor da humanidade . . . . . . . . . . . . .21 Teseu e o Minotauro, Ddalo e caro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .24 As aventuras de Hrcules . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .28 O nascimento e a primeira faanha do heri . . . . . . . . . . . .28 Os doze trabalhos de Hrcules I . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .32 Os doze trabalhos de Hrcules II . . . . . . . . . . . . . . . . . . .36 A guerra de Tria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .39 As origens da guerra de Tria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .39 A ira de Aquiles . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .46 A morte de Heitor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .52 O calcanhar de Aquiles . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .58 O cavalo de madeira e o fim de Tria . . . . . . . . . . . . . . . . .61 O retorno de Odisseu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .68 Odisseu e o ciclope . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .68 Na ilha da feiticeira Circe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .74 Odisseu vai ao reino dos mortos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .77 Os novos perigos da viagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .80 A chegada de Odisseu e o massacre dos pretendentes . . . . .83 Os deuses gregos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .86 Genealogia divina Os principais deuses . . . . . . . . . . . . . .87 A soberania de Zeus e sua esposa Hera . . . . . . . . . . . . . . . .88 Afrodite e rtemis, a deusa do amor e a virgem caadora .91 Ares e Dioniso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .97 Apolo e Palas Atena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .102 Hermes e Hefesto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .106 Demter e Possidon, divindades da terra e do mar . . . . . .109 Questionrios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .113 Respostas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .128

ApresentaoOs mitos gregos esto por toda parte ainda hoje. Estas narrativas, que um dia povoaram no s a imaginao como tambm a vida cotidiana de todo um povo, perduraram no tempo e ainda hoje fascinam escritores, cineastas, escultores, psiclogos, antroplogos, etc. etc. Pode-se fazer delas o uso mais variado, mas curioso que guardam, em si mesmas e por si mesmas, um interesse inabalvel para os leitores comuns, pessoas que sempre sentiro prazer em mergulhar na poesia de deuses nada perfeitos, cheios de defeitos muito humanos, ninfas que definham de amor por mortais, heris que redimem a humanidade, vozes encantadoras de sereias, monstros brutos de um olho s, derrotados pela inteligncia do homem. Os estudiosos podem tentar analisar os mitos como forma primitiva de explicao racional do universo, como cincia ingnua e rudimentar; outros podem v-los como projeo de nossa vida inconsciente, etc. o mito sobrevive a qualquer tentativa reducionista de enquadr-lo em termos que no so os seus, reduzilo a alguma chave que supostamente o desvende ele sobrevive inatingvel, com o impacto de sua fora narrativa. O mito o nada que tudo, j disse Fernando Pessoa, criador de mitos, como todo poeta. Este livro reconta alguns mitos do vasto repertrio de histrias da Grcia antiga, pensando no leitor leigo das nossas escolas de ensino fundamental, em especial os da quinta oitava srie.

Tentamos auxili-lo a se iniciar nesse universo, primeira vista de difcil aproximao para os mais jovens, empregando linguagem mais simples, sem subestimar, porm, sua capacidade, acrescentando notas explicativas e exerccios de fixao dos contedos lidos. Sempre que possvel, entretanto, fomos a alguma fonte da Antiguidade, por vezes quase traduzindo esse original: Ovdio, na histria de Faetonte, Virglio, na narrativa da queda de Tria, etc. Assim, o leitor conhecer, aqui, algumas verses que grandes poetas elegeram para contar mais uma vez a mesma histria (j que o mito sempre recontado, modificado, nunca exatamente o mesmo, a cada narrativa filtrado pela viso especial de cada artista). Como no pretendemos fazer obra de referncia, geralmente evitamos acumular vrias verses da mesma histria ou aborrecer os jovens com eruditismos desnecessrios. Se o leitor se sentir atrado por esse universo no que ele tem de mais fundamental, a beleza de cada conto, seja qual for o uso que se faa dele, estaremos satisfeitos. E quem sabe o nosso leitor passe, ento, a perceber como seu dia-a-dia moderno est repleto de evocaes daquele mundo que subsiste vivssimo mesmo depois de sua civilizao material se encontrar reduzida a pobres runas. Por fim, agradeo ao professor Francisco Achcar por muitas sugestes e correes; este livrinho certamente se enriqueceu com suas observaes ou, pelo menos, livrou-se, com elas, de no poucas imperfeies. P. S. V.

Vista das runas do centro histrico de Atenas, hoje capital da Grcia. A cidade enfrenta os problemas da convivncia entre os vestgios do passado e as exigncias da vida moderna. Como expandir o metr da cidade, por exemplo, sem danificar para sempre as relquias de uma das maiores civilizaes que o mundo conheceu? E como impedir que a poluio dos carros destrua os monumentos?

Faetonte e o carro do Sol

O

jovem Faetonte, criado pela me, desconhecia quem fosse seu pai. Um dia, ela lhe contou quem ele era: o Sol. Desejando comprovar se a revelao era verdadeira, Faetonte foi at a morada daquele astro, um palcio brilhante de ouro, prata e marfim. Depois de narrar o acontecido, disse-lhe: luz do mundo imenso, se minha me no est mentindo, d-me uma prova de que sou mesmo seu filho! Acabe de uma vez com essa minha dvida! O Sol tirou da cabea os raios que brilhavam para poder abraar o filho. Depois de t-lo abraado, disse: Para que no tenha dvida de que sou seu pai, pea o que quiser, e eu lhe darei. Juro pelo rio dos Infernos, o Estige. Esse o juramento que obriga os deuses a cumprirem sua palavra. Faetonte, ento, pede ao pai que lhe deixe guiar seu carro, que era puxado por cavalos alados.1 O pai se arrependeu da promessa, mas no podia voltar atrs. Tentou fazer o filho desistir da idia: Voc um mortal e o que est pedindo no para mortais. S eu posso dirigir o carro que leva o fogo do cu. Nem Zeus2 poderia fazer isso. Que espera encontrar nos caminhos do cu? Voc passar por muitos perigos: os chifres da constelao de Touro, o arco de Sagitrio, a boca do Leo. AlmAlado: que tem asas. Zeus: pai e o rei dos deuses (veja geneologia na pgina 87)

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disso, h os cavalos, difceis de domar, soltando fogo pela boca e pelas ventas.3 Pea outra coisa, filho, e se mostre mais sensato nos seus desejos. Mas Faetonte no queria ouvir os conselhos do pai, que foi obrigado a satisfazer quele pedido. Levou o rapaz ao carro. Era todo feito de ouro, prata e pedras preciosas. Faetonte olhou-o cheio de admirao. Eis que no Oriente a Aurora comeou a tingir o cu de rosa. O Sol ordena s Horas velozes que atrelem4 os cavalos ao carro. Depois, passa uma pomada divina no rosto do filho, pe os raios ao redor da sua cabea e profere estas recomendaes: No use o chicote e segure as rdeas com firmeza. Os cavalos correm espontaneamente; o difcil control-los. Cuidado para no se desviar da rota. Nem desa nem suba muito alto. Cu e terra devem suportar o mesmo calor, por isso v entre um e outra. Faetonte se instalou no carro, ligeiro ao suportar o peso de um jovem. Os cavalos alados do Sol partiram, enchendo o ar com seus relinchos de fogo. Mas como praticamente no sentiam nenhum peso nem fora nas rdeas, puseram-se a correr vontade, para fora do caminho habitual. O carro ia para cima e para baixo, provocando grande confuso entre os astros. Ao olhar do alto do cu para a terra, Faetonte empalideceu e seus joelhos tremeram de pavor. J se arrependia do que pedira ao pai. Que fazer? Tinha um espao infinito de cu s suas costas, outro tanto diante dos olhos. No largava as rdeas, mas era incapaz de segur-las com firmeza.3 4

Ventas: nariz. Atrelar: prender.

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De repente, assustando-se vista do Escorpio, Faetonte largou as rdeas. Os cavalos correram a toda velocidade por regies onde jamais o carro do Sol tinha estado. A Lua se espanta de ver os cavalos correndo abaixo dos seus. As montanhas mais altas da terra so as primeiras vtimas das chamas. Depois, o solo se fende, as guas secam, o verde se queima. Cidades inteiras, com sua gente, viram cinza. Foi naquela poca, dizem, que os povos da frica passaram a ter cor negra. Faetonte v o mundo se abrasar nas chamas do carro do Sol e no sabe o que fazer. Ele mesmo mal pode suportar o calor. Foi ento que a Terra, esgotada pela seca, ergueu sua voz sagrada: Se eu fiz por merecer isso, Zeus, mais poderoso dos deuses, por que no lanas teus raios contra mim? Se devo morrer pelo fogo, que seja ao menos por meio do teu! J o mundo todo parece pronto para voltar ao caos original. Livra das chamas o que ainda resta. Preocupa-te em salvar o universo! O pai dos deuses, ento, ouvindo aquela splica, lana um raio contra Faetonte. O jovem, com os cabelos em chamas, tomba do cu, deixando no ar um trao de fogo, como uma estrela cadente. Ninfas5 recolheram seu corpo e o sepultaram. Como epitfio6, escreveram estas palavras: Aqui jaz Faetonte, cocheiro do carro paterno. No conseguiu dirigi-lo, mas morreu num ato de grande ousadia. O pai de Faetonte ficou desolado. Dizem mesmo que durante um dia todo no houve sol sobre a terra.5 6

Ninfas: divindades dos bosques, das guas e dos montes. Epitfio: inscrio posta em tmulo.

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Orfeu e EurdiceNinfa, em escultura em mrmore do italiano, Antonio Canova (17571822). Canova foi muito influenciado pela arte clssica da Grcia e de Roma e com freqncia retratou personagens dos mitos gregos.

F

ugindo de um homem que a perseguia, a ninfa Eurdice pisou numa serpente venenosa oculta na relva. O rptil a picou no calcanhar, e ela desceu ao reino dos mortos, deixando inconsolvel seu marido. Orfeu, poeta, msico e cantor, sempre empunhando a lira ou a ctara, era um artista insupervel. Com seu canto, os animais ferozes se tornavam pacficos e o seguiam, as rochas se moviam, as rvores inclinavam as copas1 em sua direo, os homens se acalmavam. Mas a dor pela perda da esposa foi tal que ele, fugindo do convvio humano, na solido, s conseguia pensar em Eurdice. Sua msica, agora triste, s cantava o amor por Eurdice. Por fim, resolveu descer ao sombrio Hades2 para tentar traz-la de volta. Em meio s sombras e deuses das regies subterrneas, Orfeu fez ecoar a msica de sua lira. Nos Infernos, Ssifo tinha sido condenado a rolar montanha acima uma pedra que, no alto, voltava a cair, obrigando-o a recomear a tarefa eternamente.Copa: a folhagem da parte superior das rvores. Hades: o reino dos mortos; era tambm o nome do deus que reinava sobre essas regies.

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Mas, com aquela msica, como que por encanto a pedra de repente ficou parada, sem ningum a segurar. Tntalo, como punio dos deuses, sedento e faminto, tinha sempre diante de si gua e comida, que, porm, nunca conseguia alcanar. Mas, ao som da lira de Orfeu, esqueceu-se da fome e sede eterna. As Danaides tentavam encher de gua um tonel furado; a msica encantadora as fez descuidar da tarefa ingrata. Cantando o amor a Eurdice e a perda da esposa, comoveu a todos os habitantes do mundo infernal. At mesmo de Hades, que tinha um corao de ferro, arrancou lgrimas. Hades e Persfone, os deuses infernais, concederam, ento, que Orfeu levasse Eurdice de volta vida, com uma condio: na ida em direo luz do dia, ele no deveria, de maneira nenhuma, olhar para trs antes de deixar o mundo das sombras. Eis que Eurdice acompanha silenciosa Orfeu, rumo superfcie da terra. Vo regressando daquelas regies escuras, povoadas pelas sombras dos mortos. Percorrem um caminho abrupto,3 em meio a trevas e uma nvoa espessa. E a luz j se aproximava, quando, tomado de intenso amor e esquecido da condio que lhe impuseram, Orfeu resolveu olhar para a sua Eurdice... Ouve-se um estrondo espantoso, e Eurdice diz ao esposo: Que loucura foi essa que perdeu a mim e a ti, Orfeu? J de novo os destinos cruis me chamam e o sono comea a cerrar meus olhos. hora de dizer-te3

Abrupto: ngrime, difcil.

