Seria o Sujeito Totalmente Assujeitado - Célia Bassuma FERNANDES

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    1111aaaaJIEDJIEDJIEDJIED Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de maro de 2008

    SERIA O SUJEITO TOTALMENTE ASSUJEITADO?

    Clia Bassuma FERNANDES (UEL/UNICENTRO)

    IntroduoSabe-se que o papel da publicidade, tida aqui como sinnimo de propaganda,

    vender um produto, uma imagem, uma idia, ou um novo hbito, ou seja, tem comoobjetivo convencer, persuadir algum a comprar algo. Busca, portanto, agir sobre oconsumidor, criando nele um comportamento que o predisponha compra.

    Para tanto, utiliza-se das mais variadas formas de persuaso, desde as maisexplcitas at as mais sutis: a quebra ou desmontagem das frmulas fixas da lngua, taiscomo das citaes, das frases feitas, dos lugares-comuns, dos clichs e dos provrbios,por exemplo, tem sido muito utilizada pela mass media, e constitui um poderoso recursopara provocar o interesse do leitor/consumidor, uma vez que atravs de uma herana

    cultural (provrbios, aluses, citaes, mximas) que o discurso publicitrio adquire umestatuto de discurso de autoridade.

    Para Rifaterre apud Carvalho (2001, p. 84), longe de constituir um defeito, autilizao desse recurso pode valorizar um texto, despertando a adeso do leitor pormeio de algo que j conhecido, propiciando lhe a satisfao de um conhecimentopartilhado.

    Propomo-nos nesse trabalho, a partir da Anlise do Discurso de orientaofrancesa, e em especial, do mecanismo do deslocamento proposto por Grsillon eMaingueneau (1984), analisar duas peas publicitrias que apresentam provrbiosalterados/parodiados, para elaborar seu discurso, procurando evidenciar a atividade dosujeito num tipo de discurso essencialmente marcado pela alteridade.

    Esclarecemos ainda, que existem inmeros trabalhos na rea da paremiologia,tais como coletneas e dicionrios que tratam da origem, evoluo da forma, traduoou comparao de provrbios entre lnguas diferentes. No entanto, o que nos interessa estud-los por uma perspectiva enunciativa e/ou discursiva, procurando comprovar, queao produzir ou imitar um enunciado, o sujeito deixa, estrategicamente, vestgios de suaao nos textos que produz, o que nos leva a afirmar que ele no pode ser entendidocomo um simples alvo de uma influncia ideolgica, mas, ao contrrio, um sujeitoque trabalha, que manipula a linguagem a que tem acesso, marcando sua posio noespao discursivo.

    1. O Papel do Sujeito nos Estudos Lingsticos:Para realizar uma reflexo sobre a subjetividade na linguagem, preciso

    reconhecer duas tendncias: segundo a epistemologia clssica, positivista, arepresentativa,como o prprio nome indica, tinha a funo de representar o real. Paratanto, mobilizava o conceito de verdade, isto , um enunciado s era consideradoverdadeiro se correspondesse a um estado de coisas no mundo. A questo do sujeito eradeixada de lado.

    Opondo-se a essa concepo de lngua como um modo de informar sobre omundo, surge a tendncia demonstrativae a linguagem passa a ser considerada, ento,como o lugar da constituio da subjetividade, (re-) incorporada aos estudos lingsticos

    por Benveniste (1995), que abandona a preocupao com o texto do enunciado e volta-

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    se para o prprio ato de produo, definindo a enunciao como um processo deapropriao da lngua para dizer algo.

    Para ele, a subjetividade a capacidade de o locutor propor-se como sujeito doseu discurso, marcando sua posio por meio de determinados ndices formais, como

    por exemplo, os pronomes pessoais eue tu, que constituem o primeiro ponto de apoiona revelao da subjetividade da linguagem, j que no processo da enunciao, aoinstituir-se um eu, instaura-se necessariamente um tu. Entretanto, essa polaridade,condio fundamental na linguagem, segundo ele:

    no significa igualdade nem simetria: ego tem sempre uma posio detranscendncia quanto a tu; apesar disso, nenhum dos termos se concebesem o outro; so complementares, mas segundo uma oposiointerior/exterior, e ao mesmo tempo so reversveis. (BENVENISTE,1995, P. 287)

    O sujeito na Lingstica da Enunciao est, portanto, nessa fase, centrado nafigura do locutor, cuja subjetividade se funda no exerccio da lngua e se deixa conhecerpor meio de marcas formais que inscreve no enunciado.

