Sermões Vol. 1

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MINISTRIO DA CULTURA Fundao Biblioteca Nacional Departamento Nacional do Livro SERMES Padre Antnio VieiraAO PRNCIPE NOSSO SENHOR Senhor A obedincia, com que V. A. foi servido mandar-me dar estampa os meus sermes, a que pe aos ps de V. A. esta primeira parte deles, to diferentes na matria e lugares em que foram recitados, como foi vria e perptua a peregrinao de minha vida. Se V A., por sua benignidade e grandeza, se dignar de os passar sob os olhos, entenderei que com a Coroa e Estados de ei Rei, que est no cu, passou tambm a V. A. o agrado com que Majestade, e o Prncipe D. Teodsio, enquanto Deus quis, os ouviam. Mas porque os afetos se no herdam com os imprios, ainda ser maior a merc que receberei de V. A. se estas folhas, que ofereo cerradas e mudas, se conservarem no mesmo silncio a que os meus anos me tm reduzido. Ento ficar livre a rudeza destes discursos da forosa temeridade com que os ponho suprema censura do juzo de V. A., tanto mais para temer por sua agudeza e compreenso, quanto o mundo presente o admira sobre todos os que o passado tem conhecido. Deus nos guarde e conserve a Real Pessoa de V. A. por muitos anos, para que nas gloriosas aes de V A. se desempenhe a nossa esperana do que em tantos dotes da natureza e graa nos est prometendo. Colgio de Santo Anto, em 21 de julho de 1677. LEITOR Da folha que fica atrs, se a leste, havers entendido a primeira razo, ou obrigao, por que comeo a tirar da sepultura estes meus borres, que sem a voz que os animava, ainda ressuscitados, so cadveres. A esta obrigao, que chamei primeira, como vassalo, se ajuntou outra tambm primeira, como religioso, que foi a obedincia do maior de meus prelados, o Reverendssimo P. Joo Paulo Oliva, Prepsito-Geral de nossa Companhia. Se conheces a Eminncia desta gro-cabea pela lio de seus escritos (como no podes deixar de a conhecer pela fama, sendo o orculo do plpito Vaticano em quatro sucessivos Pontificados) esta s aprovao te bastar para que me comeces a ler com melhor conceito daquele que formars depois de lido. Assim lisonjeia aos pais o amor dos filhos, e assim honram os sumamente grandes aos pequenos. Sobre estas duas razes acrescentaro outros outras, para mim de menos momento. E no era a menor delas a corrupo com que andam estampados debaixo de meu nome, e traduzidos em diferentes lnguas, muitos sermes, ou supostos totalmente, no sendo meus, ou sendo meus na substncia, tomados s de memria, e por isso informes, ou, finalmente, impressos por cpias defeituosas e depravadas, com que em todos, ou quase todos, vieram a ser maiores os erros dos que eu conheci sempre nos prprios originais. Este conhecimento, que ingenuamente te confesso, foi a razo total, por que nunca me

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persuadi a sair luz com semelhante gnero de Escritura, de que o mundo est to cheio. Nem me animava a isto, posto que muitos mo alegassem, o rumo particular que segui sem outro exemplo porque s dos que so dignos de imitao se fizeram os exemplares. Se chegar a receber a ltima forma um livro, que tenho ideado com ttulo de Pregador e Ouvinte Cristo, nele vers as regras, no sei se da arte, se do gnio, que me guiaram por este novo caminho. Entretanto, se quiseres saber as cousas por que me apartei do mais seguido e ordinrio, no sermo de Semen et Verbum Dei, as achars, o qual por isso se pe em primeiro lugar, como prlogo dos demais. Se gostas da afetao e pompa de palavras, e do estilo que chamam culto, no me leias. Quando este estilo mais florescia, nasceram as primeiras verduras do meu, que perdoars quando as encontrares, mas valeu-me tanto sempre a clareza, que s porque me entendiam, comecei a ser ouvido, e o comearam tambm a ser os que reconheceram o seu engano, e mal se entendiam a si mesmos. O nome de Primeira Parte, com que sai este tomo, promete outras. Se me perguntas quantas sero, s te pode responder com certeza o Autor da vida. Se esta durar proporo da matria, a que se acha nos meus papis, bastante a formar doze corpos desta mesma, e ainda maior estatura. Em cada um deles irei metendo dois ou trs sermes dos j impressos, restituidos sua original inteireza: e os que se no reimprimirem entre os demais, supe que no so meus. Os que de presente tens nas mos, e mais ainda os seguintes, sero todos diversos e no continuados, esperando tu, porventura, que sasse com os que chamas quaresmais, santorais e mariais inteiros, como se usa. Mas o meu intento no fazer sermonrios, estampar os sermes que fiz. Assim como foram pregados acaso e sem ordem, assim tos ofereo, porque hs de saber que havendo trinta e sete anos que as voltas do mundo me arrebataram da minha provncia do Brasil, e me trazem pelas da Europa, nunca pude professar o ofcio de pregador, e muito menos o de pregador ordinrio, por no ter lugar certo, nem tempo; j aplicado a outras ocupaes em servio de Deus e da Ptria, j impedido de