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adeus. A noite imensa me circunda e ergo em vo para ti as minhas mos enfraquecidas. Disse isso e desapareceu como fumaa nos ares. Orfeu ficou desesperado, pois sabia que sua msica no poderia dobrar4 os deuses infernais: eles jamais se abrandavam com as splicas humanas. Era impossvel lutar contra suas duras leis. Por todo o resto de seus dias, sem descanso, sem trgua dor, Orfeu cantou o amor por Eurdice, que perdera para sempre num descuido fatal.5

Orfeu se volta para ver Eurdice, que sucumbe para sempre. Trata- se de um quadro do pintor e escultor ingls Georg Frederic Watts (pronncia uts) (1817-1904).4 5

Dobrar: fazer ceder, tornar transigente. O mito de Orfeu e Eurdice tem fascinado a imaginao dos artistas atravs dos tempos. No cinema, dois famosos filmes o trataram. Um o do francs Jean Cocteau (pronuncie j coct), de 1949, em que Orfeu um poeta da Paris contempornea. O outro Orfeu Negro, do tambm francs Marcel Camus (no pronuncie o s final; quanto ao u, representa um som intermedirio entre /u/ e /i/ ). Este ltimo filme, uma produo de 1959, foi rodado no Rio de Janeiro e baseado em texto de Vincius de Moraes, que tambm comps, com Tom Jobim e Lus Bonf, a trilha sonora. Aqui, Orfeu um sambista carioca. O filme ganhou a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro.

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NarcisoQuando Narciso nasceu, sua me, uma ninfa belssima, consultou o adivinho Tirsias para saber se aquele filho de extraordinria beleza viveria at o fim de uma longa velhice. Pareceram sem sentido as suas palavras: Sim, se ele no chegar a se conhecer. Narciso cresceu, sempre formoso. Jovem, muitas moas e ninfas queriam o seu amor, mas o rapaz desprezava a todas. Um dia, Narciso caava na floresta quando a ninfa Eco o viu. Eco, por causa de uma punio que Hera1 lhe infligira, s era capaz de usar da voz para repetir os sons das palavras dos outros. Ao se deparar com a beleza de Narciso, a ninfa se apaixonou por ele e se ps a segui-lo. Quando resolveu manifestar o seu amor, abraando-o, Narciso a repeliu. Desprezada e envergonhada, Eco se escondeu nos bosques com o rosto coberto de folhagens. O amor no correspondido a foi consumindo pouco a pouco, at que, depois de reduzida a pele e osso, seu corpo se dissipou nos ares. Restou-lhe, apenas, a voz e os ossos, que, segundo dizem, tomaram a forma de pedras. Um dia, uma das muitas jovens desprezadas por Narciso, erguendo as mos para o cu, disse: Que Narciso ame tambm com a mesma1

Hera: na mitologia latina, Juno, rainha dos deuses.

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intensidade sem poder possuir a pessoa amada! Nmesis, a divindade punidora do crime e das ms aes, escutou esse pedido e o satisfez. Havia uma fonte lmpida, de guas prateadas e cristalinas, de que jamais homem, animal ou pssaro algum se tinham aproximado. Narciso, cansado pelo esforo da caa, foi descansar por ali. Ao se inclinar para beber da gua da fonte, viu, de repente, sua imagem refletida na gua e encantou-se com a viso. Fascinado, quedou2 imvel como uma esttua, contemplando seus prprios olhos, seus cabelos dignos de Dioniso3 ou Apolo, suas faces lisas, seu pescoo de marfim, a beleza de seus lbios e o rubor que cobria de vermelho o rosto de neve. Apaixonouse por si mesmo, sem saber que aquela imagem era a sua, refletida no espelho das guas. Nada conseguia arrancar Narciso da contemplao, nem fome, nem sede, nem sono. Vrias vezes lanou os braos dentro da gua para tentar inutilmente reter com um abrao aquele ser encantador. Chegou a derramar lgrimas, que iam turvar a imagem refletida. Desesperado e quase sem foras, foram estas suas ltimas palavras: Ah!, menino amado por mim inutilmente! Adeus! O lugar em que estava fez ecoar o que dissera. E quando proferiu Adeus!, Eco tambm disse Adeus!.2 3

Quedar (ou quedar-se): deter-se, ficar parado. Dioniso: na mitologia latina, Baco, deus do vinho.

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Em seguida, esgotado, Narciso se deitou sobre a relva, e a Noite veio fechar seus olhos. Diz-se que, nos Infernos, Narciso continua a contemplar sua imagem refletida nas guas do rio Estige. As ninfas, juntamente com Eco, choraram tristemente pela morte de Narciso. J preparavam para o seu corpo uma pira quando notaram que desaparecera. No seu lugar, havia apenas uma flor amarela, com ptalas brancas no centro.44

Narciso outro mito que reaparece constantemente nas artes. Em Sampa, de Caetano Veloso, h esta passagem, na qual o poeta descreve a primeira impresso negativa que teve ao ver a cidade de So Paulo:

Quando eu te encarei frente a frente, No vi o meu rosto, Chamei de mau gosto O que vi, de mau gosto, mau gosto. que Narciso acha feio O que no espelho... A poetisa Ceclia Meireles (1901-1964) tem um poema interessante sobre Narciso. Aqui, a imagem que se tem do rapaz, a de um vaidoso apaixonado pelo prprio rosto, apresentada como falsa. Na verdade, Narciso sorria, encantado, no para o seu reflexo, mas para a gua, que imaginava ter gerado ela prpria a imagem do belo e sorridente jovem. No um texto fcil; mas vale a pena l-lo. Atente para o ritmo dos versos e as imagens surpreendentes (o reflexo do sorriso comparado a uma grinalda de flores que cai na gua; a imagem de Narciso vista pela gua como uma esttua de cristal): EPIGRAMA Narciso, foste caluniado pelos homens, por teres deixado cair, uma tarde, na gua incolor, a desfeita grinalda vermelha do teu sorriso. Narciso, eu sei que no sorrias para o teu vulto, dentro da onda: sorrias para a onda, apenas, que enlouquecera, e que sonhava gerar no ritmo do seu corpo, ermo e indeciso, a esttua de cristal que, sobre a tarde, a contemplava, fixando-a sempre, com o seu efmero sorriso... (epigrama: poema que se caracteriza, sobretudo, por sua brevidade; ermo: solitrio; efmero: passageiro, fugidio).

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Narciso contemplando sua imagem na gua. Pintura mural de Pompia.

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Prometeu, o primeiro benfeitor da humanidade

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izia-se que Prometeu criara os primeiros homens a partir do barro. Desejando ajudar a essa humanidade primitiva, provocou por duas vezes a clera de Zeus.1 Um dia, durante um sacrifcio de um boi aos deuses, Prometeu cobriu com o couro a carne e as vsceras2 do animal; quanto aos ossos, passou neles uma espessa camada de gordura. Convidado a escolher a sua parte, Zeus, sem saber da trapaa, atrado pela gordura, acabou ficando com os ossos. por isso que nos sacrifcios os gregos queimavam a gordura e os ossos para os deuses, mas a carne e as vsceras eram comidas pelos participantes da cerimnia. Ao descobrir que tinha sido enganado para favorecer os homens, o pai dos deuses resolveu vingar-se privando a humanidade do fogo. Novamente, porm, Prometeu interveio em socorro dos mortais, desta vez roubando para eles uma centelha3 do fogo divino. A clera terrvel de Zeus maquinou uma punio exemplar. Zeus enviou aos homens a primeira mulher, que os deuses Hefesto4 e Palas Atena,5 ajudados pelosZeus: Jpiter na mitologia romana; o rei supremo e pai dos deuses. Vsceras: rgos do interior do corpo, como fgado, corao, pulmo. Centelha: fagulha. Hefesto: na mitologia latina, Vulcano, o deus do fogo. Palas Atena: na mitologia latina, Minerva.

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demais, criaram. Cada um dos deuses lhe concedeu determinadas caractersticas: Afrodite6 lhe atribuiu a beleza e o encanto, Palas Atenas ensinou-lhe tarefas femininas, Hermes7, astcia, o fingimento e a mentira, alm do dom da palavra. Foi este ltimo quem a chamou Pandora, que foi enviada terra como se fosse um presente para os homens. Essa primeira mulher levava consigo uma jarra tampada, na qual os deuses haviam colocado todos os males e desgraas imaginveis. Na terra, Pandora no conseguiu conter a curiosidade e destampou a jarra. Imediatamente, males e desgraas espalharam-se por todos os lados. At ento, os homens tinham vivido em paz, sem doenas, fome ou guerras. Pandora precipitadamente voltou a tampar a jarra, mas j todos os males tinham escapado, com exceo da esperana. Foi assim que a justia de Zeus puniu os homens. Quanto a Prometeu, foi acorrentado a um rochedo. Uma guia vinha de dia roer-lhe o fgado; noite, a parte que faltava renascia milagrosamente, tornando eterno o seu suplcio. Muito tempo depois, Hrcules, um outro benfeitor da humanidade, mataria a guia e libertaria Prometeu.

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Afrodite: na mitologia latina, Vnus. Hermes: na mitologia latina, Mercrio, o mensageiro dos deuses.

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Ddalo conversa com Pasfae. Pintura em parede de uma das casas suntuosas de Pompia. A cidade italiana foi sepultada por uma terrvel erupo do Vesvio em 79 d. C.

O Minotauro de Watts. Note que com a mo esquerda o monstro parece esmagar um passarinho.

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Teseu e o Minotauro, Ddalo e caro

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a ilha de Creta reinava Minos. Um dia, Possidon1 enviou-lhe, surgido do mar, um touro, que o rei lhe deveria sacrificar. Minos, porm, guardou para si o animal. A esposa de Minos, Pasfae, apaixonou-se pelo animal. Essa paixo deve ter sido uma vingana de Possidon, o rei do mar, ou de Afrodite,2 a deusa do amor, de cujo culto a rainha tinha descuidado. Vivia em Creta um clebre arquiteto, escultor e inventor, Ddalo. Foi esse homem quem construiu para Pasfae uma novilha3 de bronze, oca, para que a rainha, pondo-se em seu interior, pudesse atrair o touro. Assim Pasfae se uniu quele animal. Da unio nasceria um monstruoso homem com cabea de touro o Minotauro. Quando nasceu o filho de Pasfae e do touro, Minos, envergonhado, fez com que Ddalo construsse um labirinto para a deixar aquela criana monstruosa. Com seus inmeros corredores, salas e galerias, criados de maneira a fazer perder a direo e confundir at o mais astuto dos homens, o labirinto s era dominado pelo prprio Ddalo: quem ali entrasse, no conseguiria mais sair.

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Possidon: Netuno, na mitologia latina. Afrodite: Vnus na mitologia latina. 3 Novilha: bezerra.