    Dessa forma, Benveniste elege o EGO como o centro da enunciao e restringe aele a noo de sujeito ao afirmar que a constituio da subjetividade vai tomando forma medida que se tem a capacidade de dizer eu.

    A originalidade dos estudos de Benveniste no atribuda, no entanto, em terconstrudo uma teoria da enunciao, mas em tornar a enunciao observvel nosenunciados, ou seja, em constituir uma metodologia que possibilitasse analisar essefenmeno lingstico.

    Apesar de ser produtiva no que se refere s questes da significao, essa teoria

    tem sido criticada por colocar o euno centro da enunciao, entendendo o sujeito comoum ser livre, independente das coeres sociais e por ignorar a possibilidade de ele vir aocupar vrios lugares discursivos.

    No campo especfico da Anlise do Discurso de tradio francesa, podem serdestacadas duas tendncias relacionadas ao tema aqui referido: uma que tem MichelPcheux como principal representante, e outra, inaugurada por Jacqueline Authier-Revuz.

    Em: A Anlise de Discurso: trs pocas (1997), Pcheux traa um percurso dateoria por ele desenvolvida. Cabe enfatizar, que as diferentes concepes de sujeitoexistentes nesta perspectiva terica, resultam, segundo Mussalin (2001, p. 131), dasdiferentes fases pelas quais passou. Na AD-1, por exemplo, o sujeito no pode ser

    concebido como a origem do prprio discurso, uma vez que cada processo discursivo gerado por uma mquina discursiva: um sujeito-estrutura determina os sujeitos comoprodutores do seu discurso. Para Pcheux (1997, p. 311):

    um processo de produo discursiva concebido como uma mquinaautodeterminada e fechada por si mesma, de tal modo que um sujeito-estrutura determina os sujeitos como produtores de seus discursos: ossujeitos acreditam que utilizam seus discursos quando na verdade soseus servos assujeitados, seus suportes.

    Assim, diferentes processos discursivos referem-se a diferentes mquinasdiscursivas, cada uma delas idntica a si mesma e fechada sobre si mesma.

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    Contrariando a idia do sujeito como origem do discurso, Pcheux afirma que osujeito no um dado a priori, mas constitudo no discurso. Afirma, ainda, que osentido de uma palavra, expresso ou proposio no existe em sua relao transparentecom a literalidade do significante, mas determinado pelas posies ideolgicas

    colocadas em jogo no processo scio-histrico em que so (re-)produzidas.Ainda conforme ele, o sentido e o sujeito se constituem num processosimultneo por meio da figura da interpelao ideolgica, isto , a noo de sujeito, paraPcheux, determinada pela posio, pelo lugar de onde ele fala: do interior de umaformao discursiva (FD), regulada por uma formao ideolgica (FI).

    Desse modo, o sujeito entendido como um ser assujeitado, submetido a regrasespecficas que delimitam o seu discurso, visto que ele no mais do que um porta-voz dos discursos que o antecederam e os sentidos que veicula so o resultado dosdiscursos a que pertenceram.

    Na segunda fase da AD (AD-2), fortemente influenciada pelos trabalhos deFoucault, a noo de formao discursiva como mquina estrutural fechada comea a

    ser minada, na medida em que se reconhece que a FD est em relao paradoxal comseu exterior:

    uma FD no um espao estrutural fechado, pois constitutivamenteinvadida por elementos que vm de outro lugar (isto , de outras FD)que se repetem nela, fornecendo-lhe suas evidncias discursivasfundamentais (por exemplo sob forma de prconstrudos e de discursostransversos. (PCHEUX, 1997, p. 314).

    Nasce, ento, a noo de interdiscursopara designar o exterior especfico deuma FD que irrompe no interior dela. Uma FD constituda, portanto, por um sistema

    de parfrases, j que um espao onde enunciados so retomados e reformulados.O conceito de FD enquanto dispositivo estrutural fechado ainda mantido e osujeito do discurso continua sendo concebido como puro efeito do assujeitamento aodispositivo da FD com o qual ele se identifica. Dizendo de outro modo, nesta fase, nega-se a noo do sujeito marcado pela idia da unidade e passa-se a conceb-lo comoaquele que desempenha diferentes papis, de acordo com as vrias posies que ocupano espao interdiscursivo. Vigora, ento, a idia de que o sujeito uma funo, e queele pode estar em mais de uma.