minhas freqentes enfermidades, por ocasio das quais deixei de recitar alguns sermes, no poucos, que j tinha prevenidos, e tambm agora se daro estampa. Alm dessa diversidade geral achars ainda neles outra maior, pelas diversas ocasies em que os sucessos extraordinrios de nossa idade, e os das minhas peregrinaes por diferentes terras e mares, me obrigaram a falar em pblico. E assim, uns sero panegricos, outros gratulatrios, outros apologticos, outros polticos, outros blicos, outros nuticos, outros funerais, outros totalmente ascticos, mas todos, quanto a matria o permitia, e mais do que em tais casos se costuma, morais. O meu primeiro intento era dividir estas matrias, e reduzi-las a tomos particulares, havendo nmero em cada uma para justo volume; mas como seriam necessrios muitos mais dias para esta separao, e para estender, e vestir os que esto s em apontamentos, por no dilatar o teu desejo, o qual tanto mais te agradeo, quanto menos mo deves, iro saindo diante, e desfilada, os que estiverem mais prontos. E creio que te no ser menos grata esta mesma variedade para alternar assim, e aliviar o fastio que costuma causar a semelhana. Por fim, no te quero empenhar com a promessa de outras obras, porque, se bem entre o p das minhas memrias, ou dos meus esquecimentos, se acham, como na oficina de Vulcano, muitas peas meio forjadas, nem elas se podem j bater por falta de foras, e muito menos aperfeioar e polir, por estar embotada a lima com o gosto; e gastada como tempo. S sentirei que este me falte para pr a ltima mo aos quatro Livros Latinos de Regno Christi in terris consummato, por outro nome, Clavis Prophetarum, em que se abre nova estrada fcil inteligncia dos profetas, e tem sido o maior emprego de meus estudos. Mas porque estes vulgares so mais universais, o desejo de servir a todos lhes d agora a preferncia. Se tirares deles algum proveito espiritual (que o que s pretendo) roga-me a Deus pela

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vida: e se ouvires que sou morto, l o ltimo sermo deste Livro, para que te desenganes dela, e tomars o conselho que tenho tomado. Deus te guarde. Dos sermes, que andam impressos com nome do autor em vrias lnguas, para que se conhea quais so prprios e legtimos, e quais alheios e supostos. Outra vez, leitor, me hs de ouvir, outra vez no s peo, mas imploro tua ateno. E se te faltar pacincia, bem a podes aprender da minha, pelo que agora direi. Sabers que devo grandes obrigaes aos impressores, principalmente de Espanha. No ano de 1662, imprimiram em Madri debaixo de meu nome um livro intitulado: Sermones Varios, e no ano de 1664 outro, a que chamaram: Segunda Parte. As mais intolerveis injrias so aquelas a que se deve agradecimento, e tal foi este benefcio. Muitos dos ditos sermes, como j te adverti, so totalmente alheios e supostos. E os que verdadeiramente so, ou tinham sido meus, ou por vcio dos exemplares, ou por outros respeitos, no ocultos, se estamparam pela maior parte em tal figura, que eu mesmo os no conheo. E porque de presente ouo que ainda se continua a estampa de outros, os quais devem ser mais dignos de sair luz, pois lhes fazem esta honra, para que eu a no logre roubada a seus verdadeiros autores, e os que os lerem se no enganem com eles e comigo, me pareceu no princpio deste primeiro tomo escrever-te esta como carta de guia, pela qual, sem equivocao do nome, saibas a quem ls, e como. Outras diligncias tenho feito para que os ditos livros se recolham, mas como este favor, posto que to justo, incerto, o que s posso, entretanto, pr-te diante dos olhos esta lista de todos os sermes que at agora tm chegado minha notcia, distribudos com a maior distino e ordem, que em matria to desordenada e confusa me foi possvel. SERMES ESTAMPADOS DE CONSENTIMENTO DO AUTOR Sermo do Esprito Santo nos anos da Rainha nossa Senhora. Sermo ao Te Deum no nascimento da serenssima Princesa. Estes dois sermes se traduziram em francs, e se imprimiram em Paris. Cinco sermes das Pedras de Davi em lngua italiana, estampados em Roma, Mi/o e Veneza, e depois de traduzidos em castelhano, impressos em Madri, Saragoa, Valncia, Barcelona e Flandres. Sermo das Chagas de So Francisco, em italiano, estampado em Roma, Milo e Veneza. Sermo do Beato Estanislou, em italiano, estampado em Roma. Estes dois sermes se traduziram em Castela e Portugal, de verbo ad verbum, isto , mal, e como no deveram, pela dissonncia das lnguas. Todos os outros sermes, que andam estampados com nome do autor em lngua portuguesa, castelhana e outras, se imprimiram sem consentimento seu, nem ainda notcia. SERMES DA PRIMEIRA PARTE ESTAMPADA EM MADRI, ANO DE 1662 Sermon del Juizio, p. 1. Sermon de las lIa gas de Francisco, pg. 31.0 primeiro destes sermes tem muitos erros, e o segundo muitos mais, por culpa dos manuscritos, que andam mui viciados, e tambm da traduo, que mudou em algumas partes o verdadeiro sentido. Sermon de S. Juan Baptista, y Profession, pg. 52.