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Com o passar dos anos, o Minotauro foi crescendo no labirinto, longe dos olhares das pessoas. Ora, Minos, tendo derrotado os atenienses em batalha, exigiu deles um tributo sinistro: todos os anos, Atenas deveria enviar sete rapazes e sete moas para serem devorados pelo Minotauro. Pode-se imaginar o terror que deveria se apossar de quem, perdido na confuso dos caminhos tortuosos, sentia aproximar-se de si aquela criatura grotesca que habitava o labirinto... Disposto a pr um fim a essa situao, o heri ateniense Teseu foi um dia a Creta, junto com os outros jovens destinados morte certa. Quando Teseu chegou ilha, Ariadne, filha de Minos e Pasfae, apaixonou-se pelo jovem. Desejando salv-lo da morte no labirinto, a moa lhe deu um novelo com um fio: Teseu deveria desenrollo medida que penetrasse naquele emaranhado. Quem tivera a idia fora Ddalo. Foi assim que o heri, depois de matar o Minotauro, encontrou facilmente a sada, seguindo o caminho criado pelo fio de Ariadne. Ao saber do que ocorrera, Minos, enfurecido, aprisionou Ddalo e seu filho caro no labirinto, pois julgava que o arquiteto tinha sido cmplice daquela traio. Haveria de ser a morte para os dois, se Ddalo, sempre astucioso e inventivo, no tivesse encontrado um meio de escapar. Fez, com penas de aves coladas com cera, um par de asas para si e outro para o filho. Antes de sarem por uma das altas janelas do labirinto, Ddalo fez uma recomendao a caro.25

Que ele, sob hiptese alguma, se aproximasse do sol; deveria voar nem muito alto nem muito baixo, entre o cu e a terra. Partiram. Mas caro no obedeceu ao conselho paterno. Chegando demasiado perto do sol, a cera das asas derreteu, e as penas dispersaram-se nos ares. De repente o moo se viu agitando braos nus. Chamando em vo pelo pai, caro caiu nas guas azuis do mar Egeu.

Labirinto em moeda do sculo III a. C. A imagem do labirinto tem sido retomada das mais variadas formas, na literatura, nas artes em geral, no cinema etc. Sigmund Freud, o pai da psicanlise, em uma de suas conferncias, interpretou a imagem do labirinto como smbolo dos intestinos, ao passo que o fio de Ariadne seria o cordo umbilical! Um exemplo de como os mitos podem ser usados para vrios fins e, neste caso, abusados... Voc j deve ter ouvido falar no Complexo de dipo, que tem seu nome derivado de um mito grego: o rei dipo, sem saber, assassina seu prprio pai e se casa com sua me; ao saber a verdade, cega a si mesmo. Este mito (e a tragdia grega de Sfocles que dele trata) era muito caro a Freud. Mas com Jung que o recurso aos mitos se torna recorrente na psicologia.

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Teseu mata o Minotauro.

Minotauro pintado pelo espanhol Pablo Picasso (1881-1973) para servir de capa a uma revista com esse nome.

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As aventuras de HrculesO nascimento e a primeira faanha do heri

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m Tebas, cidade grega, vivia uma mulher de rara beleza, Alcmena, esposa do general Anfitrio. Zeus decidiu pr em prtica um plano astucioso para a ter em seus braos. Aproveitou-se da partida de Anfitrio para a guerra e tomou-lhe a aparncia; ao mesmo tempo, seu filho Hermes1 tomou a forma de Ssia, escravo do general. E l foram os dois deuses, metamorfoseados2 em mortais, para a cidade de Tebas. Zeus, ento, ordenou que a Noite se prolongasse como nunca antes e, fazendo-se passar por Anfitrio voltando da guerra, foi ao encontro de Alcmena. Hermes ficou na porta da casa, para impedir que seu pai fosse perturbado. A esposa de Anfitrio, que de nada desconfiava, deitou-se com o pai dos deuses naquela longussima noite. Quando Anfitrio retornou da batalha, criou-se grande confuso, afinal sua esposa lhe falava dos momentos que tinham passado juntos... E Alcmena j sabia, em detalhes, de tudo o que tinha acontecido no campo de batalha antes de o general lhe contar.Hermes: Mercrio, na mitologia latina. Metamorfoseado: transformado.

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Foi preciso a interveno de Zeus para esclarecer tudo. Meses depois, Alcmena deu luz dois filhos: um mortal, ficles, filho gerado com Anfitrio, e um semideus, Hrcules, cujo pai era Zeus. Hera, a ciumenta mulher do pai dos deuses, haveria de perseguir aquele menino desde os seus primeiros dias. No entanto, Hrcules chegou um dia a mamar do seio de sua terrvel inimiga. Foi Hermes quem colocou a criana para mamar no seio de Hera quando a deusa dormia. Hrcules sugou to forte que ela, despertando, afastou rudemente o menino. Gotas de leite escorreram pelo cu, formando o turbilho de estrelas da Via Lctea, o caminho de leite. Vingativa como de costume, Hera tramou a morte daquela prova do adultrio de seu marido Zeus. Um dia mandou ao bero dos filhos de Alcmena, que ento tinham s oito meses, duas serpentes gigantescas. Enquanto ficles chorava e gritava, Hrcules agarrou os rpteis e os estrangulou sem dificuldade. Provava que era, de fato, filho de um deus. medida que o tempo passava, Hrcules crescia incrivelmente; com dezoito anos, sua altura chegou a trs metros. Em sua vida de heri, metade humano, metade divino, cumpriria as faanhas mais difceis, impossveis para um simples mortal.

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Um trecho de comdia (A histria dos amores de Zeus, ou Jpiter, seu correspondente na mitologia romana, e Alcmena, a esposa de Anfitrio, foi narrada muitas vezes atravs dos tempos e nos mais diversos pases, geralmente de forma cmica. O escritor portugus Lus de Cames, por exemplo, escreveu uma comdia chamada Anfitries. Voc ler abaixo uma pequena amostra de uma comdia muito divertida de Plauto, um escritor latino que viveu no sculo III antes de Cristo! A pea chama-se Anfitrio e mostra as confuses criadas com o aparecimento de dois Anfitries e dois Ssias no mesmo espao, a cidade de Tebas. No trecho que selecionamos e adaptamos ligeiramente, Hermes, aqui com seu nome latino de Mercrio, com a aparncia de Ssia, est porta da casa de Anfitrio e faz gestos ameaadores para o verdadeiro Ssia, que chegou h pouco da guerra com seu patro. Note que Mercrio finge no ver Ssia, e os dois falam parte, sem se dirigir diretamente um ao outro.) MERCRIO (fazendo o gesto de dar socos no ar): Seja quem for o sujeito que vier aqui, comer meus punhos. SSIA: Deixe disso! No estou com vontade de comer a esta hora da noite: acabei de jantar. Ento acho melhor voc servir essa sua janta para quem est com fome... MERCRIO (com uma das mos, avaliando o peso30

de um dos punhos): No mau o peso deste meu punho... SSIA: Estou frito! Ele est pesando os punhos. MERCRIO (apontando para Ssia): E se eu desse um afago naquele ali para faz-lo dormir? SSIA: Voc me salvaria: olha que faz trs noites que eu no durmo. MERCRIO: H cheiro de algum homem por aqui, para mal dos seus pecados. SSIA: Ih! Ser que eu soltei algum cheiro? MERCRIO: E ele no deve estar longe, se bem que tenha vindo de longe. SSIA: O homem adivinho. MERCRIO: Meus punhos esto doidos para entrar em ao. SSIA: Se pretende exercit-los em mim, por favor: veja se os amansa antes naquela parede... MERCRIO: Uma voz voou at meus ouvidos. SSIA: No sou mesmo um infeliz? No cortei as asas da minha voz! Ela voa! MERCRIO: certeza: no sei quem est falando aqui perto. SSIA: Estou salvo! Ele no me v. Disse que no sei quem est falando, no eu, j que eu me chamo Ssia, no no sei quem...31

Hrcules, totalmente bbado, urinando... Como eram humanos esses heris gregos!...

Os doze trabalhos de Hrcules I

H

rcules casou-se com Mgara e desse casamento nasceram alguns filhos. Hera, ainda desejosa de vingar-se do adultrio de Zeus, fez com que o heri, num acesso de loucura, matasse-os todos, juntamente com sua prpria me e os filhos de seu irmo ficles. Contaminado por aquele morticnio e desejando se purificar, Hrcules se dirigiu ao orculo de Delfos a fim de consultar o deus Apolo atravs de sua sacerdotisa, a Ptia. Para expiar1 seu crime, a sacerdotisa lhe disse que ele deveria se colocar a servio de seu primo Euristeu por doze anos; por outro lado, com isso conseguiria a imortalidade. OExpiar: pagar, purificar-se de.

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heri obedeceu s ordens de Apolo. Euristeu, que era rei de Micenas, temia que seu primo Hrcules quisesse tomar-lhe o poder e resolveu, ento, dar-lhe doze tarefas que pareciam impossveis de realizar. Contava, assim, ver-se livre daquele homem que lhe causava tanto medo. O primeiro trabalho de Hrcules foi matar o leo de Nemia, um animal monstruoso, que devorava homens e rebanhos. Esse animal, quando no estava atacando, escondia-se numa caverna. Primeiramente, o heri tentou feri-lo com flechas, mas a pele do leo era invulnervel e nada sofria com esse ataque. Depois, deu-lhe, com sua clava,2 fortes golpes e sufocou-o entre seus braos. Morto o leo, Hrcules tirou-lhe a pele e se cobriu com ela. Finalmente, Zeus transformou o animal em constelao. Como segundo trabalho, Hrcules teve de matar a Hidra de Lerna, uma serpente com vrias cabeas (humanas, segundo alguns!) que devastava as terras por onde passava. Seu hlito era mortfero,3 e suas cabeas renasciam em dobro quando cortadas. Alm disso, a cabea do centro era imortal. Mas, com a ajuda de seu sobrinho Iolau, o heri venceu o monstro. De fato, enquanto ia cortando as cabeas da Hidra, Iolau queimava as feridas, impedindo, assim, que da carne machucada nascessem novas. Por fim, Hrcules cortou a cabea do meio, enterrou-a e pslhe por cima um enorme rochedo. Morto o monstro,2 3

Clava: pedao de pau mais grosso na parte de cima, usado como arma. Mortfero: mortal, que causa a morte.

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o heri embebeu suas flechas no seu sangue venenoso, tornando-as tambm envenenadas. A terceira tarefa de Hrcules foi trazer vivo um enorme javali que vivia na montanha chamada Erimanto, na Arcdia, uma regio da Grcia. O heri o fez com facilidade, atraindo o javali para fora de sua toca e fazendo-o caminhar pela neve at se cansar. A, capturou-o e levou-o nos ombros at a cidade de seu primo, que lhe ordenara aquele trabalho. Quando chegou com o animal, Euristeu, apavorado, saiu correndo e se escondeu dentro de um jarro de bronze... Trazer viva a cora do monte Cerinia foi o quarto dever imposto a Hrcules. Era, tambm, um animal gigantesco, mais forte que um touro, e devastava as colheitas. Tinha chifres dourados, ps de bronze e era velocssima. O heri no podia mat-la, pois era um animal consagrado deusa rtemis.4 Hrcules perseguiu-a durante todo um ano, em vo. Um dia, porm, quando ela, j cansada, foi atravessar um rio, Hrcules conseguiu feri-la com uma flecha e captur-la. E levou-a a Euristeu, cumprindo mais uma tarefa impossvel a um mortal qualquer. Matar as gigantescas aves do lago Estnfalo foi o quinto trabalho de Hrcules. Eram em grande quantidade e devastavam colheitas e pomares. Diziam alguns que eram antropfagas, com penas de ao que feriam o inimigo como se fossem setas. Para liquid-las, Hrcules tinha de as fazer sair da espessa floresta, perto do lago Estnfalo, em que se4

rtemis: Diana, na mitologia latina, a deusa das florestas, dos animais e vegetais.

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ocultavam. Teve uma grande idia: com castanholas de bronze, fez um barulho tal, que as aves saram daquele esconderijo. Ento, usando as setas envenenadas com o sangue da Hidra de Lerna, Hrcules as matou uma por uma. O sexto trabalho consistiu em limpar os estbulos do rei Augias, que tinha um imenso rebanho, com milhares de cabeas. Esse homem no limpava as instalaes havia trinta anos. O estrume no era aproveitado como fertilizante nas lavouras, e as terras iam ficando estreis com o passar do tempo. Hrcules fez uma aposta com Augias: receberia uma parte de seu rebanho se conseguisse limpar os estbulos em apenas um dia. Julgando que aquilo era impossvel, o rei prontamente aceitou a aposta. Hrcules, ento, desviou a corrente de dois rios para os estbulos e, com a maior rapidez, conseguiu limpar toda a sujeira acumulada ao longo dos anos.