    Entretanto, apesar de desempenhar estes diferentes papis, o sujeito no totalmente livre para dizer o que quer: ele sofre as coeres da formao discursiva daqual enuncia, uma vez que ela regulada por uma formao ideolgica. Ou seja, o

    sujeito do discurso ocupa uma posio no interior de uma formao social e de lenuncia, dominado por determinada formao ideolgica que preestabelece aspossibilidades de sentido do seu discurso.

    Pode-se afirmar, ento, que o sujeito do discurso continua sendo concebido,nessa fase, como efeito de assujeitamento ao dispositivo da FD com a qual ele seidentifica. um sujeito afetado por dois esquecimentos: um de ordem ideolgica(inconsciente), no qual apaga qualquer elemento que remeta ao exterior de sua FD,aceitando determinadas seqncias lingsticas e recusando outras a fim de desencadeardeterminados sentidos, e outro, de ordem enunciativa (consciente), em que o sujeitoenunciador coloca fronteiras entre o que pode e deve ser dito e o que no pode ser dito.Essa operao lhe d a iluso de que seu discurso reflete o conhecimento objetivo quetem da realidade e de que ele senhor de sua palavra, origem e fonte do sentido.

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    Percebe-se, portanto, que tanto a AD-1 quanto a AD-2, no compreendem osujeito como individual ou psicolgico, mas como sujeito ideolgico que semanifesta atravs do discurso. Dessa maneira, essas concepes de sujeito estodiretamente relacionadas uma teoria da ideologia.

    A terceira fase da AD (AD-3) fortemente marcada por um nova preocupao: aheterogeneidade discursiva, ou seja, a presena do Outrono discurso, levando Pcheuxa questionar a prpria concepo de FD.

    Assim, na AD-3, insiste-se na questo da alteridade na identidade discursiva e anoo de mquina discursiva estrutural substituda pela de mquinas discursivasparadoxais.

    Pcheux reconhece que a heterogeneidade constitutiva do discurso e que ela produzida pelas vrias posies assumidas pelo sujeito. No entanto, essaheterogeneidade , segundo ele, trabalhada pelo locutor de maneira que o texto adquirauma unidade, uma coerncia, seja harmonizando as diferentes vozes ou apagandoaquelas que so discordantes.

    Outra tendncia atual da Anlise do Discurso representada pelos trabalhos deJacqueline Authier-Revuz (1990), de quem Pcheux se aproximou nas ltimas fases deseu trabalho. Essa autora, buscando apresentar o conceito de heterogeneidade do sujeitoe do discurso, se vale dos princpios do dialogismo bakhtiniano e da abordagempsicanaltica lacaniana (releitura de Freud), do sujeito com a linguagem.

    Concebendo o sujeito como um efeito de linguagem, a Psicanlise busca asformas de constituio desse sujeito no no interior de uma fala homognea, mas nadiversidade de uma fala heterognea, conseqncia de um sujeito dividido entre oconsciente e o inconsciente. Desse modo, os trabalhos da autora revelam um sujeito quese movimenta entre o consciente e o inconsciente, um sujeito descentrado, que no mais senhor de si, uma vez que o outro, passa a fazer parte de sua identidade, poisconforme ela, da mesma maneira como o discurso constitutivamente heterogneo, osujeito tambm o .

    Fundamentada nessas concepes, Authier-Revuz analisa as marcas lingsticasdaquilo que denomina heterogeneidade mostrada(as formas do discurso relatado, o usodas aspas, os enunciados metadiscursivos), que intervm no fio discursivo, colocandoem confronto a identidade e alteridade da atividade subjetiva. Tais marcas, segundo ela,articulam-se com a heterogeneidade constitutiva da linguagem (no-marcadalingisticamente), possvel de ser definida pela relao que todo discurso mantm comoutros discursos.

    2.

