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Série Pensando o Direito

Nº 15/2009 – versão integral

Observatório do Judiciário Convocação 01/2007

Universidade de Brasília e Universidade Federal do Rio de Janeiro UnB/UFRJ

Coordenação Acadêmica

José Geraldo de Sousa Junior Fábio de Sá e Silva

Cristiano Paixão Adriana Andrade Miranda

Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL)

Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Edifício Sede – 4º andar, sala 434 CEP: 70064-900 – Brasília – DF

www.mj.gov.br/sal e-mail: [email protected]

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CARTA DE APRESENTAÇÃO INSTITUCIONAL

A Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL) tem por objetivo institucional a preservação da ordem jurídica, dos direitos políticos e das garantias constitucionais. Anualmente são produzidos mais de 500 pareceres sobre os mais diversos temas jurídicos, que instruem a elaboração de novos textos normativos, a posição do governo no Congresso, bem como a sanção ou veto presidencial.

Em função da abrangência e complexidade dos temas analisados, a SAL formalizou, em maio de 2007, um acordo de colaboração técnico-internacional (BRA/07/004) com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que resultou na estruturação do Projeto Pensando o Direito.

Em princípio os objetivos do Projeto Pensando o Direito eram a qualificação técnico-jurídica do trabalho desenvolvido pela SAL na análise e elaboração de propostas legislativas e a aproximação e o fortalecimento do diálogo da Secretaria com a academia, mediante o estabelecimento de canais perenes de comunicação e colaboração mútua com inúmeras instituições de ensino públicas e privadas para a realização de pesquisas em diversas áreas temáticas.

Todavia, o que inicialmente representou um esforço institucional para qualificar o trabalho da Secretaria, acabou se tornando um instrumento de modificação da visão sobre o papel da academia no processo democrático brasileiro.

Tradicionalmente, a pesquisa jurídica no Brasil dedica-se ao estudo do direito positivo, declinando da análise do processo legislativo. Os artigos, pesquisas e livros publicados na área do direito costumam olhar para a lei como algo pronto, dado, desconsiderando o seu processo de formação. Essa cultura demonstra uma falta de reconhecimento do Parlamento como instância legítima para o debate jurídico e transfere para o momento no qual a norma é analisada pelo Judiciário todo o debate público sobre a formação legislativa.

Desse modo, além de promover a execução de pesquisas nos mais variados temas, o principal papel hoje do Projeto Pensando o Direito é incentivar a academia a olhar para o processo legislativo, considerá-lo um objeto de estudo importante, de modo a produzir conhecimento que possa ser usado para influenciar as decisões do Congresso, democratizando por conseqüência o debate feito no parlamento brasileiro.

Este caderno integra o conjunto de publicações da Série Projeto Pensando o Direito e apresenta a versão na íntegra da pesquisa denominada Observatório do Judiciário, conduzida pela Universidade de Brasília e Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Dessa forma, a SAL cumpre seu dever de compartilhar com a sociedade brasileira os resultados das pesquisas produzidas pelas instituições parceiras do Projeto Pensando o Direito.

Pedro Vieira Abramovay Secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça

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CARTA DE APRESENTAÇÃO DA PESQUISA

O texto a seguir apresentado foi elaborado a partir do relatório final do Projeto

Dossiê Justiça: uma proposta de Observação da relação entre Constituição e

Democracia no Brasil, produzido no âmbito do programa Pensando o Direito, da

Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, em parceria com o

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.

Nos seus objetivos gerais, com a proposta que foi abraçada por grupos de

pesquisadores vinculados às Faculdades de Direito da Universidade de Brasília e da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, todos nomeados nesta publicação, o que se

pretendeu foi subsidiar a elaboração de um programa nacional de democratização do

acesso à justiça e contribuir para a institucionalização de um Observatório da Justiça no

Brasil, no âmbito do Ministério da Justiça.

A resposta oferecida à convocação do Ministério se deu de duas formas. Em

primeiro lugar, identificando dimensões de análise e acompanhamento da Justiça com

base na experiência de Observação da Justiça desenvolvida no âmbito deste projeto. Em

segundo lugar, indicando arranjos para a institucionalização desta experiência e de suas

lições aprendidas, caso o Ministério da Justiça ou outros setores do Poder Público

venham mesmo a transformá-la numa atividade permanente. Em ambos os casos, como

o leitor haverá de observar, o texto busca conduzir a um alargamento do sentido de

Justiça e das formas possíveis de sua observação.

Os seus objetivos específicos, distribuídos nas atribuições dos cinco grupos que

se organizaram para desenvolver os estudos descritos no relatório final, consistiram em

1. Elaborar diretrizes e indicadores para a institucionalização de um Observatório da

Justiça no Brasil - suas relações, estrutura, composição e funcionamento; 2. Mapear

estudos, pesquisas e projetos desenvolvidos por instituições de pesquisa sobre acesso à

justiça e temas correlatos; 3. Estabelecer um diagnóstico da implementação das reformas

- funcional e processual - e suas possibilidades e limites de satisfação de expectativas; 4.

Realizar pesquisas exploratórias sobre as potencialidades do Observatório da Justiça

sobre acesso à justiça e temas correlatos.

Como síntese de seus estudos o consórcio UnB/UFRJ apresentou uma estratégia

para observar a Justiça com a sugestão de institucionalizar um Observatório Permanente

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da Justiça Brasileira (OJB). Este Observatório Permanente da Justiça Brasileira (OJB),

inicialmente ligado à Secretaria de Reforma do Judiciário, buscaria produzir

investigação empírica e crítica sobre os mecanismos de criação e distribuição do direito

socialmente disponíveis, alimentando os Poderes Públicos e a sociedade brasileira com

elementos de informação a partir dos quais podem ser desenvolvidas as estratégias e

pactuações necessárias para a reforma e a modernização do sistema de Justiça. Além

disso, o OJB auxiliaria no monitoramento das reformas já em andamento, permitindo o

controle dos seus eventuais efeitos perversos e a proposição de cenários alternativos de

futuro. Finalmente, as pesquisas do OJB auxiliariam na prospecção e avaliação de

experiências que, embora existentes, podem restar ofuscadas pelo modelo central de

Justiça. A partir desse trabalho verdadeiramente “cartográfico”, o Observatório poderia

manter uma página na web contendo uma espécie de “Biblioteca de Alternativas”, como

subsídio e estímulo para outras iniciativas de transformação.

O texto traz também o parecer inédito elaborado por equipe do CES – Centro de

Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, dirigida pelo Professores Boaventura de

Sousa Santos e Conceição Gomes, em trabalho de consultoria contratada com o objetivo

de avaliar e de certificar a elaboração do projeto. Este trabalho se completou por meio de

Painel realizado em Brasília em junho de 2009, conduzido pelo Professor Boaventura de

Sousa Santos.

Brasília, novembro de 2009

José Geraldo de Sousa Junior

Coordenador Acadêmico

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PROJETO PENSANDO O DIREITO

Universidade de Brasília e Universidade Federal do Rio de Janeiro UnB/UFRJ

Observar a Justiça: Pressupostos para a Criação de

um Observatório da Justiça Brasileira

José Geraldo de Sousa Junior, Fábio de Sá e Silva Cristiano Paixão, Adriana Andrade Miranda

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1. COORDENAÇÃO GERAL

Margarida Lacombe (UFRJ)

Menelick de Carvalho Netto (UnB)

2. COORDENAÇÃO EXECUTIVA

Adriana Andrade Miranda

Soraia da Rosa Mendes

Milena Pinheiro Martins (estagiária)

Fernanda Nathalí Carvalho Soares (estagiária)

Diego Nepomuceno Nardi (estagiário)

Thiago Gabriel dos Santos (estagiário)

3. OBJETIVO GERAL

Subsidiar a elaboração de um programa nacional de democratização do acesso à justiça e

contribuir para a institucionalização de um Observatório da Justiça no Brasil, no âmbito

do Ministério da Justiça.

4. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

1. Elaborar diretrizes e indicadores para a institucionalização de um Observatório da

Justiça no Brasil - suas relações, estrutura, composição e funcionamento;

2. Mapear estudos, pesquisas e projetos desenvolvidos por instituições de pesquisa sobre

acesso à justiça e temas correlatos;

3. Estabelecer um diagnóstico da implementação das reformas - funcional e processual -

e suas possibilidades e limites de satisfação de expectativas;

4. Realizar pesquisas exploratórias sobre as potencialidades do Observatório da Justiça

sobre acesso à justiça e temas correlatos.

5. ATIVIDADES DESENVOLVIDAS

• Elaboração de proposta preliminar de Observatório da Justiça Brasileira;

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• Mapeamento preliminar dos estudos, pesquisas e projetos desenvolvidos por

instituições de pesquisa sobre acesso à justiça e temas correlatos;

• Coleta de dados para possibilitar a análise da implementação das reformas -

funcional e processual - e suas possibilidades e limites de satisfação de expectativas;

• Delimitação temática das pesquisas exploratórias sobre acesso à justiça e temas

correlatos;

• Operacionalização dos conceitos, categorias e referenciais teóricos para

realização de pesquisa-piloto sobre acesso à justiça e temas correlatos – coleta de dados

mediante entrevistas, revisão bibliográfica, análise de documentos.

7. SUBGRUPOS DE PESQUISA

Para viabilizar a execução do objetivo específico cinco, o grupo de pesquisa,

responsável pela execução do presente projeto, foi dividido em cinco subgrupos,

sendo que cada subgrupo assumiu um eixo de observação. A seguir apresentamos a

composição e objetivos específicos de cada subgrupo.

Grupo 01

Objetivos específicos: a) contribuir para um alargamento teórico e empírico da noção de

acesso à justiça; b) identificar experiências não-convencionais de criação e distribuição

do direito a partir do protagonismo dos movimentos sociais e c) analisar os sentidos

emergentes dessas experiências, situando-os no macro-processo de consolidação da

nossa democracia

Professor – Coordenador

José Geraldo de Sousa Junior

Coordenadora Executiva

Fabiana Gorenstein

Pesquisadores (as):

Adriana Andrade Miranda

Bistra Stefanova Apostolova

Carolina de Martins Pinheiro

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Carolina Pereira Tokarski

Fabio Costa Morais de Sá e Silva

Flavia Carlet

João Paulo Santos

Luciana Ramos

Mariana Siqueira Carvalho Oliveira

Mariana Veras

Mauricio Azevedo de Araujo

Pedro Teixeira Diamantino

Rosane Freire Lacerda

Sara da Nova Quadros Cortês

Soraia da Rosa Mendes

Raquel Negreiros

Pedro Mahin

Lívia Maier

Saionara Reis

Raissa Roussenq Alves

Talitha Selvati Nobre Mendonça

Gilsely Barbara Barreto Santana

Diego Nepomuceno Nardi

Bruno Borges

Grupo 02

Objetivos específicos: a) tratar as condições para que as demandas por reconhecimento

possam ser encaradas como discursos legítimos de uma possível interpretação de direitos

fundamentais; b) verificar em que sentido as identidades formadas pelos grupos que

reivindicam determinados direitos formam uma demanda específica por reconhecimento

e os motivos pelos quais essa demanda não é contemplada ou visualizada na esfera

judicial; c) tematizar a crescente judicialização das políticas públicas; d) desenhar

estratégias que permitam que essas questões relativas à efetivação de direitos sociais por

meio da formulação de políticas públicas possam ser debatidas institucionalmente, sem

um imediato recurso à tutela judicial; e) sugerir mecanismos de participação que

permitam que o processo de decisão dos juízes seja aberto às interpretações

compartilhadas pela sociedade acerca dos direitos fundamentais.

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Professor - coordenador

Alexandre Bernardino Costa

Coordenador executivo

Eduardo Gonçalves Rocha

Pesquisadores(as)

Alexandre Melo Soares

Beatriz Cruz

Daniel augusto Vila-Nova Gomes

Daniel Pitangueiras de Avelino

Denise Gisele de Brito Damasco

Hanna Xavier

Jan Yuri Amorin

Jorge Luiz Ribeiro de Medereiros

Judithi Karine Cavalcanti Santos

Renan Dutra Labrea

Vitor Pinto Chaves

Grupo 03

Objetivos específicos: Exame dos riscos e possibilidades que as práticas institucionais

contêm no que toca a compreensão do acesso à justiça, tomando-se em vista um acesso

que afirme simultaneamente forma e conteúdo constitucionais, compreendendo tal

conteúdo como intrinsecamente plural e emancipatório, tendo-se a constituição como

estabelecedora de uma comunidade de princípios em torno das exigências simultâneas

de liberdade e igualdade. E é precisamente o conteúdo constitucional, isto é, os direitos

fundamentais e as garantias de sua observância na organização jurídico-política,

característicos do direito e da política na modernidade, que tornam direito e política

propensos a sofrerem um uso parasitário. Em toda modernidade nenhuma organização

política pode se dar ao luxo de não se afirmar democrática ou pelo menos preparatória

da democracia. Da mesma forma, o direito moderno sempre afirmará a realização da

igualdade e da liberdade de todos, ainda que para, em sua práxis, negá-las radicalmente.

O uso parasitário, seja do direito como instrumento de dominação, seja da ditadura como

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democracia, é sempre contrafático, isto é, precisa afirmar o contrário do que é feito.

Visto da ótica dos movimentos sociais, da afirmação dos novos direitos, é o acervo

constitucional que intrinsecamente se oferece para ser retrabalhado como garantia de

permanente abertura à crescente complexidade sócia (CF, art. 5, par. segundo). E é no

plano institucional que o uso parasitário ou mesmo pretensões abusivas têm lugar. O

marco teórico adotado sabe que seria irracional a pretensão de que a possibilidade de uso

abusivo do direito e da política pudesse ser eliminada. Portanto trabalha exatamente, no

plano institucional, com a tentativa de controle dos riscos e o fomento das

probabilidades de momentos emancipatórios. a) Analisar experiências paradigmáticas na

práxis processual legislativa que contribuam para a compreensão das normas de

Processo Legislativo como garantias dadas à cidadania e não apenas como rol de

procedimentos cuja aplicabilidade e normatividade permanecem à disposição da vontade

pessoal dos legisladores; b) Identificar veículos institucionais que viabilizem tratamento

interno das demandas vindas dos movimentos sociais na execução de políticas públicas,

com ênfase ao direito constitucional de petição e às consultas públicas, pontuando êxitos

e fracassos na transformação de poder social comunicativo em poder administrativo; c)

Analisar a súmula vinculante e a repercussão geral como requisito de admissão dos

recursos extraordinários, como instrumentos constitucionais postos à disposição do STF

para solução de uma crise de acesso à justiça, entendida esta crise (sob o ponto de vista

do STF) como essencialmente uma “crise numérica”, isto é, de acúmulo de recursos de

natureza extraordinária, atentando para os riscos e possibilidades que tais instrumentos

contêm; d) Analisar decisões do STF no que diz respeito a sua correção normativa, em

face de questões socialmente relevantes, nas quais a aplicação e interpretação dos

princípios constitucionais confrontam-se com aspectos ético-políticos, para verificar se,

ainda que implicitamente, prevalece a especificidade normativa dos direitos em face das

políticas na prática do tribunal, e ainda explorar seu potencial (Dworkin); e) Identificar o

entendimento de acesso à justiça utilizados nas linhas de pesquisa da pós-graduação em

Direito e das práticas acadêmicas de extensão, indagando se elas incorporam uma leitura

plural e democrática do acesso à justiça, aferindo a possibilidade e a necessidade de

adoção de novas práticas jurídicas de formação, direcionadas para a efetivação do acesso

à justiça.

Professor-coordenador

Menelick de Carvalho Netto

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Coordenador executivo

Paulo Henrique Blair

Pesquisadores(as)

Leonardo Barbosa

Silvia Pontes

Guilherme Scotti

Vanessa Schinke

Grupo 04

Objetivo específico: Identificar estratégias de desconstitucionalização de direitos,

desvelando as demandas por reformas no sistema de justiça que se encontram ocultas,

latentes ou suprimidas.

Professor – coordenador

Cristiano Paixão

Coordenador executivo

Leonardo Augusto Andrade Barbosa

Pesquisadores(as)

Aline Lisboa Naves Guimarães

Daniela Diniz

Douglas Alencar Rodrigues

Douglas Rocha Pinheiro

Glaucia Falsarella Foley

Guilherme Cintra Guimarães

José Eduardo Elias Romão

Letícia Leal Lengruber

Marthius Sávio Cavalcante Lobato

Paulo Henrique Blair de Oliveira

Paulo Rená Santarém

Paulo Sávio Peixoto Maia

Renato Bigliazzi

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Ricardo Machado Lourenço Filho

Tahinah Albuquerque Martins

Grupo 05

Objetivo específico: Busca-se, com base na análise dos fundamentos dos votos dos

ministros contidos nas decisões do Supremo Tribunal Federal, em especial nos

denominados casos difíceis, identificar a sua atuação como ator político. Deve se

considerar, em particular, as mudanças institucionais operadas com a nova composição

decorrente das vagas abertas após 2003, coincidindo com a maioria eleitoral expressa nas

eleições presidenciais de 2002 e pela Reforma do Judiciário traduzida normativamente

pela EC 45/04. Desta forma, fortalece-se ainda mais as atribuições constitucionais de

nossa jurisdição constitucional, como é o caso dos institutos da súmula vinculante (Lei n°

11.417) e da repercussão geral (Lei n° 11.418). A partir da análise da prática desse

tribunal, o grupo 05 do Projeto Dossiê Justiça pretende oferecer subsídios de caráter crítico

e propositivo que impulsionem reformas para a democratização e a ampliação do acesso à

justiça, que está longe de ser, por si só, sinônimo de acesso ao judiciário, mas que encontra

neste uma de suas vertentes mais importantes. Destarte, debateremos em nossas análises,

como se procede a relação entre o judiciário e a sociedade brasileira e, em especial, a

relação do Supremo Tribunal Federal com o acesso à justiça e suas diferentes variáveis

que podem ser observadas, contemporaneamente, em uma sociedade partida como a

nossa.8 Assim, não podemos desconhecer, no elenco de objetivos, que, além do contexto

social indicado por nós, há outros parâmetros para compreender e efetivar o acesso à

justiça tais como as teorias do direito e constitucional de nossos dias e as conseqüências de

uma sociedade de risco.

Pesquisadores:

Prof. Alexandre Garrido da Silva

Prof. Fernando Gama Miranda Netto

8 Vide Sujit Choudry – “Constitutionalism in divided societies” in International Journal of Constitucionalism Law vol 5, number 7, páginas 573 a 575. É importante este editorial e o próprio número da citada publicação porque aponta como o constitucionalismo de hoje está enfrentando sociedades fragmentadas como a nossa. Desse modo, serve como reflexão a respeito do papel do acesso à justiça diante desse quadro.

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Prof. José Ribas Vieira

Profª. Juliana Neuenschwander Magalhães

Profª. Margarida Maria Lacombe Camargo

Prof. Marcus Firmino Santiago

Prof. Noel Struchiner

Graduandos:

Liana Lyrio

Vinicius Iglesias

Vítor Miguel Naked de Araújo

Secretário do Grupo 5:

Daniel Bartha

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GRUPO 01

Coordenador: Professor José Geraldo de Sousa Júnior

____________________________________________________________

INTRODUÇÃO, OBJETIVOS E JUSTIFICATIVA.

As tarefas distribuídas ao grupo de pesquisa coordenado pelo Professor José

Geraldo de Sousa Jr. envolviam a) contribuir para um alargamento teórico e empírico da

noção de acesso à justiça; b) identificar experiências não-convencionais de criação e

distribuição do direito a partir do protagonismo dos movimentos sociais e c) analisar os

sentidos emergentes dessas experiências, situando-os no macro-processo de

consolidação da nossa democracia. Essas atividades tinham como pano de fundo a

construção de uma proposta de Observatório da Justiça.

Essa proposta se insere num esforço para particularizar o sentido da Justiça e de

suas reformas, a fim de colocá-las em relação mais orgânica com as lutas emancipatórias

que vêm sendo forjadas no país, notadamente com o advento de sua nova ordem

constitucional. Quer isto dizer que “reforma” e “modernização” da Justiça não são

tomadas aqui como expressões de sentidos unívocos, mas, ao contrário, como objetos de

uma permanente disputa. O neoliberalismo também se pretende “reformista” e

“modernizador”, quando reivindica um sistema ágil e previsível (que ajude a difundir os

negócios mercantis), mas também despolitizado (que obstaculize a formulação de

demandas com conteúdo social, motivadas pela consciência da negação de direitos e da

cidadania). Trilhando um outro caminho, o desafio deste projeto é estabelecer uma

tensão entre essa agenda de reforma e modernização e o que poderíamos designar como

uma política de direitos. Em outras palavras, trata-se de assegurar que as mudanças

institucionais potencializem o atendimento de demandas populares.

Em um primeiro olhar poderia se entender que não existem experiências sociais a

serem observadas e levadas em conta na formulação de novas políticas de acesso à

justiça; para as quais bastariam alterações no processo ou melhorias na gestão dos

tribunais e, portanto, intervenções de ordem “técnica”. Entende-se que esse argumento

se aproxima muito do que Boaventura de Sousa Santos designa como a “produção ativa

de ausências”, vale dizer, o privilégio de uma racionalidade (funcional) em relação a

outras.

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Todavia, há muitas demandas por direitos para as quais esse modo de pensar é

hostil ou, pelo menos, insuficiente. Examinar as ações organizadas em busca da

satisfação dessas “demandas suprimidas” pode representar, assim, uma estratégia

reveladora de novas direções para a reforma da justiça. Compelindo à adoção de outras

formas organizativas, de outra cultura jurídica e judiciária, de outro perfil para a

formação de bacharéis, de outras formas de conhecer e responder aos conflitos, a ação

dos movimentos sociais se apresenta como um fator de mudança tanto dos mecanismos

(formais) de acesso à justiça, quanto da própria justiça a que se tem acesso.

REFERENCIAL TEÓRICO

Esta proposta de pesquisa vincula-se a uma tradição muito própria do

pensamento jurídico e social da América Latina: trata-se de creditar ao protagonismo

social a capacidade de instituir novos modos de vida e de juridicidade, não apenas do

ponto de vista semântico (como fonte de argumentos que ajudam a criar novas

interpretações para velhas categorias), mas também do ponto de vista pragmático (como

fonte de práticas que inspiram novas formas de operabilidade do fenômeno jurídico).

Nesse sentido, a abordagem não pode se prender apenas às normas de direito positivo e

ao reduzido espaço no qual elas operam e mutuamente se conformam (os Tribunais): é

preciso incorporar uma análise dos conflitos e das alternativas (plurais) de criação e

distribuição do direito que aparecem em decorrência de seu enfrentamento.

Se essa fundamentação parece bastante para sustentar um alargamento da noção

de acesso à justiça como algo mais amplo que o acesso à jurisdição e ao processo, não

menos relevantes serão as suas repercussões metodológicas. A elaboração de um

programa para a democratização do acesso e a própria atividade de “observação” devem

contemplar não só estudo dos Tribunais e de suas atividades, mas também o diálogo: a)

com os atores empenhados na busca por uma “legítima organização social da liberdade”;

e b) com as experiências (nem sempre convencionais) de que eles têm ajudado a forjar

na luta pelo acesso material e simbólico ao sistema de direitos. A seção abaixo esclarece

os mecanismos que serão utilizados para garantir essa atmosfera dialógica da pesquisa,

sem prejuízo do alcance dos seus objetivos científicos.

Há que se ressaltar que essa experiência de pesquisa é fruto da corrente teórica

conhecida por “O Direito Achado na Rua”, que se define por compreender que o direito

é fruto de um processo social dialógico, não se reduzindo ao direito positivo. Nesse

sentido, o diálogo freqüente e constante com os movimentos sociais no pensar e repensar

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o Direito pode ser considerado a sua maior contribuição para o cumprimento dessa

tarefa.

DO CONCEITO DE ACESSO À JUSTIÇA

O ponto mais comum nas abordagens correntes sobre acesso à justiça é figurar a

sua representação num movimento de busca de superação das dificuldades para penetrar

nos canais formais de resolução dos conflitos1.

Sob este ponto comum, as abordagens correntes, tendem por isso, a identificar

neste tema o Judiciário em um papel central, ou ao menos a focalização de instâncias

formais de garantia e de efetivação de direitos individuais e coletivos, como pretensão

objetiva de distribuição de justiça2.

Para Sadek, trata-se de identificar nessa institucionalização, “não uma justiça

abstrata, mas de possuir a palavra final, quer sobre conflitos de natureza

eminentemente política, quer sobre disputas privadas”3. A alusão ao formal é, ao fim e

ao cabo, uma redução ao estatal e, ainda quando aluda a práticas desenvolvidas por

instituições extrajudiciárias e não estatais4, é a sua institucionalidade que preside a

localização das experiências considerada a peculiar organicidade de seus agentes

promotores. Basta ver, em estudo incluído no livro organizado por Sadek5 o que

representa esse modelo de abordagem institucional de acesso à Justiça enquanto

preocupação de relacionar o procedimento à orientação de construir cidadania. Embora

partindo de referências muito bem designadas em Cappelletti6 e em Boaventura de Sousa

Santos7, Sanches Filho logra acentuar a condição de movimento que o deve caracterizar,

para formular horizontes muito mais amplos que abram a possibilidade de releitura da

questão do acesso à Justiça, de modo a concluir, sobretudo com base em Boaventura de

Sousa Santos, “que o Estado contemporâneo não tem o monopólio da produção e

1 SADEK, Maria Tereza (org), Introdução. Experiências de Acesso à Justiça, Acesso à Justiça, Konrad-Adenauer-Stiftung, Pesquisas – nº 23, São Paulo, 2001 2 Idem, p. 7 3 Ibidem, p. 8 4 Ibidem, p. 8 5 SANCHES FILHO, Alvino Oliveira, Experiências institucionais de acesso à Justiça no estado da Bahia, in SADEK, Acesso à Justiça, op. cit 6 CAPPELLETTI, Mauro, Acesso à Justiça, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1988 7 SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução à Sociologia da Administração da Justiça, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, Aguiar, Roberto A. R. de, Introdução Crítica ao Direito do Trabalho, Série O Direito Achado na Rua – vol. 2, Universidade de Brasília, CEAD/NEP, Brasília, 1993

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distribuição do direito” e que, “apesar do direito estatal ser dominante, ele coexiste na

sociedade com outros modos de resolução de litígios” 8.

Assim, mesmo quando o foco da questão é o sistema judiciário formal, as

conclusões dos principais estudos neste campo têm sinalizado para a necessidade de não

perder-se de vista de que “o direito, o sistema jurídico e o sistema judicial encontram-se

num processo acelerado de transformação, que varia em cada sociedade em função do

seu desenvolvimento econômico e social, da cultura jurídica, das transformações

políticas e do conseqüente padrão de litigação decorrente do tipo de utilizadores dos

tribunais judiciais e da relação entre a procura potencial e efectiva da resolução de um

litígio no sistema judicial”9.

Pedroso, Trincão e Dias, que vêem o acesso ao direito e à justiça como um

direito humano consagrado nas principais cartas internacionais dos direitos humanos, 10 logo na abertura das conclusões de seu consistente trabalho de pesquisa, salientam

também que estes processos de transformação apontam, em simultâneo, por diversos

caminhos. Por um lado, avança a ‘juridificação’ e a ‘judicialização’ da vida em

sociedade, com a expansão do direito a outras áreas da sociedade e com a chegada a

tribunal de ‘novos’ litígios oriundos da sociedade ou do mercado. Por outro lado,

desenvolve-se uma tendência para a desjuridificação, para a informalização e para a

desjudicialização da resolução de litígios. “11

Cabe por em relevo alguns pressupostos tanto teóricos quanto políticos que, na

modernidade, contribuíram para facilitar o desenho desse monopólio. Com efeito, na

discussão da questão da mediação popular de conflitos12, uma estratégia de

problematização desse tema aparece ancorada em três pilares, todos decorrentes de

limites das condições de compreensão da realidade no paradigma da modernidade.

Trata-se aqui da modernidade em seu sentido de tempo histórico e de racionalidade. Os

três aspectos colocados em relevo são os seguintes: a modernidade compreendida como

racionalidade científica e positiva que passou a rejeitar outras formas de conhecimento e

de explicação da realidade, tais como as mítico-religiosas e as de natureza metafísica; a

modernidade, representada pela hegemonia da forma política do Estado, cuja expressão 8 SANCHES FILHO, op. cit. Págs.241-271 9 PEDROSO, João, TRINCÃO, Catarina, DIAS, João Paulo, Tribunais em Sociedade. Por caminhos da(s) reforma(s) da Justiça, Coimbra Editora, 2003, p. 415 10 Idem, E a justiça aqui tão perto? As transformações no acesso ao direito e à justiça, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 65, CES, Coimbra, maio de 2003, p. 85 11 Idem, pág.s 415-416 12 SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, Mediação popular de conflitos, Revista do Sindjus, Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no DF, ano XVI, nº 41, Brasília, p. 4

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institucional passou a subordinar as experiências múltiplas de outros modos de

organização política no espaço da sociedade; a modernidade caracterizada pela

supremacia do modo legislativo de realizar o Direito, isolando o jurídico na sua

expressão formal (a codificação), por meio de uma colonização das práticas jurídicas

plurais inscritas nas tradições corporativas e comunitárias.

Todo este processo pode ser resumido em um modelo ideológico que passou a

pensar o mundo pela sua exteriorização jurídica, numa visão normativista, substantivista,

que faz da norma a unidade de análise da realidade, perdendo de vista a possibilidade de

uma leitura processual, institucional do mundo, assentada na experiência, que toma o

conflito como o seu elemento analítico13.

Neste sentido o direito terá não a função de integração social ou de redução de

complexidades, e nem mesmo precipuamente de mediar conflitos no sentido do

apaziguamento, mas pelo contrário, o direito aparece neste contexto como um forte

instrumento de emancipação individual e coletiva, que necessariamente irá acirrar os

conflitos. Por outros termos quer-se dizer que “Os avanços democráticos foram sempre

arrancados ao capital. A luta era por direitos econômicos e sociais, o que significava tirar

dos ricos para dar aos pobres. Mas o capitalismo é totalmente hostil à redistribuição.”.14

Esta é uma das dimensões do acesso à justiça e do direito como possibilidade de

experimentação do conflito e tradução autônoma deste a partir dos cânones culturais dos

mais fracos. O problema se coloca, como alerta Lyra Filho15 quando o esquema se

institucionaliza, a religião se transforma em igreja, a filosofia em ideologia ou sistema

de crenças, o padrão associativo em sociedade in concreto, a opção ética em elenco de

normas, o sentimento de justiça em direito legislado, tudo assentando no mecanismo

básico de interesse e conflitos de interesses, necessidades e possibilidades de satisfazê-

la. As teorias que se transmudam em crenças, apresentam-se numa espécie de oráculo.

Há que se garantir que este acesso ao direito se baseie numa ação legitima garantindo

todo projeto válido de ação; pois, e correspectivamente, é da ação que emergem os

problemas, e dos problemas que nascem as idéias, conscientizando vivências, fundindo-

se assim teoria e prática. Para mapear o contexto do acesso à justiça então é preciso

13 SANTOS, Boaventura de Sousa, op. cit. p. 104-105 14 SANTOS, Boaventura de Sousa. Democracia Convive com fascismo societal. Entrevista no Jornal do Brasil, Entrevista da 2º, em 16 de Julho de 2001. 15 LYRA FILHO, Roberto. A concepção do mundo na Obra de Castro Alves, p. 9.

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considerar que o produto autêntico do direito, como quer Sousa Júnior16., que não se

confunde com a lei, passa a ser, quando se traduzir em “transgressões concretas”,

produto sempre de uma “negociação” e de “um juízo político” de sujeitos coletivos de

direito.

O Estado, visto concretamente, se relaciona com os movimentos sociais de duas

formas pelo menos: criando estratégias de criminalização ou aceitando a participação

como parte do cenário democrático, ou seja aceitando as estratégias de politização do

processo social, para constituição garantia e efetivação de direitos, isto é, percebendo-os

como sujeitos coletivos de direito. No primeiro caso – tradicionalmente, os movimentos

sociais têm utilizado o direito para se defender das estratégias de criminalização dos

movimentos sociais, – especialmente os direitos humanos nas suas dimensões de direitos

civis e políticos, protegendo os militantes destes grupos das elites violentas e do próprio

Estado.

No segundo caso o direito surge qualificando as estratégias de politização das

lutas sociais. Percebendo que o direito não é um instrumento de Estado, pois foram

conquistados pelos movimentos há que se resgatar a credibilidade no direito e nas

instituições, ou seja, a dignidade política do direito.

O contexto pós-moderno, embora ultrapassando alguns dos limites de

compreensão da realidade construídos pela modernidade, coloca novos desafios políticos

e epistemológicos na concepção do direito. Os sociólogos descrevem a pós-modernidade

como uma modernidade sem ilusões, em constante processo de mutação, onde os

fenômenos se encontram em estado de liquidez, incapazes de manter a sua forma.

Instituições, empregos, relacionamentos e amor são temporários; costumes, estruturas e

verdades percebidas até então como sólidas, perdem a sua durabilidade. A existência

pessoal, social e profissional acontece nesse ambiente de riscos, incertezas, perda de

raízes e desconfiança nos próprios sentidos e na realidade17. Diante desse tipo de

sociedade, a compreensão da pós-modernidade não necessariamente precisa ser marcada

pela ideologia pós-modernista e, desse modo, compartilhar uma visão de mundo que

leva a desnormatização da sociedade, ao enfraquecimento das regras e vínculos sociais e

à equivalência de todos os modos de vida. Essa tendência intelectual, com freqüência

16 SOUSA JÚNIOR, José Geraldo. Sociologia Jurídica: condições sociais e possibilidades teóricas, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2002, p.43. 17 Ver BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001; ver, também, BECK, Ulrich. The risk society: towards a new modernity. London:Sage, 2004.

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acompanhada por posturas de “relativismo duro”18 que afirmam a igualdade entre todas

as culturas, abdica do debate sobre o que é uma boa sociedade, alegando a falta de

parâmetros para a discussão ou mais, a ausência mesmo da necessidade de discutir.

A opção acadêmica que guia este estudo pressupõe a tarefa de pensar uma

sociedade qualificada pela justiça que remete ao nível de vida dos seus membros mais

fracos, não encoberto pelas estatísticas sobre a renda média da população. Entramos,

portanto, no debate sobre o acesso ao direito e à justiça sem abandonar a capacidade de

avaliar, assumindo a necessidade da existência de fundamentos éticos da juridicidade.

É a partir de uma configuração crítica desses enviesamentos ideológicos legados

pela modernidade e pela pós-modernidade que se torna possível pensar os processos

sociais e operar soluções para os conflitos que dele emergem. Mediar conflitos, portanto,

requer atuar em uma situação de alteridade sem hierarquias, sejam as que opõem as

práticas do social às prescrições da autoridade localizada no Estado; do Direito

adjudicado por um especialista (o juiz) a partir de uma pauta restrita (o código, a lei), em

relação a sujeitos que não são reconhecidos em suas identidades (ainda não constituídos

plenamente como seres humanos e cidadãos) e que buscam construir a sua cidadania por

meio de um protagonismo que procura o direito no social, em um processo que antecede

e sucede o procedimento legislativo e no qual, o Direito, que não se contêm apenas no

espaço estatal e dos códigos é, efetivamente, achado na rua19.

Pode residir aí a situação percebida pela juíza Gláucia Falsarelli Foley20 quando

se refere ao conjunto de movimentos necessários para impulsionar a universalização do

acesso à Justiça, pleiteando, assim, por uma Justiça sem jurisdição porque efetivamente

operada na comunidade, para a comunidade e, sobretudo, pela comunidade. Ou, como

ela diz em outro lugar, aludindo aos limites de reformas em curso, não perder de vista o

potencial emancipatório. Isso porque, ela completa, “desde já se verifica certa

resistência à proposta de se reconhecer, valorizar e estimular novos instrumentos para

a democratização da própria realização da justiça, restituindo à comunidade e aos seus

18 As expressões “relativismo duro” e “relativismo suave” foram encontradas na entrevista de Peter Burke feita por PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. As muitas faces da história. Nove entrevistas. São Paulo: UNESP, 2000, pg. 185- 231. 19 SILVA, Fábio Costa Morais de Sá e, Ensino Jurídico. A descoberta de novos saberes para a democratização do direito e da sociedade, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2007, págs. 17-23 20 Acesso universal à Justiça, Correio Braziliense, Brasília, 26/06/2007, pág. 19

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cidadãos o exercício da autonomia política, por meio da gestão dos próprios

conflitos”21

Tudo isso mostra, como o faz Boaventura de Sousa Santos, o quanto o “acesso à

justiça é um fenômeno muito mais complexo do que à primeira vista pode parecer, já

que para além das condicionantes econômicas, sempre mais óbvias, envolve

condicionantes sociais e culturais resultantes de processos de socialização e de

interiorização de valores dominantes muito difíceis de transformar”22. Se, ao limite, a

partir de Boaventura de Sousa Santos, e com ele, pudermos alargar o conceito de acesso

à Justiça, o plano mais amplo que poderíamos lograr concebê-lo, seria, talvez, pensá-lo

como um procedimento de tradução, ou seja, como uma estratégia de mediação capaz

de criar uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis para o

reconhecimento de saberes, de culturas e de práticas sociais que formam as identidades

dos sujeitos que buscam superar os seus conflitos23.

Esta mediação leva, por meio do trabalho de tradução, a criar “condições para

emancipações sociais concretas de grupos sociais concretos num presente cuja injustiça

é legitimada com base num maciço desperdício de experiência”, mas que buscam criar

sentidos e direções para práticas de transformação social e de realização de justiça24.

Fora desse contexto emancipatório o que resta é a configuração do acesso à

justiça como objeto delimitado25, mesmo considerados os dois níveis de acesso:

igualdade constitucional de acesso representado ao sistema judicial para resolver

conflitos e garantia e efetividade dos direitos no plano amplo de todo o sistema

jurídico26. Não por outra razão, Boaventura de Sousa Santos sugere que a estratégia mais

promissora de reforma da justiça está na “procura dos cidadãos que têm consciência de

seus direitos, mas que se sentem impotentes para os reivindicar quando violados.

Intimidam-se ante as autoridades judiciais que os esmagam com a linguagem esotérica,

o racismo e o sexismo mais ou menos explícitos, a presença arrogante, os edifícios

esmagadores, as labirínticas secretarias”. Se essa procura for considerada, diz o

21 Idem, Entrevista: Condições Republicanas para a Democratização e Modernização do Judiciário, Constituição & Democracia, UnB/Sindjus/Faculdade de Direito, Brasília, nº 4, maio de 2006, p. 10 22 Op. Cit. p. 114 23 Para uma Sociologia das Ausências e uma Sociologia das Emergências, in SANTOS, Boaventura de Sousa (org), Conhecimento Prudente para uma Vida Decente. ‘Um discurso sobre as ciências’ revisitado, Cortez Editora, São Paulo. 2004, p.813, 814 e 815 24 SANTOS, Boaventura de Sousa, idem, p. 814 25 SANTOS, Boaventura de Sousa, MARQUES, Maria Manuel Leitão, PEDROSO, João e FERREIRA, Pedro Lopes, Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas. O Caso português. Centro de Estudos Sociais/Centro de Estudos Judiciários, Edições Afrontamento, Porto, 1986, p. 485 26 Idem, p. 485

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sociólogo português, o resultado inevitável será “uma grande transformação do

judiciário” 27.

Considerado o nível mais restrito, o sistema judicial se consolida justamente em

seu fechamento democrático, na medida em que o seu conceito de acesso mina

possibilidades de participação popular na interpretação de direitos; esgota a porosidade

entre ordenamentos jurídicos hegemônicos e contra-hegemônicos; constituídos e

instituídos pela prática dos movimentos sociais.

O nível restrito do acesso à justiça, portanto, se reafirma no sistema judicial. O

nível mais amplo do mesmo conceito se fortalece em espaços de sociabilidades que se

localizam fora ou na fronteira do sistema de justiça. Contudo, ambos os níveis se

referem a uma mesma sociedade, na qual se pretende o exercício constante da

democracia.

Considerando os dois níveis, a pergunta a ser feita é a seguinte: é possível o

exercício democrático com um judiciário conservador, incapaz, portanto, de assimilar

formas participativas de mediação para os conflitos e para o reconhecimento de novos

direitos instituídos permanentemente em uma sociedade plural?28

Esta é sem dúvida a questão candente hoje, em nosso país, quando se coloca em

causa o problema de sua democratização e se identifica no judiciário a recalcitrância que

é social e teórica para a realização de mudanças sociais, conferindo à regulamentação

jurídica das novas instituições o seu máximo potencial de realização das promessas

constitucionais de reinvenção democrática.

No Brasil, notadamente, a partir do importante debate que se instaurou no país na

conjuntura aberta com o processo constituinte de 1985-1988, a reinvenção das

instituições democráticas em geral e do judiciário em particular por causa de seu papel

estratégico para a mediação de conflitos sociais ganhou grande relevância e foi esse o

tema que designou o próprio processo, a ponto de a Constituição que é seu fruto, ser

denominada “Constituição Cidadã”.

Ainda que sejam muitas as críticas a esse processo e persista a recusa para o

reconhecimento da qualificação democrática a ele atribuído, a experiência constituinte

deu conta de demarcar a transição do autoritarismo militar pós-64 para um sistema civil

27 A Justiça em Debate. Folha de São Paulo: Opinião, Tendências/Debates, pág. A3, 17.09.2007 28 SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, Que Judiciário na Democracia?, Revista do Sindjus. Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no DF, ano XI, nº 8, outubro de 2001, págs. 12-15

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de governo, no qual, a possibilidade efetiva de participação popular na experiência de

reconstrução das instituições é, de fato, uma marca.

Basta ver que a própria noção de participação e participação direta, passa a

designar, na concepção constitucional, o modelo de exercício de poder então constituído,

com a criação formal de vários instrumentos de participação popular, com a legitimação

do protagonismo social e suas estratégias de ação.

Hoje, não há quem não reconheça e valorize formas regulamentadas de

participação popular, legalizando, em todos os níveis formais de poder, no legislativo e

no executivo, os processos, os mecanismos e as instituições que realizam o novo modelo

de atuação cidadã, entendida aqui a cidadania em sentido ativo para incluir, tal como

sugere Marilena Chauí, “a possibilidade de colocar no social novos sujeitos autônomos

– auto nomos – que criam, que se dão a si próprios, novos direitos”29.

Curioso na postura resistente do Poder Judiciário é a impermeabilidade a fatores

de democratização que se inscrevem no próprio projeto jurídico-político do estado

liberal em cujos pressupostos têm assento, inclusive, o princípio da participação popular

na administração da justiça, hoje consignado nas constituições de Portugal, Espanha e

Brasil, pós os anos 1970.

Claro que, numa perspectiva de alargamento do acesso democrático à justiça, não

basta institucionalizar os instrumentos decorrentes desse princípio, é preciso também

reorientá-los para estratégias de superação desses mesmos pressupostos. Primeiro, criar

condições, num movimento cognitivo da imaginação epistemológica, para inserir no

modelo existente de administração da justiça, a idéia de participação popular que não

está inscrita em sua estrutura; segundo, agora num movimento de tradução sob impulso

da imaginação democrática de uma demanda de participação popular não estatizada e

policêntrica, num sistema de justiça que pressupõe uma administração unificada e

centralizada; terceiro, fazer operar um protagonismo não subordinado institucional e

profissionalmente, num sistema de justiça que atua com a predominância de escalões

hierárquicos profissionais; quarto, aproximar a participação popular do cerne mesmo da

salvaguarda institucional e profissional do sistema que é a determinação da pena e o

exercício da coerção; quinto, considerar a participação popular como um exercício de

cidadania, para além do âmbito liberal individualizado, para alcançar formas de

29 CHAUI, Marilena, Sociedade, Estado, OAB, in XIII Conferência Nacional da OAB, Conselho Federal da OAB, Anais, Belo Horizonte, 1990, p. 117

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participação coletiva assentes na comunidade real de interesses determinados segundo

critérios intra e trans-subjetivos30

Por esta razão, neste campo, graças ao protagonismo de magistrados e

operadores de direito, com repercussão em vários âmbitos, políticos, sociais,

profissionais e de formação, vem se dando um dos mais fortes embates, verdadeiro

combate de uma guerra ao mesmo tempo de movimento e de posição. Organizados em

novas entidades (“Associação Juízes para a Democracia”, “Ministério Público

Democrático”, “Juízes para um Direito Alternativo”, “Associação dos Advogados das

Lutas Populares”), assumem a expressão de suas tensões presentes nas condições da

cultura jurídica de formação desses operadores (crítica ao formalismo e ao modelo

epistemológico conformista do ensino jurídico) e na exigência de redefinição de sua

função social (operadores do direito para que e para quem).

Em livro do qual se discutem condições éticas para orientar reformas judiciais31,

cuidou-se de enfrentar, exatamente, essa questão, vale dizer, a de que o direito e o

sistema judiciário têm também que se transformar no processo paradigmático que

envolve as instituições sociais e os sistemas de poderes.

Senão, como designar as contraposições entre o direito oficialmente instituído e

formalmente vigente e a normatividade emergente das relações sociais; como distinguir

entre a norma abstrata e fria das regras que regem comportamentos e a normatividade

concreta aplicada pelos juízes; como recepcionar e compreender novas condições

sociais, a emergência de novos sujeitos de direitos, valorizando o pluralismo jurídico

efetivo que permeia essas relações?

Bistra Apostolova situa este problema ao caracterizar a justiça no paradigma

contemporâneo de direito, como um princípio de equilíbrio de interesses sociais

impossíveis de serem reduzidos a uma medida universal e absoluta32.

Tal caracterização remete à hipótese teórica do pluralismo jurídico, base

epistemológica do acesso à justiça assim como formulado neste ensaio e que enseja a

30 SANTOS, Boaventura de Sousa, A Participação Popular na Administração da Justiça no Estado Capitalista, in Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, A Participação Popular na Administração da Justiça, Livros Horizonte, Lisboa, 1982, p. 84; idem, Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências, op. cit. p. 814 31 Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a reforma do judiciário, Pe. José Ernanne Pinheiro, José Geraldo de Sousa Junior, Melillo Dinis e Plínio de Arruda Sampaio (orgs.), Editora Vozes/CNBB, Petrópolis, 2ª edição, 1996. 32 APOSTOLOVA, Bistra Stefanova, O Poder Judiciário Brasileiro na Passagem da Modernidade para a Contemporaneidade, in Ética Justiça e Direito. Reflexões sobre a reforma do judiciário, op. cit. p.137

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possibilidade de outros modos de determinação da norma do direito e da própria

acessilidade à justiça33.

O pluralismo jurídico é, aliás, uma das premissas para pensar reformas que

permitam contemporizar a idéia restrita do primado do direito e a primazia do sistema

judicial como instrumentos ideais de uma concepção despolitizada da transformação

social34. É o pluralismo jurídico que possibilita definições seletivas de competências que

permitam encontrar formas de composição extralegal para determinados tipos de

conflitos e fundamentar reformas, inclusive do sistema judicial e do sistema processual

em condições de incluir, simultaneamente, a face técnico-profissional e a face informal

e comunitária da administração da justiça35, articulando estratégias, como sugere

Boaventura de Sousa Santos, próprias à democracia representativa, plano do constituído,

e próprias à democracia participativa, plano do instituinte 36.

A falta de compreensão dessas condições tem sido fator de incremento à crise no

campo da justiça, a ponto de se configurar a situação dramática a que faz referência

Boaventura de Sousa Santos, segundo o qual, sem abrir-se a esse franco questionamento,

sem confrontar os pressupostos formalistas de sua cultura legalista e sem submeter a

uma revisão os fundamentos políticos e democráticos de seu papel e de sua função

social, “o Judiciário faz da lei uma promessa vazia”.

Esta é uma condição para abrir o sistema de acesso à justiça, como lembra

Carolina de Martins Pinheiro, não apenas por uma via de modernização tecnológica que

foca o Judiciário num recorte funcional de prestador de serviços quantificáveis, segundo

uma lógica maximizadora de esforços produtivos, mas que se fecha à possibilidade de

inclusão de visões de mundo diferenciadas, portanto, imune à riqueza de subjetividades

interpelantes. É dessa carência que se ressentem as constantes reformas, organizacionais

e processuais, em geral oferecidas para a atualização do sistema de Justiça, todas elas

33 SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, El derecho hallado em la calle: tierra, trabajo, justicia y paz, in RANGEL, Jesús Antonio de la Torre (coordinador), Pluralismo Jurídico. Teoria y Experiências, Cenejus – Centro de Estúdios Jurídicos y Sociales “Padre Enrique Gutiérrez”, San Luis Potosí, México, 2007, p.242 34 SANTOS, Boaventura de Sousa, TRINDADE, João Carlos (orgs), Conflito e Transformação Social: uma paisagem das justiças em Moçambique, 2º volume, Edições Afrontamento, Porto, 1993, p. 526 35 Idem, op. cit. págs. 581 e 582 36 SANTOS, Boaventura de Sousa, Democratização do Acesso à Justiça, conferência proferida no MJ, em 06/06/2007, no Seminário promovido pela Secretaria de Reforma do Judiciário, do Ministério da Justiça, para lançar as bases do Observatório da Justiça Brasileira.

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ainda subordinadas à lógica de papelização do direito, com evidente perda de sua

dimensão humana37.

Presas a uma visão positivista, que jurisdiciza o mundo, estas reformas não

carregam a percepção das condições de mudança da sociedade, seja em contexto teórico,

seja em contexto social, e não se dão conta da emergência de novas subjetividades, de

novos conflitos e de novos direitos, interpelando continuamente a cultura legalista que

está na base da atuação dos agentes do sistema de justiça e que orienta o posicionamento

funcional dos operadores de Direito38

Essa interpelação está no fundo do grande debate que traz o ensino do Direito

para seu centro, revelando o duplo equívoco a tradição retórica e positivista havia

produzido: a inadequada percepção do objeto de conhecimento e os defeitos

pedagógicos disso decorrentes, como apontou Roberto Lyra Filho39, quando

simultaneamente formula uma concepção que o vê como modelo avançado de legítima

organização social da liberdade.

Desse modo, estudar Direito implica elaborar uma nova cultura para as

Faculdades e cursos jurídicos e, um dos eixos fundamentais dessa reformulação cultural

tem sido, à luz das diretrizes em curso, constituir-se a educação jurídica uma articulação

epistemológica de teoria e prática para suportar um sistema permanente de ampliação do

acesso à justiça40, abrindo-se a temas e problemas críticos da atualidade, dando-se

conta ao mesmo tempo, das possibilidades de aperfeiçoamento de novos institutos

jurídicos para indicar novas alternativas para sua utilização41.

A nova cultura jurídica subjacente ao ensino do direito terá repercussões nas

formas de recrutamento dos juízes redirecionando a seleção com base nas habilidades

essenciais para a democratização profunda do acesso à justiça. Entre essas competências

destacamos a abertura epistemológica para o pluralismo jurídico; o desenvolvimento de

37 PINHEIRO, Carolina de Martins, Escuta Criativa: sobre a Possibilidade de uma Justiça Moderna e Democrática, 1º lugar no 1º Prêmio Novas Idéias para a Justiça. Objetivos e Resultados, Sindjus-DF,Brasília, s/d, p. 68 38 SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, Novas sociabilidades, novos conflitos, novos direitos, in Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a reforma do judiciário, op. cit. p. 93 39 LYRA FILHO, Roberto, Para um direito sem dogmas, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1980, passim; O Direito que se ensina errado, Editora Obreira, Brasília, 1980, passim; O que é Direito, Editora Brasiliense, Coleção Primeiros Passos, 1ª edição, 1982, passim 40 SOUSA JUNIOR, José Geraldo, COSTA, Alexandre Bernardino, Introdução, in MACHADO, Maria Salete Kern, SOUSA, Nair Heloisa Bicalho de, Ceilândia: mapa da cidadania. Em rede na defesa dos direitos humanos e na formação do novo profissional do direito, Brasília, Faculdade de Direito da UnB, Secretaria de Direitos Humanos/MJ, 1998 41 SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, Ensino do Direito e Assessoria Jurídica, in Revista do SAJU. Serviço de Assessoria Jurídica Universitária, Edição Especial nº 5, UFRS, Porto Alegre, 2006, p. 31

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um perfil não apenas técnico, mas também humanista dos agentes jurídicos em

condições de promover a reflexão sobre a condição humana que contextualize o direito

no seu ambiente histórico, cultural, político, existencial e afetivo; aptidão para distinguir,

entre as múltiplas demandas, aquelas que exigem a construção de um ambiente

procedimental adequado para negociação de diferenças e diminuição de desigualdades

sociais.

Realizar a promessa democrática da Constituição eis o desafio que se põe para o

Judiciário e para responder a esse desafio precisa ele mesmo recriar-se na forma e no

agir democrático. Mas o desafio maior que se põe para concretizar a promessa do acesso

democrático à justiça e da efetivação de direitos é pensar as estratégias de alargamento

das vias para esse acesso e isso implica encontrar no direito a mediação realizadora das

experiências de ampliação da juridicidade. Com Boaventura de Sousa Santos podemos

dizer que isso implica dispor de instrumentos de interpretação dos modos expansivos de

iniciativas, de movimentos, de organizações que, resistentes aos processos de exclusão

social, lhes contrapõem alternativas emancipatórias42.

Um procedimento de pesquisa que intente operar a partir dessa visão de

alargamento, pensando o tema do acesso democrático à justiça, não pode descuidar-se da

designação cartográfica das experiências que se fazem emergentes. Sob tal perspectiva,

diz Boaventura de Sousa Santos, “as características das lutas são ampliadas e

desenvolvidas de maneira a tornar visível e credível o potencial implícito ou escondido

por detrás das acções contra-hegemônicas concretas”43. Isso corresponde, completa

Sousa Santos, a atuar “ao mesmo tempo sobre as possibilidades e sobre as capacidades;

a identificar sinais, pistas, ou rastos de possibilidades futuras naquilo que existe”44.

A METODOLOGIA DA PESQUISA DE CAMPO

A fim de realizar a cartografia das possibilidades de emergência de experiências

de acesso à justiça e direitos humanos das quais seja possível extrair elementos para

reflexão e assim dar conta das exigências da pesquisa em questão – cujos eixos

envolvem a identificação de demandas que interpelem a própria noção de acesso à

justiça e as experiências não-convencionais de satisfação das mesmas – foi adotado

roteiro de entrevista, feito com o apoio inestimável e essencial da Profa. Nair Bicalho

42 SANTOS, Boaventura de Sousa, Poderá o direito ser emancipatório? Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 65, CES, Coimbra, maio de 2003, p.35 43 Idem, p. 35 44 Ibidem, p. 35

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(Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo, Técnica de Planejamento e

Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e Professor Adjunto do

Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília) e da pesquisadora Cíntia

Engel, graduanda de Sociologia do 5º semestre, membro da diretoria de pesquisa da

empresa júnior de Consultoria em Ciências Cociais – SOCIUS, pesquisadora financiada

pelo FINEP na linha de envelhecimento de mulheres, práticas institucionais de violência

e abandono.

Os roteiros de entrevista foram construídos de forma coletiva, a partir de

reuniões semanais no Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos – NEP/UnB,

e com aplicações paralelas de “entrevistas-testes” por parte de alguns pesquisadores que

posteriormente apresentavam as suas impressões ao grupo. Os pesquisadores, com o

auxílio da Profa. Nair Bicalho criaram as questões e se preparam para aplicá-las, num

processo contínuo de aperfeiçoamento e aprendizagem. A aplicação das entrevistas teve

como objetivo revelar quais as experiências de acesso à justiça potencializadoras de

aprendizagem e como têm sido conquistadas tanto pela sociedade civil organizada como

pelos movimentos sociais.

O roteiro dividia-se em cinco partes:

I. Perfil do(a) Entrevistado(a)

II. Perfil da Organização, Rede ou Movimento

III. Percepções sobre Direito e Justiça

IV. Percepção sobre o Sistema Judicial

V. Formas Convencionais e Não-Convencionais de Acesso à Justiça

As entrevistas foram realizadas entre setembro e dezembro de 2007, seguindo

três formas: presencial, por telefone e por e-mail. Os pesquisadores ficaram

encarregados de entregar as versões finais dos roteiros à Coordenação do grupo 01 para

numeração e posterior tabulação de dados. Para a tabulação quantitativa, foi utilizado o

sistema SPSS. Após essa fase, o grupo dividiu-se para fazer a análise do discurso das

questões abertas.

A escolha dos movimentos, redes e organizações entrevistados partiu de uma

amostragem delimitada pelos seguintes critérios: proximidade e identidade com a

organização, possibilidade de coleta da informação no tempo adequado, pertinência do

programa da organização ao tema da pesquisa e, por fim, a credibilidade e o

reconhecimento das ações dessas organizações. Os entrevistados foram indicados pelas

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28

entidades escolhidas, preferencialmente pessoas em cargo de direção e coordenação, que

estavam a mais de dois anos na entidade.

Em nenhum momento o grupo 01 pretendeu esgotar o universo representativo

dos movimentos sociais na sua escolha, pelo contrário, desde o início sabia-se que esse

seria apenas o ponto de partida, a “experiência-piloto” de um mapeamento mais amplo a

ser feito caso a pesquisa prosperasse e chegasse aos resultados esperados.

Além disso, a pesquisa não visou meramente identificar as melhores ou bem-

sucedidas experiências, mas ao contrário, buscou fazer emergir através da escuta dos

movimentos sociais e respeito ao seu protagonismo, visões plurais de acesso à justiça.

Entendendo que o desperdício da experiência deve ser evitado, eventualmente, pode-se

aprender mais com experiências que à primeira vista não foram vitoriosas, mas cujo

potencial pedagógico seja iluminador.

RESULTADOS E CONCLUSÕES DA PESQUISA

Os novos movimentos sociais45 são a mola propulsora para o esperado

alargamento da prática política. Críticos dos excessos de regulação da modernidade,

esses movimentos lutam para além da concessão de direitos – exigem transformações e

inserção institucional imediatas. Carregam como bandeira a idéia de participação e de

solidariedade concretas, na busca de uma nova qualidade de vida pessoal e coletiva,

pautada na ação comunicativa para cultivar cooperação, compartilhamento e

solidariedade, com base na autonomia e no autogoverno, na descentralização e na

democracia participativa, no cooperativismo e na produção do socialmente útil. Têm

como objetivo a ampliação do político, a transformação de práticas dominantes, o

aumento da cidadania e a inserção na política de atores sociais excluídos.

Dessa forma, os novos movimentos sociais acabaram por instaurar, efetivamente,

“práticas políticas novas, em condições de abrir espaços sociais inéditos e de revelar

novos atores na cena política capazes de criar direitos”. Fixaram suas ações na sociedade

política, especialmente nas referentes à implementação de políticas públicas.

45 Falar-se-á de “novos movimentos sociais” para caracterizar aqueles movimentos surgidos entre as décadas de 1960 e 1980, que tinham como fim “a luta pelo reconhecimento de direitos sociais e culturais modernos. (...) não se tratava mais de lutas concentradas nos sindicatos ou nos partidos políticos” (GOHN, 2005, p. 72). “Esses movimentos ajudaram a construir novos significados para a política, localizando-a no cotidiano” (GOHN, 2005, p. 74). Além disso, são identificados como “novos” pela recriação de espaços públicos, pela heterogeneidade de sujeitos, pela diversidade de manifestações etc. “Embora fragmentados, unificavam-se na luta pelos direitos sociais e pela democratização do Estado, exigindo a participação direta nas decisões que lhes afetavam” (SILVA, 2003, p. 30) (grifou-se).

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29

A pesquisa de campo tinha por objetivo verificar se a descrição dos obstáculos

para a efetivação do direito à justiça e acesso à justiça, na forma que os autores que

compõem o marco teórico dessa pesquisa (Sousa Santos, Sousa Júnior e Lyra Filho),

correspondiam às demandas formuladas pelos movimentos sociais. E, além disso,

verificar em que medida as entrevistadas poderiam oferecer experiências capazes de

reconfigurar a discussão sobre justiça e acesso à justiça, resgatando-a da agenda de

regulação e a reconduzindo para a agenda da emancipação, através do estabelecimento

de novas e criativas práticas sociais.

Nesse sentido, foram identificadas organizações, movimentos e redes com

diferentes perfis organizacionais, tempo de existência, públicos, abrangência, além de

outros critérios para verificar os encontros entre teoria e prática e as diferentes formas de

intervir politicamente na realidade para a defesa de direitos.

A partir da coleta dos dados, foram realizadas duas análises. A primeira foi feita

a partir da Seção I do roteiro de entrevista, e fazia a identificação social do entrevistado.

Para fins de melhor visualização, as respostas estão organizadas em forma gráfica em

um anexo a esse texto.

As respostas das perguntas fechadas permitiram o reconhecimento do universo

trabalhado na pesquisa, com cruzamentos de raça, salário, escolaridade, tempo e posição

na organização. A segunda análise permitiu recolher dois tipos de categorias, uma que

identifica as estratégias não convencionais de acesso à justiça e outra que identifica

demandas de democratização e refuncionalização do Sistema Judicial.

Em relação ao universo composto pelas vinte e duas entrevistadas, os

pesquisadores integrantes do grupo 01 retiraram as seguintes informações:

Em relação ao sexo dos entrevistados, 67% são do sexo feminino e 33% do

masculino. Quanto à renda, observa-se alguma diversidade de faixas salariais, mas 39%

dos entrevistados relataram receber mais de 6 até 9 salários mínimos, já 22% recebe até

6 salários mínimos e 39% recebem acima de 9 salários.

O grau de escolaridade da maior parte dos entrevistados é superior completo,

sendo que esses somam 36% e outros 32% têm pós-graduação. Por outro lado, 9% têm

escolaridade até o ensino médio ou fundamental.

Essas informações permitem concluir que o perfil dos entrevistados foi

diversificado. Em sua maioria os entrevistados eram gestores e técnicos de organizações,

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movimentos e redes bem-estruturadas, com alto grau de escolaridade e renda superior a

9 salários mínimos. Por outro lado, as entrevistas também alcançaram representantes de

movimentos sociais de base, com pouca educação formal e renda reduzida. O grupo 01

decidiu trabalhar com esse público variado, não reduzindo seu universo apenas a

organizações de alto perfil, para recolher diferentes perspectivas sob o acesso à justiça.

Além disso, a consolidação dos dados permite verificar o cumprimento dos

critérios de seleção para os entrevistados (exercício de cargo de direção e estar há mais

de dois anos na organização, movimento ou rede). Observa-se, então, que 50% dos

entrevistados estão em cargo de direção e outros 13% estão em função de assessoria.

Isso pode ser explicado em parte porque os pesquisadores aproveitavam viagens de

representantes dos movimentos, organizações ou redes para Brasília para realizar as

entrevistas, sendo que nem sempre os profissionais que viajam são os membros da

direção. Temos como exemplos, as entrevistas feitas no Seminário da ABEDI e a

entrevista feita durante a Marcha das Margaridas.

O tempo na organização, rede ou movimento foi eleito um dos critérios para a

seleção dos entrevistados porque se desejava resgatar elementos da memória

institucional de médio e longo prazo. Assim, 96% dos entrevistados possuem mais de

dois anos de instituição, sendo que 50% responderam ter mais de seis anos de trabalho.

Em relação à segunda análise, a leitura consolidada do conteúdo das entrevistas

permitiu que se verificasse que as organizações, movimentos e redes conhecem e

buscam a Justiça pelos meios tradicionais. No entanto, também permitem elaborar uma

vasta categorização de estratégias não-convencionais de acesso à justiça, com grande

potencial de aprendizagem coletiva para direitos e cidadania. Vê-se, então, nas

experiências dos movimentos sociais uma demanda pela resignificação e alargamento

das noções tradicionais de justiça e acesso à justiça, a partir do protagonismo dos

movimentos sociais no marco do pluralismo jurídico.

Há que se mencionar que essa categorização foi feita por pesquisadores cuja

afinidade teórica se dá no marco do projeto Direito Achado na Rua. Nesse sentido, as

categorias que são abaixo mencionadas não foram criadas pelas organizações

entrevistadas, mas pelo próprio grupo de pesquisa ao fazer a segunda análise do material

coletado. Essa segunda análise, por questões objetivas, não teve como objetivo exaurir o

material coletado. Ao contrário, pretende ser uma amostra preliminar da riqueza de

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experiências produzidas pelos movimentos sociais que por vezes é ativamente

silenciada. O grupo de pesquisadores ligados ao Direito Achado na Rua se sente

motivado a aprofundar a pesquisa, dialogar com outros grupos interessados no tema e no

material coletado e incentivar estudantes de graduação e pós-graduação a continuar a

análise do material coletado.

Entre as estratégias identificadas pelos pesquisadores estão:

1.“Respeito às temporalidades democráticas” – parcela significativa dos entrevistados

mencionou a necessidade de se respeitar o tempo para que os grupos sociais pudessem

avaliar com profundidade suas demandas e tomar decisões. Muitas vezes esse tempo de

maturação entra em choque com a temporalidade típica dos processos judiciais ou

administrativos, que não levam em consideração os processos sociais, mas apenas

resultados. Os entrevistados mencionaram freqüentemente como aprendizado dos seus

anos de experiência que sem respeito ao protagonismo dos grupos e das comunidades

com quem trabalham, aos seus ritos e ao tempo necessário para a produção do

convencimento, sua atuação carece de legitimidade e não produz bons resultados.

2.“Fortalecimento Comunitário”- os entrevistados chamam atenção para que as

demandas dos grupos sociais sejam identificadas como demandas coletivas, e não como

pequenos problemas individuais. Algumas demandas são verdadeiros problemas sociais

contemporâneos que o sistema de justiça pela sua configuração liberal não consegue

captar com toda a complexidade. O fortalecimento das instâncias comunitárias e o seu

reconhecimento como “sujeitos coletivos de direitos” é uma de grande importância para

a garantia plural do acesso à justiça.

3.“Educação em Direitos Humanos”- essa estratégia afirma a importância da educação e

informação sobre direitos para os grupos sociais em situação de vulnerabilidade, como

forma de amplificar suas vozes e demandas. Educar em direitos humanos não se resume

a transmissão dos conteúdos dos tratados internacionais e das normas brasileiras. Para

além disso, é necessário informar sobre direitos com metodologias livres de

discriminação e que não reproduzam velhos estigmas.

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4.“Uso dos Meios de Comunicação” – os entrevistados afirmaram usar os meios de

comunicação para dar visibilidade a situações críticas de violação do direito à justiça e

ao acesso à justiça, como também para amplificar experiências bem sucedidas ou boas

práticas. Embora a imprensa seja muito citada como responsável por violar direitos, a

utilização cidadã dos meios de comunicação é descrita como uma boa estratégia para

alcançar a justiça.

5.“Conscientização e Sensibilização”- essas estratégias se referem ao uso da educação

não formal como meio de educar em direitos para situações não percebidas como

violações do direito à justiça e do acesso à justiça. A estratégia foi usada tanto com o

objetivo de sensibilizar operadores do direito, quanto com grupos sociais para tratar de

questões ainda emergentes.

6.“Reconhecimento e acreditamento do protagonismo das experiências de mediação

social realizadas fora das instâncias estatais”- o que chama atenção nessa categoria é a

demanda por reconhecimento das iniciativas de mediação comunitária por justiça e por

acesso à justiça e a recusa de sua cooptação ou absorção de seus modelos e práticas pelo

Estado. As experiências de mediação relatadas possuem forte base comunitária, sendo

esse um diferencial a ser preservado.

Embora a pesquisa não tivesse como objetivo específico fazer uma avaliação da

percepção de movimentos, organizações e redes acerca do Sistema Judiciário foi

possível identificar nas entrevistas demandas por democratização e refuncionalização

das instituições que o compõem, pois muitas vezes foram descritas como um obstáculo

ao acesso à justiça. O Sistema Judiciário foi descrito pelas entidades como:

1.“Resistente a trabalhar com o direito da rua” – as entrevistas dão a perceber uma

recusa de compreender outras formas de regulação social que não a do direito positivo.

Há uma demanda por reconhecimento de mecanismos jurídicos não positivados, mas de

ampla aceitação por grupos sociais. A recusa do pluralismo faz com que práticas sociais

que garantem justiça sejam mantidas invisíveis.

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2.“Dotado de baixa sensibilidade para com as demandas da comunidade” – os

entrevistados reconhecem nos operadores do Sistema Judicial pouca disponibilidade

para travar relações horizontais, reconhecendo e respeitando as demandas da

comunidade e suas decisões. Há forte crítica ao não respeito do protagonismo dos

interessados na composição de soluções para suas demandas.

3.“Possuidor de limites culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos

conflitos sociais” – algumas entrevistas identificaram limites culturais dos membros do

Sistema Judiciário que não são capazes de reconhecer algumas situações de conflitos

sociais como demandas por acesso à justiça ou acesso à justiça. Sejam pelo seu conteúdo

ainda não reconhecido como direito ou pela sua configuração coletiva.

4.“Composto por um corpo com formação técnica desvinculada das experiências do

mundo da vida” – as entrevistas mencionam as limitações da formação técnica oferecida

ao profissional do direito, excessivamente livresca, que não o preparam para lidar com

as complexidades do mudo da vida em permanente mutação. São freqüentemente

oferecidas velhas soluções para novos problemas.

5.“Burocrático” – as instituições do Sistema Judicial são percebidas como

excessivamente burocráticas e apegadas aos seus procedimentos. Há dificuldade de se

entender o emaranhado de regras processuais e o linguajar excessivamente técnico usado

pelos profissionais do Direito, o que acaba por limitar e desencorajar grupos a exercer

sua cidadania.

6.“Pouco permeável ao controle social” – as entrevistas afirmam ser o Sistema Judicial

pouco aberto ao monitoramento da sociedade civil. As organizações, movimentos e

redes lamentam a pouca possibilidade de diálogo com os integrantes do Poder Judicial, e

verem atendidas suas demandas de democratização e refuncionalização.

Apesar de tradicionalmente se entender o Sistema Judicial como sendo o único

canal de acesso à justiça, esse é percebido pelas organizações, movimentos e redes como

um eventual obstáculo a ser superado para se alcançar a Justiça. Essa pesquisa

demonstra que por vezes movimentos, redes e organizações adotam estratégias não

convencionais para acessar a justiça que consideram mais capazes de produzir um

resultado social de amplo aprendizado.

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ANEXO 0 1- ENTREVISTAS REALIZADAS:

1. Ana Celina Bentes Hamoy, do Cedeca Emaús

2. Lúcia Helena Carvalho Pires; da Rede Nacional de Pessoas (RNP +) que vivem

com HIV Aids

3. Regina Lúcia Pinto Cohen, da Associação Brasiliense de Combate à Aids – Grupo

Arco-Íris

4. Carla Miranda, do NAJUP

5. Domingos – Tucano, da FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio

Negro)

6. Saulo Ferreira Feitosa; do CIMI (Conselho Indigenista Missionário);

7. Roberto Policarpo Fagundes, do Sindjus (Sindicato dos Trabalhadores do Poder

Judiciário e do Ministério Público da União no DF);

8. Adriana de Carvalho Barbosa Ramos, do ISA (Instituto Sócio Ambiental

9. Isabella Pearce de Carvalho Monteiro, do Centro de Assessoria Jurídica

Universitária Popular – Cajuína

10. Fábio Meirelles Hardman de Castro, da Escola da Gente – Comunicação em

Inclusão

11. Karla Adriana Ribeiro de Araújo e Aline Tavares, do CENDHEC (Centro Dom

Helder Câmara de Estudos e Ação Social)

12. Clóvis Ramos Limas, do MOC (Movimento de Organização Comunitária)

13. Vera Cristina Leonelli, do JUSPOPULI- escritório de direitos humanos

14. Sofia Maria Leite Fernandes, do Fórum de Promotoras Legais Populares (Centro

Dandara de Promotoras Legais Populares)

15. Membros do NAJUP, do Núcleo de Assessoria Jurídica Popular – NAJUP/PUCRS

16. Joelma Cesário, da Associação Lésbica Feminista de Brasília Coturno de Vênus

17. Raimunda Fernandes dos Reis, da Associação de Quebradeiras de Coco da Estrada

do Arroz

18. Rosiana Queiroz, do Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH

19. Marcia Hora Acioli, da CARITAS Brasil

20. Jacques Távora Alfonsin, da Acesso Cidadania e Direitos Humanos

21. Myllena Calasans de Matos, do Cfemea

22. Ney Strozake, da RENAP (Rede Nacional de Advogados Populares)

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35

ANEXO 2: ROTEIRO DE ENTREVISTA

Formulário n º _____

Nome do (a) entrevistador (a):______________________________________________

Nome do (a) entrevistado (a):_______________________________________________

Data da entrevista: _______________________________________________________

Forma da entrevista: ( ) Presencial ( ) Telefone ( ) E-mail

Duração da entrevista: (a)início: _______h b) término: ______h

I. PERFIL DO (A) ENTREVISTADO (A)

1. Posição na organização, movimento ou rede:

( ) Direção

( ) Assessoria

( ) Função técnica

( ) Outra. Qual?_________________________________________________________

2. Tempo na organização, movimento ou rede:

( ) Até 2 anos

( ) Mais de 2 a 4 anos

( ) Mais de 4 a 6 anos

( ) Mais de 6 a 8 anos

( ) Mais de 8 anos

( ) Sem resposta / Não sabe

3. Escolaridade

( ) Ensino fundamental (1º Grau)

( ) Ensino médio (2º Grau)

( ) Superior incompleto

( ) Superior completo

( ) Pós-graduação

( ) Sem resposta / Não sabe

4. Renda

( ) Até 3 salários mínimos* (R$ 1140,00)

( ) Mais de 3 a 6 salários mínimos (R$ 2280,00)

( ) Mais de 6 a 9 salários mínimos (R$ 3420,00)

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( ) Mais de 9 a 12 salários mínimos (R$ 4560,00)

( ) Mais de 12 a 15 salários mínimos (R$ 5700,00)

( ) Mais de 15 a 18 salários mínimos (R$ 6840,00)

( ) Mais de 18 a 21 salários mínimos (R$ 7980,00)

( ) Mais de 21 a 24 salários mínimos (R$ 9120, 00)

( ) Mais de 24 salários mínimos

( ) Sem resposta / Não sabe

*Valor do salário mínimo em outubro/ 2007: R$380,00

II. PERFIL DA ORGANIZAÇÃO, REDE OU MOVIMENTO

5. Nome:_______________________________________________________________

6.Endereço da sede:_______________________________________________________

7. Telefone:_____________________________________________________________

8. E-mail:_______________________________________________________________

9. Site na Internet:________________________________________________________

10. Data da fundação da organização, movimento ou rede:________________________

11.Objetivos da organização________________________________________________

12. Áreas de atuação

( ) Moradia

( ) Terra

( ) Povos indígenas

( ) Mulheres

( ) Afro-descendentes

( ) Quilombolas

( ) Direitos humanos

( ) Crianças e adolescentes

( ) GLBTTT

( ) Saúde

( ) Advocacia popular e/ ou assessoria jurídica

( ) Assessoria institucional para órgãos governamentais e/ou empresas privadas

( ) Mídia

( ) Pessoas com deficiência

( ) Comunicação comunitária

( ) Ecologia /Ambiente

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( ) Movimentos populares (trabalhadores desempregados; catadores de materiais

reciclados, etc)

( ) Violência

( ) Educação

( ) Trabalho

( ) Outra(s).Qual(is)?_____________________________________________________

13. Abrangência de atuação:

( ) Local

( ) Estadual

( ) Nacional

( ) Internacional

14. Forma de constituição legal:

( ) Com personalidade jurídica

( ) Sem personalidade jurídica

15. Possui estatuto, programa ou carta de princípio?

( ) Sim ( ) Não

16. Qual a forma de organização interna da sua organização?

( ) Direção colegiada

( ) Presidencialismo

( ) Outra. Qual?_______________________________________________________

Existe uma diretoria?

( ) Sim ( ) Não

Se sim:

A diretoria é:

( ) Eleita

( ) Nomeada. Por quem?__________________________________________________

18. Quais são os principais dirigentes ou representantes de sua organização, rede ou

movimento para ter contato?

1._____________________________________________________________________

2._____________________________________________________________________

3._____________________________________________________________________

19. A sua organização, rede ou movimento recebe algum apoio institucional?

( ) Sim ( )Não ( ) Não respondeu/ Não sabe.

Se sim:

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Que tipo?

( ) Governamental

( ) Agências de cooperação internacional

( ) Não-governamental

( ) Outro(s). Qual(is)?____________________________________________________

20. Sua organização rede ou movimento dispõe de algum tipo de assessoria jurídica?

( )Sim ( )Não

Se sim:

Qual o papel dessa assessoria jurídica?

( ) Técnico

( ) Político

( ) Outro.

Qual?_________________________________________________________________

( ) Sem resposta / Não sabe

III. PERCEPÇÕES SOBRE DIREITO E JUSTIÇA

21. O que sua organização, rede ou movimento entende por

direito?_________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_________________________________

22. O que sua organização, rede ou movimento entende por

justiça?_________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_________________________________

23. O que significa alcançar a justiça para sua

entidade?_______________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

__________________________________

24. Que demanda(s) existe(m) na sua organização, rede ou movimento por

direitos?________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

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_______________________________________________________________________

_________________________________

25. Que demanda(s) existe(m) na sua organização, rede ou movimento por

justiça?_________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_________________________________

26. Quais são os principais obstáculos que impedem a sua organização, rede ou

movimento de alcançar a justiça?____________________________________________

27. Como esses obstáculos podem ser superados por sua organização, rede ou

movimento?_____________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_________________________________

* Esta pergunta não se aplica a organizações, movimentos ou redes de assessorias

jurídicas.

IV. PERCEPÇÃO SOBRE O SISTEMA JUDICIAL

28. Com quais instituições do sistema judicial sua organização, rede ou movimento têm

ou teve contato:

( ) Ministério Público

( ) Polícia

( ) Judiciário ( juízes e tribunais)

( ) Defensoria Pública

( ) Outra(s). Qual(is)?____________________________________________________

( ) Nenhuma das alternativas.

29. Em que circunstâncias esses contatos ocorrem ou ocorreram?

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_________________________________

30. Qual a freqüência desses contatos?

( ) Muito freqüente (pelo menos uma vez por mês)

( ) Freqüente (trimestral ou semestral)

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( ) Pouco freqüente (mais de um semestre)

31. Sua organização, rede ou movimento procurou alguma dessas instituições?

( ) Sim ( )Não

Por que? ______________________________________________________________

32. Sua organização, rede ou movimento foi procurado por alguma dessas instituições?

( )Sim ( ) Não

Por que? _______________________________________________________________

33. Que resultados esses contatos tiveram em relação às demandas de sua organização,

rede ou movimento?:

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_________________________________

34. Qual a opinião da sua organização, rede ou movimento a respeito da atuação dessas

instituições?

( ) Ministério Público____________________________________________________

( ) Polícia_____________________________________________________________

( ) Defensoria Pública____________________________________________________

( )Judiciário____________________________________________________________

( ) Outra(s). Qual(is)?____________________________________________________

35. Como o Judiciário é visto por sua organização, rede ou

movimento?_____________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_________________________________

36. O sr. ou sra. considera o Judiciário aberto às demandas da sua organização, rede ou

movimento? Sim ( ) ( )Não

Por que?________________________________________________________________

37. Qual a utilidade do Judiciário para a sua organização, rede ou

movimento?_____________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_________________________________

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

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38. Quais as críticas da sua organização, rede ou movimento ao

Judiciário?______________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_________________________________

39. O sr. ou sra. acha que os operadores de direito estão preparados para cumprir a

função de realizar a justiça? ( )Sim ( )Não. Por que?

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_________________________________

5. FORMAS CONVENCIONAIS E NÃO-CONVENCIONAIS DE ACESSO À

JUSTIÇA

40. Que meios são utilizados por sua organização, rede ou movimento para alcançar a

justiça?

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_________________________________

41. Como sua organização, rede ou movimento encaminha as demandas para garantir a

justiça que a sua entidade recebe?

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_________________________________

42. Que experiências para alcançar à justiça, além da assistência judiciária, foram

implementadas por sua organização, rede ou movimento?

( ) Educação formal. Quais?______________________________________________

( )Campanhas. Quais?___________________________________________________

( ) Educação não-formal. Que tipo?_________________________________________

( )Mobilização. Que tipo? _______________________________________________

( ) Outra(s). Qual(is)?___________________________________________________

43. As ações ou experiências para alcançar a justiça resultaram em algum aprendizado

para sua organização, rede ou movimento?

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42

( )Sim ( ) Não

Explique._______________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_________________________________

44. Como o Sistema Judicial (Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública ou

Polícia) responde diante das experiências de sua organização, rede ou movimento para

alcançar a

justiça?_________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_________________________________

45. Quais instituições do Sistema Judicial respondem de modo mais satisfatório às

demandas de sua organização, rede ou movimento?

( ) Ministério Público. Por que?____________________________________________

( ) Polícia. Por que? _____________________________________________________

( ) Defensoria Pública. Por que?____________________________________________

( ) Judiciário. Por que? ___________________________________________________

( ) Outra(s). Qual(is)?_____________Por que?________________________________

46. Quais instituições do Sistema Judicial respondem de modo menos satisfatório às

demandas de sua organização, rede ou movimento?

( ) Ministério Público. Por que? _____________________________________

( ) Polícia. Por que? _____________________________________________________

( ) Defensoria Pública. Por que?____________________________________________

( ) Judiciário? Por que? ___________________________________________________

( ) Outra(s). Qual(is)?____________________________________________________

Por que?________________________________________________________________

47. Quais as sugestões do(a) sr.(a) para garantir e ampliar o acesso à Justiça no

Brasil?_________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_________________________________

48. Qual a melhor maneira para a solução de conflitos?

( ) Julgamento por um (a) juiz (a)

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43

( ) Acordo com a parte contrária com ajuda de alguém da sua comunidade

( ) Acordo com a parte contrária com ajuda de um técnico

( ) Acordo com a parte contrária sem ajuda de terceiro

( ) Sem resposta/ não sabe.

49. O que o sr. (a) entende por mediação de conflito? ____________________________

50. O que o sr. (a) entende por arbitragem ?

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

______________________

51. O que o sr. (a) entende por conciliação?

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

______________________

52. Que instituição(ções) a sua organização, rede ou movimento considera mais

confiável(véis) para proteger um direito violado?

( ) Imprensa

( ) Polícia

( ) Judiciário

( ) Legislativo

( ) Executivo

( ) Nenhuma delas

( ) Outra(s).Qual(is)?____________________________________________________

( ) Sem reposta/ Não sabe

53. O sr. ou sra. acha que os debates sobre a Constituição (aborto, reforma política,

reforma agrária, segurança etc.) estão abertos à participação social?

( ) Sim ( ) Não

Por que?________________________________________________________________

54. O sr. ou sra. conhece alguma das formas de atuação, abaixo mencionadas, para a

defesa da Constituição em ações perante a Corte Suprema?

( ) Amicus Curiae

( ) Audiência Pública

( ) Outra (s). Qual (is)? __________________________________________________

55. O sr. ou sra. gostaria de falar mais alguma coisa sobre o assunto desta entrevista?

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44

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________

ANEXO 3: PESQUISADORES DO GRUPO 01

Professor – Coordenador

José Geraldo de Sousa Junior

Pesquisadores (as):

Adriana Andrade Miranda

Bistra Stefanova Apostolova

Carolina de Martins Pinheiro

Carolina Pereira Tokarski

Fabio Costa Morais de Sá e Silva

Flavia Carlet

Iuri Mattos de Carvalho

João Paulo Santos

Judith Karine Cavalcanti

Luciana Ramos

Mariana Siqueira Carvalho Oliveira

Mariana Veras

Mauricio Azevedo de Araujo

Pedro Teixeira Diamantino

Rosane Freire Lacerda

Sara da Nova Quadros Cortês

Soraia da Rosa Mendes

Raquel Negreiros

Pedro Mahin

Lívia Maier

Saionara Reis

Raissa Roussenq Alves

Talitha Selvati Nobre Mendonça

Gilsely Barbara Barreto Santana

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45

Diego Nepomuceno Nardi

Bruno Borges

ANEXO 04 - PERFIL DOS ENTREVISTADOS

*O universo dos entrevistados e de 22 pessoas.

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46

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47

Questões 40, 42,43 e 47

Q.40 Quais os meios para alcançar a justiça

1

Organização da comunidade para uma atuação coletiva, formação

sobre direitos e instrumentos de exigibilidade

2 Tá repetido.

3

Acho que são os encaminhamentos quando surgem demandas que

são... a gente encaminha. Você não pode nem trabalhar internamente

porque não tem uma assistência jurídica. Nós encaminhamos pra

ONGs que podem prestar esse serviço, a não ser quando é o caso de

violência, que nós mandamos diretamente pra delegacia de mulheres,

ou de acordo com a (...)

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48

4

Então seria organização social e em último caso a ida ao Judiciário]

A impetração é a última alternativa, mas é sempre a coisa da

educação, a conscientização, a organização. Através disso, parece até

que a gente usa muito isso, Cristovam Buarque já diria “Ah!

Educação resolve tudo!”. Não é que educação não vamos ter

conflitos, mas a partir disso as pessoas vão ter autonomia suficiente

pra resolver seus conflitos sem chegar ao Judiciário, vão ter a

organização suficiente, a autonomia pra resolver esses problemas

sem a necessidade de chegar nisso. Agora, você colocou uma

reflexão pessoal, não é NAJUP. Em função desse seminário aqui foi

que eu tive contato com a mediação, que eu acho que a mediação

talvez seja um excelente meio pra receber o acesso ao Judiciário. Até

reflexão pessoal também, essa organização ela leva a que essas

pessoas façam essa mediação. Boaventura mesmo, tem um livro que

fala sobre Pasárgada, e nesse livro ele conta como é o procedimento

de resolução de conflitos dentro dessa favela. E se você for analisar,

é mediação, mas quem faz essa mediação é o presidente da

associação de bairro, então, por que o povo, se organizando, não

poderia fazer isso? O sistema é o pluralismo, então essas pessoas se

organizando autonomamente, elas podem perceber que elas podem

resolver esses problemas. Tem lá o árbitro, o presidente da

associação, ou sei lá quem que vai ser a referência, e elas mesmas

conseguem resolver esses problemas. Com mediação mas sem

necessidade de um juiz.

5

Em São Gabriel, no momento, é difícil alcançar. Mas o que a gente tá

tentando, pra alcançar a justiça, é através desse movimento que a

gente fez em maio de 2007. A gente conseguiu quase quatro mil

assinaturas pra anexar a esse dossiê, pra pedir justiça, para que as

coisas... (...) Tem vários depoimentos mostrando fatos reais. Então, a

gente tá aqui pra cobrar pro Ministro. Passou já uns 5 meses e não

aconteceu nada até agora.

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49

6

Entendemos que a capacidade de organização, as mobilizações e as

demais formas de lutasdos povos indígenas são o principal meio de

alcançar justiça. Dentre elas destacamos as retomadas de seus

territórios tradicionais, que lhes assegura de fato a conquista e posse

da terra. O judiciário em geral atua como um “dificultador” da

concretização desse direito assegurado pela CF. O Executivo, a quem

cabe a obrigação de fazer a demarcação, na maioria das vezes só o

faz após a efetivação da posse pelos próprios índios.

7

No nosso caso aqui greve. Aí assim, faz mobilizações diversas, mas

greve é uma delas debates, seminários, congressos, palestras, os

meios de comunicação também que faz parte... nós temos nossa

revista.

- Professor José Geraldo de Sousa Junior:”mas o dissídio também é

um meio?”

- O dissídio nós não temos. Nós temos as ações judiciais e

administrativas. As vezes... a partir de uma decisão administrativa a

gente força o Tribunal a ter uma ação administrativa favorável.

Professor José Geraldo de Sousa Junior:”ah sim... poque o Tribunal

age administrativamente através do Tribunal, né?”

- mas age como Tribunal. Eu lembro, por exemplo, nós tivemos em

2000 o Supremos ele decidiu um outro processo, mas o mesmo

conteúdo e menos de dois meses mudar a posição. Professor José

Geraldo de Sousa Junior:”e isso...?” por causa da pressão. A genta

tava num processo de mobilização na justiça eleitoral aí o Supremo

foi tentar resolver, resolveu em parte ela fazia uma _________ de

2000 até 96 e a gente____________. Terminamos o processo o TSE

foi e deferiu, , como ____ queria, contrariando o Supremo, mas que

três votos dos ministros___________ e depois das eleições o

Supremo por 6 a 5 1(um) voto a nosso favor__________, foi

favorável.