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Os doze trabalhos de Hrcules II

U

m touro enlouquecido, que soltava fogo pelas ventas, devastava a ilha de Creta. O stimo trabalho de Hrcules consistiu em captur-lo e traz-lo vivo a seu primo Euristeu. Esse, por sua vez, quis consagr-lo a Hera, mas a deusa, ainda colrica contra Hrcules, recusou, e o animal foi solto. A oitava proeza do heri consistiu em capturar as guas de Diomedes, o rei da Trcia. Diomedes aprisionava os estrangeiros que vinham ter a seu pas e com sua carne alimentava os quatro animais. Hrcules matou o rei e deu seu corpo s guas para ser devorado por elas. A filha de Eristeu, Admeta, desejava para si o cinto da rainha das amazonas, Hiplita; obt-lo foi o nono trabalho de Hrcules. As amazonas eram mulheres guerreiras, descendentes de Ares, o deus da guerra, e tinham uma comunidade formada apenas de mulheres. Lutavam com grande bravura. Para se apoderar do cinto da rainha, Hrcules teve de lutar com aquelas mulheres e matar Hiplita. Trazer os bois do imenso rebanho de Gerio, um gigante de trs cabeas, foi a dcima proeza do heri. Para isso, Hrcules teve de ir at a ilha de Eritia, atravessando o Oceano. Como conseguiria isso? Foi preciso empregar a enorme taa do Sol; nela, todos os dias o Sol embarcava de volta para seu palcio no Oriente depois de ter, ao cair da noite, chegado ao Oceano. O Sol s lhe emprestou sua taa quando Hrcules, irritado com o calor ao atravessar um36

deserto, ameaou atingi-lo com suas flechas. No Oceano, to agitadas estavam as ondas, que Hrcules teve de fazer tambm a mesma ameaa a ele para que se acalmasse. Em Eritia, nos confins do Ocidente, Hrcules matou, com sua clava, o co Ortro, um animal monstruoso, e o pastor Eriton, que guardavam o rebanho. Gerio tentou resistir, mas as setas de Hrcules o venceram. Os animais que o heri conseguiu fazer chegar at Euristeu foram sacrificados a Hera. O dcimo primeiro trabalho parecia realmente impossvel: descer ao reino dos mortos, ao sombrio Hades, e capturar o co Crbero. Esse animal aterrorizante, com trs cabeas e as costas e o pescoo cobertos de serpentes, impedia a entrada de vivos naquelas regies bem como a sada dos mortos. O deus Hades consentiu que Hrcules levasse Crbero com a condio de que no usasse armas. Hrcules, ento, atacou o co, segurou-o pelo pescoo e, com a cauda do animal, que tinha um ferro, deu-lhe vrias picadas. E pde sair dos Infernos e levar a Euristeu a estranha presa. O primo, vista daquele ser monstruoso, saiu correndo, apavorado e foi se esconder em seu jarro de bronze... O heri devolveu Crbero a Hades. O ltimo dos doze trabalhos foi trazer mas de ouro do jardim das Hesprides. Essas mas tinham sido o presente de casamento, oferecido pela Terra, nas bodas de Zeus e Hera. A deusa as plantara no jardim dos deuses e, para proteger a rvore e os frutos, deixara-os sob a guarda de um drago de cem cabeas e das trs ninfas do Poente, as Hesprides.37

Hrcules luta com um centauro.

No caminho para o jardim, Hrcules, dentre outras faanhas, libertou Prometeu do rochedo a que estava encadeado. Prometeu, em reconhecimento, advertiulhe que a nica maneira de conseguir colher os frutos era atravs do gigante Atlas, que sustentava o cu sobre os ombros. Ao encontrar Atlas, Hrcules fezlhe uma proposta: seguraria o cu em seu lugar por algum tempo, enquanto o gigante iria colher trs mas do jardim das Hesprides, que ficava perto. E assim aconteceu. Atlas, porm, queria levar pessoalmente as mas a Euristeu, enquanto o heri ficaria suportando o peso do cu. Hrcules fingiu concordar, mas usou de esperteza para escapar a essa situao: pediu ao gigante que segurasse aquele fardo por alguns momentos para que ele pudesse colocar uma almofada sobre os ombros. Atlas voltou a segurar o cu para sempre..., enquanto Hrcules partia, de volta ptria de Euristeu. Levadas ao rei, as frutas foram oferecidas a Hera, que as ps de volta em seu jardim. Assim se cumpriram os doze trabalhos de Hrcules, doze proezas impossveis para os mortais comuns.38

A guerra de TriaAs origens da guerra de Tria

U

m dia, Hcuba, a esposa do rei de Tria, teve um sonho pavoroso; ela, que estava grvida e em breve daria luz, acordou de repente no meio da noite. Logo contou a seu marido Pramo o pesadelo: sonhara que o filho esperado finalmente parecia querer sair de seu ventre, mas, ao invs de uma criana, paria uma tocha. O mais inquietante era que o fogo acabava por se espalhar pela cidade inteira, consumindo tudo. O rei tentou em vo acalm-la e minimizar aqueles terrveis pressgios; por fim, para no restar dvidas, dirigiu-se a um de seus filhos, que sabia como ningum a arte de interpretar os sonhos. A resposta que os pais receberam foi uma horrvel notcia e um conselho ttrico1: Vai nascer uma criana que causar a runa de Tria! Matem-na assim que nascer! Pode-se imaginar como o prognstico2 destruiu a tranqilidade de Pramo e de Hcuba. A criana finalmente nasceu, Pris, um belo menino, robusto e de traos encantadores. Que cegueira a dos homens!: contando de acordo com as luas, segundo um velho costume, levara dez meses o nascimento de Pris, assim como dez anos levaria o cerco de Tria,Ttrico: terrvel, medonho. Prognstico: previso, profecia.

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terminando com o espantoso parto de guerreiros de um cavalo de madeira! Mas Hcuba, me, no aceitava a idia de ver morto aquele filho e conseguiu fazer com que o menino fosse abandonado no Ida, uma cadeia de montanhas e bosques onde certamente ele no poderia sobreviver. Assim, Pris certamente morreria, para salvao de toda uma cidade, mas de uma maneira menos chocante para os pais. De repente, porm, um acaso muda o curso dos acontecimentos. Naquele mundo em que os homens sentiam sempre os deuses se manifestando e participando dos acontecimentos cotidianos, era difcil no ver a mos divinas, precipitando a ao humana para cumprir um plano arquitetado nas alturas. Pastores encontraram a criana desprotegida e destinada morte e a recolheram e criaram como se fosse o filho de um deles. Prodgio3 inacreditvel: fora salva da fome graas a uma ursa, que foi vista a seu lado amamentando-o... Atlas.3

Prodgio: acontecimento sobrenatural, milagre.

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Com o passar do tempo, aquele menino cresceu robusto e se tornou um jovem de valor, que defendia os rebanhos dos pastores contra o ataque dos ladres e das feras. Chamaram-no, ento, Alexandre, isto , em grego, o protetor dos homens. E um belo dia o jovem voltou para Tria e revelou quem era, para surpresa de todo mundo, j que os sditos de Pramo estavam acostumados a participar anualmente dos jogos que o pai celebrava em memria do filho supostamente morto quando criana. Pramo e sua esposa o receberam muito bem e, esquecidos daquela profecia sinistra, cumularam4 Pris de tudo a que tinha direito o filho de um rei. No podiam imaginar o que o Destino j havia tramado durante a permanncia de Pris-Alexandre entre os pastores do Ida! Nas montanhas, um dia, Pris tivera de assumir o papel de juiz num dos julgamentos mais difceis que se possa conceber. Tudo comeou com ris, a deusa Discrdia. Era um monstro horrvel de ver, com serpentes ao invs de cabelos, os olhos em brasa e a roupa ensangentada. Estava sempre pronta a lanar deuses contra deuses, homens contra homens, deuses contra homens, em suma, a infelicitar a vida de mortais e imortais com suas intrigas. Um dia, durante as bodas de Peleu e da ninfa Ttis, os futuros pais do grande Aquiles, a Discrdia, enraivecida por no ter sido convidada para a festa, lanou entre as deusas Hera, Palas Atena e Afrodite5, uma ma de ouro, com uma inscrio: mais bela.4 5

Cumular: encher de, dar em grande quantidade. Hera, Palas Atena e Afrodite: na mitologia romana, Juno, Minerva e Vnus, respectivamente.

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Uma simples frase causou a maior confuso, especialmente entre as trs belssimas deusas, que disputavam acirradamente6 o ttulo de a mais formosa. Zeus, desejando pr fim discusso, decidiu organizar uma espcie de concurso de beleza entre as trs rivais. Talvez para evitar ciumeiras e protees entre os imortais, determinou que o juiz seria um ser humano, ningum menos do que o tambm formoso pastor Alexandre-Pris! Mas, com um mortal falvel7 e divindades dispostas a tudo para satisfazer a vaidade e no macular a reputao, aquela disputa no seria das mais imparciais... Cada uma das deusas prometeu algo ao juiz: Voc reinar sobre toda a rica sia, se me escolher, disse Hera, que era casada com o supremo rei do Olimpo8, Zeus.6 7

Acirradamente: apaixonadamente. Falvel: que pode se enganar, que pode falhar. 8 Olimpo: monte da Grcia considerado como morada dos deuses celestes. Veremos como esse nome comparece num poema do portugus Fernando Pessoa, escrito com o heternimo de Ricardo Reis. Mas antes preciso falar um pouco sobre o poeta. Fernando Pessoa, alm de escrever poemas e prosa em seu prprio nome, escrevia tambm adotando heternimos, nomes como de Ricardo Reis, Alberto Caeiro e lvaro de Campos. No so propriamente pseudnimos (isto , nomes falsos) porque por detrs deles no est simplesmente a figura de Fernando Pessoa. Cada heternimo tem sua biografia, inventada pelo poeta, sua maneira de escrever, seus temas prediletos, como se se tratassem de pessoas reais, diferentes de Fernando Pessoa. O poeta, em suas cartas, dizia que desde criana se dedicava a criar seres imaginrios com os quais como que convivia; ao crescer, julgou- se vtima de uma doena psicolgica, uma espcie de neurose. Como escritor, como se Pessoa se desdobrasse em vrios ou criasse, como um autor de teatro, personagens que assumissem a responsabilidade pelo que expressam; assim, essas vrias vozes chegam mesmo a comentar os poemas uns dos outros. Imagine esta situao: voc pode inventar, digamos, dois personagens, que tm uma biografia diferente da sua, um rosto diferente do seu, uma maneira de falar que no a sua etc.; mais: quando escreverem, cada um dos... trs ter algo especial na sua maneira de expressar! Voc vai ler, agora, um poema do heternimo Ricardo Reis, cuja poesia fala do mundo pago (isto , pr-cristo), com seus deuses, sua filosofia, idias e preferncias artsticas. H pouco tempo, Maria Bethnia gravou, no seu disco Imitao da Vida, uma msica de Sueli Costa cuja letra o poema de Ricardo Reis que vai abaixo. Grife os elementos do mundo antigo que voc consegue identificar:

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D-me seu voto e ser o mais sbio dos homens e vencer todas as batalhas de que participar, prometeu, majestosa, Palas Atena, a mais sbia e a mais guerreira dentre as deusas. Mas foi a dourada Afrodite, com seu sorriso cheio de encantos e seus olhos brilhantes, seu doce perfume e seus gestos delicados, que seduziu o pastor, tanto mais que prometeu algo equiparvel9 maravilha que ele tinha diante de seus olhos: A mais bela das mortais, a grega Helena, mulher de Menelau, compartilhar do seu leito, disse a deusa do desejo amoroso, sempre doce e amarga ao mesmo tempo, como costuma ser o amor. Terminou com a vitria de Afrodite aquele julgamento, mas no a guerra das deusas nem as suas conseqncias pelo contrrio, ali Tria comeava a caminhar para a runa ltima e definitiva. O pomo10 dourado da Discrdia arruinaria a cidade de Pramo e levaria a gregos e troianos muitas desgraas, lgrimas e dores sem conta. As deusas perdedoras, Hera e Palas Atena, ajudariam, na medida de suasSegue o teu destino, Rega as tuas plantas, Ama as tuas rosas O resto a sombra De rvores alheias. A realidade Sempre mais ou menos Do que ns queremos. S ns somos sempre Iguais a ns prprios. Suave viver s. Grande e nobre sempre Viver simplesmente.9 10

Deixa a dor nas aras Como ex-voto aos deuses. V de longe a vida. Nunca a interrogues. Ela nada pode Dizer-te. A resposta Est alm dos deuses. Mas serenamente Imita o Olimpo No teu corao. Os deuses so deuses porque no se pensam.