    O Deslocamento Proverbial:Partindo dos pressupostos de que nenhum discurso novo, de que tudo que dito j foi dito anteriormente por algum e de que todo discurso sempre retoma outro,Maingueneau (2004, p.94) evidencia duas estratgias opostas de reinvestimento1 de umtexto ou de um gnero do discurso em outros: a captao e a subverso, componentes deum processo mais abrangente denominado por Grsillon e Maingueneau (1984, p.114)de desvio(dtournement), mecanismo que consiste em reproduzir um enunciado com ascaractersticas da enunciao proverbial, mas que, na verdade, no pertence ao estoquedos provrbios reconhecidos.

    Distinguem, portanto, o desvio ldico, relativo a um puro jogo de palavras e queno usado a servio de um projeto ideolgico ou poltico, do desvio militante, o qual

    visa a conferir autoridade a um enunciado, ou a destruir aquela do provrbio de origem

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    em funo de interesses de diversas ordens. Salientam, ainda, que tal classificaoimpe problemas de fronteiras, tendo em vista que h desvios militantes que se efetuam

    jogando-se apenas com a lngua. De acordo com os autores mencionados, pode-se falartambm em orientaes distintas desse procedimento, conforme se trate de utilizar a seu

    proveito a autoridade proverbial (captao)ou de a contestar (subverso).A captaoconsiste em imitar um texto tomando a mesma direo que ele, ouseja, consiste em transferir para o discurso reinvestidor a autoridade relacionada aotexto ou ao gnero fonte. Dito de outra forma, um texto apropria-se do valor pragmticode outro em benefcio prprio.

    J a subverso consiste em desqualificar a autoridade do texto ou gnero fonteimitado, isto , em fazer aparecer uma contradio entre o sentido veiculado pelaenunciao da estrutura original (E0) e aquele resultante do desvio (E1). Nesse caso, oenunciador, com o objetivo de aproveitar a estabilidade semntica da enunciaooriginal, imita um provrbio conhecido, fazendo com que surja, por meio da pardia,uma nova enunciao.

    H, ento, entre E0 e E1 algo em comum e elementos que as diferenciam, o quepermite afirmar que h nas enunciaes, concomitantemente, um efeito de mesmoe dediferente, que provoca um novo efeito de sentido no discurso, conduzindo ruptura designificao e legitimao do trabalho do sujeito da enunciao.

    A fim de englobar os tipos de deslocamento proverbial, os autores sugerem doisnveis tanto para a captao quanto para a subverso. O primeiro deles, o deslocamentodas condies genricas da enunciao proverbial, entendido como as condiesformais (sintticas e prosdicas) e de certos traos pragmticos relativos a esse tipo dediscurso, que exigem que se trate de uma verdade que pode ser sustentada pelasabedoria popular e endereada a um alocutrio universal;

    Desviar as condies genricas , portanto, para os autores, fazer umpastichedognero proverbial, pois o locutor, ao produzir um pseudo-provrbio, pode se inscreverna ideologia por ele fixada ou produzir um enunciado que viola suas condies deemprego;

    O deslocamento de um provrbio certificado/atestado consiste na modificaodo significante e, conseqentemente, do seu sentido. H desvios/deslocamentos quetendem a cristalizar um provrbio comum, explorando em especial, seu valor fontico,enquanto outros tendem a produzir novos enunciados a partir de outros cujo laosemntico com o provrbio de origem est bem claro.

    A fim de facilitar a compreenso, apresenta-se abaixo, um quadro proposto porSantos (2004, p. 61), que sintetiza e exemplifica os tipos de desvio assinalados pelos

    autores:Desvio de Provrbios na Forma Militante

    Estratgia de Captao Estratgia de Subverso1 Nvel de desvio: condies genricas.Ex: Quem no se comunica se trumbica.

    1 Nvel de desvio: condies genricasEx: Penso, logo desisto.

    2 Nvel de Desvio: provrbio atestadoEx: A cada dia sua pena

    2 Nvel de Desvio: provrbio atestadoEx: Devo, no pago, nego enquantopuder

    3. Anlise Do Corpus:

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    A propaganda de O Boticrio(Anexo 1), foi veiculada pela revista Caras (n 40 Ano 13), em 13 de Outubro de 2006, com a finalidade de posicionar no mercado operfumeLily Essence.