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Sermon en las Exequias de Doa Maria de Ataide, pg. 93. Estes dois sermes, por serem primeiro estampados em Portugal, trazem menos erros. No segundo falta um discurso. Sermon de S. Juan Evangelista, pg. 118. No fim se diz com razo: Hic multa desiderantur, porque se no estampou a primeira parte, que contem a ocasiao e motivo da matria, demais de outros muitos defeitos. Sermon de Jueves Santo, pg. 137. Sermon de la Exaltacin de ia Cruz, pg. 169. Ambos trocados, e truncados, e defeituosos em muitos lugares. A estes sermes se seguem no mesmo livro trs fragmentos de outros com ttulo de Pensamientos predicables sacados de pape/es dei Autor: a saber: Discurso sobre las ca/idades de un nimo real, pg. 192. Discurso sobre la buena politica de los tributos, pg. 204. Discurso sobre la immunidad de la Iglesia, pg. 212.0 primeiro foi tirado do sermo dos anos de El-Rei, em dia de So Jos; o segundo, do sermo de S. Antnio nas Cortes; o terceiro, do sermo de S. Roque, impressos em Portugal, mas nenhum deles , nem merece nome de discurso; porque lhes falta o fundamento e intento, e a conexo de tudo, e lhes sobeja o que acrescentaram os tradutores. SERMES DA SEGUNDA PARTE ESTAMPADA EM MADRI, ANO DE 1664 Esta segunda parte contm vinte e dois sermes, onze totalmente alheios, e onze do autor. Uns e outros so os seguintes: Sermon de la Feria quarta Mircoies de ceniza, pg. 83. Sermon para el Mircoles segundo de Quaresma, pg. 117. Sermon en la Domnica quarta de Quaresma, pg. 136. Sermon para el Sbbado sexto de Quaresma, pg. 157. Sermon del Mandato en el Jueves Santo, pg. 179. Sermon de la Soiedadde la VN. S., pg. 193. Sermon de las Lgrimas de la Madalena, pg. 208. Sermon de S. Ougustin, pg. 298. Sermon de S. Francisco, pg. 313. Sermon de la Expectacin, pg. 323. Sermon de S. Juan Evangelista, pg. 333. Entram neste nmero os dois sermes das Lgrimas da Madalena e de Santo Agostinho, porque bem que o assunto de ambos seja do autor, e tambm alguns lugares da Escritura, no primeiro no h palavra sua, e no segundo, que s um fragmento, mui poucas. SERMES DO AUTOR Sermon de la segunda Dominga de Adviento, pg. 1. Sermon de la Domnica tercera de Adviento, pg. 24. Sermon de la Domnica quarta de Adviento, pg. 41. Sermon de la Domnica de Sexagsima, pg. 56. Sermon en eI primer Domingo de Quaresma, pg. 98. Sermon en el segund dia de Pascua de Ressurreccin, pg. 220. Sermon de S. Pedro Nolasco, pg. 253. Sermon de la Visitacin de N. Senora, pg. 261.