(ara: altar, ex-voto: na Antigidade, como hoje, as pessoas pediam curas aos deuses e faziam promessas; quando atendidas, cumpriam-nas e, muitas vezes, isso significava colocar no templo uma oferenda: no caso do doente, poderia ser uma imagem do rgo do corpo afetado. A essa imagem de agradecimento chamamos ex-voto).

Equiparvel: comparvel. Pomo: fruta com polpa carnosa e forma esfrica, como a ma, a pra e a rom.

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foras, os inimigos dos troianos na longa guerra entre exrcitos da Europa e da sia. Um dia Pris, acompanhado de um de seus irmos, viajou para a cidade de Esparta, ptria de Menelau, com o objetivo de raptar-lhe a esposa, que deveria ser sua, segundo a promessa de Afrodite. Foi recebido com uma hospitalidade digna dos gregos, numa recepo que unia anfitrio e hspede em fortes laos de direitos e deveres mtuos. O marido, que de nada desconfiava, teve, pouco depois, de viajar para a ilha de Creta e, acreditando no pacto de hospitalidade, deixou sua prpria esposa encarregada de tratar bem os troianos. Helena, diante daquele jovem ainda mais belo por obra de Afrodite, apaixonou-se e, sabendo dos planos de Pris, longe de precisar ser levada fora,11 resolveu com ele fugir levando seus tesouros. Foi bem recebida pelo rei Pramo, que no podia imaginar que desgraa acolhia em seus muros junto com aquela mulher que a todos encantava. No futuro, tambm um cavalo de madeira seria recebido com alegria e dele nasceria um rastro de destruio e morte. Ao saber do que ocorrera, Menelau reclama de Tria a esposa, em vo. Furioso e decidido a se vingar, conclama todos os seus aliados a marchar contra a cidade, sob o comando de seu irmo Agammnon. Naquele exrcito, iam heris que o mundo jamais11

Segundo outra verso da mesma histria, Helena teria sido, de fato, raptada.

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esqueceria: o jovem e impetuoso Aquiles, o arguto12 Odisseu, ou Ulisses, to hbil na ao quanto nas palavras, e tantos outros. Tria, tambm chamada lion, assistiria a dez anos de batalhas em que combateriam os mais notveis dentre os gregos e os troianos, em duelos que tinham muitas vezes alguma participao divina. Poetas e artistas praticamente do mundo todo, e em quase todas as pocas, recordariam inmeras vezes aquele conflito terrvel entre Europa e sia, que at hoje atia a nossa imaginao.

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Arguto: esperto, perspicaz, sutil.

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A ira de Aquiles

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o dcimo ano do cerco cidade de Tria, os gregos foram surpreendidos por uma terrvel peste, enviada pelas setas do deus Apolo. Os animais foram os primeiros a serem atingidos, mas logo a doena contaminava os homens, multiplicando pelo acampamento as piras erguidas para incinerar1 os mortos. Condodo2 pela sorte dos seus, Aquiles reuniu o exrcito. Conhecedor do presente, passado e futuro, o adivinho Calcas tomou a palavra perante a assemblia dos gregos: Apolo est irritado com a ao de Agammnon. Como todos sabem, o rei maltratou o sacerdote do deus, quando este veio reclamar de volta a filha Criseida, aprisionada e escravizada por ele na cidade de Tebas da Msia. Agammnon no quis devolver a moa ao pai; enquanto isso no ocorrer, Apolo nos infligir dores sem conta. Agammnon enfureceu-se com aquelas palavras, mas comprometeu-se a restituir a sua presa de guerra, desde que obtivesse uma compensao. Suspeitando que o rei desejava tirar-lhe sua escrava Briseida para substituir a filha do sacerdote, Aquiles ferveu de indignao: Despudorado,3 co, ns o seguimos at aqui para que seu irmo Menelau se vingasse da afronta dos troianos, e voc ameaa tirar-me Briseida? Eu

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Incinerar: queimar. Condodo: com d. 3 Despudorado: sem pudor, sem-vergonha.

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lutei tanto para captur-la! Vou retirar-me para a minha cidade natal. No quero ficar aqui, humilhado, conquistando bens e riquezas s para voc. V embora, ento replicou Agammnon. Voc s aprecia disputas, guerras e batalhas. J que me levam Criseida, tomarei para mim a sua Briseida, escrava de bela face, para que saiba como sou mais poderoso do que voc. O filho de Peleu, Aquiles, ardeu de tamanho dio que chegou a pensar em matar o rei. Foi ento que, enviada por Hera, que queria proteger um e outro, Palas Atena desceu terra e puxou Aquiles pelos cabelos loiros. S o heri conseguia v-la; perguntou-lhe o que ela fazia por ali. Vim para acalmar sua ira, disse Palas Atena, a deusa de olhos azuis. No use a espada contra o rei, mas o maltrate apenas com as palavras. Um dia, por causa da violncia que esto fazendo a voc, esses mesmos homens lhe daro o triplo de bens. Por isso, contenha seu dio e obedea! Aquiles, ento, obedecendo, desistiu de usar a espada, mas cobriu o rei com pesados insultos; Agammnon replicou com a mesma dureza. Permaneceram os dois cada qual em sua Elmo Grego.47

posio, uma disputa que seria prejudicial aos gregos. Aps a dissoluo da assemblia, Aquiles retirou-se para sua tenda, acompanhado do fiel amigo Ptroclo e de outros companheiros. Cruzava os braos, deixando o exrcito grego entregue prpria sorte. Pouco depois, vieram buscar a sua escrava Briseida, que o heri deixou partir. Sozinho beira-mar, Aquiles chorava e invocava a me, a deusa Ttis, de ps argnteos.4 Queixava-se de no receber a honra que os deuses lhe prometeram em sua breve vida. Surgindo dos abismos do mar como uma nvoa, a deusa acariciou o filho e, ao saber o motivo daquele pranto, prometeu-lhe queixar-se pessoalmente a Zeus de uma tal afronta. Doze dias depois, quando o supremo rei e pai dos deuses retornou de uma viagem frica, Ttis, abraada a seus joelhos, como era costume quando se suplicava a algum, falou-lhe assim: Zeus pai, se eu, entre os imortais, alguma vez te ajudei, atende minha splica: concede honra a meu filho, destinado a uma morte precoce. D vitria e glria aos troianos enquanto os gregos no atriburem a ele as honras devidas. Apesar de temer a ira da esposa Hera, que apoiava os gregos, Zeus comprometeu-se a atender ao pedido, franzindo as sobrancelhas num sinal de aprovao; seus cabelos de ambrosia5 se agitaram e todo o Olimpo tremeu. Dias de derrotas se sucederam para os gregos, que sentiram na pele a falta que fazia Aquiles, o heri de4 5

Argnteo: de prata. Ambrosia: (pronuncie ambrosa) substncia divina que tambm servia de alimento para os deuses.

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ps ligeiros. Sempre mais desconsolados a cada dia que passava, os gregos resolveram enviar uma embaixada de conciliao tenda do heri. Mas Aquiles recusou os ricos presentes que lhe traziam e, dentre muitas outras palavras, proferiu estas: Minha me Ttis disse-me que o destino me reservava uma escolha: se eu permanecer em Tria, combatendo, morrerei conquistando grande glria, mas se eu voltar para casa, terei uma vida longa, ainda que sem glria. Voltem, vocs todos, pois no vero jamais o fim da cidade de Pramo. Amanh decidirei se voltarei para casa ou permanecerei aqui. Acumulavam-se os sofrimentos dos gregos. Ptroclo, ento, o grande companheiro de Aquiles, pediu-lhe que, ao menos, permitisse que ele usasse sua armadura e suas armas para ir em ajuda aos companheiros. Aquiles consentiu. No campo de batalha, Ptroclo faz grande carnificina entre os inimigos troianos, mas Apolo intervm. Dissimulado em uma densa nvoa, o deus chega perto de Ptroclo, golpeia-o na espinha e nos ombros e derruba o elmo6 de sua cabea. Heitor, ento, o maior dentre os guerreiros troianos, passaria a usar aquele capacete que outrora protegia Aquiles e jamais tinha cado ao cho antes daquele momento. Apolo continua a agir sobre Ptroclo; rompem-se a lana e o cinturo que o heri trazia consigo; cai por terra o seu escudo, e o deus ainda lhe tira a couraa7. O heri pra, completamente aturdido. Um troiano de nome Euforbo o fere, enterrando uma6 7

Elmo: capacete. Couraa: armadura que protege o peito e as costas do combatente.

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lana nos seus ombros. Heitor, percebendo que Ptroclo est ferido e procura se salvar retirando-se da batalha, fere-o com uma lana no ventre. O troiano parecia um leo vitorioso depois de disputar com um javali indomvel a posse de uma mina de gua. Diz Heitor: Ptroclo, voc estava certo que iria tomar de assalto a nossa cidade e escravizar as mulheres troianas. Tolo! Os abutres o devoraro! Aquiles no poder mais proteger voc. Mas Ptroclo ainda teve foras para responder: Isso mesmo, Heitor, voc se vangloria com uma vitria que Apolo e Zeus lhe deram; mas foram os deuses que tiraram minhas armas. Mas oua bem o que tenho a lhe dizer: Voc no ir muito longe; logo viro ao seu encontro a morte e o destino invencvel. Morrer s mos de Aquiles. Depois de assim falar, a alma lhe voou dos membros e desceu ao reino dos mortos, o sombrio Hades, lamentando sua sorte,8 j que deixava um corpo h pouco cheio de vigor e juventude. Heitor dirigiu ao morto estas palavras: Ptroclo, por que me prediz terrvel destino? Talvez Aquiles me preceda, ferido pela minha lana. Ento o troiano arrancou a sua arma do corpo do grego e pisou-o. Foram levar a notcia a Aquiles, que naquele momento tinha o corao inquieto e a mente cheia de8

Sorte: destino.

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receios. J pressentia a morte do companheiro. Ao receber a confirmao de suas suspeitas, o heri demonstrou sua aflio: cobriu de cinzas o rosto e a veste e caiu por terra arrancando os cabelos. Chorava e gritava desconsolado. A ninfa Ttis ouviu os lamentos do filho e gemeu; todas as ninfas do mar acompanharam sua dor e choraram. A me foi consolar Aquiles, que se sentia culpado pela morte do amigo e pretendia voltar ao combate para vingar a morte de Ptroclo. Ttis prometeu ao filho novas armas, j que as dele haviam sido tiradas do corpo de Ptroclo e agora pertenciam a Heitor. A promessa logo se cumpriu. A pedido da ninfa, armas novas foram fabricadas pelo deus ferreiro, Hefesto.9 Chamava a ateno, sobretudo, um grande escudo em que o deus representara a terra, o mar, o cu com seus astros, alm de cidades e campos. Quando a Aurora do dia seguinte despontou,10 trazendo a luz aos mortais e imortais, Ttis levou ao filho as armas fabricadas por Hefesto. Encontrou-o chorando, abraado ao corpo do amigo. Aquiles, ento, dirigiu-se a Agammnon e disselhe que desistia de sua ira; pediu-lhe que esquecesse a disputa que os tinha separado. O rei, por sua vez, devolveu-lhe Briseida e confirmou que lhe daria todos os presentes prometidos quando da embaixada tenda do heri. Estava selada a reconciliao, para desgraa dos troianos. A ira de Aquiles iria ter, agora, outro alvo.9 10

Hefesto: na mitologia latina, Vulcano. Despontar: surgir.