_______________________________________________________

______________________.

- Professor José Geraldo de Sousa Junior:”então é um espaço de

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50

busca de concretização de justiça que dá a função administrativa um

caráter misto de judicial e de político, né?”

8

É ... informação, mobilização, ações judiciais e intervenção política.

É ... por meio da descriminação dos direitos que as pessoas têm, por

meio da conscientização dos seus próprio direitos. A disseminação

das informações que subsidiem a defesa desses direitos. E a

qualificação das informações que possibilitem, inclusive aos

operadores do direito uma melhor compreensão da realidade como

um todo.

9

Bom... a justiça fora do judiciário porque a justiça ... forma ampla...

educação, nós fazemos educação em direitos humanos porque no

momento em que a gente traz a educação em direitos humanos a

gente procura a conscientização, a emancipação ... e a pessoa...

direitos e deveres. A partir disso, surjam demandas... busca o

judiciário para que essas demandas sejam atendidas.....

10

a) formação, mobilização e capacitação (para públicos diversos,

preferencialmente mídia, juventude, educadores e lideranças

empresariais e de projetos sociais);

b) influência em políticas públicas (especialmente juventude);

c) comunicação pela não-discriminação/inclusiva;

11

Articulação com os movimentos, mídia, audiências públicas,

formação e mobilização do público atendido para estarem buscando

conscientiza-los sobre os seus direitos e como assegura-los.

12 NS/NR

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51

13

Para alcançar a justiça no sentido amplo, ao qual já nos referimos

inicialmente, o meio que nós usamos é a orientação sobre direitos e a

mediação de conflitos. Agora para alcançar a justiça, no sentido do

poder judiciário, o meio que utilizamos é o encaminhamento das

pessoas que precisam de alcançar o poder judiciário, através da

defensoria pública ou do ministério público, a depender do caso.

14

Duas PLPs falaram em um seminário (fato não pouco freqüente);

As integrantes são procuradas individualmente pelas mulheres da

comunidade com problemas (casos);

Palestras em escolas, nas ruas em que moram, no Batalhão de

Polícia.

15

Utilizamos a educação popular, como mecanismo de empoderamento

da comunidade, possibilitando sua emancipação e o protagonismo na

luta pela justiça.

16 Informação.

17 É o sindicato mesmo. O sindicato é que tem todas as forças pra isso

18

Conscientização, organização e mobilização das pessoas mais pobres

e excluídas, ocupando espaço em órgãos públicos para fazer controle

social, denunciando e propondo saídas.

19

Gilsely Bárbara Barreto Santana : Então Márcia, a gente finda essa

parte de forma do sistema judicial e a retoma a nossa... é... Nossa

discussão anterior que antes foi gravada, que sobre as formas

convencionais e não convencionais de acesso a justiça e ae a gente

falava desses... desses meios que vocês utilizam pra, pra alcançar a

justiça.

Márcia Fiolli – Bem... é... Em relação a escansão formal...

Gilsely Bárbara Barreto Santana : Não... os meios usados antes... os

meios que vocês utilizam pra alcançar a justiça...

Márcia Fiolli – Ah ta... Aqui a gente trabalha fundamentalmente com

organização popular, com o fortalecimento das comunidades, com a

formação delas pra perceber que, que elas são, é... portadoras de

direito sujeitos né ______ Nós trabalhamos com a noção de

fortalecimento do protagonismo, de que eles são capaz, tem força e

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52

da organização né? A organização mostrando que o conjunto de

pessoas e o conjunto de comunidades, tem muito mais poder do que

uma pessoa isolada e... e agente também trabalha com a noção maior

de direitos coletivos, ou seja, a Caritas não ta preocupada com

pessoas isoladamente, mas com a comunidade, um grupo, com

populações. Então a gente trabalha nesse sentido é... para fazer

pressão política, pra incidir sobre as políticas publicas, pra... é... ir

reverter algumas situações de violências e de violação do direito.

Q.42.A Experiêcias: Educação formal

1

Ações coletivas – ação civil pública, mobilizações e denunicas nos

meios de comunicação.

2 NS/NR

3 NS/NR

4 NS/NR

5

Mobilizações, seminários tratando dessa questão do tema “direito

indígena”. Esse Balcões da Cidadania entra aí. A gente trabalhou

com cinco balcões tratando da realidade de São Gabriel.

6 NS/NR

7 NS/NR

8

Eu acho que no âmbito da educação formal o ISA trabalha junto as

comunidades indígenas com processo de formação de professores

bilíngues; na perspectiva de que essa educação contribui para os

povos indígenas compreenderem e entenderem os seus direitos.

9

educação dentro da universidade também. A gente faz congressos

dentro da universidade... direitos humanos também.

10 NS/NR

11 NS/NR

12 NS/NR

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53

13 NS/NR

14 NS/NR

15 NS/NR

16

Palestraas em universidades sobre diversidade sexual, lesbofobia e

homofobia.

17 NS/NR

18 Especialização em direitos humanos, mestrado, etc

19

Na verdade nós não realizamos educação formal. Educação formal

fica por conta do sistema de educação o que temos é algumas ações

que elas é... elas... tem um contato imediato com as escolas, ou seja, a

RESAB rede de educação semi-árido do brasileiro, ela forma

professores, ela trabalha na educação é... no... no... na metodologia

da educação contextualizada pra que é... a.. as escolas adotem uma

pedagogia que valorizem aquela comunidade dentro daquele bioma

que pratica determinada cultura, então é... isso pra gente tem um...

uma vinculação direta com o direito porque o fortalecimento dessa

noção do sujeito é... é...que pertence a um bioma, pertence a uma

comunidade e ele pode ser valorizado como tal. E outra ação que nós

temos de interessante nesse cartão formal é um... concurso pras

escolas publicas que trabalha o direito de participar na verdade é um

concurso que desafia a educação, a educação publica a formar jovens

adolescentes consciente da sua cidadania e seguros de que eles tem o

direito efetivo de participar politicamente da comunidade. E em

relação a campanhas, nós temos várias campanhas, inúmeras né? E as

campanhas por exemplo... uma grande campanha que nós

desenvolvemos a pouco tempo foi de enfrentamento a violência e

exploração fiscal de criança, de adolescentes onde a gente união

organizações governamentais e não governamentais, poder publico,

conselho tutelar, então, inúmeras é... entidades de sujeitos e muitas

universidades publicas para é... fazer uma grande formação, fazer a

mobilização e... é... e desenvolver ações locais que é... é... é... ações

locais pra inibir o... a violência e a exploração sexual de criança e de

trafico de criança, que também tem esse movimento de levar as

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54

crianças pra fora do pais.

Q.42.B Experiências: Campanhas

1 Contra a exploração de meninas no Tra. Doméstico.

2 NS/NR

3 NS/NR

4

A gente já participou de uma campanha, junto com a Casa da

Juventude, que foi ajudando (...) com direitos. Aí cada ano ela tem

uma abordagem específica, esse último período agora era contra a

redução da maioridade penal, mas dentro dessa campanha a gente

fazia algumas oficinas, em várias comunidades, em bairros de

periferia, sobre direitos. Direito ao trabalho, foi a primeira que a

gente fez, direito á participação (...). Ah! A campanha também da

Vale (?), que a gente não fez tão bem quanto queria, porque a gente

viajou, mas teve um pouco da discussão.

5 NS/NR

6

Costumamos promover campanhas específicas pela demarcação de

determinadas terras indígenas. Dentre todas, destacamos como a

maior e mais difícil a luta pela demarcação da terra indígenas Raposa

Serra do Sol, em Roraima, onde todos os poderes daquela unidade da

federação atuaram muito articulados contra os interesses indígenas.

Depois de três décadas de luta a terra foi demarcada, mas a

resistência dos poderes locais, em ampla articulação com o

latifúndio ainda permanece.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

55

7 NS/NR

8

Campanhas de opinião pública, especialmente no que diz respeito a

políticas em geral como por exemplo na campanha do código

florestal, da campanha contra a proposta da emenda constitucional

que queria limitar o reconhecimento de terras indígenas. Então o caso

de justiça nessa perspectiva.

9

porque o Cajuína faz parte da RENAJUR que esse ano tá com a

campanha pela não redução da menoridade penal... direito da criança

e do adolescente.

10 É Criminoso Discriminar

11

Trabalho Infantil, Violência Sexual, Estatuto da Cidade, Estatuto da

Criança e do Adolescente e outras em articulação com os

movimentos que fazemos parte.

12 NS/NR

13 NS/NR

14 NS/NR

15 NS/NR

16 Vigília pelo fim da violência contra as mulheres

17 NS/NR

18 NS/NR

19 NS/NR

Q.42.C Experiências: Educação não-formal

1

Estimulando a formação e organização da comunidade para auto

gestão de direitos.

2 NS/NR

3 NS/NR

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56

4

Educação popular. A educação popular não é uma oposição à

educação formal, a educação popular é uma metodologia, e a formal

é uma educação da escola. Então a gente trabalha com educação

popular com escolas dentro só da nossa universidade, o que não

deixa de ser... mas também com a mesma metodologia de educação

popular na informalidade (...) Ao invés de tratar dos temas que são

tratados através de educação formal dentro da nossa própria

faculdade, de nossos colegas que a gente “tá” querendo convidar pra

participar do projeto, por exemplo, a gente se utiliza do que a

educação formal põe como conteúdo, mas trabalhamos isso através

da educação popular, seria isso. Isso dentro da faculdade.

5 Balcão da Cidadania.

6

Realizamos muitos cursos e seminários de formação para índios e

indigenistas. Os conteúdos são vários: política, história, antropologia,

direito, teologia etc.

7

É... a gente tá tentando fazer... é... a gente consegui agora... tá

escolhendo nacional de qualificação do nosso sucesso e uma das

coisas que eu tentei fazer foi a capacitação dos servidores. No

próximo ano, talvez, trabalhar em uma Universidade cooperativa.

Vamos ver se a agente não faz uma parceria com a UnB.

8

É... a gente trabalha muito com a parte de educação não formal na

formação de agentes sócio ambientai. Então... na perspectiva de

disseminar o conhecimento técnico e político... enfim, de direitos pra

diferentes agentes e parceiros que possam disseminar essa

informação.

9

exato, a educação em direitos humanos que a gente faz na

comunidade.

10 NS/NR

11

Capacitações do público atendido sobre as temáticas que permeiam a

nossa atuação.

12 NS/NR

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

57

13

Sobre educação não formal, nós freqüentemente oferecemos cursos

de direitos humanos e mediação, sempre associados, tratando-se da

medição, associamos a mediação necessariamente aos direitos

humanos. Mas algumas vezes, também fazemos cursos e outros

eventos formativos em direitos humanos que não estão associados à

mediação, porque a nossa organização atua também um pouco com

direitos específicos da criança e do adolescente, somos parceiros do

UNICEF em alguns trabalhos de estímulo à efetivação dos direitos

das crianças e dos adolescentes. Então, fazemos muitos programas,

muitas atividades relacionadas com educação não formal para

direitos da criança e do adolescente.

14 Palestras

15

Popular, não bancária, que trabalha na construção coletiva do

conhecimento.

16

oficinas e reuniões com a comunidade para informar direitos e

deveres que garantem uma boa qualidade de vida social.

17 NS/NR

18 Cursos de educação não formal

19

Educação não formal é nossa atividade cotidiana, acontece o tempo

todo, acontece é... no pais inteiro que é, exatamente pra fortalecer a

comunidade a gente trabalha com diversos temas, políticas publicas,

direito é... é questões ambientais e assim vai, Brasil a fora tem a

CODEPLAN no mundo inteiro... é... o nosso trabalho é... ele é...

muito assim... sem as mobilizações que são, é... as grandes

manifestações de ter organização de... de entidade de _________ de

pessoas, manifestações publicas que tem a função de fazer pressão

política e também a função de é...

Q.42.D Experiências: Mobilização

1

Caminhadas por defesa de direitos, mobilização nos meios de

comunicação, mobilização via internet, posicionamentos públicos

2 NS/NR

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

58

3

Eu acho que nós investimos mais em mobilização. Por exemplo, já

fizemos grupos de ajuda (...) Aids. A gente mobiliza as pessoas pra

irem buscar seus direitos. De alguma forma, o Ministério Público é

acionado, e principalmente o Ministério Público.

4

A gente já mobilizou os estudantes para participarem da parada

LGBT, grito dos excluídos, esse tipo de mobilização pras próprias

organizações que já acontecem.

5 NS/NR

6 Atos públicos, marchas, acampamentos etc.

7 NS/NR

8

É... mobilização mais na linha dessas campanhas, né. Campanhas de

opinião pública, usando muito a mídia pra fazer com que as pessoas

se manifestem junto especialmente ao poder Executivo e Legislativo,

eventualmente até em ações judiciais, se for o caso, né.

9

- mobilização também, principalmente meio ambiente. Como a gente

trabalha com educação... a gente parte dela.

10 NS/NR

11

Articulação com Redes, Fóruns e Movimentos que discute os direitos

humanos e as temáticas específicas dos programas do Cendhec.

12 NS/NR

13

Mobilização também. Nós fazemos mobilização, por exemplo, na

medida em que implantamos e mantemos um escritório de orientação

sobre direitos e mediação no bairro. É preciso que você esteja

freqüentemente mobilizando a comunidade para a utilização desses

serviços, através de campanhas, de rádios comunitárias, de panfletos,

de conversas, de chamadas para discussões, para oficinas.

14

Participam do Dia Internacional da Mulher, doDia da Consciência

Negra, dos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência Contra as

Mulheres.

15 NS/NR

16 1°,2° e 3° Paradas Lésbica

17 NS/NR

18 Cartas, atos simbólicos, atividades em rede e denúncia internacional.

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59

19 NS/NR

Q.43.A Ações ou experiências resultaram em algo. Explique

1

.Há um aprendizado sobre as demandas da comunidade e de respeito

aos tempos da cada uma e principalmente de como a organização social

e o conteúdo cultural são componentes que influenciam direitamente na

possibilidade de alcançar a justiça.

2

A essa altura a gente já percebeu que não dá pra fazer mais, é

marmelada, não funciona mais. Mídia tem repercussão, mas tem que

saber como chegar nessa mídia (...) A gente teve reclamação de grupos,

de um grupo aí que estava na mídia, mas não estava sabendo como falar

na mídia. E essa questão da educação? Tem coisa que a gente já sabe

até de cor e salteado. (...) Teve muita dor de cabeça... Eu não sei te

dizer se foi bom ou não. Às vezes a gente faz um trabalho desse aí, ele

tem um significado.

3

Eu acho que sim, eu acho que a experiência que a gente tá tendo com

prestadores de penas alternativas tem sido uma aprendizagem grande.

Não é fácil, porque é mais uma demanda que chega pra instituição, com

problemas diversos. Porque você tem que acompanhar (...) A gente tem

o compromisso de passar pra ele toda uma sensibilização da causa pra

que ele repense sua (...) pena, o que ele fez. E quando a gente consegue

que as pessoas resolvam seus problemas (...) você vê que a pessoa cria

uma certa confiança maior no Judiciário.

4

Sim, eu acho que é a gente ter descoberto duas coisas: a educação

popular, como fundamental pra execução de qualquer projeto, e a

pesquisa dentro disso que essa história de ensino, pesquisa e extensão

não é conversa, é necessidade. A gente começou a fazer pesquisa

quando a gente sentiu, na extensão, que era impossível fazer extensão

sem pesquisa. Aí a gente entendeu o que é o tripé ensino, pesquisa e

extensão. Quando a gente tinha que fazer um trabalho de extensão e

“boiava” (...) Ah, vamos ter que fazer “pesquisazinha superficial”, não,

vamos fazer pesquisa relacionada ao projeto que a gente desenvolve.

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60

Tudo que a gente faz já é um aprendizado muito grande.

5 Não resultou, não, em aprendizado, porque a gente não vê resultado.

6

Aprendemos com o tempo que, dentro de uma sociedade em

permanente luta de classe, para os setores populares só há

possibilidade de alcançar a justiça através da conscientização/formação,

organização, mobilização e implementação de estratégias de

enfrentamento do poder dominante.

7

Primeiro, há um grau de conscientização política maior na categoria,

principalmente nas greves, além dos debates e tudo, mas nas greves o

resultado político é muito grande. E... a gente tem tido sorte porque em

todas as nossas greves têm algum resultado. Então, isso cada vez mais

se reveste em uma participação muito grande; conscientização da

importância do sindicato; a 8 anos atás tinhas 3000 e poucos filiados

hoje tem quase 10000 filiados. A importância da participação numa

entidade de de organização; espera que seja fundamental, né?

8

Claro. Sim. Constante. Na verdade o trabalho da gente é esse e a gente

aprende com ele o tempo todo. Vou dar um exemplo específico acho

que cada uma dessas iniciativas gerou aprendizado pra a gente

aprimorar as estratégias, pra a gente tentar melhorar na defesa desses

direitos. É uma instituição com mais de 10 (dez) anos, com tantas

coisas que já fez que é até dificil... Talitha Selvati Nobre Mendonça:

“numerar” numerar.

9

- para o Cajuína? Claro! Todo aprendizado do mundo. Hoje

estudantes de direito com uma visão holística. Então, o enriquecimento

pessoal é enorme; o que a gente aprende, as pessoas que a gente

conhece, os contatos que a gente faz importância inigualável.

1

0

Nem sempre os públicos para os quais atuamos na defesa de direitos se

entendem como sujeitos de direitos.

1

1

Que para se alcançar a Justiça é necessário um processo de

sensibilização da sociedade e de construção coletiva sobre a

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

61

importância de se defender os direitos humanos como forma de se fazer

um enfrentamento real dos fatores que vem ocasionando a violência em

nosso país.

1

2 NS/NR

1

3

Claro. Nós estamos aprendendo diariamente com o que fazemos.

Aprendemos com as pessoas que nos procuram, com as demandas, com

os mediadores que são lideranças comunitárias que atuam nos projetos,

aprendemos todos entre nós, com os estagiários, com as visitas, com os

interessados, com os financiadores, com nossos colaboradores, com

todo mundo. O aprendizado é permanente.

1

4 NS/NR

1

5

A construção de uma outra prática de ensino-aprendizagem em que os

conteúdos jurídicos estão fortemente ligados à realidade social, bem

como, a aquisição de uma postura crítica diante da prática judiciária.

1

6

É sempre uma possibilidade de compreender como as engrenagens do

sistema se movimentam e como podemos usar estes movimentos em

favor de quem esta a mercê de soluções.

1

7 NS/NR

1

8 garantir direitos e conquistar direitos só vai com organização e luta.

1

9 NS/NR

Q.47 Quais as sugestões para garantir e ampliar o acesso à Justiça

1

Implantar um grande programa de informação da comunidade sobre

seus direitos, aparelhar o sistema de justiça para estar próximo da

comunidade e implementar o sistema de justiça gratuita mais próxima

de todos os que realmente necessitam.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

62

2

O que que seria melhor? Mais informação (...) Muita gente não sabe

dos seus direitos (...) “Eu não sabia que eu tinha direito”. (...) E a

credibilidade, que tá faltando. Tem gente que diz: “Ah, não, é perda de

tempo. Não vou me estressar.” É a credibilidade que tá faltando. (...)

Acreditar

3

Eu acho que ela deveria ser mais prática, mais acessível. Porque tem

uma burocracia muito grande, que atrapalha a urgência. Quando você

chega a demandar a justiça, ela tende a ser demorada. Eu acho que

deve agilizar. Precisaria de mais advogados, defensores públicos, mais

juízes, talvez seja até esse o problema nacional. Os processos ficam

durante muito tempo. E isso vale de um modo geral pra sociedade.

Tem pessoas que estão presas e não foram julgadas. (...) Casos que

rolam por muito tempo sem ser resolvidos e depois perdem a sua

validade. Então, eu acho que deveria haver uma agilidade e menos

burocracia. E a credibilidade. Eu acho que existe um risco público de

também o Judiciário perder a credibilidade. Eu acho que isso vai ser

um golpe na esperança, na expectativa das pessoas.

4

A gente já falou isso, não? (...) eu acho que o acesso à justiça tá muito

ligado com essa questão do conhecimento, da questão da informação,

as pessoas terem ciência dos seus direitos. Eu acho que o acesso à

justiça já é a própria justiça. É porque o Campilongo fala assim, que o

direito mais básico é o acesso à justiça, se ele não for garantido os

outros não serão, e eu li aquilo dali, durante muito tempo eu falava:

Gente, mas por quê? Entendendo justiça não como Judiciário, mas

como a garantia mesmo desses direitos, buscar uma via. Então eu acho

que garantindo o acesso das pessoas a esses direitos já é a própria

garantia da justiça. Mas se for pra gente falar assim de forma a afetar o

Judiciário, aí, vamos falar um pouco do que a gente já falou,

garantindo a formação de profissionais do direito que respondam aos

interesses dos grupos sociais, garantindo também que essas pessoas

saibam dos seus direitos, pra que busquem os seus direitos, tendo, por

exemplo, dentro da universidade, extensão como política de Estado,

pra garantir que esses profissionais sejam bem formados.

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63

5

Que esse sistema, começando por instâncias maiores, funcione. De

instância a instância. Por exemplo, é chefe de polícia, é chefe de

delegado, é chefe de não sei quem, é chefe de juiz, chefe acima de não

sei de que, começando do primeiro homem pra fazer seu papel de

cumprir a justiça, fazer o direito acontecer, que cumpra. A nossa

sugestão é isso. Que toda essa escala de hierarquia até chegar na ponta,

é que cada um fazendo sua parte, cada um cumprindo direito sua

função, executando o projeto, aquilo que ele tem como função pra

executar. Se todos cumprirem, creio que a justiça, que cada papel, que

cada instituição funciona.

6

Reforma do poder judiciário, mais informação, participação e controle

da sociedade.

7

A gente já chegou a discutir; esse, eu achoque, é o principal ponto,

porque as pessoas apontam muitas saídas e muitas vezes, né... mas é

que o principal ponto é a democratização do... acho que tem que

apostar também na própria formação dos magistrados porque sem essa

formação acho que...; não sei qual formação , não tenho uma coisa

pronta. E um outro aspecto, isso pode gerar mais demanda, mas é

fundamental é... primeiro a gente tem discutido muito... não sabe

também como... mas é melhorar as informação da sociedade relativos a

seus direitos. Acho que quanto mais a sociedade em geral tiver

consciência dos seus direitos, mais ela pode ter uma cobrança maior,

ela pode... isso só vai aumentar mais a demanda, mas esse... quanto

mais ela tiver cobrando mais ela vai ter, queira ou não, vai ter mais

acesso não só...

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

64

8

Eu acho que precisa simplificar o acesso a justiça. Ah! trazer a justiça

mais pra perto da sociedade. Eu acho... outro dia eu tava achando

interessante a história da abertura desses juizados especiais de

pequenas causas nos aeroportos em função do caos e tinha alguma

coisa no jornal que questionava assim 'poque é que não tem um juizado

como esse, por exemplo, dos lados dos postos de saúde, dos postos do

INSS, em lugares e regiões onde o mesmo tipo de conflito de falta de

atendimento, de falta de reconhecimento e de respeito de direito

acontece com a população mais pobre'... eu acho ótimo que abriu no

aeroporto que embora você possa ter enormes problemas você está

atendendo a uma parcela, sei lá, de 10% da população brasileira que

viaja de avião. Então, acho que falta a justiça se colocar mais próxima

dos problemas do dia-a-dia do cidadão. Ser uma aliada do cidadão no

dia-a-dia, tá mais aberta pra isso. Hoje em dia, no geral pra você ter ,

conseguir ter acesso ao sistema judiciário para garantir os seus direitos

você precisa ter minimamente um advogado; o acesso a esse

procedimento é um acesso muito distante da maior parte da população.

Então eu acho que a justiça tem que chegar mais perto dessa população

e ela tem quer ir se atualizando no sentido de incorporar esses novos

direitos de uma forma mais clara, mais imediata; que muitas vezes

também você tem direitos que são reconhecidos por novas legislações,

mas que levam muitos anos pra começar a valer, fundamentalmente,

em função de uma certa... você não tem se quer o posicionamento

daquilo judicialmente pra fazer aquilo funcionar. Tem que ter mais

proximidade e agilidade.'

9

É um trabalho de conscientização nacional... e educação primária, e de

ensino médio... nas escolas, temas como direitos humanos. Eu acho um

absurdo você passar vários anos estudando tão profundamente, tão

especificamente várias matérias aprendendo cálculo e não saber... seus

direitos... o modelo que está aí hoje é um modelo proveniente da

ditadura aprendia física, química, matemática, mas não tinha um

pensamento crítico sobre a sociedade... pra que procure essa criticidade

sobre o mundo... ensino superior menos técnico, mais holístico e...a

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65

mídia; acho que a mídia hoje é muito responsável... ela não procura seu

papel de ouvir a sociedade; ela está muito voltada para os interesses

econômicos, da elite, por exemplo a mídia nacional é formada por 5, 6

ou 7 famílias. É um absurdo você pensar que tudo que você ouve...

10

Maior acessibilidade aos objetivos, funções e práticas do Sistema

Judicial brasileiro para aproximá-lo dos cidadãos organizados ou não

em movimentos, redes e/ou associações.

11

Reforma do Judiciário, principalmente dos organismos de controle.

Dando maior transparência aos processos de apreciação da atuação dos

representantes dos poderes que atuam no sistema de segurança e

justiça.

12 NS/NR

13

Desde a formação dos operadores do direito nas faculdades, ter linhas

de formação que incluam ética, que incluam direitos humanos, isto é,

formas de comprometimento maior com as questões sociais. Acho que

os concursos para as instituições públicas devem ser também menos

livrescos e considerarem mais os perfis e as compatibilidades das

pessoas com as funções que vão exercer. Acho que, culturalmente, é

necessário que essas instituições se revejam também, revejam suas

posições de poder, revejam suas linguagens, revejam seus espaços

físicos, e que estejam mais a serviço da sociedade, do povo.

14

Liberdade de expressão, participação da sociedade junto às questões

judiciárias.

15

A ampliação dar-se-ia a partir de uma visão ampliada do acesso á

justiça, desvinculando-o exclusivamente como acesso ao Judiciário. A

garantia, por outro lado, dar-se-ia mediante a criação de espaços de

reconhecimento de demandas a partir da politização dos conflitos,

permitindo que os atores assumam a condição de agentes

transformado(re)s da realidade social.

16

Em primeiro lugar considero de extrema importância a informação, as

pessoas/sociedade devem saber como funciona a lei e quais os

benefícios podem ser alcançados por meio disto e em segundo lugar

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

66

aplicação da lei com ética e coerência

17

Eu acho que sim, porque se a justiça fosse melhor muita coisa não

aconteceria, né. Se eles tivessem um bom salário, fossem umas pessoas

que pudessem acudir as coisas que acontecem no mundo, porque em

uma briga bem aqui e não tem nenhum policial pra resolver, né...(...)

[cem relação] A nós? nós lá não tem negócio disso... (...) Até que se

tivesse era bom, se nós tivéssemos apoio disso aí, era bom, porque a

gente podia contar com o apoio de algum órgão de comunicação, mas

só que isso ta fora do nível das quebradeiras de coco lá do meu

povoado

18

Fazer um mutirão e construir ações para observar e controlar o

judiciário.

19 NS/NR

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

67

GRUPO 02

Coordenador: Prof. Alexandre Bernardino Costa

INTRUDOÇÃO

O projeto “Dossiê Justiça – uma proposta de observação da relação entre

Constituição e Democracia no Brasil” teve como objetivo geral “Subsidiar a elaboração

de um programa nacional de democratização do acesso à justiça e contribuir para a

institucionalização de um Observatório da Justiça no Brasil, no âmbito do Ministério da

Justiça”. Como parte desse projeto, o Grupo 2 procurou “identificar as lutas sociais e

seus discursos organizativos por posições interpretativas de realização da Constituição

Brasileira”.

As investigações foram dividas em duas frentes: A primeira centrou sua atenção

para os limites e possibilidades de acesso à justiça das demandas sociais por políticas

públicas voltadas à efetivação de direitos sociais. Já a segunda esteve voltada para

análise em torno das garantias constitucionais dos direitos fundamentais de grupos

excluídos.

Assim, foi fundamental para o grupo demonstrar como as disputas interpretativas

e os discursos organizativos dos movimentos sociais inserem-se no objetivo maior do

projeto, ou seja, a elaboração de um programa nacional de democratização do acesso à

justiça. Como passo para se obter a resposta, foi estudado inicialmente o que significa o

acesso à justiça. Em um segundo momento, foi exposta a importância da disputa

interpretativa para a efetivação e demanda por direitos fundamentais. Por fim, foram

expostas como a luta protagonizada pelos movimentos sociais é indispensável para se

pensar o direito e o acesso à justiça.

Para que se pudesse compreender o que é o acesso à justiça, foi necessário

refletir sobre o que se entendia por justiça. Constatou-se que em uma sociedade

moderna, como a brasileira, conceitos transcendentais de justiça não são admissíveis. Ao

se pensar sobre o que é justo deve-se partir da sociedade que temos, vislumbrando a

sociedade que queremos. Nessa busca o direito adquire centralidade, afinal, em uma

sociedade em que nada mais se tem por natural, são os princípios de liberdade e

igualdade de cada cidadão que proporcionarão parâmetros para se responder o que é

socialmente justo. Práticas que ferem o princípio da igualdade serão injustas. Para que

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

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uma compreensão de justiça possa ser minimamente compartilhada em nossas

sociedades contemporâneas, o aspecto democrático é fundamental46.

Dessa forma, a justiça é a busca contínua de cada sociedade sobre quais direitos

devem ser afirmados e quais práticas devem ser negadas para que cada cidadão tenha o

seu direito à igualdade preservado. Essa busca não é simples, envolve uma permanente

reflexão sobre o que é ser tratado com igual respeito, quais práticas violam esse ideal e

como se deve administrar os conflitos decorrentes disso. Assim, acesso à justiça foi

compreendido como a possibilidade de a sociedade administrar seus conflitos tendo por

base os princípios de liberdade e igualdade que cada cidadão é merecedor.

Por meio dessas conclusões, o objetivo levantado pelo Grupo 2 demonstrou-se

essencial para responder ao objetivo geral do projeto. Afinal, a democratização do

acesso à justiça está associada a como a sociedade compreende a justiça. Isso se dá por

meio de disputas interpretativas conduzidas por diversos grupos sociais, sobre o que é

justo e o que é injusto.

Os movimentos sociais adquirem um destacado papel no acesso à justiça. Parte-

se da pressuposição que em uma sociedade em que todos são considerados iguais,

exclusões e violações a esse direito são sentidas inicialmente pelo cidadão. O sujeito

sofre por ter seu direito ao igual tratamento desrespeitado. Esse sofrimento individual

pode transformar-se em uma demanda coletiva, caso sujeitos que compartilham do

mesmo sentimento de exclusão organizem-se e lutem por reconhecimento47.

As demandas dos movimentos sociais contribuirão para que a sociedade repense

quais práticas estão desrespeitando direitos e gerando exclusões. As lutas protagonizadas

pelos movimentos sociais contribuirão para o projeto reflexivo sobre quais práticas

devem ser revistas por serem consideradas injustas. Dessa forma, a democratização do

acesso à justiça está diretamente associada a maior possibilidade de repercussão de

demandas por reconhecimento e implementação de direitos.

Como foi demonstrado pelo Grupo 2, os cidadãos são os responsáveis em dizer

quais lesões a direitos estão sofrendo, bem como participar da implementação de

políticas públicas para que essas violações sejam corrigidas. Nesse sentido, o Estado não

pode desrespeitar a autonomia pública e privada dos cidadãos. Poder Executivo,

46 Para mais, veja texto sobre “Acesso à Justiça” produzido pelo Grupo 2. 47 Para mais, ver texto “Políticas Públicas para a concretização da justiça social: uma nova face para a democratização do acesso e da justiça” produzido pelo Grupo 2.

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69

Legislativo e Judiciário devem proteger direitos fundamentais, sem, no entanto,

desconsiderar o direito à participação.

As disputas interpretativas são intrínsecas à participação. Os direitos estão

associados ao projeto reflexivo da sociedade, quais princípios devem ser auto-impostos

para uma maior justiça social. Essa reflexão envolve disputas, servindo os princípios de

liberdade e igualdade como parâmetros para definir quais as demandas são legítimas.

Algumas dessas disputas foram localizadas e estudadas.

Em relação ao direito de família o próprio conceito de família está em disputa.

Conceitos fechados excluem diversas relações parentais que não se enquadram no

modelo tradicional, pai, mãe e filhos. Com base nos princípios de liberdade e igualdade

exige-se que outras formas de interação familiar sejam reconhecidas, como as uniões

entre sujeitos do mesmo sexo48.

As disputas interpretativas também ganham destaque no tocante ao direito

tributário. Os movimentos sociais podem utilizar-se da linguagem do direito para exigir

interpretações constitucionais tributárias corretas e diferentes das hoje utilizadas. O

direito tributário deve atender critérios de justiça social, servindo de critério distributivo

para o que é melhor para todos. Será por meio do intenso debate público que se poderá

denunciar violações a direitos protagonizadas por meio do direito tributário49.

No tocante à mediação de conflitos, há grande disputa sobre o que se

compreende como a efetividade e legitimidade da pena. O que se coloca em xeque é

lógica baseada no binômio vencedor e vencido, que norteia o Poder Judiciário. Essa

lógica pode agravar os conflitos. Uma justiça que pretenda administrar pretensões

colidentes e restabelecer a paz social deverá priorizar a restauração dos laços sociais

desfeitos com o conflito50.

Em relação ao racismo foi levantado que o exercício da igualdade realiza-se por

meio do reconhecimento das diferenças. É necessário enfrentar o mito da democracia

racial brasileiro que dificulta o debate público sobre o tema. Nesse sentido, reflexos do

racismo podem ser encontrados mesmo no Poder Judiciário. São poucos os crimes de

racismo denunciados, e quando isso ocorre, não são raras as sentenças que retomam o

mito da democracia racial, diante do qual, atitudes racistas seriam inconcebíveis, não

48 Para mais, ver texto “Direitos Fundamentais” produzido pelo Grupo 2. 49 Para mais, ver texto “Direitos Fundamentais” produzido pelo Grupo 2.

50 Para mais, ver texto “Justiça Restaurativa e Direitos Humanos: Dos Conflitos armados aos conflitos interpessoais” produzido pelo Grupo 2.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

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ultrapassando o intuito da brincadeira, fruto da nossa cultura ‘extrovertida’ e

‘espontânea’51.

Assim, as disputas interpretativas protagonizadas, neste caso em especial, pelo

movimento negro irão afirmar que o enfrentamento do mito da democracia racial e o

reconhecimento de diferenças raciais são essenciais para o exercício de direitos

fundamentais consagrados na Constituição.

Em relação ao direito à saúde, foi levantado que diante da complexidade da

sociedade moderna, não lhe é possível atribuir um conceito irrefutável e permanente,

uma vez que é construído e reconstruído a cada dia conforme as necessidades e as

demandas da população. E daí a importância da participação da sociedade nesse

contínuo processo de atribuição de sentido à expressão “direito à saúde”, que, sem

dúvida, interfere na formulação das políticas públicas sanitárias52.

O direito à alimentação também se insere nessas disputas interpretativas. Por um

lado há os movimentos sociais de segurança alimentar que compreendem a alimentação

associada à diversidade cultural, ao prazer, ao lazer, ao respeito ao meio ambiente. Por

outro lado, há aqueles setores da sociedade que têm uma visão minimalista sobre o tema,

entendendo-o como a quantidade energética e nutricional mínima diária, ou ainda, não

como um problema jurídico, mas um problema que o mercado deve resolver, por meio

da oferta de alimentos53.

A legitimidade de uma ordem constitucional é observada pela garantia das

complementares autonomias pública e privada de indivíduos que se reconhecem como

concidadãos livres e iguais e que se enxergam, reciprocamente, como destinatário e co-

autores do direito estabelecido. O constitucionalismo é um processo de reconhecimento

das lutas sociais e seus discursos organizativos por posições interpretativas com o intuito

de construir uma Constituição.

A disputa interpretativa não se resume à mera discussão de diferentes posições

teóricas ou concepções de direito e justiça, ela se afirma por meio das disputas e práticas

constitucionais vividas na sociedade, seja por meio do confrontamento entre diferentes

grupos e setores da sociedade, seja pela afirmação e reconhecimento dos movimentos

sociais e suas pretensões. Assim, a Constituição se revela democrática na legitimidade

de sua prática.

51 Para mais, ver texto “Racismo institucional e acesso à justiça” produzido pelo Grupo 2. 52 Para mais, ver “O direito à saúde numa perspectiva democrática” produzido pelo Grupo 2. 53 Para mais, ver “Direito à alimentação: disputas interpretativas, alimentação adequada, lutas sociais e afirmação de Direitos” produzido pelo Grupo 2.

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A relação existente entre os cidadãos e o ato constitucional fundador atualizado é

que garante a dimensão cotidiana da Constituição e de seu poder constituinte. Uma

prática constitucional duradoura e contínua não está associada à idéia de poder

constituinte permanente. A potência desse poder está na prática popular, a quem

cumpre, de forma plural, o seu exercício.

Evidentemente, a prática do poder constituinte não se constrói apenas de forma

idealizada. Ela decorre do confronto entre a faticidade do direito e dos riscos inerentes

às tomadas de decisões pelo povo, que é o autor e o destinatário do direito. A

complexidade e pluralidade da sociedade contemporânea exigem a constante tomada de

decisões em relação aos direitos constitucionais pelo povo, considerando os riscos a que

está submetido em cada uma delas. Nesse contexto é que se localizam as lutas sociais e

as disputas por posições interpretativas de realização da Constituição brasileira.

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DIREITO À ALIMENTAÇÃO: DISPUTAS INTERPRETATIVAS,

ALIMENTAÇÃO ADEQUADA, LUTAS SOCIAIS E AFIRMAÇÃO DE

DIREITOS

Por: Eduardo Gonçalves Rocha54

Em 2006, foi aprovada a Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional

(LOSAN), Lei n°11.346/06, que em seu art. 2° versa:

“A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à

dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na

Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam

necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população”.

A aprovação pelo Congresso Nacional da LOSAN foi parte de um importante

movimento nacional em defesa do direito a todos os brasileiros a se alimentarem

adequadamente. Este movimento iniciou-se na década de 40 do século passado,

ganhando força e respaldo na década 90, por meio dos movimentos sociais contra a fome

e em defesa da cidadania. A aprovação da LOSAN é parte e relevante passo na luta pelo

direito à alimentação.

A dinâmica dos direitos passa pelos textos legais, por sua institucionalização,

porém não se restringe a ela. O direito se faz na rua, no campo por meio do debate e da

discussão pública, por meio da luta e defesa de princípios fundamentais. Como

conseqüência e parte dessa discussão são promulgados os documentos legais. O direito

fundamental a se alimentar é preexistente à LOSAN. A compreensão deste tópico é

fundamental para o debate jurídico contemporâneo.

Em um direito que se encontra e se faz na rua, a sociedade civil e os movimentos

sociais ganham centralidade. Será por meio deles que demandas dos grupos excluídos

poderão ser escutadas e terão repercussão pública. Os movimentos sociais servirão como

amplificadores de sofrimentos que não são escutados pela sociedade: desigualdades

antes desconhecidas e não reconhecidas motivarão ações sociais visando à correção de

exclusões.

Assim, a participação torna-se essencial para a implementação dos direitos: o

cidadão deve se reconhecer como autor e destinatário do sistema jurídico. Políticas

54 Eduardo Gonçalves Rocha é mestrando em Direito pela UnB, tendo como tema o Direito à Alimentação. Contato: [email protected]

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

73

públicas devem ser formuladas, implementadas e fiscalizadas com a participação da

sociedade civil e dos movimentos sociais. Isto está no cerne da promoção da cidadania.

Disputas interpretativas e o direito à alimentação

Está no cerne do direito a reflexão sobre as práticas sociais e os compromissos

assumidos coletivamente: quais são os princípios que a sociedade assume e impõe-se.

Porém, essas práticas sociais são objeto de constante reflexão, afinal, todos os cidadãos

são iguais e livres, merecedores de igual respeito e consideração, tornando-se legítimos

apenas os compromissos que afirmem esses princípios fundamentais.

Qualquer prática social que contrarie esses princípios está se opondo aos

fundamentos do direito moderno, portanto é condenável. Os movimentos sociais

adquirem aqui centralidade, afinal, serão eles que conferirão voz aos seguimentos mais

excluídos da sociedade. Por meio deles segmentos sociais poderão expressar a toda

comunidade que não estão sendo tratados como seres iguais e livres. Com isso surge a

demanda por novos direitos, ou mesmo a luta pela implementação dos já existentes.

Um novo direito surge quando a comunidade se convence de que um novo

compromisso público deve ser afirmado para que cidadãos sejam tratados com igual

respeito e consideração. Aos movimentos sociais compete levar sofrimentos de exclusão

sentidos por seus membros à discussão pública. Questionam as relações de exclusão,

buscando convencer os demais de que determinada situação é injusta, portanto devendo

ser reparada.

Assim, os direitos são dinâmicos, pois sempre surgirão novas demandas e

exclusões que devem ser corrigidas. O que antes não se enxergava como negação da

liberdade e igualdade de cada indivíduo em um momento posterior pode ser visto como

tal. Exemplo significativo se dá em relação ao direito à alimentação.

Até a década de 40 do século passado havia poucos estudos sobre a fome. Este,

até então, era um tema proibido, quase nunca discutido publicamente, e quando levado a

público era associado a preconceitos raciais, climáticos, regionais e a falsas teorias,

como o malthusianismo, que mais distorciam o tema que o esclareciam. Coube a Josué

de Castro demonstrar a fragilidade dessas teorias e apontar os fatores econômicos e

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

74

sociais que estão por trás dessa calamidade pública55. (CASTRO, 2003¹, p.11;

BASTISTA FILHO e BATISTA, 2003, p.40-41)

Josué de Castro personificou o movimento contra a fome que, somente então,

emergia no Brasil e no mundo. O autor desenvolveu uma densa obra demonstrando as

razões políticas que estão no seio desse problema, desnaturalizando-o. Tendo a fome

razões políticas, deveria ser superada por meio da modificação das estruturas sociais que

a ocasionam. Um problema que antes não tinha conotações políticas, e que, portanto,

não era discutido como tal, encontra na obra de Josué de Castro campo fértil. Milhões de

brasileiros padeciam de fome. Competia à sociedade civil levar esse problema aos

demais brasileiros, convencendo-os de que a fome não era um fenômeno natural, mas

fruto de relações sociais excludentes.

Josué de Castro foi protagonista ao enfrentar o utilitarismo, que via a fome a

partir das conseqüências econômicas, e começar a estudá-la como uma questão de

injustiça social. Essa mazela é injusta e, portanto, devia ser combatida. Assim, não era a

lógica do mercado, guiada pelo lucro, que deveria nortear o enfrentamento da fome, mas

políticas públicas fundadas em critérios de justiça social.

Neste momento inicial, a fome era compreendida como quantidade energética e

nutricional mínima diária necessárias à sobrevivência. Coube ao debate público posterior

ampliar essa compreensão. A sociedade civil levantou o problema da fome

publicamente, mas também alargou suas dimensões. Se essa, em um primeiro momento,

foi concebida como mínimo energético e nutricional, a luta por direitos promovida pelos

movimentos sociais alargou seus horizontes. O art. 3° da LOSAN, ao definir o que é

segurança alimentar, é uma prova da amplitude que assumiu o tema.

Josué de Castro foi um protagonista de sua época, expressão emblemática de uma

era que descobria a fome. Um tempo que tirou essa calamidade pública da invisibilidade.

Não que a fome não existisse antes, mas somente neste momento histórico ela veio à

cena pública, ensinando às gerações posteriores que este era um grave problema a ser

enfrentado em uma sociedade que queira se nortear pelo reconhecimento recíproco.

Com o endurecimento da ditadura, o movimento contra a fome foi silenciado. As

discussões ressurgiram com a redemocratização do país. A alimentação ainda não era

pensada como um direito. Por ser um tema essencialmente intersetorial não era assumida

55 O malthusianismo associava a fome à explosão demográfica. Estava na base do seu argumento a tese de que a população cresce em progressão geométrica (multiplicação) e os recursos alimentares em progressão aritmética (adição). Como conseqüência, inevitavelmente, ocorreria o cataclismo da fome.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

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por nenhuma das áreas do conhecimento ou sujeitos da sociedade civil. O combate à

fome estava fortemente associado às ações assistencialistas, o que gerava forte

preconceito por parte dos movimentos sociais, dificultando, ainda mais, as discussões

públicas. (VALENTE, 2007)

Em 1986, ocorreu a VIII Conferência Nacional de Saúde. Mais de 4000 pessoas

participaram, sendo que 50% eram representantes da sociedade civil organizada. A

Conferência foi um importante momento pré-constituinte, em que os movimentos sociais

sanitaristas formularam as propostas para a saúde e se organizaram em torno delas. Isso

permitiu que a Saúde fosse o setor com as propostas mais debatidas e com maior

articulação na Assembléia Constituinte. (OLIVEIRA, 2005, p.72 e ss.)

A I Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição, realizou-se no “interior”

da VIII Conferência de Saúde. O incipiente movimento pela segurança alimentar lutou

para que ela ocorresse como uma pré-conferência, o que permitiria que suas discussões

tivessem reflexo nas bandeiras constituintes do movimento sanitarista. Devido aos

preconceitos que envolviam o tema, apesar de integrante da VIII Conferência, ela só se

realizou após a mesma, sendo seu impacto quase nulo sobre as reivindicações

sanitaristas. Assim, não ocorreram relevantes discussões na Assembléia Constituinte

sobre a segurança alimentar. (VALENTE, 2007)

A ruptura do preconceito em relação à fome, bem como a redefinição de seu

horizonte se deu em um momento pós-constituinte. Foi com os debates desencadeados

nacionalmente pelo movimento Ação da Cidadania que o combate à fome foi associado

à efetivação da cidadania. Com isso os movimentos sociais começaram a superar seus

próprios preconceitos no trato do tema, bem como vislumbraram a superação da fome

como algo além da satisfação das reservas calóricas e nutricionais diárias. Foram

lançadas as bases para se pensar a alimentação como um direito. (MAGALÃES, 2002,

121 e ss.)

A preparação para a Cúpula Mundial de Alimentação, realizada em 1996, foi um

importante momento para o amadurecimento do tema entre governo e sociedade civil.

Foi nos espaços de interlocução e nos intensos debates pré-cúpula que o conceito de

segurança alimentar começa a ser compreendido como um meio para se atingir o direito

humano à alimentação. A Ação da cidadania teve uma destacada atuação neste sentido.

A segurança alimentar começa a se associar à linguagem do direito: a exigência de todos

os brasileiros se alimentarem adequadamente.

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Paralelamente, o governo federal desenvolvia uma política econômica de

liberação dos mercados e desmantelamento da máquina pública. Essa política estava

diretamente associada à política alimentar, que tinha como fundamento a liberdade dos

mercados como principal promotora da segurança alimentar. O país deveria dedicar-se à

sua vocação, aos produtos agrícolas tradicionais, e com isso acumularia capital. O

comércio mundial de alimentos asseguraria o acesso aos demais gêneros alimentícios. A

segurança alimentar dar-se-ia por meio da abertura dos mercados.

Por um lado, os movimentos sociais, após um longo processo de aprendizado

histórico, começavam a associar o combate à fome à garantia do direito à alimentação.

Por outro lado, o governo federal não se norteava pela lógica do direito. O lucro e a livre

troca comercial por si proporcionariam o bem-estar alimentar.

O conceito de segurança alimentar estava em disputa. Em 2003, um novo

presidente é eleito, tendo como principal proposta o combate à fome. Seu principal

projeto político, intitulado Fome Zero, foi fortemente influenciado e construído com

base no intenso diálogo com os movimentos sociais que lutavam pela segurança

alimentar, a partir da perspectiva dos direitos. O combate à fome é visto pelo governo

eleito a partir do prisma da justiça social. Para tanto, foi essencial o amadurecimento das

reflexões dos movimentos sociais, fruto do aprendizado histórico das lutas

desenvolvidas nos anos anteriores.

Pode-se apontar como momento contemporâneo da luta pelo direito à

alimentação a recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar, em 2003, bem

como, a aprovação da LOSAN, em 2006. Esta lei institucionalizou a alimentação como

direito, no entanto isso não significa que a disputa interpretativa chegou ao fim com um

grande vitorioso. Como alerta o presidente do CONSEA, Renato Maluf, o grande

desafio para o movimento social será enfrentar as visões minimalistas sobre a fome que

ainda são fortes na sociedade. Há a forte associação do combate à fome com a oferta de

quantidades energéticas e nutricionais mínimas. Alimentação adequada é assegurada

quando há o respeito à dignidade e à promoção de relações sociais que possibilitem o

gozo de alimentos saudáveis e prazerosos.

O direito é fruto da constante reflexão das relações sociais e dos compromissos

públicos, nem sempre tácitos, assumidos a partir dessa reflexão. Esta é norteada pelo

ideal moderno de uma sociedade fundada por homens livres e iguais, que devem ser

tratados com igual respeito e consideração. Cabe aos movimentos sociais conduzir à

sociedade problemas, demonstrá-los como injustos e exigir a sua superação.

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Os direitos, novos compromissos assumidos coletivamente, estão associados à

luta, às reivindicações. Assim, a aprovação de uma lei não pode ser considerada o fim do

processo, mas o momento em que se reconhece formalmente um direito. Para a sua

implementação é essencial que haja mobilização e demandas exigindo a efetivação. O

conflito oxigena o direito.

Na luta contra a exclusão toda a sociedade aprende e transforma-se. O direito à

alimentação é prova disso. Surgiu como combate à Fome, déficit nutricional e energético

diário. Foi excluído do debate constituinte em razão do preconceito social, que envolvia

os próprios movimentos sociais. Apenas após longo processo de amadurecimento foi

possível enxergá-lo, já na década de 90, como um direito, algo essencial para a

efetivação da liberdade e igualdade de todos os brasileiros.

Conclusão

Este texto expôs que direitos se fazem na rua, no campo por meio das lutas e

reivindicações sociais. Os movimentos sociais são fundamentais para a criação e

implentação dos direitos. Eles possuem a importante tarefa democrática de empoderar as

vozes dos excluídos, levando suas reivindicações à sociedade e exigindo mudanças.

O direito à alimentação insere-se nessa lógica. Inicialmente, a fome não era

considerada um problema político, fruto das relações sociais, mas sim um fenômeno

natural, fruto do clima e das condições ásperas que a natureza submetia determinadas

localidades. Coube na década de 40 do século passado, ao movimento contra a fome,

personificado na figura de Josué de Castro, questionar esse pensamento comum.

Hoje, a fome já é considerada um problema social, já é possível falar no direito

de todos a se alimentarem adequadamente, respeitando o meio ambiente, o prazer, o

lazer, a saúde, o desenvolvimento. Isso foi conquistado após muita mobilização e

reivindicação, o que ocasionou a aprovação da Lei Orgânica da Segurança Alimentar

(LOSAN).

A LOSAN não pode ser considerada um passo definitivo na garantia do direito

de todos a se alimentarem, mas sim uma importante conquista, que exige ainda mais luta

e reivindicação para ser implementada. A institucionalização do direito por meio de uma

lei não deixa de ser uma atitude provocativa. É a sociedade explicitando para ela mesma

seus compromissos auto-impostos, exigindo maior reflexão sobre o conjunto de práticas

e relações sociais desenvolvidas. A LOSAN é um compromisso, mas ao mesmo tempo

uma provocação à sociedade, exigindo-lhe mudanças.

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REFERÊNCIA

BASTISTA FILHO, M. e BATISTA, L. V. A geografia da fome 50 anos depois:

o que mudou? In.: ANDRADE, M. C. de [et al.] Josué de Castro e o Brasil. São

Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.

CASTRO, A. M. Apresentação da quarta edição. In: CASTRO, J. Fome um

tema proibido: últimos escritos de Josué de Castro. Anna Maria de Castro (org.)

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

MAGALHÃES, R. Enfrentando a pobreza, Reconstruindo os vínculos, sociais:

as lições da Ação pela Cidadania, Contra a Fome e a Miséria, Pela Vida.

Cadernos de Saúde Pública. 18(Suplemento)121 – 137, 2002.

OLIVEIRA, M. S. C. Por uma construção democrática do direito à saúde: a

constituição federal, os instrumentos de participação social e a experiência do

conselho nacional de saúde. Dissertação de mestrado UnB, 2005.

VALENTE, L. S. V. Entrevista realizada em Brasília, dia 21, de Setembro, de

2007. Entrevistador: Eduardo Gonçalves Rocha. Brasília, 2007.

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O DIREITO À SAÚDE NUMA PERSPECTIVA DEMOCRÁTICA

Fabiana Perillo de Farias

O paradigma do Estado Democrático de Direito surge no Brasil com a

Constituição de 1988, que prevê tanto a democracia representativa quanto a participativa

(também chamada de democracia direta), enfatizando a efetiva participação social na

esfera pública.

Diferentemente do Estado Social, no qual a tomada de decisões ficava a cargo

exclusivamente da máquina estatal, atualmente se exige um processo verdadeiramente

democrático na implementação de direitos, de forma que os indivíduos atuem ativamente

em espaços de deliberação e de tomada de decisões a respeito de questões que envolvam

o interesse de todos. Isso porque não é mais possível identificar o público com o Estado,

sendo ambas as esferas (privada e pública) percebidas como complementares e não mais

em recíproca oposição56. Assim, a participação do cidadão, seja na esfera pública

institucionalizada ou não, é fundamental para que as decisões políticas adquiram

legitimidade e eficácia, ao refletirem verdadeiras escolhas dos membros da comunidade.

Nesse contexto, a Constituição Cidadã, além do voto direto, propugna a

instalação de fóruns de deliberação popular para a formulação de políticas públicas, as

quais devem ser fruto de um processo de identificação de pretensões, de prioridades e,

principalmente, de um interesse público a ser efetivado sob a gerência do Estado, e não

sob o seu mando.

No caso do direito à saúde, diante da complexidade da sociedade moderna, não

lhe é possível atribuir um conceito irrefutável e permanente, uma vez que é construído e

reconstruído a cada dia conforme as necessidades e as demandas da população. E daí a

importância da participação da sociedade nesse contínuo processo de atribuição de

sentido à expressão “direito à saúde”, que, sem dúvida, interfere na formulação das

políticas públicas sanitárias.

56 “A emancipação de uma esfera pública independente dos comandos estatais e que viabilize a redefinição da relação entre a dimensão privada da existência e o aspecto público da organização social constitui o maior desafio a ser enfrentado por sociedades que se pretendam democráticas. A sobrevivência e renovação do Constitucionalismo, como construção social típica do mundo moderno, dependem, em grande parte, dessa relação complementar”. ARAUJO PINTO, Cristiano Paixão. Arqueologia de uma distinção- o público e o privado na experiência histórica do direito. In: OLIVEIRA, Cláudia Fernanda de. (Org.). O novo direito administrativo brasileiro: O Estado, as agências e o terceiro setor. Belo Horizonte: Fórum, 2003. P. 19-50.

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No atual paradigma constitucional, não cabe mais ao Estado, por meio de seu

corpo técnico-burocrático, tomar decisões que tenham como fundamento uma

compreensão autoritária – não construída socialmente - a respeito do que é o direito à

saúde. Hoje é necessária a convivência entre a sociedade e o Estado para que se definam

as prioridades públicas sanitárias de acordo com um conceito de saúde que guarde

pertinência com as necessidades e com os anseios sociais. Nessa perspectiva

democrática, o Estado e a sociedade civil devem ser co-responsáveis na concretização do

direito fundamental e social em questão.

Um exemplo de democracia participativa no âmbito do direito sanitário revela-se

na atuação dos Conselhos de Saúde, cuja composição paritária contempla representantes

do Estado, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários. Tais Conselhos

possuem função de fiscalização e de deliberação no tocante às políticas públicas de

saúde.

No entanto, inúmeros são os problemas identificados no funcionamento desses

Conselhos. Verifica-se, por exemplo, que, apesar da previsão legal de seu caráter

deliberativo, há um déficit de atuação no tocante a essa função. Com efeito, prestigia-se

mais suas atribuições de fiscalização, em detrimento da importante discussão sobre o

conteúdo do direito à saúde, relegando, novamente, ao Estado e ao mercado, a sua

definição.

Apesar dessa e de outras dificuldades, os Conselhos de Saúde, institucionalizados

pela Constituição de 1988, representam um efetivo avanço democrático, pois

possibilitam a aproximação entre Estado e comunidade e a elaboração, por

conseqüência, de políticas públicas de saúde mais condizentes com as necessidades

sociais. Os conselhos precisam sim ser fortalecidos, por meio da preservação de sua

autonomia em relação aos gestores de saúde, bem como do incremento da participação

de cidadãos interessados em influir diretamente na gestão do Estado57.

Ainda assim, os atores sociais devem ser multiplicados e os espaços

democráticos devem ser ampliados para além desse conselhos e demais instâncias

legalmente previstas de participação social. É imprescindível a criação de outros espaços

57 Além disso, é necessário impedir, dentro dos Conselhos de Saúde, “a paralisia decisória, a corporativização dos espaços de participação e a estreiteza do comunitarismo e do particularismo. Os conselhos, embora essenciais, só realizam um papel democrático efetivo se houver instâncias de articulação capazes de propor medidas universais e igualitárias, inclusivas e não exclusivas das massas marginalizadas economicamente ou das minorias social e culturalmente” (LIMA LOPES, José Reinaldo de, Os Conselhos de Participação Popular – Validade Jurídica de suas Decisões, In: Revista de Direito Sanitário, vol. 1, n. 1, Nov/2000, São Paulo: LTR).

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em que o exercício democrático na construção permanente do conceito de saúde

influencie direta e indiretamente a formulação e o monitoramento das políticas públicas

sanitárias.

Estado e sociedade civil, que antes se viam com desconfiança – no Estado

Liberal e também no Social –, agora precisam participar conjuntamente do processo

democrático de contínua (re)construção do significado do direito à saúde, levando em

consideração as diversas experiências que somente a pluralidade de atores sociais nesse

processo proporciona.

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JUSTIÇA RESTAURATIVA E DIREITOS HUMANOS: DOS CONFLITOS ARMADOS AOS

CONFLITOS INTERPESSOAIS

Jan Yuri Figueiredo de Amorim

Os conflitos sempre existiram na sociedade. Sempre existirão. Assim, a idéia de

paz deve ser entendida como a administração do conflito pelos seus agentes. A idéia de

identificar paz com a ausência de conflitos é, no mínimo, falsa. Assim, é preciso que

sejam dadas aos indivíduos oportunidades e meios de solucionarem seus conflitos. Esses

conflitos podem variar de intensidade e complexidade. Podem surgir entre duas pessoas

que disputam um bem, pode ser entre povos, nações e podem ocorrer até mesmo após o

fim de um conflito armado. Ao fim desse, surgem outros problemas, especialmente o de

se reconstruir o país.

A justiça restaurativa se apresenta, portanto, como uma forma de auxiliar na

resolução desse problema. Durante um conflito armado diversos crimes são praticados.

Nos conflitos armados internos a questão se torna ainda mais complexa porque muitas

vezes esses crimes são praticados por pessoas que antes eram da convivência de suas

vítimas. Em algumas ocasiões, o evento criminoso foi isolado, tendo apenas ocorrido

porque se estava em uma situação caótica de conflito armado. Muito provavelmente, se a

situação fosse de paz o crime não teria sido cometido. Ocorre que, com o fim das

hostilidades, em outras palavras, com o fim do conflito armado, outro conflito se

estabelece: entre os ofensores e suas vítimas. Como resolver esse problema, já que há a

necessidade de restabelecimento do país e da convivência entre as pessoas? É necessário

que seja dado à vítima e ao ofensor a oportunidade de decidirem qual será a melhor

forma de lidar com as violações perpetradas e seus desdobramentos futuros.

É exatamente essa a idéia central da justiça restaurativa. Esse modelo teórico

prático de justiça permite que os indivíduos sejam vistos como verdadeiros seres

humanos, dotados de autonomia e controle sobre suas vidas e sobre seus destinos. Ao

permitir que os indivíduos decidam sobre suas vidas, a justiça restaurativa os emancipa.

Durante o conflito armado haviam se transformado em corpos dóceis. Com a justiça

restaurativa, voltam a ser seres humanos.

Enquanto cada vez mais se discute no âmbito da criminologia a efetividade e

legitimidade da aplicação de penas, a impressão que se tem é que esses debates ainda

não chegaram na esfera internacional, ou ao menos ainda não foi dada a devida

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importância. O Tribunal Penal Internacional é um exemplo do que se está tentando dizer.

Sem dúvida o seu estabelecimento através do Estatuto de Roma é importante. Ele é um

marco dentro do tema da responsabilização do indivíduo no sistema internacional. O

problema é que ele foi criado em um contexto em que o próprio direito penal tem sido

colocado em xeque.

Nas palavras de Eugenio Raúl Zaffaroni:

Enquanto os direitos humanos assinalam um programa realizador de

igualdade de direitos de longo alcance, os sistemas penais são instrumentos

de consagração ou cristalização da desigualdade de direitos em todas as

sociedades. Não é por acaso que os dispositivos dos instrumentos de direitos

humanos referentes aos sistemas penais sempre sejam limitadores,

demarcadores de fronteiras mais ou menos estritas do seu exercício de poder:

fica claro que os direitos humanos se defrontam ali com fatos que desejam

limitar ou conter58.

Vítimas são pessoas que perderam suas autonomias, que perderam o controle

sobre suas vidas e que se transformaram em meros fantoches. A título de exemplo,

aplicar uma pena ao Presidente estadunidense George W. Bush ou a Charles Taylor, ex-

ditador da Libéria, acusado, entre outras acusações, de utilizar meninos-soldados, não

fará com que suas vítimas voltem a ter autonomia e confiança para darem continuidade a

suas vidas. É preciso que as histórias de vítimas como essas sejam ouvidas. É preciso

que seus sofrimentos sejam levados em consideração. A justiça restaurativa, ao dar voz

às vítimas, permitirá que elas mesmas digam o que entendem como justiça, como

Direito, como Constituição. Dessa forma será possível entender o que ocorreu e também,

a partir de então, trabalhar para que eventos como os que causaram a vitimação não

voltem a ocorrer.

A justiça restaurativa, possibilitando a participação efetiva das vítimas e de seus

ofensores e suas conseqüentes emancipações, permite que a abstração de normas

constitucionais, especialmente as qualificadas como direitos fundamentais59, e os

direitos humanos tenham real concretude.

Não se pode ser ingênuo também a ponto de achar-se que um modelo de justiça,

seja ele qual for, será capaz de resolver todos os problemas. É necessário que exista um

58 ZAFFARONI, E.R. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. (tradução de Vânia Romano Pedrosa, Amir Lopes da Conceição). Rio de Janeiro: Revan, 1991. p.149. 59 PAIXÃO , C. A reação norte-americana aos atentados de 11 de setembro 2001 e seu impacto no constitucionalismo contemporâneo: um estudo a partir da teoria da diferenciação do direito. Belo Horizonte, 2004. Tese de Doutorado. Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. (inédito). p.343.

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equilíbrio. Conflitos armados são complexos e suas conseqüências são inúmeras. A

exemplo do que ocorreu em Ruanda, após o massacre étnico agravado especialmente em

1994, muitas vezes pode ser necessário que tanto o modelo penal quanto o modelo

restaurativo venham a ser implantados. Para resolver o problema do país africano a ONU

criou o Tribunal Penal Internacional ad hoc para Ruanda, através da Resolução 955 do

Conselho de Segurança. Esse tribunal especial ficou encarregado de julgar os grandes

perpetradores de violações aos direitos humanos durante a guerra civil, em especial

comandantes e líderes (os chamados big fish). Já para outros indivíduos, que também

cometeram crimes durante o desenrolar do massacre étnico, foram restabelecidas antigas

práticas restaurativas adotadas pelas tribos locais. Tais práticas, chamadas gacacas, são

incentivadas pelo próprio Ministério da Justiça ruandense e se desenvolvem no âmbito

da comunidade local.

Percebe-se que não há uma fórmula pronta e acabada. Como nas palavras de

Gustav Radbruch60, “não temos que fazer do Direito Penal algo melhor, mas sim que

fazer algo melhor do que o Direito Penal”. Devem ser buscadas formas de resolução de

conflito que possam emancipar o indivíduo, restabelecendo sua autoconfiança, sua

autonomia. Práticas como as da justiça restaurativa permitem que os envolvidos se

sintam como verdadeiros protagonistas de suas vidas. Faz com que eles voltem a

controlar seus destinos.

Em 2009 está prevista a ocorrência da Conferência de Revisão do Estatuto de

Roma61 que criou o Tribunal Penal Internacional. Dentre outros problemas que deverão

ser analisados durante a conferência62, uma pertinente pauta seria o debate sobre o

próprio direito penal e a sua efetividade no cenário internacional, além do papel que

deve ser desempenhado pelo Tribunal, bem como o incentivo a práticas restaurativas.

Tal discussão interessa ao Brasil também. Muito embora o país não enfrente

conflitos armados deve-se lembrar que ele faz parte do Estatuto de Roma, tendo assim

60 Citado no artigo de PINTO, R. S. G. Justiça Restaurativa é Possível no Brasil? In: BASTOS, M. T.; LOPES, C. e RENAULT, S. R. T. (Orgs). Justiça Restaurativa: Coletânea de Artigos. Brasília: MJ e PNUD, 2005. Disponível em: www.justica21.org.br/interno.php?ativo=BIBLIOTECA. Acesso em 20 de dezembro de 2007. 61 De acordo com o artigo 123 do Estatuto de Roma. 62 Tais como a questão dos acordos bilaterais que tem impedido a atuação do TPI, o problema da definição do crime de agressão, a inclusão ou não do terrorismo e do tráfico de drogas sob a jurisdição do Tribunal, a responsabilidade criminal de pessoas jurídicas etc. Para mais detalhes sobre os debates que estão antecedendo a Conferência de revisão, vide: SALZBURG Retreat: the future of the International Criminal Court. Salzburg, Áustria, 25-27 May 2006. Material distribuído durante a 9ª sessão de verão da Salzburg Law School on International Criminal Law, Humanitarian Law and Human Rights Law (5-17 de agosto de 2007). O material também se encontra parcialmente disponível em www.sbg.ac.at/salzburglawschool/retreat.pdf

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contribuído para a própria criação do Tribunal Penal Internacional, além de haver uma

representante brasileira entre os juízes da Corte. Assim o debate sobre a implementação

da justiça restaurativa e o seu incentivo através do sistema internacional e mais

especificamente através do Tribunal Penal Internacional afeta diretamente o Brasil.

Tal debate também interessa ao Brasil pois, domesticamente, também é possível

ver iniciativas de aplicação da justiça restaurativa. Aos poucos o país vem aplicando

formas alternativas de solução do conflito que são capazes de emancipar os indivíduos.

Há projetos de justiça restaurativa implementados em Porto Alegre, São Caetano do Sul

e em Brasília. Todos esses projetos são financiados pela Secretaria de Reforma do

Judiciário do Ministério da Justiça e pelo Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento (PNUD). Apesar de diferentes, todos os projetos contam com a

participação da sociedade civil e tem como uma das metas principais a solução do

conflito através da emancipação dos envolvidos.

Seja em conflitos armados, seja em conflitos interpessoais a justiça restaurativa

pode ser aplicada. Busca-se através dela o restabelecimento da paz social, necessário

para o convívio em sociedade. A justiça é alcançada através do estabelecimento da paz,

que não deve ser entendida como a ausência de conflitos, já que fazem parte da própria

vida em sociedade. A paz deve ser entendida como a administração do conflito pelos

seus próprios protagonistas, livres e iguais e que se autocompreendem como tais.

Elementos conformadores e importância da enfatização de uma Identidade

constitucional brasileira

Os debates recentes suscitados por questões de gênero, do movimento negro,

índios e outros grupos têm revelado desigualdades naturalizadas ao longo da história

brasileira. O contexto mundial em que esse processo se desenrola é o da modernidade

líquida, em que a liberdade da política do Estado é incansavelmente erodida pelos novos

poderes globais providos das armas da extraterritorialidade, velocidade de movimento e

capacidade de evasão e fuga.63

As sociedades, nessa modernidade, são atravessadas por diferentes divisões e

antagonismos sociais que produzem uma variedade de identidades para os indivíduos e

63 BAUMAN, Zygmunt. Globalização – as conseqüências humanas. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1999, p. 74.

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se tais sociedades não se desintegram totalmente não é porque sejam unificadas, mas

porque seus diferentes elementos e identidades podem, sob certas circunstâncias, ser

conjuntamente articulados. Essa articulação, todavia, é sempre parcial. A estrutura da

identidade permanece aberta, é um devir. Essa é a condição de continuidade da

história.64

Dessa perspectiva, é urgente a inserção do reconhecimento sob a rubrica dos

direitos humanos fundamentais, inclusive para luta na defesa de outros direitos,

considerando-se a íntima relação entre identidade e auto-estima.

Levando-se em conta que o não-reconhecimento ou o reconhecimento

inadequado muitas vezes coincide com condições graves de demérito social e injustiças

sócio-econômicas. Nancy Fraser, quanto à indiscriminada separação da política cultural

da diferença em relação à política social da igualdade, afirma que justiça hoje requer

tanto a redistribuição65 quanto o reconhecimento, porque não é justo que indivíduos ou

grupos vejam negado seu status de plenos parceiros na interação social simplesmente em

decorrência de padrões institucionalizados de valor cultural de cuja construção não

participaram com igualdade e que menosprezam suas características distintivas ou

características distintivas a eles atribuídas.66

A demanda por reconhecimento fica desarmada se não for sustentada pela prática

da redistribuição e a afirmação da especificidade cultural serve de pouco consolo para

aqueles que, pela desigualdade cada vez maior na divisão dos recursos, têm de aceitar as

escolhas que lhes são impostas.

Diante disso, deslocar a ênfase da identidade nacional – baseada na idéia de que

uma boa vida depende da pertença a um agrupamento humano por intermédio de laços

históricos, culturais, de lealdade e de sangue – para uma identidade constitucional pode

funcionar como catalisador na densificação das promessas constitucionais de construir

uma sociedade livre, solidária e justa, que promova o bem de todos, sem preconceitos de

origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

A expressão identidade constitucional, no contexto brasileiro, remete, em

primeiro lugar, a uma história de pouca ou nenhuma participação do povo na construção

64 HALL, Stuart. A identidadde cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro – 11ª ed. – Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p. 17. 65 FRASER, Nancy. “Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista”. In SOUZA, Jessé (org.). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora UnB, 2001, p. 204. 66Fraser apud BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: A busca por segurança no mundo atual. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, pp. 71/72.

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das instituições nas quais estão inseridos e às quais são submetidos. Em segundo lugar, à

produção de silêncios, pela homogeneização cultural produzida por uma falsa

democracia racial. Por último, remete a uma desigualdade econômica e social renitente,

e, por conseguinte, uma ausência da maioria do povo no processo de construção de

sentido de sua própria identidade.

Esse horizonte, todavia, tem se modificado nos últimos vinte anos, coincidindo

com o período da redemocratização e com a promulgação da Constituição de 88, ainda

que, em diversos aspectos, as mudanças se dêem de forma lenta. No mundo atual,

observando-se a simultaneidade de presentes67, enquanto na Europa se discute a

possibilidade de aprofundamento da integração dos Estados por meio de uma

Constituição Européia, por aqui, pode-se dizer que o Estado-nação configura-se ainda

como um anteparo, ainda que frágil, para as hordas de excluídos.

A questão que se coloca é em que medida a comunidade e os Estados nacionais

conformam ainda os espaços discursivos privilegiados para a tematização dos assuntos

de relevância comum, num mundo em que os cidadãos encontram-se, de fato, inseridos,

simbólica e materialmente, em teias de relações que extrapolam os limites da nação.

O problema, entretanto, é saber quais cidadãos podem ser considerados

inseridos. Essa distinção é relevante porque para os inseridos a questão de configurar

uma identidade ligada a um Estado-nação não representa empecilhos ao pleno

desenvolvimento de seus projetos de vida, pois para esses superintegrados68 o Estado-

nação representa, de fato, menos que um carimbo no passaporte. Conforme assinala

Bauman:

a nova elite não é definida por qualquer localidade: é em verdade e

plenamente extraterritorial. Só a extraterritorialidade é garantida contra a

comunidade, e a nova “elite global” que, exceto pela companhia inevitável (e

às vezes agradável) dos maîtres, arrumadeiras e garçons, é sua única

detentora e que assim seja.

No universo dos extraterritoriais, falar de identidade é tratar de questões de

escolha e resolução, e é não só aconselhável, mas incentivado, sob pena de infringir as

regras não ditas, que as identidades sejam acompanhadas de um arsenal de sinalizadores

67 SANTOS, Boaventura de Sousa. “Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências”. In SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2004. 68 O termo superintegrado foi retirado do artigo “Democracia e Exclusão Social em Face da Globalização” de Friedrich Müller, disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_72/artigos/artigos.htm >, acesso em: 24-06-2007.

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desse poder de opção: um carro, uma roupa, um relógio, um bairro específicos. A defesa

da autenticidade resume-se, basicamente, à discussão sobre o gosto69. Essas escolhas,

todavia, seguem padrões de qualidade rigorosos e, por conseguinte, limitam. Mas as

escolhas de cada um devem, acima de tudo, ser respeitadas. Jessé Souza aponta uma

contradição nesse modo de vida:

entre a lógica do ideal de autenticidade, que exige uma revelação expressiva

da originalidade de cada qual cujo ineditismo, na medida em que se refere

apenas àquela pessoa e sua singularidade, é ameaçado pela lógica do quik fix,

que implica o controle instrumental e a elaboração de padrões preexistentes e

heterônomos.70

Para os inseridos a questão da identidade não tem nada a ver com

reconhecimento ou auto-realização. É uma questão menor, quase tão variável quanto o

humor. Os membros dessa comunidade não tecem entre seus componentes uma rede de

responsabilidades éticas e, portanto, de compromissos de longo prazo. As ligações

estabelecidas nessa comunidade tendem “a evaporar quando os laços humanos realmente

importam – no momento em que são necessários para compensar a falta de recursos ou

impotência do indivíduo.71

Em outro universo, aos excluídos, aos vagabundos, ou seja, à grande maioria dos

habitantes do planeta, atrelados a um local de nascimento, ou efetivamente confinados,

conforme o caso, resta a obrigatoriedade da convivência perpétua e, portanto, da criação

de sentidos em comum. Nesse mundo em que cidadãos de direito lutam para tornarem-se

cidadãos de fato, a comunidade deve ser tecida de compromissos de longo prazo, de

direitos inalienáveis que, graças à sua durabilidade prevista, melhor ainda,

institucionalmente garantida, possa ser considerada como uma variável dada no

planejamento e nos projetos de vida72.

Retomo o caso brasileiro para concluir que o Estado Democrático de Direito é

ainda uma possibilidade, senão a única, de proteção contra as intempéries da

“globalização”, o que nos remete à imprescindibilidade de reforço de uma identidade

constitucional. Bauman alerta para o caráter não pacífico da identidade: “o campo de

69 “O gosto funciona como senso de distinção por excelência precisamente por separar e unir, constituindo, portanto, solidariedades e preconceitos de forma universal – tudo é gosto! – a partir de fios invisíveis e opacos”. Bourdieu apud SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003. (Coleção Origem), p. 57. 70 SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003. (Coleção Origem), p. 37. 71 BAUMAN, Zygmunt. Op. cit., 2003, p. 68. 72 Idem, ibidem.

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batalha é o lar natural da identidade. (...) A identidade é uma luta simultânea contra a

dissolução e a fragmentação; uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa

resoluta a ser devorado”73.

O campo de batalha da identidade constitucional parece situar-se, sobretudo, na

sua função de obstáculo à hegemonia de outras identidades. Conforme nos alerta

Rosenfeld a disputa “entre a identidade constitucional e outras identidades relevantes,

tais como a nacional, as étnicas, religiosas ou culturais, torna-se inevitável pela tensão

entre o pluralismo inerente ao constitucionalismo contemporâneo e a tradição”.74 E, em

seguida, o autor recorre a Ulrich Preuss, para destacar que “em um importante sentido, a

identidade constitucional compete com outras identidades relevantes opondo-se a

elas”.75

A idéia é, assim, transferir a carga de coesão da sociedade de uma identidade

nacional, edificada sobre distinções histórico-culturais, para uma identidade

constitucional fundada na não-homogeneidade cultural; legitimada pela ampla

participação na construção de sentido de termos essenciais como dignidade e justiça; e

empenhada na busca de mecanismos cada vez mais eficientes para institucionalização de

vontades produzidas na esfera pública, enfatizando com Rosenfeld que:

A identidade constitucional surge como algo complexo, fragmentado, parcial

e incompleto. Sobretudo no contexto de uma constituição viva, de uma living

constitution, a identidade constitucional é o produto dinâmico sempre aberto

à maior elaboração e à revisão. Do mesmo modo, a matéria constitucional

(the constitution subject) – de qualquer modo que seja definida – parece

condenada a permanecer incompleta e sempre suscetível de maior definição,

de maior precisão.76

Vale lembrar, com Jeffrey Weeks que, nessa batalha, não há agente social

privilegiado para atingir os fins; só a multiplicidade das lutas locais contra o peso da

história e as várias formas de dominação, subordinação e produção de silêncios. A

contingência e não o determinismo é que está subjacente ao nosso presente complexo77.

73 BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, pp. 83/84. 74 ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Tradução: Menelick de Carvalho Netto. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, pp. 20/21. 75 Idem, ibidem, p. 21. 76Idem, ibidem, p. 23. 77 WEEKS, Jeffrey apud BAUMAN, Zygmunt. Op. cit., 2003, p. 126.

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As ações a serem empreendidas exigem a superação dos limites formais e

culturais impostos às condutas individuais e coletivas. Exige também um tipo de

subjetividade com capacidade e vontade de explorar novas possibilidades

emancipatórias, capaz de conceber e desejar alternativas sociais baseadas na

transformação de relações de poder em relações de autoridade partilhada e na

transformação das ordens jurídicas despóticas em ordens jurídicas democráticas e, além

disso, uma subjetividade para quem o futuro é, também, uma questão pessoal.

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O DIREITO À EDUCAÇÃO E A ATUAÇÃO DAS PROMOTORIAS DE

JUSTIÇA E DE DEFESA DA EDUCAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO

DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS ENTRE 2001 E 2007

Denise Gisele de Britto Damasco78

O direito à educação e sua garantia foram analisados por meio das

Recomendações79 públicas expedidas pelas duas Promotorias de Justiça e de Defesa da

Educação do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios – Proeduc, entre 2001 e

2007. Além da análise das sessenta e quatro Recomendações expedidas nesse período,

foram realizadas entrevistas com Promotores de justiça e Promotores adjuntos do

Ministério Público do Distrito Federal80 que participaram da comissão de criação das

Proeduc ou que atuaram em uma dessas duas Promotorias.

As Recomendações analisadas entre 2001 e 2007 pelas Proeduc, estão

disponíveis no sítio eletrônico81 do MPDFT e foram organizadas em quatro grupos,

segundo a atuação das Proeduc pela garantia: a) de acesso à educação; b) de

permanência com qualidade na escola; c) de participação na gestão escolar; d) pela

garantia da natureza pública da escola pública.

Observamos que 80% das sessenta e quatro Recomendações públicas no DF

foram dirigidas majoritariamente à Rede Pública de Ensino do DF, ou seja, à Secretaria

de Estado de Educação do DF, representando o Poder Executivo local. Em menor escala,

11% das Recomendações foram endereçadas à Rede Privada de Ensino. Em 9% dos

casos, as Recomendações foram encaminhadas ao Sistema de Ensino do DF como um

todo, ou seja, dirigidas à Rede Pública e à Privada.

Constatamos que das sessenta e quatro Recomendações expedidas entre 2001 e

2007, cinqüenta e sete foram referentes à educação básica, tornando premente a

necessidade de se ter políticas públicas mais eficientes para esses cidadãos. Dessas

cinqüenta e sete Recomendações para Educação básica, vinte e sete não especificaram a

etapa de ensino a qual eram direcionadas. São poucas as Recomendações públicas no

78Mestranda da Faculdade de Educação da UnB e professora da Secretaria de Estado de Educação do DF. 79As Recomendações são um dos instrumentos de atuação do Ministério Público em que essa instituição emite um documento “visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública, bem como ao respeito, aos interesses, direitos e bens cuja defesa lhe cabe promover, fixando prazo razoável para a adoção das providências cabíveis” – Lei Complementar 75/1993, art. 6°, inciso XX. 80O campo pesquisado foi o MPDFT e suas duas Promotorias especializadas em educação. 81www.mpdft.gov.br

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DF que, em seu texto, identificam o reclamante que as originou. Entre 2001 e 2007,

cinqüenta e quatro Recomendações públicas apresentam somente o código e o número

do procedimento investigativo das mesmas. Tivemos a identificação de apenas duas

reclamações realizadas por alunos e uma anônima, que propiciaram duas

Recomendações públicas, respectivamente. Constatamos quatro reclamações de pais que

geraram Recomendações públicas e três Recomendações públicas expedidas por

iniciativa da própria Proeduc.

O direito à educação para sete dos Promotores entrevistados nesse estudo, o

direito à educação significa: a) o direito ao acesso à educação; b) o direito à qualidade na

escola; c) o direito à participação na elaboração do projeto político-pedagógico e no

Conselho Escolar; d) que esse direito à educação é uma questão complexa porque

envolve a União, os Estados e os Municípios, bem como a família do educando; e) o

direito à educação passa pela formação do professor, que segundo o Promotor

entrevistado, deve ser preparado para que a educação possa dar resultados; f) o direito à

educação significa atacar a causa dos problemas de criminalidade e finalmente g) o

direito à educação é um direito fundamental e deve estar associado ao direito à saúde

para que seja garantido em sua plenitude.

O direito à educação engloba dois conceitos convergentes, direito e educação,

que encerram constantes lutas em nossa sociedade. O direito e a educação possuem uma

característica que os aproxima: movimento e processo. Esse movimento e processo

implicam em reconhecer fortalecer as instituições democráticas e suas articulações com

movimentos sociais, não se lançando individualmente ou isoladamente e sim articulando

e se aliando com aqueles que sofrem todo tipo de opressão: racial, econômica e de

classe, sexual, gênero entre outras. O direito humano à educação engloba lutas contínuas

por instâncias mais democráticas nas escolas, pela qualidade do ensino, contra o

individualismo que descaracterizam o espaço coletivo e luta por uma justiça social82.

O direito humano à educação nos traz a convicção de que a educação além de ser

um direito do cidadão é antes um direito fundamental dos homens e das mulheres. Faz

parte do conjunto de direitos que conferem a todo ser humano a sua dignidade e a sua

condição de ser respeitado. A educação como um direito humano reconhece a

82Partimos do conceito de justiça social por meio do artigo de Balaudé, intitulado “Instituir o Bem” em que o autor admite a impossível conciliação do bem individual e do justo coletivo. Esse debate político, segundo o autor, “é polarizado entre a liberdade e a justiça, remetendo à questão do bem na esfera individual e privada, consagrando a questão da justiça como o único valor susceptível de ser perseguido pela coletividade”- tradução nossa. (Balaudé, 2007, p.09)

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necessidade de uma vida digna e essa dignidade requer condições concretas para que

esse direito se realize, exigindo condições sociais, culturais, econômicas, ambientais e

políticas.

Destacamos o direito à educação como um direito humano e social. Ewald

(1986)83 afirma que o direito social introduz e organiza o conflito dos direitos. Como

conseqüência, esse autor apresenta que o direito social é indissociável da idéia de

solidariedade, pois se torna um grande operador de concessões mútuas, uma escola de

tolerância recíproca.

83A obra “L’État Providence” foi publicada originalmente em 1986, na França, e dedicada a Michel Foucault e ainda não há tradução em português. Nessa obra o autor aborda o conceito de Estado Providência e oferece uma oportunidade de reflexão sobre seu sentido na França. Ewald (1986) apresenta seu itinerário para a concepção dessa obra, datado de agosto de 1985. O cenário são as minas de carvão e a Lei francesa de 1898 que colocou em prática, de maneira inédita, a categoria do risco. Permeando a questão sobre o risco, refletia uma das grandes experiências morais do Ocidente. O homem por inteiro: futuro, acaso, fortuna, providência, fatalidade. A ordem e a desordem na natureza. O mundo e a sociedade e a existência do mal, sua origem, suas responsabilidades e os combates por ele impostos. Nesse itinerário, há o acidente de trabalho: uma experiência nova e má. O autor resume a história de dois séculos de indústria e de lutas sociais. Assim procurou compreender os dois últimos séculos por meio da problematização do acidente, a proliferação das instituições de seguridade; pelo nascimento da Seguridade Social, a aparição do Estado Providência e pelo processo de socialização que caracteriza a história contemporânea de nossas sociedades, a socialização das responsabilidades. Estuda também a passagem do direito civil ao direito social com a transformação das relações de obrigação.

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RACISMO INSTITUCIONAL E ACESSO À JUSTIÇA

Judith Karine Cavalcanti Santos84

Embora o ordenamento jurídico brasileiro seja repleto de normas

antidiscriminatórias, poucos casos de racismo são conduzidos ao fim do procedimento

judicial como tais.

Os casos de racismo no Brasil sofrem inúmeros bloqueios para sua efetivação.

Em geral, os obstáculos vão desde o medo de denunciar (entrave subjetivo) até o

indeferimento do caso – passando pela desclassificação do crime e pelo arquivamento do

inquérito –, praticamente anulam as possibilidades de efetividade da norma

antidiscriminatória. Resta à condenação cerca de apenas 0,06% do total de casos, como

demonstram estudos recentes85.

O Sistema de Justiça brasileiro86, entretanto, parece não atentar para essa falha e,

por vezes, os discursos expressos nas sentenças retomam o mito da democracia racial,

diante do qual, atitudes racistas seriam inconcebíveis, não ultrapassando o intuito da

brincadeira, fruto da nossa cultura ‘extrovertida’ e ‘espontânea’. Essa postura não

somente uma reprodução individual de preconceitos sociais, por um ou outro funcionário

desse sistema, mas uma reprodução institucional, que tem como conseqüência o

“fracasso da instituição em prover um serviço profissional e adequado às pessoas em

virtude de sua cor, cultura, origem racial ou étnica”87.

Pesquisas nacionais demonstram que nos casos em que o negro figura não como

vítima, mas como réu, os casos seguem mais céleres e são conduzidos por todo o

processo judicial adequado. Verificando, portanto, a eficácia normativa nos casos de

crime de racismo através dessas duas perspectivas (negro como réu e como vítima),

observa-se que as decisões judiciais tendentes a condenar o réu negro e a desqualificar o

crime de racismo, quando do negro vítima, não são mera reprodução individual de

conceitos preestabelecidos socialmente.

84 Professora de Direito Constitucional, Pesquisadora em Direitos Humanos e Metranda em Direito (UnB). 85 SALES, R. Raça e Justiça. O mito da Democracia Racial e o racismo institucional no fluxo da justiça. Tese de doutorado. Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife, 2006.

86 Para fins exclusivos desse projeto, optou-se por uma abordagem mais geral do termo Sistema de Justiça, com a inserção de vários agentes responsáveis pelo acesso à justiça e não somente os tribunais, como classicamente entendidos. Nesse sentido, Sistema de Justiça engloba também o Ministério Público, as Delegacias e o Sistema Penitenciário. Sistemas não convencionais com participação popular direta também estão compreendidos no conceito, embora não sejam objeto de estudo nesse momento.

87 PNUD; DFID; PCRI. RELATÓRIO REVISÃO ANUAL. Brasília: PNUD/DFID, 2005.

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Muito embora independa de ações individuais, o racismo institucional traduz em

certa medida os interesses sociais de exclusão. À medida que tais grupos racialmente

dominantes utilizam-se do meio institucional para a reprodução de uma cultura racista.

Tal postura é reflexo do racismo como processo de exclusão social e em sua acepção

institucional, o racismo institucional, que limita o acesso da população negra à justiça

fica restrito ao caráter punitivo.

O racismo não é mais um meio de se conseguir privilégios somente, como se fez

por mais de um século. Essa construção histórica ainda é utilizada, o diferencial é que,

hoje, o racismo institucional é o meio mantenedor de privilégios. Essa redução é ainda

mais problemática que a ausência total, porque ela ilude a sociedade quanto ao

cumprimento do direito e a sofisticação das estratégias do racismo neste século é tão

grande que nem ao menos se faz necessária a menção ao termo raça ou cor.