    A campanha Voc pode ser o que quiser foi desenvolvida pela empresa Almap

    BBDO de So Paulo, criada nos anos 50, e considerada uma das maiores agncias depublicidade do pas, por produzir idias de comunicao inovadoras e atraentes.A propaganda em questo, veiculada em pgina dupla de revista, em tons de

    cinza ao fundo, apresenta de um lado, a figura de uma bonita mulher vestida de brancoe envolta em lrios, e de outro, a imagem do vidro de perfume e a mesma flor. H, logoabaixo, um pequeno texto ressaltando as propriedades do produto a ser comercializado,e o ttulo Atrs de toda grande mulher tem sempre um rastro perfumado de lrios.

    Verifica-se que houve, nesse caso, uma manipulao da frmula fixa, mas aindaassim possvel reconhecer a enunciao original: Atrs de todo grande homem temsempre uma grande mulher, que enfatiza que todo homem bem sucedido,invariavelmente, tem uma companheira que o estimula.

    Nesse caso, de acordo com Grsillon e Maingueneau (1984), houve um desviomilitante, que visa a conferir autoridade a um enunciado. Observa-se, tambm, autilizao de uma estratgia de captao de um provrbio certificado/atestado, pois osujeito-enunciador busca potencializar, ao mximo, a estrutura semntica da frmulafixa. Para tanto, fabrica um pseudo-provrbio ou nos termos de Santos (2003), umaproverbializao 2, que ressalta a autoridade do provrbio original.

    O novo enunciado, Atrs de toda grande mulher tem sempre um rastroperfumado de lrios, enfatiza que toda mulher de sucesso deve usar o perfumeanunciado na propaganda e procura associar ao produto, um efeito de sentido denecessidade. Assim sendo, para participar do jogo comunicativo, aderindo quilo que proposto pelo sujeito-enunciador, o enunciatrio dever encontrar a frmula fixa em seuarquivo de memria, procedendo a uma operao inversa efetuada pelo sujeito-enunciador.

    O anncio seguinte foi veiculado pela revista poca, n 430 (Anexo 2), em 14 deagosto de 2006, para divulgar apickupS10, da marca Chevrolet.

    A pea publicitria desenvolvida pela Agncia McCann, emoldurada pelaimagem de um lagarto e uma cobra (tpicos do serto nordestino), veicula a imagem doautomvel em movimento em uma trilha rida. Abaixo do enunciado Sujamos a gua(nosso ponto de interesse), h um texto em negrito que ressalta a vitria dos irmosMarlon e Joseane Koerich, campees da categoria super production, no Rally

    Internacional dos Sertes,em 2006, seguido de um texto que enfatiza as qualidades do

    automvel e a informao de que ele lder de vendas h 11 anos.Nesse caso, h tambm um desvio militante e uma subverso, pois ao um imitarum gnero proverbial, o locutor produz umpseudo-provrbioou uma proverbializao,e se inscreve na ideologia por ele fixada, violando porm, suas condies de emprego;

    H ainda, um deslocamento de um provrbio certificado/atestado, uma vez queo significante foi modificado, e, conseqentemente, o seu sentido. Na sua frmulaoriginal, a expresso Lavamos a gua, em sentido conotativo, usada para enfatizarque foram obtidos bons resultados diante de alguma situao.

    A proverbializao Sujamos a gua, decorrente do deslocamento, umareferncia ao fato de os irmos terem vencido o rally. Compara-se o automvel aoanimal e ressalta-se que ele ficou sujo, numa aluso poeira tpica do serto nordestino.

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    Consideraes Finais:

    Nas propagandas analisadas, observa-se que o sujeito-enunciador imita umtexto ou gnero para desqualific-lo, porm observa-se tambm, que opondo-se ao queele subverte, valoriza sua prpria enunciao, o que nos permite afirmar que , aoimitar um provrbio a fim de desqualific-lo, valoriza sua prpria enunciao e dessaforma, acaba por ridicularizar a sabedoria popular. Cria-se, ento, um jogo entre umsentido j cristalizado, sedimentado e um novo sentido, ou seja, pela repetio domesmo,cria-se a oportunidade para que surja o diferente.

    Nesse caso, conforme Possenti (2002, p. 124), tem-se, ao mesmo tempo, odiscurso citado e a inovao, o produto e a manobra, uma vez que de acordo com ele,o enunciado final no um efeito automtico da prpria linguagem, mas exige umsujeito/agente, um locutor que executa manobras, que trabalha sobre dados(estereotipados) de linguagem.