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A morte de Heitor

A

ps fazer as pazes com Agammnon, Aquiles retornou ao campo de batalha, onde guerreava com fria. Rpido por causa de seus ps ligeiros, parecia um corcel galopando a toda velocidade ou uma estrela brilhando atravs da plancie. Tomado por um mau pressentimento, o rei Pramo suplicou a seu filho Heitor que no o enfrentasse. Hcuba, sua me, em lgrimas, fez-lhe a mesma splica. O troiano, porm, estava decidido a no ceder ao apelo dos pais. No entanto, quando Heitor avistou Aquiles, com sua armadura de bronze brilhando como um fogo ou o sol nascente, teve medo e fugiu. Aquiles voou atrs dele, perseguindo-o sem descanso. Estava em jogo, naquela corrida, a vida de Heitor. Assistiam a esse espetculo no s gregos e troianos mas tambm os deuses; Zeus sentiu piedade do filho de Pramo. Os heris corriam sem que um conseguisse alcanar o outro. O pai e rei dos deuses, ento, pesou numa balana de ouro os destinos dos dois: o resultado indicou claramente que a vida do troiano estava por um fio. Diante disso, Apolo, que at ento o vinha protegendo, abandonou-o. Para precipitar a morte de Heitor, Atena se transformou no mais querido dentre seus irmos, Defobo, e o estimulou a ir ao encontro de Aquiles. Heitor disse ao grego estas palavras: No vou mais fugir. Dei trs voltas ao redor dos muros de Tria sem ousar enfrent-lo, mas agora52

basta. Se eu vencer, devolverei seu corpo aos seus companheiros e, se for voc o vencedor, devolva meu corpo aos meus. No diga isso, maldito!, respondeu Aquiles. Nunca poderemos ser amigos, assim como acontece com o homem e o leo, com o lobo e o cordeiro, que se odeiam. Voc pagar pelos sofrimentos dos meus companheiros mortos pela sua lana. Depois destas palavras, Aquiles atirou a lana contra Heitor. Como este se desviou, a arma foi se fincar no cho. A prpria Palas Atena a pegou de volta e, sem ser vista pelo troiano, entregou-a a Aquiles. Heitor, porm, atirou a sua contra o heri, atingindo o centro de seu escudo. O troiano, irritado, de repente percebeu que o falso Defobo no estava mais do seu lado; compreendendo que fora vtima dos deuses, deu-se conta de que sua morte j estava prxima. Resolveu morrer lutando: desembainhou a espada e se precipitou contra Aquiles. No entanto, o grego fere o pescoo de Heitor, num ponto deixado descoberto pela armadura que o troiano portava, a mesma que tomara de Ptroclo. Ao v-lo tombar na poeira, Aquiles lhe diz palavras duras; Heitor ainda lhe dirige um pedido: Suplico-lhe, por seus pais, no deixe meu corpo sem sepultura, no o entregue aos ces dos gregos. Aceite resgate em troca dele e o devolva a Tria. Ah!, co, deixe de splicas. Nem se Pramo quisesse comprar com ouro o seu corpo, eu o entregaria. Ces e aves o devoraro, replica o grego.53

Morto Heitor, Aquiles lhe furou os calcanhares, passou por eles correias de couro, amarrou, pelos ps, o corpo a seu carro e partiu em direo aos navios gregos. Ao assistir a essa cena, a mulher de Heitor, Andrmaca, depois de um desmaio, chorando, ps-se a lamentar a sorte do marido, dela mesma e do filho pequeno de ambos, Astanax. Tria toda acompanhava seu pranto. Enquanto isso, tambm Aquiles chorava, pensando em Ptroclo. E todos os dias, ao nascer do sol, tomado de fria, voltava a ligar o corpo de Heitor a seu carro e dava trs voltas em torno do tmulo do amigo. Apolo, porm, encarregava-se de evitar que o corpo do troiano se desfigurasse com o tratamento que vinha recebendo. At que, dez dias depois, o deus, indignado, assim falou aos outros habitantes do Olimpo: Cruis! Por acaso Heitor no fazia sacrifcios a todos vocs? E agora no querem salvar nem mesmo seu corpo para que seus familiares possam inciner-lo, prestandolhe todas as homenagens? Vocs querem ajudar Aquiles, que tem no peito um corao intratvel, como um leo feroz. O que ele faz com o corpo de Heitor no nem belo nem justo. Aquiles cuida do ferimento de seu amigo Mas Zeus, lembra- Ptroclo.54

do dos sacrifcios que Heitor sempre lhe fazia, ps em prtica um plano para fazer Aquiles entregar o corpo do inimigo a seu pai. Chamou Ttis ao Olimpo e encarregou-a de enviar a seu filho uma mensagem: os deuses estavam irritados com seu comportamento, por isso ele deveria devolver o corpo de Heitor aos troianos. Por outro lado, mandou ris, a mensageira divina, a Pramo, para estimular o velho rei a ir oferecer presentes a Aquiles como resgate pelo corpo do filho. Ao ouvir as palavras de Zeus pela boca da me, Aquiles se comprometeu a aceitar o resgate. Quanto a Pramo, aps receber o recado de ris, consultou a esposa, mas Hcuba lhe disse que no fosse ao encontro daquele homem cruel; finalmente, o rei resolveu ir mesmo assim ao encontro do grego. Levava-lhe, entre outros presentes, belssimos mantos, tnicas e moedas de ouro. Zeus o viu partindo e enviou o deus Hermes para proteg-lo no caminho. Chegando tenda de Aquiles, Pramo o encontrou ainda Aquiles sonha com o amigo morto Ptroclo, em mesa; tinha acabado quadro do suo Henry Fuselli (1741-1825). O pintor parecia ter certa predileo por temas de comer e beber. Em como espectros e aparies noturnas.55

atitude de quem suplica, segurou-lhe os joelhos e beijou a mo que tinha matado tantos filhos seus. Disse-lhe: Lembre-se, Aquiles, de seu pai, que tem a mesma idade que eu. Ele se alegra por saber que voc est vivo e aguarda com ansiedade que seu filho volte para casa. Mas a mim, no me restou nenhum dos filhos de valor que gerei. Voc matou o ltimo, Heitor, que protegia Tria e seu povo. Venho resgatar seu corpo, trazendo muitos presentes. Respeite os deuses, Aquiles, e, pensando em seu velho pai, tenha piedade de mim. Eu sou o mais infeliz dos mortais, j que levo aos lbios a mo do homem que matou meus filhos! A essas palavras, Aquiles, pensando no pai e em Ptroclo, chorou, acompanhando as lgrimas de Pramo por Heitor. Finalmente, tomou a palavra: Infeliz, voc sofreu muito em seu corao! Deixemos ambos nossas dores encerradas no peito: no se ganha nada com o pranto. Zeus distribui aos homens bens e males, misturados. Suporte! Chorando assim, no far seu filho reviver mas conseguir apenas sofrer ainda mais. Aquiles, ento, mandou que as escravas lavassem o corpo de Heitor e o untassem com leo. Concluda essa tarefa, colocaram-lhe uma tnica. O prprio Aquiles o levantou e depositou no carro. Depois disso, convidou Pramo a comer junto com ele. Pramo observava, admirado, o grande e belo Aquiles, que parecia um deus; Aquiles, por sua vez, admirava o rosto nobre de Pramo.56

Antes de irem dormir, o jovem prometeu ao velho rei que haveria uma trgua para que ele e os seus pudessem prestar as honras devidas ao corpo de Heitor. Temendo por Pramo, que estava em campo de inimigos, o deus Hermes veio a ele, incitou-o a partir e guiou-o em direo a Tria. Chegaram quando a Aurora estendia seu manto sobre toda a terra. Dez dias depois, ardia na pira o corpo de Heitor. Quando, no dia seguinte, a Aurora de dedos cor de rosa despontou1, a multido se reuniu em torno dela e prestou as ltimas homenagens quele homem que tinha conseguido conter o avano do inimigo por tantos anos. Este foi o fim de Heitor, o heri domador de cavalos.

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Despontar: surgir.

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O centauro Quiro ensina o menino Aquiles a tocar ctara.

O calcanhar de Aquiles O mais bravo dos guerreiros gregos era Aquiles, o heri de ps ligeiros. Sendo filho de um mortal com uma ninfa, estava destinado morte. Mas sua me, Ttis, tentou desesperadamente torn-lo imortal. Segurando o filho pelo calcanhar, ela o mergulhava nas guas do Estige, o rio dos Infernos, que tornava invulnervel o que nele mergulhasse. A ninfa, porm, no percebeu que o calcanhar, por onde segurava Aquiles, acabou no sendo tocado por aquela gua miraculosa; assim, essa parte do corpo do heri seria a nica que armas humanas ou divinas poderiam atingir. Na sua infncia, Aquiles foi educado por um ser de vastos conhecimentos e muita sabedoria: o centauro Quiro. Esse mestre, que tambm educara outros heris, ensinou ao menino a medicina, a arte da caa, a msica e muito mais. Quando os gregos preparavam a expedio para58

punir Tria, Ttis, assustada, j que sabia que o filho teria vida breve se participasse da guerra, tentou escond-lo. Vestiu-o de mulher e o colocou entre as filhas do rei de Ciros, uma ilha grega. Ali viveu cerca de nove anos. Chegou a se casar, em segredo, com uma das filhas do rei. No entanto, Calcas, o adivinho do exrcito grego, advertiu: Tria no cair se Aquiles no combater ao nosso lado! Ele est escondido na ilha de Ciros. Odisseu,1 ento, sempre astuto, descobriu um modo de fazer Aquiles revelar sua identidade verdadeira e, assim, ser obrigado a partir para a guerra. Disfarou-se de mercador e se dirigiu at Ciros. Ao exibir suas ricas mercadorias, percebeu que todas as moas se interessavam pelas roupas, tecidos, jias e perfumes que trazia, menos uma; uma delas, apenas, parecia indiferente a tudo aquilo. Mas ao descobrir, no fundo de um dos cestos do mercador, armas reluzentes, aquela moa, na verdade Aquiles, imediatamente as pegou e manuseou com interesse. Outra verso da histria diz que Odisseu fez ressoar pelo palcio real uma trombeta de guerra, fazendo todas as moas fugirem correndo, assustadas; Aquiles, porm, permaneceu onde estava e pediu armas para combater. Seja como for, traiu-se, e Odisseu o conduziu para junto do exrcito grego. Levava consigo, alm de companheiros de armas, duas pessoas que lhe eram muito prximas: Fnix, um preceptor,2 homem j velho, e Ptroclo, seu maior amigo.1 2

Odisseu: Ulisses. Preceptor: mestre.

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Lutou bravamente ao lado dos outros gregos, sem nunca ter visto a queda de Tria. Quando morreu Heitor, s mos de Aquiles, as amazonas vieram em socorro da cidade. O heri lutou com elas e matoulhes a rainha, Pentesilia, que combatia com o rosto coberto. Ao receber o golpe mortal, o rosto da amazona se descobriu. Frente a frente com a beleza extraordinria das faces de Pentesilia, quando ela j desfalecia3, Aquiles sentiu um misto de amor e compaixo. Dizem alguns que um outro amor ajudaria a provocar sua morte. Apaixonado por uma das cinqenta filhas de Pramo, Polxena, marcou com ela um encontro. Pris, irmo da moa, preparou-lhe uma emboscada. Quando Aquiles chegou ao lugar combinado, o troiano acertou-lhe o calcanhar com uma flecha. Mas h quem diga que Aquiles morreu no campo de batalha, ferido por uma flecha do deus Apolo, que ordenara que ele se retirasse sem que o jovem obedecesse. Naquele momento, Aquiles conseguira chegar perto das muralhas troianas; Apolo, ento, guiou a flecha disparada por Pris at o ponto fraco do grego. Depois de lhe queimarem o corpo, os companheiros puseram suas cinzas numa urna de ouro, misturadas com a do amigo Ptroclo. Ao permanecer lutando em Tria, fizera sua escolha: viver uma vida breve e gloriosa, ao invs de envelhecer na terra natal, como um desconhecido qualquer.3

Desfalecer: perder as foras (aqui, ao morrer).