O Sistema de Justiça brasileiro reproduz o racismo em sua estrutura interna de

várias formas. Argumenta, por exemplo, a não intencionalidade e o álibi negro88,

prejudicando a aplicabilidade real da norma anti-racista. Instante esse em que o sistema

impede qualquer discurso plausível de acusação, visto que as provas da intenção

resumem-se a duas: a reafirmação por parte do acusado ou a existência de testemunhas.

A primeira raramente acontece e o ônus da prova, portanto, recai necessariamente sobre

a vítima, embora o sistema penal permita que, no caso da culpa ser presumida, “inverte-

se o ônus da prova e o autor da prova só precisa provar a ação ou omissão e o dano

resultante do agente requerido”89.

O racismo institucional, nessa medida, pode ser apontado talvez como a melhor

demonstração da sofisticação a que chegou o racismo na atualidade. Numa época em que

explicitar um discurso racista é dito como politicamente incorreto, o racismo adotou o

formato do institucional, que inclusive tenta retirar a responsabilidade individual. Por

essa razão fica difícil identificá-lo.

Outra perspectiva faz-se ainda necessária para que efetivamente se possa

classificar a inoperância do sistema como racismo institucional. É importante que se

88 A inocência é sustentada pela familiaridade com pessoas negras (SALES, R. Raça e Justiça. O mito da Democracia Racial e o racismo institucional no fluxo da justiça. Tese de doutorado. Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife, 2006). 89 HACK, P. Responsabilidade civil por danos morais. In PEREIRA, G.; SANTOS, J.; COSTA, L. et. Al. Dano moral nos Atos de Racismo. Olinda: Djumbay, 2001. p.18.

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observe se há os mesmos limites no encaminhamento dos processos e na eficácia das

normas quando o negro não é a vítima, mas denunciado90.

Os dados apontam, por exemplo, que os negros são mais abordados pela polícia

que os brancos, prática decorrente do racismo estrutural das polícias. Além disso,

pesquisas mostram que na capital paulista, por exemplo, os negros são mais punidos que

os brancos, considerando a eficácia processual91.

Com a pesquisa, é possível observar que as trajetórias iniciais da população

negra (homem e mulher) são substancialmente inferiores em termos percentuais aos da

população branca (homem e mulher), no entanto, à medida que o procedimento judicial

aproxima-se da execução, os números se agravam para a população negra e declinam

surpreendentemente para a população branca.

O sistema de justiça está preparado para uma postura determinada desse sujeito

quando esse corresponde ao estereotipo [racista] ‘do ladrão’. Ao ocupar qualquer outro

papel, o sistema não encontra referência e o atributo raça/cor torna-se ima categoria

irrelevante. Ocorre que no racismo, esse atributo é o ponto de partida para caracterização

do crime.

O acesso à justiça para a população negra continua restrito ao viés repressivo, ou

seja, a justiça somente é perceptível aos negros quando agem contra e a não a seu favor.

90 Há de se ressalvar que esses dados de raça/cor em geral são atribuídos pelas autoridades coatoras, e não com base na autoclassificação. 91 Fundação SEADE apud LIMA, R. Op. Cit., 2004. pp.62-63

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GRUPO 3 E GRUPO 4

Coordenadores: Prof. Menelick de Carvalho Netto e Prof. Cristiano Paixão

A OBSERVAÇÃO DA OBSERVAÇÃO: ABORDAGENS SOBRE A

APROPRIAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PELA JURISDIÇÃO

CONSTITUCIONAL E SEUS DESDOBRAMENTOS

Cristiano Paixão

Menelick de Carvalho Netto

Leonardo Augusto Andrade Barbosa

Paulo Henrique Blair de Oliveira

Quando a pesquisa relacionada à construção de um Observatório Permanente da

Justiça Brasileira foi adquirindo identidade e maturidade, algumas perspectivas

complementares surgiram do material coletado e analisado. Gradativamente, as

observações realizadas pelos grupos 3 e 4 foram se aproximando, considerando que a

tarefa de “estruturar um lócus de interlocução com as diversas vertentes e movimentos

enunciadores de discursos de interpretação e realização da constituição brasileira”

(objetivo do grupo 3) estava diretamente intrincada com o trabalho de “identificar

estratégias de desconstitucionalização de direitos, desvelando as demandas por reformas

no sistema de justiça que se encontram ocultas, latentes ou suprimidas” (objetivo do

grupo 4). Em ambos os casos, trata-se de observar, com as lentes da teoria da

constituição e da sociologia do direito, o complexo movimento de reconstrução da

identidade constitucional brasileira a partir da promulgação e vigência da Constituição

da República de 1988, com o olhar direcionado para a tradução desta identidade (e,

portanto, sua transformação) pelas instituições encarregadas da aplicação do direito. Um

desdobramento desse processo consistiu na observação das manifestações da atividade

institucional e de suas insuficiências. Daí a abertura maior do campo de pesquisa, para

abarcar os movimentos alternativos de resolução de conflitos e a repercussão nos meios

de comunicação da atividade jurisdicional.

Em comum acordo entre os grupos de pesquisa, decidiu-se então pela

concentração, num documento integrado, dos resultados das investigações promovidas

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pelos grupos 3 e 4 da equipe encarregada de construir as possibilidades de observação

que se abrem ao trabalho futuro do Observatório Permanente da Justiça Brasileira.

Passa-se, agora, à apresentação dos resultados da pesquisa.

No caso do Brasil, o percurso em direção a uma ordem constitucional

democrática foi acidentado, assimétrico, repleto de intercorrências. Impõe-se, portanto,

contribuir para a construção de uma cultura constitucional, fomentando uma arena de

debates própria para a defesa e construção de posições interpretativas inclusivas

vinculadas às mais diversas lutas por reconhecimento.

A invenção democrática e a construção constitucional estão, contudo, sempre em

seu início. Assim, partimos da pressuposição de que os caminhos da sociedade, da

política e do direito incluem, necessariamente, a interlocução constante, aberta e livre

entre as organizações formais e a sociedade civil. Entende-se, portanto, que a atuação

dos organismos tradicionais de circulação do poder político – em especial, o Judiciário –

só pode ser compreendida, analisada e criticada em um contexto mais abrangente. Trata-

se, então, de uma dimensão ampliada de observação, que lança seu olhar sobre as trocas

comunicativas que ocorrem entre o Poder Judiciário e a sociedade civil. A partir desse

olhar, pode surgir um panorama muito mais diversificado e intrincado que revelará

movimentos de reivindicações de direitos, estratégias de contenção e possibilidades de

atuação dos sujeitos sociais no mundo contemporâneo.

Tendo em vista que a análise de acesso à justiça dos presentes grupos perpassa a

questão da desconstitucionalização, as referências teóricas da pesquisa não poderiam ser

outras senão àquelas voltadas para a teoria constitucional. Nesse sentido, as principais

fontes da pesquisa são as teorias tecidas a partir de um viés sociológico por Niklas

Luhmann, Jürgen Habermas e Boaventura de Sousa Santos.

A tese principal de Niklas Luhmann, a esse respeito, é no sentido de que a

constituição surge como um fundamental mecanismo de acoplamento estrutural entre os

sistemas do direito e da política. Ela representa, na verdade, uma reação à radical

separação entre os dois sistemas, que só é possível com a diferenciação funcional da

sociedade moderna. Porém, para que se compreenda o papel da constituição nesse novo

quadro social, é fundamental lembrar a feição dual do texto constitucional: a constituição

é, ao mesmo tempo, um documento de tipo fundamental, que contempla as principais

opções políticas de um dado Estado – consagra direitos fundamentais, disciplina a

relação entre os vários ramos do governo, estipula procedimentos diferenciados para sua

própria modificação – e uma norma de tipo legal – dela se extraem direitos, sua aplicação

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pode ser postulada nas cortes de justiça e algumas regras de interpretação são passíveis

de enunciação a partir do texto constitucional. Nas palavras de Luhmann, isso faz com

que a constituição se transforme num texto autológico, que “se propõe ser parte do

direito”.

Se esta proposta de trabalho deve dispor de um marco teórico que não se deixa

vincular a um único ponto de vista disciplinar, mas, pelo contrário, permanece aberto a

diferentes objetivos teóricos, a diferentes papéis sociais e a diferentes atitudes

pragmáticas de pesquisa a fim de que uma abordagem normativa não perca o seu

contato com a realidade, nem uma abordagem objetiva exclua qualquer aspecto

normativo então deve necessariamente valer-se dos preceitos metodológicos contidos

na Teoria Discursiva do Direito e da Democracia, formulada por Jürgen Habermas. Pois,

a partir dos postulados teóricos e metodológicos de Habermas é possível sustentar que

partindo de práticas comunicativas cotidianas vivenciadas no Estado Democrático de

Direito o qual considera os pressupostos comunicativos e as condições procedimentais

da formação de opinião e vontade democráticas como fonte de legitimidade pode-se

investigar tanto as pretensões de “justiça” que radicam nas demandas populares por

acesso à Justiça (reduzidas forçosamente ao Judiciário) quanto a adequação destas

demandas à Constituição.

Ademais, tendo em vista o recorte temático alusivo ao tema do acesso à justiça,

articulando a questão da desconstitucionalização com o do acesso, principalmente no que

tange ao controle de constitucionalidade, buscar-se-á verificar os meios de participação

social no processo de realização constitucional de dois modelos democráticos, o

representativo institucional-procedimentalista e o participativo, social-instituinte, no

sentido conferido por Boaventura de Sousa Santos. A verificação da democratização do

acesso à justiça far-se-á, neste ponto, por meio da análise das ações e iniciativas

populares que têm lugar constitucional: ações populares, mandado de injunção, omissão

constitucional e inúmeros outros instrumentos em construção.

O trabalho apresentado a seguir desenvolveu-se a partir desses recortes.

Conforme adiantado no relatório preliminar, a investigação proposta supõe um

redimensionamento do próprio conceito de acesso à justiça. Se, por um lado, reformas

constitucionais e legislativas têm tornado possível o acesso de cidadãos antes excluídos à

assistência estatal diante de situações-conflito, por outro, é evidente que não podemos

considerar “mais decisões judiciais” ou simplesmente “mais sentenças” como “mais

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justiça”. Ainda que o oferecimento de uma prestação jurisdicional célere e em

conformidade com a Constituição e as leis seja central no regime democrático, devemos

manter presente que “justiça” não é um bem que possa, simplesmente, ser entregue pelo

Estado aos administrados. O “acesso à justiça” extrapola em muito a problemática

jurisdicional, como procuramos sustentar ao longo de todo o trabalho.

O eixo para pensar criticamente a questão do “acesso à justiça” envolve a noção

de cidadania e o conceito de constituição. Em uma sociedade complexa, é impossível

localizar o “justo” em um conjunto de valores compartilhados por todos em razão de

uma identidade nacional autêntica. A marca das sociedades contemporâneas é a

diferença, a pluralidade. A justiça deixa de ser uma fórmula ou idéia estática para

assumir-se enquanto projeto permanentemente inacabado; nas palavras de Jacques

Derrida, como um “apelo sempre ferido”. Se a justiça deve ser construída, e não

revelada pelas instituições estatais, a questão central colocada pelo problema do “acesso

à justiça” diz respeito às condições nas quais é possível interferir nos processos sociais e

institucionais que, concretamente, respondem “o que é justo para nós?”. O conceito de

cidadania liga-se precisamente à garantia e promoção da possibilidade de participação

nesses processos, que são sempre mediados por compreensões da Constituição e

representados concretamente pela construção social de novos direitos, pela formulação

de políticas públicas, pela elaboração de medidas legislativas, pelo exercício da função

jurisdicional. Em todas as suas múltiplas facetas, o direito se torna reflexivo, isto é,

passa a problematizar as próprias condições de sua produção.

Essas observações têm um impacto decisivo sobre as relações entre direito e

justiça e, portanto, sobre o problema da legitimidade do direito. Na medida em que a

própria noção de justo se torna problemática e artificial, o confronto entre direito e

justiça não pode mais ser visto como procedimento apto a distinguir entre o direito

legítimo e o direito ilegítimo. Esse papel cabe, agora, ao próprio direito, mais

especificamente, à Constituição. O direito moderno produz sua própria legitimidade na

medida em que dá curso a um processo democrático de debate acerca do significado que

deve ser concretamente atribuído aos seus princípios constitutivos, a igualdade e a

liberdade. Esse processo, contudo, não existe por si próprio, não está sequer

minimamente garantido. Ele precisa ser construído a todo momento.

O caráter democrático da concretização da Constituição requer que a participação

de todos esteja protegida não só do arbítrio estatal, mas também da espoliação pela

própria sociedade (como bem ilustrado, por exemplo, pelo trabalho escravo e pelo abuso

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sexual de crianças e adolescentes). Esse é o sentido dos direitos fundamentais. Eles

atuam como condições possibilitadoras de um autogoverno dos cidadãos, conectando

autonomia pública e privada. Entretanto, os direitos fundamentais, como qualquer outra

norma jurídica, possuem um caráter aberto e seu significado encontra-se continuamente

em jogo onde quer que haja uma decisão a ser tomada sobre qual direito deve regular

uma situação determinada.

Os direitos fundamentais – afirmação de liberdade e igualdade – são hoje

constitutivos da própria forma do direito (que não é mais uma “casca vazia”, capaz de

comportar qualquer ordem baseada na legalidade, como no modelo kelseniano), que

guarda uma conexão interna com a Democracia. Entretanto, a forma de densificação

desses direitos depende da compreensão que se adote em determinado local do espaço e

do tempo e das formas de vida específicas. Mas diante da definição sempre problemática

do conteúdo dos direitos que os cidadãos se atribuem reciprocamente numa comunidade,

o apelo a uma perspectiva mais ampla de justificação, que remeta para além de um

determinado ethos é constitutivo do processo de luta por reconhecimento de direitos. O

aspecto contra-majoritário dos direitos fundamentais reside exatamente na sua pretensão

universalizante – naquilo que deve ser garantido a cada cidadão independentemente dos

valores compartilhados pela eventual maioria – possibilitando assim que a tensão entre

argumentos de apelo maioritário e minoritário operem continuamente, de forma que as

posturas comunitárias ético-políticas não percam sua reflexividade e, portanto, seus

potenciais inclusivos e emancipatórios.

Neste sentido, a institucionalidade pode ser visualizada, simultaneamente, em sua

possibilidade emancipatória e nas dimensões de risco que pretensões juridicamente

abusivas podem abrigar, em especial aquelas que se utilizem da argumentação do direito

contra a normatividade dos próprios direitos fundamentais abrigados

constitucionalmente. Aqui, há sem dúvida uma perspectiva de que o debate legislativo é

a “porta de entrada” institucional dos argumentos de formação do direito, mas de modo

algum representa o término desta trajetória de afirmação de liberdade e de igualdade.

Deste modo, se um texto de lei pode representar uma grande conquista na afirmação de

direitos fundamentais, esta afirmação não está isenta dos riscos de dissolução por uma

prática jurisdicional que lhe seja corrosiva e que lhe reduza ou extinga a força normativa

ou mesmo que lhe atribua sentidos que neguem a liberdade e a igualdade que ele

afirmava. Por este motivo, dentre as observações do acesso à justiça, a perspectiva

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emancipatória que este acesso deve conter não pode prescindir da análise das práticas

institucionais.

Os objetivos que couberam aos grupos, quais sejam, “estruturar um lócus de

interlocução com as diversas vertentes e movimentos enunciadores de discursos de

interpretação e realização da constituição brasileira” e “identificar estratégias de

desconstitucionalização de direitos”, guardam importância central para o debate acerca

do sentido da expressão “acesso à justiça”. Explicando melhor: nas condições acima

descritas, o acesso à justiça equivale à promoção da cidadania num contexto de plena

vigência de uma Constituição democrática, pluralista e aberta à reconstrução no futuro.

A promoção da cidadania também exige constante reflexão acerca do sentido e extensão

dos direitos fundamentais, os quais possibilitam, na prática, o sucesso do

empreendimento democrático. Não obstante, o direito está fadado a decidir. E a decisão,

venha de onde vier, ainda que produzida no seio de um procedimento democrático, é

sempre uma leitura condicionada por limitações de tempo e de conhecimento. Mesmo

sendo lícito exigir do aplicador do direito a solução correta para os problemas postos sob

sua consideração, é fundamental recordar que, do ponto de vista sociológico, sua decisão

é sempre falível. Ao mesmo tempo em que joga luz sobre determinados aspectos, oculta

outros. A operação do sistema do direito produz, inevitavelmente, seleções, recortes,

exclusões.

Pensar sobre “estratégias de desconstitucionalização” é lidar com esse problema.

É investigar como essas seleções e exclusões afetam o sentido e a extensão dos direitos

fundamentais e avaliar se elas podem ser – e se estão sendo – tematizadas de forma

aberta e transparente. Não se trata, portanto, de exorcizar o risco de uma seletividade

“perversa”, mas de instituir um esforço de observação crítica desse processo, torná-lo

visível, dissecar seus pressupostos, permitir ver o que se esconde por trás das intenções

declaradas, identificar o fio histórico que liga a declaração formal com a intenção de

restringir o alcance de determinadas conquistas constitucionais.

Para tanto, neste esforço de pesquisa exploratório, foram destacados direitos

estabelecidos no texto constitucional – na conformidade do processo de

constitucionalismo democrático de que foram protagonistas vários países da América

Latina desde os fins da década de 1980 – que assumem a característica de direitos

fundamentais.

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A pesquisa propõe, então, uma visão crítica e problematizante acerca de

determinados direitos fundamentais e sua tradução institucional. Podemos enumerar

esses direitos, que correspondem às observações realizadas pelos grupos:

1. Direito ao devido processo legislativo – veiculada numa perspectiva

abrangente, a pesquisa envolve a recuperação do elemento democrático na

Constituição da República e na atividade legislativa, o que significará uma

discussão acerca da idéia de controle dos atos interna corporis do Poder

Legislativo e sua assimilação pela jurisprudência;

2. Direito à participação social no processo judicial – analisado sob a perspectiva

de desvelamento dos pressupostos ocultos ou latentes que residem nas escolhas

promovidas, pela jurisdição constitucional, em relação aos atores sociais

habilitados a promover o debate, tanto no controle concentrado quanto no

controle difuso;

3. Direito ao devido processo legal – visto, na pesquisa, como possibilidade de

submeter ao Poder Judiciário temas constitucionais sobre o significado dos

dispositivos constitucionais, com formas transparentes, abertas e públicas de

seleção de casos a serem submetidos à jurisdição constitucional;

4. Direito à prestação jurisdicional efetiva e independente – o que implica a

crítica e a recusa à formulação de exigências procedimentais voltadas ao

esvaziamento de determinados preceitos constitucionais e uma prestação

jurisdicional livre das pressões por decisões baseadas em conseqüências no

campo da política e da economia;

5. Direito de greve – compreendido, na pesquisa, como o direito das organizações

sindicais à apreciação dos conflitos coletivos originados pelo exercício do direito

de greve, o que exige uma observação da orientação dos órgãos da Justiça do

Trabalho, da Justiça Comum, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo

Tribunal Federal acerca do significado do direito de greve numa constituição

democrática;

6. Direito à liberdade de crença – afirmado como corolário da liberdade que

decorre da adoção, pelo ordenamento constitucional brasileiro, do modelo laico

de Estado, ou seja, sem a interferência, no debate constitucional, de argumentos

de autoridade vinculados a concepções transcendentes de mundo;

7. Direito a ver resolvidas disputas de forma democrática e com respeito à

autonomia da vontade – o que pressupõe uma reflexão e uma proposição acerca

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dos meios extrajudiciais de solução de conflitos, baseados numa perspectiva

emancipatória e voltada à concretização, no âmbito social, com mediação

institucional, dos direitos fundamentais;

8. Direito à informação – relativo às atividades do Judiciário, suas formas de

decisão, seus ritos próprios e suas práticas institucionais, o que deve ocorrer por

meio da observação das representações do Judiciário na mídia);.

A cada um dos pontos acima enumerados corresponde um texto que representa

uma pesquisa coletiva, fundamentada e aberta ao debate. A estrutura dos artigos

compreende a explicitação do problema, sua discussão e, por fim, a apresentação de

propostas para as futuras atividades do Observatório Permanente da Justiça no Brasil.

Esse primeiro esforço testemunha a fecundidade da pesquisa proposta e,

principalmente, aponta para a conveniência de institucionalizá-la, o que contribuiria para

desvelar de que forma uma constituição democrática, inserida nos caminhos históricos

do constitucionalismo moderno e que representa uma mudança significativa nas bases da

normatividade, com nítido conteúdo democratizante, inclusivo e participativo confronta

estruturas de argumentação e decisão que persistem a replicar uma semântica autoritária,

excludente e que reitera a denegação do acesso à justiça, nos termos acima articulados.

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Referências

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mudança: reflexões sobre o conceito de constituição. Manuscrito inédito.

CORSI, Giancarlo. Sociologia da Constituição. Trad. Juliana N. Magalhães.

Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.

Nº 39. Belo Horizonte: UFMG, janeiro-junho de 2001.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre facticidade e validade. Trad.

Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. V.1.

HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro - estudos de teoria política. São

Paulo: Edições Loyola, 2002.

PAIXÃO, Cristiano. BIGLIAZZI, Renato. História constitucional inglesa e

norte-americana: do surgimento à estabilização da forma constitucional.

Brasília: Editora da UnB e FINATEC, 2007 (no prelo).

SANTOS, Boaventura de Sousa. Constitucionalismos perversos. Constituição &

Democracia . Nº 4. Brasília, maio de 2006.

VERSCHRAEGEN, Gert. Human Rights and Modern Society: A Sociological

Analysis from the Perspective of Systems Theory. Journal of Law and Society.

Vol. 29, nº 2. Oxford and Malden: Blackwell, junho de 2002.

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CONTROLE JUDICIAL DO PROCESSO LEGISLATIVO: EM DEFESA DE

UMA CIDADANIA ATIVA

Leonardo A. de Andrade Barbosa*

DEMOCRACIA E DIREITO AO DEVIDO PROCESSO LEGISLATIVO

Em junho de 2007, no Ministério da Justiça, Boaventura de Sousa Santos

concluiu sua palestra sobre o que chamou de “revolução democrática da justiça”

sugerindo que “sem direitos de cidadania efetivos a democracia é uma ditadura mal

disfarçada”92. Essa observação ressalta que democracias não são simplesmente regimes

políticos nos quais a maioria detém o poder. Uma decisão tomada pela maioria num

contexto social onde não há garantias para o exercício da livre manifestação da opinião,

para o acesso amplo à informação, para a liberdade de associação, e assim por diante,

não tem valor democrático. Sem o respaldo de direitos fundamentais, a democracia é

privada de todo seu potencial emancipatório e vice-versa.

O direito ao devido processo legislativo, tema deste texto, guarda uma conexão

estreita com a garantia do regime democrático, na medida em que postula que o Estado

só pode editar leis mediante a estrita observância das normas constitucionais que

regulam o processo legislativo. Tais normas, mais que organizar procedimentos internos

dos órgãos legislativos ou assegurar determinadas prerrogativas aos seus membros,

visam garantir a possibilidade de ampla participação da sociedade na definição das leis

que nos regem.

O que devemos entender, porém, por ampla participação? Numa democracia

representativa, a participação dos cidadãos no processo legislativo não se dá, em regra,

diretamente93, mas por meio da outorga de mandatos populares a políticos profissionais.

O fato de os representantes populares ao Poder Legislativo serem eleitos não afasta a

possibilidade de que concorram para uma privatização do espaço público por interesses

particulares, sejam eles de financiadores de campanha, sejam do próprio governo. As

eleições legislativas não resultam num “cheque em branco” para os eleitos, isto é, não

resolvem de uma vez por todas o problema da legitimidade do exercício da atividade

parlamentar. Seu propósito central é garantir a formação de um órgão representativo,

* Mestre e doutorando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília. Pesquisador do grupo “Sociedade, Tempo e Direito” (UnB). Analista legislativo da Câmara dos Deputados. 92 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez, 2007. p. 90. 93 Exceção para a iniciativa popular de leis e, eventualmente, plebiscitos e referendos, previstos no art. 14 da Constituição Federal.

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isto é, de um espaço no qual as diversas perspectivas de mundo presentes na sociedade

possam ter voz, ainda que minoritárias.

Esse espaço institucionalizado, entretanto, só faz sentido se confrontado com

uma esfera pública politicamente ativa, progressivamente construída e reconstruída em

situações cotidianas mais ou menos organizadas (conversas em bares e cafés, encontros

na rua, o público que freqüenta o teatro, o cinema ou concertos de Rock, reuniões de

partidos, encontros nas associações de bairro ou congressos de igrejas, etc.), mediada por

uma “esfera pública abstrata”, produzida pelos meios de comunicação (a imprensa e os

respectivos leitores, ouvintes e espectadores)94. Um parlamento que não deseja ou que

não é capaz de se conectar aos problemas, informações e argumentos que circulam na

opinião pública enfraquece a própria base de seu funcionamento legítimo.

A relação entre parlamento e esfera pública é de interdependência, de influência

recíproca. Se, por um lado, os órgãos legislativos não podem se alhear frente à formação

da opinião pública em circuitos informais, por outro, os atores do processo legislativo

não são marionetes comandados por uma suposta vontade geral hipotética, una e

coerente. Não é verossímil, em sociedades complexas, conceber o povo como uma

entidade. Pelo contrário, o povo é produtor e, ao mesmo tempo, produto da comunicação

sobre as leis que nos regem – não é um dado da realidade, mas uma identidade em

permanente construção95. Pressupomos um povo no momento em que esse mesmo povo

se dá leis, mas o povo será, também, forjado pelas leis que dá a si próprio96.

A soberania popular, portanto, não se afirma na mera prevalência dos valores e

preferências de uma maioria circunstancial, mas na abertura do processo democrático,

que, apoiado em direitos fundamentais, possibilita simultaneamente a preservação da

diferença (coexistência de diferentes visões de mundo, diversos valores) e a crítica à

transformação da diferença em desigualdade, seja para privilegiar, seja para excluir

determinados segmentos da sociedade.

94 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. II. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 107. 95 ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Tradução: Menelick de Carvalho Netto. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. 96 Conforme a brilhante intuição de Derrida, analisando a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América: “Não havia, por direito, o subscritor antes do texto da Delcaração, o qual permanece, ele próprio, o produtor e garantidor de sua própria assinatura”. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que a Declaração pressupunha a existência do povo americano, ela também o constituía enquanto tal. DERRIDA, Jacques. Declarations of independence. Tradução: Tom Keenan e Tom Pepper. In: DERRIDA, Jacques. Negotiations: interventions and interviews – 1971-2001. Princeton: Princeton University Press, 2002. p. 50.

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O direito ao devido processo legislativo busca, em sua dimensão principal,

assegurar essa conexão entre o debate público e o debate parlamentar, isto é, organizar o

procedimento de formação da vontade política (produção das leis) de acordo com regras

que garantam uma ampla participação da sociedade. Busca conectar potenciais de poder

produzidos nas interações comunicativas livres que ocorrem na esfera pública com um

processo de decisão institucionalizado. As duas pontas do processo se retro-alimentam.

O devido processo legislativo implica a publicidade e transparência dos atos que o

compõe, de forma a reduzir as possibilidades de que lobbies financiados pelos poderes

estabelecidos (sejam eles oriundos do mercado, do Estado ou da sociedade civil) se

imponham sem reflexão e crítica pública, isto é, sem justificar devidamente as

pretensões que estão a defender.

POR QUE É IMPORTANTE GARANTIR O DIREITO AO DEVIDO PROCESSO

LEGISLATIVO?

O princípio da legalidade encontra-se entre as mais básicas garantias

constitucionais de um Estado de direito. De acordo com ele, somente em virtude de lei

somos obrigados a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa. Em outras palavras, somos

livres para escolher de que forma nos comportar, a menos que uma lei diga que devemos

ou não devemos agir de uma determinada maneira. Chamamos este espaço de liberdade

individual, delimitado pela lei, de autonomia privada. A lei, entretanto, não é um mero

limite à liberdade individual instituído em prol da consecução de objetivos sociais.

Reduzi-la a tanto é, ao mesmo tempo, errado e anacrônico.

Errado, porque as relações entre lei e liberdade são muito mais complexas e

polêmicas. O direito constitucional e a filosofia política até hoje enfrentam dificuldades

quando questionados, por exemplo, sobre em que medida é necessário recorrer à lei para

promover uma organização social justa – certamente a lei não é capaz de promovê-la por

si só – ou, ainda, em que medida a maioria pode impor sua vontade a minorias ou a

indivíduos isolados. Anacrônico, porque no Estado democrático de direito a lei não é um

limite formal à liberdade individual. As leis que nos regem são, elas próprias, uma

manifestação da nossa vontade. São o produto da expressão livre daqueles que se

submetem aos seus comandos. A isso chamamos autonomia pública.

Não é difícil ver que há uma relação estreita entre autonomia pública e

autonomia privada. Se a lei fosse uma mera imposição externa, absolutamente

desconectada de um processo público do qual podemos participar de diversas formas, as

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restrições que ela impõe à nossa liberdade, bens e direitos seriam percebidas, em geral,

como arbitrariedades. Por outro lado, se as instituições públicas e a sociedade civil

forem capazes de cultivar um processo político que torna crível nossa condição de co-

autores das leis vigentes, as possibilidades de aplicação democrática e legítima do direito

se vêem fortalecidas. Por essa razão, autonomia privada requer autonomia pública e

vice-versa.

O papel do processo legislativo é, portanto, tornar plausível a idéia de que os

cidadãos são co-autores das leis vigentes. Por isso, a garantia das normas que o regem

deve ser levada a sério. O processo legislativo não é meramente um direito corporativo,

destinado a regular relações entre parlamentares e órgãos legislativos. É fato que as

normas internas dos parlamentos organizam no tempo os atos destinados à formação da

lei, criam competências, instituem prerrogativas e assim por diante. Entretanto, tudo o

que se passa no parlamento ocorre em função de um público que suportará as

conseqüências da aplicação das leis em discussão. Se esse público não sabe de que

forma e sob quais condições o debate avançará, tampouco saberá em que circunstâncias

e de que modo pode buscar exercer influência sobre a formação da decisão parlamentar.

Em síntese: as normas de processo legislativo regulam quem pode praticar certos

atos e quando; o momento em que alterações às propostas discutidas podem ser

introduzidas e de que maneira isso pode ser feito; quando e como argumentos pró e

contra podem ser apresentados; quando e como se dará a votação; que publicidade deve

ser dada às matérias discutidas e com qual antecedência; quanto tempo deve transcorrer

entre um ato e outro e assim por diante. Se essas normas, por um lado, tornam possível o

funcionamento institucional do Legislativo, por outro esclarecem ao público de que

maneira a deliberação ocorrerá e, portanto, como ele pode interferir. Essa interferência

se concretiza de maneiras muito diversas e, não raro, associadas: manifestações na

imprensa, mobilizações populares e comunitárias, audiências com parlamentares ou

outros órgãos legislativos, promoção de seminários, captação de apoio político de atores

diversos, e assim por diante. Todas essas estratégias apostam seu sucesso na

intensificação do debate público sobre os temas em jogo, elevando a quantidade de

informações pró e contra a proposta debatida.

As regras de processo legislativo permitem, ainda, negociações. A obstrução

parlamentar, os pedidos de verificação de votação e o direito à apresentação de

destaques para votação em separado são instrumentos utilizados pela minoria para forçar

a maioria a ceder em alguns pontos. Esses recursos contribuem para (ainda que não

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garantam por si sós) decisões mais equilibradas, pois impedem que uma maioria se

imponha sem esclarecer adequadamente suas razões ou sem assumir responsabilidade

política pela decisão tomada.

A conexão entre debate público e deliberação parlamentar é, entretanto, frágil.

Ela pode ser rompida, e recorrentemente o é, por lobbies corporativos poderosos, que

não estão interessados em tornar públicos os motivos pelos quais defendem sua agenda.

Ancorados no poder econômico ou no próprio governo, esses lobbies procuram impor-se

contra o debate público, infantilizando-o. As políticas e medidas legislativas que

defendem são sempre urgentes e imperativas. Rejeitá-las equivale a comprometer a

“governabilidade”, colocar em risco a credibilidade das instituições, desestabilizar a

economia, gerar desconfiança no mercado.

A edição abusiva de medidas provisórias é hoje a forma mais conhecida e eficaz

de cerceamento do debate público sobre as leis que nos regem. Ao exíguo prazo de

votação, soma-se o fato de que as medidas são apreciadas de maneira atabalhoada, com

violação a várias normas regimentais do Congresso Nacional. Em geral, chegam a

Plenário com relatórios preparados às vésperas ou mesmo no momento da votação. Não

raro, retornam à Câmara dos Deputados, após passar pelo Senado, com um grande

número de emendas “contrabandeadas”: na gíria legislativa, regras novas, pouco ou nada

relacionadas ao tema da medida provisória, que acabam sendo convertidas em lei em

prazos reduzidíssimos (às vezes, um punhado de dias). O apelido justifica-se, ainda, pelo

fato de que a prática, ainda que popular, é contrária ao direito. O regimento da Câmara

(art. 100, § 3º e art. 125), o regimento do Senado (art. 230, I) e o regulamento da

tramitação de medidas provisórias vigente no Congresso (art. 4º, § 4º) proíbem emendas

que tratam de matéria estranha à regulada na proposição principal.

Um bom exemplo desse expediente é fornecido pela tramitação da Medida

Provisória nº 252, de 2005. A MP dispunha sobre benefícios fiscais a determinados

setores produtivos. Durante sua tramitação, entretanto, o governo “contrabandeou” uma

emenda do Senado para a Câmara com o objetivo de se livrar das chamadas “requisições

de pequeno valor”. As requisições, conhecidas pela sigla RPV, são ordens emitidas pelos

Juizados Especiais federais determinando o pagamento de ações judiciais de menor

valor, nas quais a União foi derrotada. Essas ações, que normalmente têm a ver com

benefícios do sistema de Seguridade Social (e, portanto, versam sob recursos

indispensáveis à sobrevivência do cidadão que recorre à justiça), funcionam como

válvula de escape: enquanto na justiça comum o INSS, ainda que derrotado, é capaz de

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adiar por anos o pagamento de sua dívida, nos juizados especiais o pagamento ocorre em

até dois meses.

O aumento significativo do impacto das RPV’s no orçamento da União levou o

governo a propor várias restrições ao pagamento das requisições. A mudança das regras

foi aprovada no Senado, juntamente com outras duas dezenas de emendas, em 5 de

outubro de 2005, uma quarta-feira. A Câmara tinha até o dia 13, quinta-feira, para

concluir a apreciação da matéria. Certamente, o fato de as RPV’s serem vistas por

grande parte da sociedade e, em especial, dos operadores do direito, como um avanço

importante na garantia de direitos sociais foi decisivo para a definição da estratégia do

governo: procurar aprovar a medida chamando o mínimo possível de atenção.

A repercussão, entretanto, foi amplamente desfavorável à emenda. Os juízes

federais acusaram o governo de “agir na calada da noite” e o Conselho Nacional de

Justiça publicou nota oficial repudiando a alteração na sistemática de pagamento das

RPV’s. O governo ainda pressionou o Congresso, avisando que os benefícios concedidos

a vários setores produtivos pelo texto original da medida provisória só seriam

viabilizados se a emenda fosse aprovada. Nada disso adiantou. O prazo de vigência da

MP expirou sem que ela fosse apreciada, mas o episódio revelou de modo exemplar

como o desrespeito ao processo legislativo pode funcionar em detrimento do debate

público e transparente das leis.

Esse tipo de manipulação e privatização da atividade parlamentar, seja pelo

governo, seja por agentes econômicos, enfraquece os vínculos entre o processo

legislativo e esfera pública. Há quem pense, entretanto, que a preservação desses

vínculos é dispensável ou mesmo indesejável. Aqueles que defendem essa idéia alegam

que: a) a legitimação das decisões tomadas por uma legislatura resolve-se com a eleição

dos parlamentares; b) a democracia representativa supõe a especialização do debate e,

conseqüentemente, seu fechamento nos órgãos institucionais do Legislativo; c) o público

não tem interesse em debater as questões maçantes com as quais a legislatura se depara

ao aprovar leis e, se tivesse, careceria de competência para tanto, uma vez que a

produção das leis teria se transformado contemporaneamente numa atividade

“técnica”97. Se isso fosse verdade, o devido processo legislativo não poderia jamais

reivindicar a condição de direito fundamental. Estaria reduzido a um problema para os

97 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 269.

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parlamentares e para o Congresso, que têm a responsabilidade política exclusiva pelas

decisões tomadas.

De acordo com essa perspectiva teórica, portanto, os cidadãos devem se abster do

debate parlamentar, seja porque já opinaram ao eleger representantes, seja porque não

possuem o saber técnico necessário para intervir. Os advogados desse tipo de abordagem

alegam que a ausência de uma cultura política que suscite a participação popular

corrobora que o povo não está interessado ou não é suficientemente preparado para a

tarefa de participar da produção das leis.

Essa é uma objeção que não merece crédito. Ela reflete uma postura ao mesmo

tempo cínica e elitista, apoiada sob o argumento conveniente de que o “povo é assim

mesmo”. Oliveira Vianna, um dos intelectuais conservadores mais influentes da história

brasileira, gostava de repetir que devíamos abandonar a “vã expectativa de mudar de

natureza a golpes de leis ou de Constituições”98. O povo, entretanto, “não é um dado

histórico naturalizado e ontologizado, é um problema, não uma solução”99. Podemos

aprender essa lição com a guerra civil norte-americana, com os difíceis processos de

unificação de Alemanha e Itália, com os conflitos regionais espanhóis, com o debate

sobre a necessidade de uma constituição para a Europa ou com a própria história

brasileira, repleta de momentos de crise federativa. Em que medida o povo está

representado na constituição e em que medida o povo representa a constituição em sua

prática cotidiana? Essa relação será sempre de tensão, nunca de superposição. O que

importa ressaltar é que, em grande medida, a institucionalização democrática por meio

da constituição catalisa o processo de debate público, esse fluxo de comunicação sobre

nossa comunidade política que aqui chamamos “povo”.

Negar efetividade às normas que regulam o processo legislativo é estimular a

autonomização do parlamento, é cercear o desenvolvimento desse “povo” que funciona

como instância crítica do poder instituído. É condená-lo à eterna tutela de uma elite

burocrática, especializada em reduzir questões políticas a “problemas técnicos”.

PROTEÇÃO JURISDICIONAL DO DIREITO AO DEVIDO PROCESSO

LEGISLATIVO

98 VIANNA, Oliveira. Instituições políticas brasileiras. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. p. 129. 99 CARVALHO NETTO, Menelick. A hermenêutica constitucional e os desafios postos aos direitos fundamentais. In: SAMPAIO, José Adércio L. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 152.

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O direito norte-americano criou a doutrina das questões políticas para designar

controvérsias a respeito das quais o Judiciário não deveria se pronunciar, reservando sua

solução aos poderes políticos. Essa doutrina e seus desenvolvimentos jurisprudenciais

exerceram alguma influência sobre o pensamento jurídico brasileiro. Rui Barbosa foi

responsável, entretanto, por firmar, desde logo, a idéia de que a doutrina das questões

políticas não poderia ser invocada para afastar da apreciação judicial a violação a

direitos individuais. Nessa hipótese, a interferência do Judiciário sobre o Legislativo ou

sobre o Executivo seria sempre legítima e conforme o princípio da independência e

harmonia entre os poderes.

Entre as matérias tratadas como questões políticas ao longo de nossa experiência

constitucional, figuram os chamados atos interna corporis praticados pelas Casas

Legislativas. A expressão interna corporis designa algo que é do exclusivo interesse de

um órgão, de sua “economia interna”, como alguns costumam dizer. Essa relativa

imunidade dos atos interna corporis é uma tradição que remonta ao direito parlamentar

inglês. Já em 1689, o Bill of Rights proclamava que “a liberdade de palavra e os debates

ou processos parlamentares não devem ser submetidos à acusação ou apreciação em

nenhum tribunal ou em qualquer outro lugar que não seja o próprio Parlamento”100. É

óbvio, entretanto, que essa tradição foi fundada num contexto histórico muito diferente

do nosso e, por essa razão, entre outras, não pode ser absolutizada. É possível que

algumas matérias tratadas na esfera parlamentar sejam reputadas como questões

internas, mas, certamente, a condução do processo legislativo num Estado democrático

de direito não pode estar entre elas.

O Supremo Tribunal Federal, entretanto, vem afirmando de forma recorrente que

a interpretação das normas dos regimentos internos das Casas Legislativas enquadra-se

entre as matérias insuscetíveis de apreciação judicial. Segundo a Corte, “o fundamento

regimental, por ser matéria interna corporis, só pode encontrar solução no âmbito do

Poder Legislativo, não ficando sujeito à apreciação do Poder Judiciário”101. De acordo

com a jurisprudência dominante, quando se trata de irregularidades no processo

legislativo, há que se fazer uma distinção entre o descumprimento de normas

regimentais das Casas Legislativas, quando temos uma questão interna corporis, na qual

o Judiciário não deve interferir, e a violação “direta” de uma norma constitucional,

100 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 857. 101 MS 22.183-DF, Rel. Min. Marco Aurélio (Diário da Justiça, 12.12.1997, p. 65569).

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hipótese na qual o controle judicial está autorizado. Em poucas palavras, a menos que

ocorra descumprimento de preceito expresso no texto constitucional, a violação do

devido processo legislativo não acarreta nenhuma conseqüência jurídica.

Nessa mesma linha, o STF entende que a legitimidade para reclamar

judicialmente a observância do processo legislativo é apenas do parlamentar. O tribunal

trata a questão como se estivesse diante de um “interesse particular e exclusivo dos

deputados e senadores”, e “jamais referida à produção da lei como afeta à cidadania em

geral”102.

A idéia de que, as normas de processo legislativo geram “direitos subjetivos”103

para os parlamentares é, no mínimo contra-intuitiva. Não que um deputado ou senador

esteja impedido de reivindicar o cumprimento do regimento interno da Casa a qual

pertence ou da Constituição. A questão é que, ao fazê-lo, ele não age no exercício de um

direito que lhe é próprio. Primeiro porque a regularidade do processo legislativo é

indisponível, isto é, a observância das normas regimentais e constitucionais que regulam

a matéria não é uma faculdade do parlamentar. Segundo, porque deputados e senadores

exercem mandato, isto é, representam interesses alheios por meio do exercício de

prerrogativas às quais, no exercício de suas funções, ele sequer pode renunciar. Em

suma, não se trata de um direito subjetivo.

Mas a questão é: quem tem direito a exigir que os procedimentos constitucionais

e regimentais sejam observados no momento de produção das leis? Apenas os

parlamentares? Aqueles que respondem afirmativamente à essa questão lembram o fato

de que normas internas do parlamento, por força do princípio da legalidade, não têm o

condão de gerar obrigações imponíveis a terceiros estranhos ao Poder Legislativo. Disso

não decorre, porém, que essas mesmas normas sejam incapazes de gerar direitos para

além dos muros do Congresso Nacional. Ainda que caiba ampla discussão sobre os

instrumentos processuais adequados, bem como sobre o momento em que tais

instrumentos podem ser manejados, é evidente que todo cidadão tem direito ao devido

processo legislativo.

E mais: a afirmação de tal direito pode ter como base tanto normas

constitucionais quanto normas regimentais. O ex-Ministro do STF, Sepúlveda Pertence,

durante um julgamento em que se debatia o processo de reforma constitucional, disse

102 CATTONI, Marcelo. Devido processo legislativo: uma justificação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000. p. 24. 103 MS 24.642-1–DF, Rel. Min. Carlos Velloso (Diário da Justiça, 18.6.2004, p. 45), entre outros.

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não se sentir autorizado a afirmar categoricamente que “da violação da norma regimental

não pode surgir jamais uma questão susceptível de solução jurisdicional”. O essencial,

para o ex-Ministro, seria “saber, seja qual for a norma jurídica invocada, se há, em tese,

direito subjetivo a proteger”104.

A distinção entre violação direta de norma constitucional e indireta (violação

reflexa, por meio de ofensa a normas regimentais), apesar de popular, é falaciosa. Pelo

entendimento jurisprudencial, uma violação à Constituição só é direta se puder ser

aferida sem necessidade de “exame prévio de norma infraconstitucional”. Uma violação

ao princípio do devido processo legal, portanto, nunca pode ser “direta” nesse sentido,

pois o princípio requer, exatamente, que a autoridade constituída comporte-se de acordo

com uma norma infraconstitucional, seja ela a lei, seja o Regimento Interno da Câmara

ou do Senado. Pelo entendimento vigente, o princípio só pode ser violado

“indiretamente”, o que levaria a impossibilidade de conhecer questões constitucionais

resultantes de seu descumprimento.

Essa, entretanto, não é – e nem poderia ser – a realidade dos órgãos de prestação

jurisdicional. A solução supostamente objetiva oferecida pelo critério “violação direta-

indireta” tem, tão-somente, permitido que o fundamento justificador da decisão de

interferir ou não no processo legislativo permaneça oculto. Explicando melhor: o critério

vale para determinadas hipóteses e não vale para outras. Vale, por exemplo, para afastar

o controle judicial do processo legislativo em sentido estrito, mas não vale

(corretamente, pensamos) quando se trata de atos praticados no curso de CPI’s e

processos por quebra de decoro parlamentar. Nesses casos os cidadãos e parlamentares

investigados têm obtido sucesso na imposição judicial do devido processo legal aos

órgãos legislativos, ainda que com base em violações “indiretas” da Constituição. Um

exemplo paradigmático é o MS nº 25.594-DF105 no qual deputados acusados de

envolvimento no esquema do “mensalão” anularam o encaminhamento de processos

disciplinares ao Conselho de Ética por parte da Mesa Diretora da Câmara com base no

desrespeito a uma norma aprovada pela própria Mesa, no exercício de competência

privativa para regulamentar o Regimento Interno106. Estamos falando, portanto, de uma

norma de hierarquia inferior à lei, isto é, de um mero regulamento administrativo.

104 MS 22.503-DF, Rel. Min. Marco Aurélio (Diário da Justiça, 6.6.1997). 105 Decisão do então Presidente do STF, Min. Nelson Jobim, deferindo cautelar em mandado de segurança. 106 Trata-se do Ato da Mesa nº 17, de 2003.

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Em tais casos o Tribunal justifica a interferência no Legislativo pela iminência de

violação a direitos fundamentais dos investigados. Ora, da mesma forma que a decisão

arbitrária de uma CPI fere direitos fundamentais do cidadão sob investigação, a lei

aprovada com desrespeito às normas que regem o processo legislativo fere o direito

fundamental de todos os cidadãos ao devido processo legislativo. A lei é geral e abstrata,

vale indistintamente para qualquer um. É difícil compreender porque o conjunto dos

cidadãos não pode usufruir da mesma proteção que o Tribunal garante aos políticos

investigados por crimes ou por quebra de decoro parlamentar. O fundamento invocado

pelo STF para justificar o controle sobre as CPI’s e os Conselhos de Ética desqualifica,

por si só, as razões que o próprio tribunal apresenta para negar-se a garantir o devido

processo legislativo.

A desconfiança acerca do uso estratégico e pouco transparente da distinção entre

“violação direta” e “violação indireta” aumenta quando analisamos episódios em que, a

despeito do evidente descumprimento do texto constitucional, o Tribunal prefere uma

postura permissiva. Um exemplo recente envolve a apreciação de vetos pelo Poder

Legislativo. De acordo com a Constituição, se o Presidente da República veta total ou

parcialmente um projeto de lei, ele deve devolvê-lo ao Congresso, que tem a palavra

final sobre a matéria. Segundo os §§ 4º e 6º do artigo 66 da Constituição, uma vez

recebido o veto, o Congresso deve deliberar sobre ele no prazo de 30 dias, seja para

mantê-lo, seja para derrubá-lo. Esgotado esse prazo sem deliberação, o veto passaria a

figurar necessariamente na pauta do Congresso, “sobrestadas as demais proposições, até

sua votação final”. Em outras palavras, antes de votar o veto, não se pode votar mais

nada.

Pois bem. O Congresso foi convocado para uma reunião em 11 de abril de 2006,

e, em sua pauta, constava a votação do projeto de lei de diretrizes orçamentárias. Havia,

entretanto, centenas de vetos pendentes de deliberação por mais de 30 dias, sendo que

alguns se encontravam há anos aguardando decisão do Congresso sobre sua manutenção

ou rejeição. Essa situação (que se perpetua até hoje) é fruto de uma interpretação no

mínimo questionável do regimento comum do Congresso Nacional, que permite, contra

a determinação constitucional, que os vetos permaneçam por anos a fio pendentes de

deliberação, numa espécie de limbo jurídico107. De acordo com a Constituição, portanto,

107 Nesse sentido, conferir a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.719, ajuizada pelo PSOL.

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o projeto de lei de diretrizes orçamentárias somente poderia ser votado após a apreciação

dos vetos pendentes.

Um mandado de segurança foi impetrado contra o ato do Presidente do

Congresso que fixou a pauta da sessão desconsiderando os vetos pendentes de

apreciação108. O Ministro Sepúlveda Pertence, entretanto, negou o pedido. De acordo

com o Ministro, “o sobrestamento de todas as demais proposições legislativas,

determinado pelo art. 66, § 6º, da Constituição, pressupõe a inclusão na ordem do dia

das mensagens presidenciais de veto não apreciadas no prazo [algo que, é bom que se

diga, apenas o Presidente do Congresso possui competência para fazer]”. Em outras

palavras, de acordo com esse raciocínio, o Presidente do Congresso pode impedir por ato

próprio a apreciação de um veto aposto pelo Presidente da República a um projeto de lei

aprovado pelo Congresso, impossibilitando a conclusão do processo legislativo. Para

isso, basta que ele nunca coloque em pauta esse veto. A interpretação do STF subverte a

Constituição Federal, pois concede poder soberano ao Presidente do Congresso para

tornar definitivo o pronunciamento do Presidente da República sobre um projeto de lei,

quando, nesse tipo de matéria, a última palavra é do Poder Legislativo.

É óbvio que, havendo vetos pendentes de deliberação por mais de trinta dias, o

sobrestamento de todas as proposições legislativas não pressupõe que o Presidente do

Congresso tenha incluído os vetos em pauta. Pelo contrário, a Constituição obriga o

Presidente do Congresso a incluí-los na pauta109. Pela interpretação do STF, o

descumprimento, por parte do Presidente do Congresso, de sua obrigação constitucional

de colocar em pauta o veto, não é sancionado, mas premiado. Ao descumprir seu dever

constitucional, o Presidente do Congresso ganha a faculdade de estabelecer a pauta que

bem entender, ao arrepio da prioridade constitucional assegurada aos vetos.

Os exemplos acima problematizam os critérios adotados pelo STF para decidir

acerca de quando interferir ou não do processo legislativo. Antes de concluir, entretanto,

é importante ressaltar que a crítica não se dirige ao caráter seletivo da atuação do

Tribunal. Parece claro que o ofício de qualquer corte envolve necessariamente

seletividade, isto é, definição de prioridades, formulação de uma agenda. O problema

surge quando os critérios utilizados para decidir o que é ou não relevante são pouco

108 Mandado de Segurança nº 25.939-DF, Relator Min. Sepúlveda Pertence. Íntegra da decisão monocrática disponível em: http://stf.gov.br/imprensa/pdf/ms25939.pdf. 109 A Constituição dispõe, textualmente, que “esgotado sem deliberação o prazo estabelecido no § 4º [30 dias], o veto será colocado

na ordem do dia da sessão imediata, sobrestadas as demais proposições, até sua votação final”.

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transparentes e, ao invés de esclarecer, ocultam os fundamentos das decisões do

Tribunal, as quais, ainda que definitivas, devem permanecer abertas à crítica.

ALTERNATIVAS EM CONSTRUÇÃO

Hoje, a garantia da livre formação da opinião pública por meio da afirmação dos

direitos fundamentais e a proteção às condições da gênese democrática da lei, por meio

da imposição do devido processo legislativo, são as principais tarefas da jurisdição

constitucional. Quanto à primeira, já é possível perceber avanços significativos. No que

tange à segunda, entretanto, ainda há muito por fazer. O primeiro passo é ultrapassar a

postura formalista que tem marcado a atuação do STF. Países como Colômbia110, Costa

Rica111 e Espanha112 já há algum tempo adotam entendimento segundo o qual a violação

de normas regimentais pode, em determinadas circunstâncias, acarretar a

inconstitucionalidade das leis produzidas pelo procedimento viciado. Os tribunais desses

países consideram que os regimentos internos das assembléias legislativas, mesmo não

integrando o texto constitucional, devem ser considerados como normas de hierarquia

constitucional quando seu descumprimento impede a formação democrática das leis.

110 MUÑOZ, Eduardo Cifuentes. La jurisdicción constitucional en Colombia. In: GARCÍA BELAUNDE, D.; FERNÁNDEZ SEGADO, F. (Coord.). La jurisdicción constitucional en Iberoamerica. Madrid: Ed. Dykinson, 1997. p. 476. A Corte Constitucional colombiana já reconheceu sua competência para declarar a inconstitucionalidade de leis produzidas com violações ao processo legislativo. A este respeito, a Sentecia C-577/2006, disponível: http://www.ramajudicial.gov.co/csj_portal/index.jsp, na qual se afirma: “a violação dos trâmites próprios do procedimento legislativo que configurem vícios de envergadura suficiente para declarar a inconstitucionalidade de uma lei podem ser materializados por meio de infrações a disposições contidas na Lei 5ª de 1992 (Regimento do Congresso)”. 111 A Lei de Jurisdição Constitucional da Costa Rica (Lei 7.135, de 1989, disponível em: http://www.cesdepu.com/nbdp/ljc.htm) dispõe, em seu artigo 73, c, que o Regimento Interno da Assembléia Legislativa integra o parâmetro de legitimidade constitucional, isto é, o conjunto de normas com as quais todo o direito ordinário deve guardar compatibilidade formal e material. De acordo com o mesmo dispositivo, cabe ação de inconstitucionalidade “quando, na formação das leis, se viole algum requisito ou trâmite substancial previsto na Constituição ou, se for o caso, estabelecido no Regulamento de Ordem, Direção e Disciplina da Assembléia Legislativa”. Ver VALLE, Ruben Hernandez. La jurisdicción constitucional en Costa Rica. In: GARCÍA BELAUNDE, D.; FERNÁNDEZ SEGADO, F. (Coord.). La jurisdicción constitucional en Iberoamerica. Madrid: Ed. Dykinson, 1997. p. 511. 112 De acordo com a célebre Sentencia 99/1987, prolatada em 11.6.1987 e publicada no BOE nº 152, “ainda que o art. 28.1 Lei Orgânica do Tribunal Constitucional não mencione os Regimentos parlamentares entre aquelas normas cuja infração pode acarretar a inconstitucionalidade da lei, não há dúvida de que, tanto pela intangibilidade de tais regras de procedimento frente à ação do legislador como, sobretudo, pelo caráter instrumental que essas regras têm em face de um dos valores superiores de nosso ordenamento, o pluralismo político (art. 1.1 CE), a inobservância dos preceitos que regulam o procedimento legislativo poderia viciar de inconstitucionalidade a lei quando tal inobservância altere de modo substancial o processo de formação da vontade no seio das Câmaras” (destacamos). Ainda na jurisprudência espanhola, é interessante conferir a Sentencia 227/2004, prolatada em 29.11.2004 e publicada no BOE nº 3, suplemento, de 4 de janeiro de 2005: “Os Regulamentos parlamentares, que têm força de lei e que, em algumas situações podem ser considerados como normas interpostas entre a Constituição e as leis e, por isso, em tais casos, são condição de validade constitucional dessas últimas, cumprem uma função ordenadora da vida interna das Assembléias parlamentares, intimamente vinculada a sua natureza representativa e ao pluralismo político de que são expressão e reflexo (arts. 1.1 e 66.1 CE)”.

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Esse tipo de posição encontra respaldo na doutrina constitucional113, mas sua

penetração na jurisprudência brasileira ainda é muito pequena. Algumas decisões

isoladas em âmbito estadual chamam a atenção, como o julgamento, pelo Tribunal de

Justiça do Estado do Paraná, do Mandado de Segurança nº 37, no início da década de 70.

Os regimentos internos, de acordo com a decisão, seriam “complementos necessários

das leis constitucionais”, cuja violação é sancionada com a inconstitucionalidade. O

Tribunal afirmou, ainda, que “um ato legislativo é inconstitucional quando se formou em

desacordo com as normas regimentais que deveriam lhe dar forma e essência”114.

Em decisões mais recentes, entretanto, não é comum encontrar afirmações tão

contundentes. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal, por exemplo, sustentou que a

Câmara Legislativa havia violado o processo legislativo durante a apreciação de um

veto. O presidente da Câmara acolhera questão de ordem para anular uma votação já

concluída, na qual o veto sob análise havia sido derrubado. Submetido a nova votação

dois dias depois, o veto foi mantido. Segundo o TJ-DF, a decisão de submeter a nova

votação a matéria vencida não era produto de uma interpretação do regimento interno

(algo que a jurisprudência do STF tem reiteradamente descrito como matéria interna

corporis), mas de “deliberada violação de normas regimentais”. A decisão foi objeto de

recurso ao Superior Tribunal de Justiça115, que manteve a posição do TJ-DF.

Ainda no Distrito Federal, outra decisão reconhece que o princípio constitucional

da proporcionalidade partidária autorizava o Tribunal de Justiça a interferir no processo

eleitoral para a Mesa Diretora da Câmara Legislativa. Segundo o acórdão, mesmo sujeita

à regulamentação interna de cada Casa, a eleição para as mesas diretoras deveria

observar as normas constitucionais aplicáveis116. Essa decisão é especialmente

interessante, pois contraria um precedente do Supremo Tribunal Federal a respeito da

matéria117. Naquela oportunidade, o STF foi confrontado com o indeferimento de uma

candidatura do Partido dos Trabalhadores ao cargo de Terceiro-Secretário da Mesa da

Câmara, sob o argumento de que o partido já possuía candidato inscrito à Presidência da

113 Conferir, entre outros, CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p.922-923 e LAVIÉ, Humberto Quiroga. La potestad legislativa. Buenos Aires: Zavalia, 1993, p. 13 e ss. 114 Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 111, I-XII, p. 313. 115 REsp nº 251.340-DF, Rel. Min. João Otávio de Noronha. Diário da Justiça, 20.3.2006. 116 Mandado de segurança autuado sob o número 2003 00 2 000038-7, Rel. designado Des. Vaz de Mello (Diário da Justiça de 14.11.2006, Seção III, p. 87). 117 MS 22.183-DF, Rel. Min. Marco Aurélio (Diário da Justiça, 12.12.1997, p. 65569).

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Casa118. O Tribunal entendeu que a decisão fundava-se “exclusivamente, em norma

regimental referente à composição da Mesa e indicação de candidaturas para seus cargos

(art. 8º do Regimento Interno da Câmara dos Deputados)”. E, ainda: “o fundamento

regimental, por ser matéria interna corporis, só pode encontrar solução no âmbito do

Poder Legislativo, não ficando sujeito à apreciação do Poder Judiciário”. É precisamente

essa posição que o TJ-DF contradiz ao afirmar que o exame de ato do Legislativo

fundado em norma regimental é “da essência do Estado Democrático de Direito” e não

ofende o princípio da separação de poderes119. A votação de projetos de lei “não

constitui procedimento circunscrito ao âmbito dos assuntos internos da Corporação

porquanto interessa aos cidadãos e aos demais Poderes, devendo submeter-se ao crivo do

Judiciário”.

Há vários outros casos de controle judicial do processo legislativo em razão de

violação de normas regimentais espalhados pelos Tribunais estaduais. O Tribunal de

Justiça do Rio Grande do Sul120 defendeu, recentemente, que a ausência de convocação

de vereador para sessão extraordinária nos termos do Regimento Interno da Câmara de

Vereadores havia viciado as deliberações adotadas. Segundo o Tribunal, “o Regimento

Interno da Câmara de Vereadores de Mata exige que o edil, para sessão extraordinária,

seja convocado por escrito. Disto não há prova. Por sinal, alegou-se que não se localizou

o impetrante – via telefone. Confirma-se, indiretamente, o vício”. Todos os atos

praticados na sessão foram anulados.

O Tribunal de Justiça de Pernambuco121 anulou, em outubro de 2006, emenda à

lei orgânica do município de Alagoinha que restringia o direito de vereadores a

concorrerem ao cargo de Presidente da Mesa Diretora da Câmara com fundamento em

violações regimentais, alegando que “a promulgação da emenda questionada sob o pálio

de um processo legislativo viciado consubstancia ofensa ao princípio constitucional do

devido processo legal”.

118 Para uma análise detalhada dos diversos problemas relacionados à aplicação do princípio da proporcionalidade partidária às eleições da Mesa da Câmara dos Deputados, Cf. MARIANI, Onivaldo Moisés. Aplicação do princípio da proporcionalidade partidária na Câmara dos Deputados. Monografia (especialização em análise da constitucionalidade). Universidade do Legislativo. Brasília: UNILEGIS, 2006. 119 Rel. Des. Jeronymo de Souza, Conselho Especial. Diário da Justiça de 11/11/1997, Seção III, p. 27.434. 120 Mandado de Segurança (reexame necessário), processo nº 70013304456. 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. A íntegra do acórdão encontra-se disponível no sítio do Tribunal: http://www.tj.rs.gov.br/site_php/consulta/download/exibe_documento.php?ano=2006&codigo=271163. 121 Apelação cível nº 124.329-4, 8ª Câmara Cível. Julgamento em 26.10.2006.

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O Tribunal de Justiça de Minas Gerais122, por sua vez, reconheceu sua

competência para examinar a alteração irregular do Regimento Interno da Câmara

Municipal de Dom Cavati. “Segundo o art. 160 do Regimento Interno da Câmara

Municipal, somente pelo voto da maioria absoluta dos membros do Poder Legislativo do

Município (5 Vereadores) aprova-se, validamente, proposição sobre a modificação ou

reforma do Regimento Interno. Entretanto, para se atingir o quorum da maioria absoluta

necessário à aprovação da Resolução Legislativa 13/2003, que pretendia modificar o art.

164 do Regimento Interno, foi necessário o voto do Presidente da Câmara Municipal,

além das hipóteses que lhe era permitido votar, previstas, justamente, no artigo que se

pretendia alterar. O processo legislativo previsto no Regimento Interno da Câmara de

Vereadores para a aprovação de Projetos de Resolução Legislativa deve ser seguido à

risca quando da elaboração da norma. Se o Presidente da Câmara, impedido de votar,

exerce tal prerrogativa e a matéria é aprovada, nulo é o ato legislativo, por afronta direta

aos preceitos do Regimento Interno e, conseqüentemente, ao Princípio da Legalidade”.

Essas decisões mostram que muitas autoridades judiciais consideram o controle

da regularidade do processo legislativo como algo ínsito às suas funções, ou, para usar as

palavras do TJ-DF, “da essência do Estado Democrático de Direito”. Há, entretanto, dois

pontos que merecem atenção. Primeiro, em todos os casos analisados acima, o

cumprimento das disposições legais acerca do devido processo legislativo é reivindicado

por um parlamentar. Dessa forma, os precedentes não apontam para um avanço no que

se refere à superação da idéia segundo a qual a regularidade do processo legislativo é um

direito exclusivo do parlamentar, apesar de afirmarem a possibilidade de controle

judicial sobre o processo de formação da lei.

O segundo ponto é mais delicado. Como a regularidade do processo legislativo é

sempre tratada como direito subjetivo do parlamentar, o judiciário analisa os problemas

por meio de mandados de segurança. Ocorre que, após promulgada a lei, a anulação de

atos praticados no curso do processo legislativo acaba tendo como efeito a anulação da

própria lei. Tal situação apresenta uma dificuldade: a anulação de uma lei e sua

supressão do mundo jurídico demandam, de acordo com nossa Constituição, um

procedimento especial. Esse procedimento não pode ser iniciado por qualquer um, há um

rol restrito de legitimados e também um rito particular, que difere da apreciação do

mandado de segurança. Apenas o Supremo Tribunal Federal pode declarar a nulidade de

122 Reexame Necessário n° 1.0309.04.003326-3/001, em sede de Mandado de Segurança, publicado no Diário Oficial do Estado de Minas Gerais, de 8.3.2006.

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uma lei em face da Constituição Federal nesse tipo de procedimento, denominado de

controle de constitucionalidade em abstrato. Os Tribunais de Justiça dos estados

também podem fazê-lo, mas apenas confrontando leis municipais e estaduais com a

Constituição Estadual. Em uma palavra: as decisões analisadas são vistas pela

jurisprudência dominante como uma invasão de competência do STF: o mandado de

segurança não pode substituir a ação direta de inconstitucionalidade.

Uma das formas de equacionar essa dificuldade é tratar as violações ao devido

processo legislativo, seja pelo descumprimento de norma constante do texto

constitucional, seja pelo descumprimento de normas regimentais diretamente executoras

da Constituição, como verdadeiras inconstitucionalidades, tal como admitido pela

jurisprudência espanhola, colombiana e costa-riquenha. Essa alternativa permitiria que,

após a promulgação da lei aprovada em desconformidade com o processo legislativo, o

cidadão prejudicado pela sua aplicação pudesse questioná-la perante qualquer autoridade

judicial no controle de constitucionalidade difuso, ainda que, nessa hipótese, a decisão

valha apenas entre as partes da ação, isto é, a lei não é apagada do mundo jurídico.

A mesma norma poderia, ainda, ser submetida, por aqueles a quem a

Constituição atribui legitimidade, ao controle de constitucionalidade em abstrato, seja

perante o STF, seja perante os tribunais de justiça estaduais, com vistas à sua supressão

do ordenamento jurídico. Nessa alternativa, o controle judicial do devido processo

legislativo antes da promulgação da norma deveria ser tratado como medida

excepcional, uma vez que a intensificação da interferência do Judiciário sobre o

funcionamento parlamentar pode dificultar ou mesmo impossibilitar o curso do processo

legislativo, o que, por certo, é indesejável123.

Em síntese, um arranjo desse tipo, mesmo que possa despertar problemas (e

certamente despertará), tende a reforçar o controle público sobre a atividade parlamentar

e estimular no âmbito do Congresso, das assembléias legislativas e câmaras de

123 A argüição de descumprimento de preceito fundamental poderia se prestar a essa função. A vantagem sobre o mandado de segurança é evidente: após a promulgação da norma, a ação poderia seguir seu curso normalmente, em geral, pela sua conversão em ação direta de inconstitucionalidade (supondo que a ação direta de inconstitucionalidade e a argüição de descumprimento de preceito fundamental são fungíveis). Isso não esgota, é claro, o debate sobre a possibilidade de se continuar a admitir (e sob quais circunstâncias) o mandado de segurança impetrado por parlamentar. Sustentar o descabimento do mandado de segurança em qualquer hipótese pode tornar difícil o acesso de legislaturas municipais e estaduais à tutela jurisdicional em casos nos quais a interferência do Judiciário no curso do processo legislativo se mostra justificável, em especial nos casos relacionados a cerceamento de prerrogativas do mandato parlamentar.

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123

vereadores, uma cultura de respeito às normas que regem o processo legislativo

democrático.

CONCLUSÃO

Como sugerimos no início deste texto, para evitar uma abordagem reducionista

do acesso à justiça devemos pensá-lo sob a chave da efetividade dos direitos

fundamentais. Confinar a realização da justiça ao Poder Judiciário é, já de saída,

fracassar em desenvolver essa concepção. O Judiciário não pode garantir, pelas suas

próprias forças, a efetividade da Constituição. Numa sociedade democrática, a

Constituição é um processo vivo, aberto, em permanente construção. Seu sentido

normativo está em jogo não apenas nas decisões do STF, mas em todos os níveis de

positividade do direito, em cada reivindicação que lhe dirigem os movimentos sociais,

no trabalho cotidiano da administração pública, na condução da política legislativa e

assim por diante.

Isso não quer dizer, entretanto, que o Judiciário não cumpra um papel importante

na luta pela efetividade dos direitos fundamentais. No caso da garantia ao devido

processo legislativo, a participação do Judiciário é indispensável, pois ela neutraliza a

imposição ilegítima da maioria sobre a minoria e oferece a possibilidade de uma decisão

imparcial. Ao velar pelas condições procedimentais da formação livre da opinião pública

e da vontade política, os tribunais buscam garantir a abertura da Constituição,

assegurando que as decisões sobre as leis que nos regem sejam tomadas em meio a um

debate efetivamente público, e não arquitetadas às escondidas sob exclusiva influência

de interesses privados e particulares (aí incluídos os do governo). Nesse contexto, “o

procedimento formal se converte em garante da justeza e justiça material”124.

Uma jurisdição constitucional democrática não se substitui ao legislador, mas

procura contribuir para a manutenção de condições nas quais uma democracia

deliberativa possa funcionar de forma crível. Assumir esse desafio é transformar

radicalmente a concepção de acesso à justiça que tem orientado o debate público sobre o

tema. A realização da justiça é promoção de cidadania. Justiça não é um bem que a

Administração outorga ao “contribuinte-cliente”; é fruto do envolvimento em um

processo de participação cujos resultados são incertos, mas que, devem ser construídos a

partir do confronto aberto e transparente dos argumentos em jogo.

124 HÄBERLE, Peter. Pluralismo y constitución: estudios de teoría constitucional de la sociedad aberta. Tradução: Emilio Mikunda. Madrid: Tecnos, 2002. p. 144.

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124

Sintetizando as conclusões desse esforço de investigação exploratório sobre o

direito ao devido processo legislativo, poderíamos afirmar que:

a) o projeto da Constituição de 1988 passa pela construção de uma cultura

política forjada no conceito de cidadania, isto é, na afirmação do direito à participação

ativa do processo de construção do próprio direito. Isso se dá de formas muito

diferentes: por meio da fiscalização de políticas públicas, por meio do tratamento

imparcial dos interesses em confronto num processo judicial, por meio da manifestação

pública de demandas sociais excluídas do discurso político, e assim por diante. No caso

do processo legislativo, a afirmação dessa cultura de cidadania passa pela garantia de

que os cidadãos afetados pelas decisões do parlamento terão oportunidade de interferir

no debate, de pressionar publicamente seus representantes e de apresentar argumentos

relevantes para a formação da lei. A doutrina dos atos interna corporis afasta-se dessa

cultura, na medida em que legitima uma negativa de prestação jurisdicional que

contribui para estreitar o acesso à justiça, impondo limites e obstáculos à participação

social no processo legislativo;

b) o entendimento predominante no Supremo Tribunal Federal, representado pela

doutrina dos atos interna corporis, favorece a privatização do processo legislativo e a

autonomização dos órgãos de representação. Isso equivale à supressão da vocação

emancipatória do direito ao devido processo legislativo, ligada, em primeira linha, à

noção de autonomia dos sujeitos. A regularidade do processo legislativo não é vista

como garantia da cidadania, mas como questão de “economia interna” do Poder

Legislativo;

c) contra a doutrina dos atos interna corporis, existem alternativas consolidadas

em outras experiências jurídicas que podem ensinar muito ao Brasil, mas,

principalmente, há alternativas em construção dentro de nossa própria cultura jurídica.

Tais alternativas, entretanto, desenvolvem-se ainda de forma errática e pouco

sistemática. Elas não freqüentam os livros de doutrina, mas o dia-a-dia dos órgãos

judiciais, confrontados com todo tipo de abuso praticado em nome do Poder Legislativo

nos vários níveis da Federação;

d) as premissas teóricas da doutrina dos atos interna corporis estão, hoje, a ruir.

Não são apenas as decisões esparsas de tribunais estaduais e mesmo de tribunais

superiores que apontam para isso; são as decisões do próprio STF no controle da

atividade parlamentar pertinente às CPI’s e aos processos políticos disciplinares. Tais

decisões esclarecem que os direitos fundamentais valem como trunfos contra a discrição

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política dos órgãos do Congresso. Se reconhecermos que as normas que regem o

processo legislativo não geram direito apenas para os parlamentares, mas para todos os

cidadãos, como admitir que seu desrespeito possa passar imune à censura judicial?

Diante desse quadro, o projeto de um Observatório da Justiça Brasileira

confronta-se com vários desafios. Procuramos, abaixo, sistematizar alguns deles:

a) Investigar e dar visibilidade às formas de participação social no debate

parlamentar, bem como analisar o papel desempenhado pelas normas que regulam o

processo legislativo na promoção e garantia dessa participação;

b) Investigar de que forma o debate público acerca de uma medida legislativa se

atualiza e repercute na atividade da Administração e do Poder Judiciário, instâncias

encarregadas da aplicação do direito;

c) Compor um banco de informações sobre a produção jurisprudencial da justiça

estadual, federal e dos tribunais superiores acerca do controle do processo legislativo e

organizar sua atualização;

d) Analisar e sistematizar práticas judiciais e parlamentares latentes e, por vezes

intuitivas, relacionadas à garantia do devido processo legislativo. Confrontar essas

práticas com as alternativas consolidadas, interrogando-as a respeito de sua contribuição

para a efetividade dos direitos fundamentais e a afirmação da democracia.

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E CONCENTRAÇÃO DO ACESSO À

JUSTIÇA: “A VOZ QUE VEM DE CIMA”

Aline Lisbôa Naves Guimarães

Guilherme Cintra Guimarães

Paulo Sávio Maia

Tahinah Albuquerque

Em uma recente entrevista ao jornal Valor Econômico, publicada em 18 de

outubro de 2007, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes analisou

diversas mudanças no perfil institucional do STF ocorridas desde a promulgação da

Constituição de 1988, classificadas pelo jornal como uma “revolução silenciosa no

Supremo”. Sentenças de perfil aditivo, modulação dos efeitos da decisão, critério da

repercussão geral, súmulas vinculantes: são todas elas inovações que estariam

contribuindo, segundo o Ministro, para transformar o tribunal em uma verdadeira “corte

constitucional”, nos mesmos moldes existentes em diversos outros países.

A entrevista é extremamente interessante sob muitos aspectos. Ela transmite, por

assim dizer, um pequeno relato do imaginário que circula na mídia acerca do papel do

poder judiciário como um todo, e de um tribunal constitucional, em particular.

Celeridade, economia processual, eficácia das decisões e segurança jurídica são palavras

de ordem. Questões manifestas que dominam todo o discurso construído em torno desse

novo perfil do Supremo. O judiciário é avaliado a partir de uma lógica guiada pela idéia

do custo/benefício: os juízes devem adotar decisões céleres, rápidas, eficientes, que

possam ser impostas de maneira efetiva na prática e que não causem transtornos

desnecessários em termos de governabilidade e estabilidade econômica.

O mais interessante, no entanto, não são esses aspectos manifestos, mas sim

aquilo que permanece latente, que não está dito de modo expresso, que pode ser

percebido nas entrelinhas. O que está por trás dessa “análise econômica” do judiciário e

dessas inovações que têm modificado o perfil do STF e da jurisdição constitucional

brasileira como um todo? Como observar a observação da mídia e a própria auto-

observação do Supremo – refletida, de certo modo, no discurso do Ministro Gilmar

Mendes – sobre a organização e o funcionamento dos tribunais brasileiros?

O que se tem observado nos últimos anos é uma concentração cada vez maior de

poderes nas mãos do STF. A reforma do judiciário promovida pela Emenda

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Constitucional n ۫45 no final de 2004 confirmou uma tendência que vem desde a

promulgação da Emenda Constitucional nº 3 em 1993, que introduziu a ação declaratória

de constitucionalidade no texto da constituição, e da edição das Leis nº 9.868 e nº 9.882

em 1999, que regularam as ações de controle concentrado de constitucionalidade (ADI,

ADC e ADPF). Uma tendência que se reflete, principalmente, na ampliação das

hipóteses em que o tribunal está autorizado a adotar decisões abstratas de efeitos

vinculantes. Ou seja, decisões não necessariamente ligadas à solução de um caso

concreto específico, mas que têm eficácia geral em relação a toda a administração

pública e aos demais órgãos do poder judiciário, que permitem regular (ou “legislar”

sobre) determinadas questões de forma abstrata, como no exemplo recente da fidelidade

partidária. Uma espécie de intervenção “provisória” e “minimalista”, nas palavras do

Ministro Gilmar Mendes.

Essa concentração de poderes no Supremo pode ser observada sob dois aspectos

distintos. Partindo da lógica econômica do custo/benefício, ela pode ser associada a uma

maior efetividade das decisões judiciais. Uma decisão abstrata de efeitos vinculantes da

nossa “mais alta corte” poderia supostamente resolver questões delicadas que

multiplicam exponencialmente o número de processos nos tribunais. Demandas

repetitivas seriam, então, solucionadas de uma só vez. Além disso, ao “modular os

efeitos da decisão”, o tribunal evitaria a produção de conseqüências eventualmente

gravosas para o governo ou potencialmente negativas para a economia nacional. De

acordo com o Ministro Gilmar Mendes: “Se se tiver que provocar um caos jurídico ou

uma hecatombe econômica, muito provavelmente o tribunal poderia fingir que a lei é

constitucional, porque não quer assumir as conseqüências de uma decisão em sentido

contrário. Se nós pensarmos isso em perspectiva histórica, sana-se o problema para o

futuro, ainda que contemple-se os efeitos verificados no passado. Em questões

tributárias, isto ocorre no mundo todo”.

A questão, todavia, também pode ser analisada a partir de uma outra perspectiva.

Embora a celeridade e a eficácia das decisões judiciais sejam certamente importantes,

até que ponto concentração de poderes é sinônimo de eficiência? De qual eficiência

estamos tratando? Uma eficiência em termos de conveniência política e econômica ou

em termos de democratização do acesso à justiça?

Em relação ao acesso à justiça (ou à concentração do acesso à justiça), uma

observação crítica desse novo perfil do STF pode revelar traços bastante autoritários e

antidemocráticos. E não apenas levando em conta o acesso no seu aspecto formal ou

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tradicional, como possibilidade de recorrer ao judiciário em situações de conflito, mas

também no seu aspecto mais plural e substantivo, como efetivo acesso (ou acessos) aos

diversos meios de concretização de direitos e de articulação democrática e participativa

de demandas por justiça.

A normatividade corrompida

Um risco específico que está presente em toda a atividade judicial é o de

corrupção das normas. Mais especificamente, o de corrupção das normas pelos fatos. O

que também significa uma desconsideração da própria distinção entre normas e fatos.

A distinção normas/fatos constitui um critério básico para a formulação de

decisões jurídicas. Uma espécie de distinção-guia que orienta todas as operações que se

desenvolvem em torno da decisão sobre o que deve e o que não deve ser considerado

direito em um determinado caso. Ela simboliza o fundamento de toda a normatividade.

Quando afirmamos que um direito foi violado, isso significa que as expectativas geradas

acerca do cumprimento de uma norma foram frustradas. O que se esperava (ou o que se

supõe que podia ser esperado) não aconteceu. Contudo, apesar da violação “de fato”, a

expectativa pode ainda ser mantida “de direito”. Ninguém é obrigado a aprender com a

frustração. O direito supostamente nos alivia dessa obrigação.

Toda reivindicação de um direito implica, portanto, uma recusa ao aprendizado.

Uma recusa em aprender com os fatos. Uma possibilidade de afirmar a expectativa

normativa sustentada no direito contra a ocorrência do fato da violação. Nesse processo

de “não aprendizado contrafático”, os tribunais desempenham (“de direito”, mas não

necessariamente “de fato”) um papel relevante. Suas decisões são importantes para a

manutenção da possibilidade de uma afirmação contrafática das normas que prevêem

direitos e garantias.

Em diversas ocasiões, no entanto, os órgãos do poder judiciário desenvolvem

estratégias que permitem inverter, de certa forma, a sua função. Ao invés de garantir

direitos através da afirmação de expectativas normativas em contextos fáticos de

violação, os juízes e tribunais se valem de contingências fáticas, em geral de natureza

política e econômica, para justificar limitações à eficácia das normas, o que significa, na

prática, a sua não aplicação ou a sua aplicação parcial.

A subordinação da eficácia das normas a contingências políticas e econômicas

constitui uma estratégia oculta ou latente de desconstitucionalização. Com base em

argumentos políticos e econômicos, a normatividade da constituição e do direito como

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um todo é corrompida. Permite-se, assim, uma espécie de violação “juridicamente

ordenada” dos direitos dos cidadãos, justificada a partir de critérios como reserva do

possível, proporcionalidade, razoabilidade, ponderação, adequação meios/fins,

governabilidade e estabilidade econômica.

Todos esses critérios têm algo em comum. Eles abrem espaço para que a decisão

seja orientada a partir das suas conseqüências. Normas podem, assim, ser

“relativizadas”. Direitos podem, então, ser “ponderados”. Relativização e ponderação

que são justificadas não a partir do direito, mas sim a partir dos fatos. Evitar déficits nas

finanças públicas, não gerar ingovernabilidade, impedir abalos na economia: estariam os

juízes em condições de controlar esses “efeitos fáticos indesejáveis”?

Tudo indica que não. Os juízes não possuem uma “bola de cristal” que lhes

permita prever o futuro (ou o que será dos fatos no futuro). Cálculos econômicos e

estudos estatísticos certamente não se incluem entre as competências específicas de uma

organização judicial, com seus procedimentos rígidos e seus prazos limitados. O que se

espera de um juiz é a afirmação, no presente, de expectativas frustradas por fatos

passados, e não a subordinação da eficácia presente das normas às conseqüências que

poderão ou não ser produzidas no futuro. Isso não significa que os juízes devam ser

inconseqüentes, mas que, se desejam realmente ser imparciais, não podem decidir com

fundamento em critérios puramente conseqüencialistas.

Esse risco de corrupção política e econômica da normatividade do direito e da

constituição, embora inerente a toda a atividade judicial, está presente, de forma ainda

mais significativa, no contexto do controle concentrado de constitucionalidade

desenvolvido pelo Supremo Tribunal Federal. Isto é, nos casos, cada vez mais

numerosos, em que o STF está autorizado a adotar decisões abstratas de efeitos

vinculantes. Um exemplo interessante pode ser extraído do julgamento de uma das

primeiras ações declaratórias de constitucionalidade propostas junto ao tribunal, a ADC

nº 9, julgada em junho 2001.

Para combater a crise energética que assolava o país à época, mais conhecida

como crise do “apagão”, o governo federal editou uma medida provisória (MP nº 2.148-

1, de 22 de maio de 2001, sucessivamente reeditada) que introduzia diversas regras com

o objetivo de reduzir o consumo interno de energia. Muitas dessas regras eram

polêmicas, pois suspendiam a aplicação de dispositivos do Código de Defesa do

Consumidor na relação entre consumidores e empresas concessionárias, e foram alvo de

um intenso e imediato questionamento judicial.

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Tendo em vista evitar o questionamento judicial das medidas e a correspondente

instauração de uma suposta situação de insegurança jurídica, o Presidente da República,

representado pelo Advogado-Geral da União – à época, o atual Ministro do STF Gilmar

Mendes – propôs uma ação declaratória de constitucionalidade junto ao Supremo

Tribunal Federal, com pedido de concessão de medida cautelar. Em 28 de junho de

2001, o STF deferiu, por maioria de votos, a medida cautelar requerida. Em 13 de

dezembro de 2001, a cautelar foi confirmada, e a ação, julgada procedente, também por

maioria de votos.

A maioria do tribunal endossou os argumentos expostos pelo governo na inicial

da ação: diante da situação emergencial de escassez no fornecimento de energia, as

medidas eram essenciais para restabelecer o equilíbrio entre oferta e demanda e evitar,

assim, o risco de um apagão elétrico generalizado. Alguns Ministros, inclusive,

chegaram a argumentar que uma posição contrária do Supremo poderia afetar o suposto

apoio popular conferido à política de racionamento, com efeitos gravosos para a

economia nacional.

Para justificar as medidas do ponto de vista jurídico, o Supremo recorreu ao

princípio da proporcionalidade. As restrições impostas – por meio de medida provisória,

é bom lembrar – aos direitos dos consumidores foram, então, consideradas adequadas e

necessárias ao enfrentamento da crise. Ponderados os direitos em relação aos fatos, o

tribunal conclui que as medidas eram razoáveis e proporcionais. Deveriam, portanto, ser

declaradas constitucionais de forma abstrata e com efeitos vinculantes.

“Forma abstrata” e “efeitos vinculantes”. Na prática, isso significa que o STF

decidiu impedir que as medidas governamentais fossem questionadas em qualquer outro

tribunal, mesmo sem analisar um só caso concreto em que a aplicação da medida

provisória estivesse sendo considerada inconstitucional. Obviamente, não por um motivo

qualquer, mas sim para supostamente evitar, na visão do tribunal, as conseqüências

desastrosas do apagão.

Todavia, o que estava em jogo, no caso, não era necessariamente a aprovação ou

não da política de racionamento em si, mas sim o direito dos consumidores de recorrer

ao judiciário caso se sentissem prejudicados “em concreto”, e não “em abstrato”. Ao

decidir de maneira vinculante que as medidas eram “abstratamente” constitucionais, o

Supremo concentrou em si a competência para o controle de constitucionalidade da MP.

Vale dizer, concentrou e, conseqüentemente, restringiu toda e qualquer possibilidade

“concreta” de acesso à justiça. Os direitos foram postos na balança e o que pesou mais

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foram os fatos. As eventuais expectativas quanto ao cumprimento das normas do Código

de Defesa do Consumidor e da própria constituição tiveram que aprender com o “peso”

da contingência política e econômica da situação emergencial.

Esse é apenas um exemplo dos riscos de uma ponderação “abstrata” e

“vinculante” dos direitos dos cidadãos, efetuada em sede de controle concentrado de

constitucionalidade. Ao se deixar levar por um cálculo limitado e superficial das

conseqüências políticas e econômicas das suas decisões, quase que em um exercício de

futurologia, o tribunal tende a deixar de lado as expectativas legítimas que se formam

acerca do cumprimento das normas. Expectativas essas que justificam, em último caso, o

próprio recurso ao poder judiciário.

Diversos outros casos poderiam ser analisados para exemplificar esse risco

específico de corrupção da normatividade. Um deles merece atenção especial, não tanto

pela repercussão obtida junto à mídia e à opinião pública em geral, mas sim pelo seu

caráter emblemático. Trata-se da Suspensão de Segurança (na sigla, SS) nº 3154, julgada

em março de 2007.

No caso, o Ministro Gilmar Mendes, em exercício provisório da presidência do

tribunal, cassou uma liminar concedida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

em sede de mandado de segurança. O MS fora impetrado contra a decisão da

Governadora do Estado, Yeda Crusius, de parcelar o pagamento dos salários de

funcionários do executivo estadual sob a justificativa de necessidade de preservação das

finanças públicas. Na fundamentação da decisão, o Ministro fez algumas considerações

acerca da “situação fática excepcional”, que, segundo ele, demonstrava a

proporcionalidade e a razoabilidade da medida: “O ato da Chefe do Poder Executivo do

Estado do Rio Grande do Sul enquadra-se numa situação excepcional, em que as

finanças públicas estaduais encontram-se em crise. As garantias constitucionais da

irredutibilidade e do pagamento em dia da remuneração dos servidores públicos devem

ser interpretadas, nesse contexto fático extraordinário, conforme o “pensamento do

possível”. Neste juízo sumário de delibação, portanto, entendo que a medida adotada

pela Governadora do Estado do Rio Grande do Sul não desborda dos parâmetros de

proporcionalidade e razoabilidade, tendo em vista a situação excepcional em que se

encontram as contas públicas estaduais”.

Novamente, contingências fáticas de natureza política e econômica foram

utilizadas para justificar uma exceção à eficácia das normas. O direito dos servidores de

receberem seus salários – isto é, “verbas alimentares”, conforme a definição jurídica

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tradicional – em dia foi relativizado “proporcionalmente” à excepcionalidade da suposta

crise nas finanças estaduais. O curioso é que tal direito já havia sido garantido pelo

tribunal de justiça local. Contudo, o STF, em decisão monocrática, suspendeu os efeitos

da decisão após considerar que a restrição imposta pela governadora era “razoável” e

“proporcional”.

É interessante notar que o recurso utilizado pela Procuradoria do Estado, a

chamada suspensão de segurança, foi introduzido no direito brasileiro logo após o golpe

militar de 1964, com o objetivo claro de concentrar poderes nas instâncias judiciais

superiores e diminuir a efetividade da utilização do mandado de segurança contra atos

abusivos e ilegais da administração pública. A Lei n۫º 4.348/1964 prevê a sua utilização

pelas “pessoas jurídicas de direito público” nos casos em que seja necessário suspender a

eficácia de decisões judiciais para “evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à

economia públicas”.

Embora não seja classificada como um instrumento específico de controle

concentrado de constitucionalidade, a suspensão de segurança é geralmente utilizada

pelo poder executivo como um meio de cassar decisões judiciais “indesejáveis” com

base em argumentos conseqüencialistas genéricos de cunho político e econômico, como

no caso do parcelamento dos salários dos servidores do Rio Grande do Sul.