    Alm disso, pode-se observar que o sujeito da enunciao, longe de ser

    entendido como simplesmente assujeitado, influenciado ideologicamente ouheterogneo, um sujeito que trabalha, que tambm manipula, com uma certaautonomia, os recursos de linguagem a que tem acesso. Em outras palavras, ao alterarum provrbio, o sujeito da enunciao deixa pistas de sua atividade no discurso, poisno se trata apenas de deixar no novo enunciado uma marca decorrente de um trao dasua experincia histrica, mas de introduzir, na materialidade do discurso, o traopotico resultante da sua ao sobre o significante.

    A partir do que foi apresentado, pode-se afirmar que os provrbios constituemuma excelente evidncia comprobatria da tese de que, nesse tipo de enunciado, h,invariavelmente, a presena da subjetividade, j que existe um trabalho do sujeitofundamentado nessa captura de outro texto. Ou seja, pode-se afirmar que nos provrbios

    alterados/parodiados h o discurso do outro, mas existe tambm um eu que executamanobras, deixando no texto, marcas visveis da sua ao, o que nos leva a concluir queo sujeito livre, independente, pois as repeties e adeses aparentes, apontam para apresena quase obrigatria de manobras bastante complexas para fugir ao j dito, aolugar comum.

    RefernciasAUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) Enunciativa(s).In: Cadernos de EstudosLingsticos, 19. Campinas : IEL/UNICAMP, pp. 25-42, 1990.

    BENVENISTE, E. Da Subjetividade na Linguagem. In: Problemas de Lingstica

    Geral II.Campinas: Pontes, pp. 284-293, 1995.

    CARVALHO, N. Publicidade:A Linguagem da Seduo. So Paulo: tica, 2001.

    CHARAUDEAU, P. MAINGUENEAU, D. Dicionrio de Anlise do Discurso.Contexto, So Paulo, 2004.

    GRSILLON, A e MAINGUENEAU, D. Polyphonie, proverbe et detournement ouum proverbe peut en cacher um autre. In: Langages, 73. Paris: Didiet-Larousse,pp.112-125, 1984.

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    MUSSALIN, F. Anlise do Discurso.In: MUSSALIM, F.; BENTES, A C. Introduo Lingstica.2ed. So Paulo: Cortez, pp.101-141, 2001.

    PECHEUX, M. A Anlise do Discurso:Trs pocas. (Trad. De J. de A. Romualdo).

    In: GADET, F. & HAK, T. (orgs.) Por uma anlise automtica do discurso: umaintroduo obra de Michel Pcheux. Campinas: Editora da UNICAMP, pp. 311-318,1997.

    POSSENTI, S. Sobre Provrbios e Anlise do Discurso.In: Os limites do Discurso.Curitiba: Criar, pp. 187-193, 2002.

    ______O EU no discurso do Outro ou a Subjetividade Mostrada. In: Os limites doDiscurso.Curitiba: Criar, pp.61-73, 2002.

    SANTOS, M.O.O Provrbio Um Comprimido Que Anda De Boca Em Boca:

    Os Sujeitos E Os Sentidos No Espao Da Enunciao Proverbial. Campinas: Unicamp,2004. Tese (Doutorado em Lingstica) Instituto de Estudos da Linguagem,Universidade Estadual de Campinas/SP, 2004.

    Notas:1. Conforme Maingueneau (2004, p. 94), essa metfora financeira possibilita enfatizar que um texto ougnero, uma vez inscritos na memria, sejam portadores de um capital varivel de autoridade, avaliadopositiva ou negativamente. Ainda segundo ele, o reinvestimento permite que o destinatrio perceba o

    discurso fundador sempre da mesma maneira, confirmando assim, a conivncia entre produtor edestinatrio.

    2. Santos (2004, p. 70), descreve uma proverbializao como o processo que diz respeito s condies deproduo do enunciado proverbial, que consiste em conferir um tom proverbial a um enunciadoprprio, produzido a partir da estrutura formal e do funcionamento enunciativo tpico do provrbio, ouainda em transformar em provrbio slogans, sentenas bblicas, cientficas, jurdicas,lendrias/literrias/mitolgicas, entre outras.