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O cavalo de madeira e o fim de Tria

A

ps dez anos de luta, sem que Tria parecesse ceder, os gregos resolveram finalmente dar o golpe decisivo contra a cidade. Empregaram o que seria muitas vezes reconhecido como seu maior talento: a inteligncia e a astcia. Quem teve a idia decisiva foi o preferido da deusa da sabedoria, Odisseu, ou Ulisses, um homenzinho atarracado, dotado de uma sagacidade1 que o tornava indispensvel ao exrcito. Seguindo instrues desse homem astucioso, Epeu construiu um grande cavalo de madeira e em seu enorme ventre entraram os maiores guerreiros da Grcia. Os gregos fingiram que tinham partido de Tria e que finalmente retornavam para casa, cansados da longa e intil guerra. Na verdade, esconderam-se na ilha de Tnedos, que ficava prxima. Antes da partida, fizeram chegar aos troianos o rumor de que o enorme cavalo de madeira que haviam construdo era uma oferenda deusa Palas Atena, para que ela assegurasse um bom retorno a todos. Aliviados, os troianos saem dos muros que os protegiam e visitam o campo de tantas batalhas. Diante da alegria despreocupada dos seus, o sacerdote de Netuno, Laocoonte, se revolta: Que loucura essa, infelizes cidados? Acham que os inimigos foram mesmo embora, que os dons2Sagacidade: astcia. Dons: presente.

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dos dnaos3 no contm nenhuma armadilha? Temo os gregos mesmo quando trazem presentes! E assim dizendo atirou uma lana no cavalo, cujo interior ressoou e pareceu soltar um gemido. De repente se ouviu um clamor de vozes; pastores troianos traziam para junto do rei um jovem grego que tinham encontrado amarrado no muito longe dali. A notcia logo se espalhou e todo mundo acorreu para ver o rapaz e saber o que ia acontecer com ele. Admirados, ouviram suas primeiras palavras: Ai!, que resta para este infeliz? No h lugar para mim entre os gregos, ao passo que os troianos querem se vingar com meu sangue! Eram palavras entrecortadas de gemidos e lgrimas. Atiaram a curiosidade de todo mundo, e talvez j comeasse a nascer ali um pouco de piedade no corao dos troianos. Todos o estimularam a dizer quem era e o que lhe acontecera. Disse ele: No negarei que sou grego; posso ser um pobre infeliz, mas no um mentiroso. O odioso Odisseu quis se vingar de mim, porque eu era companheiro de Palamedes. Odisseu odiava tanto esse homem que conseguiu fazer, atravs das mais srdidas intrigas, que os gregos o condenassem morte por traio. Eu fiquei indignado com o fim daquele inocente, prometendo ving-lo, e Odisseu nunca me perdoou isso; pelo contrrio, comeou a fazer ameaas, a tecer acusaes falsas. No3

Dnaos: gregos.

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descansou enquanto no conseguiu a ajuda do adivinho Calcas... Mas por que fico falando dessas coisas? Se vocs consideram todos os gregos da mesma forma, vamos, matem-me! Odisseu ficaria bem contente com isso, e Menelau e Agammnon lhes dariam uma boa recompensa... Aquela era uma interrupo estratgica: os troianos arderam de curiosidade para saber o que acontecera com Sino e que estaria fazendo o adivinho naquela histria intrigante. Assim, rogaram que o rapaz continuasse a narrar os crimes da raa odiada. Fingindo como sempre, Sino prosseguiu: Cansados dessa guerra, os gregos muitas vezes pensaram em ir embora, mas o mau tempo sempre os impedia. Um vento violento varria as ondas do mar, o cu se cobria de nuvens e trovejava espantosamente, sobretudo depois que o cavalo de madeira construdo para a deusa Palas ficou pronto. Consultado o orculo de Apolo, os deuses nos mandaram esta mensagem horrvel: Com sangue se deve buscar o retorno, sacrificando uma alma grega! Ficamos todos apavorados, perguntando-nos quem de ns os destinos e Aquiles, no momento em que vai matar Pentesilia. O Apolo estavam re- jovem se apaixona, tragicamente, pela amazona.63

clamando.Odisseu, ento, traz o adivinho Calcas e o obriga a dizer que os altares estavam destinando morte... Sino, a mim, que aquele velhaco queria h tanto tempo pr a perder! Todo mundo, aliviado de escapar morte, aprova as palavras de Calcas. Chega o dia do sacrifcio; amarram-me e colocam fitas em volta da minha cabea, polvilhada4 com cevada e sal, como costume fazer com os animais oferecidos aos deuses em sacrifcio. Fugi, confesso a vocs, mas j no tenho esperana de rever meus queridos filhos e meu saudoso pai. Pelos deuses do alto e pelos numes5 da verdade, suplico-lhes, tenham compaixo de uma alma que suportou tamanhos sofrimentos sem merecer! Sino terminou esse discurso em lgrimas, comovendo o corao dos troianos. Por fim, com a mesma habilidade, contou como o cavalo fora construdo para obter as boas graas de Palas Atena. Por recomendao de Calcas, tinham feito algo enorme, que fosse impossvel de penetrar nos muros de Tria, afinal a posse do cavalo significaria a proteo da deusa para seu povo. Se o recebessem na cidade, um dia Tria haveria de fazer uma guerra vitoriosa aos gregos; porm, se maltratassem o dom de Palas, grande mal adviria para o Imprio de Pramo. Mas eis que de repente um prodgio aterrador veio perturbar a mente e o corao dos troianos ainda mais. Quando Laocoonte, que atingira com a lana o4 5

Polvilhado: salpicado. Numes: divindades.

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Conjunto em mrmore retratando a morte de Laocoonte. Atualmente se encontra no Museu do Vaticano, em Roma.

cavalo deixado pelos gregos, estava sacrificando um touro na praia, da ilha de Tnedos, atravs das guas tranqilas, duas serpentes gigantescas comearam a vir em sua direo. Tinham enormes anis e seus peitos erguidos e suas cristas cor de sangue se sobressaam sobre as ondas. Faz-se um estrondo no mar espumante. E eis que logo chegam praia e se dirigem ao sacerdote com os olhos ardentes injetados de sangue e fogo e vibrando as lnguas sibilantes.6 A esse espetculo horrendo, os troianos fogem em disparada, brancos como cera. Os monstros do mar buscam Laocoonte e envolvem em seus anis gigantescos o sacerdote e seus dois filhos. O pai estava armado, mas as serpentes o prendem com ns apertados em volta do seu corpo, impedindo qualquer reao. Laocoonte tenta em vo afrouxar os ns, ainda segurando nas mos as fitas do sacrifcio,6

Sibilantes: que sibilam, isto , fazem rudo semelhante a um assobio, como acontece com as cobras.

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agora tingidas de sangue e do negro veneno dos monstros. Ao mesmo tempo solta em direo aos astros horrendos berros. Pareciam os mugidos de um boi que foge do altar, depois que recebeu um golpe de machadinha no pescoo no forte o bastante para derrub-lo em sacrifcio aos deuses. Os drages ento se dirigem ao santurio da deusa Palas e se escondem sob o escudo aos ps da deusa. Esse acontecimento pareceu aos troianos uma severa advertncia da deusa, afinal Palas Atena punira com as serpentes do mar o sacerdote que tinha atirado uma lana contra o cavalo a ela dedicado. Mais que depressa, eles transportaram aquele objeto gigantesco para dentro de suas muralhas. Ao som de hinos religiosos, com festas e alegres cnticos, o cavalo foi introduzido na cidade. Nessa noite, enquanto os troianos dormiam, como que sepultados no sono e no vinho, a esquadra grega deixou Tnedos e se dirigiu a Tria, encoberta pelas trevas que pareciam abraar todo o mundo, cmplices da estratgia de Odisseu. Sem ser visto, Sino caminhou at o cavalo e chamou os guerreiros para fora. sobre uma Tria despreocupada e desarmada que se precipitaria o inimigo, sedento de vingana depois de tantos anos de luta intil. E aquela foi a ltima noite da outrora prspera cidade asitica, vtima dos deuses, da esperteza de um grego, de palavras e lgrimas mentirosas, mas tambm da sua prpria boa-f e compaixo. Muitos dos guerreiros gregos que praticaram naquela ocasio toda espcie de crime seriam castigados66

depois, ao passo que os troianos que conseguiram escapar da cidade em chamas haveriam de lanar as sementes de uma outra e muito mais poderosa Tria, a futura Roma, como se os deuses se divertissem em erguer hoje s alturas da glria os que amanh tombariam na mais dura runa e vice-versa. Mas essa j uma outra histria. Em pouco tempo, uma cidade prspera e rica tombava em runas junto com seu velho rei, Pramo, logo reduzido a um msero corpo decapitado, sem ningum que lhe desse sepultura. Em pouco tempo, toda a cidade se enchia de lgrimas de mulheres e crianas logo escravizadas para servir aos senhores gregos. As trevas que haviam dissimulado a irrupo7 do inimigo pela cidade iluminavam-se com o fogo de um incndio que parecia querer durar para todo o sempre.

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Irrupo: invaso sbita e impetuosa.

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O retorno de Odisseu

O lago de Averno, no sul da Itlia, hoje. Acreditava-se que ali perto havia uma das entradas para os Infernos. O lago fica na cratera de um vulco e, segundo se contava, gases que dele provinham matavam as aves que por ali passavam.

Odisseu e o ciclope

D1

entre os heris gregos que lutaram em Tria, Odisseu se destacava por sua astcia e inteligncia. Ningum sabia como ele sair de uma situao difcil empregando os recursos de um esprito sagaz.1 Terminada a guerra, Odisseu teve de se aventurar, com seus companheiros de armas, por uma longa e arriscada jornada de volta ilha de taca, sua terra natal. Navegavam pelos mares, quando Zeus enviou sobre todos uma tempestade espantosa: ventos velocssimos varriam terras e mares, e a mais profunda noiteSagaz: astucioso.

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desceu sobre o oceano. Depois de vrios dias de cansaos e sofrimentos, os gregos foram parar na terra dos Lotfagos, um povo que se alimentava da flor do ltus.2 Ao desembarcar, Odisseu mandou alguns homens em misso de reconhecimento, para descobrirem que tipo de pessoas viviam ali. Os Lotfagos os receberam bem e lhes deram para comer a flor do ltus. Quem comia aquela flor, porm, no sentia mais vontade de voltar para casa e acabava ficando. Assim, aqueles companheiros de Odisseu no queriam mais voltar aos navios. Foi preciso lev-los fora e partir correndo daquela terra, para que ningum mais, comendo a flor, se esquecesse do sonhado retorno para casa. A prxima regio visitada por Odisseu foi a ilha dos ciclopes. Eram seres monstruosos, gigantescos e com um s olho no meio da testa. Viviam sem leis e eram pastores. Nem aravam a terra nem tinham cidades. Suas casas eram cavernas situadas no alto das montanhas. Odisseu chegou de noite terra dos ciclopes e, ao surgir a aurora do dia seguinte, ps-se a explorar a ilha. Ali havia muitas cabras selvagens e os homens caaram algumas para a refeio do dia. Voltaram para os navios. Na manh seguinte, Odisseu resolveu ir com seus homens ao encontro dos habitantes daquela terra, que ainda no conhecia. Ao penetrar na ilha, Odisseu avistou uma caverna que ficava bem no alto de uma montanha; por perto2

Ltus: nome de uma planta aqutica.