Tanto nesse caso como no caso do “apagão”, o Supremo Tribunal Federal, a

partir de um instrumento de concentração judicial de poderes – suspensão de segurança e

ação declaratória de constitucionalidade, respectivamente –, utilizou o princípio da

proporcionalidade para colocar os fatos acima do direito, corrompendo, assim, a

normatividade da constituição. Em ambos os casos, o mesmo argumento: a

excepcionalidade dos fatos prevalece sobre as regras do direito.

Os argumentos de necessidade ou de exceção são algo bastante comum no

discurso jurídico. Constituem um artifício que os juristas utilizam para, paradoxalmente,

fundamentar juridicamente a própria violação do direito. Situações fáticas excepcionais

são, assim, utilizadas como um pressuposto para a restrição da eficácia das normas.

Diante de fatos excepcionais, apela-se para a suposta necessidade de um

descumprimento “proporcional” do direito.

Essa é uma estratégia que sempre foi utilizada por governos autoritários para

justificar a restrição de direitos e garantias básicos dos cidadãos. Em geral, a exceção é

associada à necessidade de combater ameaças bélicas internas ou externas, como no

exemplo recente das políticas norte-americanas de combate ao terrorismo. Contudo, o

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que tem se tornado cada vez mais comum é a associação entre estado de exceção e

emergências econômicas, em que a governabilidade política e a estabilidade da

economia são supostamente ameaçadas – seja por uma crise no fornecimento de energia,

por uma situação de déficit nas finanças estatais ou pela necessidade de combater a

inflação, como no caso do confisco de poupanças e ativos financeiros no início do

governo Collor125.

A imposição desse tipo de exceção ao cumprimento do direito equivale a uma

corrupção da sua normatividade. Trata-se de uma situação que tende a se agravar na

medida em que um só tribunal passe a concentrar em si amplos poderes para interpretar,

de forma abstrata e com efeitos vinculantes, o que diz a constituição. Ao se abstrair a

necessária concretude do direito, as normas correm o risco de se transformar em

disposições vazias, que podem ser facilmente ponderadas e relativizadas em face de

contingências políticas e econômicas. E o caráter vinculante dessa ponderação abstrata

apenas contribui para estender os seus efeitos corrosivos de forma exponencial, com o

conseqüente risco de blindagem dos tribunais ao acesso da população e de transformação

do judiciário em um mecanismo antidemocrático de chancela das medidas emergenciais

adotadas pelo governo.

O real sentido dos direitos do cidadão não está nas “belas” e “imponentes”

descrições dogmáticas presentes nos manuais, mas sim na eficácia concreta que se possa

dar a eles, seja nas pautas de reivindicações elaboradas pelos movimentos sociais, seja

nas diversas formas de participação popular na formulação de políticas públicas, seja nos

casos concretos que são submetidos ao julgamento dos tribunais. Quando o Supremo

Tribunal Federal atua de modo a impedir que a normatividade desses direitos se

concretize, ainda que devido a uma suposta preocupação com os efeitos pragmáticos das

suas decisões, o resultado só pode ser, então, a produção de uma forma específica e

institucionalizada de “desacesso” à justiça.

125 Em relação à chamada “retenção dos ativos financeiros” no início do governo Collor, é importante

registrar que alguns autores – como, por exemplo, o Ministro Gilmar Mendes, à época Consultor Jurídico da Secretaria-Geral da Presidência da República – defenderam a constitucionalidade das medidas de exceção impostas pela Media Provisória n° 168/1990, posteriormente convertida na Lei n° 8.024/1990, também com base no princípio da proporcionalidade. No caso, a necessidade de conter os elevados índices inflacionários foi apresentada como justificativa para a restrição do direito de propriedade dos cidadãos que tiveram parte dos seus ativos financeiros confiscados. Para maiores informações acerca dos argumentos utilizados, cf. MENDES, Gilmar Ferreira. A reforma monetária de 1990: problemática jurídica da chamada “retenção dos ativos financeiros” (Lei n° 8.024, de 12.04.1990). In: MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 2a ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999.

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136

A restrição do acesso

A Constituição Federal de 1988 mostrou-se defensora da democracia e da

participação social em vários ramos do Estado, inclusive em relação ao controle de

constitucionalidade. Apesar de haver consagrado um controle concentrado abrangente,

fato que pode ser considerado uma perda democrática – já que essa modalidade de

controle se caracteriza pela limitação de legitimados ativos e pela delegação do

julgamento constitucional a um único órgão jurisdicional, no caso, o Supremo Tribunal

Federal –, ainda assim, houve a preocupação em estabelecer mecanismos para a

participação social junto ao tribunal em questão.

Com a finalidade de potencializar a participação social no controle concentrado

de constitucionalidade, a Constituição de 1988 incluiu representantes da sociedade civil

no rol de legitimados à propositura de ações diretas constitucionais. De acordo com o

artigo 103 da CF/88, são legitimados para a propositura de ações diretas de

inconstitucionalidade e ações declaratórias de constitucionalidade: o Presidente da

República; a Mesa do Senado Federal; a Mesa da Câmara dos Deputados; a Mesa de

Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; o Governador de

Estado ou do Distrito Federal; o Procurador-Geral da República; o Conselho Federal da

Ordem dos Advogados do Brasil; partido político com representação no Congresso

Nacional; confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

Ao incluir neste rol partidos políticos, confederações sindicais e entidades de

classe, a constituição alterou substancialmente o sistema anterior - em que apenas o

Procurador-Geral da República possuía legitimidade para propor ações diretas ao

Supremo Tribunal Federal - e também rompeu com o modelo de controle de

constitucionalidade adotado por diversos países nos quais os órgãos do poder público

são os únicos legitimados a instaurar processos de controle abstrato de normas perante a

corte constitucional. A legitimação de confederações sindicais e de entidades de classe

evidencia a preocupação constitucional em conferir a uma parcela da sociedade civil a

possibilidade de participação no controle concentrado de constitucionalidade brasileiro.

Essa discussão ganha relevância na medida em que se vislumbra o crescente

avanço do controle concentrado sobre o difuso, especialmente por meio do chamado

efeito vinculante de decisões e súmulas do STF. Diante da vinculação, por mais que a

sociedade civil tenha a seu dispor o controle difuso para questionar a constitucionalidade

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de normas em concreto – possibilidade democrática aberta a todos os cidadãos –, a sua

exclusão dos debates travados em sede de controle concentrado mostra-se prejudicial à

atuação jurídica dos cidadãos, especialmente em face do acesso comparativamente direto

que o poder público tem ao tribunal, jurisprudencialmente vedado à massa da população

civil.

A grande inovação constitucional relacionada ao incremento da participação

popular no controle concentrado de constitucionalidade de normas, entretanto,

consubstanciou-se na ausência de qualquer distinção qualificativa entre legitimados, de

forma que, a priori, todos os entes previstos no artigo 103 possuiriam legitimação ampla

para propor as referidas ações constitucionais. Todavia, não é este o entendimento atual

do STF, cuja farta construção jurisprudencial estabelece uma série de critérios para a

admissão de ações propostas pelos ditos “entes privados” legitimados pela Constituição

Federal de 1988, consubstanciando-se em evidente estratégia de desconstitucionalização.

A interpretação restritiva direcionada aos entes da sociedade civil iniciou-se logo

na conceituação do que viria a ser considerado “entidade de classe de âmbito nacional”.

Em voto de desempate, no julgamento da ADIn nº 386/SP, o Ministro Moreira Alves

esclareceu o entendimento de “âmbito nacional” adotado pela Corte. Ainda hoje, só é

considerada entidade de âmbito nacional aquela com representação em pelo menos nove

Estados da Federação.

Entretanto, o que chama a atenção é como alguns dos votos, especialmente os

vencidos, já exprimiam a consciência de que o julgamento tratava exatamente da

interpretação a ser dada pelo tribunal acerca da promoção ou limitação da participação

social no controle de constitucionalidade. O Ministro Celso de Mello, vencido, o diz

expressamente: “Justifico o meu voto, ainda, Senhor Presidente, pelo receio que tenho

de uma interpretação restritiva da locução constitucional em análise possa limitar o

exercício, pelo Supremo Tribunal Federal, no instante mesmo em que se busca tornar

efetivo e real o princípio da universalidade da tutela jurisdicional, da mais expressiva,

fundamental e relevante competência que lhe outorgou a Assembléia Nacional

Constituinte: a guarda e defesa da Constituição”.

O STF enfrentou o problema da promoção/limitação da participação social no

controle de constitucionalidade em outras diversas ocasiões. Uma das mais

representativas foi o debate acerca da legitimidade ativa da União Nacional dos

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Estudantes-UNE (ADIn nº 894-3/DF), em que se discutiu a abrangência do conceito de

“classe” previsto na constituição, quando se refere a “entidade de classe de âmbito

nacional”, questionando-se se o termo “classe” refere-se a “classe social” ou a “classe

profissional”: “Será, nesse plano, a UNE entidade de classe de âmbito nacional? Se se

der à cláusula ‘entidade de classe’ compreensão ampla, a partir da só literalidade da

locução, e se se lhe conferir conteúdo meramente social, a resposta deveria ser

afirmativa, entendendo-se existente uma ‘classe estudantil’, como a expressão é

correntemente usada nos meios culturais e de comunicação. Nesse sentido, a UNE seria

entidade representativa, de âmbito nacional, da classe dos estudantes universitários

brasileiros. Assim tem se proposto ser e agido a entidade requerente. Se, entretanto, se

emprestar, aos efeitos do inciso IX do art. 103, da Lei Maior, compreensão estritamente

de índole profissional à fórmula ‘entidade de classe’, a resposta à indagação inicial há de

ser negativa. Com efeito, sob o ponto de vista profissional, não tenho como correta a

afirmação de que os estudantes constituam uma classe, enquanto ao termo se atribui

conteúdo imediatamente dirigido à idéia de profissão, entendendo-se ‘classe’ não como

simples classe social, segmento social, mas como categoria profissional” (Trecho do

voto do Ministro relator. ADIn nº 894-3/DF - relator: Min. Néri da Silveira).

Essa discussão envolve dois aspectos relevantes: pode-se dizer que o primeiro

aspecto seria quantitativo, uma vez que a concepção de “classe social” é mais abrangente

e inclusiva com relação à quantidade de associações abarcadas pela expressão; já o

segundo, adquire conotação qualitativa, na medida em que o parâmetro adotado para a

restrição ao acesso à propositura das ações diretas é particularmente perverso, pois

permite a participação apenas das classes inseridas no mercado de trabalho, ou seja, das

classes “profissionais”, por meio da utilização de um critério econômico - não previsto

pela Constituição - para determinar a inclusão/exclusão de representantes da sociedade

civil.

A partir desse julgamento, o STF estabeleceu jurisprudencialmente que apenas

entidades representativas de classes profissionais teriam legitimidade para a propositura

de ações diretas.

A mesma interpretação restrita do conceito de classe foi utilizada pelo tribunal

para declarar ilegítimas outras entidades, como a Associação de ex-Combatentes do

Brasil, em cujo julgamento (ADIn nº 974-5/RJ) o STF entendeu que “ex-combatentes”,

assim como estudantes universitários, não constituem “classe”.

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139

Além de optar reiteradamente por interpretações excludentes da norma

constitucional, o Supremo Tribunal Federal também criou requisitos específicos para o

reconhecimento da legitimação constitucional de entes privados. No julgamento da

ADIn nº 1.114-6/DF, por exemplo, o tribunal negou a existência de legitimidade ativa

por parte da Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos para ver declarada

a inconstitucionalidade de dispositivos do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil.

De acordo com o STF, apesar de a requerente enquadrar-se na hipótese do inciso IX do

artigo 103 da Constituição Federal, ela não cumpriu a exigência de pertinência temática,

que constitui requisito “objetivo”, erigido pelo próprio Supremo Tribunal Federal, para o

conhecimento de ação direta promovida por confederações sindicais ou entidades de

classe de âmbito nacional.

Segundo esse entendimento, confederações e entidades de classe, por serem

pessoas jurídicas de direito privado, não possuem a mesma legitimação que os demais

entes previstos pela constituição. A despeito de a Carta não fazer qualquer distinção

entre legitimados, o STF entende que os privados só podem impugnar dispositivos legais

que digam respeito especificamente a seus associados, enquanto os demais possuem

legitimidade ativa para impugnar quaisquer dispositivos legais.

A justificativa para a distinção foi apresentada nos seguintes termos: “Na

hipótese de confederações sindicais, não há razão para deixar de aplicar-se o critério de

pertinência, reconhecido nos precedentes acima indicados, já que, de modo relevante,

destaca-se a circunstância de que tais órgãos, assim como as entidades de classe de

âmbito nacional, representam interesses nitidamente privados, sem a conotação de uma

generalidade que os habilite a uma inserção sem limites no domínio do controle de

constitucionalidade”.

No mesmo julgamento (ADIn nº 1.114-6/DF), o tribunal destacou que alguns

entes privados seriam defensores do interesse público, como partidos políticos e a

Ordem dos Advogados do Brasil, e que, em razão disso, possuiriam legitimação ampla,

assim como os entes públicos: “Não se pode olvidar que a Constituição conferiu para os

partidos políticos, pessoas jurídicas de direito privado, a legitimidade para igualmente

acionar a jurisdição constitucional concreta, mas tais órgãos não atuam precipuamente

na esfera dos interesses privados, antes exercem atividade política, que presume o

interesse público, justificando, assim, que não lhes seja aplicável o critério da

pertinência. Por sua vez, a Ordem dos Advogados do Brasil, embora seja uma entidade

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de classe, com estas não se confunde para os efeitos de legitimidade em ação direta de

inconstitucionalidade, já que a sua própria natureza autárquica revela a importância de

sua atuação, transcendendo, portanto, dos limites de mero órgão de representação dos

interesses da categoria profissional”. Os demais entes privados - associações e

confederações sindicais -, por outro lado, seriam aptos apenas a defender os interesses

privados/egoísticos de seus associados, o que justificaria o seu afastamento da função

verdadeiramente pública de defesa da ordem constitucional.

Fica clara, portanto, a extensa construção jurisprudencial desenvolvida pelo

Supremo Tribunal Federal no sentido de limitar o acesso conferido pela constituição a

entidades da sociedade civil. As decisões proferidas pelo tribunal acerca da participação

social no controle concentrado de normas, entretanto, não se restringem ao aspecto da

legitimidade ativa conferida pelo artigo 103 da Constituição Federal. Também são

exemplos da interpretação restritiva adotada pelo tribunal, as decisões que negam a

participação de representantes da sociedade civil como amicus curiae126.

No julgamento da ADPF n° 54, por exemplo, o Ministro Marco Aurélio manteve

o entendimento de que a possibilidade de intervenção como amicus curiae, prevista no

art. 7º, § 2º, da Lei n° 9.868/99, não implica o reconhecimento de direito subjetivo a

tanto, de modo que fica a critério do relator admitir ou não o pedido de intervenção,

assim como a decisão que admite ou nega a intervenção não precisa de qualquer

fundamentação e não é passível de impugnação na via recursal. Como conseqüência, o

mesmo ministro recusou reiterados pedidos de manifestação de entidades como a

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, a Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família - Pró-Vida-

Família, a Associação Univida e a Associação de Desenvolvimento da Família – ADEF.

Outra postura, todavia, foi adotada pelo Ministro Carlos Ayres Britto no

julgamento da ADI n° 3510/DF, em que deferiu inúmeros pedidos de participação de

entidades como amicus curiae e, diante da repercussão da matéria, decidiu pela

realização da primeira audiência pública do Supremo Tribunal Federal. O ministro fez

questão de frisar que a realização da audiência pública teve a função de envolver a

126 O amicus curiae é um terceiro capaz de municiar o Supremo Tribunal Federal de informações com o

intuito de auxiliá-lo em sua decisão, podendo ser qualquer pessoa com representatividade social que demonstre interesse na questão debatida. Esse instituto permite aos interessados participar do debate constitucional, compartilhando com o Tribunal as informações que possuem e, muitas vezes, oferecendo-lhes a possibilidade de defender seus pontos de vista em processos que gerarão efeitos sobre eles. Ademais, essas informações acrescentam à Corte argumentos para embasar as decisões e oferecem dados relativos à opinião pública acerca do tema. Assim, o amicus curiae confere aos processos objetivos um certo grau de contraditório, além de inserir na discussão informações de interesse da sociedade.

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141

sociedade no debate da controvérsia constitucional, ressaltando os ganhos de democracia

e legitimidade operados pela medida.

Esse acontecimento sinaliza para a possibilidade de mudança da compreensão do

STF a respeito da importância da participação social no controle de constitucionalidade e

do seu papel enquanto viabilizador das possibilidades participativas. Entretanto, mesmo

quando promove a participação, o faz conforme a sua conveniência, considerando-a uma

possibilidade passível de uso pelo tribunal, e não um direito da sociedade.

A aplicação dos institutos do amicus curiae e da audiência pública deixam clara essa postura. Os

critérios utilizados pelo STF para limitar a participação da sociedade civil organizada

acabam por deixar transparecer, ao fim e ao cabo, o quanto é contraditória a sua

pretensão de arrogar exclusivamente para si o juízo de constitucionalidade. Ao mesmo

tempo em que defensores da concentração do controle de constitucionalidade afirmam

que o amicus curiae é a prova viva de que o STF possui certa “abertura procedimental”,

os mesmos juristas vêem com naturalidade a limitação drástica que a jurisprudência do

mesmo Tribunal faz da participação de tais atores. Na hora de justificar a concentração

do controle, o amicus curiae serve; mas quando é para fazer valer a “abertura

procedimental”, aí ele é uma ameaça à segurança jurídica. A contradição é mais que

evidente.

O ambíguo tratamento dado ao amicus curiae revela mais que as “aporias” da

concentração do controle: indica os riscos que residem nessa assim-chamada “revolução

silenciosa”. Riscos de que o STF não mais compreenda direitos fundamentais como uma

barreira que possa ser erigida contra eventuais expedientes inconstitucionais oriundos

dos poderes constituídos da República Federativa do Brasil: seja o Poder Executivo, o

Poder Legislativo ou o próprio Poder Judiciário. A Constituição de 1988 tem como seu

centro e vértice a noção de cidadania. E uma das maneiras mais gravosas de se violentar

a cidadania é entender que direitos fundamentais dos cidadãos possam ser

desconsiderados, utilizados como moeda de troca frente às intempéries orçamentárias do

Estado. Entre a “glória do Estado” e os “direitos dos cidadãos”, o STF tem que ficar com

a segunda opção. Seu compromisso não é com uma suposta (e mítica)

“governabilidade”, mas com o fortalecimento da democracia: consoante determinou a

Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988.

Sugestões de pesquisa para o Observatório

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Diante do diagnóstico traçado em relação à concentração da jurisdição

constitucional e seus reflexos no acesso à justiça, propõe-se a pesquisa das seguintes

questões:

(a) Embora a celeridade e a eficácia das decisões judiciais sejam importantes, até

que ponto concentração de poderes é sinônimo de eficiência? De qual eficiência estamos

tratando? Uma eficiência em termos de conveniência política e econômica ou em termos

de democratização do acesso à justiça?

(b) O que está por trás da “análise econômica” do judiciário e das inovações que

têm modificado o perfil da jurisdição constitucional brasileira?

(c) Como observar a observação da mídia e a própria auto-observação do STF –

refletida, de certo modo, no discurso do Ministro Gilmar Mendes – sobre a organização

e o funcionamento dos tribunais brasileiros?

(d) Qual o papel do Supremo Tribunal Federal para a manutenção da

possibilidade de uma afirmação contrafática das normas constitucionais que prevêem

direitos e garantias?

(e) Quais são os mecanismos ou justificativas de que se vale o poder judiciário,

especificamente o STF, para, ao invés de garantir direitos a partir da afirmação de

expectativas normativas em contextos fáticos de violação, valer-se de contingências

fáticas, em geral de natureza política e econômica, para justificar limitações à eficácia

das normas em suas decisões?

(f) O uso de argumentos baseados na reserva do possível, proporcionalidade,

razoabilidade, ponderação, adequação meios/fins, governabilidade e estabilidade

econômica relativizam a “força normativa” da Constituição?

(g) A adoção do efeito vinculante das decisões proferidas pelo STF é capaz de

“blindar” os tribunais ao acesso da população e de transformar o judiciário em um

mecanismo antidemocrático de chancela de medidas emergenciais adotadas pelo

governo?

(h) Pode-se considerar que a jurisprudência desenvolvida pelo Supremo Tribunal

Federal no sentido de restringir a participação social no controle concentrado de

constitucionalidade tem a função de intensificar o processo de concentração do seu

poder de decisão acerca das questões constitucionais?

(i) Quais são as justificativas apresentadas para a limitação da participação de

representantes da sociedade civil no controle de constitucionalidade brasileiro? Elas são

pertinentes ou aparentam encobrir outras razões/interesses?

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(j) A construção jurisprudencial do STF de fato restringe o acesso das entidades

da sociedade civil às discussões constitucionais? Há outras formas de participação

nesses debates?

(k) Como a sociedade civil participa da jurisdição constitucional no direito

comparado? Quais países conferem legitimidade ativa a entidades privadas e quais

limitam a propositura de ações diretas a órgãos estatais? Como o instituto do amicus

curiae é aplicado em outros países? Há institutos correlatos?

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INDICATIVOS PARA A PESQUISA DE SÚMULAS VINCULANTES E DA

REPERCUSSÃO GERAL COMO REQUISITO DE ADMISSIBILIDADE DOS

RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS: SUA ANÁLISE ANTE O ESTADO

DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A RELAÇÃO ENTRE DIREITO E

DEMOCRACIA

Paulo Henrique Blair de Oliveira

I – À guisa de introdução: uma breve justificativa dos temas específicos constantes na

presente análise.

Sob o ponto de vista da observação institucional dos instrumentos de jurisdição

constitucional agregados mais recentemente à ordem jurídica, dois deles se destacam, a

instituição das chamadas súmulas vinculantes e da repercussão geral do tema tratado em

um recurso extraordinário como requisito de sua admissibilidade, ambos acrescidos ao

texto constitucional pela emenda de número 45, de 8 de dezembro de 2004, posicionados

respectivamente no art. 103 –A e no art. 102, § 3º, da Constituição Federal (BRASIL,

2007, p. 84-85). Tal destaque se justifica porquanto é posta sobre estes instrumentos uma

pretensão bastante forte, que é a de solução para o imenso número de feitos que

tramitam perante o Supremo Tribunal Federal nas várias formas em que é exercida por

aquela corte o controle de constitucionalidade pela via difusa.

Em si, esta pretensão já revela uma pré-compreensão de que o principal

obstáculo para uma jurisdição constitucional difusa exercida a partir do Supremo

Tribunal Federal possa ser descrito como um fator de natureza numérica. Neste mesmo

sentido, a extensão deste raciocínio aos demais pontos de “congestionamento” do

aparelho judiciário traz esta questão numérica para o centro das preocupações,

produzindo-se uma análise que descreve (e, em certa medida, termina por reduzir) a

justiça a uma questão de números. A expressão “justiça em números” foi, desta forma,

incorporada aos parâmetros descritivos que o próprio que o Conselho Nacional de

Justiça atribui ao Poder Judiciário127.

Tomando-se em conta que a reflexão sobre o acesso à justiça certamente

perpassa o exame crítico de como e por quais instrumentos o Supremo Tribunal Federal

127 Cf. <http://www.cnj.gov.br/index.php?option=com_banners&task=click&bid=12>, acessado em 5 de dezembro de 2007. Ao tempo do acesso, já se achava disponível a terceira edição da análise denominada “A Justiça em Números”.

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compreende seu próprio papel na jurisdição constitucional difusa (ainda que, certamente,

esta análise de modo alguma esgote a multiplicidade sócio-jurídica da questão do acesso

à justiça), há uma contribuição que a observação institucional pode dar a este exame

crítico. Ante o recorte exemplificativo dos temas mencionados acima (súmulas

vinculantes e a repercussão geral como requisito de admissibilidade dos recursos

extraordinários), indica-se a necessidade de um exame de quais são as suas

potencialidades quais são seus os seus riscos na construção de uma concepção plural

tanto do acesso à justiça como também dos direitos fundamentais.

II - Exame do papel das súmulas jurisprudenciais.

Em dissertação de Mestrado em Direito, Estado e Constituição, defendida por

este pesquisador perante a Universidade de Brasília, este pesquisador teve ocasião de se

debruçar sobre as pretensões postas sobre as súmulas jurisprudenciais, a suportabilidade

destas pretensões por tais súmulas ante a teoria do direito e a teoria constitucional, e

apontar no sentido da existência de leituras constitucionalmente adequadas para tais

papéis no âmbito paradigmático do Estado Democrático de Direito128. Sem dúvida que a

experiência institucional da edição e aplicação de súmulas jurisprudenciais não difere,

em sua essência e em sua intenção, da natureza vinculante que a Emenda Constitucional

nº 45 pretendeu atribuir às súmulas que fossem doravante editadas pelo Supremo

Tribunal Federal, mediante "quorum" decisório qualificado de dois terços de seus

membros, para consolidar reiteradas decisões de observância obrigatória por todos os

órgãos judiciários e ainda por todos os integrantes da administração pública, direta ou

indireta, em todas as esferas da federação - União, Estados Membros e Municípios.

Mesmo as súmulas editadas por tribunais superiores claramente carregam a pretensão de

orientar e vincular bem mais do que a própria corte que a editou, mas também servir de

elemento unificador da interpretação do direito pelas instâncias que lhe são

processualmente inferiores. Daí porque as pretensões postas (ou, mais precisamente,

renovadas) nas agora súmulas vinculantes foi objeto de contraste com o processo

formador de uma das mais antigas (e mais revisadas) súmulas do Tribunal Superior do

Trabalho (a de número 90), com fito de verificar tanto a possibilidade de que tais

pretensões de controle interpretativo fosse atingidas, como também aferir que papel tal

128 OLIVEIRA, 2006.

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146

súmula pode cumprir no ambiente do discurso de aplicação do Direito. A súmula

referida foi tomada como objeto da pesquisa porque, ao versar sobre a questão central

dos salários, articula duas outras categorias fundamentais na inserção do sujeito, quais

sejam, o tempo e o espaço, ao definir em que condições um determinado deslocamento

espacial do trabalhador deve ser computado como tempo de trabalho e,

conseqüentemente, resultar no pagamento de salários (TRIBUNAL SUPERIOR DO

TRABALHO, 2006a, p. 23).

Uma leitura de senso comum dada ao art. 103 – A, § 1º, da Constituição Federal,

abriga a idéia de que seja possível fixar a interpretação de normas sobre as quais pese

controvérsia entre órgãos judiciários, ou entre estes e a administração pública, a partir do

pressuposto de que funcionalidade e racionalidade do sistema judiciário são obtidas

quando se impede uma multiplicação de ações sobre questões que seriam idênticas sob

esta ótica. A lógica de que este controle interpretativo é imprescindível à racionalização

dos trabalhos judiciários elevou-se à condição de senso comum, a tal ponto que mesmo

parte dos que manifestavam reservas a ela acabam por afirmar a natureza vinculante

destas súmulas como única "alternativa ao caos", consoante exemplifica opinião colhida

junto ao ministro Ricardo Lewandowski, pelo periódico eletrônico Consultor Jurídico

em sua edição de 22 de maio de 2006 (MOROSIDADE NA JUSTIÇA, 2006). Mesmo a

ministra Ellen Gracie, ao tomar posse no cargo de Presidente do Supremo Tribunal

Federal, afirmou que viabilizaria a aplicação de instrumento que, a seu ver, garantiria um

volume menor e uma qualidade maior de trabalho para a Corte: a súmula vinculante, já

estabelecida pela Emenda Constitucional 45. Na compreensão da ministra, este

mecanismo poderia contribuir para a eliminação da quase totalidade da demanda em

causas tributárias e previdenciárias e teria o extraordinário potencial de fazer com que

uma mesma questão de direito receba afinal tratamento uniforme para todos os

interessados (REPERCUSSÃO GERAL, 2006). Dando eco a este senso comum, há

juristas que tomam as súmulas vinculantes como capazes de ensejar uma definição

célere do processo, autorizando o manejo da reclamação contra qualquer decisão,

encerrando rapidamente a ação e conceder mais certeza para aplicação obrigatória de um

entendimento determinado (OLIVEIRA JÚNIOR, 2006).

Estas pretensões de controle interpretativo e de "alívio da sobrecarga" de

processos judiciais são as mesmas que orientam normas infraconstitucionais que, no

processo civil e no processo trabalhista, expressam-se na leitura de normas que vedariam

a admissão de recursos quando o órgão prolator da decisão recorrida entender que esta

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147

estiver em conformidade com súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior

Tribunal de Justiça ou do Tribunal Superior do Trabalho. As disposições normativas

neste sentido são presentes, dentre outros, na redação que se acha em vigor dos artigos

518, § 1º, do Código de Processo Civil (BRASIL, 2006a, p. 1) e 896, § 5º, da CLT

(BRASIL, 2006c, p. 139). A disseminação desta lógica operacional chegou, até mesmo,

a ponto de se buscar estendê-la ao primeiro grau de jurisdição, permitindo-se ao juiz que,

estando diante questões "apenas de direito", e já tendo decidido matéria "idêntica" em

sentido contrário, conclua pela improcedência da pretensão do autor de forma sumária,

sem a necessidade de que o réu seja citado, dispensando-se até mesmo a formação da

clássica relação processual triangular.

Todavia, a questão tem também levantado preocupações que, embora em sentido

oposto, também passaram a ser tratadas como senso comum de outra parte de juristas.

Trata-se da idéia de que súmulas jurisprudenciais, tomadas desta forma "vinculativa"

poderiam resultar em um aprisionamento da jurisprudência. É o que se vê,

exemplificativamente, na manifestação do advogado Roberto Busato, no sentido de que

tais súmulas se transformariam no "rolo compressor da cúpula do Judiciário sobre a

grande maioria dos juízes de primeiro e segundo graus" e que seriam "um artifício que

engessa por completo as decisões dos juízes das instâncias inferiores" (REFORMA DO

JUDICIÁRIO, 2006).

A pesquisa feita propôs que ambas estas posturas (a de que súmulas propiciem

uma celeridade processual ou de que elas sejam um entrave à evolução interpretativa no

Direito) assentam-se no pressuposto de que a linguagem possa ser controlada (de sorte

que aplicadores do Direito possam lançar mão de um resultado já construído

aprioristicamente), e de que (por conseqüência) existam casos idênticos em que essas

decisões a priori pudessem ser implementadas. Em uma frase, a hipótese levantada foi a

impossibilidade de que linguagem e interpretação possam ser aprioristicamente fixados e

a existência de um papel constitucionalmente adequado às súmulas jurisprudenciais.

Porém, igualmente formula a hipótese da existência de um potencial de racionalidade

lingüística e de racionalidade hermenêutica que permitam conceber o papel

constitucionalmente adequado para o uso das súmulas jurisprudenciais.

A análise procedida na pesquisa fez uso da Teoria Discursiva do Direito, de

Jürgen Habermas (2002b, p. 452-453), o qual, ante os limites da linguagem e ante os

usos lingüísticos que a modernidade simultaneamente libera (o estratégico e o

comunicativo), retoma a busca por uma racionalidade que somente pode ser universal

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em concreto e de modo intersubjetivo (HABERMAS, 2001b, p. 52-54 e 58). A segunda

ferramenta teórica utilizada foi o conceito de integridade no Direito, formulado por

Ronald Dworkin, no qual será tematizada uma tensão que marca em especial as súmulas

jurisprudenciais: o confronto entre certeza do Direito (na sua abstração e generalidade,

como conquistas fundamentais da modernidade) e a realização de uma justiça que

obrigatoriamente deve considerar toda a especificidade de cada caso concreto posto ante

o crivo do aplicador do Direito (DWORKIN, 1999, p. 7-8, 271-272).

Ao se trabalhar, em uma análise, perspectivas do giro lingüístico-pragmático e do

giro hermenêutico não se anulou as diferenças entre estas posturas teóricas, mas se fez

uso da oposição entre ambas, da tensão estabelecida entre elas, que permite percebê-las

como complementares (CAMERON, 1995, p. 261-263). Na particularidade e na

incontrolabilidade das formas de linguagem buscou-se demonstrar a necessidade de que,

ao operarmos com enunciados sumulares dotados de pretensão de generalidade, façamos

a reconstrução dos elementos (vestigiais que sejam) da racionalidade que deu origem a

esta pretensão de universalidade (HABERMAS, 1987, p. 32). De outra parte, a pretensão

de universalidade presente na hermenêutica filosófica permitiu ver que a compreensão e

aplicação de um enunciado sumular são frutos de uma tradição interpretativa, e que é

indispensável considerar-se todas as particularidades de cada caso concreto.

A pesquisa utilizou ainda outros autores nas respectivas tradições teóricas

trabalhadas por Jürgen Habermas e Ronald Dworkin. É o caso de Ludwig Wittgenstein,

no que concerne às origens do giro lingüístico-pragmático sobre o qual se assentam os

pressupostos teóricos habermasianos. É também o caso de Hans-Georg Gadamer, no que

tange à formulação de um giro hermenêutico-filosófico, a partir do qual são articuladas

duas idéias centrais para Ronald Dworkin, a noção do "encadeamento" do Direito e de

integridade do Direito. Porém, o recurso feito a estes outros autores não objetivou um

"grande e abrangente resumo" da Teoria Constitucional sob o influxo do giro pragmático

e do giro hermenêutico, mas somente uma compreensão melhor de parte dos pontos de

partida das reflexões dos marcos teóricos que centrais na pesquisa, repelir pretensões

totalizantes de cada uma destas teorias e demonstrando que a sua utilidade reside

precisamente no fato de que, nelas, a questão do método toma um outro rumo. O que tais

autores têm de comum é o fato de tomarem a razão como falível e parcial, sabedores de

que o aprofundamento da análise de um aspecto não se pode fazer sem um sacrifício

(provisório que seja) da visibilidade de outros aspectos do mesmo problema a ser

investigado. Porém, todos também abraçam uma possibilidade - ainda que reconstrutiva

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- para o uso da razão, em um esforço bastante típico de um período que, no dizer de

Giddens, é marcado por uma compreensão que, até em nível institucional, já vê a razão

moderna como limitada e, desta forma, repensa a si mesma (GIDDENS, 1992, p. 4 e 6).

Ao final da análise do processo de formação da súmula 90, do Tribunal Superior

do Trabalho, foi constatada a falibilidade das pretensões de que súmulas de

jurisprudência pudessem servir de instrumento de controle da linguagem ou como

soluções construídas aprioristicamente para casos considerados “idênticos” – ou mesmo

que não é a rigor possível falar em casos que sejam efetivamente idênticos. Uma leitura

que insistisse na possibilidade de apreensão da "literalidade" do contido naquela súmula

esbarrava com a constante necessidade de edição de novas súmulas e orientações

jurisprudenciais "explicativas". Os mesmos dados empíricos indicaram uma verdadeira

impossibilidade de que de antemão fossem controlados de modo absoluto os sentidos das

normas para os seus aplicadores futuros. A existência de súmulas resultantes da

agregação de outras súmulas e de orientações jurisprudenciais anteriores revela uma

incessante mutação interpretativa que conflita com esta pretensão. Paradoxalmente, este

ambiente de mudança interpretativa aprofunda o desafio de levar-se o Direito a sério na

especificidade de sua aplicação.

O enfoque do giro pragmático-lingüístico revelou que, como todo uso da

linguagem, a enunciação de súmulas jurisprudenciais renova a oportunidade para o uso

abusivo que já se achava presente nas normas que tais súmulas buscam interpretar. O

uso de novas e mais complexas formas de enunciação lingüística do sentido dado às

normas, ao tempo em que incorpora novas vivências, abre espaços de visibilidade

também novos, permitindo a descoberta de possibilidades antes não vistas de abuso do

Direito. A trajetória da formação da súmula 90, do Tribunal Superior do Trabalho, é

pródiga de exemplos neste sentido nas sucessivas etapas históricas de sua formação. A

descrição desta trajetória formadora demonstrou, na praxis judiciária, que o uso de

súmulas de jurisprudência não é isento de modo algum de riscos, e que tais riscos se

agigantam quando o aplicador do Direito sobrecarrega tais súmulas com a pretensão de

que elas possam aclarar o sentido das normas para além de quaisquer dúvidas. Sob o

ponto de vista da Teoria Discursiva do Direito, estas súmulas são atos de fala cuja

abstração e generalidade são apenas um pouco menores do que as normas sobre as quais

elas versam. Isto porque são oriundas de um processo no qual a aplicação reiterada das

normas incorporou uma experiência vivencial. Contudo, a pretensão de aplicação de

súmulas aos casos futuros requer que nelas esta riqueza vivencial seja reconduzida

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novamente a um certo grau de generalidade. Deste modo, súmulas jurisprudenciais não

podem ser tomadas elas próprias como atos de julgamento em sentido mais estrito.

A Teoria Discursiva do Direito permitiu compreender, nas súmulas

jurisprudenciais, um potencial para o seu uso legítimo, mediante o respeito à

racionalidade comunicativa que elas tematizam, abandonando-se pretensões oriundas de

uma racionalidade que, em seus delírios e excessos, ocultavam este potencial. Para tanto,

o seu uso pelo aplicador vai requerer mais do que a simples identificação da origem, isto

é, mais do que a sua invocação como argumentos de autoridade. A racionalidade

comunicativa potencialmente presente nelas requer que se leve em conta o seu processo

formador, as razões presentes na descrição de fatos contida nelas e as justificativas dadas

como conseqüências jurídicas de tais fatos. Um uso comunicativamente racional destas

súmulas busca a sua legitimidade para além de seu uso repetitivo, insistindo que em sua

aplicação seja exercido um juízo de adequabilidade face contingências específicas de um

caso concreto. A aplicação legítima e adequada de súmulas de jurisprudência não pode

ser regida apenas por parâmetros semânticos, ou do contrário as razões que

fundamentam a aplicação apenas descreverão novamente regras gerais e abstratas,

incidindo em uma circularidade que, ao final, torna desfundamentada a decisão judicial,

violando a exigência constitucional presente no artigo 93, IX, da Constituição Federal.

Estas decisões, como atos de fala que são, poderão reivindicar legitimidade, na medida

em que seu autor esteja pronto a justificar, argumentativamente, as razões de veracidade

e de adequabilidade do sentido com o qual uma determinada súmula foi aplicada no

caso, reconstruindo o vínculo entre as razões da validade geral e abstrata do enunciado

sumular e a adequabilidade do sentido que se dá àquela súmula ante as contingências e

especificidades do caso. Esta é uma imposição do princípio democrático na aplicação do

Direito, para que assim ele cumpra o papel integrador de, simultaneamente, sedimentar

um passado institucional, e dar aos afetados pela norma a possibilidade de recebê-la

como legítima, ainda que se oponham a ela.

Neste sentido, súmulas não encerram o dissenso, porquanto, ao emergirem como

síntese de razões já aplicadas anteriormente, elas imediatamente reabrem o debate sobre

os sentidos dados por elas às normas. Apesar de se apresentarem como o término de um

debate nos tribunais, estas súmulas abrigam a pretensão de incidência em casos futuros.

Por isto, ao ganharem um grau de generalidade, irão requerer, na aplicação futura, a sua

adequabilidade a cada caso específico.

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A pesquisa apontou para a conclusão de que súmulas de jurisprudência irão

certamente aumentar a complexidade lingüística especializada no Direito, de modo que a

estabilidade que elas podem trazer é apenas a compreensão de que os sentidos na

linguagem especializada do Direito estão sempre em movimento, em constante

reconstrução. Uma estabilidade que não é jamais estagnação, mas, ao contrário, abertura

permanente para a divergência e para a mudança, produzindo conteúdos variáveis em

sua trajetória. É esta possibilidade de dissenso, aumentada pelas súmulas

jurisprudenciais, que pode até mesmo reforçar os vínculos entre Direito e democracia,

sendo esta uma compreensão mais adequada ao Estado Democrático de Direito quanto

ao papel destas súmulas.

De outra parte, esta abertura para o dissenso e para o futuro pode ser tomada

como indicativo claro, sob a perspectiva do construtivismo dworkiniano, que, mesmo

integrando as concepções prévias de um intérprete, estas súmulas não interditam a

possibilidade dos novos significados - ao contrário, na verdade dão origem a indagações

ainda mais complexas e, deste modo, realimentam o processo hermenêutico. Súmulas

jurisprudenciais portanto não exoneram riscos e dúvidas interpretativas. Ao invés, a

inevitabilidade da condição hermenêutica requer que elas sejam tomadas como uma

expressão da permanente reconstrução de sentidos. Como texto que elas próprias são,

desde o momento em que editadas, passam a novamente fazer parte de um círculo

hermenêutico. Logo, a segurança jurídica que pode emergir delas é somente a concessão

de uma maior visibilidade a este processo de mutação, resultando disto a possibilidade

de que a alteração de sentidos (ou a resistência a ela) seja enfrentada de modo

argumentativo, público, adequado e caso a caso. Ou, dito de modo dworkiniano: a

segurança jurídica que emerge de uma compreensão principiologicamente coerente do

ordenamento jurídico é aquela que exige que o Direito seja lido como integridade, e que

princípios sejam tomados sempre sob uma ótica deontológica, exigindo-se que a

adequação de sua incidência seja demonstrada caso a caso. Isto permitirá a produção de

respostas únicas e corretas para as dúvidas postas diante do aplicador do Direito - desde

que resposta única e correta seja compreendida aqui como correta para o caso específico.

Isto porque a irrepetibilidade hermenêutica de eventos nos aponta a

impossibilidade de que existam "casos idênticos" em sentido estrito. E, quando menos,

mesmo o intérprete que lançar mão de uma súmula de jurisprudência incorpora esta

experiência ao seu horizonte, e assim o modifica. Em uma próxima ocasião não serão

mais os mesmos, nem o caso, nem o próprio aplicador do Direito. A permanência que

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uma súmula pode buscar é somente a condição de sua permanente mudança, a sua

abertura para indagações crescentemente complexas e o seu refazimento como resposta a

estas situações. Neste sentido, a trajetória da súmula 90 do Tribunal Superior do

Trabalho foi considerada exitosa, ainda que por razões diametralmente opostas àquelas

postas pelos que buscavam em súmulas (vinculantes ou não) um modo de homogeneizar

a interpretação do Direito.

Quanto ao papel constitucionalmente adequado às súmulas jurisprudenciais no

Estado Democrático de Direito, concluiu-se que ele requereria a percepção de que

súmulas jamais poderão regular, elas mesmas e a priori, as suas condições de aplicação.

Neste sentido é inconstitucional - por violar a exigência de fundamentação das decisões

judiciais e a integridade do Direito - qualquer tentativa de inferir-se, mediante uma

abstração lógica (mesmo que extraída inicialmente de um caso concreto), que pretenda

eliminar o ônus de o aplicador fundamentar a adequabilidade do sentido que ele dá às

normas cuja incidência foi acolhida em cada nova situação. Aqui, é necessário um

cuidado com esta afirmação: a pretensão uniformizadora das súmulas de jurisprudência,

ou mesmo a afirmação de que sejam vinculantes não é em si inconstitucional. É preciso

indagar o que tais súmulas podem uniformizar ou vincular de fato em um determinado

caso. Sob a ótica da integridade, apenas naquele caso será possível examinar se os

argumentos envolvidos na sedimentação jurisprudencial representada por uma

determinada súmula guardam a coerência principiológica para com a forma indisponível

do Direito.

Emergiu, na pesquisa, a questão em torno dos limites da razão e a falibilidade de

métodos ou de modelos de aplicação do Direito. Súmulas de jurisprudência não são tudo

o que as pretensões de um senso comum teórico lhes têm cobrado, até porque tais

pretensões não são nem lingüisticamente nem hermeneuticamente realizáveis, violando

tanto a vinculação entre Direito e Democracia que é enfatizada na Teoria Discursiva de

Jürgen Habermas, quanto a proposta de Ronald Dworkin de que a leitura do Direito

como integridade conduza ao aprofundamento dos compromissos de uma comunidade

política para com os direitos que ela elegeu como fundamentais.

Porém tais súmulas de jurisprudência não podem ser repelidas como se não fosse

possível dar a elas um uso constitucionalmente adequado. Sob o enfoque da Teoria

Discursiva, pode-se ver que as súmulas de jurisprudência são portadoras de um potencial

de racionalidade comunicativa capaz de gerar uma complexidade exponencialmente

crescente dos juízos de adequabilidade dos princípios jurídicos, reforçando em muito a

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relação entre Direito e Democracia, por abrigar a possibilidade do dissenso e respeitar a

natureza contra-fática e contra-majoritária que são próprias da distinção que uma

constituição articula entre Direito e Política. E, sob a compreensão do Direito como

integridade, tais súmulas jurisprudenciais agregam complexidade ao círculo

hermenêutico no curso do "encadeamento" do Direito. Isto reafirma a percepção de que

direitos fundamentais são "trunfos" para que, democraticamente, uma minoria subsista

de modo digno ante o governo de uma maioria, estabelecendo coerência principiológica

(e não sacrifício mútuo) entre liberdade e igualdade na adjudicação de direitos.

Em síntese, a pesquisa apontou para o fato de que súmulas jurisprudenciais

(vinculantes ou não) não suportam a pretensão de conterem parâmetros para um

julgamento absolutamente "verdadeiro". Ao contrário, quando assumida a precariedade e

a necessária condição hermenêutica presentes nas interpretações do Direito, aí sim é

possível que súmulas de jurisprudência estabilizem procedimentalmente a complexidade

do Direito necessária ao se lidar com a complexidade e com a riqueza da vida humana.

III - Exame do papel da repercussão geral como requisito de admissibilidade dos

recursos extraordinários.

Em projeto de tese que está sendo desenvolvido por este pesquisador no âmbito

do Programa de Doutorado em Direito, Estado e Constituição da Universidade de

Brasília, foi considerado um segundo aspecto presente na Emenda Constitucional 45, de

30 de dezembro de 2004. Trata-se do acréscimo, no art. 102, da Constituição Federal, do

parágrafo terceiro, instituindo como requisito de admissibilidade dos recursos

extraordinários a demonstração da "...repercussão geral das questões constitucionais

discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do

recurso" (BRASIL, 2006b). A exemplo do que se deu com as súmulas vinculantes, este

instrumento foi reputado meio de contenção seletivo dos recursos extraordinários, de

modo a viabilizar uma redução no volume de recursos extraordinários apreciados pelo

Supremo Tribunal Federal, e, deste modo, permitir que sejam examinadas sob a via do

controle difuso de constitucionalidade, no âmbito daquela corte, apenas questões de

maior relevância e repercussão. Manifestações de juristas carregam, não sem polêmica, a

expectativa de que a exigência desta repercussão geral dê maior celeridade aos recursos

extraordinários e aprofunde a análise de matérias estritamente constitucionais pelo

Supremo Tribunal Federal, como afirmou a Presidente da corte, Ministra Ellen Gracie

(ERDELYI, 2006).

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Tais expectativas demonstram a relevância de uma observação e investigação do

tema. A pretensão posta sobre ele é nada menos que a solução em definitivo a chamada

"crise do recurso extraordinário", acrescendo racionalidade, segurança e celeridade à

jurisdição de uma forma geral e, em particular, ainda aprofundando o perfil estritamente

constitucional do Supremo Tribunal Federal. Esta investigação deve apontar como e se

críticas iniciais podem ser suplantadas para que a repercussão geral exigida como

requisito de admissibilidade de recursos extraordinários reafirme de modo democrático e

legítimo o papel do controle de constitucionalidade pela via difusa. Para tanto, é

necessário tematizar os riscos envolvidos na utilização deste instrumento, de modo a

lidar-se com eles adequadamente. É preciso investigar o papel deste instrumento na

sedimentação de jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, para

verificar se esta sedimentação sofre impactos deste novo requisito de admissibilidade na

viabilidade reconstrutiva permanente d o sentido que atribuímos a nossos direitos e

garantias fundamentais.

Pode ser útil a esta investigação, ainda em fase embrionária, a reconstrução da

trajetória de praxis institucional da Suprema Corte dos Estados Unidos da América,

porquanto de há muito tal corte já vem se apoiando em seletividade semelhante,

exercendo-a em jurisdição constitucional difusa. A premissa teoria que se deseja aplicar

aqui é a de que direitos não se acham necessariamente enumerados, isto é, não esgotam

na literalidade do texto da norma (DWORIN, 1985, p. 173) e, deste modo, abrem-se para

novos sentidos futuros. Assume-se o conceito de que a leitura correta do texto da

constituição é antes de tudo principiológica (DWORKIN, 2002, p. 37) e que há um papel

institucional importantíssimo para a jurisprudência na construção dos significados e

limites (ainda que limites historicamente mutáveis) destes direitos fundamentais

(MENDES, 2002, p. 1).

Esta análise opõe-se a que o Texto Constitucional seja utilizado como pretexto

para a sua própria desconstrução, mas dá a ele uma leitura principiológica coerente com

o processo de aprendizagem que resulta da reconstrução crítica de uma história

institucional de aplicação de normas jurídicas, lendo as normas constitucionais sob o

enfoque dos compromissos de uma comunidade política com a afirmação basilar da

igualdade e liberdade dos seus integrantes (DWORKIN, 1999, p. 243 e p. 251).

Portanto, neste item, a pergunta a ser respondida pela pesquisa em andamento

pode ser sintetizada da seguinte forma: levando-se em conta as pretensões e as críticas

que um senso comum teórico tem aplicado sobre a norma do artigo 102, § 3º, da

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Constituição Federal, e que este senso comum as oculta, que leitura deve ser dada, ante

os princípios constitucionais vinculativos de nossa comunidade política, para o requisito

de repercussão geral como condição de admissibilidade dos recursos extraordinários? A

hipótese levantada na pesquisa em curso é a de que a seletividade na admissão dos

recursos extraordinários, afastando-se da pretensão de semanticamente fixar o conteúdo

de direitos fundamentais em definitivo, permita uma constante reconstrução o horizonte

de sentidos dos direitos fundamentais, mantendo a abertura destes direitos para o futuro,

aprofundando a visibilidade do papel de corte constitucional do Supremo Tribunal

Federal e, simultaneamente, servindo ela própria como garantia fundamental da

importância de que a justiça não seja negada à geração presente. Uma hipótese,

portanto,que articula em sua formulação as dimensões passada, presente e futura na

adjudicação de direitos.

O problema e a hipótese mencionados aqui exigem o exame da relação entre o

tempo e a atribuição de sentidos às normas e às práticas sociais, sob um enfoque voltado

para a compreensão dos direitos fundamentais como resultantes de um compromisso

político ainda aberto para o futuro, porém cuja forma constitucional (a articulação e a

tensão entre liberdade e igualdade) não pode ser tornada disponível, nem mesmo sofrer

sacrifícios mútuos. É viável esta análise porquanto a leitura dada a toda praxis social

(inclusive, portanto, à praxis dos sentidos normativos) estabelece-se como campo no

qual é possível resgatar os vestígios de uma racionalidade efetivamente comunicativa na

formação do constitucionalismo como marco essencial da modernidade (HABERMAS,

1998, p. 168 e seguintes).

Semelhantemente ao que ocorre com súmulas jurisprudenciais, é duvidoso que a

corte possa aplicar uma "compreensão sobre repercussão geral a casos idênticos". Isto

exigiria não apenas a existência de tais casos idênticos, mas também que as afirmações

feitas pela corte na apreciação de casos anteriores ou na edição de uma súmula de

jurisprudência prescindissem de nova interpretação. Estes pressupostos são pouco

sustentáveis, à luz da noção hermenêutica da irrepetibilidade dos eventos e a

conseqüente exigência, feita ao aplicador da norma, de que seja pensada a também única

solução correta para aquele caso irrepetível (RICOEUR, 1995, p. 146 e DWORKIN,

2000, p. 203-204), através de um verdadeiro "encadeamento" narrativo dos sentidos das

normas através da multiplicidade e da singularidade de cada um dos casos concretos

examinados ao longo da formação de uma tradição interpretativa sobre o sentido das

normas (DWORKIN, 2000, p. 240).

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Mas este limite não significa a ausência de um papel constitucionalmente

adequado para uma seletividade hermenêutica exercida pela corte na admissão de

recursos extraordinários. Ao contrário, a tradição mais antiga e sedimentada na

jurisdição constitucional pela via difusa - a tradição norte-americana - pode revelar como

esta seletividade é em si mesma realimentadora e reconstrutora de um horizonte de

compreensão sobre os direitos fundamentais de uma comunidade política, tanto nos

momentos em que expressamente fala sobre um determinado tópico, como nos

momentos em que se recusa a conhecer dele. A investigação do potencial rico desta

tradição é um dos objetos específicos da pesquisa proposta aqui.

Por este motivo é que a pesquisa do tema se volta para a leitura do Direito como

integridade. Tal marco volta sua análise para a tradição que deu origem à jurisdição

constitucional desenvolvida nos Estados Unidos da América e debate, no contexto desta

tradição, a repercussão interpretativa estabelecida a partir tanto das manifestações

expressas quanto dos silêncios (eloqüentes) da Suprema Corte, na medida em que, ao

não conhecer de uma determinada questão, a corte em verdade ratifica tacitamente as

interpretações que vêm sendo adotadas até então. Sem dúvida, é uma tradição

respeitabilíssima, na qual a grande contribuição para o constitucionalismo é

precisamente a noção de um judicial review no qual no qual convivem riscos e imensas

possibilidades da reafirmação da Democracia pelo Direito (DWORKIN, 2006, p. 139).

Vale notar que a analogia entre o instituto da repercussão geral e a imensa

seletividade aplicada pela Suprema Corte dos EUA na admissão dos casos submetidos a

ela já era confessada no voto do relator do projeto de lei que veio a regulamentar o tema,

ainda quando tal projeto tramitava na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos

Deputados. No penúltimo parágrafo, aquele voto afirmava que a implementação da

medida possibilitará a atualização de nosso sistema de controle de constitucionalidade,

tornando-o mais semelhante ao sistema norte-americano (tradição constitucional que, ao

lado do sistema germânico, é considerada por aquele relator como formadora do sistema

brasileiro de controle de constitucionalidade - CUNHA, 2006). É certo que o exame

comparativo entre dois sistemas jurídicos distintos há de ser tratado com o cuidado

necessário a que um argumento de analogia não se justifique a si próprio, produzindo

uma impostura. Mas, este cuidado não deve impedir o que Bouveresse (2005, p. 141 e

seguintes) denomina de uso necessário da liberdade científica para os fins críticos que

caracterizam a própria ciência. Espera-se com isto que a investigação proposta desvele

um horizonte crítico, a partir do qual se possa problematizar, desde seu início, a

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seletividade procedimental instituída na referida Emenda Constitucional 45, de 30 de

dezembro de 2004.

IV – Conclusão: um indicativo para a continuidade nas observações dos temas tratados

aqui.

A exposição resumida feita nos itens anteriores buscou servir como fundamento

que destaca não um caráter de “novidade” nestes dois instrumentos de jurisdição

constitucional (súmulas vinculantes editadas pelo Supremo Tribunal Federal e a adoção

da repercussão geral como requisito de admissibilidade de recursos extraordinários)129,

mas aponta para o fato de que seu acompanhamento é de grande relevância para um

Observatório da Justiça Brasileira, especialmente quando voltado para as questões do

acesso a ela. Ainda que os tribunais (felizmente) não esgotem em si o conceito de justiça

– nem as formas de acesso a ela – sem dúvida que ocupam uma posição de centralidade

que não é apenas formal, mas sim decorrente de um imperativo sociológico sistêmico

que lhes é particular: eles são obrigados a decidir as questões que lhes são postas, ônus

que não pesa de forma obrigatória (ao menos sob o ponto de vista constitucional) sobre

outras instituições no sistema do direito (LUHMANN, 2005, p. 381 e p. 387). A

centralidade do papel dos tribunais, no sistema do direito, deve levar a uma cautela ainda

maior quando se observa o papel da jurisdição constitucional no acesso à justiça. Uma

vez mais, embora o Supremo Tribunal Federal não esgote a jurisdição constitucional, ele

certamente tem um mandato institucional para atuar fortemente em seu balizamento

(Constituição Federal, art. 102). Deste modo, e se, vista novamente sob a ótica da

sociologia do direito, as constituições articulam em si direito e política (LUHMANN,

1990, p. 35-39). Isto sugere que é imperioso que se continue a análise crítica da práxis

que venha a ser estabelecida, pelo Supremo Tribunal Federal, nas súmulas vinculantes e

na repercussão geral como requisito de conhecimento da jurisdição constitucional pela

via difusa. Estes instrumentos são, a um só tempo, dotados de grandes potencialidades e

129 A rigor, como visto na exposição sobre as pretensões de senso comum incidentes sobre estes instrumentos, e como já indicam a norma de lei e a alteração regimental no âmbito do STF sobre a repercussão geral dos recursos extraordinários, há muito pouca novidade nas idéias que originalmente fundamentaram estes instrumentos. Em ambos, prevalece ainda a pretensão de uma racionalidade judiciária que toma a prestação jurisdicional prioritariamente com um recorte estatístico e propõe soluções que tanto tendem a desconsiderar especificidade entre demandas diversas, ignorando a inevitabilidade hermenêutica da compreensão de cada momento no curso do tempo e não atentando para a tessitura necessariamente aberta da linguagem. Sob esta ótica, tais instrumentos apenas repetem as pretensões de há muito já postas sob as súmulas jurisprudenciais, e que não foram atingidas não por uma “rebelião de instâncias inferiores” (como demonstra o pequeno índice de reforma destas decisões pelos Tribunais Superiores e pelo Supremo Tribunal Federal), mas porque são em verdade irracionais.

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de grandes riscos no que tange ao acesso à justiça e à construção de vínculos – que entre

nós ainda precisam ser grandemente incrementados – entre direito e democracia, no

reforço à exigência de que todo constitucionalismo seja democrático e emancipatório,

afastando-se da perversidade a qual se refere SANTOS (2005, p. 1-2).

Propõe-se, nesta linha, que o Observatório da Justiça Brasileira tome, entre suas

tarefas, o mapeamento periódico das súmulas chamadas vinculantes e das decisões sobre

a repercussão geral de temas trazidos em sede de recurso extraordinário perante o

Supremo Tribunal Federal, fazendo incidir sobre estes dados uma análise crítica de seus

efeitos na relação entre direito e democracia e no acesso à justiça.

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Os critérios ocultos do uso seletivo da Constituição pelos Tribunais

Paulo Rená da Silva Santarém

Ricardo Machado Lourenço Filho

Aquisições evolutivas do Direito

Violações da Constituição da República Federativa do Brasil não justificam um

pronunciamento judicial. Essa é a regra construída na jurisprudência do Superior

Tribunal de Justiça, no Tribunal Superior do Trabalho e no Supremo Tribunal Federal

Trabalho130, a partir da interpretação de normas que regulam os julgamentos. Há

exceções, que não são poucas, mas que são minoria, e nas quais permanecem ocultos os

critérios pelos quais as Cortes decidem analisar ou não uma demanda pelo parâmetro do

texto constitucional.

Seguindo a trajetória evolutiva dominante entre as nações ocidentais, a

Constituição Federal ocupa um posto assimétrico na estrutura legal do ordenamento

brasileiro. Suas disposições são fortalecidas pela maior dificuldade de alteração de seu

texto. Assim (mesmo considerando as flutuações da intensidade de democracia e

autonomia popular), desde sua primeira versão, em 1824, até a atual, de 1988, sua

pretensão é materializar e dar maior proteção aos determinados anseios políticos por

direitos. Nessa posição, ela serve de anteparo para a verificação de justiça das demais

normas, denominadas “infraconstitucionais”.

Os tribunais brasileiros também detêm um posto assimétrico. Como incremento

evolutivo da institucionalização do procedimento que leva à decisão, os tribunais se

colocam como segundos observadores de uma prévia observação: sua atribuição é

proferir decisões que avaliem outras decisões, proferidas nos graus de jurisdição

anteriores, tendo como parâmetro as disposições legais e como meta a congruência entre

os posicionamentos adotados no território sob sua jurisdição. Especificamente, os

tribunais superiores se baseiam nas normas federais e devem manter a uniformidade das

decisões em todo o território nacional, considerando a estrutura federalista.

Essas duas aquisições evolutivas, a Constituição e os tribunais superiores, têm

em comum a capacidade de permitir que o direito não mais precise recorrer a uma

justificação “externa” para os pronunciamentos jurídicos. São formas de internalização,

130 Excluem-se dessa enumeração o Tribunal Superior Eleitoral e o Superior Tribunal Militar, tendo em vista os baixos volume e constância das decisões que esses tribunais produzem, bem com a natureza especial de que tratam.

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reflexividades pelas quais as comunicações jurídicas produzem e reproduzem a si

mesmas, de forma autônoma. Tanto as leis podem ser consideradas contrárias ao direito

porque contrariam uma lei maior como as sentenças podem ser consideradas contrárias

ao direito por meio de um novo julgamento.

A partir dessas considerações, pode-se então observar como os tribunais

verificam se as decisões proferidas estão ou não de acordo com a Constituição.

O uso da Constituição nos tribunais superiores

Primeiro, é necessário pontuar que, na evolução da instrumentalização do

procedimento decisório, a decisão se configura como o momento de aplicação da regra,

e se distingue do nascimento dessa regra131. Esse pressuposto, disseminado no

ordenamento jurídico, permite que o momento da criação da regra seja prolongado. As

regras de legislação incorporam previsões claramente direcionadas a proporcionar o

debate das matérias, os quais podem resultar inclusive, sopesadas as conseqüências

perante a opinião pública, na não-criação de regra nenhuma. Diferentemente, ao Poder

Judiciário é vedado se esquivar de decidir. Uma vez proposta uma demanda judicial,

deve ser proferida uma sentença que ponha fim ao processo. Não obstante, a validade

dessa sentença exige que ela seja devidamente fundamentada, explicitando os seus

critérios decisórios132.

Uma primeira constatação paradoxal é que o fim do processo pode não se dar

com a solução jurídica da matéria em debate. Apenas se for encaminhada de acordo com

as regras processuais, uma controvérsia entre dois sujeitos de direito terá um

pronunciamento “com resolução de mérito”, ou seja, um pronunciamento que verse

sobre a incongruência de interesses que originou o pedido de um pronunciamento

judicial.

No âmbito dos tribunais superiores, são os recursos que movimentam o Poder

Judiciário, e eles também se submetem a regras de admissibilidade, as quais, se não

satisfeitas, permitem ao Estado-Juiz não se pronunciar quanta à matéria de fundo e dar

cabo ao processo em um nível apenas formal-processual. Antes de adentrar nesse tema, é

necessário explicitar a diferença entre os tribunais superiores.

De forma redutora, pode-se dizer que a atribuição precípua do STJ e do TST é

preservar a aplicação das leis federais, ao passo que a do STF é preservar a Constituição.

131 Cf. LUHMANN, Niklas, “A posição dos tribunais no sistema do direito”. In: Revista da Ajuris. Nº 49, ano XVII, julho de 1990. 132 Assim dispõem expressamente os artigos 93, inciso IX, da CF, 458 do CPC e 832 da CLT.

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Recompondo a complexidade, é necessário atentar que o ordenamento brasileiro admite

o controle difuso de constitucionalidade, ou seja, permite que também os juízes de

primeiro grau de jurisdição, ao analisar os casos concretos, exerçam o controle da

aplicação da Constituição, por exemplo, considerando que determinada lei federal não

deve ser seguida, porque inconstitucional. Essa decisão, contudo, pode ser seguida por

recursos que a levem a ser analisada posteriormente pelos tribunais superiores.

Na justiça do trabalho, o percurso pode ser explicado de forma simplificada nas

seguintes palavras. O empregado ajuíza uma a reclamação trabalhista, postulando o

recebimento de verbas a que teria direito em razão de determinada postura do

empregador, alegando que este violou uma cláusula de norma coletiva, um artigo de lei

federal e um artigo da Constituição. Indica ainda que lhe seriam favoráveis as decisões

tomadas em outros casos semelhantes, tanto pelos tribunais de sua e de outras regiões,

bem como as do TST e do STF. Recebida a reclamação, o empregador apresenta sua

contestação, infirmando as alegações do empregado, tanto quanto ao que aconteceu

quanto à sua pretensão, além de apontar eventuais falhas procedimentais no ajuizamento

da reclamação. Após analisar as provas produzidas, o juiz firma convencimento quanto

ao que aconteceu, analisa a situação à luz das normas pertinentes e profere uma

sentença, que suporemos desfavorável ao empregado. Este interpõe recurso ordinário ao

Tribunal Regional do Trabalho de sua região, indicando novamente os mesmo

fundamentos. O Empregado apresenta contra-razões e o tribunal reavalia as provas para

determinar o que aconteceu, reanalisa a situação pelo prisma normativo e profere um

acórdão, que suporemos novamente contrário ao interesse do empregado. Este recorre

novamente, agora ao TST, por meio de um recurso de revista, e esta contextualização

permite que adentremos no cerne da presente observação.

A norma processual que regulamenta os recursos de revista estabelece duas

hipóteses de cabimento. Na primeira, por divergência jurisprudencial, caso na decisão

recorrida o Regional tenha interpretado, de forma diferente da adotada pelo Pleno ou

Turma de um outro Tribunal Regional, pela Seção de Dissídios Individuais ou pela

Súmula de Jurisprudência Uniforme dessa Corte do Tribunal Superior do Trabalho, a)

um dispositivo de lei estadual, Convenção Coletiva de Trabalho, Acordo Coletivo,

sentença normativa ou regulamento empresarial, cuja vigência não se limite à jurisdição

do tribunal prolator, ou b) um dispositivo de lei federal. O objetivo é manter a

uniformidade das interpretações em todo o território nacional, evitando que em um

estado federativo se imponha uma regra diversa da imposta no estado vizinho.

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Na segunda hipótese, que é o objeto central da presente observação, o recurso de

revista deve ser conhecido caso a decisão recorrida implique “violação literal de

disposição de lei federal ou afronta direta e literal à Constituição Federal”133.

Antes passar diretamente ao exame do que seja a exigência da violação direta, e

de como ela representa uma forma de desconstitucionalização das controvérsias, é

necessário apontar que a presente observação também se direciona ao STF. Retomando

o itinerário processual acima, caso o TST mantenha a decisão contrária ao interesse do

empregado, este poderá ainda recorrer ao STF, por meio de um recurso extraordinário,

no qual se analisará a constitucionalidade da decisão134. Como este apelo também é

cabível justiça comum135, os problemas aqui apontados não se limitarão à jurisdição

trabalhista.

Além disso, sinale-se que a extensão do espectro possível de observação da

prática de desconstitucionalização poderia ser ainda ampliada ao máximo, uma vez que

o Tribunal Superior do Trabalho não julga apenas causas individuais, pois sua

competência inclui processos de natureza coletiva; e que o exercício do controle de

constitucionalidade pelo STF abrange ainda ações diretas de constitucionalidade e ações

declaratórias de constitucionalidade, que compõem o controle de constitucionalidade

abstrato.

As bases dos fundamentos decisórios

Na tomada das decisões, os tribunais valem-se não apenas das leis estritamente.

Outros elementos que orbitem a expectativa deduzida judicialmente são considerados

pelas decisões das cortes na medida em que possam ser relevantes para a utilização do

binômio direito ou não-direito, traduzível em convergente ou divergente (em relação à

interpretação por outros tribunais), legal ou ilegal e ainda constitucional ou

inconstitucional.

Nesse contexto complexo, as leis correspondem a programas condicionais (do

tipo “se, então”) que informam a aplicação do código. Isso possibilita a exclusão de

133 Art. 896, alínea “c”, da Consolidação das Leis do Trabalho. 134 Art. 102, III, “a”, da CF. 135 Na Justiça comum o recurso extraordinário é interposto diretamente a partir da decisão proferida pelo Tribunal do Estado (que na estrutura organizacional equivalente ao Tribunal Regional Trabalho), portanto, sem a necessidade de ser avaliada previamente pelo STJ, cuja competência se limita à análise da legalidade da decisão, nos termos do art. 105 da CF. Ressalte-se que como a Constituição apenas prevê expressamente a Justiça do Trabalho, sem delinear sua estrutura organizacional, a competência do TST é definida em legislação infraconstitucional.

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argumentos econômicos (vinculados ao poder de disposição material dos envolvidos),

políticos (voltados a finalidades e orientados a programas teleológicos), morais, ou,

ainda, religiosos, entre outros. A comunicação interna do direito exclui as racionalidades

que não possam ser “lidas” a partir do código direito/não-direito.

Entretanto, com freqüência é ocultado o uso desse código pelos próprios

tribunais segundo parâmetros que não propriamente jurídicos, principalmente em

utilização política ou econômica. O direito é jogado contra si mesmo, utilizado

juridicamente para negar o direito. Nas entrelinhas, subjazem, de forma não expressa,

razões políticas, econômicas ou mesmo religiosas. Evidências recolhidas na

jurisprudência brasileira apontam que essa corrupção do código traz consigo o

esvaziamento da normatividade constitucional. Normalmente nas hipóteses em que, por

um dado formal-processual, o Estado-Juiz não se isenta de proferir uma decisão, mas

emite um pronunciarem que não responde as questões que lhe foram apresentadas.

Há vários exemplos dessa postura “tangencial”, pela qual um incontável número

de processos é finalizado por uma decisão que não resolve o mérito. Os tribunais

superiores, incluindo o STF, entendem que não podem, em seus julgamentos, revolver

questões fáticas e probatórias136. Outro exemplo é a necessidade de

prequestionamento137, regra segundo a qual se o tema não foi previamente analisado na

instância anterior, de forma específica e pelo prisma aventado, o tribunal julgador do

apelo não pode apreciá-la.

As Cortes se utilizam desses fundamentos para negar seguimento aos recursos

que lhes são submetidos, fechando os olhos para o direito individual em debate, embora

prolatem uma decisão que formalmente responde ao pedido de reforma da decisão

anterior, mas com um “não” que oculta seus reais fundamentos.

A regra da admissão da violação indireta à Constituição

Talvez uma das práticas mais curiosas, senão perigosas, dos tribunais

superiores138 seja a utilização do termo “violação indireta”, para justificar a

desnecessidade de se analisar um caso concreto submetido a seu exame, por meio de

uma desqualificação formal da alegação do recorrente de que houve ofensa à

Constituição. 136 Ver Súmulas 279 do STF, 126 do TST e 7 do STJ. 137 Súmulas nº 282 e 356 do STF, 297 do TST. 138 Reitere-se que, em face da competência constitucional, o campo desta pesquisa se restringe ao Supremo Tribunal Federal e ao Tribunal Superior do Trabalho.

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Como dito, a legislação que regula o cabimento dos recursos de revista alude à

necessidade de demonstração de ofensa “direta” ao texto constitucional, sendo que em

processos de execução a admissibilidade exige a constatação de violação “direta e

literal”139. Mas a legislação não delimita o que pode ser uma violação indireta da

Constituição, e como ela pode ser admitida pelos tribunais a ponto de não justificar a

reforma de uma decisão anterior. Para tanto, podem-se observar algumas decisões cuja

linguagem utilizada revele o significado que se confere ao termo, a distinção semântica

que se traça.

Em freqüentes julgados é denegado seguimento ao recurso, sob o fundamento de

que as questões foram resolvidas pelas instâncias inferiores à luz de legislação

infraconstitucional e ensejariam “quando muito” ofensa indireta ao texto constitucional.

Uma recente decisão do STF asseverou que “a jurisprudência deste Tribunal

fixou-se no sentido de que a verificação, no caso concreto, da ocorrência, ou não, de

violação do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada [todos previstos

no art. 5º, XXXVI, da Constituição] situa-se no campo infraconstitucional”140.

Esse julgamento apenas reverbera a jurisprudência da Corte, segundo a qual “não

cabe recurso extraordinário por contrariedade ao princípio constitucional da legalidade,

quando a sua verificação pressuponha rever a interpretação dada a normas

infraconstitucionais pela decisão recorrida”141, entre outros exemplos:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO TRABALHISTA: DESCABIMENTO: Questão

de natureza processual ordinária, inocorrente violação direta e frontal aos dispositivos

constitucionais invocados (CF, arts. 5º, II, XXXV, LIV e LV, e 93, IX)” (STF-AgR-AI-

323.141/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, “in” DJ de 20/09/02).

“CONSTITUCIONAL - RECURSO EXTRAORDINÁRIO: ALEGAÇÃO DE

OFENSA AOS ARTS. 5º, II, XXXV, XXXVI, LIV, LV, 7º, XXIX, E 93, IX. I - Alegação de

ofensa à Constituição que, se ocorrente, seria indireta, reflexa, o que não autoriza a

admissão do recurso extraordinário. II - Ao Judiciário cabe, no conflito de interesses,

fazer valer a vontade concreta da lei, interpretando-a. Se, em tal operação, interpreta

razoavelmente ou desarrazoadamente a lei, a questão fica no campo da legalidade,

inocorrendo o contencioso constitucional. III - Agravo não provido” (STF-AgR-RE-

245.580/PR, Rel. Min. Carlos Velloso, 2ª Turma, “in” DJ de 08/03/02).

139 Art. 896, § 2°, da CLT. 140 STF-AI 663.405-AgR/RS, Diário da Justiça de 23/11/2007. 141 Súmula 636 do TST.

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“RECURSO EXTRAORDINÁRIO - ALEGADA VIOLAÇÃO AOS PRECEITOS

CONSTITUCIONAIS INSCRITOS NOS ARTS. 5º, II, XXXV, XXXVI, LIV , LV, E 93, IX -

AUSÊNCIA DE OFENSA DIRETA À CONSTITUIÇÃO - CONTENCIOSO DE MERA

LEGALIDADE - RECURSO IMPROVIDO. A situação de ofensa meramente reflexa ao

texto constitucional, quando ocorrente, não basta, só por si, para viabilizar o acesso à

via recursal extraordinária” (STF-AgR-AI-333.141/RS, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª

Turma, “in” DJ de 19/12/01).

Na mesma linha, o TST afirmou que “não há como se vislumbrar ofensa ao art.

5º, inciso II, da Constituição da República, porque a lesão ao referido texto

constitucional depende de violação de norma infraconstitucional, de forma que, somente

após caracterizada esta última, poder-se-á, indireta e reflexivamente, concluir que aquele

foi desrespeitado”142.

Também do TST tem-se a seguinte decisão: “para se chegar à violação do

princípio da ampla defesa, previsto no inciso LV do art. 5º da Constituição Federal,

fazia-se necessário, antes, analisar os termos da legislação infraconstitucional pertinente

à matéria em debate, o que se traduziria, no máximo, em eventual violação indireta ou

reflexa” (cf. TST-ERR-513.606/1998, Rel. Min. José Luciano de Castilho, DJ-7.5.2004).

Assim, pode-se observa a regra de que há “violação indireta” da Constituição

quando a normatização entre o texto constitucional e o caso concreto é mediada pela

legislação infraconstitucional. Uma decisão do STF sintetiza: “as alegações de violação

aos princípios da legalidade, da motivação dos atos decisórios, do devido processo legal

e do contraditório, quando demandarem a apreciação da legislação infraconstitucional,

configuram, em regra, situação de ofensa reflexa ao texto constitucional, o que impede a

utilização do recurso extraordinário”143.

No caso da época própria da correção monetária dos salários, tema regulado pelo

art. 459, parágrafo único, da CLT, em vários julgados do TST não se conhece dos

recursos, sob o argumento de que a matéria detém natureza infraconstitucional. O

mesmo vale ainda para o debate sobre a prescrição qüinqüenal, se parcial ou total, à qual

142 TST-EEDRR-31.214/2002-900-09-00, DJ de 17/08/2007. No mesmo sentido, entre outros, TST-RR-546.404/1999.3, DJ de 27/02/04; TST-RR-805/1999-014-05-00.2, DJ de 13/02/04; TST-RR-593.842/1999.3, DJ de 27/06/03; TST-RR-1.141/2003-011-06-00.1, DJ de 10/12/04; TST-RR-607.153/1999.1, DJ de 21/05/04; TST-E-RR-587.882/1999.0, DJ de 30/01/04. 143 AI 656.772-AgR/AM, DJ de 23.10.2007

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não se reconhece o caráter constitucional por se tratar de construção jurisprudencial, e

não estar regulada expressamente no art. 7°, XXIX, da CF144.

O exame dessa prática sugere algumas indagações. Quando se afirma que a

constatação de ofensa à Constituição depende de exame prévio de uma lei, não se estará

invertendo a assimetria, e lendo o parâmetro constitucional à luz das disposições

infraconstitucionais? Ou, ainda, mais curiosamente, a edição de uma lei ordinária que dê

conteúdo à previsão constitucional, ao invés de reforçar, tem o condão de enfraquecer a

normatividade do texto constitucional?

Os critérios ocultos e a exceção à regra da violação indireta

A perplexidade aumenta, contudo, quando uma análise mais detalhada da

jurisprudência do STF e do TST revela certos casos em que essa regra é relativizada. Em

casos “especiais”, entende-se que a violação, mesmo não sendo direta, permite o

conhecimento do recurso. O problema está que a forma argumentativa utilizada não

transparece quais os critérios utilizados.

Um interessante exemplo, no âmbito do STF, e que indica o condicionamento

político do julgamento, pôde ser observado no julgamento da questão relativa à correção

das contas vinculadas do FGTS, por força das perdas decorrentes dos expurgos

inflacionários dos planos econômicos “Bresser”, “Verão”, “Collor I” e “Collor II”. Os

jornais da época (como a Folha de São Paulo, de 2.8.2000 a 1.9.2000) noticiavam que

uma decisão do Supremo favorável à correção referente a todos os planos teria um o

impacto negativo de gerar para o governo uma dívida de aproximadamente R$ 53

bilhões. O STF acabou concluindo que, com relação aos planos “Verão” e “Collor I”, a

matéria era infraconstitucional e não dizia respeito a direito adquirido, razão pela qual

não ensejava o conhecimento dos recursos extraordinários. Já para os demais planos, a

Corte entendeu que não há direito adquirido a regime jurídico145. Essa postura limitou o

impacto a R$ 38 bilhões.

Como dito anteriormente, na Justiça do Trabalho o TST desenvolveu uma

jurisprudência no sentido de não examinar recursos de revista, apresentados em processo

144 Súmula 409 do TST: “AÇÃO RESCISÓRIA. PRAZO PRESCRICIONAL. TOTAL OU PARCIAL. VIOLAÇÃO DO ART. 7º, XXIX, DA CF/1988. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. Não procede ação rescisória calcada em violação do art. 7º, XXIX, da CF/1988 quando a questão envolve discussão sobre a espécie de prazo prescricional aplicável aos créditos trabalhistas, se total ou parcial, porque a matéria tem índole infraconstitucional, construída, na Justiça do Trabalho, no plano jurisprudencial”. 145 RE-226.855-7/RS, DJ 13/10/2000.

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de execução, quando a matéria tratada for objeto de legislação infraconstitucional. O

fundamento é que nesses casos a ofensa seria, se existente, reflexa e indireta.

Em 24 de agosto de 2001, a Medida Provisória nº 2.180-35 acresceu o art. 1º-F à

Lei nº 9.494/97, dispondo que, nas condenações impostas à Fazenda Pública, os juros de

mora aplicáveis são de 0,5% ao mês. Tal preceito contraria a regra geral de 1% ao ano,

prevista na Lei nº 8.177/90. Não há dúvida que essa matéria tem natureza

infraconstitucional e, pela regra, o Tribunal Superior do Trabalho, nos processos de

execução, não examinaria os recursos de revista que tratam desse tema, certo? Errado.

Diversos Tribunais Regionais do Trabalho deixaram de aplicar o art. 1º-F da Lei

nº 9.494/97, quer por vício de forma na edição da referida Medida Provisória, quer

porque o dispositivo ofenderia o princípio da igualdade, uma vez que os juros de mora

incidentes sobre os créditos do empregado público seriam menores do que os incidentes

sobre os créditos devidos aos demais trabalhadores. O TST foi provocado a se

manifestar inúmeras vezes, por meio de recursos de revista, e, não obstante os processos

já estivessem na fase de execução (o que implicaria a limitação indicada quanto ao

exame dos recursos), foi pronunciada a violação “direta e literal” ao texto constitucional,

justamente ao inciso II do art. 5° da CF.

Nas decisões consta que “não há norma que ampare a incidência de juros de 1%

ao mês na execução trabalhista”146, ou que “a violação ao princípio da legalidade

insculpida no art. 5º, II, da Constituição Federal resta patente quando há condenação sem

base legal ou quando se decide frontalmente contra a letra da lei”147.

Em alguns julgados é possível colher argumentos que remetem à natureza de

ordem pública e à observância obrigatória do art. 1º-F da Lei nº 9.494/97. Mas o art.

459, parágrafo único, da CLT também o é. O que o TST deixa oculto ao se pronunciar é

que na questão da época própria da correção monetária, matéria análoga e igualmente

versada em lei, não se considera a ocorrência de violação direta. O critério distintivo não

fica claro:

“Todavia, mesmo sendo reflexa a ofensa ao art. 5º, II, da Carta Magna

(conforme reconhecido pela jurisprudência do STF), esta Corte tem mitigado o rigor do

óbice legal para admitir, excepcionalmente, o conhecimento do apelo por vulneração ao

comando constitucional, quando violada de forma teratológica norma legal de caráter

cogente, que impõe expressamente conduta ao juiz, como na hipótese do art. 1º-F da Lei

146 ERR-214/1996-122-04-00. 147 RR-207/2005-010-17-00.

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9.494/97, que estabelece que os juros de mora, nas condenações impostas à Fazenda

Pública para pagamento de verbas remuneratórias devidas a servidores e empregados

públicos, não poderão ultrapassar o percentual de 6% ao ano. 3. No caso, trata-se de

acórdão regional que manteve a aplicação de juros de mora no percentual de 1% ao

mês, ficando caracterizada a violação do art. 5º, II, da CF, por desrespeito ao princípio

da legalidade” (TST-RR-51.054/2005-656-09-00.0, 7ª Turma, DJ de 19/10/2007).

Os exemplos dos recursos interpostos em processo de execução são os de

identificação mais fácil, certamente pela restrição imposta pela lei ao cabimento do

recurso, o que põe em maior evidência eventuais manobras jurisprudenciais. Não se deve

perder de foco um ponto importante da crítica aqui formulada: o problema não é o mero

fato de o Tribunal se pronunciar no caso acima indicado, mas, sim, o fato de não se

pronunciar (ou melhor, decidir) nos demais casos, operando uma seleção cujo critério

não é revelado no texto da decisão.

Toda a obscuridade é sintetizada na seguinte ementa de um julgado da Subseção

de Dissídios Individuais – I, do TST, órgão de cúpula responsável pela uniformização da

jurisprudência nas reclamatórias trabalhistas:

“RECURSO DE EMBARGOS. DESCONTOS PREVIDENCIÁRIOS E FISCAIS.

RECURSO DE REVISTA EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA. ART. 896, § 2.º, DA CLT E

SÚMULA 266 DO TST. VIOLAÇÃO DO ART. 5.º, II, DA CARTA MAGNA.

IMPOSSIBILIDADE. DESPROVIMENTO. 1. Cinge-se a controvérsia em saber a

possibilidade de conhecimento de Recurso de Revista, em execução de sentença, ou seja,

quando preenchido o requisito do art. 896, § 2.º, da CLT e da Súmula 266 do TST, por

violação direta do art. 5.º, II, da Constituição Federal, em face da jurisprudência

pacífica no TST, e no STF também, no sentido de que se trata de norma-princípio, cuja

violação ocorreria, quando muito, de forma reflexa, mas nunca direta. 2. A egr. 4.ª

Turma, Órgão Colegiado que muito me honra compor, tem mitigado o alcance da

Súmula 266 do TST e do art. 896, § 2.º, da CLT quando, em processo de execução,

ocorrer violação teratológica, como ocorre na hipótese em que se desrespeita a

literalidade de legislação infraconstitucional, adotando posicionamento de que fica

configurada a violação direta e frontal ao princípio da legalidade, como ocorre na

hipótese em que não se impõem as contribuições previdenciárias e fiscais na forma das

leis que as regulamentam. 3. Todavia, por disciplina judiciária, curvo-me à recente

decisão desta col. Seção Especializada que, contra posicionamento pessoal desta

Relatora, entende não ser possível o reconhecimento de violação direta do art. 5.º, II, da

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Carta Magna, mesmo nas hipóteses teratológicas. Recurso de Embargos desprovido.”

(TST-E-RR-45.716/2002-900-02-00.9, DJ de 09/11/2007).

Nesse caso, o calcanhar de Aquiles está no uso do temo “teratológico”. Mas da

leitura da decisão não fica claro qual seria o fator caracterizador da peculiaridade do

caso que ensejaria flexibilização da regra da “violação indireta”.

Entrementes, a teratologia parece assombrar em várias oportunidades. A própria

SBDI-1 admite a violação direta do direito de defesa, garantido na Constituição, em face

da inobservância de regras processuais previstas no CPC:

“A oposição de embargos de declaração, por uma das partes, interrompe o prazo para

interposição de outros recursos para ambas as partes (CPC, art. 438, caput). E o

acréscimo da condenação, em razão do efeito modificativo que lhe foi atribuído,

assegura à parte vencida o direito de recorrer (CPC, art. 499). A decisão do Regional,

ao não conhecer das razões recursais aditivas oportunamente apresentadas pela parte

sucumbente, sob o fundamento apontado, cerceando manifestamente o direito de defesa

da parte vencida, é teratológica, e, nessas circunstâncias, esta Corte tem conhecido do

recurso, por afronta direta ao art. 5º, LV, da Constituição Federal.” (TST-E-RR-

52395/2002-900-10-00.5, DJ de 09/07/2004).

Um exemplo final, que demonstra todo o ocultismo na definição de qual espécie

de violação do texto constitucional enseja ou não o cabimento do recurso de revista

aflora quando o TST, julgando procedente um apelo do Estado de Alagoas, entendeu que

“a inobservância do prazo específico para o ente público opor embargos à execução

enseja ofensa ao art. 5º, LV, CF”148. Nesse caso, entendeu-se que havia sido observado

pelo ente público o prazo previsto no art. 730 do CPC para a oposição de embargos à

execução, determinando-se o retorno dos autos ao Tribunal Regional da Trabalho, para

que fosse debatida a execução contra a Fazenda Pública.

A rarefação da Constituição

Como conquista improvável da modernidade, a Constituição acopla direito,

política e economia, estabelecendo os canais pelos quais esses sistemas podem coexistir

sem prejuízo do fechamento operacional de cada um, ou seja, sem que cada subsistema

social abdique do seu código próprio em nome das premissas lógicas de outro. Segundo

Niklas Luhmann, “o sistema jurídico, graças a esse acoplamento, tolera um sistema

148 TST-RR-00230/2005-008-19-40.3, 1ª Turma, DJ de 22/06/2007.

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político que tende para o Estado regulador e que não deixa passar o que possa submeter

às suas próprias operações. Também o sistema político, graças a esse acoplamento,

tolera um sistema jurídico que dá curso continuamente a processos próprios, protegidos

da interferência política logo que a questão direito/não-direito, lícito/ilícito, se

apresente”149.

Mas se a resposta às pressões políticas e econômicas exercida sobre os tribunais,

é o esvaziamento do conteúdo normativo do texto constitucional favorece esse tipo de

prática, há na verdade a corrupção do código, o uso do direito contra ele mesmo.

Há conseqüências práticas dessa rarefação do conteúdo normativo da

Constituição. A utilização seletiva enviesada dos dispositivos constitucionais, mais do

que indicar a fragilidade do acoplamento estrutural entre direito e política, debilita o

controle jurídico do poder político, e, ao mesmo tempo, fragiliza a participação dos

interessados no debate dos direitos, submetidos a uma coerção política eficientemente

antidemocrática. Como indicado por Juliana Magalhães, tem-se “um processo crescente

de ‘deslegitimação’, ou seja, de esmaecimento das expectativas sociais quanto a uma

regulação jurídica do exercício do poder político. Mais ainda, pode ocorrer de o direito,

e sobretudo ‘os direitos’ serem cada vez menos ‘levados a sério’”150.

Observações futuras

Além da violação indireta, outros flancos abertos à desconstitucionalização já

foram apontados: a impermeabilidade dos tribunais às questões fáticas e a necessidade

de prequestionamento. São compromissos formais com a análise dos processos que

permite o desprestígio do conteúdo das expectativas normativas em questão, mesmo que

constitucionais.

Há outras fissuras na jurisprudência que podem minar a efetivação do texto

constitucional, cuja análise depende de futuras observações. Por exemplo, o papel das

súmulas de jurisprudência e orientações jurisprudenciais na admissibilidade dos recursos

deve ser problematizado. Atualmente a sua diferenciação e suas regras de criação são

149 LUHMANN, Niklas, “A Constituição como Aquisição Evolutiva”. Trad. de Menelick de Carvalho Netto (para fins acadêmicos). In: ZAGREBELSKY, Gustavo, PORTINARO, Píer Paolo, LUTHER, Jörg (Orgs.). Il Futuro della Constituzione. Torino: Einaudi, 1996 (manuscrito). Cf. também PAIXÃO, Cristiano. A Reação Norte-Americana aos Atentados de 11 de Setembro de 2001 e seu Impacto no Constitucionalismo Contemporâneo: Um Estudo a partir da Teoria da Diferenciação Funcional do Direito. Tese de Doutorado. UFMG. Belo Horizonte, 2004. 150 MAGALHÃES, Juliana Neuenschwander. “Constituição e Diferença”, Rio de Janeiro, 2007 (manuscrito inédito). Ver também CAMPILONGO, Celso. “Direitos Fundamentais e Poder Judiciário”. In: O Direito na Sociedade Complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000.

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reguladas quase que inteiramente por normas internas das Corte, não sujeitas sequer

formalmente ao controle de constitucionalidade. E as diretrizes por elas traçadas se

beneficiam da assimetria do papel das Cortes para se manterem fora do debate, uma vez

que o recurso que poderia questioná-las é previamente analisado pelo próprio tribunal

que as emitiu.

Outro problema é a crescente restrição do trânsito de recursos, sempre

comprometida com uma pretensa celeridade dos processos. Mas a quem beneficia essa

celeridade na prolação de uma decisão que não oferece uma resposta sobre a expectativa

normativa frustrada?

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DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO E DIREITOS SOCIAIS: O EXERCÍCIO DO

DIREITO DE GREVE E O ACESSO À JUSTIÇA

Marthius Sávio Cavalcante Lobato

Introdução

Para que a greve fosse elevada a nível constitucional, como preceito

fundamental, na Constituição da República de 1988, necessário foi um grande

envolvimento da classe trabalhadora, com atuação firme e determinada para que a ela

fosse reconhecida a condição humana151.

De fato, a relação entre labor e trabalho que envolvia a condição humana estava

sempre restrita à própria atividade exercida pelo homem, ou seja, laborar significava ser

escravizado pela necessidade que era inerente à condição humana. Talvez seja por isso

que na era moderna não se conseguiu estabelecer uma distinção clara entre o “labor de

nosso corpo e o trabalho de nossas mãos”, mas tão somente a apontar diferenciações

entre trabalho produtivo e improdutivo, posteriormente diferenciou-se entre qualificado

e não-qualificado para, finalmente, trabalho manual e trabalho intelectual.152

Na modernidade, mesmo tendo alterado o conceito de escravidão, somente com

o Estado de direito é que se impôs ao Estado um agir não de forma única e autoritária,

mas através de uma conduta de observação do cidadão não mais como súdito, mas

como pessoa detentora de personalidade e, portanto, de direitos. Ou seja, o centro do

poder político na modernidade é ocupado pelo homem trabalhador, a partir deste

processo de evolução estatal153.

O constitucionalismo social trouxe para o mundo o início de um processo de

conquista social. Os direitos humanos passaram de uma expectativa de direito para

tornar-se um efetivo direito fundamental do cidadão. Esses direitos, inscritos no texto

constitucional na forma de normas principiológicas, devem estar ao alcance de todos. O

Estado constitucional procura não somente organizar o exercício do poder político

151 Sobre uma nova referência da condição humana, ver Hannah Arendt. A Condição Humana.Tradução Roberto Raposo. 10ª Ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. 152 Sobre uma distinção entre labor e trabalho, demonstrando claramente um evolução da máquina de trabalhar produtiva e a preservação da vida, ver Hannah Arendt, A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo, 10ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2007,em especial o Capítulo III, p. 90/180. 153 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. 10 ª edição: Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2007, p. 94/95.

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soberano, mas, na busca de limitação do poder, procura definir os direitos fundamentais

do cidadão, de modo a conformar a atuação dos governantes, seja no respeito aos

direitos individuais e coletivos, seja ainda na exigência de promoção dos direitos

sociais, econômicos e culturais. As relações sociais do trabalho recebem um tratamento

constitucional tendo como expectativa a afirmação dos Direitos do Homem trabalhador

por meio de uma regulamentação mais rigorosa, se comparada com a legislação

ordinária. As Constituições contemporâneas têm dado ênfase à realização dos direitos,

como um sistema aberto de regras e princípios diante de sua força normativa154.

Sendo assim, deve-se também interpretar os direitos sociais dos trabalhadores

como forma não meramente de promessas, mas como mecanismos concretos de

realização de direitos. São, portanto, dotados de eficácia jurídica, que não podem se

tornar vazias, ou inconseqüentes, na medida em que já estão prontas para produzir

efeitos concretos.

A Constituição brasileira assim instituiu, como direitos do trabalhador, direitos

humanos fundamentais que estão dispostos no artigo 7º e seus trinta e quatro incisos.

Quanto ao direito fundamental institucional, ou coletivo (estrutura sindical) está

previsto no artigo 8º e seus oito incisos da Constituição da República. Os direitos

constantes nos incisos do artigo 7º tratam dos Direitos do Homem, individuais, ou das

pessoas singulares, voltadas para a proteção da liberdade pessoal.

O Poder judiciário: observação necessária para o direito de greve numa

constituição democrática

O Poder Judiciário tem sido o palco para a solução de conflitos cuja origem é o

exercício do direito de greve. Este tema acaba por envolver pré-concepções de

conceitos há muito afirmados em nosso ordenamento jurídico – a dicotomia entre o

público e o privado – para a justificação da não aplicação de direitos a determinadas

situações concretas.

A interpretação negativa que vem sendo conferida por juízes e tribunais da

justiça comum, federal e, após a Emenda Constitucional nº 45/2004, pela justiça do

trabalho, de todos os Estados desta Federação, inclusive do Superior Tribunal de Justiça

traz em seu bojo não somente negação de um direito constitucionalmente garantido,

154 CANOTILHO, J.J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª edição. Portugal: Livraria Almedina, 2002, p.1.145.

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qual seja, o direito de greve dos trabalhadores, mas, também, a inacessibilidade da

Justiça.

De fato, as ações possessórias são instrumentos jurídicos utilizados para a

preservação da posse, do direito de um indivíduo ao exercício de fato, quando este se vê

ameaçado em seu direito. Neste sentido, não se discute a sua aplicabilidade nos casos

concretos como mecanismo para a preservação de direitos. O que não se pode permitir é

o seu desvirtuamento como vem ocorrendo reiteradamente em todos os segmentos

econômicos, para, sob a óptica possessória impedir a realização de movimento de

greve.

Conforme se demonstra através da farta documentação pesquisada, o setor

patronal tem se utilizado do interdito proibitório155 para de fato, impedir a realização de

greves por parte dos trabalhadores. Ao ser comunicado oficialmente pelas entidades

sindicais, em cumprimento a Lei de Greve, 7783/89156, utiliza-se do judiciário para, sob

a alegação de que se estaria na iminência de ver turbada ou esbulhada sua posse, por ato

das entidades sindicais e de seus diretores, impetra o referido instrumento processual

para obter, como de fato tem obtido, liminarmente, a expedição de mandato proibitório,

para que os trabalhadores se abstenham da prática de qualquer ato que pudesse

configurar a turbação ou esbulho, determinando, em muitos casos, que os trabalhadores

fiquem mais de 500 (quinhentos) metros da porta da fábrica, impedindo, inclusive, o

convencimento pacífico por parte dos trabalhadores157.

155 CPC - Art. 932 – O possuidor direto ou indireto, que tenha justo receio de ser molestado na posse, poderá impetrar ao juiz que o segure da turbação ou esbulho iminente, mediante mandado proibitório, em que se comine ao réu determinada pena pecuniária, caso transgrida o preceito.

156 Art. 3º Frustrada a negociação ou verificada a impossibilidade de recursos via arbitral, é facultada a cessação coletiva do trabalho. Parágrafo único. A entidade patronal correspondente ou os empregadores diretamente interessados serão notificados, com antecedência mínima de 48 (quarenta e oito) horas, da paralisação; Art. 13 Na greve, em serviços ou atividades essenciais, ficam as entidades sindicais ou os trabalhadores, conforme o caso, obrigados a comunicar a decisão aos empregadores e aos usuários com antecedência mínima de 72 (setenta e duas) horas da paralisação.

157 A Lei 7.783/89 garante expressamente aos trabalhadores: Art. 6º São assegurados aos grevistas, dentre outros direitos: I - o emprego de meios pacíficos tendentes a persuadir ou aliciar os trabalhadores a aderirem à greve; II - a arrecadação de fundos e a livre divulgação do movimento.

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Não se discute, quando da realização de greve, o direito de propriedade158 ou

mesmo o esbulho possessório. Não há o mínimo fundamento em colocar a “iminência

de esbulho e turbação da posse” como fator para a concessão da ordem liminar. Até

porque, também como se verá a seguir, não há greve surpresa em nosso ordenamento

jurídico e muito menos o animus de obter a posse.

A desconstitucionalização do direito de greve é afirmado judicialmente

quando é aplicado o instituto possessório, conferindo prevalência ao direito privado em

detrimento do direito público.O exercício do direito de greve deve ser preservado em

sua essência, sem os limites impostos pelo interdito proibitório, mas tão somente, pelos

limites procedimentais impostos pela própria Constituição da República em seu artigo

9º.

A Greve no Direito Brasileiro

Em uma caminhada conjunta, o direito dos trabalhadores em paralisar suas

atividades em prol de uma reivindicação que garanta a ampla efetividade de um direito

fundamental, qual seja, a preservação da dignidade humana, evoluiu na mesma

intensidade.

O direito de greve no ordenamento jurídico brasileiro passou de um total

silêncio159 para uma permissão através de mecanismos de interpretação160,

posteriormente considerada como uma liberdade dos trabalhadores, a ser exercida sem

leis que a regulamentassem161, obtenção de direito162, chegando, ao fim e ao cabo, como

158Lei 7.783/89- Art. 6º [...] § 3º As manifestações e atos de persuasão utilizados pelos grevistas não poderão impedir o acesso ao trabalho nem causar ameaça ou dano à propriedade ou pessoa. Observe-se que, aqui, o que se protege são os danos materiais da propriedade e não os danos possessórios. 159 As Constituições do Império de 1824 e a primeira Republicana de 1891 silenciaram quanto ao direito de greve. Como não havia leis trabalhistas, o Código Penal de 1890, Decreto 847, proibiu o exercício da greve mesmo sendo pacífica. 160 O Decreto 1.162 de 12/12/1890 – passou a punir apenas a violência no exercício da greve, sendo considerado como o primeiro reconhecimento do direito de greve no ordenamento jurídico brasileiro. 161 Entre 1900 e 1937, mesmo sendo considerada como liberdade do trabalhador alternou-se entre períodos de tolerância e repressão, sendo que, entre os períodos de 1906-1920 – predominou o pensamento de resistência ao patronato com influência direta dos anarquistas – Itália – Espanha – Portugal. A Constituição de 1937, ao mesmo tempo em que cria a Justiça do Trabalho, em um período eminentemente corporativo, declara-se a greve e o Locaute como recursos anti-sindicais.Para tanto, através do Decreto 1.237/39 – artigo 722 da CLT – passa a prever punição ao empregado que abandonar o serviço coletivamente e sem autorização do Tribunal do Trabalho. O Código Penal de 1940 – pune a violência contra coisa ou pessoa em razão de greve – considerado infra-penal a paralisação do trabalho, como perturbação da ordem pública e contrária ao interesse coletivo. Sem ambiente para a efetivação dos direitos coletivos , entre eles o exercício do direito de greve, uma vez que os mesmos foram expressamente limitados, os direitos individuais dos trabalhadores são ampliados por normas infraconstitucional. Trata-se, portanto, de uma lei antidemocrática.

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direito constitucionalmente garantido enquanto fundamental, com a Constituição da

República de 1988, artigo 9º163.

A evolução estabelecida pelas Constituições brasileiras, chegando ao atual

quadro normativo, demonstra claramente a intenção do legislador constituinte em

considerar o direito de greve, direito coletivo como um direito fundamental

institucional. Não se trata apenas de enunciá-lo. Houve a intenção clara e

manifestamente demonstrada no sentido de que a greve, mais que um simples direito, é

uma garantia fundamental para que as relações de trabalho sejam exercidas dentro de

um mínimo Estado Democrático de Direito.

O legislador constituinte impôs os limites a serem adotados pelos trabalhadores

quando agirem com liberdade e autonomia para a deflagração do movimento de greve.

Os limites foram imputados ao legislador ordinário que não se omitiu164 e, de forma

ágil, aprovou a Lei 7.783 de 26 de junho de 1989165 que “Dispõe sobre o exercício do

direito de greve, define as atividades essenciais, regula o atendimento das necessidades

inadiáveis da comunidade, e dá outras providências”, regulamentando o Direito de

Greve previsto no artigo 9º da Constituição da República.

162 A Constituição de 1946, em seu artigo 158 expressamente consignou que “É reconhecido o direito de greve, cujo exercício a lei regulará”. Inicia-se o período de reconhecimento da greve como direito dos trabalhadores face a mudança da ordem Internacional – Conferência do México – 21/02-08/03/1945 – a qual é aprovado a recomendação ao reconhecimento do direito de greve, tendo o Brasil aprovado a referida recomendação. O Decreto-Lei 9.070 de 1946, Primeira Lei ordinária, define o conceito de greve, facultando-a nas atividades acessórias; limitado o exercício após o ajuizamento de dissídio coletivo, criando as formalidades para a sua proclamação; considerando falta grave o descumprimento dos prazos e procedimento. No mesmo período, o STF – declara a constitucionalidade do referido Decreto-Lei – RE 48.207-SP – Rel. Ministro Gallotti – mesmo tendo entrado em vigor na vigência da Constituição de 1937. O Art. 158 – “É reconhecido o direito de greve, cujo exercício a lei regulará” Como golpe de Estado de 1964, foi editada nova Lei de Greve. Considerada como Lei anti-greve, a Lei 4.330/64. Editada no período de autoritarismo e supressão de direitos individuais e coletivos, mantinha em seu bojo uma infinidade de inconstitucionalidades, na medida em que, estabelecia condições de greve em atividades essenciais, cm estabelecimento de quorum – assembléia dos trabalhadores – em número extremamente elevados com votação por escrutínio secreto. O artigo 22 da Lei estabeleceu o conceito de greve ilegal quando não atendidos os prazos e condições para a realização do movimento paredista, bem como entendia ser ilegal quando as reivindicações fossem julgadas improcedentes. Quando a greve fosse julgada ilegal (100% das vezes), justificaria a punição disciplinar e ainda, o enquadramento na Lei 6.620/78 – Lei de Segurança Nacional. 163 Artigo 9º - É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender. § 1º - A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. § 2º - Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis nas penas da Lei. 164 Ao contrário do exercício do direto de greve garantido aos servidores públicos, que até o presente momento não há lei específica para regular a matéria. Sobre o debate desta omissão é mister analisar os votos proferidos no Mandado de Injunção nº 670 e 712. 165 Publicado no DOU de 29.06.1989.

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Portanto o exercício do direito constitucionalmente garantido de greve está

devidamente regulamentado, ou seja, os limites constitucionais foram devidamente

impostos pela Lei 7.783/89, não havendo qualquer vazio normativo quanto aos efeitos

decorrentes de um movimento paredista.

Neste sentido, é o voto do Ministro Eros Grau, no Mandado de Injunção nº 712-

8 – Pará:

“13. A Constituição, tratando dos trabalhadores em geral, não prevê

regulamentação do direito de greve: a eles compete decidir sobre a

oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dela

defender. Por isso a lei não pode restringi-lo, senão protegê-lo, sendo

constitucionalmente admissíveis todos os tipos de greve: greves

reivindicatórias, greves de solidariedade, greves políticas, greves de protesto.

Não obstante, os abusos no seu exercício, como, de resto, qualquer abuso de

direito ou liberdade, sujeitam os responsáveis às penas da lei [§ 2º do art. 9º] –

lei que, repito, não pode restringir o uso do direito. A Constituição [§ 1º do

art. 9º] apenas estabelece que lei definirá s serviços ou atividades essenciais e

disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da

comunidade”.166 (o realce é meu).

A ADPF nº 123

Diante da desconstitucionalização que vem sido levado a cabo pelo exercício do

controle difuso de constitucionalidade ao direito de greve e seu pleno exercício, houve a

necessidade de se submeter ao controle concentrado de constitucionalidade, através a

Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, junto ao Supremo Tribunal Federal

para que se possa reinterpretar o texto constitucional para garantir-lhe a efetividade dos

direitos constitucionais.

O objetivo do Estado Constitucional, portanto, é dotar a Constituição material

da necessária efetividade normativa. O estabelecimento de conceitos dotados de

concretudes traz em seu bojo a necessidade de reinterpretar a Constituição, rompendo-

se com o conceito clássico Kelseniano para impor a sua aplicação de forma horizontal.

A concepção de um Estado Social subverte totalmente a materialidade da Constituição

166 Voto do Ministro Eros Grau, p. 10/11, disponível no sitio do STF.

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uma vez que, as prestações sociais passam a ser valoradas com mais eficiência

normativa. Esta eficiência normativa se dá pela concretização da vontade popular, haja

vista que, esta é que deve imperar na conformação constitucional.167Por esta razão,

temos que ir além do discurso jurídico tradicional. Por isso não somos meros leitores de

textos. Toda a norma jurídica necessita de interpretação para que o próprio direito seja

aplicado.

A Constituição é aberta, como devem ser todas as Constituições democráticas.

A interpretação é que tem o dever de fechá-la. É nesta abertura e fechamento através da

interpretação é que o direito se realiza se concretiza, porque é por ela (interpretação)

que as transformações da sociedade são adequadas dentro do campo do saber teórico e

pelo campo da ciência jurídica. É a exceção que deve ser vista como uma forma de

desconstruir o direito de império do empregador para construir o direito do trabalhador.

É exatamente em razão da existência desse caos que a estabilidade é necessária. Para

Derrida esse é o Paradoxo entre justiça e direito, ou seja, “é a estrutura desconstrutível

do direito ou, se vocês preferirem, da justiça como direito, que assegura a possibilidade

da desconstrução. A Justiça em si mesma, se é que isso existe, fora ou além do direito,

não pode ser desconstruída.”168

A Confederação Nacional dos Metalúrgicos da CUT, ingresso com a ADF nº

123, pode obter do Supremo Tribunal Federal a interpretação conforme à constituição

para sem redução de texto, para que seja pronunciado a inconstitucionalidade da

aplicação do artigo 932 do CPC – interdito proibitório – quando se tratar de

manifestação dos trabalhadores devidamente aprovada e deflagrada para o pleno

exercício do direito de greve, para reconhecer e garantir a eficácia do direito subjetivo

dos trabalhadores ao pleno exercício de manifestação e greve.

É a violência imputada à dignidade humana do trabalhador ao impedir o

exercício de seu direito de greve. A desconstrução do direito de império do empregador

(interdito proibitório) garantirá a construção da Justiça ao trabalhador em obter, em

momento em que considerar mais adequado a reparação da violência lhe imposta.

Portanto, o direito fundamental dos trabalhadores quer em sua dimensão individual,

167 LOBATO, Marthius Sávio Cavalcante. O Dano à Saúde e à Dignidade do Trabalhador e vida nua: A Prescrição Imprescritível. In A Prescrição nas Relações de Trabalho. José Luciano de Castilho Coord. São Paulo: LTr. 2007, p. 159. 168 DERRIDA, Jaques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes. 2007.

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quer em sua dimensão coletiva deve preservar principalmente o direito a igualdade. O

direito de igualdade não é conferir ao trabalhador condições especiais. O direito a

igualdade é garantir o direito à diferença. É o direito que o trabalhador tem de ser

diferente e, conseqüentemente, ter garantias de proteção à essa diferença para preservar

e efetivar a sua dignidade humana.169

Identificando a desconstitucionalização de direitos.

Pelos casos relatados, podemos concluir que o acesso ao judiciário tem sido

utilizado pelos setor patronal como um mecanismo para desconstitucionalizar os

direitos dos trabalhadores, o direito de greve, único mecanismo eficaz para buscar a

igualdade nas relações entre o capital e trabalho. Este ativismo judicial, na

judicialização da política sindical, tem apontado para a quebra do Estado Democrático

de Direito, aplicando a desconstitucionalização dos direitos sociais dos trabalhadores.

A ADPF nº 123, deve ser observada não apenas enquanto instrumento de

proteção egoísta da classe trabalhadora, mas sim, e principalmente, a partir de um olhar

para o controle concentrado de constitucionalidade na aplicação da efetividade dos

direitos constitucionais.

169 Para Ronald Dworkin “o verdadeiro significado das cláusulas de processo legal justo e de igual proteção irá depender da melhor e mais exata compreensão da liberdade e da igualdade”. In Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais:Tradução Jefferson Luiz Camargo; revisão da tradução Silvana Vieira. São Paulo: Martins Fontes, 2003. – (Justiça e Direito) p.166.

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ACESSO À JUSTIÇA EM QUESTÕES BIOÉTICAS: DA DIFERENCIAÇÃO DO

DISCURSO JUDICIAL NA ABORDAGEM JURÍDICA DA ANENCEFALIA

FETAL NO BRASIL

Silvia Regina Pontes Lopes

1. O problema do acesso à justiça na abordagem jurídica de questões bioéticas

A relação entre vida e direito é polêmica. Por envolverem concomitantemente

temas de ordem ética, moral, religiosa, científica e jurídica, questões bioéticas desafiam

o problema da diferenciação do direito. Em discussões acerca da disciplina jurídica do

aborto, da eutanásia, da ortotanásia, de pesquisa com células-tronco, dentre outras,

articulam-se simultaneamente o sentido e os limites de proteção jurídica da vida.

Mostra-se relevante a investigação da influência, por vezes destrutiva, de esferas de

eticidade estranhas ao desenvolvimento de um discurso judicial democraticamente

legítimo.

A tematização bioética permeia nossos tribunais. Recentemente, o Superior

Tribunal de Justiça permitiu a interrupção de gravidez de feto portador da Síndrome de

Meckel-Gruber, doença genética que resulta na malformação cerebral do feto, levando-o

à morte, sob a dupla alegação de risco de vida da mãe e da impossibilidade de

sobrevivência relativamente alongada do feto (HC 86.835). Em novembro do corrente

ano, a Justiça Federal no Distrito Federal suspendeu, por meio de liminar proferida nos

autos da Ação Civil Pública nº 2007.34.00.014809-3, resolução do Conselho Federal de

Medicina (CFM) que permitia a prática da ortotanásia - interrupção de tratamento e

procedimentos para prolongar a vida de pacientes sem chances de cura. Mencionem-se

ainda as Ações Diretas de Inconstitucionalidade nos 3.510 e 3.526 contra a Lei nº 11.105,

de 2005 (Lei de Biossegurança), que questionam a constitucionalidade da pesquisa com

células-tronco no Brasil.

Referidas situações revelam o problema do acesso à justiça na intersecção

conflituosa entre ética, moral, religião, ciência e direito quando o assunto em questão

afigura-se o sentido da tutela institucional da vida em confronto com a moderna

pluralidade de visões de mundo e com o caráter multidisciplinar do tema.

A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54-8/DF (ADPF nº 54-

8/DF) mostra-se um caso emblemático. Embora a questão da interrupção de gravidez de

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feto anencéfalo já há algum tempo tenha sido enfrentada pelo Poder Judiciário

brasileiro170, foi com a ADPF nº 54-8/DF que se submeteu ao Supremo Tribunal

Federal, por via de controle abstrato de constitucionalidade, a apreciação da legitimidade

jurídica da interrupção de gravidez de fato anencéfalo no Brasil.

O problema do acesso à justiça de inúmeras gestantes é trazido à discussão. O

embate intelectual em torno da natureza do feto humano depara-se com pessoas comuns,

como Tatielle171 e Severina,172 gestantes de fetos biologicamente inviáveis, que, em

nome da vida, viram-se, por decisão judicial, impedidas de “abreviarem seu

sofrimento”173. O desabafo do esposo de Tatielle, em face da concessão de habeas

corpus impetrado por padre desconhecido da família, traduz, com simplicidade e

precisão, o problema da diferenciação do direito numa sociedade moderna complexa: “(o

padre) acabou com a possibilidade de não agravar futuramente (a vida) para mim e para

a Tatielle. (...) Ele fez uma coisa sem o consentimento meu e da Tatielle. Ele fez uma

coisa para ele, não para mim, nem para a Tatielle, e, acho, nem para Deus. (...) A pessoa

vem, interfere na minha vida, da minha esposa, sem ser nada meu, sem me conhecer,

julga as coisas e acha ainda errado, sem ter o conhecimento de fato do que está

acontecendo, e a Justiça ainda acata isso como se fosse uma coisa normal.”174.

170 Cite-se, exemplificativamente, o caso de uma estudante do Rio de Janeiro que ingressou na Justiça fluminense para ver autorizada a interrupção de sua gestação em virtude de anencefalia fetal. Sob o fundamento de que não haveria autorização legal para o pedido, o pleito foi rejeitado em primeira instância, dando azo à interposição de recurso ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que concedeu liminarmente a autorização. Um padre ingressou com habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça (HC nº 32.159-RJ) contra a decisão liminar. A Ministra Relatora Laurita Vaz, em decisão monocrática, cassou a liminar então concedida sob o argumento de que tão-somente ao legislador caberia a decisão acerca da possibilidade de interrupção da gravidez por anencefalia fetal. Essa decisão foi confirmada pela 5ª Turma do STJ, que acolheu seus fundamentos. Contra ela, novo habeas corpus foi impetrado perante o Supremo Tribunal Federal (HC nº 84.025-6/RJ). Na ocasião, o Ministro Relator Joaquim Barbosa considerou o feto anencéfalo um simples “desenvolvimento biológico” e não uma vida juridicamente tutelável. A ação restou, entretanto, prejudicada, em virtude de ulterior nascimento do bebê. 171 Caso relatado no documentário “Habeas Corpus”, dirigido por Débora Diniz e Ramon Navarro, e produzido por “Imagens Livres”, que acompanha a trajetória de Tatielle, uma garota de 19 anos natural de Morrinhos, interior de Goiás, que, grávida de 5 meses de um feto que não sobreviveria ao parto, por ter todos os seus órgãos da cavidade abdominal expostos, viu-se impedida de interromper sua gestação por um habeas corpus impetrado pelo Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz, presidente da entidade católica “Pró-Vida” de Anápolis. 172 Caso relatado no documentário “Uma História Severina”, dirigido por Débora Diniz e Eliane Brum, e realizada pela produtora “Imagens Livres”. Trata-se de experiência vivida por Severina, que se viu impedida de interromper gravidez de feto anencéfalo por decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, que revogou autorização liminar concedida, em sede da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54-8/DF, pelo Ministro Marco Aurélio, para a realização de antecipação de parto nas hipóteses de anencefalia. 173 Tal expressão espelha a dor das gestantes relatada nos documentários mencionados nas notas anteriores. 174 Depoimento constante no documentário “Habeas Corpus”, mencionado na nota 1.

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A discussão é fomentada em situações, consideradas raras pela medicina, de

sobrevida por meses de bebê anencéfalo. Tal foi o caso da menina de Patrocínio Paulista,

nascida no dia 20 de novembro de 2006 vítima de anencefalia, que permanece viva até

hoje.175 A mãe Cacilda Ferreira relata que, antes de o bebê nascer, médicos sugeriram

que antecipasse o parto, pois não haveria possibilidade de sobrevivência da criança. Por

razões religiosas, ela se negou, após conversar com o padre da cidade, a interromper sua

gestação: "Nunca perdi a esperança de que minha filha viveria", desabafa.176

Em meio a questões bioéticas, que operam simultaneamente nas esferas da ética,

da moral, da ciência e da religião, surge o problema da diferenciação. Pretende-se, no

presente trabalho, abordar a discussão sobre a legitimidade jurídica da interrupção de

gravidez de feto anencéfalo. Observar o desenvolvimento do discurso judicial nessa

matéria mostra-se exemplar para a avaliação do acesso à justiça em questões bioéticas

no Brasil.

2. Observação paradigma: anencefalia fetal e os rumos esperados da ADPF nº 54-

8/DF

A ADPF nº 54-8/DF levou ao STF, como observado, a discussão acerca da

legitimidade jurídica da interrupção de gravidez de feto anencéfalo em sede de controle

abstrato de constitucionalidade. A Confederação Nacional dos Trabalhadores de Saúde –

CNTS, entidade autora, requereu a atribuição de interpretação conforme a Constituição

aos arts. 124, 126, caput, e 128, incs. I e II, todos do Código Penal, voltada ao

reconhecimento da licitude do chamado “aborto de feto anencéfalo”. Sustentou a

confederação requerente que os dispositivos da legislação penal, tal como vêm sendo

interpretados pelos órgãos jurisdicionais ordinários, ofendem os arts. 1º, inc. IV

(dignidade da pessoa humana); 5º, inc. II (princípio da legalidade, liberdade e autonomia

da vontade); 6º, caput, e 196 (direito à saúde), todos da Constituição da República, por

não se reconhecer o direito à interrupção da gestação de feto anencefálo.

No desenvolvimento da ação, a Procuradoria-Geral da República defendeu a

inadequação da via eleita. Alegou, para tanto, ofensa ao princípio da legalidade, ao

sustentar que o art. 128 enumera hipóteses numerus clausus de exclusão de ilicitude

175 Cf. http://www.omovimento.com.br/modules/popnupblog/index.php?postid=769. Acesso em 15 de agosto de 2008. No caso específico de Marcela, sua sobrevivência há mais de nove meses opera-se em razão de possuir um pouco mais de tecido cerebral do que os anencéfalos em geral. 176 FRANCA. “CosmoOnLine”. Disponível em http://www.cosmo.com.br/cidades/franca/integra.asp?id=181085 . Acesso em 19 de dezembro de 2007.

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penal, não cabendo ao Tribunal Constitucional assumir o papel de legislador positivo.

Quanto ao mérito, sustentou que o “direito à vida é posto como marco primeiro, no

espaço dos direitos fundamentais”, razão pela qual não poderá ser sacrificado em prol da

“dor temporal da gestante”.

Em 1º de julho de 2004, o Ministro Relator Marco Aurélio deferiu a medida

liminar pleiteada, autorizando a interrupção de gestação de feto anencéfalo. Determinou,

assim, o sobrestamento dos processos e de decisões não transitadas em julgado que

pretendessem aplicar ou tenham aplicado os mencionados dispositivos do Código Penal,

reconhecendo o direito constitucional da gestante de submeter-se ao procedimento

cirúrgico abortivo a partir de laudo médico que atestasse a deformidade, sob o

argumento de que, in casu, prevaleceria a dignidade da mulher sobre a vida do feto.

A argüição da preliminar de inadequação da via eleita pelo membro do Parquet

ensejou a instauração incidental do procedimento de questão de ordem, em que o

Supremo Tribunal Federal discutiu amplamente a admissibilidade da referida ação. Na

ocasião, a Corte decidiu, por maioria de 7 a 4, cassar parcialmente a liminar concedida

pelo Ministro Relator Marco Aurélio, referendando-se, por maioria, a primeira parte da

liminar concedida (sobrestamento de feitos) e revogando-se a segunda (direito ao aborto)

com efeitos ex nunc. Entendeu-se que não havia justificativa para a manutenção da

liminar, tendo em conta a pendência de decisão quanto à admissibilidade da ação.

Salientou-se, ainda, o caráter satisfativo da medida deferida e a indevida introdução, por

meio dela, de outra modalidade de excludente de ilicitude no ordenamento jurídico.

Na análise da questão de ordem propriamente dita, foram vencidos os votos

proferidos pelos Ministros Eros Grau, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Carlos Velloso, que

sustentaram pretender a requerente a criação pelo Supremo Tribunal, por via oblíqua, de

nova hipótese de não punibilidade do aborto, violando o princípio da reserva legal, por

transformar a Corte em legislador positivo.

Várias foram as entidades que requereram ingresso como amici curiae na

referida ação, tais como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, Católicas

pelo Direito de Decidir, Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, Associação de

Desenvolvimento da Família – ADEF, Conectas Direitos Humanos e Centro de Direitos

Humanos. Todos os pedidos foram, entretanto, rejeitados, à exceção do formulado pela

Conectas Direitos Humanos e pelo Centro de Direitos Humanos, que não foi, até o

presente momento, apreciado.

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Considerando-se a relevância e a controvérsia da matéria, bem como a

importância de se conferir à sociedade ampla participação na análise da questão,

determinou o Ministro Marco Aurélio, Relator, com fulcro no art. 6º, § 1º, da Lei nº

9.882, de 3 de dezembro de 1999, a oitiva das entidades supramencionadas (à exceção

da CDH), bem como a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, a Sociedade

Brasileira de Genética Clínica, a Sociedade Brasileira de Medicina Fetal, o Conselho

Federal de Medicina, a Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sociais e Direitos

Representativos, a Escola de Gente, a Igreja Universal, o Instituto de Biotécnica,

Direitos Humanos e Gênero e o Deputado Federal José Aristodemo Pinotti. Até a

presente data, não foi realizada audiência pública.

A perquirição acerca da legitimidade de aborto de feto anencéfalo no Brasil

envolve a análise de prescrições legais e constitucionais sobre o sentido jurídico da vida,

da liberdade de crença, do conceito jurídico de pessoa e de morte, da noção de estado de

necessidade e das excludentes de ilicitude do aborto. Três são as posturas possíveis:

a) enquadramento da interrupção de gravidez de feto anencéfalo no art. 124 do

Código Penal, tipificando a conduta sob o entendimento de que o ordenamento

jurídico brasileiro confere tutela a um ser anencéfalo;

b) exclusão da tipicidade da conduta por considerar-se que o tipo penal tutela a

expectativa de vida humana, que não se encontra presente na hipótese em

questão, na medida em que a grande maioria dos fetos anencéfalos morrem no

período intra-uterino, sendo que os nascidos vivos morrem logo após o parto, não

havendo relatos de sobrevivência de recém-nascidos com este tipo de

malformação por mais do que poucas horas;

c) exclusão da antijuridicidade da conduta com fulcro no art. 128, inc. II, ou na

previsão mais genérica do art. 24 do Código Penal, que define o estado de

necessidade.

Uma compreensão democrática do acesso à justiça reclama algumas

considerações. Primeiramente, não se deve interpretar a proteção à vida instituída no art.

5°, caput, da Constituição Federal isolada e solipsisticamente, vinculando-a a um

conceito ontológico de vida. Deve-se, antes, considerar a leitura conferida a referido

princípio pela comunidade política, que se expressa na legislação antecedente e

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subseqüente à própria Constituição, ao estabelecer o que é vida para o direito, ou, mais

apropriadamente, o sentido de vida juridicamente tutelável177.

Analogias descontextualizadas de uma análise publicística da matéria, tal como a

formulada pelo Ministro Sepúlveda Pertence, ao equiparar o feto anencéfalo a “uma

crisálida que jamais, em tempo algum, chegará ao estádio de borboleta”178, ou ainda,

como a elaborada pelo Ministro Carlos Britto, ao comparar o feto anencéfalo a “um ser

que de alguma forma parou a meio ciclo do humano”179, não se mostram, de todo,

apropriadas.

A questão do início da vida humana, ou, antes, do momento e das circunstâncias

pelas quais uma vida merece tutela jurídica deve ser analisada por uma jurisdição

constitucional que se pretende democrática, a partir de uma ampla discussão pública em

que reclamam devida consideração projetos de vida e concepções de mundo os mais

diversos.

O acesso à justiça é garantido mediante o desenvolvimento de uma ética

discursiva calcada nas noções de solidariedade e de pluralidade. Trazendo essa

consideração para os discursos jurídicos até agora articulados na ADPF nº 54-8/DF, a

primazia ora do bem jurídico vida, ora da dignidade da pessoa humana, ali implícita ou

explicitamente, apregoada, notadamente na petição inicial da ADPF nº 54-8/DF, na

manifestação do Ministério Público e nos votos dos Ministros do Supremo Tribunal

Federal, leva-nos a questionar em que medida referido discurso desenvolve-se

legitimamente.

Ao Supremo Tribunal Federal, às entidades e aos órgãos diretamente envolvidos

na referida ação compete empreender um discurso baseado numa moralidade pública,

que se expressa, ante a natureza jurisdicional do discurso em questão, em princípios

jurídicos próprios integrantes dos direitos fundamentais, distintos tanto de uma moral

pessoal, fruto de uma consciência socrática ou de uma moral cristã, quanto de uma

moralidade comum, baseada em simples usos e costumes.

O desfecho legítimo da questão da licitude do aborto por anencefalia fetal

expressa-se na legislação infraconstitucional em vigor, que delineia intersubjetivamente

o sentido de uma vida juridicamente tutelável. Desconsiderar tais preceitos dogmáticos

de inquestionável constitucionalidade no discurso jurídico acerca da legitimidade do

177 Cf. SIMON, Henrique Smidt. Antecipação terapêutica do parto e os Direitos Fundamentais. Constituição & Democracia. n. 1. Brasília, 5 fev. 2006. Observatório do Judiciário, pp. 20-21. 178 Voto do Ministro Sepúlveda Pertence na Questão de Ordem em sede da ADPF nº 54-8/DF. 179 Voto do Ministro Carlos Britto na Questão de Ordem em sede da ADPF nº 54-8/DF.

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aborto de feto anencéfalo no Brasil implica introduzir elementos estranhos ao próprio

direito, dispondo-se de seu papel de atribuir sentido normativo a condutas a partir de

princípios públicos independentes de moralidades individuais, impondo-se uma visão

monolítica de mundo.

A articulação ora da vida, ora da dignidade da pessoa humana como bens

superiores, consoante se observa a partir do desenvolvimento discursivo da ADPF nº 54-

8/DF, situa-se na contramão de uma reconstrução normativa pautada numa ética

democrática da solidariedade, na medida em que pondera valores180, aproximando-se de

uma eticidade irreflexiva, voltada para a contemplação de um suposto melhor tutelado

pelo ordenamento jurídico.

O discurso judicial democraticamente legítimo deve colher os elementos

constantes no próprio ordenamento, que, ao manifestar uma instância significativa

intersubjetivamente compartilhada, demonstra uma moralidade pública específica, que,

apartada de moralidades individuais, articula definições e valorações próprias. Essas

definições devem ser consideradas pelos aplicadores do direito na elaboração de um

discurso sujeito à apreciação pública.

As prescrições legais ou constitucionais acerca da liberdade de crença, do

conceito jurídico de pessoa e de morte, da noção de estado de necessidade e das

excludentes de ilicitude do aborto devem, portanto, de ser levadas em conta no discurso

judicial empreendido na ADPF nº 54-8/DF. Caso contrário, corre-se o risco de abandono

do caráter deontológico dos direitos fundamentais e de adoção disfarçada de princípios

integrantes de uma moralidade pessoal, escapando-se da feição própria de um discurso

sujeito ao olhar público.

Há ainda de se diferenciar as posturas de um operador do direito e de um

indivíduo particular, dotado de uma moralidade própria. A argumentação judicial não

deve desenvolver-se a partir de visões monolíticas de mundo, manifestas na articulação

pública de valores absolutos ou numa hierarquização de valores, sob pena de subverter-

se a função principal do direito, a saber: chamar à igualdade (reconhecimento recíproco)

os desiguais, constituindo, artificialmente, um espaço de liberdade, que possibilite a

revelação simultânea e plural da novidade inaugurada por cada indivíduo.181

180 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. 181 Cf. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, pp. 245-246. Hannah Arendt identifica a existência de uma moralidade pública diferenciada a nortear o espaço público, no que se distancia do pensamento aristotélico, que associa a política à consecução de fins

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Ao operador do direito compete respeitar a dimensão plural e aberta dos

discursos públicos, assumindo a postura performativa de considerar imparcialmente as

mais distintas visões de mundo, a fim de alcançar uma solução justa, não

necessariamente coincidente com aquilo que é bom para ele. Assim, o operador do

direito pode condenar eticamente o aborto por anencefalia sem refutar a existência de

um direito subjetivo a tal conduta.182

Não cabe a uma jurisdição constitucional que se pretende democrática

empreender uma análise solipsística e metafísica do sentido da vida e da dignidade da

pessoa humana, devendo, antes, reconstruir pluralística e coerentemente o discurso dos

direitos humanos, considerando-se, dentre outros aspectos, o discurso até agora

construído acerca da questão, que se manifesta em decisões judiciais, bem como na

legislação infraconstitucional, notadamente nos arts. 124, 126 e 128 do Código Penal,

bem como no art. 3º da Lei nº 9.437/97.

O discurso acerca da legitimidade da interrupção de gravidez de feto anencéfalo,

empreendida na ADPF nº 54-8/DF, guarda íntima relação com a questão metodológica

da reconstrução de uma identidade constitucional de dimensões espacial e temporal

problemáticas: espacialmente, deve-se construir uma identidade constitucional aberta e

plural, apta a recepcionar identidades sociais das mais diversas ordens (étnicas,

nacionais, religiosas e culturais), afigurando-se, porém, distintas de todas elas;

temporalmente, há de se reconstruir uma identidade de um sujeito constitucional que não

se identifica nem com os constituintes, nem com os intérpretes da Constituição, nem, ao

menos, com os que se encontram sujeitos às prescrições constitucionais183. Nesse

sentido, a construção da identidade do sujeito constitucional deve operar-se mediante

uma re-apropriação crítica e coerente de normas e princípios que conferem sentido

últimos, expressos por ensinamentos éticos, igualmente válidos na esfera privada. O espaço público não comporta, para a autora, quer uma moralidade absoluta, com o é a religiosa –, quer meros costumes e tradições, facilmente modificáveis: “moralidade pessoal em suas formas autênticas, como consciência socrática e bondade cristã, poderia, de fato, prevenir indivíduos de praticarem o mal, mas nenhuma das duas estão suficientemente envolvidas com os negócios públicos para prevenir práticas totalitárias” (CANOVAN, Margaret. Hannah Arendt – A reinterpretation of her political thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 197.). Assim, a moralidade pública, autônoma e distinta das formas de moral pessoal, seria fundamentada na afirmação da cidadania, na igualdade de direitos e na criação de instituições políticas aptas a preservar a liberdade do homem. 182 Observou-se alhures que “Defender a antecipação terapêutica do parto de fetos inviáveis não implica ser a favor do aborto. Assegurar o direito da mulher e autorizar o aborto nos casos previstos em lei não implica ser a favor do aborto. Implica tão-somente conhecer o Direito Penal e suas bases ontológicas, cumprir a lei e a Constituição Federal.” (FAÚNDES, Aníbal. Prefácio. In: DINIZ, Débora; RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto por anomalia fetal, p. 141.) 183 Cf. ROSENFELD, Michel. Identidade do sujeito constitucional, pp. 40-41.

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191

jurídico à conduta de abortamento por anencefalia. Há de se recorrer às prescrições

dogmáticas que se mostram relevantes para a atribuição de sentido jurídico a tal conduta.

O acesso à justiça reclama que a proteção à vida instituída no art. 5°, caput, da

Constituição Federal não seja interpretada isolada e solipsisticamente, amparando-se em

um conceito ontológico de vida. Antes, mostra-se crucial para a afirmação da

democracia uma leitura do princípio de proteção à vida formulado por uma comunidade

política, que se expressa na legislação antecedente e subseqüente à própria Constituição

e estabelece o que é vida para o direito, ou, mais apropriadamente, o sentido de vida

juridicamente tutelável. Nessa perspectiva, salienta-se, com Diaulas Costa Ribeiro, que:

“o conceito jurídico-penal de vida deve ser isento de conveniência moral,

religiosa e emocional. Vida, para o direito penal, não é dom, não é alma,

não é intocável e nem é fruto santificado. Vida é um bem jurídico integrante

da personalidade, sujeito à tutela penal. E essa tutela é prestada com base

nos mesmos padrões estabelecidos para a proteção de todos os demais bens

jurídico-penais.”184

Na contramão de uma linha argumentativa democrática, atente-se para a posição

irreflexiva e ausência de diferenciação entre discursos jurídicos, éticos e morais,

presentes no parecer apresentado em sede da ADPF nº 54-8/DF pelo Ministério Público

Federal, subscrito por seu então Procurador-Geral da República Cláudio Fonteles, no

qual se alega a primazia do direito à vida do feto anencéfalo e a necessidade de

observância do princípio da solidariedade.

A superioridade irreflexiva e metafísica da vida, tal como defendida no referido

parecer, subverte o discurso judicial, ao articular, sem qualquer respaldo sistêmico, o

valor absoluto vida sobre todos os bens igualmente tuteláveis pelo direito. A conhecida

formação católica do parecerista talvez o tenha levado a desconsiderar que, na condição

de Procurador-Geral da República, cumpre-lhe velar pela observância de uma ordem

jurídica democrática e plural no interesse de uma sociedade supercomplexa. A leitura

descontextualizada do direito à vida enunciado no art. 5º, caput, da Carta Magna

conduziu-o a uma linha argumentativa fundamentalista, de base religiosa, que, ao

atribuir a condição de pessoa ao feto anencéfalo, não considerou o sentido específico da

tutela jurídica da vida.

184 RIBEIRO, Diaulas Costa. Antecipação Terapêutica de Parto: Uma releitura jurídico-penal do aborto por anomalia fetal. In: DINIZ, Débora; RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto por anomalia fetal, p. 96.

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192

Mencionada inviabilizaria diversos institutos jurídicos já amplamente

consagrados no direito brasileiro, como o estado de necessidade, a partir do qual a vida

humana pode ser sacrificada em salvaguarda a bem jurídico alheio. Caso se considere a

superioridade incondicional da vida sobre os demais bens jurídicos, afigurar-se-iam

inconstitucionais as excludentes de antijuridicidade previstas no art. 128 do Código

Penal, notadamente a hipótese de aborto sentimental, autorizada pelo inciso II do

mencionado dispositivo, que se presta exclusivamente a evitar a dor psíquica da mãe

violentada em detrimento do produto da concepção.

O discurso desenvolvido pelo então Procurador-Geral da República mostra-se

absolutamente incoerente com o ordenamento jurídico pátrio, ao desconsiderar que a

vida é um bem jurídico dentre outros, possuindo, para o direito, um significado

particular, que não deve ser obscurecido por concepções éticas, morais e religiosas

particulares.

A remissão efetuada pelo parecerista ao art. 2° do Código Civil Brasileiro

mostra-se ambígua. A disposição no sentido de que “A personalidade civil da pessoa

começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos

do nascituro”, ao invés de afirmar a condição de pessoa do feto no direito civil,

obscurece-a, porquanto estabelece uma relação nebulosa entre a negação de

personalidade jurídica ao feto e a salvaguarda de “seus” direitos civis.

O invocado art. 4.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o qual

prescreve que “Toda pessoa tem direito a que se respeite sua vida. Este direito estará

protegido pela lei, no geral, a partir do momento da concepção”, tampouco corrobora a

tese defendida pelo ilustre parecerista. A utilização da expressão “no geral” denota que a

proteção por ele estabelecida não se afigura absoluta. A remissão ao art. 1º da

Convenção sobre os Direitos da Criança, segundo a qual “A criança, por falta de

maturidade física e mental, necessita de proteção e cuidado especiais, aí incluída a

proteção legal, tanto antes, como depois, do nascimento”, em nada acrescenta à

discussão, porquanto procura atribuir a qualidade de criança ao feto anencéfalo em

desconsideração a um sem número de prescrições normativas específicas, que conduzem

a um enquadramento jurídico oposto.

A referência à solidariedade prevista no art. 3º, inciso I, da Constituição da

República mostra-se inapropriada. Não encontra qualquer consistência jurídica, nem

plausibilidade argumentativa a alegação de que a formação de uma sociedade solidária

abarcaria, na espécie, a compulsoriedade jurídica da perpetuação da gravidez em prol de

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uma possível doação de órgãos do bebê anencéfalo para outros bebês. De acordo com a

legislação federal em vigor, a doação de órgãos sujeita-se à voluntas do doador, não se

reconhecendo, na hipótese, a incidência compulsória do princípio da solidariedade.

O parecerista afirma que “não são todas as gestantes que, por sua dor, almejam

livrar-se do ser humano, que existe em seus ventres maternos. Há outras também

gestantes que, se experimentam a dor, superam-na e, acolhendo a vida presente em seu

ser, deixam-na viver, pelo tempo possível”. Deve-se reconhecer que a solidariedade, em

um sentido jurídico, reside no exato respeito à dor da gestante que não vê qualquer

sentido na perpetuação de uma gravidez infrutífera. Semelhante dor, por sua intensidade,

encontra-se tutelada pela expressa autorização jurídica de aborto sentimental, sendo

injustificado o não reconhecimento da mesma tutela, quer na esfera da atipicidade, quer

da antijuridicidade, na hipótese ora examinada. A exigência de construção crítica e

coerente de um discurso judicial em sede da ADPF nº 54-8/DF a partir de princípios

jurídicos compreendidos à luz das noções de pluralidade e de solidariedade conduz ao

reconhecimento da legitimidade da interrupção da gravidez de feto anencéfalo.

Um discurso judicial não há de pautar-se quer pela afirmação da bondade na

Terra, quer pela reificação de concepções metafísicas irreflexivas, cabendo-lhe antes

zelar pela pluralidade democrática, expressa na noção do justo enquanto aquilo que é

“correto para nós”. Não há como negar a necessária procedência da ADPF nº 54-8/DF,

reconhecendo-se a justiça (correção) da decisão que expressa a possibilidade de

realização do aborto de feto anencéfalo no Brasil.

Mostram-se, nesse ponto, pertinentes as considerações de Hannah Arendt acerca

das diferenças principiológicas que regem as esferas públicas e privadas. A autora

identifica a existência de uma moralidade pública diferenciada a nortear o espaço

político, no que se distancia do pensamento aristotélico, que associa a política à

consecução de fins últimos, expressos por ensinamentos éticos, igualmente válidos na

esfera privada. O espaço político não comporta, para a autora, quer uma moralidade

absoluta, com o é a religiosa –, quer meros costumes e tradições, facilmente

modificáveis: “moralidade pessoal em suas formas autênticas, como consciência

socrática e bondade cristã, poderia, de fato, prevenir indivíduos de praticarem o mal,

mas nenhuma das duas estão suficientemente envolvidas com os negócios públicos para

prevenir práticas totalitárias”185. Assim, a moralidade pública, autônoma e distinta das

185 CANOVAN, Margaret. Hannah Arendt – A reinterpretation of her political thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 197.

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formas de moral pessoal, seria fundamentada na afirmação da cidadania, na igualdade de

direitos e na criação de instituições políticas aptas a preservar a liberdade do homem.

A moralidade política que propõe não provém da natureza das coisas, nem de

deduções lógicas. Essa moralidade política decorre, sim, da própria condição humana da

pluralidade, situando-se dentro da ação: “esses preceitos morais são os únicos que não

são aplicados à ação de fora, de alguma suposta faculdade superior ou de experiências

situadas fora dos próprios fins da ação. Afloram, do contrário, diretamente da vontade de

viver com os outros através da ação e da fala”186.

A distinção entre uma moralidade pessoal e uma moralidade pública, regida por

princípios próprios, objetiva garantir a pluralidade, pretendendo-se obstaculizar a

incidência, na esfera pública, de absolutos, tais como noções referentes à bondade, ao

amor, à compaixão e à piedade, as quais eliminam a distância entre os homens. As

relações públicas devem assentar-se no meio termo, no âmbito da virtude e do vício

ordinários, e não na esfera do bem e do mal absolutos. A cada princípio moral absoluto

opõe-se, portanto, um princípio político: no lugar do amor, respeito; ao invés de

compaixão e piedade, solidariedade; no lugar da consciência, cidadania ativa.

À luz desse mesmo espírito, observa-se, com Habermas, que uma jurisdição

constitucional democrática deve-se submeter ao princípio democrático do discurso,

segundo o qual “D: válidas são aquelas normas (e tão-somente aquelas normas) a que

todos que por ela possam ver-se afetados possam prestar seu assentimento como

participantes em discursos racionais.”187 Nesse sentido, pode-se adaptar tal princípio

para a hipótese específica dos discursos judiciais, afirmando-se que “válidas são aquelas

decisões judiciais (e tão-somente aquelas decisões judiciais) a que todos que por ela

possam ver-se afetados possam prestar seu assentimento como participantes em

discursos racionais.” Dessa forma, a versão jurisdicional do princípio do discurso

corrobora a exigência de que as decisões judiciais sejam fundadas na imparcialidade,

aqui compreendida como igual consideração a todos, pressupondo a solução de questões

litigiosas a partir de um reconhecimento de princípios e regras jurídicas

democraticamente construídas.

A questão da legitimidade do discurso judicial empreendido na ADPF nº 54-

8/DF mostra-se de singular complexidade por envolver questões de ordem moral, ética,

religiosa e jurídica. Ressalta-se, à luz da teoria do discurso, a postura performativa que

186 ARENDT, Hannah. A Condição Humana, p. 245-246. 187 HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung, p. 138.

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deve ser assumida pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal no discurso acerca da

licitude da prática de interrupção de gravidez de feto anencéfalo no Brasil.

O manuseio pelo direito de questões éticas e morais não compromete sua

operacionalidade particular, na medida em que é regido por princípio específico, a saber:

o princípio democrático.188 Deve-se assegurar, no processo de criação de normas, uma

participação igualitária de porta-vozes dos mais diversos interesses e concepções de

mundo. No exercício da atividade jurisdicional, há de se observar o pano de fundo

institucionalmente estabelecido pela positivação de princípios que espelham o zelo pelo

caráter plural das sociedades modernas complexas.

Insere-se aqui a crítica habermasiana à solução comunitarista ao problema da

indeterminação do direito em sede da jurisdição constitucional. A dimensão axiológica

conferida pelos comunitaristas aos princípios jurídicos, em detrimento de seu caráter

deontológico, compromete o pluralismo democrático, pois pressupõe um ethos

hipoteticamente compartilhado pela comunidade política e supostamente tutelado pelo

direito.189

Trazendo tais ilações para a discussão acerca da legitimidade da interrupção da

gravidez de feto anencéfalo no Brasil, um discurso judicial que se volte para a

superioridade do direito à vida do feto sobre a dignidade e a autonomia da vontade da

mãe, ou vice-versa, subverte a legitimidade da atividade jurisdicional, porquanto dispõe

de razões éticas, de que apenas o legislador democrático ou o poder constituinte poderia

dispor, vilipendiando-se o caráter deontológico dos princípios jurídicos, posto

equiparados a valores agrupáveis em um plexo axiológico fundado em um ethos fechado

e irreflexivo.

Salienta-se a necessidade de se estabelecer uma postura performativa calcada na

tolerância, mediante a qual temas ética e moralmente controvertidos, como aborto e

eutanásia, são discutidos a partir de um respeito mútuo a diferenças éticas: “A tolerância

é o preço que pagamos por vivermos em uma comunidade jurídica igualitária, na qual

grupos com diferentes backgrounds culturais e éticos devem conviver uns com os

outros.”190 Nesse contexto, cumpre ao direito viabilizar a convivência de concepções de

mundo e projetos de vida os mais diversos: “Um tal direito eticamente ‘abstrato’ fornece

o padrão para regulamentações que, em virtude de poderem ser aceitas por todos pelas

188 HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung, p. 140. 189 HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung, p. 303. 190 HABERMAS, Jürgen. Reply to symposium participants at the Benjamin N. Cardozo School of Law, p. 17.

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mesmas razões em vista da finalidade da coexistência, poupam os cidadãos de

compromissos essencialmente mais dolorosos e arriscados para a integridade em

irreconciliáveis conflitos de valor.”191

Sob o prisma da teoria do discurso, a perspectiva performativa que se espera de

uma Corte Constitucional deve pautar-se na perquirição acerca do significado e dos

limites dos princípios envolvidos na questão, a saber: aos princípios de proteção à vida,

da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da liberdade e da autonomia da vontade,

do direito à saúde e da liberdade de crença. Nesse sentido, enquanto participantes de um

discurso público, “deve(m) abandonar a questão ética acerca de qual regulamentação é

respectivamente a ‘melhor para nós’ do ‘nosso’ ponto de vista. Eles devem, ao contrário,

assumir o ponto de vista moral e examinar cada regulação proposta buscando qual é a

‘igualmente boa para todos’ à vista da pretensão precedente a um igual direito de

coexistência.”192

O pano de fundo normativo formado pela inquestionada constitucionalidade dos

arts. 24, 124, 126 e 128 do Código Penal, bem como do art. 3° da Lei nº 9.437/97

mostra-se importante fonte de perquirição acerca da dimensão de proteção de tais

princípios no ordenamento pátrio, delineando a linha discursiva dos direitos humanos no

Brasil. Exsurge, assim, a idéia da responsabilidade política dos juízes, na medida em

que devem ser, em geral, coerentes com decisões tomadas no passado. Tal noção é

definida nos seguintes termos:

“As decisões judiciais são decisões políticas, ao menos no sentido amplo que

interessa à doutrina da responsabilidade política. Se a tese dos direitos é

válida, a distinção que acabamos de estabelecer explicaria, de maneira

muito geral pelo menos, a preocupação especial que mostram os juízes tanto

nos precedentes, quanto nos exemplos hipotéticos. Um argumento de

princípio pode servir de justificação para uma decisão determinada,

amparada na doutrina da responsabilidade, apenas se se pode demonstrar

que o princípio citado é coerente com decisões anteriores que não hajam

sido modificadas e com decisões que a instituição está disposta a tomar nas

circunstâncias hipotéticas. Não é muito surpreendente que assim seja, mas o

argumento não seria válido se os juízes baseassem suas decisões em

argumentos políticos. Então teriam a liberdade de dizer que uma política

191 HABERMAS, Jürgen. Reply to symposium participants at the Benjamin N. Cardozo School of Law, p. 17. 192 HABERMAS, Jürgen. Reply to symposium participants at the Benjamin N. Cardozo School of Law, p. 17.

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poderia estar bem servida em apenas servi-la no caso que julga (...), de

modo que não teria de entender que as decisões anteriores nem as

hipotéticas decisões futuras estejam a serviço da mesma política.”193

A distinção realizada por Ronald Dworkin entre argumentos políticos e

argumentos de princípios é bastante relevante. Os argumentos de princípio propõem-se a

estabelecer direitos individuais, ao passo que os argumentos políticos traçam objetivos

coletivos. Subjaz a tal distinção a justificação de transferir-se a função de controle

abstrato de constitucionalidade a cortes constitucionais, retirando-a do parlamento, na

medida em que envolve, em geral, um discurso acerca de direitos fundamentais, não se

confundindo com o estabelecimento de bens e metas coletivas estritamente políticas. O

discurso público empreendido a partir de tais princípios estabelecem o que Dworkin

chamou de uma moralidade política, a vincular os magistrados, distinta tanto de uma

moralidade pessoal, quanto de uma moral grupal, ou mesmo de uma moralidade

compartilhada por uma maioria.

Apesar de o controle abstrato de normas constituir atividade essencialmente

legislativa, reconhece-se a anterioridade do discurso dos direitos fundamentais à própria

legislação. Não pode, assim, submeter-se a objetivos políticos, mesmo que traçados por

uma maioria, ressaltando-se a função contramajoritária da jurisdição constitucional.

Aqui, aflora, a distinção entre a noção de integridade na atividade legislativa e na

jurisdição constitucional: “Temos dois princípios de integridade política: um princípio

legislativo, que pede aos legisladores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente

coerente, e um princípio jurisdicional, que demanda que a lei, tanto quanto possível, seja

vista como coerente nesse sentido.”194

Ante os chamados “casos difíceis” (hard cases), em que se verifica,

preliminarmente, a possibilidade de incidência de mais de um princípio a ensejar

decisões conflitantes, defende-se a aplicabilidade de apenas um desses princípios, e que

conduziria a uma única decisão correta. A noção de integridade possibilita a tomada de

decisões dentro de um sistema de justiça não fundado em concessões: “um princípio de

justiça não é deixado de lado nem limitado por outro de alguma maneira que expresse

uma hierarquização dos dois”195.

193 DWORKIN, Ronald. Los Derechos en serio. Trad. Marta Guastavino. Barcelona: Editorial Ariel, 1995, p. 153. 194 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito, p. 213. 195 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito, p. 213.

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198

A integridade, que constitui um terceiro ideal do direito, juntamente com a

justiça e com a observância às regras do jogo (righteousness), fundamenta-se na noção

de solidariedade e assenta-se numa moralidade política historicamente construída por

uma comunidade vista como “agente moral distinto”. A fim de explicitar o sentido de

“integridade do direito”, Dworkin recorre à figura metafórica de um romance

desenvolvido em cadeia: o juiz seria comparável a um romancista que escreve um

capítulo de um livro a partir de capítulos pré-existentes. A figura do livro reporta-se ao

ordenamento jurídico, enquanto os capítulos pré-existentes constituir-se-iam normas

integrantes do ordenamento (leis, precedentes judiciais etc.). Na condição de romancista

que dá continuidade à obra literária, compete ao juiz elaborar uma interpretação fluida e

coerente com o texto considerado como um todo, ou seja, com o ordenamento e com a

jurisprudência, de tal sorte que sua decisão possua “um poder explicativo geral”, sendo

“mal sucedida se deixar sem explicação algum importante aspecto estrutural do texto,

uma trama secundária tratada como se tivesse grande importância dramática, ou uma

metáfora dominante ou recorrente”196.

Deve-se empreender a descoberta dos princípios efetivamente incidentes, ou seja,

aqueles que não conduzem a decisões conflitantes a partir de elementos normativos de

decisões passadas, de tal forma a construir globalmente um discurso coerente e justo.

Surge o desafio da reconstrução democrática de uma identidade constitucional aberta e

plural, considerando-se tanto normas e decisões judiciais passadas, quanto a presença de

um auditório ideal de cuja aprovação a decisão final não poderá prescindir. A

legitimidade da decisão é auferida tanto a partir da coerência com o tratamento de casos

análogos, quanto segundo a concordância com o sistema de regras em vigor e que se

funde concretamente em uma racionalidade comunicativa, de sorte que seja aceita pelos

membros jurídicos como decisões racionais.

A concorrência de alguns princípios hipoteticamente aplicáveis à discussão

acerca da interrupção de gravidez por anencefalia fetal no direito brasileiro é aparente.

Deve ser solucionada a partir da averiguação da incidência de tal ou qual princípio, ao

invés de outro tido prima facie por concorrente no caso em exame, deixando-se de levar

em conta uma hipotética superioridade de um princípio sobre outro. Nesse ponto, o

Supremo Tribunal Federal deve rejeitar uma postura comunitarista de afirmação de

preponderância de um princípio constitucional sobre outro, no que golpeia

196 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito, p. 277.

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violentamente a pedra angular do Estado Democrático de Direito, que se expressa na

idéia de indisponibilidade do direito.

Assim, deve-se realizar uma abordagem do tema de interrupção de gravidez de

feto anencéfalo sob uma perspectiva diferenciada de uma jurisprudência, abandonando-

se o usual - e irracional! - modelo de hierarquização de valores pela noção fluida de

integridade, único caminho para se alcançar uma decisão coerente e racionalmente

aceitável, a zelar pela indisponibilidade do direito.

Nessa perspectiva, indaga-se: qual princípio seria aplicável ao caso considerado?

Ou, em outras palavras, qual é a moralidade política subjacente ao tema de interrupção

de gravidez de feto anencéfalo no Brasil? Ou, ainda em outros termos, qual seria a

decisão coerente com o ordenamento jurídico e racionalmente aceitável?

Consoante observado, a discussão pode ser realizada na esfera da tipicidade ou

no âmbito da antijuridicidade da conduta em exame. Quanto à tipicidade, deve-se atentar

para o fato de que o Supremo Tribunal Federal não admite o chamado “aborto

eugênico”, ou seja, a interrupção da gravidez de feto portador de doença grave. Indaga-

se: abrangeria tal situação a noção de anencefalia? A resposta afigura-se negativa, na

medida em que a morte humana ocorre, no direito brasileiro, com a morte encefálica,

segundo estabelece o mencionado art. 3º da Lei nº 9.437/97: “A retirada post mortem de

tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá

ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada por dois médicos não

participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios

clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina”. A

partir daí, constata-se, por razões principiológicas, que o direito brasileiro não tutela o

“ciclo de vida” do feto anencéfalo, na mesma medida em que não tutela o “ciclo de

vida” do indivíduo que possui um cérebro morto, cujas funções vitais permanecem, por

algumas horas, em funcionamento.

A discussão jurídica acerca da tutela da vida deve afluir antes de um acordo

político do que da reificação de uma crença específica sobre o sentido e o começo da

vida. Seguindo a liberdade de crença, expressamente afirmada no art. 5º, inc. VI, da

Carta Constitucional, o Estado, por ser laico, não pode impor uma concepção do sagrado

a todas as pessoas, mesmo que tal concepção encontre respaldo na opinião da maioria.

Ao discutir o tema do aborto e da eutanásia à luz do sistema jurídico norte-americano,

observa Dworkin que convicções objetivas sobre porque e como a vida tem importância

intrínseca são questões religiosas: “a crença em que o valor da vida humana transcende

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seu valor para a criatura de cuja vida se trata – que a vida humana é impessoal e

objetivamente valiosa – é uma crença religiosa mesmo quando defendida por pessoas

que não acreditam em Deus.”197

Evidencia-se o papel contramajoritário da jurisdição constitucional: “Nesse caso,

em uma sociedade pluralista constitucionalmente organizada, tal questão eticamente

controversa não pode ser regulada sob a descrição eticamente permeada de uma

autocompreensão que, da perspectiva do universo de companheiros cidadãos, é apenas

uma das muitas auto-interpretações coletivas (ainda que seja a cultura majoritária). É

necessário, ao contrário, buscar uma regulação neutra que, no nível mais abstrato do

igual direito de coexistência das comunidades distintamente integradas eticamente, possa

encontrar o reconhecimento racionalmente fundado de todas as partes do conflito.”198

Entre tantas divergências éticas e religiosas sobre o sentido da vida, cumpre ao

direito, e conseqüentemente à jurisdição constitucional, viabilizar o dissenso, eximindo-

se de dizer o “bom” ou o “verdadeiro” sobre a vida, estabelecendo antes o correto (justo)

a seu respeito, entendendo-se como tal o estabelecimento de uma noção de vida

juridicamente tutelável que possibilite a afirmação, na esfera privada, de diferentes

concepções de mundo e de projetos individuais.

A definição jurídica de morte traçada no art. 3º da Lei 9.437/97 (“Art. 3°. A

retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a

transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica,

constatada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante,

mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do

Conselho Federal de Medicina.”), amplamente aceita e não contestada pela

jurisprudência pátria, revela a atipicidade da conduta de interrupção de gravidez de feto

anencéfalo, não constituindo aborto para fins do direito penal.

No que se refere à questão da antijuridicidade da conduta, o nosso Código Penal

estabelece, em seu art. 128, duas causas excludentes de antijuridicidade do aborto, quais

sejam: a hipótese de aborto necessário, também denominado terapêutico, situação em

que a vida da mãe corre perigo; bem como a do aborto sentimental, no caso de gravidez

resultante de estupro. Registre-se a impossibilidade de antever-se, em 1940, casos de

197 DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida – Aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 218. 198 HABERMAS, Jürgen. Reply to symposium participants at the Benjamin N. Cardozo School of Law, p. 12.

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anencefalia no período de gestação, razão pela qual o problema não foi posto àquela

época.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal pacificou entendimento no

sentido de excluir a ilicitude da conduta de abortamento no caso de gravidez resultante

de atentado violento ao pudor, sob o argumento de que haveria a mesma ratio da

exclusão de antijuridicidade constante do art. 128, incido II, do CP, a saber: gravidez

resultante de crime praticado com violência contra a liberdade sexual da mulher.

As previsões penais que autorizam os abortos sentimental e terapêutico são

reputadas constitucionais pela doutrina (esmagadora maioria) e pela jurisprudência

brasileiras. A sensibilidade do sistema à situação estendeu-se, conforme observado, à

permissão do aborto sentimental no caso de gravidez resultante de atentado violento ao

pudor. Em situações como tais - hipóteses em que a saúde física ou psíquica da mãe vê-

se seriamente ameaçada por gestação brutalmente anormal -, compreende-se que a vida

do feto não seja juridicamente tutelável. Incide, na hipótese, o princípio da dignidade da

pessoa humana, aos quais se seguem, por serem, no caso, correlatos, os princípios da

liberdade e da autonomia da vontade, do direito à saúde e da liberdade de crença,

facultando-se à gestante a interrupção ou continuação da gravidez.

Uma corte constitucional que afirme uma visão monolítica, metafísica e reificada

da questão não exerce uma atividade jurisdicional de bases democráticas, incorporando

antes um discurso materialmente religioso no seio da jurisdição constitucional. Há de se

empreender, no discurso judicial que decidirá sobre a licitude da interrupção da gravidez

de feto anencéfalo no direito brasileiro, um abandono de concepções objetivantes acerca

do conceito de vida e de uma imperiosa e absoluta exigência de sua tutela institucional.

A solução judicial há de considerar o discurso jurídico subjacente a princípios

públicos intersubjetivamente compartilhados. Os princípios da dignidade da pessoa

humana, da liberdade e da autonomia da vontade, do direito à saúde e de liberdade de

crença, bem como as disposições do art. 14, 126 e 128 do Código Penal, e o art. 3º da

Lei nº 9.437/97, mostram-se relevantes para a construção do “capítulo” seguinte do

“romance” até aqui escrito no direito pátrio em matéria de aborto. A ADPF nº 54-8/DF

adicionará mais um “capítulo” à “obra”, devendo-se indagar o teor que deve assumir este

“capítulo”, a fim de que resulte numa elaboração jurídica coerente com os capítulos

precedentes.

A definição jurídica de morte a partir da paralisia irreversível das funções

cerebrais, preconizada pela Lei nº 9.437/97, bem como a autorização genérica constante

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

202

no art. 24 do Código Penal, segundo a qual é lícito, ante uma situação de perigo não

causada pelo agente, que este sacrifique bem jurídico alheio em favor de bem jurídico

próprio, convergem para a irrepreensibilidade de interrupção de gravidez de feto

anencéfalo no Brasil, reconhecendo-se a atipicidade de tal conduta. O entendimento

sufragado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de excluir a

ilicitude da conduta de abortamento no caso de gravidez resultante de atentado violento

ao pudor, corrobora o argumento de que, no presente caso, seria igualmente possível

conferir-se uma analogia in bonam partem ao art. 128, incido II, do CP, para reconhecer-

se a incidência, na hipótese, de uma excludente de ilicitude.

Por razões de coerência e de aceitabilidade racional, espera-se que o próximo

capítulo seja favorável ao aborto de feto anencéfalo, entendendo-se pela não incidência

dos arts. 124 e 126 do Código Penal na hipótese. Como a integridade diz respeito a

princípios, incide, na questão, e em consonância com as decisões legislativas e

pretorianas supramencionadas, o princípio da dignidade da pessoa humana, e seus

correlatos princípios da liberdade e da autonomia da vontade, do direito à saúde e de

liberdade de crença. Tais considerações expressam a moralidade política que perfaz o

sistema e devem ser refletidas pela jurisdição constitucional.

O exercício democrático da jurisdição constitucional pressupõe uma

diferenciação entre questões éticas e morais, com a subordinação de critérios éticos de

“vida boa” à temática moral da justiça. Operada em um nível pós-convencional, a

diferenciação entre questões de ordem ética e moral ocorre quando da aceitação da

diversidade de valores e opiniões. Uma análise democraticamente legítima da licitude do

aborto de feto anencéfalo no Brasil exige a adoção de uma postura performativa pós-

convencional, a partir da qual se abdica de uma compreensão individualmente fundada,

considerando-se um universo de princípios universais a zelarem pela pluralidade de

concepções de mundo e projetos individuais.

Deve-se considera princípios universais, independentemente de estarem de

acordo com posturas individuais, mesmo as majoritárias, respeitando-se

individualidades. Aqui, os seres humanos são considerados fins em si mesmos,

tornando-se a proteção da dignidade humana a premissa moral básica, que assume a

forma de um princípio moral de justiça.

Espera-se, no julgamento da ADPF nº 54-8/DF, a assunção de uma postura

performativa democraticamente fundada, em que se abandonam razões éticas

particulares. Considerando-se os princípios de nosso ordenamento jurídico, tal como

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203

entendidos por uma comunidade política plural e consolidados numa moralidade pública

intersubjetivamente construída, há de se reconhecer a licitude do aborto de feto

anencéfalo no Brasil, sob pena de denegação do acesso à justiça à inúmeras mulheres no

Brasil.

3. Conclusão: o papel prospectivo de um Observatório da Justiça Brasileira

Os desafios democráticos presentes na tematização de questões bioéticas, dentre

as quais se mostra exemplar a matéria discutida na ADPF nº 54-8/DF, revelam o

problema da diferenciação do direito e dos riscos de não acesso à justiça. Nessa

perspectiva, sugere-se que o Observatório da Justiça Brasileira (OJB) não opere apenas

retrospectivamente, mediante avaliação crítica de decisões pretéritas, mas assuma uma

postura prospectiva, apontando para perspectivas democráticas na abordagem de

questões como o aborto, a pesquisa de células-tronco, a eutanásia, a ortotanásia, dentre

outras.

No desempenho de referido papel, o projeto de um Observatório da Justiça

Brasileira depara-se com as seguintes possibilidades de atuação:

a) analisar decisões judiciais pretéritas, emanadas de todas as instâncias

jurisdicionais, voltadas à averiguação da argumentação judicial em questões bioéticas, a

fim de investigar os riscos e possibilidades para a constituição de uma jurisdição

democrática;

b) formar um lócus de tematização pública acerca da legitimidade de decisões

judiciais em matéria bioética, velando pela afirmação da pluralidade e abertura dos

discursos públicos e do acesso à justiça numa comunidade política de princípios;

c) promover a discussão jurídica de questões bioéticas, apontando para soluções

democráticas de matérias submetidas ao Poder Judiciário brasileiro, a fim de afirmar-se

a diferenciação do direito e a indisponibilidade do discurso judicial.

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204

MEIOS AUTOCOMPOSITIVOS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS Gláucia Falsarella Foley

1. INTRODUÇÃO

A delimitação do objeto da presente análise requer, primeiramente, o

esclarecimento de quais são os meios de solução de conflitos à disposição da sociedade.

Segundo Azevedo199, a processualística atual organiza-se em torno de três

espécies de resolução de conflitos: a autotutela ou autodefesa, que implica a dissolução

do conflito com a imposição de uma vontade sobre outra pela violência física ou moral;

a heterocomposição que enseja a resolução de disputas por meio da imposição de uma

decisão de um terceiro ao qual as partes encontram-se vinculadas – assim como ocorre

no processo judicial e na arbitragem – e, finalmente, a autocomposição.

Os meios autocompositivos são aqueles em que a resolução do conflito decorre

da vontade dos próprios envolvidos na situação, sem a intervenção vinculativa de um

terceiro, ou seja, sem a emanação de uma decisão unilateral.

Essa autocomposição pode ser impulsionada pela aplicação de técnicas de

negociação, conciliação ou mediação. Como todos estes instrumentos podem ser

judiciais ou extrajudiciais, a primeira delimitação a ser feita em relação ao objeto da

presente análise é a de que nem sempre os meios autocompositivos de solução de

conflitos correspondem aos meios extrajudiciais – por vezes, denominados

“alternativos” – ao Sistema Judiciário.

Ou seja, o critério de classificação que diferencia os meios de solução de

conflitos entre judiciais e extrajudiciais pode ser útil para outras análises que levem em

consideração a jurisdição como a referência oficial, mas não o será para pesquisas que

pretendam investigar quais são os métodos passíveis de geração de energia

emancipatória, conforme se verá adiante.

Feita essa ressalva, o próximo passo para a delimitação precisa do objeto desta

pesquisa, é desvelar a sua finalidade. O propósito deste trabalho é investigar quais são os

meios de resolução de conflito que, convertidos em práticas comunicativas, podem

colaborar para a promoção da emancipação e coesão sociais, da autonomia e do

199 GOMMA, André Azevedo. Perspectivas metodológicas do processo de mediação: apontamentos sobre a autocomposição no direito processual, p. 151-153.

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empoderamento200 individuais e coletivos. Trata-se de uma escolha dos métodos de

solução de disputas que apresentem vocação para a realização da Constituição na

realidade social em que o conflito está inserido.

Antes, porém, que se proceda a essa seleção, é preciso traçar um panorama dos

principais instrumentos de resolução de disputas colocados à disposição dos cidadãos

em conflito.

Uma vez definido o meio de resolução de conflitos que apresenta alta intensidade

de energia emancipatória, este trabalho pretende ilustrar o tema, oferecendo um retrato

de três experiências de mediação comunitária, impulsionadas por entes de naturezas

diversas: o Poder Judiciário, a Universidade e a uma organização da Sociedade Civil.

Ao final, pretende-se traçar alguns desafios ao Sistema de Justiça com vistas a

aprofundar a democratização do acesso à justiça, em especial na sua relação com os

meios de solução de conflitos analisados.

2. DESJUDICIALIZAÇÃO E ‘EXPLOSÃO DE LITIGIOSIDADE’

As sociedades contemporâneas ocidentais passam por um momento de

transformação em relação ao Sistema de Justiça que revela um fenômeno aparentemente

paradoxal: de um lado, o acelerado processo de urbanização e o desenvolvimento da

sociedade de consumo – e, com ele, o aumento da consciência em relação aos direitos

individuais e coletivos – ensejaram uma explosão de litigiosidade201 que judicializou o

social. De outro, é possível constatar um processo de “desjudicialização”202 da resolução

dos conflitos.

O processo de judicialização da esfera social, visível a partir do aumento

vertiginoso das demandas judiciais sem a correspondente ampliação dos recursos

estatais, elevou a expectativa social em relação ao papel do Sistema de Justiça, que

passou a absorver quase que exclusivamente a quota da responsabilidade pela coesão

social. Ocorre que este fenômeno atingiu somente uma determinada parcela da sociedade

que dispõe de recursos para recorrer ao Sistema de Justiça mediante a violação de um

200 A palavra empoderamento, traduzida do inglês, empowerment, será adotada neste trabalho, à luz da definição talhada por SCHWERIN, pela qual “O processo de empoderamento reúne atitudes individuais (auto-estima, auto-eficácia) e habilidades (conhecimento, aptidões e consciência política) para capacitar ações individuais e colaborativas (participação política e social), a fim de atingir metas pessoal e coletivas (direitos políticos, responsabilidades e recursos)”, In: SCHWERIN, Edward. Mediation, Citizen Empowerment and Transformational Politics, p. 56. 201 Também denominado “o direito em abundância”, por Marc GALANTER. Apud, PEDROSO, João; TRINCÃO, Catarina; DIAS, João Paulo. Percursos da informalização e da desjudicialização – por caminhos da reforma da administração da justiça (análise comparada), p. 14, disponível na Internet no sítio: htttp://opj.ces.uc.pt/pdf/6.pdf , acessado em 07/11/2007. 202 PEDROSO, João; TRINCÃO, Catarina; DIAS, João Paulo. Percursos da informalização e da desjudicialização – por caminhos da reforma da administração da justiça (análise comparada, p. 32-33. Idem.

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206

direito. Além disso, essa demanda aumentada foi colonizada por causas numerosas,

porém de baixo impacto, como o são as dívidas cobradas pelas prestadoras de serviço

público203, fato que contribuiu ainda mais para o déficit de celeridade e eficiência que

trazem insatisfação aos – poucos – usuários do Sistema de Justiça.

A desjudicialização, por seu turno, ocorre exatamente por força dessa exclusão

de uma significativa parcela da sociedade do acesso ao Sistema de Justiça, aliada à

fragmentação e complexidade das sociedades contemporâneas que exigem respostas

plurais a uma realidade multifacetada. Essa busca por informalização revela uma (re)

descoberta de novos meios de resolução de conflitos que não se limitam à atividade

jurisdicional e que procuram veicular uma “justiça democrática da proximidade”.204

Compreender esse fenômeno e posicionar-se diante dele é uma tarefa necessária para

aqueles que consideram que a criação do direito – mesmo antes da (re) emergência

destes meios “alternativos” de solução de conflitos – não é, nem nunca foi, obra

exclusiva dos parlamentos e tribunais.

O monopólio estatal da resolução de litígios nunca foi uma realidade. Há um

direito vivo, latente, que se traduz na forma como os cidadãos lidam com as

adversidades da vida no cotidiano. Afastados dos tribunais, estes conflitos vão sendo

solucionados da melhor maneira – nem sempre emancipatória – encontrada pelos seus

protagonistas.

Como afirma Aguiar205, “o direito nunca está posto, ele sempre está in fieri. Ele é

expressão das lutas das sociedades, não se restringindo à legalidade estatal, mas

vicejando em todas as situações onde existam as relações de alteridade, onde os olhares

diversos sobre problemas engendrem soluções novas, aberturas diferentes e consignação

de novos direitos”.

É em meio a este pluralismo jurídico que se contextualiza a (re)emergência dos

meios ‘alternativos’ de resolução de conflito que, por si só, não têm por pretensão nem

reproduzir a regulação estatal, nem servir de instrumento para a emancipação social, ou

seja, nenhum destes meios é, per se, emancipatório tão somente porque se apresentam

como alternativas ao sistema oficial.

203 Fenômeno que se verifica no Brasil, conforme notícias diariamente veiculadas na imprensa e, em Portugal, conforme SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Revolução Democrática da Justiça, p.27. 204 Idem, p. 59.

205 AGUIAR, Roberto Armando Ramos. Procurando superar o ontem: um direito para hoje e amanhã, p. 70.

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207

Conforme análise realizada junto aos Tribunais de Portugal206, “de um ponto de

vista sociológico, as sociedades são juridicamente pluralistas na medida em que o direito

oficial coexiste com outros direitos que circulam não oficialmente na sociedade, no

âmbito das relações sociais específicas, tais como relações de família, de produção e

trabalho, de vizinhança, etc. Essa normatividade é freqüentemente mobilizada pelos

mecanismos informais de resolução de litígios”.

Embora a utilização de métodos autocompositivos de solução de conflitos não

seja uma novidade do século XX207, houve um resgate do uso destes meios, nos anos

60/70, nos EUA, reunidos sob a sigla ADR208. Este processo foi o resultado de dois

movimentos sócio-políticos aparentemente contraditórios. De um lado, o ADR mostrou-

se um remédio para lidar com o excessivo número de demandas judiciais que, uma vez

não absorvidas pelo sistema oficial, causaram insatisfação e descrédito na justiça. Era o

“direito em abundância”209, para expressar o fenômeno da inflação jurisdicional,

verificado em um momento de grande atividade política voltada para a defesa dos

direitos. De outro, o movimento ADR constituiu um meio de contestação da centralidade

do monopólio estatal, visando valorizar o espaço comunitário e estimular a participação

ativa na solução dos conflitos. O propósito era o de promover a reapropriação da gestão

dos conflitos pela comunidade.

Um dos meios adequados a essa retomada da gestão dos conflitos pela

comunidade é a autocomposição, por se tratar de um método aberto à produção da

normatividade que se constrói nas relações sociais concretas. Nesse sentido, os meios

autocompositivos de solução de conflitos implicam a possibilidade de autolegislação,

adequando a lei às inúmeras e fragmentadas realidades sociais210. Segundo, ainda,

Galanter, “o problema posto pelo acesso à justiça não é, apenas, assim, permitir a todos

recorrer aos tribunais; implica que se procure realizar justiça no contexto em que se

colocam as partes: nesta óptica, os tribunais só desempenham um papel indirecto e,

talvez mesmo, menor”.211

206 SANTOS, Boaventura de Sousa, MARQUES, Maria Manuel Leitão, PEDROSO, João, FERREIRA, Pedro Lopes. Os Tribunais nas sociedades contemporâneas. O caso português, p. 48. 207 Conforme Nazareth SERPA, “Começando pelo diálogo até a guerra, são incontáveis e informais os métodos utilizados pela humanidade para pôr fim aos seus conflitos. Os tribunais sempre foram a última opção. ADR não é panacéia do século XX. É a institucionalização do que vem sendo feito, desestruturada e informalmente, em matéria de resolução de disputas em todo século. Apud ROMÃO, José Eduardo Elias, Justiça procedimental. A prática da Mediação na Teoria Discursiva do Direito de Jürgen Habermas, p. 155. 208 Alternative Dispute Resolution (ADR) ou Resolução Alternativa de Disputas (RAD). 209 Conforme nota n. 3. 210 HESPANHA, António. Justiça e Litigiosidade: história e prospectiva, p. 21 211 GALANTER, Marc. A justiça não se encontra apenas nas decisões dos tribunais. In: HESPANHA, idem, p. 75.

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208

Confere-se, assim, aos cidadãos, a autonomia de participar na formação racional

da vontade e da opinião. “Trata-se da idéia de autolegislação, que, estabelecendo um

nexo interno entre razão e vontade, passa a exigir a consideração simétrica da liberdade

individual de cada um. Isto é, só há sentido na autonomia privada de cada indivíduo se

se considera a autonomia pública de cidadãos integrados numa sociedade, e vice-

versa”.212 Sob esta ótica, somente aqueles meios de resolução de conflitos que

contemplam a razão comunicativa, ou seja, que garantem a participação com direitos

iguais de comunicação, a racionalidade, a exclusão de enganos e ilusões e de coação – é

que podem proporcionar a aplicação de um Direito válido.

“Todavia, se discursos (e, como veremos, negociações, cujos procedimentos são

fundamentados discursivamente) constituem o lugar no qual se pode formar uma

vontade racional, a legitimidade do direito apóia-se, em última instância, num arranjo

comunicativo: enquanto participantes de discursos racionais, os parceiros do direito

devem poder examinar se uma norma controvertida encontra ou poderia encontrar o

assentimento de todos os possíveis atingidos”.213

Assim, se o objeto da presente análise é verificar em que medida os meios de

solução de conflito são capazes de promover a pacificação das relações sociais, mas

também a participação nas decisões políticas; a criação de redes que promovam

solidariedade, mas também a autonomia e autodeterminação; a prevenção de litígios,

mas sem a pretensão de destruir o potencial transformador dos conflitos, não basta

delimitar como objeto desta pesquisa os meios alternativos ao sistema judiciário porque

não necessariamente todos eles veicularão os propósitos acima. A partir de uma

apresentação do panorama e da classificação dos meios de resolução de conflitos

disponíveis na sociedade, todo o enfoque da pesquisa estará na mediação comunitária

porque, conforme se verá adiante, este mecanismo está em sintonia com o pressuposto

desta pesquisa que busca “produzir novos procedimentos que propiciem um acesso à

Justiça pelo agir comunicativo, pelo exercício partilhado da autonomia, pela força

transformadora do diálogo”.214

3. APRESENTAÇÃO E CLASSIFICAÇÃO DOS MEIOS DE RESOLUÇÃO DE

CONFLITOS

212 ROMÃO, José Eduardo Elias, Idem, p. 135. 213 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. Volume I, p. 138. 214 ROMÃO, José Eduardo Elias, Idem, p. 29.

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209

A apresentação dos principais mecanismos de resolução de conflito em um

panorama que revele os meios mais aptos a promover emancipação social pode ser feita

a partir de um critério de classificação que contenha as variáveis

regulatório/emancipatório e estatal/não-estatal. A primeira variável se justifica pelo fato

de que o objeto da presente investigação é analisar em que medida as práticas

comunicativas estabelecidas entre cidadãos em conflito podem colaborar para a

emancipação social. O critério estatal/não-estatal, apesar da sua dificuldade – posto que,

em uma sociedade complexa, por vezes, essa classificação não se mostra suficiente –

tem por finalidade desmistificar a associação de que basta ser comunitária para que a

experiência seja emancipatória215.

A fim de apresentar um quadro no qual os meios de resolução de conflitos se

organizam segundo os vértices estatal/não-estatal e regulatório/emancipatório, urge

adotar uma definição de direito capaz de abarcar diferentes ordens jurídicas, posto que

um dos pressupostos deste trabalho é o de que o monopólio estatal do direito não se

verifica na realidade.

Adotar-se-á, aqui, a definição talhada por Sousa Santos, pela qual o direito é “um

corpo de procedimentos regularizados e de padrões normativos, com base nos quais uma

terceira parte previne ou resolve os litígios no seio de um grupo social”.216

Neste cenário múltiplo de reconhecimento da pluralidade de ordens jurídicas,

podemos identificar a variável estatal/não-estatal, esta última abarcando as práticas

jurídicas levadas a efeito fora do âmbito oficial, ainda que densamente reguladas pelo

direito estatal, como é o caso da arbitragem.