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havia ovelhas e cabras e um ser enorme, que dormia e parecia viver apartado dos outros. Era o ciclope Polifemo. Odisseu, ento, decidiu escolher doze companheiros, mandou os outros de volta para o navio, e se dirigiu caverna. Trazia consigo comida e um timo vinho, doce, puro e perfumado, digno dos deuses. Quando chegou caverna, Odisseu notou que o ciclope sara para apascentar3 seu rebanho. Na gruta, os companheiros de Odisseu viram queijo e ovelhas e cabras; desejaram, ento, apoderar-se de tudo e ir embora para o navio. O heri, porm, queria esperar pela volta do ciclope, para conhec-lo de perto. Os homens estavam comendo quando o ciclope apareceu, trazendo lenha seca para preparar seu jantar. Ao jogar o feixe de lenha no cho provocou um estrondo que fez os gregos fugirem correndo para o fundo da caverna. Estavam presos ali, pois o ciclope fechou a entrada com uma enorme pedra que aqueles homens jamais poderiam remover. Depois de ordenhar seus animais e aliment-los, o monstro acabou percebendo aqueles intrusos, mortos de medo num canto de sua morada, e lhes perguntou com uma voz profunda e assustadora: Quem so vocs, estrangeiros? De onde vieram? So comerciantes ou piratas? Somos gregos, respondeu Odisseu. Retornamos para casa vindos de Tria. Mas tempestades e ventos nos desviaram de nossa rota, pois assim quis Zeus. poderoso, trate-nos como3

Apascentar: levar para pastar.

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hspedes, abrigando-nos. Zeus protege os deveres da hospitalidade. Voc um tolo ou vem de muito longe, j que no sabe que ns, os ciclopes, no nos preocupamos com Zeus nem com os outros deuses. Mas me diga onde est o seu navio. Possidon4 destruiu-o, mentiu astutamente Odisseu. O vento o lanou contra as rochas desta ilha. Ento o ciclope, sem nada mais falar, estendeu a mo sobre os companheiros de Odisseu, agarrou dois e bateu-os contra o solo. Esquartejou-os membro por membro e os devorou, entre goles de leite. Era o seu jantar daquela noite. Em seguida, adormeceu. Diante daquele espetculo horrendo, a mais profunda angstia tomou conta dos homens. Odisseu, ento, ps-se a pensar num meio de escapar dali com vida; no podia matar o monstro, pois, nesse caso, quem removeria a pedra gigantesca que tapava a entrada da caverna? No dia seguinte, o ciclope acordou e pegou mais dois homens para devorar na sua primeira refeio e saiu. Veio mente de Odisseu, ento, uma idia para salvar a si e aos seus: pegou um grande tronco que ali se encontrava, fez uma estaca com uma ponta bem fina e escondeu-a. noite, o ciclope voltou, recolheu na caverna seu rebanho e fechou a entrada com a rocha. Depois, como jantar, agarrou mais dois dos homens de Odisseu e devorou-os. Odisseu se dirigiu a ele:4

Possidon: Netuno, na mitologia latina.

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Ciclope, vamos, beba vinho. Trouxe-o para lhe oferecer, na esperana de que voc tivesse piedade de ns. Polifemo tomou o vinho e achou-o delicioso; quis mais. Perguntou, ento, como Odisseu se chamava. Meu nome Ningum, disse espertamente Odisseu. assim que todos me chamam. Depois daquele jantar e de muito vinho, o ciclope foi vencido por um sono profundo. De quando em quando, saa de sua boca vinho e carne humana. Odisseu no perdeu tempo: com mais quatro companheiros, pegou a estaca e aqueceu sua ponta no fogo. Depois, a um s tempo, furaram o nico olho do ciclope. O monstro acordou gritando espantosamente, fazendo toda a caverna ressoar com seus berros. Furioso, tirou a estaca do olho e saiu para chamar os outros ciclopes que moravam em cavernas vizinhas. Por que voc grita desse jeito, Polifemo? Por acaso algum est tentando mat-lo usando a astcia ou a fora?, perguntaram os outros. Ningum est tentando me matar, usando a astcia e no a fora!, respondeu Polifemo. Os ciclopes, diante daquela resposta, acharam que ningum estava perturbando o companheiro, que devia estar doente, e foram embora. Odisseu ria por dentro daquele plano astucioso que enganara Polifemo... O ciclope, gemendo e agora cego, conseguiu tirar a pedra que tampava a caverna e, na entrada, ia apalpando as ovelhas e carneiros que saam, para no deixar escapar os homens.72

Odisseu teve, ento, mais uma de suas idias brilhantes: amarrou lado a lado, de trs em trs, alguns carneiros grandes e com a l crescida. No carneiro do meio, colocava um dos seus companheiros, amarrado sob seu ventre; os outros dois carneiros, cada um de um lado, serviam de proteo, disfarando o homem que ia no centro. Odisseu pegou um carneiro maior e de plo mais crescido e colocou-se embaixo do animal, agarrando-se fortemente sua l. Passaram todos pelo ciclope, que de nada desconfiava. Ao sair, Odisseu largou o animal e desamarrou os companheiros. Quando estava a salvo em seu navio, Odisseu dirigiu-se ao ciclope. Criticou a violncia que ele exercera contra os companheiros e disse seu verdadeiro nome, para que o monstro pudesse contar a quem perguntasse que fora Odisseu quem o cegara. Polifemo, enfurecido de dio, suplicou ao deus Possidon, que era seu pai. Pediu-lhe que Odisseu ou no voltasse para casa, ou s conseguisse isso depois de muito tempo e sofrimento, aps perder todos os companheiros. E, se devia mesmo retornar, que encontrasse muitas dores em sua casa. Depois de orar, jogou contra o navio uma enorme pedra, que no o acertou mas provocou uma grande onda. Odisseu e os seus partiram s pressas, com o corao inquieto por causa das palavras do ciclope. De fato, aquele pedido a Possidon seria atendido...

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Na ilha da feiticeira Circe

D

epois de ter partido s pressas da terra do ciclope e de ter vivido outras aventuras arriscadas por mar e terra, Odisseu chegou ilha de Eia, onde vivia Circe, a filha do Sol. Aps alguns dias, desceu a terra e avistou a casa da feiticeira. Decidiu, ento, dividir seus homens em dois grupos e mandou um deles, comandados por Eurloco, para explorar o lugar. Chegando morada de Circe, os gregos viram algo espantoso: enormes lees e lobos que, mansos como ces, ao invs de atacar, abanavam o rabo. Diante da porta da feiticeira, ouviram-na cantar: tinha uma bela voz, que ressoava por toda a casa. Chamaram-na, e Circe abriu a porta e os fez entrar; s Eurloco preferiu ficar fora, temendo que se tratasse de alguma cilada. Aos homens de Odisseu, a filha do Sol serviu bebida e comida, colocando nesta poes mgicas para lev-los a esquecer-se da ptria. Depois tocou neles com uma varinha, e todos se transformaram em porcos. De humano, s lhes restara a mente, e eles choravam. Circe os trancou num pocilga1 com comida para porcos. Eurloco, que tudo vira, correu para os navios e contou a Odisseu o que acontecera. Tomando de uma espada, Odisseu partiu rumo casa da feiticeira. No caminho, porm, o deus Hermes2 veio ao seuPocilga: curral de porcos. Hermes: Mercrio, na mitologia romana.

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encontro e lhe disse: Aonde vai, infeliz? Acha que pode libertar seus companheiros? Voc ficar l, como eles, transformado em porco. Mas eu vou salv-lo. Depois de ensinar a Odisseu o modo de escapar dos feitios de Circe, o deus lhe deu uma planta, de raiz negra e flor branca, que arrancou da terra. Ela o protegeria. Odisseu se dirigiu para a casa onde estavam presos seus companheiros. Chamou por Circe, que o introduziu em sua casa e lhe serviu uma bebida com poo mgica. A feiticeira, depois disso, tocou-o com a varinha e disse: V para a pocilga junto de seus companheiros! Odisseu, porm, como lhe recomendara Mercrio, pegou a espada e com ela fingiu querer matar Circe. A filha do Sol, gritando e chorando, abraou-se a seus joelhos, e disse: Quem voc, que, apesar de ter bebido minha poo, no ficou enfeitiado? Isso nunca aconteceu antes. Voc deve ser Odisseu; Mercrio me avisou que voc viria de Tria um dia. Mas embainhe de novo a espada e venha para o meu leito. S aceitarei se voc jurar que no tramar algo contra mim, respondeu Odisseu. Assim se uniram Circe e Odisseu naquele dia. Mas quando os dois estavam mesa para comer e beber, Circe notou que o heri parecia inquieto e no tocava em nada que lhe servira. Perguntou por que ele estava assim, e Odisseu lhe disse que no poderia comer e beber tranqilamente enquanto seus75

companheiros estavam naquela situao. A feiticeira, ento, retirou o encantamento, e os porcos se transformaram de novo em homens. Odisseu e os seus, chorando, e at mesmo a prpria Circe, se comoveram com aquele reencontro. At o final do ano permaneceram todos ali, muito bem tratados. At que um dia, Odisseu pediu a Circe que os deixassem partir e voltar para casa. Circe respondeu assim: Odisseu astucioso, no ficar contra a vontade em minha casa. Mas uma outra viagem o aguarda. Voc dever ir ao reino dos mortos, ao Hades, para interrogar o adivinho Tirsias, que se encontra naquelas regies sombrias. Odisseu sentiu apertar-lhe o corao ao ouvir aquelas palavras. No sabia como chegar ao reino dos mortos. Circe, porm, deu-lhe instrues detalhadas para l chegar. Antes da partida, aconteceu um grave incidente. O jovem Elpenor, bbado de vinho, estava dormindo sobre o teto da casa de Circe; ao ouvir o clamor dos companheiros que partiam, acordou de repente e, esquecido de onde estava, deu alguns passos para a frente e se precipitou no vazio. Quebrou o pescoo e sua alma desceu ao Hades. Ao saber que iam em direo ao reino das sombras, os companheiros de Odisseu se entregaram ao pranto.

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Odisseu vai ao reino dos mortos

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eguindo instrues de Circe, Odisseu navegou at os confins do Oceano, onde fica a cidade dos cimrios, entre nvoa e nuvens, e sempre noite. Desembarcou ali com os companheiros e fez um sacrifcio aos mortos; quando o sangue dos animais escorreu na terra, as almas dos mortos se aproximaram. Eram mulheres, jovens, velhos, guerreiros mortos em batalha, que se agrupavam em torno da fossa fazendo estranho rumor. Eis que Odisseu viu se aproximar a alma de Elpenor, que no tinha sido sepultado ainda. O companheiro se dirigiu a ele e rogou que lhe desse uma sepultura. Depois apareceu Anticlia, a me de Odisseu, que no sabia ainda de sua morte, j que a deixara viva quando partira de taca. O heri chorou, cheio de piedade em seu corao. Por fim, chegou o adivinho Tirsias, que disse: Odisseu astucioso, por que veio a este triste lugar? Quer voltar para casa? Mas, por causa da ira de Possidon isso no ser fcil. Voc poder conseguir, desde que tome uma precauo: na Siclia, no coma dos rebanhos do deus Sol. Se regressar a taca, encontrar ali muitos males: homens autoritrios devoram os seus bens e querem tomar para si sua esposa. Mas voc os castigar. No se esquea, porm, de fazer sacrifcios a Possidon. Depois que o adivinho se afastou, a me de Odisseu se aproximou da fossa em que os animais tinham sido sacrificados e bebeu do sangue. Depois disso, reconheceu o filho e, chorando, disse:77

Como voc chegou at aqui? Alm de rios e abismos, h o Oceano a atravessar. Vem de Tria ou de taca? Vim ao Hades para consultar Tirsias, disse Odisseu. Mas como voc morreu? E como esto meu pai, meu filho e minha esposa? Anticlia contou ao filho que sua esposa no cedia aos pretendentes,1 seu filho administrava a propriedade e seu velho pai vivia isolado no campo, arrasado por tudo o que acontecera. Quanto a ela mesma, morrera de tristeza e saudade do filho. Odisseu,