Os modelos podem vir a ser classificados, ainda, sob a variável

regulatório/emancipatório. Teoricamente, o modelo emancipatório é o campo de

exercício da retórica, enquanto que no regulatório impera o direito permeado pela

coerção e/ou burocracia. Assim, o grau de “contaminação” ou colonização entre estes

elementos – retórica, coerção e burocracia – é que define se o modelo é do tipo

emancipatório ou regulatório.

O presente texto pretende analisar quais as combinações possíveis entre as

variantes estatal/não-estatal e regulatória/emancipatória. Nada impede que, nas esferas

não estatais, haja uma forte prevalência da coerção, em detrimento da retórica. Ou ainda,

215 FOLEY, Gláucia Falsarella. Dissertação de Mestrado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, sob a orientação do Prof. José Geraldo de Sousa Junior e co-orientação do Prof. Cristiano Paixão Araújo Pinto, Brasília. 2003. 216 SOUSA SANTOS, Boaventura de. O Estado e o Pluralismo Jurídico em África, In: SOUSA SANTOS, Boaventura de e TRINDADE, João Carlos (Orgs.). Conflito e transformação social: uma paisagem das justiças em Moçambique, p. 5.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

210

uma retórica persuasiva ao invés de dialógica217. Nesse sentido, essas classificações são

válidas para guiar o nosso debate, mas deve-se ressalvar que “as dicotomias são um bom

ponto de partida se for claro, desde logo, que não são um bom ponto de chegada”.218

O critério, portanto, de classificação sob as variáveis adotadas obedecerá à

articulação entre os três componentes estruturais do direito219, bem assim, da natureza da

retórica utilizada. Assim, onde há prevalência da retórica dialógica, há o exercício do

direito emancipatório. As práticas que privilegiam a coerção e a burocracia serão

identificadas como manifestações do direito regulatório. Em um campo intermediário,

situa-se a retórica do tipo persuasivo, cujo enfoque se concentra na produção de

resultados satisfatórios para as partes.

A adoção dessas duas variáveis nos conduz a desenhar um quadro com quatro

campos para a classificação das diferentes ordens jurídicas: 1) o direito estatal

regulatório; 2) o direito estatal emancipatório; 3) o direito não-estatal regulatório e 4) o

direito não-estatal emancipatório.

O gráfico apresentado a seguir classifica os diversos modelos segundo os

critérios já expostos. Desse modo, temos os seguintes modos de resolução de litígios: 1)

a jurisdição; 2) a conciliação; 3) a arbitragem; 4) a violência; 5) a mediação – judicial e

comunitária.

217 Segundo SANTOS a ‘novíssima retórica’, ou retórica dialógica “deve privilegiar o convencimento em detrimento da persuasão, deve acentuar as boas razões em detrimento da produção de resultados.” SOUSA SANTOS, Boaventura de. A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência, p. 104-105 218 SOUSA SANTOS, Boaventura de. O Estado e o Pluralismo Jurídico em África, In: SOUSA SANTOS, Boaventura de e TRINDADE, João Carlos (Orgs.). Conflito e transformação social: uma paisagem das justiças em Moçambique, p. 20. 219 Retórica, burocracia e coerção são, na análise de Sousa Santos, os três componentes estruturais do direito que podem se articular sob diferentes combinações, a depender do campo jurídico ou dentro de um mesmo campo. SOUSA SANTOS, Boaventura de. O Estado e o Pluralismo Jurídico em África, In: SOUSA SANTOS, Boaventura de e TRINDADE, João Carlos (Orgs.). Conflito e transformação social: uma paisagem das justiças em Moçambique, p. 7.

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211

3.1. A jurisdição

Sob o modelo estatal do tipo regulatório, identificam-se os meios de resolução de

litígios realizados por intermédio da jurisdição formal. Nele estão incluídas as

experiências que, embora denominadas “informais”, reproduzem os mesmos

pressupostos da jurisdição formal.220

A jurisdição formal é, por excelência, palco da justiça da Modernidade, já que

inspirada em princípios universais baseados em imperativos de uma razão

profundamente intrínseca a todos os seres humanos. Essa é a justiça que, codificada,

aplica o mesmo procedimento a casos tão diferentes, com base em deduções racionais

advindas da autoridade da lei ou dos precedentes.

220 Tais como as iniciativas de democratização do acesso à jurisdição no Brasil – juizados especiais cíveis e criminais; juizados itinerantes; etc – os quais procuram despir a jurisdição do excessivo formalismo que reveste o rito comum.

Jurisdição

Mediação Judicial

Arbitragem

Mediação Comunitária

Conciliação

Meios de Resolução de Conflitos

REGULATÓRIO EMANCIPATÓRIO

Violência Retórica Persuasiva Retórica Dialógica Coerção Burocracia

Estatal

Não Estatal

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212

Nas democracias ocidentais, uma das fontes de legitimidade do parlamento está

no procedimento democrático por meio do qual seus membros são eleitos. O pressuposto

é que os indivíduos são livres e racionais, capazes de eleger seus representantes. Esta

lógica, quando transferida para a resolução de disputas, é a de que, quando em conflito,

os indivíduos – sujeitos de direitos – provocam o Estado para “dizer o direito” no caso

concreto. Nesta esfera, os representantes deste Estado legítimo são os juízes que, com

imparcialidade e saber jurídico, aplicarão a lei, que fora expedida pelo parlamento

democrático, ao caso concreto.

Todo o procedimento judicial é, pois, estruturado para dar cumprimento a esta

racionalidade: a) o sistema é adversarial e dialético – porque direcionado a oferecer uma

síntese resultante da contraposição de direitos que necessariamente se excluem. Ao final,

haverá um vencedor e um vencido; b) é autocrático – posto que pautado na autoridade da

lei ditada por um terceiro imparcial também revestido da autoridade estatal; c) tem

pretensão universal, porque, conforme adverte Shonholtz, “o tratamento da lei é igual,

não respeitando as diversidades cultural, lingüística, étnica, cultural e racial”;221 d) é

coercitivo, burocrático e não-participativo, na medida em que produz resultados

mandamentais, sem que tenha sido dada a oportunidade das partes interessadas se

manifestarem livres das amarras e estratégias da linguagem forense traduzida pelos

advogados.

Não raro, os “clientes da justiça” sentem-se excluídos do processo de decisão

conduzido pelos advogados e juízes, os quais fornecem uma interpretação baseada não

somente na autoridade da lei, mas das próprias necessidades das partes, de suas metas e

do comportamento para atingi-los. Muitos clientes ficam intimidados com a formalidade

do processo de adjudicação e sentem que não estão aptos a participar de forma ativa.

Trata-se da “advocacia ritualística”, conforme denomina W. Simon222, pela qual “os

litigantes não são os sujeitos da cerimônia, mas os pretextos para ela”.

O padrão adversarial nem sempre se mostra adequado, na medida em que o

sistema binário – considerado pela Modernidade o melhor meio de se atingir a verdade –

polariza o debate, distorce a realidade, omite informações importantes, simplifica

complexidades e obscurece, ao invés de clarificar. Carrie Menkel-Meadow223 argumenta

que a pós-modernidade é marcada por uma realidade multicultural que apresenta

221 SHONHOLTZ, Raymond. Justice from another perspective: the ideology and developmental history of the Community Boards Program, p. 203. 222 Apud MACFARLANE, Julie In: An alternative to what? p. 5. 223 MENKEL-MEADOW, Carrie. The Trouble with the Adversary System in a Postmodern, Multicultural World, 2001.

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213

problemas complexos, os quais requerem soluções multifacetadas nem sempre

fornecidas pelas cortes. Neste cenário múltiplo, verifica-se que as disputas envolvem

mais do que duas faces do problema ou, ainda, mais que duas partes. Toda esta

complexidade é distorcida quando o conflito é analisado sob uma estrutura binária.

Nesse sentido, é preciso explorar alternativas de modelos para que os processos legais

respeitem as características da pós-modernidade.

Apesar de sua longevidade, o padrão adversarial como um modo do discursar

humano e como uma ferramenta para se buscar a verdade parece ter entrado em crise. O

problema está em saber se a verdade existe fora daquilo que se conhece. No mundo

atual, marcado pela complexidade, fragmentação e multiplicidade, não há como

sustentar a imutabilidade ou universalidade dos fatos e valores. Seria possível fixar a

verdade? Sentidos são “descobertos” ou estabelecidos contextualmente? As pessoas cuja

tarefa é “encontrar” a verdade – juízes, jurados, a mídia – possuem interesses sociais,

econômicos, políticos, raciais, de gênero que afetam a forma como eles vêem o mundo.

Este novo olhar que questiona a objetividade e neutralidade traz sérias conseqüências

para o modelo adversarial baseado na imparcialidade, neutralidade e passividade dos

juízes. Para Menkel-Meadow, a realidade da vida não pode ser reconhecida pela

“verdade”, mas por meio de múltiplas histórias e deliberações. Há que se pensar em

caminhos que possibilitem mais vozes, mais histórias e mais complexas versões da

realidade.

É possível identificar uma alta intensidade regulatória na jurisdição formal, tendo

em vista a presença dos elementos da burocracia e da coerção, em detrimento da

retórica. Urge, assim, apontar outros meios capazes de realizar a justiça para a

emancipação, fora do âmbito jurisdicional.

O fato de a jurisdição pertencer ao campo do direito regulatório, contudo, não

significa que o seu exercício não possa contribuir para a emancipação. Em situações

extremas, nas quais os conflitos repousam na violência e na ausência de diálogo, a

jurisdição revela-se um instrumento hábil a conferir uma decência na regulação,

protegendo direitos e garantindo a realização da justiça.

3.2. A conciliação

Em uma zona intermediária, mais próxima do exercício da retórica persuasiva,

encontra-se a conciliação, como um meio de resolução de conflito também pertencente

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ao campo regulatório. Embora tecnicamente a conciliação seja uma modalidade de

autocomposição do conflito, uma vez que dispensa o pronunciamento unilateral do juiz

sobre o mérito da causa, a condução do procedimento é atribuída a um terceiro – juiz,

juiz leigo ou conciliador privado – com poderes para sugerir, ponderar, aconselhar as

partes quanto à melhor solução para o conflito.

Sem prejuízo de que a conciliação pode ocorrer em uma esfera privada, a

tentativa de conciliação judicial está prevista na legislação brasileira como uma etapa

obrigatória, tanto no procedimento ordinário – art. 331 do Código de Processo Civil –

quanto no rito previsto na Lei de Juizados Especiais – art. 21 da Lei 9099/95 – bem

assim, no art. 846 da CLT. Além disso, em geral, o que se verifica é que o objeto da

conciliação judicial encontra seus limites no próprio objeto da lide. De qualquer sorte,

sendo ou não judicial, a atuação do conciliador é interventiva, na medida em que seu

papel é o de estimular as partes para que cheguem a um acordo, sugerindo alternativas e

condições para a resolução do conflito, interferindo, assim, na composição amigável.

Conforme se verá adiante quando da análise da mediação, enquanto na

conciliação o objetivo é a celebração de um acordo para evitar um processo judicial, na

mediação, o acordo não é a meta, mas a – provável – resultante de um processo de

comunicação sobre os reais interesses que se escondem sob a rigidez das posturas

assumidas pelas partes em conflito.

Além disso, a conciliação limita-se a atuar na disputa das posições, não no

conflito e em suas circunstâncias. Segundo Warat, “... a conciliação e a transação não

trabalham o conflito, ignoram-no, e, portanto, não o transformam como faz a mediação.

O conciliador exerce a função de ‘negociador do litígio’, reduzindo a relação conflituosa

a uma mercadoria. O termo de conciliação é um termo de cedência de um litigante a

outro, encerrando-o. Mas, o conflito no relacionamento, na melhor das hipóteses

permanece inalterado, já que a tendência é a de agravar-se devido a uma conciliação que

não expressa o encontro das partes com elas mesmas”. 224

Embora opere com elementos da retórica, a conciliação é do tipo persuasivo o

que afasta a sua consideração nesta pesquisa como um meio de resolução de conflitos de

alta intensidade emancipatória.

224 WARAT, Luis Alberto. O ofício do mediador, p.79- 80.

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215

3.3. A arbitragem

Conforme afirma Moore, arbitragem é um termo genérico para um processo

voluntário em que as pessoas em conflito submetem a questão objeto de controvérsia a

uma terceira parte imparcial e neutra para que tome uma decisão por elas. O instituto,

segundo previsão na legislação brasileira225, é definido como um processo formal pelo

qual as partes, de comum acordo, aceitam submeter o litígio envolvendo direito

patrimonial disponível a um terceiro, cuja decisão terá observância obrigatória. A

sentença arbitral produzirá os mesmos efeitos que a sentença proferida pelos órgãos do

Poder Judiciário, constituindo, inclusive, título executivo, quando condenatória.

Tendo em vista que o papel do árbitro é o de adjudicação, este instrumento

tampouco será objeto de análise neste trabalho, posto que sua estrutura segue o padrão

do processo judicial, já desenvolvido no item 3.1. O paradigma que se revela na

arbitragem é o de uma estrutura piramidal-coercitiva, sendo que no vértice desta relação,

ao invés do estado-juiz, está o árbitro escolhido pelas partes nos contratos celebrados à

luz do direito privado.

3.4. A violência

Algumas formas de resolução de conflitos, estatais ou não, reproduzem um

modelo no qual imperam a violência e a coerção em detrimento da retórica. São

experiências que ora são efetivadas em uma esfera não-estatal, muito embora com a

anuência passiva do Estado, ora sob a sua cumplicidade ativa. Tais práticas têm assento

em um pilar regulatório, na medida em que funcionam por meio de mecanismos de

controle, tutela e coerção.

A violência, como meio de resolução de conflitos, pode assumir diversas

colorações. No seu extremo, temos aquela realizada por um fascismo social226 local, que

opera segundo as regras da denominada sociedade civil não civil.227 Não há qualquer

exercício da retórica e o poder de decisão acerca dos conflitos é monopólio dos membros

da comunidade que a controlam pela imposição do silêncio, do medo e das armas. Como

exemplo, os chefes do tráfico de drogas nas favelas brasileiras, que destroem o sentido

da comunidade a partir da negação do outro.

225 Conforme previsão na Lei n. 9.307, de 23/09/96. 226SOUSA SANTOS, Boaventura de. Reinventar a democracia.

227 Segundo Santos, “A sociedade incivil é o círculo exterior habitado por aqueles que estão completamente excluídos. Eles são socialmente invisíveis. Este é o círculo do social fascismo e, a rigor, aqueles que o habitam não pertencem à sociedade civil, na medida em que foram jogados no novo Estado de natureza. Eles não têm expectativas estáveis porque, na prática, não possuem direitos”. In: SOUSA SANTOS, Boaventura de. Toward a New Legal Common Sense, p. 457.

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A justiça desenvolvida segundo os ditames do fascismo social opera por meio da

violência, e sua retórica é a arma. O julgador, terceiro a substituir a vontade das partes,

não se pretende imparcial. Ao contrário, trata-se de uma justiça politizada e parcial, na

medida em que o julgador não atua segundo orientação da justiça, mas do controle da

política. A justiça do fascismo societal não oferece um segundo grau de jurisdição;

qualquer questionamento da decisão pode implicar eliminação física do queixoso,

mesmo porque este modelo comunitário adota, em alguns casos, a pena de morte como

uma das formas de punição. A violência – estatal ou não – é, pois, a manifestação mais

extremada da justiça, praticada sob um viés regulatório.

3.5. A mediação

Com precisão e simplicidade, Littlejohn afirma que “mediação é um método no

qual uma terceira parte imparcial facilita um processo pelo qual os disputantes podem

gerar suas próprias soluções para o conflito”.228

Segundo a sistematização de Garrett229, mediação é um processo voluntário de

resolução de conflitos, no qual um terceiro coordena as negociações entre as partes.

Diferentemente do juiz, o mediador não tem autoridade para impor a decisão sobre os

disputantes. Ao contrário, o mediador conduz o processo, por meio da discussão do

problema, dos temas que precisam ser resolvidos e das soluções alternativas para a

solução do conflito. As partes, entretanto, é que decidem como construirão o consenso.

Vê-se, pois, que o núcleo do conceito de mediação, não obstante as diferentes

abordagens acerca de sua metodologia, contém, basicamente, os seguintes elementos: a)

processo voluntário; b) mediador como terceira parte desinteressada; c) mediador sem

poder de decisão; d) solução talhada pelas partes em conflito.

Mais completa, contudo, é a análise de Schwerin230 que reúne os elementos da

mediação a partir das suas finalidades. Para o autor, trata-se de um processo:

i. Apto a lidar com as raízes dos problemas;

ii. Não-coercitivo;

iii. Voluntário e permite aos disputantes resolverem seus problemas por eles próprios;

228 LITTLEJOHN, Stephen W. Book reviews: The Promise of Mediation: Responding to Conflict Through Empowerment and Recognition by Roberto A. B. Bush and Josepf. P. Folger, p. 103. 229 GARRETT, Robert. Mediation in Native America, p. 40. 230 SCHWERIN, Edward. Mediation, Citizen Empowerment and Transformational Politics, p. 21.

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iv. Mais rápido, barato e igualitário;

v. Desenvolve a capacidade de comunicação entre os membros da comunidade;

vi. Reduz o congestionamento das cortes;

vii. Reduz as tensões na comunidade;

viii. Não-burocrático e flexível;

ix. Os mediadores não são profissionalizados, eles representam a comunidade e

compartilham os valores, não sendo estranhos aos disputantes;

x. Um veículo de empoderamento da comunidade e um estímulo às mudanças sociais.

Porque voltada para a construção do consenso, a mediação sugere que onde há

conflito, disputas e dificuldades humanas, há a oportunidade para a reconciliação, a

comunicação, o entendimento, o aprendizado. O paradigma visivelmente presente na

proposta da mediação desafia o sistema oficial de resolução de disputas baseado na

lógica adversarial, o qual pressupõe um sistema binário, dialético, pelo qual as partes

confrontam-se entre si perante uma autoridade cuja decisão será coercitiva e amparada

no ordenamento legal.

A lógica da mediação, ao contrário, obedece a um padrão dialógico, horizontal e

participativo, o qual inaugura um novo enfoque para o tema da realização da justiça.

As soluções construídas pelas partes envolvidas no conflito podem ser talhadas

além da lei. Quando os protagonistas do conflito inventam seus próprios remédios, em

geral, não se apóiam na letra da lei porque seu pronunciamento é por demais genérico

para observar a particularidade dos casos concretos. Há, pois, a liberdade de criar

soluções sem as amarras dos resultados impostos pelo ordenamento jurídico. Nesse

sentido, as partes, antes alheias ao processo de elaboração das leis, “legislam” ao

constituir suas próprias soluções não somente para enfrentar os conflitos já instaurados,

mas para evitar adversidades futuras.231

Por tais razões, poder-se-ia afirmar que, mesmo nos modelos atrelados ao

sistema judicial, a estrutura da mediação pode veicular, em sua gênese, um

potencial emancipatório, na medida em que sua lógica subverte o padrão

adversarial do sistema oficial. Contudo, além da mediação processual ser um 231 Isto não quer dizer, por óbvio, que a mediação seja um instrumento voltado para o “fazer justiça com as próprias mãos”, o que poderia, em alguns casos, configurar o crime de “exercício arbitrário das próprias razões”, conforme art. 345 do Código Penal Brasileiro. Na verdade, trata-se de um “fazer justiça com múltiplas vozes”. Conforme FOLEY, Gláucia Falsarella. Dissertação de Mestrado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, sob a orientação do Prof. José Geraldo de Sousa Junior e co-orientação do Prof. Cristiano Paixão Araújo Pinto, Brasília. 2003.

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instrumento voltado tão somente àquela camada social que tem acesso ao Sistema

de Justiça, a intensidade da energia emancipatória que pode ser produzida nas

experiências concretas estará intimamente ligada à adoção do espaço comunitário

como lócus preferencial, conforme se verifica a seguir.

4. Mediação comunitária: uma proposta emancipatória.

Quando realizada sob um modelo comunitário – ou seja, na comunidade, para a

comunidade e, preferencialmente pela comunidade – a mediação para a emancipação

está inserida na teoria política, na medida em que trata de autodeterminação, de

participação nas decisões políticas e, ainda, porque reelabora o papel do conflito na

sociedade, desenhando um futuro sob novos paradigmas232.

Dentre os inúmeros critérios utilizados para distinguir os modelos de

mediação – que veiculam vertentes ideológicas diferenciadas – adotar-se-á neste

trabalho o dual, que divide os modelos de mediação em: modelo de agência cujo

enfoque é voltado para a satisfação das partes, geralmente operado em práticas de

mediação vinculadas ao sistema judicial oficial, e modelo comunitário que oferece uma

perspectiva transformadora, porque direcionado à organização comunitária.

Adler, Lovaas e Milner233 ilustram esta distinção, a partir da análise de

duas experiências americanas concretas: o Conselho Comunitário de São Francisco

(SFCB) e o Centro de Justiça de Vizinhança de Atlanta (NJCA).

O modelo comunitário com o qual trabalha Shonholtz no Conselho de São

Francisco possui algumas premissas, baseadas em quatro idéias: 1) a diversidade e a

complexidade da vida social promovem o fortalecimento das entidades não-

governamentais, na medida em que há um compromisso de partilhar os recursos sociais

e articular projetos em comum; 2) a supressão do conflito, individual ou coletivo, é

prejudicial; 3) os fóruns de justiça comunitária são meios para organizar mecanismos de

resolução de conflitos locais; 4) o desenvolvimento e a manutenção destes centros são

um direito democrático e uma responsabilidade dos cidadãos.234

232 FOLEY, Gláucia Falsarella. Idem. 233 ADLER, Peter; LOVAAS, Karen; MILNER, Neal. The Ideologies of Mediation: The Movement’s Own Story. p. 320. 234 SHONHOLTZ, Raymond. Neighborhood Justice Systems: Work, Structure, and Guiding Principles, p. 13.

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219

Há um componente preventivo neste enfoque, na medida em que o modelo de

justiça comunitária é voltado para o fortalecimento dos recursos da comunidade, das

responsabilidades e habilidades. Não se trata, pois, de uma mera extensão do aparato

estatal, eis que as atividades comunitárias operam dentro de uma arena de prevenção que

busca resolver os conflitos antes que eles cheguem às cortes.

Os resultados da mediação comunitária voltada ao empoderamento e à

transformação social, conduzida pelo Programa de São Francisco, são inúmeros e

Shonholtz os elenca:

1. Fornece um espaço de transparência de normas e valores e de construção de

entendimentos compartilhados sobre comportamentos socialmente apropriados, o

que possibilita a redução das tensões sociais;

2. Permite o aprendizado individual e coletivo acerca das responsabilidades em

quaisquer situações, inclusive futuras. Este fator desenvolve a autonomia local,

no sentido de auto-gestão;

3. Desenvolve habilidades individuais em problemas concretos que, uma vez

enfrentados coletivamente, fornecem um sentimento de auto-realização

individual e crescimento de um senso coletivo;

4. Estimula a comunicação, sobretudo em ambientes hostis em razão da

diversidade, constrói respeito às diferenças e neutraliza a alienação e o

isolamento;

5. Fornece um espaço nos quais problemas locais possam ser resolvidos por meio

da identificação e utilização dos recursos comunitários;

6. Proporciona um veículo de resolução de disputas justo aos olhos dos

participantes, respeitando o potencial benéfico do conflito.235

Bush e Folger236 também dividem o vasto campo da mediação em duas vertentes.

A primeira, a abordagem resolução de problemas, a qual enfatiza a capacidade da

mediação para encontrar soluções e gerar acordos. O foco da segunda abordagem,

transformadora, é a capacidade de promover empoderamento e reconhecimento.

Os autores, contudo, identificam, sob estas duas vertentes, quatro abordagens, a

depender dos objetivos a serem alcançados no processo de mediação: a) da satisfação,

235 Idem, p. 28. 236 BUSH, Robert A. Baruch; FOLGER, Joseph P. The Promise of Mediation. Responding to Conflict Through Empowerment and Recognition, p. 12.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

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cuja meta é reduzir o congestionamento das cortes e fornecer justiça com qualidade nos

casos individuais (Fisher e Ury, 1981; Fisher e Brown, 1989; Susskind e Cruikshank,

1987)237; b) da justiça social, que busca, no processo, um veículo de organização

popular e comunitária; c) da opressão representada pela visão crítica da mediação que

denuncia seu caráter opressivo; d) da transformação, que tem por enfoque a

transformação e integração das relações humanas.238

Sob o foco da justiça social, cujo representante é Shonholtz (1987), entre outros

(Carl Moore, 1994 e Margaret Herrman, 1993)239, a mediação oferece um efetivo sentido

de organizar indivíduos em torno de objetivos comuns e de construir fortes laços nas

estruturas comunitárias. Por sua capacidade de ajudar as partes a resolver seus

problemas por eles próprios, a mediação reduz a dependência das instituições oficiais e

estimula a emancipação individual incluindo a formação de bases comunitárias. Sob esta

vertente, a adjudicação e o arbítrio retiram as possibilidades de empoderamento dos

participantes, por meio da perda do controle dos resultados, outorgando o destino da

resolução dos conflitos aos representantes técnicos.

Sob a visão transformadora, a mediação pode conduzir as partes ao exercício da

autodeterminação, ajudando-as a mobilizar seus próprios recursos para resolver

problemas e atingir metas. Os participantes de um processo de mediação ganham um

senso de auto-respeito e autoconfiança. Sob essa perspectiva, esse é o resultado do

empoderamento. (Albie Davis, 1989; Leonard Riskin, 1984; Carrie Menkel-Meadow,

1991; Dukes, 1993 e Bush e Folger, 1994).240

Warat estabelece o mesmo critério sob a classificação acordista e

transformadora, sendo esta uma concepção que “vê o conflito como uma das principais

forças positivas na construção das relações sociais e na realização da autonomia

individual. A diferença de força puramente negativa, autodestrutiva da indiferença, o

conflito brinda com um incentivo para a interação, termina erigindo-se numa

possibilidade para criar, com o outro, a diferença.”241

As abordagens da justiça social representada por Shonholtz, fundador dos

Conselhos de São Francisco, e a transformadora desenvolvida por Bush e Folger242

ganham especial relevo neste trabalho. O propósito é investigar em que medida estes

237 Idem, p. 17. 238 Ibidem, p. 15-24. 239 Ibidem, p. 19. 240 Ibidem, p. 21. 241 WARAT, Luis Alberto. Ecologia, Psicanálise e Mediação, p. 16. 242 Trata-se da obra The Promise of Mediation.

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221

enfoques podem ser úteis para a nossa tarefa de refletir sobre os traços de uma mediação

comunitária para a emancipação.

Embora veicule elementos emancipatórios, a mediação processual opera com

uma retórica que é em parte persuasiva, em parte dialógica. Isso porque, todo o

procedimento da mediação processual é tutelado pelo juiz. A qualquer momento em que

as partes não estiverem mais dispostas ao diálogo, o curso do processo – e seu intrínseco

risco de sucumbência – é retomado. Além disso, não há, nessa modalidade de mediação,

uma relação direta com a comunidade, no sentido de permitir que o conflito social possa

servir de matéria prima para a promoção de coesão social, pacificação e solidariedade.

Quando a prática da mediação ocorre na esfera comunitária, pode haver uma integração

das estratégias de fortalecimento comunitário pelo acesso à informação, a inclusão e a

participação, a co-responsabilidade e o compromisso e a capacidade de organização

local.

E é aqui que a escolha pela metodologia comunitária da mediação se justifica

pela potencialidade emancipatória que a vida em comunidade proporciona. “O âmbito

comunitário é, em si, um espaço de grande riqueza por sua aptidão em difundir e aplicar

os métodos pacíficos de gestão de conflitos ou tramitação das diferenças. A mediação,

como instrumento apto a este propósito, brinda os protagonistas – aqueles que

compartilham o espaço comunitário – a oportunidade de exercer uma ação coletiva na

qual eles mesmos são os que facilitam a solução dos problemas que se apresentam em

suas pequenas comunidades. Neste sentido, o desenvolvimento destes processos, assim

como a transferência de ferramentas e técnicas específicas de mediação aos integrantes

das comunidades constituem um valioso aporte e um avanço concreto relativo à nossa

maturidade como sociedade e colabora efetivamente em pró de um ideal de uma vida

comunitária mais satisfatória”.243 E complementa: “A mediação é valorada como um

terreno privilegiado para o exercício da liberdade, um lugar de crescimento e

desenvolvimento, a partir de – na expressão de Habermas – uma atuação

comunicativa”.244

5. Três experiências concretas de Mediação Comunitária

243 NATÓ, Alejandro Marcelo, QUEREJAZU, Maria Gabriela Rodríguez, CARBAJAL, Liliana Maria. Mediación Comunitária. Conflictos en el escenario social urbano, p. 109. 244 Idem, p. 161.

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222

Uma vez justificada a seleção da mediação comunitária como um método

autocompositivo de conflitos de alta intensidade emancipatória, este estudo ilustra, a

seguir, três experiências de mediação comunitária que revelam ter em comum a

construção permanente da cidadania, por meio da democratização do acesso à

informação; da mediação comunitária e do fortalecimento das redes sociais.

5.1. A experiência do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos

Com a missão de democratizar o conhecimento sobre o Direito e promover a

cidadania através da oferta de serviços de orientação sobre os direitos, mediação popular

e assessoria a organizações públicas e não-governamentais, foi fundada, em junho de

2001, em Salvador-Ba, a organização não-governamental Juspopuli Escritório de

Direitos Humanos.

A educação para os direitos humanos e cidadania é a principal estratégia de

atuação do Juspopuli, por meio da realização de programas de formação voltados para

diferentes atores sociais e da manutenção de uma rede de serviços de orientação sobre

direitos e mediação: Os Escritórios Populares de Mediação e Orientação sobre Direitos.

Desde sua criação, a instituição tem investido na mediação popular como forma

alternativa de acesso à Justiça e de resolução de conflitos. Como principal estratégia,

implantou e mantém Escritórios Populares de Orientação sobre Direitos e Mediação de

Conflitos em bairros populares de Salvador.

No campo da assistência técnica, o Juspopuli realiza projetos de prestação de

serviços de interesse social; concebe, planeja e executa projetos voltados,

prioritariamente, para comunidades pobres, oferecendo orientações sobre direitos,

modos alternativos de solução de conflitos e encaminhamentos adequados para

atendimentos por outras organizações, do Poder Público ou ONG’s.

Os Escritórios Populares de Mediação e Orientação sobre Direitos são espaços

organizados em parceria com associações de moradores e outras entidades de atuação

local, e oferecem às comunidades orientação sobre direitos básicos da cidadania,

mediação de conflitos relacionados com direitos disponíveis e encaminhamentos para

outros serviços prestados por instituições públicas ou entidades civis.

Os Escritórios inserem-se no âmbito do Programa de Balcões de Direito,

desenvolvido pela Secretaria de Estado dos Direitos Humanos - que congrega iniciativas

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

223

de diferentes organizações voltadas para difusão dos conhecimentos sobre direitos,

mediação de conflitos e facilitação do acesso à justiça.

Como executora direta, o Juspopuli implantou e mantém quatro Escritórios de

Mediação Popular, sendo três fixos e um móvel, que atendem às comunidades de bairros

populares de Salvador. Desde a implantação do primeiro escritório, em 2001, já foram

diretamente atendidas cerca de 14 mil pessoas, beneficiando grande número de crianças

adolescentes por meio da resolução problemas na área de família e encaminhamentos a

serviços públicos.

Para realizar o atendimento à população, o Juspopuli capacita lideranças

comunitárias para desenvolverem o trabalho de mediação, que consiste em ouvir e

orientar as partes envolvidas em questões de família, relações trabalhistas, de

consumidor, entre outras, e ajudá-las a encontrar uma solução amigável através do

diálogo. Os mediadores contam com a retaguarda técnica de advogados e estudantes de

Direito.

A legitimidade dessa experiência vem se firmando pelas parcerias institucionais

com o Brazil Foundation, Petrobrás, UNICEF, Secretaria Especial de Direitos Humanos/

Presidência da República, Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, Faculdades de Direito

e da UFBA, Faculdades Jorge Amado, Núcleo de Práticas Jurídicas da Universidade

Católica do Salvador e, mais recentemente, Defensoria Pública do Estado da Bahia e

pelas relações com as organizações nos bairros/comunidades, onde se implantam os

escritórios.

5.2. A experiência do Programa Pólos de Cidadania - MG 245

Criado em 1995 como projeto institucional da Faculdade de Direito da

Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, o Programa Pólos de Cidadania

desenvolve atividades de ensino, pesquisa e extensão de forma integrada, com o objetivo

de promover a inclusão e a emancipação de grupos sociais com histórico de exclusão e

trajetória de risco.

Interinstitucional e interdisciplinar, o PÓLOS atua em parceria com outras

unidades da UFMG, com instituições públicas e privadas de ensino superior e com

instituições da administração pública, envolvendo graduandos, pós-graduandos e

245 Mais informações sobre o Programa, consulte o sítio: http://www.ufmg.br/proex/publish/site/listarprojetos.php?cat=Direitos+Humanos

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224

profissionais de Direito, Sociologia, Comunicação, Economia, Psicologia, Arquitetura,

Administração, Serviço Social, Urbanismo e Artes Cênicas, num conhecimento

integrado na defesa, promoção e efetividade dos direitos fundamentais e de cidadania.

A metodologia do PÓLOS é qualitativamente diferenciada e fundamenta-se no

relacionamento permanente entre investigações e atuação social, com entrecruzamento e

retro-alimentação de seus resultados. A característica marcante dessa metodologia é o

envolvimento ativo da própria comunidade em uma atuação interativa e emancipadora,

com o objetivo de redução dos índices de pobreza urbana e de riscos sociais. Dessa

forma, a pesquisa passa a ser um elemento de transformação e os integrantes das

comunidades sujeitos ativos e não meros destinatários de ações externas.

O Pólos conta com apoio institucional do Conselho Nacional de

Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e da Pró-Reitoria de Extensão da

UFMG. São parceiros de seus projetos: o Ministério de Desenvolvimento Social e

Combate à Fome, o Ministério da Educação, a Secretaria Especial de Direitos Humanos

da Presidência da República, o Governo do Estado de Minas Gerais, o Tribunal de

Justiça de Minas Gerais, a Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa – FUNDEP, a

Fundação Professor Vale Ferreira, a Fundação Guimarães Rosa, a Elo - Inclusão e

Cidadania, a Associação dos Magistrados do Trabalho de Minas Gerais (AMATRA), a

CEMIG, a COPASA e a OSCIP Sociedade, Ciência e Democracia (SCD).

Devido a sua complexidade, o Programa Pólos constitui-se por eixos temáticos

que podem ser renovados ou recriados por meio de diferentes projetos, de acordo com

algumas demandas de interesse público, formuladas diretamente pelas comunidades ou

por outras organizações parceiras. Os Eixos temáticos são: Minimização de Violências,

Defesa e Promoção dos Direitos das Minorias, Regularização Fundiária Sustentável,

Trabalho e Geração de Renda e o Eixo Comunicação, Arte e Cidadania.

Entre as inúmeras ações realizadas no âmbito dos projetos mencionados, destaca-

se a instalação de Núcleos de Mediação e Cidadania – NMC em áreas de favelamento na

cidade de Belo Horizonte – MG, com o objetivo de intermediar a resolução de conflitos

atribuindo à própria população e suas lideranças a responsabilidade da gerência de sua

vivência comunitária e autonomia no encaminhamento das demandas particulares e

coletivas. Os Núcleos de Mediação e Cidadania realizam um diagnóstico das

características da comunidade: suas lideranças, suas demandas e suas expectativas. Do

ponto de vista operacional, o serviço jurídico-social em questão pretende identificar

situações de violações de direitos fundamentais, compreender tais situações como

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problemáticas jurídicas e promover a prevenção de lesões a direitos, buscando restaurá-

los. Os procedimentos metodológicos previstos são: atendimento, por meio de mediação,

constituição colegiada de “casos”, discussão e encaminhamentos e promoção

participativa de direitos.

5.3. A experiência do Programa Justiça Comunitária – DF246

O Projeto Justiça Comunitária foi criado em outubro de 2000, com o objetivo de

democratizar a realização da justiça, restituindo ao cidadão e à comunidade a capacidade

de gerir seus próprios conflitos com autonomia. A iniciativa foi levada a efeito pelo

Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, em parceria com o Ministério

Público do Distrito Federal, a Defensoria Pública do Distrito Federal e a Faculdade de

Direito da Universidade de Brasília (UnB), sob o convênio firmado com a Secretaria de

Estado de Direitos Humanos da Presidência da República.

Atualmente, o Programa conta com parcerias celebradas com a Secretaria

Nacional de Segurança Pública – Senasp e a Secretaria de Reforma do Judiciário, ambas

do Ministério da Justiça, além do Programa Nacional das Nações Unidas para o

Desenvolvimento - PNUD. O Programa está instalado nas cidades-satélites de Ceilândia

e Taguatinga, com 332.455 e 223.452 habitantes, respectivamente247 e conta com 100

Agentes Comunitários que, na qualidade de membros das comunidades nas quais atuam,

compartilham a linguagem e o código de valores comunitários.

Os Agentes Comunitários são credenciados no Programa, por meio de um

processo de seleção levado a efeito por uma equipe interdisciplinar. Encerrada essa

etapa, os selecionados iniciam um treinamento junto à Escola de Justiça e Cidadania.

Esse processo de permanente capacitação inclui: a) noções básicas de Direito; b)

mediação comunitária; c) animação de redes sociais; d) direitos humanos; e) confecção

permanente do mapeamento social de sua região – diagnóstico local que contém não

somente as demandas e necessidades como as habilidades e talentos daquela

comunidade.

A atuação dos Agentes Comunitários é acompanhada por uma equipe

interdisciplinar, composta de advogados, psicólogos, assistentes sociais, servidores de

apoio administrativo, um artista e uma juíza que coordena o Programa. As atividades

246 Consulte o site http://www.tjdft.gov.br/tribunal/institucional/proj_justica_comunitaria/comunitaria.htm para obter mais informações sobre o Programa Justiça Comunitária. 247 Fonte: Seplan/Codeplan. Pesquisa distrital por amostra de domicílios, 2004.

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226

desenvolvidas pelos Agentes Comunitários são as seguintes: 1) informação e

encaminhamento sócio-jurídico; 2) mediação comunitária; e 3) animação de redes

sociais.

A primeira atividade tem por objetivo democratizar o acesso às informações dos

direitos dos cidadãos, decodificando a complexa linguagem legal. Para tanto, os Agentes

Comunitários produzem, em comunhão com os membros da equipe interdisciplinar,

materiais didáticos e artísticos voltados para a comunidade, tais como cartilhas, filmes,

peças teatrais, musicais, cordéis, dentre outros.

A mediação comunitária, por sua vez, é uma importante ferramenta para a

promoção do empoderamento e da emancipação social. Por meio dessa técnica, as partes

direta e indiretamente envolvidas no conflito têm a oportunidade de refletir sobre o

contexto de seus problemas, de compreender as diferentes perspectivas e, ainda, de

construir em comunhão uma solução que possa garantir, para o futuro, a pacificação

social.

A terceira atividade refere-se à transformação do conflito – por vezes,

aparentemente individual – em oportunidade de mobilização popular e criação de redes

solidárias entre pessoas que, apesar de partilharem problemas comuns, não se

organizam, até porque não se comunicam. Ao desenvolver essas atividades, o Programa

Justiça Comunitária tem por pretensão a transformação de comunidades fragmentadas

em espaços abertos para o desenvolvimento do diálogo, da autodeterminação, da

solidariedade e da paz.

Pela leitura dos textos acima, é possível constatar características que unificam

essas três experiências, a despeito da particularidade de cada Programa em termos de

arranjo institucional e de adoção de procedimentos no dia-a-dia.

Todos os Programas em tela desenvolvem, a partir de um diagnóstico das

características da comunidade, as atividades de mediação comunitária; de educação para

os direitos e de encaminhamento para a rede sócio-jurídica. Em todos esses modelos, há

um envolvimento interativo dos membros da própria comunidade nas atividades

desenvolvidas pelos Programas, sob a supervisão de uma equipe técnica. Um fator

comum que permeia as três experiências é o protagonismo conferido ao membro da

comunidade, neles considerado sujeito ativo e não mero destinatário das ações

desenvolvidas pelos Programas. Por fim, verifica-se que todos os Programas contam

com núcleos, centros ou escritórios instalados em bairros populares nos quais são

desenvolvidas as atividades de atendimento e de capacitação.

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227

O que parece visível é que todos esses Programas, ainda que conduzidos por

entes de naturezas tão diversas, buscam o mesmo objetivo de promover a inclusão e a

emancipação de indivíduos e grupos sociais, por meio da mediação comunitária, da

formação de redes solidárias, e do acesso à informação sobre os direitos. Esta busca que

permeia as experiências ilustradas confere especial significado ao conceito de cidadania

como algo a ser construído na realidade social. A propósito, segundo Nato, “a cidadania

não é algo simplesmente dado, mas o resultado de processos de construção nos quais o

diálogo social seria um veículo disponível para este fim. Este diálogo pode ter momentos

de consenso e de conflito, mas devemos entender o consenso, não como uma

unanimidade, senão como um processo de compromissos e convergências em contínua

troca entre convicções divergentes”.248

Dado o pioneirismo que envolve estas e outras experiências de mediação

comunitária, é natural que os Programas se encontrem em processo de construção. Neste

contexto de permanente elaboração, descobertas, tentativas e erros, seria prematuro

traçar qualquer desenho institucional para conferir unidade procedimental a estes

Programas. Aliás, conforme alerta Santos249, é valioso que essas iniciativas tenham

caráter experimental, tenham forma própria e que sejam autônomas. Qualquer tentativa

de submetê-las à lógica estatal implicará o engessamento de suas energias

emancipatórias. Isto não significa afirmar que o Sistema de Justiça não deva adotar o

impulsionamento e o apoio aos programas de mediação comunitária como uma política

pública, conforme se verá a seguir.

6. Desafios do Sistema de Justiça para a democratização do acesso à justiça

Um dos desafios impostos ao Sistema Judiciário na busca pela universalização

do acesso à justiça é o incremento dos meios autocompositivos de resolução de conflitos.

De acordo com a análise deste trabalho, além de contribuir para a pacificação,

mobilização e coesão sociais – traços essenciais de uma sociedade justa e democrática –

a mediação comunitária institui uma prática comunicativa capaz de desenvolver

autonomia individual e coletiva, sob a ética da alteridade. Para tanto, o Sistema

Judiciário comprometido com o pluralismo jurídico deve impulsionar transformações de

natureza normativa, cultural e institucional, voltadas para a valorização e o incentivo de

programas de mediação inseridos na realidade comunitária.

248 NATÓ, Alejandro Marcelo, QUEREJAZU, Maria Gabriela Rodríguez, CARBAJAL, Liliana Maria. Idem, p. 26. 249 Conforme palestra proferida pelo Prof. Boaventura de Sousa Santos, no Seminário “Democratização do acesso à justiça”, em 06/06/07, no Ministério da Justiça.

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228

Investigar a realização da justiça fora do âmbito estatal não implica a

desconstrução do modelo adjudicatório de prestação jurisdicional predominante nos

tribunais brasileiros. Todavia, requer uma avaliação constante sobre a efetividade dos

procedimentos adjudicatórios e autocompositivos, bem como sobre os resultados de sua

articulação.

Além do papel avaliativo, o Sistema de Justiça pode, ainda, servir de

impulsionador de uma política pública que deve ser resultar do debate entre todos os

entes envolvidos na realização da justiça, inclusive as comunidades contempladas com

programas de mediação comunitária. Conforme já alertado, não se trata de engessar as

diferentes experiências – as que estão em construção e as que podem vir a ser – em um

modelo institucional único. A finalidade da elaboração de uma política pública está em

potencializar a capacidade estatal de apoiar estas experiências sem colonizá-las.

Os desafios colocados ao Sistema de Justiça para a democratização do acesso à

justiça no que dizem respeito aos métodos autocompositivos de solução de conflitos

envolvem: a) a sensibilização dos membros do Sistema de Justiça para o reconhecimento

da pluralidade jurídica e da emergência de novos direitos e novos atores, a fim de

ampliar a concepção de realização do Direito, desassociando-a aos limites da atividade

jurisdicional; b) o desenvolvimento de mecanismos institucionais que estreitem o elo

entre as práticas auto-compositivas e o Sistema de Justiça, para que este possa expressar

o seu reconhecimento da mediação e de outros recursos como métodos legítimos de

resolução pacífica de conflitos; c) a capacitação de integrantes do Sistema de Justiça –

juízes, promotores, defensores, advogados, estudantes – e de cidadãos interessados nas

técnicas auto-compositivas de resolução de conflitos, sob enfoque multidisciplinar, de

maneira a transformar a cultura adversarial; d) a promoção de avaliações permanentes –

pautadas por indicadores previamente definidos – do impacto social gerado pelas

práticas da mediação – processual e comunitária; e) a formação de uma rede virtual de

debates e de seminários periódicos para a interlocução entre sobre as diversas

experiências, visando a colaboração recíproca; f) a articulação de um debate público

sobre a necessidade ou não de elaboração de proposta legislativa que confira unicidade

aos métodos autocompositivos de solução de conflitos250.

250 O Projeto de Lei 94/2002 se encontra, atualmente, na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados, após ter recebido, no Senado, substitutivo de autoria do Senador Pedro Simon. A proposta institucionaliza e disciplina a mediação, como método de prevenção e solução consensual de conflitos. A proposta prevê, dentre outras, a obrigatoriedade da mediação no processo de conhecimento, quando o elemento volitivo dos participantes é essencial para o êxito do processo de mediação. Além

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disso, o PL prevê a remuneração obrigatória para os mediadores, o que implica impedir que alguns programas desenvolvam estas atividades com base na Lei de Voluntariado. Há, também, outras exigências no sentido de que os mediadores, nas mediações judiciais, sejam advogados e de que, quando o tema envolver Direito de Família, haja co-mediação conduzida por psicólogo ou assistente social ou psiquiatra. Ora, se já há previsão de que a mediação judicial seja conduzida, obrigatoriamente na presença dos advogados das partes, não é necessário que o mediador seja bacharel em Direito, até porque um bom mediador é aquele que domina as técnicas da mediação de conflito, independentemente de sua formação profissional. E, ainda, se a mediação é uma técnica para resgatar a comunicação entre as pessoas em conflito e não um processo terapêutico que demande profissionais da área de saúde, esta exigência também se mostra descabida. A excessiva proteção de mercado para algumas profissões que a proposta parece veicular retira da mediação comunitária todo o seu potencial emancipatório, no sentido de que membros da comunidade, independentemente do grau de escolaridade, possam atuar como mediadores de conflitos. Ao que parece, o tema da mediação ainda não foi suficientemente pensado, nem experimentado, a justificar a promulgação de uma norma que venha a engessar um instituto que, segundo tudo o que já foi exposto, tem potencial emancipatório.

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AFINAL, A MÍDIA TEM O PODER DE AMPLIAR

OU RESTRINGIR O ACESSO À JUSTIÇA?

José Eduardo Elias Romão

“No espaço de poucas semanas, o Supremo Tribunal Federal (STF) ganhou

manchetes ao tomar decisões polêmicas [...] Esse novo ativismo judiciário contrasta com

a história da corte”. Essa foi a opinião que os donos do jornal Folha de S. Paulo

veicularam no Editorial do dia 5 de novembro de 2007 intitulado “Ativismo judiciário”.

Além de revelar o entusiasmo do jornal com a decisão do STF que impunha limites às

greves de servidores públicos e ao troca-troca de partido político pelos parlamentares

eleitos (como é tratada a questão da “fidelidade partidária”), a opinião publicada

descortina algo mais, algo que não está escrito, algo que não salta aos olhos à leitura

ordinária e apressada que fazemos dos periódicos.

Quem se dispor a reler o dito Editorial depois dessa breve introdução não como

quem procura agulha em palheiro ou uma empresa sórdida dirigida à ocultação e à

manipulação, mas como quem compreende que não pode haver informação neutra

simplesmente porque não há neutralidade (ausência de interesse) na produção da

informação, provavelmente perceberá que a Folha “fala” dando voz a uma certa

compreensão da justiça e do papel do judiciário. E ao exprimir de forma velada e sem

maiores explicações uma idéia de justiça como se fosse naturalmente a única, acaba

certamente “fechando” ou no mínimo indispondo seus leitores para outros tantos

modos de se conceber e de se realizar justiça.

Antes, contudo, de continuar discutindo qual concepção de justiça é essa que um

dos maiores grupos de mídia do Brasil preconiza (aliás, em coro com os outros três

jornais de temática nacional, como veremos logo mais analisando a cobertura do

“julgamento do mensalão”), vale esclarecer que o problema da (falta de) explicitação

dos pressupostos necessariamente presentes em qualquer discurso não está circunscrito

ao jornalismo, não é monopólio da mídia, muito menos da denominada mídia impressa.

Porém, apenas o discurso científico considera a explicitação dos conceitos e das

visões de mundo, que estão por trás dos argumentos e das opiniões, um problema a ser

tratado e resolvido. Por isso é que sobre todo processo de investigação que se pretende

científico pesa a exigência da problematização dos pressupostos pela qual se desvelam

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as referências teórico-metodológicas, os limites conceituais e principalmente a

parcialidade na escolha de um “fundamento” em detrimento de outros.

Assim, o primeiro objetivo deste texto é mostrar que também ao jornalismo, e

em particular à imprensa, se aplica a exigência de explicitar e promover a crítica de

seus pressupostos, ou seja, deve-se considerar a necessidade de sistematicamente

problematizar suas próprias escolhas. Pois se, de acordo com Pierre Bourdieu (1997, p.

67) “não há discurso nem ação que, para ter acesso ao debate público, não deva

submeter-se a essa prova de seleção jornalística, isto é, a essa formidável censura que os

jornalistas exercem, sem sequer saber disso, ao reter apenas o que é capaz de lhes

interessar [...]”, então, nada mais honesto do que submeter à discussão os pré-conceitos

que “justificam” e que fundamentam a tal seleção. Vale esclarecer que o Grupo de

Pesquisa "Observatório da Constituição e da Democracia" tem tentado reforçar a idéia

de que o grande problema não é a seletividade da mídia ou mesmo do judiciário, que

operam e sempre operarão excluindo argumentos relevantes (na prática, ainda que

almejem inclusão). O ponto é: em que medida os critérios que orientam uma ação

seletiva estão expressos, são observáveis, criticáveis?

É bom que se diga de antemão que consideramos um dever a problematização

dos critérios, dos pressupostos que fundamentam a seletividade da mídia, porque não se

pode deixar de reconhecer a imprensa como uma verdadeira instituição nacional,

indispensável à manutenção do Estado Democrático de Direito e à integração da

sociedade. E, se a mídia é a sexta “instituição nacional” de maior credibilidade, à frente

do Judiciário e do Congresso Nacional, como indicou uma pesquisa do Instituto Vox

Populi realizada em junho de 2006, é preciso criar condições para que seja avaliada e

cobrada como as demais instituições democráticas.

Por isso que o segundo objetivo deste ensaio é desenvolver e sustentar as

seguintes hipóteses:

1) se não se pode explicitar e explicar os pressupostos (conceituais e — por que

não? — financeiros) de que a mídia lança mão para produzir quaisquer

informações, então, acaba-se por incorrer no velho paradoxo antidemocrático:

“as regras que eu aplico, a mim não se aplicam”; noutras palavras, a mídia cria

condições para a crítica das instituições, mas não para ser criticada.

Até aqui pode parecer que a única conseqüência de uma mídia controlada por

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235

grupos empresariais, que não se interessam pela publicização dos critérios de seleção da

produção e da reprodução da informação, seja uma instituição com "baixa densidade

democrática" ou pouco propensa à participação da sociedade e ao controle social. Agora

se considerarmos que essa mídia que não quer (ou não pode?) revelar e submeter à

discussão seus próprios interesses na produção da informação é a mesma que

freqüentemente se põe a revelar o “sentido oculto” dos direitos inscritos na Constituição

(como se existissem), é forçoso reconhecer que as conseqüências são desastrosas para o

desenvolvimento da democracia no país, pelo menos em hipótese é o que se deve

verificar:

2) se não se pode explicitar e explicar os pressupostos (conceituais e — por que

não? — financeiros) de que a mídia lança mão quando publica suas opiniões

sobre os direitos constitucionais fazendo com que suas interpretações pareçam

manifestações de uma opinião pública produzida necessariamente nos termos de

um processo público de discussão, caracterizado pela contradição de argumentos

consistentes, então, acaba-se por promover o fechamento da Constituição às

outras interpretações igualmente válidas, restringindo o acesso e inviabilizando a

inclusão dos diferentes cidadãos ao sistema de direitos.

É claro que este texto não tem qualquer pretensão de cobrar dos meios de

comunicação uma (auto)crítica dirigida aos seus próprios pressupostos. Isto está fora de

questão.

Contudo, como estamos tentando compor uma espécie de plano de trabalho para

subsidiar a criação de um Observatório da Justiça brasileira, a exemplo do Observatório

Permanente da Justiça Portuguesa sediado no Centro de Estudos Sociais da

Universidade de Coimbra (CES/UC), parece oportuno considerar a observação crítica

(tematização e problematização) da mídia como uma atividade permanente não apenas

dos ombdsmans e ouvidores dos veículos de comunicação.

Ainda que possamos identificar iniciativas exitosas produzidas no seio da

sociedade civil como o "Observatório da Imprensa" e mesmo que consideremos a

existência de um público de leitores (e também de uma audiência de telespectadores)

capaz de avaliar a qualidade da informação fornecida, parece crucial dispor de um órgão

público, embora não necessariamente estatal, organizado para observar o modo como a

mídia observa, sobretudo, como observa a aplicação da justiça. Porque esse "tipo" de

observação reducionista que a mídia realiza sobre o trabalho complexo de interpretação

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e aplicação do Direito quando vira notícia, vira verdade e, portanto, vira mentira já que

não pode haver uma única interpretação correta ou verdadeira do Direito que resulte

absolutamente em Justiça.

Vamos ver se um exemplo facilita a compreensão do que estamos propondo aqui.

A lição do “mensalão”

Sem descartar outros tantos disponíveis, talvez o exemplo mais expressivo — e

também mais fácil de ser observado e verificado — do quanto essa drástica redução que

a mídia opera sobre o Direito, principalmente sobre a interpretação dos direitos

constitucionais, acaba por resultar no fechamento da Constituição à diferença e à

pluralidade nos tenha sido dado pela interpretação do direito ao acesso à justiça que a

mídia propalou ao longo de todo o episódio denominado “julgamento do mensalão”.

Embora tratado como o “julgamento do século” por parte da imprensa ou como o

“julgamento mais importante da história” do Supremo Tribunal Federal, é preciso

esclarecer que no denominado “julgamento do mensalão” ocorrido no final do mês de

agosto de 2007 não estava em pauta a condenação das pessoas envolvidas no esquema

de compra de votos de parlamentares em troca de apoio político ao Governo. Decidiu-se

apenas pelo recebimento da denúncia apresentada pelo Ministério Público.

De qualquer forma justifica-se a ênfase e a repercussão atribuída àqueles cinco

dias de sessão do STF pelo fato incomum de que um “escândalo político” contrário aos

interesses do Governo recebeu tratamento jurídico, isto é, neste episódio a mais alta

corte do país não pôde se eximir de avaliar as conseqüências jurídicas de fatos

costumeiramente considerados meras questões da disputa política.

O simples fato do STF ter se comportado como um Poder independente do

Executivo já seria suficiente para considerar o julgamento do mensalão um marco na

história da República no Brasil. Mas o episódio também entrou para a história por

mostrar como a mídia se comporta hoje como um Poder acima dos demais; não mais um

4° ou um 5° Poder, mas o 1°, aquele ao qual o Executivo, o Legislativo e o Judiciário

devem se referir, devem explicações.

Essa revelação foi a grande novidade do julgamento, muito embora não tenha

sido noticiada e muito menos problematizada em nenhum dos jornais responsáveis pela

extensa cobertura. Tomamos conhecimento do modo como a mídia pautou e conduziu

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a partir de suas próprias pretensões de justiça a atuação das instituições envolvidas,

sobretudo do STF, apenas depois que a presidência do Supremo veio a público para

confirmar (as avessas) aquilo que todos suspeitavam, com a seguinte nota:

NOTA OFICIAL

O Supremo Tribunal Federal – que não permite nem tolera que pressões externas

interfiram em suas decisões – vem reafirmar o que testemunham sua longa história e a

opinião pública nacional, que são a dignidade da Corte, a honorabilidade de seus

Ministros e a absoluta independência e transparência dos seus julgamentos. Os fatos,

sobretudo os mais recentes, falam por si e dispensam maiores explicações.

Brasília, 30 de agosto de 2007.

Presidente do Supremo Tribunal Federal

Ministra Ellen Gracie

Nem mesmo a crítica especializada e os especialistas de plantão (juristas e

cientistas políticos da Corte) tematizaram o comportamento da imprensa. Joaquim

Falcão, membro do Conselho Nacional de Justiça, bem que tentou, mas sucumbiu ao

temor de debater os deveres decorrentes da liberdade de expressão e terminou por

sugerir um acordo tão elitista quanto excludente: a mídia deve garantir aos ministros

pelo menos uma salinha lá no STF onde eles possam se reunir e trocar opiniões sem ter

que prestar contas a ninguém.

A ausência de comentários ou de avaliações sobre a atuação dirigente da

imprensa no episódio do mensalão provavelmente se explique por vários motivos; um

em especial: a novidade da conduta, pois, estávamos acostumados a criticar a imprensa

apenas quando ela se comportava como se fosse o 3° Poder, usurpando o lugar do

Judiciário para atribuir responsabilidades e realizar condenações sem julgamento, sem

contraditório.

A lição que o mensalão oferece ao país não tem nada a ver (ainda) com a punição

dos 40 acusados — convém reiterar que em agosto eles não foram julgados —, tem a ver

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

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sim com a necessidade de que toda e qualquer expressão de poder social, que emana do

povo ou dos editores de um jornal, esteja sujeita aos procedimentos democráticos de

formação da opinião e da vontade, previstos na Constituição Federal, antes de

produzirem decisões e condicionarem a atuação das instituições republicanas.

Porque o problema não é o STF julgar com a “faca no pescoço”, como esclareceu

o Ministro Lewandowski. O problema é julgar apenas sob a pressão que a “faca” da

mídia exerce, sem que possamos criticá-la e sem que outros cidadãos tenham o direito de

empunhar suas pretensões de justiça contra a atuação do judiciário.

Se assim o for, isto é, se aceitarmos sem discussão que a opinião publicada pelos

donos dos meios de comunicação sobre como se deve realizar justiça no Brasil

representa a compreensão de todos nós sobre o tema, então teremos de admitir que a

solução de todo e qualquer conflito depende de uma sentença tão incompreensível

quanto ineficaz resultante da intervenção morosa de um juiz provocada pela solicitação

onerosa de um advogado. Pois é esta a compreensão de justiça que preconiza a grande

mídia, uma compreensão que confunde “acesso à justiça” com “acesso ao judiciário”.

Esclarecimentos sobre as nossas próprias opções metodológicas

Nesta altura do texto pode ser que alguém esteja incomodado com o destaque

dado à mídia impressa. Pois, questionarão alguns, como dar tanta importância para a

imprensa quando sua abrangência não chega a 2% da população? Mas, há também quem

possa se incomodar com o fato desta argumentação ter tomado a imprensa, que é apenas

uma parte da mídia, como a representação do todo, ou melhor, como a representação do

paradoxo antidemocrático sobre o qual operam os meios de comunicação de massa.

A pergunta que certamente estamos nos fazendo é: por que não a televisão?

Hoje em dia qualquer trabalho ou estudo com pretensões científicas destinado a

abordar quaisquer aspectos da comunicação social deve necessariamente dedicar, pelo

menos, um capítulo inteiro à televisão. Para justificar um de seus muitos trabalhos sobre

o tema “criança e mídia”, Inês SAMPAIO (2004 , p. 17) esclarece que: “A opção recaiu

sobre a televisão, pela sua relevância e centralidade indiscutíveis para a compreensão do

processo de tematização pública da realidade na sociedade brasileira e pela riqueza de

seus recursos técnicos em relação às outras mídias [...].”

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

239

Evidentemente, não é outro o nosso entendimento, sobretudo quando se tem em

vista a constituição de um projeto institucional de observação da relação “mídia e

justiça”. Não há dúvidas de que a televisão deve ser o objeto principal de observação da

mídia no âmbito do “Observatório da Justiça Brasileira”.

Entretanto, tomamos a mídia impressa como “objeto” privilegiado de observação

tão somente porque consideramos o texto escrito um produto bem mais fácil de ser

analisado para o fim a que se destina este ensaio: delimitar um problema e alinhavar

hipóteses sobre a temática “mídia, justiça e democracia”. Estamos nos valendo da

conhecida distinção que o próprio campo do jornalismo costuma fazer entre notícia na

tevê e notícia no jornal. Esta diferentemente daquela não pode se contentar apenas com o

espetáculo da notícia (com a urgência e o impacto da imagem, do conteúdo audiovisual),

a notícia publicada no jornal traz, quase sempre, a marca do tempo, da reflexão e da

compreensão sobre os fatos; por isso, sustentamos que é mais fácil identificar opiniões e

entendimentos na análise do texto escrito.

De qualquer forma, não se pode desconsiderar o “peso relativo que os ‘jornais de

temática nacional’ (O Globo, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil)

têm na formação da opinião pública brasileira”. Pois como nos explica Venício A. de

LIMA (2006, p. 165-173) a relevância diferenciada desses jornais tem sido sustentada

(em relação a definição de uma agenda política nacional e, por conseqüência, da

formação da opinião pública) em torno de três argumento principais:

(I) primeiro, porque eles mantém as agências de notícias que disponibilizam seu

noticiário on-line, via Internet;

(II) segundo, porque eles são lidos e reproduzidos pelas emissoras de rádio e

pelas assessoria de imprensa ao redor do país;

(III)terceiro, porque cabe à televisão a popularização da agenda política por eles

definida diariamente”.

O autor conclui afirmando: “sua [a desses jornais de temática nacional] maior

influência fosse ‘indireta’, na medida em que, embora com circulação insignificante

diante da magnitude de nossa população, alcançariam pelo menos parte dos formadores

de opinião (não-jornalistas) [...]”. Algo parecido poderia ser dito a respeito de alguns

programas de televisão veiculados na Rede Pública, como o Roda Viva da TV Cultura

por exemplo. Apesar de possuir índices de audiência considerados modestos, o programa

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

240

é visto pela quase totalidade dos formadores de opinião e tomadores de decisão do país.

Com essas breves considerações sobre as nossas próprias opções metodológicas

de jeito nenhum estamos dando por encerrada a discussão sobre a metodologia a ser

utilizada no processo de observação da observação que mídia realiza. Pelo contrário,

pretendemos aqui lançar questões para que ela se inicie e, rapidamente, possa resultar na

definição de um marco teórico-metodológico passível de institucionalização.

Considerações transitórias

O final de um texto deve ser sempre considerado como o início da discussão

sobre as questões e os argumentos que ele apresenta. Neste caso, em especial; pois, se

queremos contribuir com o estabelecimento de um “espaço público” institucional que

concorra discursivamente para a efetivação do acesso à justiça no Brasil, devemos neste

momento oferecer considerações capazes de estruturar o debate e indicar o caminho da

transição entre “o que não há” e “o que deve haver”.

É por isso que as hipóteses acima descritas não têm agora condições de

responder à indagação basilar que nos persegue: afinal, a mídia tem o poder de

ampliar ou restringir o acesso à justiça? Muito embora considerando a premissa

fundamental de que o acesso à justiça se define não como o acesso a algo que já existe e

não muda em conseqüência do acesso, mas como o reconhecimento das diferentes

pretensões de justiça sustentadas pelos atores sociais, e, dessa forma, não pode ser

reduzida a uma prestação judicial parece correto afirmar, desde já, que a mídia tem o

poder sim de ampliar e restringir o acesso a um determinado tipo de justiça ou a uma

determinada concepção de justiça com o qual se identifica e, de alguma forma,

representa.

Mesmo não dispondo de conclusões seguras sobre cada uma das questões

suscitadas, não é preciso ser o Niklas LUHMANN (2005, p. 15) para saber que: “Aquilo

que sabemos sobre a nossa sociedade, ou mesmo sobre o mundo no qual vivemos, o

sabemos pelos meios de comunicação”.

Do mesmo modo, não é necessário ser o Jürgen HABERMAS (2006) para

compreender que a mídia é condição sine qua nom para a existência de uma democracia

nas sociedades contemporâneas, isto é, sem meios de comunicação não há democracia,

porque não haveria como circular as opiniões de uma esfera pública caótica e

hipercomplexa. Portanto, reescrevendo o paradoxo descrito acima, podemos afirmar de

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241

antemão que a mídia é o “ponto cego” da democracia: ela opera distinguindo o que é e o

que não é notícia, mas não consegue observar a distinção que lhe sustenta, isto é, não é

capaz de problematizar sua própria “censura” natural e (é fundamental que se diga),

inevitável.

Sendo assim, se não se pode exigir e sequer esperar dos meios de comunicação

uma (auto)crítica dirigida aos seus próprios pressupostos, é oportuno considerar que

outras instituições entre as quais poderia estar incluído um Observatório da Justiça

Brasileira. Sem com isso menosprezar ou substituir a capacidade do cidadão de produzir

suas próprias interpretações a partir daquilo que lê, reafirmando o “equívoco” de

ADORNO e HORKEIMER na avaliação da denominada industria cultural.

Por fim, sintetizando esse esforço de investigação exploratório sobre a relação

“mídia, justiça e democracia”, podemos concluir preliminarmente que:

a) os meios de comunicação (a mídia) produzem a realidade, e não apenas a

reproduzem;

b) os meios de comunicação são essenciais para a existência da democracia,

porque não há como circular as opiniões de uma esfera pública caótica e hipercomplexa;

c) os meios de comunicação favorecem (selecionam) a circulação das opiniões e

entendimentos que representam os seus próprios interesses;

d) o problema não está na seleção em si, mas na ausência de discussão sobre os

pressupostos, os critérios e os interesses que fundamentam a atuação da mídia;

sobretudo, quando esta seleção diz respeito às interpretações dos direitos constitucionais.

e) quando a mídia seleciona e circula uma determinada interpretação sobre os

direitos inscritos na Constituição que é polissêmica e, por conseguinte, aberta à

diferentes interpretações , sem contudo explicitar os critérios de sua seleção, acaba por

produzir um fechamento da Constituição às diferentes interpretações sobre o Direito em

prejuízo da participação dos cidadãos, em detrimento da democracia;

f) o cidadão é sujeito ativo no processo de comunicação e, portanto, é capaz de

compreender a seleção operada pela mídia e a partir dela selecionar os entendimentos (as

notícias) que lhe interessa conhecer.

g) apenas uma instituição voltada à observação e à problematização sistemática

dos critérios pelos quais a mídia seleciona e cristaliza interpretações sobre o direito pode

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

242

restaurar o caráter polissêmico do Direito e, assim, reconhecer a legitimidade das

diferentes pretensões “por justiça” no processo de realização do Direito com

Democracia. Neste sentido é que deve ser entendida a seguinte assertiva de Boaventura

de Sousa SANTOS (2007, p. 85) “a administração da justiça será tanto mais legitimada

pelos cidadãos quanto mais conhecida e reconhecida for por eles”.

Isto posto, podemos asseverar que a criação de um Observatório da Justiça

Brasileira, que leve a sério a relação entre “mídia, justiça e democracia”, deve estar

calcada na:

1. Investigação das formas pelas quais populações historicamente alijadas do

acesso ao judiciário resolvem seus conflitos, identificando como suas demandas

por justiça (pretensões de validade normativa mapeadas) são tratadas/tematizadas

pelos meios de comunicação;

2. Investigação do tratamento dispensado pelos meios de comunicação aos

denominados métodos alternativos de resolução de conflitos;

3. Identificação das representações sociais que os meios de comunicação

difundem sobre o Judiciário e, por conseguinte, avaliação do impacto que essa

difusão produz no próprio judiciário (recorrendo ao conceito de agendamento ou

agenda-setting);

4. Sistematização e análise das decisões judiciais que tenham

tratado/problematizado, ao menos indiretamente, dos critérios que fundamentam

a atividade seletiva dos meios de comunicação;

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

243

Referências bibliográficas

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fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Ed., 1985.

BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Trad. Maria Lúcia Machado. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Ed., 1997.

FALCÃO, Joaquim. Privacidade do STF ou liberdade de imprensa. Folha de S.

Paulo, 28 de agosto de 2007, A3.

HABERMAS, Jürgen. Political communication in media society: does democracy

still enjoy an epistemic dimension? The impact of normative theory on empirical

research. Communication Theory 16 (2006) 411-426 International

Communication Association

MAINGUENEAU, Dominique. Termos-chave da análise do discurso. Trad. Márcio

Venício Barbosa e Maria Emília Amarante Torres Lima. Belo Horizonte: Editora

UFMG, 1998.

LIMA, Venício A. de. Mídia: crise política e poder no Brasil. São Paulo: Editora

Fundação Perseu Abramo, 2006.

LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. Trad. Ciro Marcondes

Filho. São Paulo: Paulus, 2005.

SAMPAIO, Inês Sílvia Vitorino. Televisão, Publicidade e Infância. São Paulo:

AnnaBlume, 2004.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São

Paulo: Cortez, 2007 (Coleção questões de nossa época; v. 134).

______. Folha de S. Paulo, 17 de setembro de 2007, “A Justiça em debate”.

SILVA, Patrícia Soares da. A criança e a apropriação das mensagens de violência

nos desenhos animados. In: Mídia de chocolate: estudos sobre relação infância,

adolescência e comunicação. SAMPAIO, Inês Sílvia Vitorino; CAVALCANTE,

Andréa Pinheiro Paiva; ALCÂNTARA, Alessandra Carlos. Rio de Janeiro: E-

papers, 2006. p. 97-110.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

244

GRUPO 5

Coordenadores: Profª. Margarida Maria Lacombe Camargo

SUMÁRIO

1. APRESENTAÇÃO DO RELATÓRIO

............................................................

24

6

2. HISTÓRICO...............................................................................................

.........

25

0

2.1. O caso da

verticalização......................................................................................

25

0

2.1.1. Caso de 2002

........................................................................................................

25

0

2.1.2. Caso de 2006

........................................................................................................

25

4

2.2. O caso da cláusula de barreira

...........................................................................

25

7

2.3. O caso da fidelidade partidária

.......................................................................... 17

2.4. Quadro das decisões do STF sobre a questão partidária (2002 -

2007)..........

26

3

3. ANÁLISE DO CASO DIFÍCIL DA FIDELIDADE PARTIDÁRIA

3.1. A judicialização da política e o ativismo judicial

.............................................

26

5

3.2. Neoconstitucionalismo, minimalismo e

democracia.........................................

26

9

3.3. Interpretação e decisão do caso difícil da fidelidade partidária

.....................

27

8

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

245

3.3.1. Formalismo

..........................................................................................................

27

8

3.3.2. O problema da mudança na interpretação da Constituição

...........................

28

4

3.3.3. Análise dos elementos da decisão

....................................................................... 42

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

.............................................................................

28

9

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

.............................................................. 49

ANEXOS

A. Mapeamento da Emenda Constitucional 45 (de Marcus Firmino Santiago) ... 51

B. Relatório sobre a proposta de estruturação do Observatório da Justiça

Brasileira apresentado pelo Grupo 5 – UFRJ ............................................ 69

C. Organograma sobre a estruturação do OJB (Grupo 5)................................. 74

D. Visualização articulada dos elementos da política pública proposta (de

Fábio Sá e Silva ) ................................................................................................. 76

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

246

1. APRESENTAÇÃO DO RELATÓRIO

A temática do acesso à justiça comporta uma pluralidade de abordagens,

elaboradas por diferentes disciplinas, cada qual com as suas particularidades

metodológicas. No Brasil, o tema do acesso à justiça constitui, desde a década de

sessenta, um dos principais objetos de investigação pelos sociólogos do direito,

acompanhados, nas décadas seguintes, pelos processualistas. Recentemente, com o

advento da Constituição de 1988, passou também a ser estudado pelos

constitucionalistas preocupados com a questão da efetividade das normas

constitucionais, especialmente dos direitos difusos, coletivos e sociais. Para além do

campo teórico do Direito, este tema também é estudado por cientistas sociais com

diferentes orientações metodológicas.

O direito fundamental de acesso à justiça possui, diante da complexidade de seu

objeto e de suas múltiplas abordagens, diferentes significados. Os distintos enfoques que

são construídos ora tendem a destacar uma dimensão mais sociológica da questão, ora

ressaltam um viés mais procedimental do problema. Cabe mencionar algumas definições

que contribuirão para a delimitação e problematização do presente tema. Neste sentido,

segundo Mauro Cappelletti e Bryant Garth, o enfoque do acesso à justiça determina dois

objetivos básicos para o sistema jurídico: em primeiro lugar, o sistema deve ser

igualmente acessível a todos, tanto de um ponto de vista formal quanto substancial.

Assim, o acesso formal, ou seja, a igual possibilidade jurídica de todos demandarem seus

respectivos direitos em um sistema jurídico, e o acesso efetivo, real ou concreto à justiça

são considerados indissociáveis. Em segundo lugar, o sistema jurídico deve produzir

resultados que sejam, ao mesmo tempo, individual e socialmente justos251.

Para Canotilho, o direito fundamental de acesso à justiça pelo cidadão, que

constitui uma dimensão essencial do Estado de Direito, desdobra-se em acesso ao direito

e acesso aos tribunais. O primeiro refere-se ao “direito de acesso ao direito, o direito de

conhecer e reclamar os seus direitos”252 que, por sua vez, não pressupõe somente os

modos tradicionais de litigância formal ante os tribunais. O acesso aos tribunais implica,

para além da dimensão anterior, diferentes modalidades de organização e de

procedimento que aproximem a via judiciária do cidadão, especialmente daqueles

excluídos ou menos favorecidos na luta pela garantia de seus direitos “em igualdade de

251 CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryant. Acesso à justiça, p. 08. 252 CANOTILHO, J. J. Gomes. Estado de Direito, p. 70.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

247

chances”. Esta última dimensão do acesso à justiça se aproxima do ideal de uma “justiça

democrática de proximidade”253, isto é, de uma justiça próxima fisicamente de todos os

cidadãos capaz de romper com os obstáculos financeiros, de tempo, geográficos e

processuais que separam aqueles que possuem daqueles que não têm um acesso efetivo à

justiça.

As definições mencionadas acima, dentre outras, tendem a ressaltar duas

dimensões fundamentais, porém não suficientes, da questão do acesso à justiça.

Primeiramente, o tema do acesso à justiça refere-se à expansão, formal e institucional, da

representação judicial efetiva, ou seja, investiga a promoção de modelos alternativos –

estatais ou não – de solução de conflitos, a difusão de práticas de assistência e assessoria

jurídicas populares, a capacitação de líderes comunitários para a identificação de

demandas jurídicas reprimidas, a expansão dos juizados especiais estaduais e federais, a

inovação da justiça itinerante, dentre outras experiências. Ao lado da anterior, há uma

dimensão procedimental ou instrumental do acesso à justiça voltada a garantir,

principalmente, uma prestação jurisdicional mais ágil, menos custosa e burocrática, em

síntese, uma prestação mais eficiente e efetiva. Dentre outras questões, almeja-se

encontrar um ponto ótimo entre dois valores nem sempre convergentes, que são o da

rapidez da justiça e o de uma justiça justa. Ainda nesta dimensão do acesso à justiça,

podemos citar as reformas processuais no sentido de uma crescente informatização da

justiça254, a introdução e ampliação da representação de interesses coletivos e difusos

com a participação da sociedade civil, a constitucionalização da justiça itinerante255 e

medidas processuais para a celeridade e descongestionamento de processos idênticos nos

tribunais superiores, tais como a súmula vinculante, o efeito vinculante e a cláusula de

repercussão geral.256

O mapeamento das reformas legislativas decorrentes do advento da Emenda

Constitucional nº 45/04257 estuda o acesso à justiça a partir das duas dimensões

supramencionadas, definindo-o como “a possibilidade irrestrita de invocar a atuação

jurisdicional e a presença de todos os mecanismos necessários à sua manifestação”.258

253 SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma revolução democrática da justiça, p. 57. 254 Cf. Lei nº 11.419, de 19/12/2006, que dispõe sobre a informatização dos procedimentos judiciais. 255 Cf. os artigos 107, § 2º; 125, § 7º da CF acrescentados pela EC nº 45/04. 256 Cf. Lei nº 11.418, de 19/12/2006. 257 Cf. o anexo A do presente relatório. 258 WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo, p. 134 APUD SANTIAGO, Marcus Firmino, MAPEAMENTO DAS REFORMAS LEGISLATIVAS DECORRENTES DO ADVENTO DA EC Nº 45/04.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

248

Estas duas dimensões são indispensáveis para a correta análise da temática em tela. No

entanto, apesar de indispensáveis, não são suficientes, pois ambas não estão aptas a

conferir o merecido relevo teórico ao atual protagonismo institucional exercido pelos

tribunais superiores no sistema político brasileiro, especialmente o Supremo Tribunal

Federal, com a intensificação do processo de judicialização da política, assim como a

autocompreensão construída pelo tribunal para legitimar a sua própria atuação em casos

controversos (hard cases) e, finalmente, a repercussão de suas decisões sobre o tema da

democratização do acesso à justiça, objeto central de estudo do Projeto Dossiê Justiça.

O tema do acesso à justiça é tradicionalmente abordado a partir de uma

perspectiva externa ao sistema judiciário e, particularmente, também exterior ao

Supremo Tribunal Federal e ao seu papel institucional desempenhado no sistema político

brasileiro. No entanto, é difícil imaginar hoje em dia alguma questão política,

econômica, cultural ou ambiental que não possa ser debatida em termos jurídico-

constitucionais e que, mais cedo ou mais tarde, não venha a ser objeto de um

pronunciamento do STF. Neste relatório, enfatizaremos importantes decisões do STF em

casos difíceis envolvendo a discussão e redefinição das regras do jogo democrático.

Serão estudados comparativamente os casos sobre a verticalização das coligações

partidárias259, a cláusula de barreira260 e o recente caso sobre a fidelidade partidária261. A

partir da elaboração de um histórico e de um quadro comparativo entre os casos

mencionados, procurar-se-á construir um panorama do protagonismo desempenhado

pelo STF em um contexto de intensificação do processo de judicialização da política,

concebida, em breve síntese, como um processo de expansão decisória do Poder

Judiciário em direção a áreas de competência tradicionalmente exercidas pelo Poder

Executivo e pelo Poder Legislativo.262 A partir de uma análise do discurso dos ministros

sobre a autocompreensão de sua atuação na garantia dos direitos fundamentais em

relação às decisões do legislador ordinário, pretende-se também investigar em que

medida o sistema político brasileiro caminha para uma “juristocracia” (juristocracy263)

ou, segundo Oscar Vilhena Vieira, para uma “supremocracia”264.

259 ADI nº 2626-7 e ADI nº 3685-8. 260 ADI nº 1351-3 e ADI nº 1354-8. 261 MS nº 26602, MS nº 26603 e MS nº 26604 (STF) e Resolução nº 22526 (TSE). 262 Cf. EISENBERG, José. Pragmatismo, direito reflexivo e judicialização da política. In: VIANNA, Luiz Werneck (Org.). A democracia e os três poderes no Brasil, p. 45 et seq. 263 Cf. HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2004. 264 Cf. VIEIRA, Oscar V. Supremocracia: vícios e virtudes republicanas. Jornal O Valor. 06/11/2007.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

249

Neste sentido, o Grupo 5 propõe, de modo complementar, uma terceira dimensão

do acesso à justiça, que será destacada em nossa análise no decorrer do presente

relatório. Esta pressupõe uma perspectiva interna ao sistema judiciário, particularmente

em relação ao Supremo Tribunal Federal, que se propõe a analisar, dentre outras

importantes questões, (a) a relação entre o direito e a política a partir do estudo de

decisões do STF em casos difíceis, (b) o papel institucional desempenhado atualmente

pelo tribunal tendo em vista o seu maior “ativismo” em recentes decisões sobre a

definição e reformulação das regras partidárias e eleitorais e (c) a autocompreensão dos

ministros do STF como “representantes argumentativos265” do cidadão e sua repercussão

sobre a atuação político-institucional dos demais poderes, bem como sobre a

tematização, mobilização e participação da sociedade civil em debates sobre questões

políticas e morais profundamente controversas. Esta terceira dimensão do acesso à

justiça traduz-se nas seguintes indagações: como os ministros concebem o papel

institucional do STF na definição de questões políticas e morais profundamente

controversas na sociedade brasileira? Em que medida a compreensão, atuação e as

decisões do STF orientam ou estimulam a participação da sociedade civil nestas

questões? O STF encontra-se aberto à participação argumentativa da sociedade civil

nestes casos difíceis? Qual a relação do STF com os demais órgãos do Poder Judiciário,

por um lado, e com o Poder Legislativo e o Poder Executivo, por outro? Por sua vez,

estes objetivos estão intimamente ligados à institucionalização de um Observatório da

Justiça Brasileira, instância crítica de reflexão acadêmica sobre o Poder Judiciário e a

solução de conflitos.

O relatório final elaborado pelo Grupo 5 da Universidade Federal do Rio de

Janeiro apresentará, em primeiro lugar, um histórico sobre os casos da verticalização

partidária, cláusula de barreira e fidelidade partidária. Em segundo lugar, apresentará um

quadro comparativo entre os casos mencionados. Em seguida, será analisado o caso

difícil da fidelidade partidária segundo a metodologia anteriormente descrita em nosso

documento-base, destacando os seguintes pontos: (a) a judicialização da política e o

ativismo judicial, (b) a tensão entre o neoconstitucionalismo e a democracia e (c) a

interpretação e decisão do caso. Por último, encontram-se anexados três documentos ao

relatório, que constituem três produtos elaborados pelo Grupo 5 para o Projeto Dossiê

265 ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no Estado constitucional democrático: para a relação entre direitos do homem, direitos fundamentais, democracia e jurisdição constitucional. Revista de Direito Administrativo, 217, 1999, p. 66.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

250

Justiça: o mapeamento das reformas legislativas decorrentes do advento da Emenda

Constitucional nº 45/04266, o relatório com a proposta de estruturação do Observatório da

Justiça Brasileira (OJB)267 e o organograma com a proposta de estruturação do OJB268.

No âmbito das atividades desenvolvidas pelo Grupo 5, cabe ressaltar, ainda, a

elaboração de um blog269, intitulado “Supremo em Debate”, para discussão sobre a

atuação do Supremo Tribunal Federal em hard cases e sobre temas de direito

constitucional comparado.

2. HISTÓRICO

2.1. O caso da verticalização

2.1.1. Caso 2002 (ADI 2626-7)

A ADI em questão teve como requerentes o Partido Comunista do Brasil (PC do

B), o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido Liberal (PL) e o Partido Socialista

Brasileiro (PSB) que objetivavam a declaração de inconstitucionalidade do §1°, do

artigo 4°, da Instrução n° 55, aprovada pela resolução n° 20.993 de 26 de fevereiro de

2002, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O dispositivo impugnado foi resultado de

uma resposta a uma consulta de n° 715, formulada por parlamentares no objetivo de

esclarecer a disciplina das coligações previstas no artigo 6° da Lei nº 9.504/97.

Na referida consulta ao TSE os parlamentares indagaram sobre a possibilidade de

celebração de coligação com alguns partidos para a eleição de Presidente da República e

com outros terceiros partidos (que também possuíam candidatos à Presidência), visando

a eleição de Governador de Estado. À base da interpretação da lei, objeto da consulta,

houve detida ponderação de dois princípios do estatuto constitucional dos partidos

políticos: de um lado, o “caráter nacional”, e do outro, o da “autonomia dos partidos

políticos”, ambos assegurados no artigo 17° da CF/88. Ao primeiro desses princípios,

deram prevalência os votos vencedores (5 a 2), sendo que a resposta do TSE à consulta

foi negativa, restando vencidos os votos dos Ministros Sepúlveda Pertence e Sávio de

Figueiredo.

266 Anexo A (Mapeamento da Emenda Constitucional 45) deste relatório, p. 51. 267 Anexo B (Relatório sobre a proposta de estruturação do Observatório da Justiça Brasileira apresentado pelo Grupo 5 – UFRJ) deste relatório, p. 69. 268 Anexo C (Organograma sobre a estruturação do OJB) deste relatório, p. Erro! Indicador não definido.. 269 Cf. <www.supremoemdebate.blogspot.com>.

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251

O Advogado Geral da União, Dr. Walter do Carmo Barletta, no exercício de sua

atribuição conferida pelo artigo 103, §3° da CF/88, apresentou defesa do ato impugnado,

sustentando que a ação não preenchia os pressupostos necessários para o seu

conhecimento, visto que tratava de matéria que afeta apenas o campo da legalidade.

O STF por maioria de votos não conheceu do pedido formulado pelos

requerentes, na inicial da ação, vencidos os Ministros Sydney Sanches (relator), Ilmar

Galvão, Sepúlveda Pertence e o Presidente do Tribunal à época, o Min. Marco Aurélio

de Mello.

Os ministros vencidos na votação consideraram que o ato em causa teria caráter

de ato normativo autônomo, passível, assim, de controle normativo abstrato de

constitucionalidade, argumentando que o que se impugnava não era a resposta dada à

consulta, que teria mero caráter administrativo e sim a inclusão do §1° do artigo 4° nas

instruções baixadas pelo TSE, a serem observadas por todos os juízes e Tribunais

Regionais Eleitorais, afetando, mesmo que indiretamente, os partidos políticos e os

candidatos, modificando o processo eleitoral. Assim, o ato objeto de ADI “trata-se de

‘norma de decisão’ e não apenas de ‘decisão sobre normas’”, como menciona o Min.

Sepúlveda Pertence em seu voto, enfatizando que o objeto da ADI é muito mais do que

uma mera interpretação da norma como pretendeu afirmar o TSE, revelando-se, na

realidade, uma regra absolutamente nova que transforma a disciplina das coligações no

processo eleitoral.

Em relação ao mérito, esses mesmos ministros vencidos na votação, declararam

procedente o pedido dos requerentes em sua inicial, fundamentando suas decisões com

os seguintes argumentos:

• Ofensa ao Princípio da Anualidade, tendo em vista que o TSE, no exercício

do poder-dever de baixar instruções, acabou por introduzir norma inteiramente nova,

alterando abruptamente o processo eleitoral de 2002 fora do prazo estabelecido pelo

artigo 16° da Constituição Federal. A regra citada é claramente resultante do Princípio

da Segurança Jurídica, que também, é ofendido pela Resolução, uma vez que este é

orientado no sentido de evitar bruscas alterações, de caráter constritivo de direitos, na

exegese de leis.

“A norma constitucional – malgrado dirigida ao legislador -, contém princípio

que deve levar a Justiça Eleitoral a moderar eventuais impulsos de viradas

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jurisprudenciais súbitas, no ano eleitoral, acerca de regras legais de densas implicações

na estratégia para o pleito das forças partidárias” (Ministro Sepúlveda Pertence).

• Ofensa ao Princípio da Autonomia Partidária , uma vez que a imposição

pelo TSE, por intermédio do dispositivo impugnado, subtrai dos partidos a sua

autonomia para definir seu “funcionamento”, segundo o artigo 17°, §1°, da CF. O texto

constitucional delega claramente às agremiações partidárias a definição das normas

disciplinares e de fidelidade partidária, inclusive quanto à deliberação das coligações

para os pleitos eleitorais. A autonomia dos partidos políticos é total, respeitada a

circunscrição definida no artigo 86° do Código Eleitoral.

• Violação do Princípio Constitucional da Reserva Legal (artigo 5°, II, da

CF). O TSE estatui em sua Resolução uma nova regra, não se tratando apenas de

interpretação da lei, mas de inovação legal, visto que o ato normativo estabelece

proibição não prevista em lei, agredindo, assim, o principio da reserva legal. Neste

sentido, “(...) verticalização é eufemismo para vinculação que quer se estabelecer sem

base legal270”.

• Violação do Princípio da Razoabilidade ou da Proporcionalidade. Um

juízo sobre a proporcionalidade ou razoabilidade de uma medida tem que resultar da

ponderação entre o significado da alteração para o atingido e os objetivos perseguidos

pelo legislador, assim como da necessidade da medida e a adequação do meio eleito para

alcançar o objetivo visado. Partindo destes pressupostos, observa-se que a

“verticalização” das coligações nas eleições de 2002 não só impõe restrição vedada

constitucionalmente (reserva legal), como também não se compatibiliza com o princípio

da proporcionalidade, na medida em que há total desproporção entre o objetivo

perseguido e o ônus imposto ao atingido, agravada, ainda, pela questionável necessidade

de sua utilização e inadequação absoluta do meio eleito para a consecução dos objetivos.

• Ofensa ao Princípio da Reserva Constitucional de Competência

Legislativa do Congresso Nacional. A disciplina do processo eleitoral, que inclui as

regras sobre a celebração das coligações partidárias, configura matéria de competência

270 Citação de trecho do voto do Ministro Sydney Sanches na ADI 2626-7 (STF).

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253

exclusiva do Congresso Nacional, conforme previsto no artigo 22°, inciso I, combinado

com o artigo 48° da CF, competindo ao TSE somente a expedição de instruções

necessárias à execução das leis eleitorais (artigo 23, IX do Código Eleitoral). Deste

modo, no exercício dessa competência, não cabe ao regulamento inovar na ordem

jurídica, criando, modificando, ampliando ou restringindo direitos e obrigações

estabelecidas pela lei regulamentada. No caso em exame, o TSE, ao instituir a

vinculação das coligações formadas nas circunscrições dos estados àquela composta para

a eleição de Presidente da Republica, exorbitou de seus limites, inovando na ordem

eleitoral:“ O juízo de conveniência, confiado ao TSE, tem por objeto a expedição ou não

da instrução, não o seu conteúdo271(...)”

Os Ministros Nelson Jobim, Ellen Gracie, Moreira Alves, Maurício Corrêa,

Carlos Velloso, Celso de Mello e Néri da Silveira acolheram a preliminar de

descabimento da ADI, suscitada no caso, fundamentados no argumento de que o ato

questionado, por veicular conteúdo meramente interpretativo, teria resultado do

exercício, pelo TSE, de competência materialmente administrativa que lhe foi conferida

pelo Código Eleitoral.

Assim, os Ministros que tiveram seus votos vencedores, não conheceram da

ação, visto que o objeto desta (§1° do artigo 4° da Instrução n° 55) é ato normativo

secundário, decorrente de ato normativo primário, que no caso é o artigo 6° da Lei

9504/97.

“O ato em causa revela-se efetivamente desprovido do necessário coeficiente de

normatividade qualificada, configurando, por isso mesmo, ato de caráter meramente

secundário, eis que se limitou a interpretar, na espécie, regra legal pertinente à

celebração de coligações partidárias272”.

Segundo o posicionamento vencedor, o objeto da ação consiste inegavelmente

em ato de interpretação. Entretanto, saber se esta interpretação excedeu ou não os

limites da norma que visava integrar, exigiria necessariamente o seu confronto com esta

regra, e o STF tem rechaçado as tentativas de submeter ao controle concentrado de

constitucionalidade o controle de legalidade do poder regulamentar. Neste sentido, os

alegados excessos do poder regulamentar da Resolução em face do artigo 6º da Lei

271 Citação de trecho do voto do Ministro Sepúlveda Pertence na ADI 2626-7 (STF). 272 Citação de trecho do voto do Ministro Celso de Mello na ADI 2626-7 (STF).

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9.504/97 não revelariam inconstitucionalidade, mas sim eventual ilegalidade frente à lei

ordinária regulamentada, sendo indireta ou reflexa a alegada ofensa à Constituição.

Logo, segundo a posição sustentada por esses Ministros não há violação direta a

nenhum dos princípios constitucionais invocados no caso em exame.

Não há que se falar em desrespeito ao principio da anualidade, já que foi

respeitado o termo final para o TSE expedir as instruções para as eleições de 2002

segundo o artigo 105 da Lei nº 9504/97. Quanto ao princípio da autonomia partidária, a

Constituição dá autonomia aos partidos políticos quanto ao seu funcionamento,

entretanto, não pode haver autonomia quanto ao funcionamento externo do partido visto

que a CF não se ocupa diretamente do assunto, não estabelecendo o princípio

constitucional da liberdade de coligação. A autonomia partidária, portanto não é total.

No hard case da verticalização em 2002, outro Tribunal Superior, que não o

STF, assumiu uma postura ativista, típica do processo de judicialização da política273.

No caso examinado é o TSE que exerce esse ativismo judicial, ao estabecer normas

referentes ao processo eleitoral que inicialmente seriam de competência exclusiva do

Congresso Nacional, como já mencionado anteriormente.

Por último, cabe ressaltar que a ADI 2626-7 de 2002 restringe o acesso à justiça,

devido ao excesso de formalismo por parte dos ministros, visto que não foi avalido

sequer o mérito da questão por concluírem que o objeto desta era apenas um ato de

interpretação, mera norma secundária.

2.1.2. Caso 2006 (ADI 3685-8)

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados propôs em 2006, ação direta de

inconstitucionalidade em face do artigo 2° da Emenda Constitucional n° 52/06 que

alterou a redação do artigo 17° §1° da CF, introduzindo neste, texto novo que disciplina

o regime das coligações partidárias eleitorais, estabelecendo a regra da não

obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual,

municipal e distrital.

A Emenda Constitucional em questão, proposta no ano de 2002, visava

claramente contornar a Resolução nº 20.993 votada pelo TSE no mesmo ano, visto que

esse dispositivo determinava a aplicação dos seus efeitos “às eleições que ocorrerão em

2002” e ainda atribuía status constitucional à matéria que antes era tratada apenas por

273 Os temas da judicialização da política e do ativismo judicial serão aprofundados no item 3.1. do presente relatório.

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legislação ordinária, provocando assim a perda da validade de qualquer restrição à

autonomia dos partidos políticos nos planos federal, estadual, distrital e municipal,

alcançando assim a Resolução do TSE.

Por maioria de votos, os ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram pela

procedência da ação, estabelecendo que a EC 52/06 não se aplicaria às eleições de 2006,

vencidos os votos dos Ministros Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio de Mello.

Segundo a linha de pensamento dos Ministros Ellen Gracie, Nelson Jobim, Celso

de Mello, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Eros Grau e

Ricardo Lewandowski, que votaram pela procedência do pedido, os principais

argumentos foram:

• Violação do Princípio da Anualidade (artigo 16° da CF), visto que a EC

sob exame dispunha que entraria em vigor na data de sua publicação, desrespeitando o

prazo legal para a introdução de novas regras no processo eleitoral, que é de um ano.

Esse princípio visa conferir segurança jurídica tanto aos candidatos que serão

surpreendidos pela medida quanto ao eleitor, afastando qualquer alteração feita por

conveniências de momento, independentemente se por emenda à constituição, lei

ordinária ou complementar, que acabassem por ferir a legitimidade democrática,

prevenindo o casuísmo legislativo.

• Ofensa ao Princípio da Segurança Jurídica (artigo 5°, caput, CF). A

confiança que se deposita em determinado modelo legal torna essencial a adoção de

cláusulas de transição nos casos de mudança radical de um instituto jurídico. Este é o

papel (o de limite temporal) exercido no caso pelo artigo 16° da Constituição Federal,

constituindo uma previsão de segurança jurídica qualificada expressamente pela Carta

Magna.

• Violação do Principio do Devido Processo Legal (artigo 5°, LIV, da

CF). Garantia genérica que pode ser concretizada no principio do devido processo legal

eleitoral, compreendida como cláusula pétrea pelos ministros vencedores, a teor do

inciso IV do §4° do artigo 60 da Constituição. Segundo os ministros, a garantia do

devido processo legal foi desrespeitada pela EC em tela, uma vez que a anterioridade

exigida pelo artigo 16 é essencial à segurança e à isonomia, que estão subjacentes á idéia

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qualificada de processo, não bastando que o legislador respeite os preceitos que regem o

processo legislativo, impondo-se ainda a observância da anterioridade.

Os ministros que tiveram seus votos vencidos insistiram na questão de que a

Emenda Constitucional n° 52/06 não modificou o cenário eleitoral, pois não alterou

coisa alguma em termos de normatividade, apenas constitucionalizando o artigo 6° da

Lei 9.504/97. O argumento de que a EC n° 52 ofende uma cláusula pétrea (artigo 16° -

Princípio da Anualidade), foi questionado, na medida em que esse artigo seria passível

de reforma, até porque sua redação atual decorreu da EC n° 04/93, não cabendo assim a

sua classificação como clausula pétrea:

“(...) se nem o próprio artigo 16° eu consigo erigir em clausula pétrea, com

todo o respeito que tenho por aquela decisão do TSE (consulta 715 de 2002

que gerou a ADI 2626), não consigo erigir em clausula pétrea a decisão do

Tribunal Superior274”.

De acordo com esse trecho, consegue-se extrair, assim como em seu voto na ADI

2626 de 2002, na qual ele compara o TSE com o Supremo Tribunal de Eleições da Costa

Rica, que o citado ministro possui a preocupação em garantir o acesso à justiça na

medida emeque se posiciona contra a tendência da imutabilidade das decisões não só do

STF.

Durante seu voto, o Ministro Marco Aurélio de Mello afirma que não estaria ele

e os outros Ministros ali, se em 2002 não tivesse havido a guinada na interpretação da

ordem jurídica, bem como se “(...) houvéssemos aberto, como costumo dizer, o

embrulho, quando se atacou a resolução do TSE, mediante ADI (2626), sob o ângulo da

autonomia dos partidos políticos e da atuação do referido Tribunal, como se fosse órgão

incumbido de legislar275”.

Por último, de acordo com o Ministro Sepúlveda Pertence (ainda se referindo à

consulta n° 715), o Tribunal Superior Eleitoral não pode deixar-se envolver nas

polêmicas sobre a conveniência ou não de se impor a simetria entre as coligações, visto

que antes disso se faz necessário saber se o problema já encontra solução na legislação

eleitoral, o que, em sua compreensão, tem resposta afirmativa, uma vez que o artigo 6°

da Lei n° 9504/97 é o único dispositivo legal pertinente à questão. Neste sentido, o Min.

Sepúlveda Pertence conclui que há expressamente uma opção legislativa que deriva do

principio da autonomia dos partidos políticos, não cabendo substituí-la pela visão do

274 Trecho do voto do Min. Sepúlveda Pertence na ADI 3685-8, disponível em <www.stf.gov.br>. 275 Trecho do voto do Min. Marco Aurélio de Mello na ADI 3685-8, disponível em <www.stf.gov.br>.

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257

Tribunal, sobre como deveriam se organizar os partidos, até porque esta competência já

foi conferida aos próprios, segundo o artigo 17°, §1° da CF.

2.2. O caso da cláusula de barreira

Em dezembro de 2006, o STF julgou as ADI’s 1351 e 1354 propostas pelos

partidos políticos que se sentiram prejudicados com a cláusula de barreira instituída pelo

art. 13 da Lei nº 9.096/95 (Lei dos partidos políticos), e que passaria a ter seus efeitos a

partir da legislatura que se iniciaria em 2007. Estas ações tramitavam no Supremo

Tribunal Federal desde 1995, ano em que entrou em vigor a referida lei, e tinham como

pedido, a declaração da inconstitucionalidade da cláusula de barreira, sob alegação de

que confrontaria os princípios da isonomia e do pluralismo político, ferindo, assim, o

direito de manifestação política das minorias.

No passado, a matéria relativa à cláusula de barreira foi disciplinada na

Constituição Brasileira outorgada de 1967, exigindo que, para a manutenção de sua

existência, as agremiações deveriam ter obtido na última eleição geral para a Câmara dos

Deputados dez por cento do eleitorado – atualmente 5% – distribuídos em pelo menos

sete estados – e não nove como agora – com um mínimo de sete por cento – hoje 2% –

em cada um deles. Sob a regência da Carta Política de 1967, tanto na redação primitiva,

quanto nas resultantes das Emendas Constitucionais nº 01/69 e 11/78 , as exigências

ligadas à representatividade de partidos políticos alcançaram a própria organização,

funcionamento e extinção das agremiações. Com a Emenda Constitucional nº 25/85,

foram estabelecidas, de forma precisa, as conseqüências de não ter o partido atingido os

patamares fixados, dentre as quais, a perda do mandato dos representantes eleitos por

essas agremiações se estes não optassem por nenhum outro partido remanescente em 60

dias276.

Com a ruptura daquele período autoritário e o início de uma nova fase política

nacional, assentada em uma Constituição com bases democráticas, o constituinte

originário optou por disciplinar apenas as linhas gerais partidárias, estabelecendo

princípios jurídicos, tais como o do pluripartidarismo e da livre organização, e deixando

276 Observa-se que a Constituição de 1967 considerava como pertencente ao representante o mandato político, podendo este permanecer com o cargo desde que se filiasse a outro partido, qualquer que fosse, tratando, assim, a filiação partidária como mera condição para o exercício do cargo no Poder Legislativo.

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258

o seu funcionamento parlamentar como matéria a ser regulada por lei

infraconstitucional277.

No Brasil, os partidos políticos sofreram com a alternância entre regimes

democráticos e ditatoriais, que pouco contribuiu para conferir-lhes uma base ideológica

sólida, que fosse capaz de ensejar o surgimento de agremiações partidárias divorciadas

do patriarcalismo, do patrimonialismo e dos interesses econômicos dominantes.

A discussão do caso, portanto, diz respeito a dois pontos importantes: (1.) o

conflito entre norma infraconstitucioal e princípios constitucionais que não admitiriam

os efeitos provocados pela cláusula de barreira e (2.) qual deveria ser a interpretação

dada ao art.17 da Constituição Federal de 1988, que disciplina sobre os partidos

políticos.

O Supremo Tribunal Federal entendeu que o texto constitucional estabelece

diversos princípios além de regras, os quais devem prevalecer diante de normas que os

contrariem, podendo até serem, às vezes, mitigados, mas nunca inobservados. Dentre os

princípios mencionados na fundamentação do julgamento, podemos destacar os da

soberania popular, do pluralismo político, da igualdade de chances entre os partidos

políticos e, finalmente, o princípio da proporcionalidade.

Os ministros começam o julgamento tentando se posicionar em discussões sobre

matérias em que não são especialistas, como é o caso do sistema de representação

proporcional, soberania popular, democracia, mandato político, etc. Matérias que são

objeto, sobretudo, da ciência política. No entanto, verifica-se que apesar da relevância

social do caso em discussão e da acentuada repercussão na vida política brasileira que a

decisão poderia gerar, contribuindo para o desenvolvimento de nosso sistema político-

eleitoral, os ministros, ainda assim, se sentiram plenamente capazes de discutir, analisar

e julgar as ADIs mencionadas. Podem ser destacados os seguintes pontos centrais da

argumentação dos ministros do STF, que decidiram por unanimidade pela

inconstitucionalidade da cláusula de barreira:

• Os ministros reconhecem a relevância de um dos fundamentos do Estado de

Direito brasileiro, que é o pluralismo político, refletindo no reconhecimento de um

pluripartidarismo que assegura aos partidos a liberdade de criação, o direito à

igualdade de chances no tocante à defesa, funcionamento e manifestação de seus ideais

políticos, pois todos têm o direito e a liberdade de se expressarem livremente.

277 Cf. art.17, caput, IV e §1 da Constituição Federal de 1988.

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259

• Defenderam o direito à igualdade entre os eleitores no sentido de que todos

têm direito a voto com o mesmo peso político, não devendo este peso estar subordinado

à possibilidade ou não de o partido poder ter representatividade no Parlamento através

de uma restrição imposta pela cláusula.

• Observa-se que através desta análise, a soberania popular não estaria sendo

respeitada, uma vez que um representante ou partido que tenha sido legitimado a assumir

uma cadeira no Parlamento e representar o ideal de uma parcela da sociedade, o perderia

por não ter alcançado os limites exigidos pela cláusula de barreira.

• Um Estado democrático deve acolher as diferenças, as desigualdades

existentes e o direito de pensar diferente, acolhendo o direito das minorias. Defendem

que as previsões constitucionais encerram a neutralização da ditadura da maioria que

outrora existiu, afastando do cenário nacional tal óptica hegemônica e, portanto,

totalitária, garantindo a representatividade dos diversos segmentos sociais, dando ênfase

às minorias. Todos têm igual direito em se associar livremente, formando um partido

fundado em um determinado ideal político.

• Com as regras da cláusula de barreira, estar-se-ia restringindo o

financiamento desses partidos e suas possibilidades de propagarem seus ideais, de forma

tão desproporcional que os levariam a extinção, impossibilitando, também, o

surgimento de novos partidos.

• Menciona-se a importância de se observar o princípio da

proporcionalidade, escolhendo para o caso a interpretação que menos restrinja os

demais princípios constitucionais.

• Com relação à interpretação que deve ser dada ao art. 17, inciso IV da CF,

entenderam que a expressão “na forma da lei” não pode ser compreendida como uma

liberdade absoluta para o legislador ordinário dispor livremente sobre a representação

parlamentar, esvaziando os princípios constitucionais.

São discutidos, em alguns momentos da decisão, outros assuntos correlatos tais

como a necessidade de se respeitar a fidelidade partidária, que deveria ter como

conseqüência natural a perda de mandato em caso de desfiliação por motivos não

relevantes, e da enorme necessidade da realização de uma reforma política em nosso país

tendo em vista a crise estrutural de nosso sistema político e os recentes escândalos

amplamente veiculados pela mídia.

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260

O Ministro Gilmar Ferreira Mendes menciona, ainda, dois precedentes relativos

ao caso, um do Tribunal Superior Eleitoral278, que teve a oportunidade de discutir a

aplicação do principio da igualdade de chances em 1986, e na ocasião, por quatro votos

a três, decidiu que não se aplicava o princípio ao caso (decisão muito fértil de

discussões, porém lamentada por ele); e outro relativo à decisão do próprio Supremo

Tribunal Federal279, do ano de 1981, que decidiu que a infidelidade partidária não teria

repercussão sobre o mandato exercido pelo representante eleito.

Em síntese, no caso sob exame, decidiu-se por unanimidade sobre a

inconstitucionalidade da cláusula de barreira, que ofenderia diversos princípios

constitucionais e impediria o crescimento dos pequenos partidos, levando-os até mesmo

à “morte”.

2.3. O caso da fidelidade partidária

A Constituição de 1967 passou a disciplinar a fidelidade partidária com a

Emenda nº 01/69, que, em seu artigo 152, parágrafo único (que, com alteração de

redação, passou a parágrafo 5º desse mesmo dispositivo por força da Emenda

Constitucional nº 11/78), estabelecia que o deputado que deixasse o partido sob cuja

legenda fora eleito, perderia o mandato. Essa perda era decretada pela Justiça Eleitoral,

em processo contencioso no qual era assegurada a ampla defesa e, em seguida, declarada

pela mesa da Câmara dos Deputados. Com a EC nº 25/85, deixou de existir esse

princípio e a atual Constituição também não o adotou em seu texto, ficando sem

previsão constitucional a fidelidade partidária, o que tem permitido a livre mudança de

partido pelos parlamentares, sem a perda do mandato.

O debate político e judicial sobre a fidelidade partidária ganhou relevo quando o

Partido da Frente Liberal (PFL), hoje Democratas (DEM), formulou ao Tribunal

Superior Eleitoral a consulta nº 1.398/DF280, indagando se os partidos e coligações têm o

direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver

pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um

partido para outra legenda.

278 MS nº. 754 (TSE), Relator Min. Roberto Rosas, DJ 11.04.1990; MS nº. 746 (TSE), Relator Min. Roberto Rosas, DJ 11.04.1990; RMS nº. 785, Relator Min. Aldir Passarinho, DJ 02.10.1987. 279 MS nº 20.297, Relator Min. Moreira Alves, julgado em 18.12.1981; Acórdão – TSE nº. 11.075, Relator Min. Célio de Oliveira Borja, DJ 15.05.1990. 280 Demais consultas sobre o caso: TSE - CTA 1439; CTA 1403; CTA 1407; CTA 1416; CTA 1440; CTA 1408.

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261

Em julgamento realizado em março de 2007, o TSE entendeu por maioria de seis

contra um, que os partidos tinham sim o direito de preservar as vagas, pois o mandato

pertenceria ao partido e não ao candidato. As consultas não têm caráter vinculante,

podendo servir, no entanto, de suporte para as razões do julgador.

Em maio de 2007, três partidos políticos impetraram mandados de segurança no

STF (MS 26.602, 26.603 e 26.604) em face de ato do Presidente da Câmara dos

Deputados que indeferiu o requerimento por eles formulado para que fosse declarada a

vacância dos mandatos exercidos por deputados federais que se desfiliaram das

agremiações partidárias, sob o fundamento de não figurar a hipótese de mudança de

filiação partidária entre aquelas expressamente previstas no § 1º do art. 239 do

Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Nas decisões analisadas, as linhas gerais

dos votos contêm os seguintes entendimentos:

Reconhecimento de uma “partidocracia”, sendo, os partidos, essenciais ao

funcionamento da democracia281. A vinculação entre o candidato e o partido é inerente

ao próprio sistema representativo proporcional adotado por nosso ordenamento, sendo o

partido um ente intermediário entre o povo e o Estado. Fala-se também em “fidelidade

ao eleitor”.

Aplicação imediata dos princípios constitucionais, fundamentada no voto do

Ministro César Asfor Rocha na consulta feita ao TSE, baseada numa superação da

“velha hermenêutica282”. Defende-se, também, que a interpretação do direito deve ser

sempre sistemática, pois vários textos combinados exprimem diferentes normas. As

normas não encerram em si mesmas todas as soluções do direito, devendo o intérprete

combinar normas e extrair todo seu significado.

Menção que César Asfor Rocha faz sobre o princípio da moralidade, contido

no art. 37, caput, da CF de 1988. Para ele, a desfiliação e o uso do mandato como se

fosse patrimônio seu, seria um ato imoral. O mesmo ministro, também afirma que as

Cortes de Justiça têm um papel importante na tarefa de contribuir para o conhecimento

dos aspectos axiológicos do direito283.

Dicotomia entre o Direito Público e o Direito Privado. É ressaltada a função

pública do mandato, não devendo prevalecer o interesse particular do candidato. No

281 Destaque para o voto do Ministro Cezar Asfor Rocha dizendo que “ao seu sentir” a mandato pertenceria ao partido. 282 Classificação dada pelo Professor Paulo Bonavides. (Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Malheiros, 2000). 283 Sobre o voto do Min. César Asfor Rocha, confira a seção sobre neoconstitucionalismo, minimalismo e democracia neste relatório, p. 29.

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262

regime do Direito Público, tudo o que a lei não permite considera-se que implicitamente

é ilícito (a lei não permite que o candidato se aproprie do mandato ou que este lhe

pertença).

A perda do mandato por desfiliação não tem a natureza de sanção284, pois a

mudança de partido não é ato ilícito. Os ministros entendem que o art.55 da CF/1988

estabelece as sanções de perda de mandato em rol taxativo somente para os atos ilícitos

(devendo, nestas hipóteses, respeitar o princípio da legalidade). No entanto, a troca de

partido é ato lícito e tem a perda do mandato como conseqüência lógica e natural,

decorrente do reconhecimento de inexistência de direito subjetivo autônomo ou de

expectativa de direito autônomo à manutenção pessoal do cargo (perda da legitimidade

para ser representante). Consolidam-se como exceções à perda do mandato pelo

candidato, a mudança significativa de orientação programática pelo partido e os casos de

perseguição ao candidato, visando, assim, respeitar o voto do eleitor.

Decidiu-se que o candidato “infiel” tem direito ao devido processo legal,

exercendo ampla defesa em processo perante órgão competente da Justiça Eleitoral,

para que seja decidido se é caso ou não de perda do mandato. Além disso, em

observância ao princípio da segurança jurídica, os ministros fixaram o dia 27 de

março de 2007, data do julgamento da consulta nº 1.398 pelo TSE, como data para o

início da vigência do princípio da fidelidade partidária.

Na decisão da consulta, pode-se observar a prevalência dada pelos ministros aos

princípios constitucionais ao tentarem interpretar as normas em coerência com estes.

Todavia, em alguns momentos, eles chegam a desvirtuar alguns conceitos tradicionais de

institutos jurídicos para conseguir chegar, assim, à decisão desejada.

Alguns ministros (Celso de Mello e Carmem Lúcia, por exemplo) levaram em

consideração, também, a realidade cotidiana do sistema político brasileiro, analisando

dados e situações fáticas que vêm ocorrendo em nossa sociedade, como o “troca-troca”

que tem atendido muito mais a interesses particulares, a falta de congruência entre os

ideais partidários e a plataforma política do candidato e, ainda, os escândalos

recentemente ocorridos no Poder Legislativo. O Poder Judiciário, diante do descrédito

popular em relação ao Legislativo e da suposta omissão deste, sente-se legitimado a

atuar como ator político fundamental, estabelecendo regras na vida política brasileira e

interferindo em competências que são originariamente do Poder Legislativo, ao ditar as

284 Confira o item 3.3.3. sobre a análise dos elementos da decisão, p. 42.

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263

regras do “jogo político” de acordo com o que eles julgam ser a “melhor” interpretação

da Constituição. No entanto, durante o julgamento, eles próprios afastaram a alegação de

que o STF estaria usurpando atribuições do Congresso Nacional, ao sustentarem que

competiria ao STF, guardião da Constituição, interpretá-la e, de seu texto, extrair a

máxima eficácia possível.

2.4. Quadro das decisões do STF sobre a questão partidária (2002 - 2007)

Como sugere a metodologia analítica já exposta no documento-base do Grupo 5

(UFRJ), um trabalho consistente de pesquisa não deve limitar-se apenas ao caso difícil

ou à decisão em si. Deve, também, estar atento aos contextos político, histórico e

normativo concernentes à questão, além de seguir linhas bem delimitadas de estudo ao

estabelecer os rumos, os objetivos e a linha investigativa do trabalho. Para uma

investigação mais aprofundada sobre o caso difícil da fidelidade partidária (MS nº

26602, 26603 e 26604 – STF), destacamos no quadro a seguir algumas variáveis

consideradas fundamentais, sistematizando dentro de um corte temporal285 a postura dos

julgados do STF a respeito da temática partidária. Explicitam, assim, as linhas

estruturais de nossa análise e sobre as quais debruçaremos os nossos estudos futuros. O

quadro elaborado para atingir esses objetivos fundamenta-se em variáveis de caráter

interpretativo (princípios), parâmetros articulados com a Teoria do Direito (a questão

normativa) e, dentro dos objetivos do Projeto Dossiê Justiça, contempla o aspecto

político com destaque para a judicialização e o acesso à justiça.

285 De acordo com os casos utilizados como base de análise do comportamento do STF neste relatório.

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264

VARIÁVEIS VERTICALIZAÇÃO CLÁUSULA DE

BARREIRA

FIDELIDADE

PARTIDÁRIA

VIA JUDICIAL • ADI 2626 e ADI

3685

• ADI 1351

• ADI 1354

• MS 26602,

26603 e

26604

PRINCÍPIOS

• Anualidade

• Segurança

Jurídica

• Autonomia

Partidária

• Reserva Legal

• Razoabilidade e

Proporcionalidade

• Reserva

Constitucional de

Competências

• Devido Processo

Legal

• Igualdade de

chances

(isonomia)

• Pluripartidarismo

• Proporcionalidade

• Moralidade

• Segurança

jurídica

• Ampla defesa

• Legalidade

NATUREZA DAS

NORMAS

• 2002:

Interpretação de

lei pelo TSE é

levada ao STF por

aparente conflito

com princípios

constitucionais.

• 2006: EC que

visava contornar a

interpretação de

2002 do TSE é

• Lei infra-

constitucional

incompatível

com os

princípios

constitucionais

• Interpretação de

normas

constitucionais

• Ausência de

regulação

expressa

• Interpretação

de princípios

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265

levada ao STF por

entrar em conflito

com princípios

constitucionais.

JUDICIALIZAÇÃO

DA POLÍTICA

• Neste caso, em

respeito à decisão

do TSE, o STF

sequer analisa o

mérito

• Discussão sobre

as regras do

sistema político

• Estabelece

regras do jogo

democrático

• Interfere na

esfera de

competência

do Poder

Legislativo

ACESSO À

JUSTIÇA

• Excesso de

formalismo na

ADI 2626 impede

a análise de

mérito

• Assegura o

direito das

minorias

• Defesa da

igualdade

• Prevalência dos

princípios

constitucionais

• Discute a

fidelidade ao

voto do eleitor

3. ANÁLISE DO CASO DIFÍCIL DA FIDELIDADE PARTIDÁRIA

3.1. A judicialização da política e o ativismo judicial

A expansão do protagonismo político dos tribunais nas democracias

contemporâneas, ao menos no ocidente, constitui um fenômeno que caracteriza este

início de século. “Revoluções constitucionais” vêm sacudindo, inclusive, os últimos

bastiões da democracia majoritária, tais como os sistemas políticos da África do Sul,

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266

Canadá, Israel e Nova Zelândia286. Inúmeros são os fatores apontados pelos cientistas

políticos, sociólogos e juristas, responsáveis pela ampliação e consolidação deste

processo. Ernani Rodrigues de Carvalho, por exemplo, elenca seis condições para o

surgimento e consolidação da judicialização da política: a existência de um sistema

político democrático, a separação dos poderes, o exercício dos direitos políticos, o uso

dos tribunais pelos grupos de interesse, o uso dos tribunais pela oposição e, por último, a

inefetividade das instituições majoritárias287. Todos esses fatores, em maior ou menor

intensidade, encontram-se presentes nos sistemas político e jurídico brasileiros. De

acordo com José Eisenberg, a judicialização da política é um processo complexo

composto por dois movimentos distintos:

“(1.) refere-se a um processo de expansão dos poderes de legislar e executar

leis do sistema judiciário, representando uma transferência do poder

decisório do Poder Executivo e do Poder Legislativo para os juízes e

tribunais – isto é, uma politização do judiciário; (2.) a disseminação de

métodos de tomada de decisão típicos do Poder Judiciário nos outros

Poderes. Em nosso juízo, este segundo movimento é mais bem descrito como

uma “tribunalização” da política, em oposição à judicialização representada

pelo primeiro movimento”288.

Ran Hirschl define esse processo como “juristocracia” (juristocracy), ou seja,

como a progressiva transferência de poderes decisórios das instituições representativas

para o Judiciário289. Este fenômeno é acompanhado e alimentado por uma mudança na

ideologia jurídica, consistente em uma crítica crescentemente realizada pelas principais

elites políticas, jurídicas e econômicas à premissa majoritária que define a democracia

em sua dimensão popular. Hirschl assume uma metodologia de análise que procura

afastar o tema em questão dos debates normativos usuais neste campo de investigação,

procurando estudar as origens e conseqüências das “revoluções constitucionais”, isto é,

da consolidação do novo constitucionalismo (new constitutionalism) em diferentes

sociedades.

Neste sentido, o autor enumera três postulados responsáveis pela orientação

metodológica de sua abordagem sobre o tema da judicialização da política. As premissas 286 Cf. HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2004. 287 CARVALHO, Ernani Rodrigues de. Em busca da judicialização da política no Brasil: apontamentos para uma nova abordagem. In: Revista de Sociologia Política, p. 117-120. 288 EISENBERG, José. Pragmatismo, direito reflexivo e judicialização da política. In: VIANNA, Luiz Werneck (Org.). A democracia e os três poderes no Brasil, p. 47. 289 HIRSCHL, op. Cit., p. 01.

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267

descritas a seguir também constituirão importantes guias metodológicos para as futuras

análises que serão empreendidas pelo Observatório da Justiça Brasileira sobre a

necessidade, o design e o impacto dos projetos de reformas institucionais em diferentes

áreas dos sistemas jurídico e judiciário. As futuras investigações do OJB, para além da

dimensão de justificação normativa, devem também levar em consideração os efeitos

distributivos de diferentes ordens inseridos em uma opção por um determinado modelo

institucional em detrimento de outros.

Deste modo, o primeiro postulado metodológico afirma que a transferência

progressiva de poderes do Legislativo para o Judiciário, assim como para outras

instâncias administrativas de decisão cujos representantes não são eleitos

democraticamente – agências administrativas independentes ou agências reguladoras,

por exemplo – não pode ser estudada separadamente das lutas políticas, econômicas e

sociais que modelam o sistema jurídico-político de uma sociedade. Em segundo lugar, as

instituições políticas e jurídicas promovem efeitos distributivos diferenciados, isto é:

elas tendem, inevitavelmente, a privilegiar mais alguns grupos e indivíduos do que

outros. Por último, em regra, os diferentes atores políticos, econômicos e jurídicos

tendem a agir estrategicamente no sentido de apoiar a consolidação de estruturas

institucionais que beneficiarão na maior medida possível os seus próprios interesses

particulares ou corporativos290.

Essas premissas metodológicas deslocam a análise da judicialização da política,

em especial as suas origens e conseqüências, de um debate puramente normativo para

uma abordagem institucional, enriquecendo a interpretação dessa temática. Tais

postulados ampliam o escopo da análise de tal modo a vislumbrar os interesses

corporativos ou particulares inscritos em uma opção por um arranjo legal-institucional

mais ou menos favorável à “juristocracia”. A hipótese explicativa desenvolvida pelo

autor consiste na tese da preservação hegemônica (hegemonic preservation thesis).

Segundo Hirschl:

“O poder judicial não cai do céu; ele é politicamente construído. Acredito que a

constitucionalização dos direitos e o fortalecimento do controle de constitucionalidade

das leis resultam de um pacto estratégico liderado por elites políticas hegemônicas

continuamente ameaçadas, que buscam isolar suas preferências políticas contra

290 Cf. HIRSCHL, op. Cit., p. 38 et seq.

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268

mudanças em razão da política democrática, em associação com elites econômicas e

jurídicas que possuem interesses compatíveis”291.

A abordagem realista e estratégica do fenômeno da judicialização da política

permite afirmar que a progressiva transferência de poderes para o Judiciário nas

democracias contemporâneas “serve aos interesses de uma Suprema Corte que procura

ressaltar sua influência política”292. Segundo Alec Stone Sweet, há um interesse

institucional dos tribunais em “resolver conflitos legislativos sobre constitucionalidade,

mantendo e reforçando, ao mesmo tempo, a legitimidade política da revisão

constitucional para o futuro293”. Para o autor, a judicialização da política constitui uma

tendência de difusão das técnicas de argumentação e aplicação das normas típicas do

Direito Constitucional em outros poderes, ou seja:

“o processo pelo qual os legisladores absorvem as normas de conduta da

adjudicação constitucional, a gramática e o vocabulário do Direito Constitucional (...).

Em uma política judicializada, o discurso legal é responsável pela mediação entre o

debate partidário e as estruturas de exercício do poder legislativo”294.

Além disso, a judicialização promove o “entrincheiramento constitucional de

direitos295” e, neste sentido, tanto o Executivo quanto o próprio Poder Legislativo

podem, mediante o apoio a esta estratégia de transferência de poderes, retirar temas

controvertidos do debate público, onde dificilmente seriam decididos, seja porque não há

consenso possível, seja porque não foram suficientemente debatidos296. As premissas

metodológicas estudadas constituem importantes instrumentos analíticos para a

investigação da visibilidade conferida ao Poder Judiciário, particularmente às decisões

dos ministros do Supremo Tribunal Federal, assim como das conseqüências de tal

protagonismo na mobilização e participação da sociedade civil.

Uma relevante linha de pesquisa que merecerá ser desenvolvida no âmbito das

investigações acadêmicas do futuro Observatório da Justiça Brasileira, consistirá no

estudo do impacto da concentração de decisões politicamente controversas nas

291 Idem, p. 49. 292 Idem, p. 49 293 SWEET, Alec Stone. Governing with judges: constitutional politics in Europe, p. 199-200. 294 Id., ibid., p. 203. 295 Idem, p. 44. 296 Idem, p. 39. Uma terceira hipótese para a transferência deliberada e estratégica de uma decisão para o Poder Judiciário, evitando que o Poder Legislativo ou o Poder Executivo tenha que tomá-la, consiste no menor custo político de tal decisão controversa para o governo ou a oposição quando a mesma é prolatada pelos tribunais.

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269

estratégias de organização e atuação do Legislativo e de mobilização da sociedade civil

e, neste sentido, em relação ao próprio tema da democratização do acesso à justiça. Em

que medida tal concentração decisória estimula ou desencoraja a crítica, tematização,

inovação e a proposição de mudanças institucionais deliberadas democraticamente?

Outro tema intimamente relacionado com a questão da judicialização da política

é o do ativismo judicial. Durante o relatório utilizaremos uma definição normativamente

inerte de “ativismo judicial”. A prática jurídica mostra que magistrados ativistas podem

tanto adotar um posicionamento progressista quanto uma decisão conservadora. Ao

mesmo tempo, não é possível afirmar, de antemão, que uma atitude ativista seja sempre

a atitude correta ou incorreta diante de todos os casos jurídicos possíveis.

Neste sentido, o ativismo judicial será medido pela freqüência com que um

determinado magistrado ou tribunal invalida as ações (normas e atos normativos) de

outros poderes de Estado, especialmente do Poder Legislativo297. Ou seja, com que

freqüência os tribunais “retiram a decisão das mãos dos eleitores298”. Além disso,

também será considerado ativista o magistrado ou tribunal que procura suprir omissões

(reais ou aparentes) dos demais poderes299 com suas decisões, por exemplo, no tocante à

definição ou concretização de políticas públicas ou regulamentação das regras do jogo

democrático.

Os dois conceitos, judicialização da política e ativismo judicial, revelam-se

fundamentais para a análise das recentes decisões do STF nos hard cases da

verticalização das coligações partidárias, da cláusula de barreira e da fidelidade

partidária. Além disso, ambos constituem importantes ferramentas analíticas para a

atuação do Observatório da Justiça Brasileira na qualidade de órgão de assessoramento

acadêmico, crítico e independente, responsável pela formulação e proposição de

inovações institucionais no sentido de uma ampliação democrática do acesso à justiça no

Brasil.

3.2. Neoconstitucionalismo, minimalismo e democracia

297 Cf. SUNSTEIN, Cass. Radicals in robes: why extreme right-wing Courts are wrong for America, p. 41-44. 298 Id., ibid., p. 43. 299 Essa definição é mais adequada, por exemplo, para a análise do caso da fidelidade partidária (MS nº 26602, 26603 e 26604 – STF), que será estudado adiante. Por outro lado, a definição imediatamente anterior revela-se mais adequada para a análise do caso da cláusula de barreira (ADIS 1351 e 1354), no qual o STF decidiu pela inconstitucionalidade de inúmeros dispositivos da Lei 9.906/95 (Lei dos Partidos Políticos).

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270

O neoconstitucionalismo é mencionado pela doutrina jurídica em diferentes

sentidos. Não há um acordo sobre uma versão “standard” do neoconstitucionalismo na

atualidade. Em regra, o vocábulo é utilizado como um sinônimo para o

constitucionalismo contemporâneo, constitucionalismo principialista, novo direito

constitucional ou constitucionalismo do segundo pós-guerra. De acordo com Prieto

Sanchís, o neoconstitucionalismo pode caracterizar uma concepção renovada sobre o

Estado de Direito, uma proposta de reformulação da teoria jurídica, uma ideologia

política aplicada ao Direito ou, ainda, em um sentido muito amplo, uma filosofia jurídica

que estuda questões conceituais e metodológicas sobre a definição do Direito, o estatuto

do conhecimento e a função do jurista.300

O debate sobre o neoconstitucionalismo, originário dos meios doutrinários

italiano e espanhol, vem encontrando recentemente intensa difusão no Brasil. No

entanto, essa difusão, própria dos neologismos, ainda não alcançou a prática do STF,

pois, até o presente momento, esse vocábulo ainda não foi citado em seus julgados. Em

muitos casos, o neoconstitucionalismo é utilizado para denominar fenômenos que não

são tão recentes em nosso sistema jurídico como, por exemplo, o processo de

constitucionalização do direito e a força normativa da Constituição. De um modo geral,

o conceito vem sendo utilizado pela doutrina para destacar as transformações

metodológicas, teóricas e ideológicas ocorridas no âmbito do Direito Constitucional,

especialmente nos países ibéricos e latino-americanos, no período histórico posterior ao

término da segunda guerra mundial. Segundo esta perspectiva teórica, tais

transformações não tiveram lugar apenas na dimensão histórico-positiva de inúmeros

ordenamentos jurídicos nacionais, repercutindo, também, sobre o estilo e os

pressupostos metodológicos e filosóficos assumidos por parte da doutrina jurídica em

suas reflexões sobre os direitos fundamentais, a democracia e a legitimação do texto

constitucional.

O neoconstitucionalismo possui um duplo significado em regra olvidado pela

doutrina: em uma primeira acepção, tal expressão destaca alguns elementos estruturais

dos sistemas jurídico-constitucionais típicos do período histórico posterior ao término da

segunda grande guerra, que são descritos pelo neoconstitucionalismo enquanto uma

nova teoria geral atenta para as transformações empíricas decorrentes do fato da

constitucionalização do ordenamento jurídico.

300 SANCHÍS, Luis Prieto. Justicia constitucional y derechos fundamentales, p. 101-102.

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271

Em segundo lugar, o neoconstitucionalismo designa, à semelhança da tradicional

classificação do positivismo jurídico elaborada por Norberto Bobbio301, (a) um método

de análise do direito, (b) uma teoria do direito e (c) uma ideologia do direito. Neste

sentido, o neoconstitucionalismo em sua dimensão prescritiva refere-se, sobretudo, aos

itens (a) e (c), ou seja, propõe uma metodologia e uma ideologia do direito que

constituem uma crítica ao positivismo jurídico.

Riccardo Guastini cuidou de abordar descritivamente o fenômeno de

constitucionalização do ordenamento jurídico, definindo-o como “um processo de

transformação de um ordenamento ao término do qual o ordenamento em questão resulta

totalmente ‘impregnado’ pelas normas constitucionais”302. Um sistema jurídico

constitucionalizado caracteriza-se pela existência de uma Constituição “invasora”, capaz

de condicionar tanto a legislação quanto a jurisprudência e a doutrina, assim como o

conjunto das relações sociais que tem lugar em uma determinada comunidade jurídica. O

ordenamento jurídico encontra-se, segundo tal definição, “impregnado” pela eficácia

irradiante das normas constitucionais que atinge os diferentes ramos do Direito, sejam

eles de direito público ou de direito privado. Embora centrado no estudo do caso

constitucional italiano, suas conclusões são igualmente pertinentes para a análise do

fenômeno no Brasil.

O fenômeno de “constitucionalização do direito” é, por sua vez, gradativo, no

sentido de que a implementação parcial ou integral das condições necessárias para a sua

realização dá-se segundo um processo histórico que pode ser mais ou menos longo e

cambiante consoante o sistema jurídico estudado. Neste sentido, o

neoconstitucionalismo trabalha com as seguintes teses:

(1) a existência de uma Constituição rígida, cujo procedimento de revisão

constitucional exija um quorum qualificado para modificar ou revogar normas

constitucionais. A Constituição pode eventualmente conter cláusulas dotadas de

intangibilidade (ou cláusulas superconstitucionais) frente às deliberações do poder

constituinte reformador, constituindo uma espécie de super-rigidez constitucional,

normalmente para assegurar a inderrogabilidade de certos direitos e garantias

fundamentais e dos princípios estruturais do Estado Democrático de Direito303;

301 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, p. 131-134. 302 GUASTINI, Riccardo. La constitucionalización del ordenamiento jurídico: el caso italiano. In: CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s), p. 49. 303 Confira, neste sentido, o importante livro: VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma, p. 222 et seq.

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272

(2) a existência de uma garantia jurisdicional da Constituição mediante a

previsão de alguma modalidade (ou de várias) de controle de constitucionalidade das

leis;

(3) o compartilhamento pela comunidade jurídica da tese da força normativa da

Constituição, que defende a idéia de que toda norma constitucional é norma jurídica,

imperativa e, portanto, suscetível de produzir alguma modalidade de efeito jurídico. Esta

condição diz respeito à ideologia difundida na cultura jurídica de um determinado país,

não guardando relação com a estrutura do ordenamento jurídico. A Constituição é vista

como um documento jurídico, dotado de efetividade e, conseqüentemente, incompatível

com a vetusta idéia – típica do constitucionalismo europeu anterior ao término da

segunda grande guerra – de que suas normas não constituem mais do que um “manifesto

político”, cuja concretização constituiria uma tarefa deixada ao julgamento de

conveniência e oportunidade do legislador ordinário;

(4) a idéia de “sobreinterpretação” do texto constitucional: uma Constituição é

“sobreinterpretada” quando, após a interpretação de seus dispositivos, não há espaços

vazios, isto é, livres de regulação pelo Direito Constitucional. As normas constitucionais

condicionam a interpretação de todas as normas jurídicas. Neste sentido, é comum

afirmar que toda interpretação jurídica é, direta ou indiretamente, interpretação

constitucional. Em síntese, as normas constitucionais passaram a constituir um “filtro”

ou “lente” através do qual todas as normas jurídicas devem ser interpretadas. A

Constituição condiciona, tanto negativa quanto positivamente, o espaço de liberdade de

conformação do legislador ordinário;

(5) a aplicação direta das normas constitucionais. Esta condição encontra-se

intimamente relacionada com a idéia de força normativa da Constituição. Toda norma

constitucional é norma jurídica e, portanto, dotada de imperatividade e suscetível de

produzir, em diferentes graus, efeitos jurídicos imediatos;

(6) a interpretação das leis conforme a Constituição, enquanto uma técnica de

interpretação das leis à luz das normas constitucionais com o objetivo de manter-lhes a

validade jurídica;

(7) a influência da Constituição sobre as relações políticas. Esta condição cuida

do fenômeno da judicialização da política, segundo o qual conflitos de natureza

eminentemente política ou envolvendo temas morais profundamente controversos,

bastante freqüentes em sociedades democráticas, passam a ser resolvidos pelo Poder

Judiciário com fundamento em normas constitucionais de conteúdo principiológico.

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273

Apesar de o neoconstitucionalismo não ter sido citado expressamente nas

decisões analisadas por este relatório, as suas teses principais integram, sem dúvida, a

autocompreensão da maioria dos ministros do STF e do TSE sobre a atuação destes

tribunais no hard case da fidelidade partidária. Começaremos, então, pela análise da

Resolução nº 22.526 adotada pelo TSE a partir da Consulta nº 1.398 formulada pelo

Partido da Frente Liberal (PFL), atualmente Democratas, com a seguinte indagação

dirigida ao tribunal:

“Os partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo

sistema eleitora proporcional, quando houver pedido de cancelamento de

filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra

legenda?”304

O voto do relator do caso em tela, o Min. César Asfor Rocha, é bastante

representativo das teses supramencionadas, ao afirmar, acerca da aplicabilidade imediata

dos princípios constitucionais, que “tem-se, hoje em dia, como pertencente ao passado, a

visão que isolava os princípios constitucionais da solução dos casos concretos”305. Mais

adiante, assevera que “o tempo presente é o da afirmação da prevalência dos princípios

constitucionais sobre as normas de organização dos Partidos Políticos”306 e, com uma

linguagem excessivamente axiológica, destaca em sua conclusão:

“Outro ponto relevante que importa frisar é o papel das Cortes de Justiça no

desenvolvimento da tarefa de contribuir para o conhecimento dos aspectos

axiológicos do Direito, abandonando-se a visão positivista tradicional,

certamente equivocada, de só considerar dotadas de força normativa as

regulações normatizadas; essa visão, ainda tão arraigada entre nós, deixa de

apreender os sentidos finalísticos do Direito e, de certo modo, desterra a

legitimidade da reflexão judicial para a formação do pensamento jurídico”307.

O Min. César Asfor Rocha justifica o seu voto vencedor, no sentido da

possibilidade de perda de mandato em caso de troca injustificada de partido político pelo

representante eleito, com apoio em uma interpretação extensiva do princípio da

moralidade em um sentido menos usual, e mais ambicioso, do que aquele

tradicionalmente atribuído ao art. 37, caput, da CF:

304 Resolução nº 22.526 (TSE), p. 02, disponível em <www.tse.gov.br>. 305 Idem, p. 04, disponível em <www.tse.gov.br>. 306 Idem, p. 07, disponível em <www.tse.gov.br>. 307 Idem, p. 09, disponível em <www.tse.gov.br>.

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274

“o princípio da moralidade (...) inserido solenemente no art. 37 da Carta

Magna, repudia de forma veemente o uso de qualquer prerrogativa pública,

no interesse particular ou privado, não tendo relevo algum afirmar que não se

detecta a existência de norma proibitiva de tal prática”308

“(...) Não tenho dificuldade em perceber que razões de ordem jurídica e,

sobretudo, razões de ordem moral, inquinam a higidez dessa movimentação,

a que a Justiça Eleitoral não pode dar abono, se instada a se manifestar a

respeito da legitimidade de absorção do mandato eletivo por outra corrente

partidária, que não recebeu sufrágios populares para o preenchimento

daquela vaga.”309

A moralização da decisão, uma das conseqüências da adoção do

neoconstitucionalismo em sua versão “expansionista”, com a aplicação imediata de

princípios com forte carga axiológica e, também, excessivamente indeterminados,

constitui uma característica da argumentação empreendida pelo Min. César Asfor Rocha

em seu voto. No presente caso, o Tribunal decidiu por maioria, restando apenas um

ministro vencido, o Min. Marcelo Ribeiro, que adotou um posicionamento mais

formalista310. O Min. Marcelo Ribeiro, em seu voto, procurou também adotar uma

postura minimalista311, isto é, evitando entrar em considerações profundas, extremamente

abstratas e controversas sobre quais valores ou, mais especificamente, quais normas

jurídicas, podem ser extraídos argumentativamente do princípio democrático, da

moralidade administrativa e da proporcionalidade do sistema eleitoral. O voto do Min.

Marcelo Ribeiro é bem menos ambicioso do que o posicionamento dos ministros

vencedores.

308 Idem, p. 05, disponível em <www.tse.gov.br>. 309 Idem, p. 06, disponível em <www.tse.gov.br>. 310 O formalismo será analisado de modo detalhado na seção 3.3.1. (Formalismo), p. 278 do presente relatório sobre a interpretação e decisão do caso difícil da fidelidade partidária. 311 O minimalismo é aqui utilizado segundo o significado atribuído por Cass Sunstein em sua obra: SUNSTEIN, Cass. One case at time: judicial minimalism on the Supreme Court, p. 03-23. Os minimalistas decidem cada caso de uma vez, evitando formular regras muito gerais para a orientação de casos futuros. São céticos sobre as tentativas de construção de grandes teorias acerca da interpretação jurídica. Suas decisões não são fundacionalistas, evitam entrar em questões profundamente controversas, isto é, em temas ou debates de larga escala, deixando-os em aberto (leaving things undecided, nas palavras do autor). Neste sentido, os minimalistas assumem uma postura restritiva com relação ao exercício do “poder judicial”. Sobre o minimalismo, confira também: SUNSTEIN, Cass. Testing minimalism: a reply. Michigan Law Review, n. 104, I, p. 123-129, 2005.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

275

Em regra, os ministros vencedores pretenderam, de um modo perfeccionista312,

construir grandes interpretações sobre a democracia, o mandato representativo, a

moralidade na função pública, extraindo dessas considerações algumas orientações

gerais para a atuação dos atores políticos no futuro313. Assumido uma postura bem menos

ambiciosa, o Min. Marcelo Ribeiro sintetiza que “não há norma na Constituição, nem em

lei infraconstitucional, que diga que aquele que mudar de partido perderá o mandato314”.

Em seguida, há um debate entre os Ministros Marco Aurélio e Marcelo Ribeiro que

ilustra bem as diferentes pretensões hermenêuticas do neoconstitucionalismo e do

minimalismo. O Min. Marco Aurélio questiona: “E precisaria de uma norma diante dos

princípios consagrados pela Constituição Federal? Seria acaciano315”. Em seguida, o Min.

Marcelo Ribeiro ratifica o seu posicionamento:

“Não me parece haver espaço para invocar princípios implícitos quando a

matéria foi tratada expressamente na Constituição anterior e a alusão à perda

de mandato, de modo claro, foi retirada da atual Constituição. Parece-me,

com a devida, vênia, que o constituinte não quis que essa hipótese, de

mudança de partido pelo parlamentar eleito, acarretasse a perda do

mandato”.316.

Continuando em sua postura minimalista, o ministro vencido procura separar as

razões éticas ou morais que sustentam a plausibilidade da tese da fidelidade partidária,

com as quais concorda, das razões jurídico-positivas que poderiam autorizar semelhante

conclusão com apoio em nosso texto constitucional. Segundo o magistrado, tais razões

normativas não existem em nosso direito positivo.

Segundo Cass Sunstein, há boas razões para o minimalismo judicial nos casos

difíceis. Em primeiro lugar, os juízes não são eleitos pelo voto popular. Em segundo

lugar, os magistrados não possuem uma particular expertise em teoria ética, moral ou

política. Por último, eles não possuem também suficiente conhecimento técnico para

312 O perfeccionismo propõe-se interpretar o texto constitucional a partir de questões profundas, controvertidas na sociedade, buscando fazer da Constituição o melhor que ela pode ser ou, ao menos, aquilo que o intérprete julgue ser a “melhor luz” sobre o problema em questão. Cf. SUNSTEIN, Cass. Radicals in robes: why extreme right-wing Courts are wrong for America, p. 31 et seq. 313 Esta afirmação é válida para a argumentação dos ministros vencedores no TSE e também no STF. 314 Resolução nº 22.526 (TSE), p. 55, disponível em <www.tse.gov.br>. 315 Idem, p. 55, disponível em <www.tse.gov.br>. 316 Idem, p. 60-61, disponível em <www.tse.gov.br>.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

276

prever as principais conseqüências de suas decisões, especialmente nos planos político e

econômico317.

Nos julgamentos dos Mandados de Segurança 26602, 26603 e 26604 (STF),

posicionamento semelhante será adotado pelo parecer do Procurador-Geral da República

e pelo Min. Eros Roberto Grau, ambos com estratégias de argumentação, ao mesmo

tempo, minimalistas e formalistas318.

Os trechos dos votos comentados anteriormente nos auxiliam na compreensão

das tensões entre o neoconstitucionalismo e a democracia, outro ponto importante que

merece ser explorado nesta seção do relatório. Juan Antonio García Amado, em diversos

ensaios, elabora uma contundente crítica ao neoconstitucionalismo, em particular às

teses da “onipresença da Constituição”, seu caráter excessivamente principialista, sua

pretensão desmedida de conformação do mundo político, além do protagonismo

exacerbado que é habitualmente conferido ao Poder Judiciário pela teoria jurídica com

apoio na metodologia da ponderação.319 Para García Amado, o neoconstitucionalismo

“tem como transfundo político a crescente desconfiança frente ao legislador parlamentar

e a correlativa fé nas virtudes taumatúrgicas da magistratura320”. Em sua crítica, o autor

chama a atenção para os perigos de uma versão inflacionada do neoconstitucionalismo

que acabaria por comprometer o pluralismo e a liberdade do legislador ordinário

responsáveis pela definição do campo da disputa política nas democracias

contemporâneas:

“O Direito e, especialmente, a Constituição, delimita o território da política,

definindo limites infranqueáveis para aquilo que seja politicamente possível.

Porque se não há âmbitos de livre configuração e, portanto, imunes à

correção por parte dos órgãos judiciais, não restará espaço para uma

sociedade que exerça a política, passando todos a serem súditos do supremo

órgão político e não democrático, a magistratura”321.

García Amado concebe o neoconstitucionalismo como uma teoria defensora de

um “controle judicial de máximos322”, pois concebe o texto constitucional em um sentido

317 SUNSTEIN, Cass. Radicals in robes: why extreme right-wing Courts are wrong for America, p. 35. 318 O parecer do Procurador-Geral da República e o voto do Min. Eros Roberto Grau serão analisados na seção 3.3.1.(Formalismo), p. 34, sobre o formalismo jurídico no caso difícil da fidelidade partidária (no STF) e suas conseqüências para o tema do acesso à justiça. 319 Para uma exposição minuciosa das críticas elaboradas pelo autor ao neoconstitucionalismo confira: PULIDO, Carlos Bernal. El neoconstitucionalismo a debate, p. 13-23. 320 GARCÍA AMADO, J. A. apud PULIDO, Carlos Bernal. El neoconstitucionalismo a debate, p. 17. 321 Id., ibid, p. 18. 322 Id., ibid., p. 20.

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axiológico e argumentativo que acaba por ressaltar o papel interpretativo (e construtivo)

do Poder Judiciário na definição e maximização do conteúdo dos direitos fundamentais.

Em sentido contrário, o autor defende um “controle judicial de mínimos” restrito àquelas

“normas que manifestamente vulnerem a semântica dos enunciados constitucionais323”.

Neste sentido, García Amado defende uma regra de preferência em favor do

legislador – in dubio pro legislatore – no momento de estabelecer quem tem a última

palavra na zona de penumbra ou no âmbito de abertura do texto constitucional. Esta

preferência traduz-se em um convite à auto-restrição (self-restraint) por parte da

jurisdição constitucional principalmente naquelas hipóteses em que o texto

constitucional nada nos diz, ou seja, quando se encontra aberto a uma pluralidade de

concretizações politicamente possíveis ou, nas palavras de Häberle, ao “pensamento

possibilista” que define a própria democracia como “reversibilidade de toda

possibilidade e alternativa que surja no marco constitucional324”. A mesma conclusão é

válida, ainda mais fortemente, para aqueles casos nos quais o texto constitucional

pretendeu ser taxativo, decidindo por não incluir dispositivos jurídicos existentes em

documentos constitucionais passados.

Robert Alexy propõe uma tentativa de solução para este dilema entre

constitucionalismo e democracia ao desenvolver recentemente uma dogmática das

margens de ação325. A Constituição é compreendida pelo autor como uma “ordem

marco”, que deixa para o legislador uma ampla margem de ação estrutural para a eleição

dos fins políticos em conformidade com os direitos fundamentais (que definem uma

ordem fundamental em sentido qualitativo) e bens coletivos tutelados

constitucionalmente, assim como a definição dos meios para a promoção de tais fins.

Segundo esta visão, “se reconhece que a legislação não é uma mera aplicação dos

princípios entendidos como mandados de otimização326”. Neste sentido, argumenta

Carlos Bernal Pulido com apoio nas reflexões de Robert Alexy:

“As disposições de direitos fundamentais não ordenam nem proíbem nada,

nem sequer implicitamente, para muitos casos. Isto se faz evidente quando o

resultado da ponderação é um empate. E ali onde a Constituição nada

prescreve, o legislador tem a competência para decidir. Quando esta

323 Id., ibid., p. 19. 324 HÄBERLE, Peter. Pluralismo y constitución: estudios de teoría constitucional de la sociedad abierta, p. 68. 325 Sobre a teoria das margens de ação, confira: ALEXY, Robert. Epílogo a la teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Fundación Beneficentia et Peritia Iuris, 2004. 326 PULIDO, Carlos Bernal. El neoconstitucionalismo a debate, cit., p. 63.

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circunstância se apresenta na ponderação, o Tribunal Constitucional deve ser

deferente com esta competência legislativa”.327

O neoconstitucionalismo em sua versão “inflacionada” ou “expansionista”, ao

preconizar um ideal de Constituição “invasora” e “onipresente”, não é compatível com

uma visão aberta da democracia como “pluralismo de iniciativas e de alternativas328”. A

tese da força irradiante dos direitos fundamentais, se levada às últimas conseqüências,

resulta na completa conformação da atividade legislativa, ou seja, na afirmação de que

“na Constituição de direitos não há espaço isento para o legislador porque todos os

espaços aparecem regulados329”. O neoconstitucionalismo deve adequar-se a uma visão

experimentalista de democracia, deixando ao legislador eleito democraticamente, assim

como aos atores políticos que atuam no espaço público, a crítica, tematização e

proposição de novas alternativas institucionais para problemas que não foram decididos

no plano jurídico-constitucional ou, então, propor reformas, mediante emenda

constitucional, das decisões legais do passado.

Esta deve ser a regra de preferência: in dubio pro legislatore, pois é o

representante eleito democraticamente o agente mais legitimado para tomar decisões no

espaço de abertura da Constituição que, por sua vez, deve ser interpretado em um

sentido maximalista em favor do debate político. Segundo esta visão, o legislador

democrático é o legitimado inclusive para tomar uma decisão eventualmente errada,

pois é responsável politicamente pela mesma, enquanto o Poder Judiciário não. De um

ponto de vista hermenêutico, a dimensão objetiva dos direitos fundamentais não deve ser

compreendida como contendo sempre uma única resposta correta para a solução de

todos os problemas.

3.3. Interpretação e decisão do caso difícil da fidelidade partidária

3.3.1. Formalismo

O tema da fidelidade partidária é especialmente interessante na medida em que

nos mostra que, em última análise, a questão sobre como interpretar a nossa Constituição

é sempre uma escolha moral ou política em sentido amplo. Tal ponto ficou evidenciado 327 Idem. 328 HESSE, K. apud HÄBERLE, Peter. Pluralismo y constitución: estudios de teoría constitucional de la sociedad abierta, p. 67. 329 PULIDO, Carlos Bernal. El neoconstitucionalismo a debate, p. 12.

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pela pletora de posturas interpretativas reveladas no âmbito da discussão e decisão a

respeito dos MS 26.602, 26603 e 26.604 (STF). Entretanto, se por um lado parece

correto afirmar que a escolha por abordagens interpretativas possíveis, mas mutuamente

incompatíveis, reside em opções políticas, por outro não parece correto inferir, a partir

disso, que todas as escolhas ou abordagens interpretativas são iguais na quantidade de

teoria política e teoria moral que elas requerem dos juízes.

Alguns dos ministros entenderam que, no caso em tela, era necessário investigar

um amplo e complexo conjunto de elementos morais e políticos para alcançar alguma

solução. Tal posicionamento foi caracterizada no presente documento como sendo uma

postura pragmática330. Entretanto, outros fizeram uma opção política por abraçar um tipo

de interpretação de caráter mais formalista, entendendo que o texto da Constituição e o

significado que o acompanha era claro e, sendo assim, as opções dos juízes estavam

limitadas. Tais foram as posições do Ministro Eros Grau, no seu voto, e a do Procurador

Geral da República em sua sustentação oral. Os pormenores das razões envolvidas na

escolha entre uma postura mais ou menos particularistas são relevantes por si só e para

relacionar tais elementos com a questão da justiça e do acesso à justiça331. Porém, antes

de realizar a investigação cabe chamar a atenção para alguns pontos relevantes.

Os pragmatistas podem ser enquadrados dentro de uma categoria mais ampla,

denominada de “particularismo”. O particularista é aquele que não se sente constrangido

ou cerceado pelo texto da lei ou da Constituição (isso pode acontecer em função de uma

concepção ontológica sobre a natureza da linguagem ou por motivos políticos). Para o

particularista o texto e o seu significado mais imediato é no máximo o início da conversa

e nunca o fim da atividade interpretativa. Uma série de outros elementos devem ser

levados em consideração para que se possa alcançar a melhor decisão. A regra

expressada por um texto normativo não fecha as portas para que outras considerações

sejam levadas em conta no âmbito da decisão. Em suma, o particularista é aquele que

não mede esforços para ajustar a regra, trabalhando como um alfaiate, sempre que a

mesma aponta para um resultado diverso daquele pretendido pela totalidade das razões

relevantes ou pelos próprios propósitos da regra.

330 Cf. item 3.3.2 (O problema da mudança na interpretação da Constituição) deste relatório, p. 38, onde o que e porque entendemos como pragmatismo hermenêutico por parte dos Ministros do STF será aprofundado. 331 Cf. item 3.3.3 (Análise dos elementos da decisão) deste relatório, p. 42, onde destinamos algumas páginas para analisar e problematizar os elementos que participam do processo de decisão dos ministros do STF, e quais seriam as conseqüências ou origens dos posicionamentos frente aos diversos casos.

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280

Assim, a título de exemplo, se o propósito da Constituição é garantir o sistema

representativo proporcional a todo custo, desconsidera-se uma regra clara como aquela

extraída a partir da leitura do art. 55 da CF, que dispõe de forma direta e límpida quais

são as condições taxativas para a perda do mandato. A pergunta que fica no ar é a

seguinte: em um sistema onde as regras podem ser rotineiramente ajustadas ou afastadas

diante de cada caso concreto para que se possa alcançar os propósitos subjacentes, a

justiça, ou qualquer outra coisa considerada mais fundamental e que expressa o resultado

correto, é de fato um sistema de regras? Afinal, por que optar por um sistema de regras

(um sistema formalista), se é o particularismo que nos permite chegar, em tese, mais

próximo do justo? Antes de explorar a última questão, vejamos os compromissos dos

formalistas.

Em contraposição à postura particularista descrita acima é possível identificar

uma atitude interpretativa de caráter mais “formalista”. É importante frisar que o

formalista mais instigante não é aquele que adota uma concepção essencialista em

relação à linguagem. Conseqüentemente, acredita em um paraíso conceitual onde os

termos são totalmente (e absolutamente) claros, indicando uma única possibilidade

correta de atribuição de significado: ou, bem, algo pertence a um conceito ou não. Tal

espécie de conceitualismo aparece, por exemplo, no voto proferido no TSE pelo

Ministro Cezar Peluso, que entende que “no próprio seio do conteúdo significativo da

expressão “sistema proporcional”, está o primado dos partidos políticos e sua

conseqüente titularidade sobre as cadeiras conquistadas nas eleições332”. Inferir tudo isso

a partir da mera expressão “sistema proporcional” tomada isoladamente é, no mínimo,

polêmico.

Todavia, o formalismo não se confunde com o conceitualismo indicado acima. O

formalista é aquele que, por razões políticas ou morais, se compromete com o resultado

do significado padrão ou ordinário do texto, mesmo quando ele entende que talvez, do

ponto de vista moral ou político pessoal a sua opção seria diferente. Tal posição

formalista pressupõe a possibilidade de que em certas ocasiões o texto e o significado

imediatamente associado ao mesmo podem ser claros. Entretanto, a possibilidade de que

o texto venha a ser claro não significa que ele sempre o será, como acredita o

conceitualista. Nas situações de indeterminação ou intoxicação lingüística, geradas pela

textura aberta, vagueza, ambigüidade ou carga afetiva da linguagem, o processo de

332 Confira o voto do Min. Cezar Peluso na Resolução nº 22.526 (TSE) disponível em <www.tse.gov.br>.

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interpretação do responsável pela aplicação do texto é mais construtivo e criativo e

menos um processo de constatação e descoberta. Nas circunstâncias de indeterminação,

não existe diferenças profundas entre o modus operandi do particularista e do formalista.

O ponto que diferencia os dois é a atitude adotada diante dos casos que se enquadram

dentro do núcleo de significado da regra. Para o formalista, as regras direcionam o foco

do aplicador ou intérprete, que só pode procurar os fatos considerados relevantes pelas

categorias engessadas das regras. O particularista pode afastar, revisar ou recalibrar a

regra sempre que as suas categorias indicam um resultado que não está de acordo com o

que imaginam ser a solução correta.

Sendo assim, os formalistas são capazes de diferenciar o direito como um campo

prático distinto dos domínios da moral e do político. Tal posição formalista fica bastante

acentuada no voto do Ministro Eros Grau e na sustentação oral do Procurador-Geral da

República. Ambos fazem questão de demarcar limites de atuação do intérprete,

sugerindo que o texto, quando o seu significado é claro, pode obstar considerações

políticas e morais pessoais. Vejamos.

O Ministro Eros Grau diz:

“Permito-me, para dizer que a simpatia ou antipatia pessoal por esse ou

aquele modelo de fidelidade partidária não pesa em relação à decisão que nos

cabe tomar, mencionar que ontem, quando me faltou a voz, na exposição de

meu voto, ecoaram em meus ouvidos algumas palavras que eu gostaria de ter

pronunciado. Para afirmar que sentia recalcitrar a miserável garganta, aliás

um dos órgãos mais resistentes do meu sadio organismo; para repetir o que

foi dito em Santa Maria, no dia 20 de setembro de 1908: ´[não] importa, com

garganta ou sem ela é preciso falar e hei de falar’. A minha simpatia em

matéria de fidelidade partidária pelo pensamento de Assis Brasil não conta

em relação à decisão a ser tomada a partir e nos limites do texto da

Constituição333”.

E o Procurador-Geral da República afirma:

“Comungo das intenções e dos pressupostos éticos e políticos que inspiraram

a decisão do TSE, mas não creio que umas e outros autorizem a adotação de

interpretação que conduza à desconsideração de mandato eletivo em hipótese

333 Cf. MS 26.602-3 e MS 26.604, disponíveis em <www.stf.gov.br>.

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282

não contemplada no artigo 55 da Constituição. Sobre o tema - perda de

mandato - considero que a Constituição é exaustiva334”.

Em fim, a questão a ser formulada neste momento naturalmente é por que optar

por um modelo formalista que exclui de antemão a possibilidade de se alcançar o melhor

resultado para cada caso. Afinal, os formalistas se sentem constrangidos pela linguagem

utilizada no documento. Ou seja, esses constrangem-se pelas categorias previamente

selecionadas pelo legislador, enquanto o particularista, se sente à vontade para afastar ou

recalibrar a regra na tentativa de alcançar o seu espírito ou propósito subjacente, ou

simplesmente para poder chegar à resposta correta ou mais justa.

Colocado dessa forma, o modelo formalista parece ser mais um modelo que

frustra o acesso à justiça do que o modelo particularista. Entretanto, também pode existir

uma dimensão de justiça substancial na opção pelo formalismo. O formalismo é uma

forma de garantir maior segurança e previsibilidade. Mas, um modelo formalista é capaz

de garantir a alocação de poder, o que é ainda mais importante. Se regras claras são

sempre reconstruídas de acordo com certos propósitos ou metas pessoais diante de cada

caso concreto, então as regras nunca estão fazendo qualquer trabalho normativo e ou

alocando poder.

A própria noção de separação de poderes pressupõe o uso de regras. A

diferenciação de funções pressupõe a existência de regras. Se regras nunca fossem

levadas a sério, nenhum tipo de decisão poderia ser tomada previamente por outro órgão

qualquer, cabendo, na verdade, sempre àquele que tem a última palavra. Em nossa

sociedade, acreditamos que certas decisões cabem aos órgãos representativos por

excelência, aqueles que foram eleitos, e não aos caprichos do julgador não eleito com a

sua visão particular do justo, do correto, ou dos propósitos do direito, por mais que de

acordo com alguma moral crítica desconhecida ele possa estar certo. Finalmente, se

acreditamos que os juízes erram mais que acertam quando tentam alcançar o justo

afastando as regras, então temos boas razões para desenhar as nossas instituições de tal

forma que os julgadores não se sintam tão à vontade para exercer esta prerrogativa,

justamente entendida como arbitrária.

Para fazer isso, temos que criar boas razões prudenciais para não deixá-lo

totalmente à vontade em fazer o que acha que é o certo, em detrimento daquilo que foi

previamente estabelecido. É importante perceber que tal argumento é contingente. Se

334 Cf. MS 26.602-3 e MS 26.604, disponíveis em <www.stf.gov.br>.

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acreditamos e confiamos nos juízes, principalmente nos juízes de última instância, então

temos boas razões para deixá-los à vontade para tratar as regras como sendo flexíveis e

maleáveis. O Observatório da Justiça Brasileira pode funcionar como um mecanismo de

desenho institucional, realizando uma fiscalização constante não só do Judiciário, mas

da justiça, mostrando quando o afastamento das regras parece ser adequado e aceito pela

sociedade e pelos diversos movimentos sociais e quando o apego ao que foi prévia e

claramente estabelecido parece ser a postura mais adequada e aceita335.

Quando se fala em "desenhos institucionais", não se está englobando apenas a

situação na qual novos arranjos institucionais são confeccionados ex nihilo. A expressão

obviamente abarca o caso supracitado, e é mais freqüentemente utilizada para fazer

referência ao projeto de examinar arranjos sociais existentes na tentativa de estabelecer

se são satisfatórios ou se requerem algum tipo de modificação. Em outras palavras, a

empreitada dos desenhos institucionais tem sido mais a de pensar e remodelar

instituições previamente existentes do que a de conferir a forma inicial de instituições.

Assim, o uso rotineiro da expressão "desenhos institucionais" abarca primordialmente a

preocupação com a necessidade e modo de se realizar intervenções institucionais.

Além disso, cabe ressaltar que a preocupação com os desenhos institucionais é

um projeto não elitista por excelência. Afinal, quando se pensa sobre para quem é a

teoria dos desenhos institucionais e quem são os potenciais desenhistas, fica claro que

todos os interessados devem participar. Em uma democracia, ao menos em tese, todos os

cidadãos têm interesse acerca dos modos de arranjo da vida social, quem deve operar as

mudanças mais significativas nesses arranjos e de que forma isso deve ser feito. Nas

palavras de Pettit:

"Em toda sociedade existente, há, sem sombra de dúvida, uma variedade de

problemas severos, e todo aquele que se sente movido para pensar acerca

desses problemas deve ter um interesse na empreitada dos desenhos

institucionais; o caráter do exercício não é elitista336".

Reconhece-se, todavia, que há uma participação diferenciada nesse processo por

cada um dos desenhistas e que nem sempre há uma igualdade de oportunidades,

promovendo por vezes uma inserção assimétrica na modelagem e nos processos

335 Cf. item 4 (Considerações Finais), p. 44. 336 PETTIT, P. Institutional design and rational choice. In: Goodin, R (Ed.). The theory of institutional design. New York: Cambridge University Press, 1998.

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284

decisórios. Uma instituição bem desenhada não é só aquela que apresenta um encaixe

consistente com outras instituições internas e uma harmonia com instituições externas,

mas, além disso, é importante que a empreitada responda a certos anseios morais da

sociedade.

3.3.2. O problema da mudança na interpretação da Constituição

O tema da fidelidade partidária tratada nos MS 26.602, 26.603 e 26.604 assume

especial importância pela problemática que gera em torno da questão da interpretação

constitucional e da previsibilidade de suas decisões para a vida dos cidadãos. Foi um

caso de alteração significativa na Constituição, sem que o seu texto tenha sido

modificado. A partir de resoluções firmadas pelo Tribunal Superior Eleitoral no início de

2007, passou-se a entender que a mudança de partido político por parlamentar implica a

perda do seu mandato. Dessa forma, foi estabelecida a data de 27 de março de 2007 em

que o Tribunal Superior Eleitoral manifestou-se a respeito do assunto, antes do que era

possível a troca de partido sem a perda do mandato. A instância máxima da Justiça

Eleitoral no país entendeu, também, que, após essa data, os partidos estão autorizados a

procederem pedidos de perda dos mandatos políticos daqueles seus representantes que

deixaram as suas siglas partidárias originais. Diante da manifestação de recusa de assim

autuar pela Mesa da Câmara dos Deputados, determinados partidos políticos impetraram

respectivos mandados de segurança junto ao Supremo Tribunal Federal.

Nesse contexto específico, passamos, ainda que brevemente, a uma análise dos

pressupostos pragmáticos que levaram a uma tomada de posição da nossa Jurisdição

Constitucional no tocante à manifestação do TSE sobre o “troca-troca” partidário, bem

como à compreensão que tem sobre os seus limites da interpretação. Neste ponto, vale

lembrar determinados votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal apontando para

categorias do teor de mutação ou de ruptura constitucional como termos antagônicos. O

primeiro, assinala alteração da norma, resultado da interpretação, sem alteração do

texto. Isto é, o limite máximo de alteração de um determinado significado da lei, sem

alterar o seu texto. No segundo caso, quando a interpretação extrapola os limites legais,

a ruptura, inaceitável teoricamente, tem lugar.

Nessa linha de raciocínio, sem dúvida alguma, encontra-se um aspecto

pragmático da questão, que se revela na contextualização do problema, nos dados

empíricos que auxiliam em sua compreensão e nas conseqüências antevistas por quem

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decide. É uma visão que pouco se ancora nos valores ou objetivos visados, de antemão,

na lei. Os seus aspectos, empírico e futuro, apontam para uma dimensão não

propriamente valorativa e perene. Acentua o que é contingente, em função dos efeitos

que gera. Pode-se, a partir daí, dimensionar o acerto da decisão, em função do seu

impacto na vida dos cidadãos. A práxis cotidiana, afetada por todo tipo de demanda e

necessidade, muitas vezes prevalece sobre ideais de ordem valorativa. Problemas

concretos sobressaem.

No caso em pauta, o STF lança-se, ao examinar a citada decisão do Tribunal

Superior Eleitoral, em referendar, também, uma tarefa moralizadora. Busca alterar uma

prática abusiva que fere os fundamentos básicos do Estado Democrático de Direito. O

contexto demanda uma tomada de posição mais do que simplesmente direcionada ao

caso particular. Decide-se em sentido instrumental, como outra característica do

pragmatismo jurídico. As decisões dessa ordem possuem alcance político e o STF sente-

se legitimado a fazê-lo enquanto intérprete autêntico da Constituição que, como carta

política, enseja ações também políticas.

Notamos nos votos do Ministro Celso de Mello e da Ministra Carmen Lúcia a

força do contexto. É triste, afirma a Ministra, “ter de se tratar, ainda hoje, do

comportamento reiterado de troca de partidos e de suas causas e efeitos para o sistema

político...”, citando Victor Nunes Leal, autor de Coronelismo, Enxada e Voto337.

Comportamento este que gera insegurança na vida dos eleitores. “A mudança dos

parlamentares de um para outro partido também gera insegurança”338. São premissas

contextuais que apontam muito para a tomada de decisão, em lugar de pensarmos apenas

na força das regras positivadas ou nos valores nela guarnecidos.

De acordo com o Ministro Celso de Mello,

“Episódios notórios e lamentáveis de nossa recente história político-eleitoral,

que registram sucessivas transmigrações partidárias, com desrespeito

evidente e frontal à vontade soberana dos eleitores, (...) evidenciam um

comportamento que ofende a própria integridade do modelo consagrado pela

Constituição”. (19).

Ou seja, a partir de comportamentos verificados na prática o juiz analisa o

dispositivo legal para a tomada de decisão. O conhecimento da realidade a partir do

acesso a dados empíricos comprovadores com certeza levaram o Ministro Ricardo

337 Cf. MS 20.602, 20.603 e 20,604, p. 73, disponível em <www.stf.gov.br>. 338 Cf. Idem, p. 109, disponível em <www.stf.gov.br>.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

286

Lewandowisky a condenar a infidelidade partidária. Analisa-se a trajetória da

consolidação dos partidos no Brasil com base na alternância de governos ditatoriais e

democráticos para, a partir daí, firmar uma convicção sobre a necessidade da

arregimentação político-partidária, fruto da conquista pela institucionalização da

democracia. Mas apesar de mostrar preocupação com a mudança radical no sentido da

jurisprudência do STF, rende-se ao que mostram os dados: em 16 anos, 846

parlamentares (28,8%) trocaram de partido 1, 2, 3 e até 4 vezes, perfazendo um total de

1035 migrações339. Pesquisa esta que apresenta uma tendência à migração partidária.

Portanto, não se trata da existência de casos isolados, mas da probabilidade de

acontecimentos futuros. A (ou uma) questão está em torno da força dos fatos sobre o

direito; sobre o que podemos apresentar em determinado momento como direito.

Lançar-se sobre concepções de ordem pragmática pode levar, muitas vezes, a um

ativismo judicial que resulte na realização de um fenômeno: a judicialização da política.

Em linhas gerais, queremos dizer com isso que o Tribunal se ocupa de questões em

princípio sob a alçada do Poder Legislativo, casa da representação popular. O Ministro

Eros Grau mostra sua preocupação no sentido de o STF atropelar a obra do legislador:

“(...) consta que o Poder Legislativo vem atuando em direção à implantação de uma

reforma política, no bojo da qual o item da fidelidade partidária compõe-se entre os

temas prioritários.” Por isso mesmo, diz o Ministro, “a usurpação, pelo Poder Judiciário,

de função de Poder Constituinte derivado já em si consubstancia ‘quebra

constitucional’.” Quer dizer, a extrapolação dos limites de interpretação possível,

respeitando-se o texto constitucional.

Assim, não apenas nos defrontamos com o problema da interferência indevida do

Judiciário no Legislativo, como nos deparamos com situações em que o intérprete vai

além do permitido. O limite seria o da “mutação constitucional”, compreendida como o

poder de alterar-se o significado do texto sem mexer na sua estrutura gramatical.

Ultrapassado esse limite, poderíamos, com o Ministro Eros Grau, falar em “quebra” da

Constituição, o que fugiria ao poder do Tribunal. Alterar o texto constitucional é tarefa

do poder constituinte derivado, consagrado na Casa Parlamentar. Ao Tribunal compete

apenas, o que não é pouco, a sua aplicação. Este tem sido um tema sensível e de grande

interesse tanto para teóricos quanto para o próprio Judiciário. É a partir daí que se

definem os limites do seu poder de criação ou os limites do seu ativismo340.

339 Cf. idem, p. 20, disponível em <www.stf.gov.br>. 340 Confira o item 3.1. sobre a judicialização da política e o ativismo judicial.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

287

No momento em que o STF se esforça em aumentar sua força sobre todo o

sistema, decorrente da posição hierárquica que ocupa, o tema da mutação entra em cena.

Na Reclamação Constitucional nº 4.335, no denominado caso do Acre, vale ressaltar, a

Corte já aparece com uma postura forte, a provocar a crítica de boa parte dos

constitucionalistas brasileiros. Talvez, algo que deva merecer uma reflexão e

justificativa mais ponderada é dizer que, sob o argumento de um novo contexto

normativo, nas palavras do Ministro Gilmar Mendes, o Senado Federal é encarregado

simplesmente da publicação das leis declaradas inconstitucionais em última instância

pelo STF enquanto o texto constitucional expressamente prevê um papel ativo à câmara

alta do Congresso nos procedimentos de controle de constitucionalidade. Na ocasião, o

Ministro Eros Grau identificou o caso de “mutação”, enquanto agora, no caso da

fidelidade, condena a possibilidade de o intérprete entender como acolhidos nos

princípios constitucionais a tese da fidelidade. A partir da interpretação restritiva do

artigo 55 de nossa Constituição, que prevê as possibilidades de perda de mandato pelo

parlamentar, fica afastada a possibilidade de se ver apoio para este entendimento

considerando determinados princípios constitucionais.

3.3.3. Análise dos elementos da decisão

Especial consideração merece o estudo dos elementos da decisão no caso da

fidelidade partidária. Se for exigida do Poder Judiciário uma atitude de coerência,

previsibilidade e, sobretudo, racionalidade na tomada de decisões, não pode ser olvidado

o valor dos precedentes no labor jurisprudencial, seja em sua função meramente

persuasiva, seja em sua eficácia vinculante por meio do controle abstrato de

constitucionalidade.

O caso da fidelidade partidária revelou uma forma especial de ativismo judicial,

e que gerou certa polêmica. Embora os impetrantes dos mandados de segurança341

tenham obtido uma decisão denegatória, a menção de que a pretensão referente à perda

dos mandatos poderia, mediante o devido processo legal, ser deferida pela Justiça

Eleitoral foi suficiente para deixá-los satisfeitos.

Cabe indagar: seria tal menção um obiter dictum ou a ratio decidendi do

acórdão? Estariam os órgãos do Poder Judiciário obrigados a observar tal decisão?

341 MS 26.602 (Relator Ministro Eros Grau), MS 26.603 (Relatora Ministra Cármen Lúcia) e MS 26.604 (Relator Ministro Celso de Mello), disponíveis em <www.stf.gov.br>.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

288

Mostra-se fundamental a identificação dos elementos objetivos (RATIO

DECIDENDI E OBITER DICTUM) da decisão como ferramentas cognitivas do intérprete.

Tal instrumental teórico afigura-se importante para que o observador e o aplicador do

direito estejam cientes não só dos elementos determinantes da decisão, mas também do

seu alcance.

Com efeito, a ratio decidendi para a denegação dos remédios constitucionais foi

no sentido de que a perda de mandato dos parlamentares eleitos e que trocaram de

partido só poderia ocorrer após instrução probatória que apurasse a inexistência de

perseguição política do parlamentar ou mudança na ideologia do partido. Como não há

fase específica para a produção de provas no mandado de segurança, os writs foram

denegados.

É de se observar que para chegar-se à conclusão acima era preciso responder se

havia o direito de os partidos aplicarem, por via judicial, a sanção de perda de mandato.

Embora o conceito de sanção (até então pacífico na tradição da Corte considerando os

precedentes atrelados aos casos de fidelidade partidária) tenha se revelado polêmico no

curso do julgamento, surpreendentemente prevaleceu o entendimento de que não haveria

pena na perda de mandato simplesmente pelo fato de a troca de partido se tratar de ato

lícito. Na verdade, não restou clara a natureza do ato que decreta a perda do mandato,

em primeiro lugar, porque era gravoso para a esfera do parlamentar; em segundo lugar,

porque para a sua decretação haveria a necessidade de conferir ao parlamentar o direito à

ampla defesa. Obviamente, se fosse reconhecida a natureza de sanção (pena) à perda de

mandato, esta não poderia ser aplicada, em virtude do princípio da legalidade,

lembrando-se que o art. 55 da Constituição Brasileira de 1988 não contempla a hipótese

de perda de mandato por troca de partido.

Em resumo, a vexata quaestio desdobrava-se em duas questões: 1) se havia o

direito dos partidos de aplicarem, por via judicial, a sanção de perda de mandato; 2) se

este direito poderia ser exercido por via de mandado de segurança.

Curioso notar que, do ponto de vista técnico, a adequação da via mandamental

deveria ter sido julgada em primeiro lugar, já que configura uma questão processual (e

não de mérito). Realmente falece interesse processual ao impetrante de mandado de

segurança que objetiva a declaração de perda de mandato em razão da inviabilidade de

se conferir uma fase de instrução para apurar a existência de perseguição política ou

mudança de ideologia do partido. No entanto, a questão de mérito (direito à declaração

de perda de mandato) foi enfrentada antes da questão processual (interesse-adequação).

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289

Isto causa um certo desconforto na caracterização da questão de mérito como ratio

decidendi, já que ela não foi determinante para a decisão denegatória dos writs.

Cumpre, no entanto, reconhecer, que a questão de mérito (direito à declaração de

perda de mandato) enfrentada pela Corte Constitucional findou por orientar outros

tribunais e sinalizou como será a decisão em casos futuros, embora tenha o valor de

mera “afirmação incidental” (obiter dictum).

Resta examinar, ainda, se os órgãos do Poder Judiciário estariam obrigados a

observar tal decisão.

Recorde-se que no âmbito do controle de constitucionalidade não só a parte

dispositiva, mas também os fundamentos determinantes (ratio decidendi) têm eficácia

vinculante, de acordo com o parágrafo único do art. 28 da Lei 9.868/99.342

Uma primeira observação é a de que a decisão do caso da fidelidade partidária

ocorreu em sede de mandado de segurança sendo, por esta razão, inaplicável a referida

lei. Em outras palavras: a decisão não possui eficácia vinculante para os órgãos do Poder

Judiciário.

Em segundo lugar, embora tenha a discussão referente ao direito à declaração de

perda de mandato ocupado uma posição de destaque no julgamento, parece mais

acertado atribuir mero valor de obiter dictum (afirmação incidental) à questão de mérito

ventilada, com eficácia meramente persuasiva.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em um contexto de intensificação do processo de judicialização da política, o

STF assume o importante papel de um ator institucional estratégico no sistema político

brasileiro. O recente protagonismo dos tribunais no cenário político nacional determinou

uma profunda alteração nos cálculos elaborados pelos diferentes atores políticos,

institucionais ou não, para o arranjo, composição e consecução de seus objetivos, seja no

tocante à implementação de políticas públicas, seja em relação à modificação das regras

342 Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal. Cf. IVES GANDRA DA SILVA MARTINS e GILMAR FERREIRA MENDES, Controle Concentrado de Constitucionalidade, p. 337 e ss.

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290

do jogo democrático. Neste sentido, “o governo, além de negociar seu plano político

com o Parlamento, [tem] que se preocupar em não infringir a Constituição343”.

Semelhante afirmação também é válida para a atuação do Poder Legislativo

diante da eficácia expansionista dos direitos fundamentais apregoada pelo

neoconstitucionalismo. Como bem lembra Oscar Vilhena Vieira, a equação é bastante

simples: “se tudo é matéria constitucional, o campo de liberdade dado ao corpo político

é muito pequeno344”. Neste ponto há um importante trade-off em regra esquecido pela

teoria neoconstitucional: quanto maior a amplitude e intensidade da dimensão objetiva

dos direitos fundamentais concebidos como princípios com forte conteúdo axiológico,

menor será o espaço de livre conformação do legislador democrático, assim como o da

sociedade civil para o exercício de sua “imaginação institucional”. Dessa forma,

“qualquer movimento mais brusco gera um incidente de inconstitucionalidade e,

conseqüentemente, a judicialização de uma contenda política345”.

O texto constitucional não deve ser compreendido como sempre contendo uma

única resposta para todas as questões ou controvérsias políticas, econômicas e morais.

Esta modalidade de leitura da Constituição é perfeccionista, ou seja, “tenta fazer da

Constituição o melhor que ela pode ser346”, interpretando-a, sempre que possível, a partir

de “questões profundas” e, em geral, também controversas diante do fato do pluralismo

que define as democracias contemporâneas. Esta visão excessivamente axiológica

concebe o resultado do jogo político como algo fortemente pré-definido pelo direito,

aproximando a Constituição de um modelo puramente material, segundo o qual, em

última análise, “para tudo existe a previsão de um mandado ou uma proibição”.347 Outra

dimensão importante deste processo é a reiterada utilização dos tribunais superiores

como instâncias de revisão política da deliberação legislativa, fomentada por atores

políticos agrupados de modo minoritário no Poder Legislativo. Deste modo, é

importante destacar que, nos casos aqui estudados, são os próprios legisladores os

responsáveis por demandar do Supremo Tribunal Federal um pronunciamento jurídico-

constitucional sobre tais questões.

343 CARVALHO, Ernani Rodrigues de. Em busca da judicialização da política no Brasil: apontamentos para uma nova abordagem. Revista de Sociologia Política, p. 115. 344 VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia: vícios e virtudes republicanas. Jornal O Valor, 06/11/2007. 345 Idem. 346 SUNSTEIN, Cass. Radicals in robes: why extreme right-wing Courts are wrong for America, p. xii, grifo nosso. 347 ALEXY, Robert. Epílogo a la teoría de los derechos fundamentales, p. 30.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

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Tendo em vista o processo de judicialização da política, o relatório procurou

desenvolver uma abordagem mais ampla da temática do acesso à justiça, capaz de

abarcar a análise de um ativismo judicial que tem gerado efeitos políticos relevantes

sobre a atuação dos demais poderes. Neste sentido, diante do caráter maximalista, isto é,

ao mesmo tempo amplo e profundo, do escopo e do conteúdo das decisões do STF

analisadas neste relatório, não há uma clara distinção entre o obter dictum (afirmações

incidentais) e a sua ratio decidendi (fundamentos determinantes da decisão). Tal

afirmação culmina na constatação de que ambos os elementos da decisão acabam por

exercer, indistintamente, forte apelo persuasivo sobre a atuação dos demais poderes e da

sociedade civil, concentrando a decisão de questões que, por diferentes motivos,

deveriam permanecer em aberto para posterior deliberação democrática. Além disso, ao

centralizar as principais decisões sobre temas políticos e morais controversos, o STF

gera conseqüências importantes também na esfera pública, pois tais decisões podem

constituir um estímulo ora positivo, ora negativo, sobre a participação popular na

deliberação, tematização e elaboração de soluções criativas para questões polêmicas na

sociedade.

Revela-se igualmente importante a identificação dos elementos objetivos da

decisão (RATIO DECIDENDI E OBITER DICTUM, MANCIONADOS ACIMA) como

ferramentas cognitivas do intérprete. Entende-se que a decisão referente à questão de

mérito (direito à declaração de perda de mandato) enfrentada pelo Supremo Tribunal

Federal no caso da fidelidade partidária findou por orientar outros tribunais e sinalizou

como será a decisão em casos futuros, embora tenha apenas o valor de obiter dictum,

com eficácia meramente persuasiva.

Observa-se, também, que o Supremo Tribunal Federal tem dado demonstrações

em seus julgados no sentido de preservar as decisões do Poder Judiciário348,

particularmente em relação aos casos difíceis analisados neste relatório. Os acórdãos

estudados, em regra, citam entendimentos adotados por ministros, atuais e antigos,

legitimando, assim, a própria atuação do tribunal em tais casos. No entanto,

posicionamento semelhante não tem ocorrido em relação às decisões e escolhas do Poder

Legislativo, como ficou patente no caso emblemático da cláusula de barreira, no qual o

STF, assumindo uma postura abertamente ativista, invalidou uma decisão

democraticamente tomada pelo Legislativo.

348 Em especial, as decisões do Tribunal Superior Eleitoral.

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292

Caberia avaliar em futuros estudos do Observatório da Justiça Brasileira, se tal

comportamento adotado por nossa jurisdição constitucional não seria oriundo de uma

espécie de tratamento corporativo adotado pelo STF no sentido de resguardar as

instâncias de poder e de competências inerentes ao Poder Judiciário. Também merece

ser investigado, uma vez institucionalizado o OJB, se há uma natureza política nesse

“conflito” entre o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. Outra linha de

pesquisa que justifica termos um espaço investigativo como o OJB é o fato de que a

nossa jurisdição constitucional procura legitimar-se, por meio de novos conceitos

(sentença de perfil aditivo, por exemplo), e de modo nem sempre explícito, como

instância "criadora de norma". Esta autocompreensão produz conseqüências graves,

principalmente para a desconsideração ou afastamento do legislador devido a uma

propalada inércia normativa.

Resta também em aberto a definição de acesso à justiça, e por diversas razões.

Argumenta-se que a morosidade do Poder Legislativo na edição de leis tem transferido

para o Supremo Tribunal Federal a tarefa de regulamentar temas sem consenso na

sociedade. Essa aparente usurpação de competência normativa vem estabelecendo certo

atrito entre os Poderes de Estado, particularmente tensões entre o Poder Judiciário e o

Poder Legislativo, inclusive com repercussão na mídia. Constata-se a presença de um

ativismo judicial cada vez mais forte e com significativa interiorização de questões

políticas no âmbito judicial, rompendo com a tradicional concepção de um Supremo

Tribunal Federal como órgão de fiscalização negativa da constitucionalidade das leis.

Por meio de decisões recentes do STF, são regulamentadas matérias controvertidas cujas

transformações e implicações atuais, argumentam os ministros, o Legislativo não

consegue acompanhar. Cabe ressaltar que não foram vislumbradas tentativas de diálogo

entre o STF e o Poder Legislativo nos casos estudados, comprovando, assim, o grande

descompasso nas relações políticas entre os dois poderes.

É possível identificar um processo conflituoso não só na relação político-

institucional entre os poderes, mas igualmente no corpo das decisões que se fundam ora

em razões morais, ora em razões pragmáticas, ora na legalidade estrita. Neste sentido,

procurar-se-á, com o posterior aprofundamento do estudo sobre o processo decisório do

Supremo Tribunal Federal nos hard cases mencionados em nosso documento-base,

alcançar uma melhor compreensão sobre o contexto de descobrimento e o contexto de

justificação de tais decisões no âmbito do STF, assim como os seus efeitos sobre o Poder

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Legislativo, o Poder Executivo e a sociedade civil. Deste modo, espera-se criar um

controle mais efetivo e uma maior previsibilidade das decisões.

Assim, com a institucionalização do OJB, as questões encontradas para uma

investigação mais abrangente são:

1. As alternativas de acesso à justiça e sua relação com o protagonismo institucional

do STF;

2. Qual é a correlação política de forças existente entre o Poder Judiciário e o Poder

Legislativo, particularmente entre o Congresso Nacional e o STF nos casos

difíceis que ainda serão estudados?

3. Aprofundar o tema do ativismo judicial e suas modalidades;

4. Que variáveis relacionadas a um caso difícil são determinantes para a opção por

um modelo mais pragmático ou mais formalista de decisão?

A partir de uma análise histórica, foi possível identificar uma trajetória ativista

de atuação do STF inclusive antes do advento da Emenda Constitucional nº 45/04 em

decorrência, em grande parte, da nova composição do tribunal. A partir da análise dos

casos mencionados neste relatório, constatou-se uma postura por parte de nossa Corte

Constitucional no sentido de não preservar a figura do legislador dentro de uma tradição

kelseniana. Diversamente, o STF vem assumindo uma postura que não só é contrária a

essa perspectiva democrática recomendada por Hans Kelsen, como se pauta por uma

orientação bem nítida, qual seja: a de preservar mais as decisões oriundas do próprio

espaço do Poder Judiciário. Para legitimar a sua própria atuação, o STF tem recorrido à

noção de um "Judiciário de portas abertas para a sociedade349”.

Por último, cabe destacar que, além do presente relatório, três foram os

produtos elaborados pelo Grupo 5 (UFRJ) para o Projeto Dossiê Justiça: (1.) o

mapeamento das reformas legislativas decorrentes do advento da Emenda

Constitucional nº 45/04, (2.) o relatório sobre a proposta de estruturação do

Observatório da Justiça Brasileira e (3.) o organograma (em powerpoint) sobre a

estruturação do OJB. Foi criado, ainda, um blog – intitulado “Supremo em

Debate” - para a discussão de temas relacionados à pesquisa do Grupo. As

principais propostas institucionais formuladas pelo Grupo 5 (descentralização,

participação de Programas de Pós-Graduação e de Centros de Pesquisa por meio

349 Comentário do Min. Marco Aurélio de Mello realizado durante o julgamento da ADI 1351, p. 89, disponível em <www.stf.gov.br>.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

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de Editais (projetos), Comitês “ad hoc” e participação da Capes e do CNPq) foram

aceitas e incorporadas ao projeto final de estruturação do Observatório da Justiça

Brasileira, como é possível depreender a partir da comparação entre os anexos C e

D.

5. REFERÊNCIAS

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

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ANEXO A Mapeamento da Emenda Constitucional 45

(de Marcus Firmino Santiago)

Mapeamento das Reformas Legislativas Decorrentes do Advento da Emenda

Constitucional n. 45/2004

Marcus Firmino Santiago

Professor voluntário UnB

Ex-professor assistente UFRuralRJ

Ex-professor substituto UFRJ

Doutorando em Direito do Estado UGF/RJ

Mestre em Direito Público UNESA/RJ

Introdução

Dentro do conjunto de temas tratados pelo projeto denominado Observatório da

Justiça encontra-se o levantamento acerca da concreta implementação de medidas

legislativas tendentes a conferir plena aplicabilidade à Reforma do Judiciário, iniciada e

sustentada pela Emenda Constitucional n. 45/2004. Busca-se, desta forma, fornecer

subsídios para aferir o andamento deste plano, iniciado com a reforma constitucional,

mas que depende de uma plêiade de atos normativos, legais e infralegais, para se

completar, especialmente quando se tem em mira que as principais alterações

impulsionadas pela Emenda situam-se nos planos administrativo e processual, duas

esferas onde imperam a adstrição à legalidade.

O presente mapeamento se propõe a identificar as principais medidas apontadas

como necessárias à realização do projeto de aperfeiçoamento do acesso à justiça,

idealizado no seio da EC 45/2004. A Reforma do Judiciário, da forma como tratada

neste Emenda, deve ser concretizada por intermédio de alterações administrativas e

procedimentais, algumas previstas no próprio texto reformador e de aplicação imediata,

outras carentes de complementação legislativa no plano infraconstitucional. Nem sempre

os novos rumos perseguidos, contudo, encontram-se expressos na EC 45/2004, abrindo

margem, alguns de seus dispositivos, a que se busque pelas vias que se mostrem

adequadas, a concretização do ideal reformador, sempre apontado para a celeridade dos

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

299

processos, eficiência na prestação jurisdicional, efetividade das decisões e aproximação

do cidadão ao Judiciário.

Neste conjunto de medidas, a pesquisa ora apresentada busca apontar aquelas que

já foram materializadas em leis, as que se encontram em tramitação em alguma das casas

do Congresso Nacional e as que ainda não saíram do plano das idéias. Realiza-se, para

tanto, pesquisa exploratória, tendente a levantar dados quantitativos, sendo certo que se

mostra necessária sua posterior complementação, de modo a viabilizar a análise

qualitativa das informações aqui levantadas, buscando-se, especialmente, aferir o real

incremento no acesso à justiça decorrente das novas leis adotadas.

1. Os objetivos perseguidos com a reforma legislativa

Na esteira dos debates que culminaram com a promulgação da Emenda

Constitucional n. 45/2004, os chefes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário

federais se reuniram com o propósito de indicar os itens prioritários de uma agenda

voltada a pelo menos minimizar alguns dos mais gritantes problemas da Justiça

brasileira. Neste turno, o Pacto de Estado em favor de um Judiciário mais rápido e

republicano buscou sistematizar as dificuldades a demandar mais imediata intervenção

com o fim de assegurar o pleno exercício do direito de acesso à justiça.350

Assim é que o Pacto identifica uma lista de questões a serem tratadas

preferencialmente, questões que se espalham por vasto espectro do sistema processual e

da administração judiciária. A simples passada de olhos sobre ela, como se fará linhas

abaixo, evidencia que o acesso à justiça, neste momento, tem sido compreendido em sua

vertente exclusivamente jurisdicional, sendo possível identificar propostas tendentes a

incrementar o acesso ao Poder Judiciário, no sentido de aproximá-lo dos cidadãos, e

outras voltadas a garantir uma prestação jurisdicional mais célere e efetiva. Identifica-se

claramente a implementação daquilo que Cândido Dinamarco assim sintetiza:

350 O teor do Pacto pode ser encontrado na página eletrônica do Ministério da Justiça, no endereço http://www.mj.gov.br/main.asp?ViewID=%7B8E452D90%2D6A84%2D4AA6%2DBBCE%2DD6CB5D9F6823%7D&params=itemID=%7BA08DD25C%2D48A6%2D490B%2D9989%2DECC844FA5FF1%7D;&UIPartUID=%7B2868BA3C%2D1C72%2D4347%2DBE11%2DA26F70F4CB26%7D Acesso em 01 dez.2007.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

300

Só se tem verdadeiro acesso à justiça (a) quando se teve oportunidade de

postular perante a Justiça, seja como autor ou como réu, (b) quando este se

desenvolveu segundo as garantias explicitadas da Constituição e formas

legitimamente definidas em lei, (c) quando a pretensão deduzida pelo

demandante recebeu julgamento, (d) quando a decisão foi justa segundo a

interpretação do caso e da lei à luz de valores legítimos – e, para conferir

utilidade social e política a tudo isso, (e) quando o Poder Judiciário tiver sido

capaz de dar efetividade ao que decidiu, conformando a realidade do mundo

ao que se dispôs na sentença justa.351

Estas proposições Kazuo Watanabe resume na expressão acesso à ordem jurídica

justa352, a qual congrega as duas vias mestras, sob o ponto de vista do acesso ao

Judiciário, que devem ser seguidas para efetivá-la: a possibilidade irrestrita de invocar a

atuação jurisdicional e a presença de todos os mecanismos necessários à sua

manifestação, de modo que possa o Estado tutelar adequada e eficazmente a todas as

pessoas. Essas duas linhas fundamentais (o despertar para a necessidade de se assegurar

os benefícios da tutela jurisdicional a toda a sociedade e a conscientização de que as

prestações emanadas do Estado devem ser capazes de, efetivamente, preservar os

interesses que lhe são apresentados) identificam-se como o cerne da vertente

jurisdicional do movimento pelo acesso à justiça, que visa a estruturar os caminhos a

serem trilhados para romper os obstáculos que tornam inacessíveis para tantos o

exercício de seus direitos e liberdades.

Neste turno, os onze pontos destacados foram:

1. Implementação da Reforma Constitucional do Judiciário

2. Reforma do sistema recursal e dos procedimentos

3. Defensoria Pública e Acesso à Justiça

4. Juizados Especiais e Justiça Itinerante

5. Execução Fiscal

6. Precatórios

7. Graves violações contra os Direitos Humanos

8. Informatização

9. Produção de dados e indicadores estatísticos

351 DINAMARCO, Cândido Rangel. Universalizar a Tutela Jurisdicional. Fundamentos do Processo Civil Moderno. tomo II. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 854. 352 WATANABE , Kazuo. Acesso à Justiça e Sociedade Moderna. GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE , Kazuo. Participação e Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988, p. 134.

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301

10. Coerência entre a atuação administrativa e as orientações jurisprudenciais já

pacificadas

11. Incentivo à aplicação das penas alternativas

Sua implementação tem demandado um esforço conjunto que se materializa tanto

na propositura de novas leis quanto na realização de medidas administrativas voltadas a

realizar estes ideais, todos coadunados com os objetivos perseguidos com a promulgação

da EC 45/2004, estopim de uma reforma bastante mais ampla do Judiciário do que

podem fazer crer as alterações normativas de fato realizadas no texto constitucional. O

levantamento aqui realizado priorizou a compilação das mudanças legislativas

decorrentes do advento da EC 45/2004, dividindo-as em dois focos: leis voltadas a

regulamentar dispositivos modificados ou implementados pela EC 45/2004; e leis

propostas com o fim de permitir a consecução dos ideais perseguidos com a reforma.

2. A regulamentação da Emenda Constitucional 45/2004

Por força do disposto no art. 7º da Emenda Constitucional n. 45/2004,353 deveria

ser criada comissão especial, no âmbito do Congresso Nacional, para elaborar os

projetos de lei necessários à regulamentação dos dispositivos modificados ou

incorporados ao texto constitucional, sempre que estes demandassem explicitação por

meio de norma infraconstitucional. Ademais, a esta tarefa foi somada a de propor outras

medidas tendentes a incrementar o objetivo de assegurar o acesso à justiça, claramente

identificado, como se explicou acima, com a noção de acesso ao Judiciário e a um

processo judicial eficaz.

A comissão foi formalizada regularmente e sua reunião de instalação ocorreu em

05.04.2005, estendendo-se os trabalhos até 13.12.2005. Em 23.02.2006 foi apresentado o

relatório final de suas atividades onde se encontra: síntese dos principais problemas

identificados como causadores da morosidade e da baixa eficácia da prestação

jurisdicional; levantamento dos dispositivos trazidos pela EC 45/2004 que necessitariam

regulamentação; lista das medidas já em tramitação no congresso Nacional tendentes a

viabilizar a implementação dos objetivos da reforma; e indicações legislativas

353 Art. 7º O Congresso Nacional instalará, imediatamente após a promulgação desta Emenda Constitucional, comissão especial mista, destinada a elaborar, em cento e oitenta dias, os projetos de lei necessários à regulamentação da matéria nela tratada, bem como promover alterações na legislação federal objetivando tornar mais amplo o acesso à Justiça e mais célere a prestação jurisdicional.

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302

concretamente gestadas pela comissão. Cumpre destacar, quanto a este último ponto, as

propostas de lei idealizadas na comissão, salientando desde já que nem todas chegaram a

se materializar em projetos de lei:

a) Projeto sobre repercussão geral no Recurso Extraordinário;

b) Projeto que regulamenta a edição, revisão e cancelamento de súmulas com

efeito vinculante;

c) Projeto que regulamenta pedido de federalização de crimes contra os direitos

humanos;

d) Projeto que regulamenta Fundo de Garantia das Execuções Trabalhistas;

e) Projeto que regulamenta a competência suplementar da Justiça do Trabalho;

f) Projeto que legitima, para propositura de Argüição de Descumprimento de

Preceito Fundamental, as pessoas lesadas ou ameaçadas de lesão por ato do poder

público.354

O trabalho de mapeamento das medidas legislativas elaboradas a partir da EC

45/2004, portanto, orienta-se segundo parâmetros indicados pela Comissão Mista

Especial para Reforma do Judiciário, aos quais se junta a lista de prioridades

materializada no Pacto, de modo a permitir a mais ampla coleta de dados dentro do

balizamento assim encontrado.

2. 1. Dispositivos dependentes de regulamentação mediante edição de lei de

iniciativa do Poder Legislativo, segundo a Comissão Mista Especial para Reforma

do Judiciário:

a) Art. 93, IX: estabelecimento das hipóteses de cabimento do segredo de

justiça;

b) Art. 98, § 2º: destinação de custas ao Poder Judiciário;

c) Art. 103-A: revisão ou cancelamento de súmula com efeito vinculante;

d) Art. 103-A: repercussão geral no Recurso Extraordinário;

e) Art. 109, V, § 5º: federalização dos crimes contra os direitos humanos;

f) Art. 111-A, § 1º: competência do TST;

354 O relatório final da comissão mista encontra-se publicado na página eletrônica do Senado Federal, no endereço http://webthes.senado.gov.br/sil/Comissoes/ESP/Comissoes/EMC45/Relatorios/RF200601.rtf Acesso em 01 dez. 2007.

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g) Art. 114, IX: competência suplementar da Justiça do Trabalho;

h) Art. 3º, EC 45/2004: Fundo de Garantia das Execuções Trabalhistas;

i) Demais instrumentos que assegurem a razoável duração do processo, no

âmbito judicial e administrativo, e os meios que garantam a celeridade de sua

tramitação.

Normas jurídicas editadas ou em tramitação:

Lei 11.417, de 19.12.2006: Regulamenta o art. 103-A da Constituição Federal e altera a

Lei no 9.784, de 29 de janeiro de 1999, disciplinando a edição, a revisão e o

cancelamento de enunciado de súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal, e dá

outras providências

Origem: Comissão mista especial para reforma do Judiciário / Senado Federal (instalada

por determinação do art. 7º da EC 45/2004) – PL 13/2006;

Lei 11.418, de 19.12.2006: Regulamenta o § 3o do art. 102 da Constituição Federal,

acrescentando à Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil,

dispositivos referentes à repercussão geral nos Recursos Extraordinários.

Origem: Comissão mista especial para reforma do Judiciário / Senado Federal (instalada

por determinação do art. 7º da EC 45/2004) – PL 12/2006;

PL 6542/2006: Regulamenta o art. 114, IX, sobre competência suplementar da Justiça

do Trabalho;

Andamento: aguardando manifestação da CCJ da Câmara desde 09.03.2006;

PL 6541/2006: Regulamenta o art. 3º, EC 45/2004, que trata sobre a criação do Fundo

de Garantia das Execuções Trabalhistas;

Andamento: aguardando manifestação da CCJ da Câmara desde 09.03.2006;

Obs.: Quanto aos demais (itens a, b, e, f) , nenhum projeto encontrado.

2.2. Dispositivos dependentes de regulamentação mediante edição de lei de

iniciativa do Poder Judiciário, segundo a Comissão Mista Especial para Reforma

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do Judiciário (modificação na Lei Orgânica da Magistratura, Organização da Justiça do

Trabalho e Organização das Justiças Estaduais):

2.2.1. Iniciativa do STF:

a) Art. 93, I: Ingresso na carreira;

b) Art. 93, II, c, d, e: Critérios de promoção;

c) Art. 93, III: Critérios de acesso aos tribunais;

d) Art. 93, IV e art. 105, par. único, I: Cursos oficiais;

e) Art. 95, par. único, IV e V: Obrigações e vedações dos magistrados;

f) Art. 93, VIII: Remoção, disponibilidade e aposentadoria por interesse público;

g) Art. 93, VIII-A: Remoção a pedido ou permuta de magistrados;

h) Art. 93, X: Decisões administrativas dos tribunais;

i) Art. 93, XII: Férias;

j) Art. 103-B: Instalação e definição da competência do Conselho Nacional de Justiça;

l) Art. 103-B, § 7º: Criação de ouvidorias de justiça;

Normas jurídicas editadas ou em tramitação:

Lei 11.364, de 26.10.2006: Regulamenta o art. 103-B fixando a estrutura administrativa

e as atividades de apoio ao CNJ;

Origem: Supremo Tribunal Federal – PL 5819/2005.

Obs.: Quanto aos demais (itens a, b, c, d, e, f, g, h, i, l), nenhum projeto encontrado.

2.2.2. Iniciativa do TST:

a) Art. 111-A, § 2º, II: Criação do Conselho Superior da Justiça do Trabalho;

b) Art. 111-A, § 2º, I: Criação da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento

dos Magistrados do Trabalho;

c) Art. 112: Criação de varas da Justiça do Trabalho;

d) Art. 115, § 1º: Justiça itinerante na Justiça do Trabalho;

Normas jurídicas editadas ou em tramitação:

Nenhum projeto encontrado.

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2.2.3. Iniciativa dos Tribunais de Justiça dos Estados:

a) Art. 126: Criação de varas para julgamento de conflitos agrários;

b) Art. 125, § 3º: Justiça Militar Estadual;

Obs.: Matérias de competência dos Poderes Legislativos locais.

2.3. Dispositivos dependentes de regulamentação mediante edição de lei de

iniciativa do Procurador Geral da República, segundo a Comissão Mista Especial

para Reforma do Judiciário:

a) Art.128, §5º, b, II, e, f. §6º; Art.129, §2º: Obrigações e vedações aos membros do MP;

b) Art.129, §3º: Ingresso na carreira;

c) Art.130-A: Regulamentação do Conselho Nacional do Ministério Público;

d) Art.130-A, §5º: Criação de ouvidorias do MP;

Normas jurídicas editadas ou em tramitação:

Lei 11.372, de 28.11.2006: Regulamenta o art. 130-A, tratando da forma de indicação

dos membros do CNMP;

Origem: Ministério Público da União – PL 5049/2005.

PL 939/2007: Regulamenta o art. 130-A, que trata da criação do Conselho Nacional do

Ministério Público;

Andamento: apresentada Mensagem da PGR encaminhando projeto de lei sobre

estrutura e organização funcional do CNMP, em 03.05.2007.

Obs.: Quanto aos demais (itens a, b, d), nenhum projeto encontrado.

3. ‘Pacote’ de medidas infraconstitucionais

O item identificado pela Comissão Mista Especial para Reforma do Judiciário

como “instrumentos que assegurem a razoável duração do processo, no âmbito judicial

e administrativo, e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” materializa-

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306

se em diversos projetos de lei em matéria de Processo Trabalhista, Processo Civil e

Processo Penal, além de outras proposições relevantes, tendentes a implementar os

objetivos da Reforma do Judiciário. O chamado ‘pacote’ de medidas infraconstitucionais

abrange propostas elaboradas após o advento da EC 45/2004, diretamente por influência

dela, e outras, que já vinham tramitando nas Casas Legislativas e se identificavam com

os propósitos perseguidos pela Comissão.

3.1. Processo Trabalhista:

PL 4730/04 - Autenticação de cópias

Dá nova redação aos arts. 830 e 895 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada

pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943.

Descrição: Permite que o próprio advogado declare a autenticidade das cópias

oferecidas como provas no processo trabalhista, dispensando o procedimento de

autenticação, que se mostra dispendioso, moroso, e pouco eficaz. Ressalte-se que a

proposta regulamenta e permite a suspeição dos documentos apresentados e impõe a

responsabilização do advogado pelas suas declarações.

Andamento: Aprovado em decisão conclusiva na CCJ em 06.12.2005; Remessa ao

Senado em 14.12.2005; Identificação no Senado: PLC 04/2006; Aguardando votação em

plenário.

PL 4731/04 - Execução trabalhista

Dá nova redação aos arts. 880 e 884 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada

pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943, e revoga o seu art. 882.

Descrição: Propõe que o executado, ao ser notificado da sentença condenatória, pague

ou apresente seus bens aptos a garantir a dívida. A omissão acarretará na vedação ao

recurso da execução. A finalidade da proposta é agilizar a execução e impedir manobras

de ocultamento de bens, usuais na seara trabalhista.

Andamento: Aprovado em decisão conclusiva na CCJ em 09.10.2007; Aguardando

apreciação de recurso interposto contra apreciação em caráter conclusivo na CCJ em

14.08.2007.

PL 4732/04 - Recurso de revista

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Dá nova redação ao art. 896 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo

Decreto-Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943

Descrição: Reduz as possibilidades de recursos de revista em causas de valor inferior a

60 salários mínimos.

Andamento: Aprovado em decisão conclusiva na CCJ em 09.10.2006; Retorno à CCJ

para apreciação de emendas à redação original feitas no Senado, em 16.08.2007.

PL 4733/04 - Embargos

Dá nova redação ao art. 894 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo

Decreto-Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943, e à alínea “b” do inciso III do art. 3o da

Lei no 7.701, de 21 de dezembro de 1988.

Descrição: Reduz as possibilidades de embargos com fins protelatórios ao TST e

diminui de oito para cinco dias o prazo para a apresentação do recurso.

Andamento: Transformado na Lei 11.496, de 24.06.2007.

PL 4734/04 - Sistemática recursal trabalhista

Acrescenta o art. 899-A à Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-

Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943, e revoga o seu art. 899.

Descrição: Estende a obrigatoriedade do depósito recursal a todos os tipos de recursos

trabalhistas, independentemente do valor da condenação; aumenta o limite dos valores

do depósito recursal para 60 (sessenta) salários mínimos, no caso de recurso ordinário, e

para 100 (cem) salários, no caso de recurso de revista e recursos posteriores.

Andamento: Aprovado em decisão conclusiva na CCJ em 07.11.2006; Aguardando

apreciação de recurso interposto contra apreciação em caráter conclusivo na CCJ em

30.11.2006.

PL 4735/04 - Rescisória trabalhista

Dá nova redação ao art. 836 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo

Decreto-Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943.

Descrição: Exige depósito prévio para a ação rescisória. O depósito tem o escopo de

filtrar as ações rescisórias, pois será revertido em multa se a mesma for julgada

improcedente pelos membros do tribunal

Andamento: Transformado na Lei 11.495, de 24.06.2007.

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308

3.2. Processo Civil

PL 4827/1998 - Mediação

Descrição: Institui e fortalece a mediação no processo civil, tornando obrigatória a

tentativa de mediação para solucionar um conflito antes de submetê-lo ao processo

judicial tradicional, nos termos do projeto já apresentado pelo Ministério da Justiça.

Andamento: Aprovado em decisão conclusiva da CCJ em 30.10.2002; Remessa ao

Senado; Identificação no Senado: PLC 94/2002; Aprovado no plenário do Senado em

11.07.2006; Devolução à Câmara; Aguardando manifestação da CCJ da Câmara, em

10.04.2007.

PL 4331/01 - Fazenda Pública

Descrição: Alterações nos prazos diferenciados para a Fazenda; Fim do reexame

necessário para condenações de até 500 salários mínimos; Alterações na execução contra

a Fazenda Pública, e possibilidade de penhora de bens dominicais

Andamento: Aprovado em decisão conclusiva da CCJ em 14.08.2003; Remessa ao

Senado; Identificação no Senado: PLC 61/2003; Aguardando manifestação da CCJ do

Senado, em 25.01.2007.

PL 5828/2001 - Informatização dos procedimentos

Descrição: Informatização dos procedimentos judiciais.

Andamento: Transformado na Lei 11.419, de 19.12.2006.

PL 6954/02 - Competência Juizados Especiais Estaduais

Descrição: Inclui a Fazenda Pública Estadual na competência dos Juizados Especiais

Estaduais. Apensado aos PLs 3283/1997, 3914/1997, 3947/1997, 4000/1997, 4021/1997,

4275/1998, 4404/1998, 6429/2002, 6910/2002, 7165/2002 e 3594/2004.

Andamento: Apresentado parecer na CCJ pelo acolhimento de todos os projetos, a

exceção do PL 7165/2002, em 16.11.2005; Novo parecer na CCJ pela rejeição de todos

os PLs, em 03.04.2007; Parecer aprovado em 11.04.2007.

PL 3253/04 - Execução de títulos judiciais

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309

Inclui e dá nova redação a dispositivos da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973,

Código de Processo Civil, relativamente ao cumprimento da sentença que condena

pagamento de quantia certa, e dá outras providências.

Descrição: Propõe que a liquidação e a execução da sentença judicial deixem de ser

processo autônomo e passem a fazer parte do processo de conhecimento que analisa o

mérito da ação. Com isso, agiliza-se o rito de cumprimento da sentença, ao simplificar a

notificação do réu, que passa a ser por intimação ao invés de citação, além de arbitrar

multa de 10% sobre o valor devido em caso de não cumprimento tempestivo, em 15

dias, da sentença. Dessa forma, são reduzidos os incentivos a atitudes protelatórias que

passariam a ter um ônus maior para as partes. Além disso, propõe-se que o autor passe a

indicar os bens do réu a serem penhorados e o fim dos embargos à execução, que tem o

efeito automático de suspender o processo, criando a figura da impugnação, sem efeito

suspensivo automático.

Andamento: Transformado na Lei 11.232, de 22.12.2005.

PL 4497/04 - Execução de títulos extrajudiciais

Altera dispositivos da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973, Código de Processo Civil,

relativos ao Processo de Execução e a outros assuntos.

Descrição: O Projeto de Lei nº 4.497, de 2004, propõe mudanças no processo de

execução por título extrajudicial. O objetivo da reforma é simplificar e agilizar o

processo de execução, reequilibrando os direitos e deveres das partes e reduzindo o

acesso a mecanismos puramente protelatórios. Segundo a proposta, são concedidos ao

credor alguns direitos como o de indicar os bens do devedor a serem penhorados e de

obter, no início do processo, certidão com a qual poderá gravar os bens do devedor até o

valor da dívida. Dentre os pontos essenciais em que se alicerça o presente projeto

encontra-se a modificação da sistemática dos embargos à execução, que poderão ser

ajuizados independentemente da prévia segurança do juízo, mas ficarão desprovidos de

efeito suspensivo, o qual somente será concedido em casos excepcionais e com o juízo já

garantido por penhora ou caução. Ademais, a alienação em hasta pública perde a

preferência para outros meios expropriatórios, quais sejam, a adjudicação em favor do

exeqüente e a alienação por iniciativa particular, reguladas pela proposição.

Andamento: Transformado na Lei 11.382, de 06.12.2006.

PL 4723/04 - Uniformização de jurisprudência nos juizados

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

310

Inclui Seção ao Capítulo II da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispõe

sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, relativa à uniformização de

jurisprudência.

Descrição: Uniformização de jurisprudência das Turmas Recursais

Andamento: Aprovado em decisão conclusiva na CCJ em 07.03.2007; Remessa ao

Senado; Identificação no Senado: PLC 16/2007; Aguardando parecer da CCJ do Senado

em 03.09.2007.

PL 4724/04 - Processamento de recursos

Altera os arts. 504, 506, 515 e 518 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de

Processo Civil, relativamente à forma de interposição de recursos, ao saneamento de

nulidades processuais, ao recebimento de recurso de apelação e a outras questões.

Descrição: Possibilidade de o Tribunal sanar nulidades ocorridas em primeira instância

já em sede de apelação; Súmula impeditiva de recursos.

Andamento: Transformado na Lei 11.276, de 07.02.2006.

PL 4725/04 Simplificação de procedimentos

Altera dispositivos da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo

Civil. Apensado ao PL 731/03.

Descrição: Inventário e partilha consensual por escritura pública e separação

consensual por escritura pública.

Andamento: Prejudicado pela aprovação do PL 155/2004, de iniciativa do Senado,

transformado na Lei 11.441, de 04.01.2007, que dispõe sobre a realização de divórcios,

separações e inventário e partilha consensual por escritura pública; Arquivado em

15.02.2007.

PL 4726/04 - Competência

Altera os arts. 112, 114, 154, 219, 253, 305, 322, 338, 489 e 555 da Lei no 5.869, de 11

de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil, relativos à incompetência relativa, meios

eletrônicos, prescrição, distribuição por dependências, exceção de incompetência,

revelia, carta precatória e rogatória, ação rescisória e vista dos autos, e revoga o art. 194

da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil.

Descrição: Declaração de incompetência relativa de ofício pelo juiz em contratos de

adesão; Disciplina a prática e comunicação dos atos processuais em meio eletrônico;

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311

Pronunciamento de ofício de prescrição em alguns casos; Disciplina a cautelar em ações

rescisórias; Regulamenta o pedido de vista através de prazos para devolução dos autos.

Andamento: Transformado na Lei 11.280, de 16.02.2006.

PL 4727/04 - Agravo de instrumento e agravo retido

Dá nova redação aos arts. 523 e 527 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código

de Processo Civil.

Descrição: Limitação dos agravos de instrumento

Andamento: Transformado na Lei 11.187, de 19.10.2005.

PL 4728/04 - Julgamento de processos repetitivos

Acresce o art. 285-A à Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo

Civil.

Descrição: Quando a lide versar sobre matéria de direito, em processos repetitivos, e no

juízo já houver sentença de improcedência em caso análogo, poderá ser dispensada a

citação e proferida sentença reproduzindo a anteriormente prolatada.

Andamento: Transformado na Lei 11.277, de 07.02.2006.

PL 4729/04 - Julgamento de agravos - apensado ao 1823/96

Acresce parágrafos aos arts. 552 e 554 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 -

Código de Processo Civil.

Descrição: Proposta da OAB sobre inserção de julgamentos em pauta em casos de

vista; Proposta da OAB sobre sustentação oral em agravos internos.

Andamento: Aguardando manifestação na CCJ desde 23.06.2005.

PL 136/04 - Efeitos da apelação

Descrição: Apelação apenas com efeito devolutivo; Ampliação da multa para agravo

interno manifestamente inadmissível ou improcedente; Depósito do valor da condenação

(até 60SM) para recorrer, sob pena de deserção.

Andamento: Aguardando manifestação da CCJ do Senado, em 24.01.2007.

PL 138/04 - Extinção de embargos declaratórios

Descrição: Extingue os embargos de declaração e substitui por pedido de correção.

Andamento: Aguardando manifestação da CCJ do Senado em 24.01.2007.

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312

3.3. Processo Penal

PL 4203/01- Júri

Descrição: Altera dispositivos do Código de Processo Penal referentes ao Tribunal do

Júri, criando a instrução preliminar, anterior ao recebimento da acusação e da pronúncia,

simplificando o instituto do desaforamento, a instrução em plenário, alterando a matéria

relativa aos quesitos e da outras providências.

Andamento: Aprovado em plenário em 07.03.2007; Remessa ao Senado; Identificação

no Senado: PLC 20/2007; Aprovado no plenário do Senado em 05.12.2007, com

emendas; Aguardando devolução à Câmara.

PL 4205/01- Provas

Descrição: Altera dispositivos do Código de Processo Penal relativos à atividade

probatória, impedindo a fundamentação de condenação em provas colhidas na

investigação, salvo em algumas hipóteses, alterando a sistemática da perícia e da oitiva

de testemunhas.

Andamento: Aprovado em plenário em 17.05.2007; Remessa ao Senado; Identificação

no Senado: PLC 37/2007; Aprovado no plenário do Senado em 05.12.2007, com

emendas; Aguardando devolução à Câmara.

PL-4207/01- Sumarização de procedimentos

Altera dispositivos do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de

Processo Penal, relativos à suspensão do processo, emendatio libelli, mutatio libelli e aos

procedimentos.

Descrição: Objetiva garantir o contraditório na emendatio libelli; estabelecer nova

sistemática para a mutatio libelli, exigindo exata correlação entre acusação e sentença;

autorizar a absolvição sumária; alterar formas procedimentais: no procedimento

ordinário, para os crimes com pena igual ou superior a quatro anos; no procedimento

sumário, para os crimes com pena inferior a quatro anos; estabelecer a competência

privativa do ministério público para o exercício da ação penal pública.

Andamento: Aprovado em plenário em 17.05.2007; Remessa ao Senado em

23.05.2007; Identificação no Senado: PLC 36/2007; Aprovado no plenário do Senado

em 05.12.2007, com emendas; Aguardando devolução à Câmara.

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313

PL 4208/01 - Cautelares

Altera dispositivos do Decreto- lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941 - Código de

Processo Penal, relativos à prisão, medidas cautelares e liberdade, e dá outras

providências

Descrição: Altera dispositivos do CPP referentes às medidas cautelares, especialmente

no que concerne à prisão preventiva

Andamento: Aguardando votação em plenário desde 07.07.05.

3.4. Outros projetos relevantes:

Emenda Constitucional

PEC 358/05 - Reforma do Judiciário

Descrição: Altera dispositivos dos arts. 21, 22, 29, 48, 93, 95, 96, 98, 102, 103-B, 104,

105, 107, 111-A, 114, 115, 120, 123, 124, 125, 128, 129, 130-A e 134 da Constituição

Federal, acrescenta os arts. 97-A, 105-A, 111-B e 116-A, e dá outras providências.

Andamento: Ato da Presidência que cria Comissão Especial em 12.09.2005; Parecer da

CCJ publicado em 04.10.2005; Instalada Comissão especial em 24.11.2005; Aprovado

parecer da Comissão especial, em 20.12.2006.

PL 7570/06 - Custas Judiciais no STJ

Descrição: Dispõe sobre as custas judiciais devidas no âmbito do Superior Tribunal de

Justiça.

Andamento: Apresentado o Projeto de Lei na Câmara dos Deputados em 20.11.2006.

PL 4108/04 - Contenção da litigiosidade

Descrição: Inclui os advogados como passíveis de multa por atitudes protelatórias (antes

a multa era cabível apenas às partes); Regulamenta os honorários, fixa honorários para

recursos e estabelece cumulatividade de honorários para cada recurso apreciado;

Suspensão facultativa do processo quando a lide versar sobre matéria pendente de

julgamento perante o STF ou Tribunal Superior; No caso de multiplicação de ações com

os mesmos fundamentos, contra o mesmo réu o juiz poderá elevar o valor dos honorários

a 50% do valor da causa ou condenação;

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Andamento: Aprovado em decisão conclusiva na CCJ em 13.12.2005; Remessa ao

Senado; Identificação no Senado: PLC 13/2006; Na CCJ do Senado aguardando

designação de relator, em 24.01.2007.

PL 1343/03 - Recurso especial e extraordinário

Descrição: Repercussão geral para o recurso especial; Avocatória nos casos de

multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia.

Andamento: Arquivado em 31.01.2007 sem apreciação da CCJ.

Conclusão

É nítido o esforço legislativo que se vem empreendendo na esteira na

promulgação da EC 45/2004, sendo possível identificar vasto conjunto de projetos de lei,

alguns dos quais já transformados em leis ordinárias, tendentes a implementar as

condições necessárias a concretizar o ideal de ampliação do acesso à justiça.

Evidentemente, todo este esforço não esgota as carências que, mesmo a olhos leigos, se

colocam com nitidez. Ademais, percebe-se claramente que o tempo inerente ao processo

legislativo é deveras longo, havendo acúmulo de projetos, por vezes sobrepostos, com

relação aos quais dificilmente se pode imaginar em que momento virão a se tornar

realidade.

Ao lado do estudo aqui iniciado, outro ainda se mostra extremamente pertinente,

posto que aponta na mesma direção - conferir efetividade ao ideal de acesso à justiça

trazido pela EC 45/2004 - mas provém de diferente esfera estatal: o Poder Judiciário.

Além da regulamentação apontada, vale a pena verificar o que o STF está produzindo

em termos de estrutura de competência, tendo em vista que, nos anos mais recentes, esta

Corte vem, gradualmente, reformulando sua jurisprudência, especialmente em matéria

procedimental, de modo a conferir diferente feição a institutos como a Reclamação, a

Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental e o Mandado de Injunção. A

partir de algumas decisões emblemáticas (como, por exemplo, a Reclamação 4.335; os

Mandados de Injunção 608 e 712; ou a ADPF 54) o STF tem buscado imprimir nova

feição a procedimentos e, com isso, permitir que estes sejam utilizados como vetores

para a implementação de decisões mais eficazes e abrangentes. Veja-se, por todos, o

caso do Mandado de Injunção que, com as recentes decisões proferidas pela Corte acerca

do exercício do direito de greve por servidores públicos, verdadeiramente retirou este

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315

instrumento processual do ostracismo ao qual foi há tempos relegado, permitindo que,

por seu intermédio, a Constituição se realizasse.

Medidas semelhantes evidenciam que a efetivação constitucional não precisa

nem pode depender exclusivamente das iniciativas legislativas, subsistindo largo espaço

para atuação no plano prático, pela via da interpretação e aplicação cotidiana do Direito.

Verifica-se, assim, que os intérpretes são autorizados a, dentro dos limites impostos pelo

plano normativo constitucional e na direta razão deste, reconstruir o Processo

contemporâneo, remodelando normas ou revisando conceitos tradicionais, sempre com o

objetivo de alcançar a realização de um bem maior: a estruturação de um Processo capaz

de dar respostas satisfatórias à sociedade, permitindo o alcance de soluções equânimes e

a concretização das promessas constitucionais de justiça e democracia.

ANEXO B Relatório sobre a proposta de estruturação do Observatório da Justiça Brasileira

apresentado pelo Grupo 5 – UFRJ

Professores José Ribas Vieira, Margarida Maria Lacombe Camargo, Noel

Struchiner, Juliana Magalhães, Alexandre Garrido da Silva e Fernando Gama

Miranda Neto.

I. Introdução:

O Observatório da Justiça Brasileira (OJB), órgão subordinado à Secretaria de

Reforma do Judiciário, apresenta como um dos seus principais objetivos a

instrumentalização institucional de estudos e diagnósticos a respeito da temática do

acesso à justiça, em suas dimensões jurídica e social, bem como a análise do Poder

Judiciário, com ênfase nas decisões judiciais e no seu reflexo na participação e

mobilização da sociedade civil.

O OJB será um órgão permanente de assessoria científica, crítica e independente,

vinculado à Secretaria de Reforma do Judiciário. Os membros do seu Conselho (Órgão

Definidor de Política), de sua Gerência (Agência de Fomento de Estudos sobre o Poder

Judiciário e a solução de conflitos) e de seus Comitês ad hoc (Órgãos de pesquisa e

assessoramento) exercerão suas funções de acordo com um mandato fixo, que poderá ser

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316

de dois anos, nos moldes do Conselho Nacional de Justiça (art. 103-B CF/88). A

previsão de um mandato fixo constitui uma condição sine qua non para a garantia de

autonomia científica do OJB.

II. Proposta de estruturação do OJB:

A organização institucional do Observatório da Justiça Brasileira caracteriza-se

pela sua articulação com os diversos segmentos do Estado e da sociedade brasileira

preocupados com o estudo, diagnóstico e ampliação do acesso à justiça e a solução de

conflitos. Esta articulação constituirá o princípio norteador da democratização do

universo social e político nesta temática. Para tanto, o OJB apresenta uma estrutura

descentralizada de suas atividades de pesquisa e fomento, pressupondo a presença da

universidade, mediante os Programas de Pós-Graduação, além de outros Centros de

Pesquisa que possuam linhas de pesquisa, com caráter interdisciplinar, dedicadas ao

tema da democratização do acesso à justiça.

Neste sentido, conforme o organograma em anexo, o OJB atuará em consonância

com as diretrizes deliberadas e sistematizadas por um Conselho Definidor de Política

(CDP), responsável pela definição, em suas linhas gerais, das políticas de estudos e

pesquisas do Observatório. O Conselho será integrado por representantes da área

acadêmica, Capes e CNPq, por um representante da classe dos advogados, oriundo do

Conselho Federal da OAB, por um representante da magistratura indicado pela

Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), por um representante do Conselho

Nacional da Justiça (CNJ), dois representantes do Ministério da Justiça, sendo que um

deles necessariamente vinculado à Secretaria Especial de Direitos Humanos da

Presidência da República (SEDH), um representante do Poder Legislativo indicado pela

Câmara dos Deputados e, também, por dois representantes de organizações não-

governamentais, sediadas em diferentes regiões do país, constituídas há pelo menos um

ano, cujo principal objetivo de sua atuação seja a democratização do acesso à justiça355.

355 Deste modo, não será possível a inclusão de dois representantes de ONGs sediadas em um mesmo estado ou região do país, valorizando, assim, a pluralidade de experiências e práticas, bem como o seu intercâmbio, que promovam a democratização do acesso à justiça. Neste sentido, podemos citar as redes de advogados populares, projetos de assistência e/ou assessoria jurídica popular, dentre outros. Para uma participação qualificada no Conselho, a ONG precisaria ter uma “bagagem” mínima de experiências no desenvolvimento e estudo de práticas de democratização do acesso à justiça, daí a importância do requisito temporal mínimo de um ano.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

317

Tendo em vista que um dos principais eixos norteadores do OJB consiste na

ampliação da influência da sociedade civil na produção de novas práticas jurídicas e

judiciais, revela-se fundamental a institucionalização da participação deliberativa e

decisória de organizações não-governamentais nos moldes supramencionados, de tal

modo que o OJB, na qualidade de um “mini-público” deliberativo, não venha a ser

capturado por interesses particulares de corporações ou segmentos estatais ou sociais de

qualquer natureza.

Dentre outros importantes aspectos, o Observatório da Justiça Brasileira

diferencia-se do Conselho Nacional de Justiça em duas dimensões fundamentais que, por

sua vez, permitirão a intervenção qualificada – e também criativa – no debate

contemporâneo sobre as reformas institucionais nos sistemas jurídico, judiciário e de

acesso à justiça no Brasil: (a) em primeiro lugar, uma dimensão acadêmica e de

pesquisa, destacada por este grupo, por intermédio da representação do CNPq e da

CAPES (dois representantes) e da participação, por meio de editais, de Programas de

Pós-Graduação e Centros de Pesquisa dedicados ao tema; (b) em segundo lugar, uma

dimensão prática, não-institucional, de um "mundo da vida" inscrito no cotidiano da

práxis de democratização do acesso à justiça no âmbito da sociedade civil, aqui

protegida do perigo de "colonização" pelo Estado, em razão de sua saudável

desvinculação do Ministério da Justiça. Neste sentido, os representantes das

organizações não-governamentais que desenvolvam práticas de democratização do

acesso à justiça terão origens, perspectivas e experiências necessariamente diferentes dos

representantes provenientes do Ministério da Justiça e da Secretaria Especial de Direitos

Humanos, estes formalmente incorporados ao sistema burocrático-estatal.

Deste modo, a existência de dois representantes acadêmicos (CAPES e

CNPq) e da sociedade civil (dois representantes de ONGs) institucionalizam os

objetivos centrais de pesquisa acadêmica e de participação social que norteiam o

Observatório da Justiça Brasileira. Neste ponto é impossível dissociar pesquisa teórica,

reflexão acadêmica e prática social participativa. Os representantes mencionados

possuem informações que potencialmente contribuirão para os objetivos de pesquisa e

de "imaginação institucional" do OJB na proposta de reformas institucionais de

democratização do acesso à justiça na sociedade brasileira. As duas dimensões

anteriormente citadas legitimam a participação inovadora e a intervenção qualificada do

OJB na esfera de discussão política sobre a reforma da justiça e do Judiciário e, ao

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

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mesmo tempo, constituem o principal diferencial em relação à composição e à dinâmica

institucional vislumbrada no funcionamento do Conselho Nacional de Justiça.

Ao Observatório da Justiça Brasileira, coordenado por uma gerência, competirá o

desenvolvimento de políticas investigativas ou outros estudos e atividades analíticas,

centrados no problema da democratização do acesso à justiça e da solução de conflitos,

bem como no debate atual sobre as reformas institucionais nos sistemas Da justiça e do

Judiciário brasileiros. Os Comitês ad hoc (órgãos de assessoramento), divididos em

quatro, serão compostos por três pesquisadores coordenadores, com diferentes

formações acadêmicas, identificados por suas respectivas áreas temáticas, a aber: (a)

acesso à justiça, (b) magistratura, (c) reforma do judiciário e (d) decisões judiciais. É

importante ressaltar que não haverá qualquer espécie de hierarquia entre os Comitês ad

hoc. Desta forma, competirá ao Observatório da Justiça Brasileira, por meio de editais

públicos, convocar os Programas de Pós-Graduação e os Centros de Pesquisa para

proporem projetos de pesquisa sobre temas previamente delineados pelo Conselho

Definidor de Políticas e operacionalizados pela Gerência do OJB.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

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ANEXO C Organograma sobre a estruturação do OJB (Grupo 5 – UFRJ)

Secretaria da Reforma do Judiciário

Conselho(Órgão Definidor de Política)

Comitês “Ad Hoc”(Órgão de Assessoramento)

OJBGerência

(Agência de Fomento de Estudos sobreo Poder Judiciário e a Solução de Conflitos)

Programas dePós-Graduação

Centros de Pesquisa

Acesso à Justiça

Reforma do Judiciário

Magistratura

Decisões Judiciais

Representantes:- Capes- CNPq- Cons. Fed. OAB- CNJ- Min. da Justiça- Sec. de Dir. Humanos- Câmara dos Deputados- AMB- Dois representantes de ONGsque atuem na democratização do acesso à justiça.

(Chamadas por Editais)

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

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ANEXO D Visualização Articulada dos Elementos da Política Pública Proposta

(in: SILVA, Fábio Sá e. Para Uma Política de Direitos: Uma Proposta de Agenda para

a Secretaria de Reforma do Judiciário, com base nas lições aprendidas no âmbito do

Projeto ‘Dossiê Justiça’, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento; Projeto

BRA/07/004 - Área temática: Observatório do Judiciário, Ministério da Justiça

Secretaria de Assuntos Legislativos / Secretaria da Reforma do Judiciário)

Ministério da Justiça

Secretaria de Reforma do Judiciário

Gerência do Observatório Permanente da Justiça Brasileira

Câmara de Concertação para a Reforma e Modernização da Justiça

Comitê Ad-Hoc

CAPES, CNPq e MEC/SeSu

Pareceristas

CES

Programas de Pós-Graduação e Centros de Pesquisa (Projetos)

Conferência Nacional de Justiça, Segurança e Cidadania

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

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Para Uma Política de Direitos: Uma Proposta de Agenda para a Secretaria

de Reforma do Judiciário, com base nas lições aprendidas no âmbito do

Projeto “Dossiê Justiça” (ou Subsídios para a Institucionalização de um

Observatório Permanente da Justiça Brasileira no Âmbito do Ministério da

Justiça).

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

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1. Introdução, Justificativa e Proposições Gerais

Como desdobramento que exprime algumas das lições aprendidas na execução

do projeto “Dossiê Justiça: uma Proposta de Observação da Relação entre Constituição

e Democracia no Brasil”, este texto pretende sugerir novos ingredientes para a

construção de uma política de direitos no país, baseando-se na atuação protagônica do

Ministério da Justiça.

A expressão “política de direitos” designa um conjunto de medidas a partir das

quais seria possível explorar mais plenamente o potencial do sistema jurídico para a

produção da cidadania e a realização dos Direitos Humanos356. No caso brasileiro, a

existência de um potencial democrático e democratizante no sistema jurídico é visível

desde o próprio processo constituinte, intensamente permeado pela participação popular

e legatário de um dos textos mais progressistas de nossa história.

Uma política de direitos envolve fatores que muitas vezes parecem contraditórios

entre si. Ela demanda a ampliação radical do acesso ao judiciário e aos demais poderes

públicos por parte dos cidadãos e requer uma intensa vigilância quanto aos modos de

funcionamento dessas instituições, a fim de minimizar os riscos de sua apropriação e

abuso por interesses não-republicanos. Mas ela também envolve o reconhecimento e a

promoção de formas não-convencionais e até mesmo populares de criação e distribuição

do direito, o que aliás tende a ser um dado marcante das situações nas quais os recursos

institucionais disponíveis se revelem hostis ou ao menos insuficientes para a satisfação

de demandas emancipatórias357.

356 A rigor, a expressão “política de direitos” tem origem na experiência americana e remonta à “rights revolution” dos anos 1960, de que dá conta o clássico livro de Stuart Scheingold (“The Politics of Rights: Lawyers, Public Policy, and Political Change”. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2004). Com o avanço no reconhecimento de direitos pelos tribunais, notadamente a partir da jurisprudência da Warren Court, difundiu-se a crença de que a transformação social tem no sistema jurídico uma de suas mais importantes arenas. Em língua portuguesa, essa expressão foi resgatada recentemente por Boaventura de Sousa Santos, para entretanto referir-se a um contexto diferente: o contexto latino-americano no qual vários direitos já foram reconhecidos por processos constituintes, mas que “a hipocrisia e a falta de vontade dos governantes não têm até agora tornados efetivos” (“Para uma Revolução Democrática da Justiça”. São Paulo: Cortez, 2007 p. 10). Como a seqüência da leitura haverá de revelar, essas impressões de Boaventura são plenamente compartilhadas neste projeto. 357 Essa é, mais uma vez, a opinião de Boaventura de Sousa Santos, para quem, aliás, o ângulo privilegiado para a elaboração de reformas da Justiça deve ser justamente o dos “desempregados e dos trabalhadores precários, dos camponeses sem-terra, dos indígenas espoliados, das vítimas de despejos, das mulheres violentadas, das crianças e adolescentes abandonadas, dos pensionistas pobres” (p. 35). Se esse ponto de vista for adotado, diz Boaventura, o resultado será uma dupla transformação: haverá maior acesso à justiça, mas o maior acesso à justiça mudará a justiça a que se tem acesso.

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323

Quer isso dizer que a implementação de uma política de direitos não pode ficar

apenas no plano “técnico”, como o das alterações no processo ou da melhoria na gestão

dos tribunais. O uso da expressão “Justiça” ao longo deste projeto tem exatamente a

intenção de estabelecer um contraste com a noção estreita de “Judiciário”, designando

os vários processos (sociais, ao invés de puramente judiciais) por meio dos quais se

buscam e se afirmam as liberdades individuais e coletivas. É sobre esses processos que

deve recair o foco de análise e intervenção.

Tomando por base o quadro organizativo do Ministério da Justiça, uma política

de direitos parece ter melhor localização na Secretaria de Reforma do Judiciário – órgão

cujo objetivo tem sido o de promover, coordenar, sistematizar e angariar propostas de

reforma e modernização do Judiciário.

É bom lembrar que a criação da Secretaria de Reforma do Judiciário não foi um

evento pacífico no contexto institucional brasileiro. Na posição contrária, o argumento

era de que, enquanto órgão vinculado ao Executivo, o Ministério da Justiça não teria a

prerrogativa de liderar iniciativas que tratassem de temas relacionados a um outro Poder.

Todavia, as realizações da Secretaria têm se mostrado de grande importância para a

geração de um debate mais amplo e transparente sobre os mecanismos de distribuição do

direito. Com a celebração de diversas parcerias e acordos de cooperação internacional, a

Secretaria tem viabilizado a realização de estudos detalhados sobre práticas sociais e

institucionais para a criação e distribuição do direito, incluindo diagnósticos da

Defensoria Pública, do Ministério Público, da Magistratura, de Cartórios Judiciais, de

Sistemas Alternativos de Administração de Conflitos e de experiências de Gestão dos

Tribunais.

Além disso, a Secretaria tem desempenhado um papel extremamente importante

na indução de novas práticas, apoiando projetos nas áreas de Justiça Comunitária e

Justiça Restaurativa, bem como concedendo prêmios para iniciativas inovadoras no

campo da prestação jurisdicional pelo chamado “Prêmio Innovare”. Finalmente, a

Secretaria tem trabalhado na articulação de alterações nos dispositivos constitucionais e

infraconstitucionais que regulamentam os sistemas de justiça e segurança pública,

dialogando intensamente com atores do Legislativo e de segmentos corporativos.

Por outro lado, convém ressaltar que as atuais gestões do Ministério e da

Secretaria têm apresentado condições favoráveis à concepção e implementação de uma

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324

política de direitos. O binômio “segurança e cidadania”, que integra o mote do

PRONASCI, deixa claro o entendimento de que o direito e as instituições devem operar

como propulsores das lutas pela afirmação das liberdades. Dentre outras repercussões

programáticas358, essa orientação tem direcionado o foco da “reforma e modernização do

judiciário” para a “democratização do acesso à justiça”, título do Seminário realizado em

março de 2006 com a participação de Boaventura de Sousa Santos e a presença de

movimentos sociais, organizações governamentais e não-governamentais e

representantes das carreiras jurídicas.

Este projeto visa a aprofundar tal histórico e suas valências democráticas,

trabalhando a partir das variáveis que nele têm estado presentes de maneira mais

acentuada: a investigação crítica e a concertação política. No primeiro caso, prevê-se a

criação de um centro de pesquisa que funcionará sob o modelo de um Observatório

Permanente da Justiça Brasileira. No segundo caso, sugere-se a criação de uma Câmara

de Concertação para a Reforma e a Modernização da Justiça, associada a uma

Conferência Nacional. As próximas seções deste documento destinam-se então ao

detalhamento dessas propostas, com destaque para o que elas trazem de novo

relativamente ao que tem sido a prática do Executivo Federal frente às questões até

agora levantadas.

2. Proposições Específicas

2.1. Do Observatório Permanente da Justiça Brasileira, sua Gerência (ou Diretoria)

Executiva e sua “Biblioteca de Alternativas”.

A criação de um Observatório Permanente da Justiça Brasileira, inicialmente

articulado à estrutura da própria Secretaria de Reforma do Judiciário, visa a produzir

investigação empírica e crítica sobre os mecanismos de criação e distribuição do direito

socialmente disponíveis, alimentando os Poderes Públicos e a sociedade brasileira com

elementos de informação a partir dos quais podem ser desenvolvidas as estratégias e

pactuações necessárias para a reforma e a modernização do sistema de Justiça.

358 Embora a mídia tenha se interessado mais pela dimensão de Segurança Pública contida no PRONASCI (logo, pelas ações voltadas à prevenção e repressão à violência e à criminalidade por meio do aparato policial e penitenciário), deve-se notar que o programa apresenta diversas à conscientização sobre os direitos (por exemplo, o “canal comunidade”, no campo do direito do consumidor) e à aproximação entre as instituições da Justiça e a sociedade (por exemplo, com a criação de conselhos comunitários de segurança pública, de núcleos de justiça comunitária, de estratégias para a efetivação da Lei Maria da Penha e com o fortalecimento de Ouvidorias). Para maiores informações cf. www.mj.gov.br/pronasci.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

325

Além disso, a criação do Observatório auxiliaria no monitoramento das reformas

já em andamento, permitindo o controle dos seus eventuais efeitos perversos e a

proposição de cenários alternativos de futuro. Muita energia política tem sido investida

na realização das reformas, mas pouca no seu monitoramento, o que poderia ser

importante para corrigir erros e novamente evitar apropriações e abusos. Finalmente, as

pesquisas do Observatório auxiliariam na prospecção e avaliação de experiências que,

embora existentes, podem restar ofuscadas pelo modelo central de Justiça. A partir desse

trabalho verdadeiramente “cartográfico”, realizado nos moldes de uma “sociologia

emergências”359, o Observatório poderia manter uma página na web contendo uma

espécie de “Biblioteca de Alternativas”, como subsídio e estímulo para outras iniciativas

de transformação.

A operacionalização do Observatório será conduzida no âmbito de uma Gerência

ou de uma Diretora Executiva e se possível viabilizada por uma ação no Plano

Plurianual, com descritor que autorize a contratação de instituições ou centros de

pesquisa, a publicação e a divulgação de relatórios e eventualmente a realização de

eventos, tais como painéis, colóquios, etc. A Gerência Executiva ficará subordinada

diretamente ao Secretário de Reforma do Judiciário, correspondendo ao menos a um

Cargo de Direção e Assessoramento Superior de nível 101.4.

A localização da Gerência ou Diretoria Executiva do Observatório no âmbito do

Ministério pode ser inicialmente importante por dois motivos: primeiro, isso coloca a

seu serviço a capacidade de mobilização do governo, chamando a atenção da opinião

pública para as pesquisas e estimulando os grupos potencialmente interessados em

participar de sua execução. Depois, isso permite situar a atividade do Observatório num

autêntico contexto de política pública, de modo que ele não seja apenas um centro de

estudos como muitos outros atualmente já existentes no âmbito de universidades. A

questão é assegurar que esses benefícios não prejudiquem um outro ponto fundamental

das suas atividades: a sua autonomia científica.

Frente a tal desafio, este projeto busca situar o Observatório no que Boaventura

de Sousa Santos já definiu como “[uma] forma de organização política mais vasta que o

Estado, de que o Estado é o articulador e que integra um conjunto híbrido de fluxos, 359 Sobre a “sociologia das emergências”, ver Boaventura de Sousa Santos, “Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências” in Santos, Boaventura de Sousa (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: ‘um discurso sobre as Ciências’ revisitado. São Paulo: Cortez, 2004. p.777-821.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

326

redes e organizações em que se combinam e interpenetram elementos estatais e não

estatais, nacionais, locais e globais”360. Três são as estratégias assim concebidas: a) a

adoção de um Comitê “ad hoc” com perfil técnico-científico, que funcionará junto à

Gerência ou Diretoria Executiva do Observatório com prerrogativas de assessoria; b) a

relação com o sistema de educação superior, integrando ao Observatório a presença de

profissionais da academia; e c) a cooperação internacional, que se reverterá na parceria

com o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES/UC), instituição

que por mais de uma década tem sediado um Observatório Permanente da Justiça

Portuguesa. Tais estratégias encontram-se descritas nas próximas seções.

2.1.1. Do Comitê Científico, dos Pareceristas “ad hoc” e da Seleção de Propostas

O Observatório vem aqui concebido para atuar de maneira descentralizada, ao

invés de contar com quadros próprios de investigação. Assim sendo, seu principal

instrumento de gestão será a contratação de instituições de ensino superior e centros de

pesquisa para a execução dos seus estudos, de acordo com critérios próprios de seleção.

Tais critérios terão evidentemente um duplo caráter: técnico-científico (requisitos

mínimos para a habilitação do proponente, adequação metodológica, etc.) e político

(definição dos temas e problemas que serão objeto da investigação, de acordo com as

demandas presentes na agenda social de reforma e modernização da Justiça).

Para garantir excelência em relação aos critérios técnico-científicos, o

Observatório contará com um Comitê Científico “ad hoc”, composto por atores com

formação interdisciplinar e perfil essencialmente acadêmico. O arranjo inicialmente

sugerido para o Comitê compreende 06 (seis) membros, com background ou destacada

atuação nas áreas de: Direito; Sociologia; Filosofia; Ciência Política; Economia e

Relações Internacionais. Esse Comitê principal poderá solicitar pareceres a outros/as

especialistas, sempre que a complexidade das pesquisas a serem realizadas assim o

sugerir.

Os membros do Comitê Científico “ad hoc” serão indicados pela Gerência e

nomeados pelo Ministro, com mandato de 02 (dois) anos e renovação alternada para a

metade dos membros. Essa métrica garantirá a manutenção dos critérios mesmo em caso

360 Ver o texto “A reinvenção solidária e participativa do Estado” de Boaventura de Sousa Santos in Pereira, L.C. Bresser, Wilheim, Jorge e Sola, Lourdes. Sociedade e Estado em Transformação. São Paulo/Brasília: Editora UNESP/ENAP, 1999.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

327

de transição governamental. Naturalmente, a indicação pode se basear em mecanismos

de consulta pública ou setorial, a critério do Ministério.

A principal função do Comitê será auxiliar na elaboração dos editais e termos de

referências para as pesquisas, a fim de que fiquem bem explicitadas as questões às quais

elas devem responder e enfatizada a necessidade de que os pesquisadores e

pesquisadoras elaborem recomendações em nível de política pública para a reforma e a

modernização da justiça. Tais recomendações devem envolver, tipicamente, propostas de

alterações legislativas e de indução em mudanças organizacionais que possam ser

promovidas ou induzidas a partir dos programas do Ministério da Justiça361 e dos foros

de participação social que acompanham a implementação do Observatório – a

Conferência e a Câmara de Concertação. Nesse quadro, o Comitê se coloca como um

“tradutor” entre demandas por conhecimento e mobilização acadêmica, assegurando

uma importante mediação entre a linguagem política e a linguagem técnico-científica, a

fim de que os estudos sejam metodologicamente rigorosos e socialmente

significativos362.

2.1.2. Da Relação com o Sistema de Educação: CAPES, CNPq e SeSu/MEC

Outro dado importante neste projeto está na sua pretensão de que o Observatório

estabeleça relação de parceria com o sistema de educação superior, notadamente a

CAPES, o CNPq e a SeSu/MEC. Além de reforçar o seu caráter técnico-científico e

facilitar o diálogo com os Programas de Pós-Graduação e Centros de Pesquisa, essa

proximidade também permitiria que as demandas por novos conhecimentos na área

viessem a se refletir nas atividades regulares de ensino, pesquisa e extensão. Desse

modo, a criação do Observatório poderia ainda influenciar na formação (em nível de

graduação e pós-graduação) de uma nova geração de operadores do sistema de justiça,

361 Algumas iniciativas nesse sentido residem, por exemplo, no apoio institucional e material do Ministério à implantação de Varas e/ou Centrais de Execução de Penas e Medidas Alternativas, em projetos-piloto sobre Justiça Restaurativa e, mais recentemente, na implementação da Lei Maria da Penha. 362 A preocupação com as conseqüências sociais na produção de saberes científicos demarca toda a trajetória do pensamento crítico, que na língua portuguesa tem como notável exemplo Boaventura de Sousa Santos e seu “Um Discurso sobre as Ciências” (Porto: Afrontamento, 1988 e Rio de Janeiro: Graal, 1989). Realçar esse princípio de “conseqüencialismo” das atividades do Observatório, portanto, representa um primeiro passo neste projeto para articular ciência e senso comum.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

328

imprimindo nos programas de educação superior as marcas de uma política de

direitos363.

Vale ressaltar que a constituição de uma tal relação orgânica entre a Justiça e o

sistema de Educação Superior no intuito de alterar a formação dos operadores do direito

também se encontra potencializada pelo histórico recente da atuação do Ministério. No

ano de 2005, o Departamento Penitenciário Nacional editou “Fundamentos de Política e

Diretrizes de Financiamento” para a sua política de “Educação em Serviços Penais”364.

O documento conclamava uma parceria com a CAPES e o CNPq para mobilizar a

energia das instituições universitárias no sentido de que aprofundassem suas ações em

torno da questão prisional, incluindo a formação avançada dos/as profissionais com

atuação na execução penal. Embora tal parceria não tenha se concretizado, a idéia ainda

se revela de extrema atualidade, especialmente no momento em que o Ministério da

Justiça consolida uma Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública

(RENAESP)365, em parceria com a SeSu/MEC366.

Da mesma forma, destaca-se a parceria celebrada no ano de 2005 entre a

SeSu/MEC e o Depen no âmbito do programa RECONHECER – Práticas Jurídicas

Emancipatórias. Essa parceria importou na destinação de R$ 100.000,00 (cem mil reais)

do Fundo Penitenciário Nacional a fim de apoiar projetos de extensão ou pesquisa/ação

elaborados por Faculdades de Direito, com atenção específica para a questão prisional.

Finalmente, é de se realçar a participação do Ministério da Justiça no Grupo de

Trabalho instituído no MEC por meio das Portarias nº 3.381, de 20 de outubro de 2004,

e nº 484, de 16 de fevereiro de 2005, com a finalidade de “realizar estudos para

consolidar os parâmetros já estabelecidos para a análise dos pedidos de autorização de

novos cursos jurídicos”. Naquela ocasião, a interlocução entre as duas Pastas foi

simbolicamente atribuída para o fim de “sincronizar o ensino jurídico com os novos

363 A relação entre a formação deficitária dos profissionais da justiça e as dificuldades para a consecução de uma política de direitos, que constitui a razão de fundo desta proposição, é uma constatação recorrente nas pesquisas sobre o tema. 364Ver notícia disponível em: http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJ85F7D97EITEMID10E516E83BBE40DCAC6E3A2CD9E1B37CPTBRIE.htm 365 Ver notícia disponível em: http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJ2BB50889ITEMID04342454E5E147779AC044B8EB25530EPTBRIE.htm 366 Ver notícia disponível em: http://portal.mec.gov.br/sesu/index.php?option=com_content&task=view&id=9643&interna=6

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

329

desenhos que se postulam para os sistemas de justiça”. O relatório final acrescenta,

ainda, que essa articulação “complementa e aprofunda o projeto de Reforma do

Judiciário, na medida em que toca um dos problemas do sistema de justiça, ou seja, a

fraca sincronia entre a formação do operador do direito, as demandas colacionadas pelos

movimentos sociais e as respostas oferecidas pelo aparato oficial”. 367

O importante desse histórico é perceber que, ao longo dos últimos anos, o

diálogo com o sistema de Educação Superior tem sido visto como um componente

fundamental para qualquer estratégia conseqüente de reforma e modernização da Justiça,

já que uma política pública não se faz sem sujeitos e sem conhecimento. Este projeto

igualmente aproveita essas lições e sugere que o Observatório constitua relação com a

CAPES, o CNPq e a SeSu/MEC por meio um acordo multilateral de cooperação técnica.

O trabalho dos representantes desses órgãos se daria junto à Gerência, no mesmo

contexto do funcionamento do Comitê Assessor “ad hoc”, compreendendo a

participação em reuniões e o acesso a todas as demais atividades conduzidas no âmbito

do Observatório.

2.1.3. Da parceria com o CES/UC

A participação do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra nas

atividades do Observatório já se encontra garantida por contratação efetuada no âmbito

do Projeto BRA/05/036, que tem por objetivo dotar o Ministério da Justiça de orientação

especializada para o trato com o assunto. A disponibilidade dessa consultoria tende a ser

um fator extremamente positivo para o sucesso na implementação do Observatório,

tendo em vista a indiscutível experiência de que desfruta o CES como sede do

Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

Além disso, o CES tem estado envolvido em vários projetos transnacionais de

investigação sobre a Justiça, como é o caso atual do projeto sobre a pluralidade de

ordens jurídicas e sistemas de justiça em Luanda/Angola, em parceria com a Faculdade

de Direito da Universidade Agostinho Neto. Essa experiência adicional na cooperação e

realização de estudos internacionais poderá ajudar fortemente o Observatório Brasileiro

a integrar-se a redes e projetos internacionais que permitam aprofundar a troca de

367 Ver documento disponível em: http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/nova/grupodetrabalhomecoab.pdf

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

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experiências e boas práticas, e, sobretudo, a fortalecer a cooperação entre as instituições

do espaço da CPLP.

Tendo isso em mente, este projeto busca apenas indicar o melhor escopo para as

atividades a serem executadas pelo CES, de modo que elas operem em sincronia com o

desenho até agora proposto. Se a Gerência Executiva e o Comitê Científico, com apoio

de pareceristas, serão os responsáveis pela definição dos editais e a seleção das propostas

de investigação, o CES pode atuar como parceiro dos grupos escolhidos para a execução

dessas atividades. Nesse sentido, a equipe do CES viria a conduzir oficinas com os/as

pesquisadores/as brasileiros/as, com a finalidade de trocar experiências, intercambiar

metodologias, oferecer aportes provenientes de estudos internacionais, discutir a

possibilidade de inclusão de dados na perspectiva comparada, etc. Isso daria mais

densidade aos relatórios finais e ainda viria a empoderar os grupos envolvidos, na

medida em que lhes proporcionaria um diálogo privilegiado como etapa do próprio

processo de pesquisa368.

2.2. Da Conferência Nacional para a Democratização da Justiça

As seções anteriores focaram a dimensão técnico-científica deste projeto, cujo

epicentro está no Observatório e seus pontos de apoio (a Gerência Executiva, o Comitê

Assessor “ad hoc”, pareceristas, o Sistema de Educação Superior, o CES/UC e os grupos

de pesquisa). A partir desses elementos, pretende-se ampliar de maneira quantitativa e

qualitativa o conhecimento sobre a Justiça no Brasil. Mas na construção de uma “política

de direitos”, isso ainda não chega a ser suficiente: deve-se discutir o que fazer com os

resultados dessas pesquisas. Nesse sentido, as próximas seções indicam o

estabelecimento de mais dois espaços que se relacionam com o Observatório no

propósito de orientar o sistema jurídico para direções emancipatórias. São eles: uma

Conferência Nacional de Justiça, Segurança e Cidadania; e uma Câmara de Concertação

para a Reforma e a Modernização da Justiça.

O dado central da Conferência é a valorização da participação social nos debates

sobre a Justiça, o que encontra várias fontes de justificação. Em primeiro lugar, ela

equivale a reafirmar o pressuposto de que a Justiça não é um assunto privativo de

368 Para o futuro, esse tipo de parceria pode ser replicado com outros atores internacionais, especialmente no âmbito regional. Uma hipótese que já poderia ser cogitada desde agora é com o ILSA (Instituto de Servicios Legales Alterntivos), sediado na Colômbia, dedicado a analisar “prácticas jurídicas populares para la transformación social y democracia) e mantenedor de um Observatório sobre os processos de “Verdad, Justicia y Reparación na Colômbia. Para maiores informações sobre o ILSA cf. www.ilsa.co.org.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

331

“especialistas”, já que o direito não se restringe aos espaços formais de que esses

especialistas geralmente participam369. Em segundo lugar, ela implica em reconhecer

que a dimensão prática, não-institucional, de “mundo da vida” inscrita no cotidiano da

busca por direitos, é capaz de oferecer alternativas extremamente promissoras, quando

não de notável efetividade para a reorientação democrática da Justiça370. Finalmente, ela

significa salientar que mesmo nos espaços formais como os Tribunais podem existir

canais para a participação cidadã, a qual pode ocorrer por diversos expedientes como a

Conciliação, a Justiça Comunitária, a Justiça Restaurativa e o amicus curiae da

Jurisdição Constitucional. Numa palavra, portanto, incorporar a participação social nos

debates sobre a Justiça significa aceitar que “a criação e a distribuição do direito é um

fenômeno plural em sentido quantitativo e qualitativo, ou seja, acontece não apenas em

diferentes espaços como também de diferentes maneiras” 371.

No seu aspecto operacional, a idéia é de que a Conferência venha a ser um lócus

de deliberação sobre os desafios da política pública de democratização da justiça e de

seu acesso. Num primeiro momento, essas deliberações constituiriam tópicos para as

pesquisas do Observatório, a serem melhor delimitados por sua Gerência, com apoio do

Comitê Assessor. Num segundo momento, as pesquisas poderiam retornar à arena de

debates, como elementos de informação e propulsores de uma abordagem cada vez mais

crítica372. Finalmente, as deliberações da Conferência e as pesquisas do Observatório

constituiriam o material que orientaria um processo mais amplo de concertação política,

a ocorrer no âmbito de uma Câmara, sobre a qual se falará logo adiante.

Nesse sentido, a Conferência se apresenta como um amplo lócus de diálogo com

a sociedade, já que a missão essencialmente científica do Observatório não permite (ou

369 Nos debates epistemológicos, este argumento conduz a uma valorização do “senso comum”, que por várias vezes se mostra mais capaz de responder a questões que a ciência ou o conhecimento especializado não consegue. Por outro lado, ele se volta a combater situações freqüentes de autoritarismo, nas quais o “discurso competente” é usado como forma de tolher a participação e favorecer alguns poucos. 370 Esse é o caso das assessorias jurídicas populares e de projetos como o “Promotoras Legais Populares” e “O Direito Achado na Rua”, para ficar apenas nos mesmos exemplos mencionados por Boaventura de Sousa Santos (op. cit.). 371 Para essa definição de pluralismo jurídico, ver Fábio Sá e Silva (Ensino Jurídico. A Descoberta de Novos Saberes para a Democratização do Direito e da Sociedade. Porto Alegre: SAFE, 2007). 372 Isso permite, aliás, sintetizar os princípios que sustentam a política de direitos aqui proposta: a autonomia científica e o conseqüencialismo das investigações (ver a configuração proposta para o Observatório), a natureza de política pública, mas não estatal (por isso mesmo articulada pelo Ministério da Justiça, mas aberta à participação de diversos setores sociais), a participação social (ver as Conferências e a Câmara de Concertação), a transparência (ver a manutenção de uma “Biblioteca de Alternativas e a divulgação extensiva dos resultados das pesquisas) e a sustentabilidade (ver seção específica, adiante).

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

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ao menos restringe) a representação da cidadania e dos movimentos sociais373 e um dos

elementos chaves para uma autêntica política de direitos é a partilha das decisões com os

grupos por ela afetados. Ao invés de pensar sobre a Justiça (mais uma vez entendida

como prática social), deve-se pensar com os atores envolvidos na Justiça, quer como

seus operadores, quer como seus usuários.

O importante é ressaltar que este projeto não prevê nenhuma prática estranha ao

nosso contexto social e cultural. Inaugurado com a 8ª. Conferência Nacional de Saúde, o

modelo de participação da sociedade civil por Conferências é paradigmático de nossa

experiência jurídico-política, tanto pelos meios que adota quanto para os fins a que se

destina (não apenas consulta, mas eventualmente deliberação). No mais, até mesmo

alguns segmentos com atuação no campo da Justiça formal demonstram habitualidade

com os procedimentos das Conferências. É o caso da Ordem dos Advogados do Brasil,

cujo Regulamento Geral define as Conferências como o “órgão consultivo máximo do

Conselho Federal”, a teor do art. 145 do Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e

da OAB.

2.3. Da Câmara de Concertação para a Democratização da Justiça

A última peça no mosaico da política de direitos proposta neste projeto é o

estabelecimento de uma Câmara de Concertação para a Reforma e a Modernização da

Justiça. Adensando o componente político da proposta, ela reuniria representantes: a)

das instituições da justiça e da segurança pública (Tribunais, Polícias, Administração

Penitenciária, Órgãos de Defesa do Consumidor e Conselhos Nacionais de Justiça, do

Ministério Público e de Política Criminal e Penitenciária); b) das instituições

corporativas vinculados às carreiras jurídicas tradicionais (Magistratura, Ministério

Público, Advocacia e Defensoria Pública); c) do governo federal, tomando-se como

critério a parceria para a atuação no PRONASCI; d) de setores ligados ao setor

produtivo e ao desenvolvimento econômico; e e) da sociedade civil e dos movimentos

sociais.

373 É válido lembrar que, num momento em que o paradigma científico da modernidade encontra-se afetado por uma crise de confiança epistemológica, é sempre possível adotar alguns expedientes para democratizar a produção de saberes. Um caso perfeitamente aplicável ao Observatório seria o das metodologias participativas, como a dos “painéis” utilizados pelo Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, lotado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES/UC). Sobre essa prática, cf. o relatório elaborado por Flávia Carlet (Observações e Acompanhamento no Âmbito do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa – OJP. CES/UC, maio de 2007).

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

333

A composição exata da Câmara deve ser refinada para garantir representatividade

e proporcionalidade entre os segmentos de Estado, Mercado e Sociedade relacionados

acima. Afora os membros natos ou indicados pelas carreiras, o mandato dos demais

membros seria de 02 (dois) anos, permitida a recondução por mais uma única vez. A

nomeação, nesses casos, seria feita pelo Ministro da Justiça, a quem também caberia

presidir a Câmara. As principais atribuições da Câmara seriam: convocar a Conferência

Nacional e sediar processos de negociação para a elaboração ou a implementação de

projetos de reforma e modernização da justiça como fatores de produção da cidadania374.

Novamente é importante destacar que a idéia de diálogo social para a concepção

de reformas estruturais não é de todo original, mas deriva de experiências no Brasil e no

estrangeiro situadas no campo do desenvolvimento econômico e social. Neste projeto,

ela busca objetivar os debates sobre a Reforma e a Modernização da Justiça sem prejuízo

dos aspectos de publicidade e participação.

2.4. Da dinâmica da política pública e de sua posição relativa à democratização da

sociedade

Este projeto coloca o debate sobre Reforma e Modernização da Justiça numa teia

mais ampla e complexa de relações sociais, restringindo o espaço para corporativismos e

escapando da deliberação por “minipúblicos” fundados no já criticado “discurso

competente”. Seus diversos elementos tornam impossível dissociar pesquisa empírica,

reflexão acadêmica e prática social participativa. Os segmentos representados em cada

um dos espaços aqui propostos (Observatório, Conferência e Câmara de Concertação)

trarão informações que contribuirão para os objetivos de pesquisa e de “imaginação

institucional”, a partir dos quais se poderá vislumbrar um novo e mais democrático

momento para a reforma e a modernização do sistema de Justiça.

A figura abaixo ilustra essa dinâmica, enquanto que os Apêndices I e II oferecem

uma abordagem panorâmica das tarefas envolvidas e da articulação das diversas

variáveis presentes no desenho de política pública subjacente a este projeto:

374 A distinção entre elaboração e implementação reflete a constatação de que, em muitos dos casos, já existem possibilidades de mudança que não requerem alteração legislativa, porém maior entendimento entre os órgãos envolvidos numa determinada forma de distribuição do direito.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

334

3. Da Sustentabilidade do Desenho

A preocupação com a sustentabilidade do desenho político e institucional aqui

proposto deve ser colocada em pauta não apenas pelas virtudes democráticas que ele

presumidamente contém, mas também porque a sua implementação envolve um

considerável grau de energia e recursos públicos. A convocação de uma Conferência e o

estabelecimento de uma Câmara de Concertação sinalizam para uma cultura de

participação que tende a atrair a atenção pública e, quiçá, alguma simpatia. Mas isso

evidentemente não é suficiente para proteger o desenho de supressões abruptas e não-

debatidas, no caso de mudanças na gestão do Ministério ou na orientação do Governo.

Nesse aspecto, o Observatório é sem dúvida o elo mais frágil da cadeia. Sua localização

no Ministério da Justiça, baseada num cargo de confiança, o torna um potencial refém de

mudanças de gestão.

A celebração de parcerias com a CAPES e ao CNPq e a conexão com o CES

conferem uma importante legitimidade acadêmica para as suas atividades, mas talvez

isso não seja o suficiente. Por essa razão, este projeto toma a liberdade de indicar

alternativas para a institucionalização do Observatório, campo no qual se visualizam

dois modelos: o primeiro de uma Organização Social, o segundo de Autarquia.

Evidentemente, esses não são os únicos modelos possíveis, e cada um deles

possui vantagens e desvantagens que não podem ser exploradas nos limites deste texto,

cuja preocupação está centrada nos pontos mais imediatos para a construção do

Investigação Empírica dos Mecanismos Socialmente Disponíveis para a Criação e

a Distribuição do Direito;

Identificação de Novas Direções para a Reforma da Justiça;

Elaboração de Recomendações em Nível de Política Pública (Alterações

Legislativas ou outras Mudanças Organizacionais que podem ser induzidas pelos programas do Ministério da Justiça)

Aumento Quantitativo e Qualitativo no Acesso ao Sistema de Direitos

Instituído a partir da Constituição de 1988;

Construção de uma Política de Direitos que mobiliza instituições e operadores

da Justiça

Democratização do Direito e da Sociedade

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

335

Observatório e dos outros componentes de uma política de direitos a ele associadas. Em

todo caso, o importante por agora é deixar registrada a existência dessas alternativas para

que, em havendo necessidade, alguns dos elementos da política se inscrevam no

horizonte do Estado Brasileiro375. Porque se há algo que a trajetória pós-constituinte nos

debates sobre a Justiça revela com clareza é que é preciso abrir sempre novas frentes de

escrutínio público, por custoso ou aparentemente caótico que isso possa parecer. Do

contrário, o assunto continuará sob o domínio de poucos, o que a bem da verdade

representa o maior dos riscos sob os quais se situa o sistema jurídico: o risco de se tornar

insignificante para uma grande maioria e, por isso mesmo, suscetível de ser descartado

em prol de opções menos democráticas.

375 Uma possibilidade debater e aprofundar essa futura institucionalização é convocar um Seminário com a participação da Advocacia Geral da União e do Ministério do Planejamento, já que demandas como esta devem ser bastante comuns no âmbito da administração federal e deve existir alguma orientação de caráter político-administrativo sobre como enfrentá-las.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

336

Apêndice I.

Relação das Principais Tarefas Necessárias à Implementação da Política Pública

Proposta.

▫ Criação da Gerência do Observatório junto à Secretaria de Reforma do Judiciário;

▫ Nomeação do/a Gerente;

▫ Nomeação do Comitê Assessor;

▫ Celebração de Acordo de Cooperação Técnica com a CAPES, o CNPq e a SeSu-

MEC para o trabalho conjunto no âmbito do Observatório;

▫ Criação da Câmara de Concertação para a Reforma e Modernização do Judiciário;

▫ Nomeação dos representantes da Sociedade Civil e Movimentos Sociais;

▫ Convocação da “I Conferência Nacional de Justiça, Segurança e Cidadania” a partir

da Câmara;

▫ Definição dos Tópicos de Pesquisa para o Observatório a partir dos resultados da

Conferência;

▫ Seleção dos Grupos de Pesquisa;

▫ Execução das Pesquisas em parceria com o CES;

▫ Produção e Difusão de Relatórios;

▫ Promoção de atividades de Concertação, no âmbito da Câmara, para a propositura e

a implementação de projetos de Reforma e Modernização da Justiça

Page 340: Série Pensando o Direito - Ministério da Justiça — … pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 3 da Justiça Brasileira (OJB). Este Observatório

Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça

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Apêndice II

Visualização Articulada dos Elementos da Política Pública Proposta.

Ministério da Justiça

Secretaria de Reforma do Judiciário

Gerência ou Diretoria Executiva do Observatório Permanente da Justiça Brasileira

Câmara de Concertação para a Democratização da Justiça

Comitê Científico “Ad-Hoc”

CAPES, CNPq e MEC/SeSu

Pareceristas

CES

Programas de Pós-Graduação e Centros de Pesquisa (Projetos)

Biblioteca de Alternativas

Conferência Nacional de Justiça, Segurança e Cidadania