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Sermon de S. Roque, pg. 284. Sermon de N. Senora de la Gracia, pg. 348. Sermon para el buen successo de las armas dei Brasil, pg. 369. Estes sermes reconhece o autor por seus, mais pela matria que pela forma, que em muitos est totalmente pervertida e adulterada, como se ver quando sarem tirados dos verdadeiros originais. O de S. Pedro Nolasco composto de duas ametades diversas, e no diz a cabea com os membros. No de S. Roque falta a metade; no de N. S. da Graa dois discursos. E assim neste como nos demais, h muitas coisas diminudas, muitas acrescentadas, muitas mudadas, no falando em infinitos outros erros, ou do texto, ou da traduo, ou da sentena, e sentido natural. Veja-se e combine-se o sermo da Sexagsima, que sai neste tomo, com ser este entre todos o que se traduziu por exemplar mais correto, e com menos defeitos. SERMES DA TERCEIRA PARTE ESTAMPADA EM MADRI, ANO 1678 Quando, em suposio da graa que pedi, e me foi concedida, de que os dois tomos antecedentes impressos debaixo do meu nome se recolhessem, cuidava eu que com este exemplo se absteriam os impressores de Madri de prosseguir com este injurioso favor, eis que aparece em Portugal outro terceiro tomo estampado na mesma corte com nome de Sermones del Padre Antonio Vieira. Assim me vendem com boa teno os fabricadores desta falsa moeda, no aparecendo entre ela alguns papis verdadeiros e legtimos, que por roubados se me puderam e deviam restituir. bem verdade que na mesma tela dos discursos que me perfilham, reconheo eu alguns remendos da minha pobreza, que s para isso servem fora da urdidura em que foram tecidos. Deixados porm estes reparos, e outros que no justo me queixe de quem me honra, saiba terceira vez o leitor, que de dezenove sermes que contm este tomo, entrando no mesmo nmero um problema de S. Francisco Xavier, somente cinco so meus. De uns e outros se pe aqui a lista para maior clareza. Sermon de Ceniza, pg. 1. Sermon de l0S Inimigos, pg. 21. Sermon de la quarta Dominga de Quaresma, pg. 49. Sermon del Mandato, pg. 100. Sermon de las Lgrimas, de 5. Pedro, pg. 161. Sermon de la Venida del Espirito Santo, pg. 184. Sermon de la Epifania, pg. 203. Sermon de S. Thom Apostol., pg. 219. Sermon de S. Francisco de Assis, pg. 241. Sermon de S. Antonio de Padua, pg. 256. Sermon de S. Francisco Xavier, pg. 273. Sermon de una Prosession en dia de S. Joseph, pg. 294. Sermon de S. rsula, y sus companeras, pg. 325. Question de la fineza deI amor de S. Francisco Xavier, pg. 361. SERMES DO AUTOR Sermon del quarto mircoles de Quaresma, pg. 35. Sermon del Ciego, pg. 81. Sermon del Mandato, pg. 119.

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Sermon del Santssimo Sacramento, pg. 136. Sermon de S. Thereza de Jesus, pg. 325. Estes cinco sermes, e com mais razo trs deles, se puderam tambm contar entre os alheios, pela notvel corrupo, que em alguns se v foi indstria, com que saem deformados. Mas enquanto a estampa os no restitui todos sua origem, leiam-se nesta o do Cego, e dos Zebedeus, que j estavam impressos quando c apareceram em to dessemelhante figura, e ver-se- a diferena. APROVAO DO MUITO REVERENDO PADRE MESTRE, frei Joo da Madre de Deus, provincial da Provncia de Portugal, da Serfica Ordem de S. Francisco, pregador de S. Alteza, Examinador das Ordens Militares, etc. Senhor. Se em alguma ocasio se achou obedincia sem merecimento, foi nesta, em que por mandado de V. Alteza vi a primeira parte dos sermes do Padre Antnio Vieira, da Sagrada Companhia de Jesus, meritssimo pregador de tal Prncipe, por prncipe de todos os pregadores, tirados das imperfeies com que os adulteraram as mos, por onde corriam, e reduzidos a parto legtimo de seu supremo engenho. A censura mais acertada pr-lhes o nome de seu autor por censura, pois sem competncia de nenhuma, posto que com inveja de todas, respeitado pelo orculo do plpito entre as naes do mundo, aonde a experincia ou a fama de seus escritos, o tm levado nas asas da sua pena. Tinha eu um grande desejo de que o autor desse princpio s obras a que anela a nossa bem fundada esperana e promete o seu grande talento, para que por benefcio da imprensa ficasse imortal na memria dos vindouros a glria que logra a admirao dos presentes, e que soubesse o mundo que no tinha que invejar Portugal erudio latina, e eloqncia grega, e muitas vezes me repetia a mim mesmo aquelas palavras de J captulo 31, vers. 35: Desiderium meum oudiat omnipotens, et librum scribat ipse quijudicat, ut in humero meo portem illum, et circundem illum quasi coronam mihi: Oua Deus o meu desejo, e escreva um livro o mesmo que julga, para que eu o traga por estimao nos ombros, e por coroa na cabea. Deus com a inspirao, e V. Alteza com a obedincia, me cumpriram este desejo. Que juiz poderia escrever um livro de sermes, seno o Padre Antnio Vieira, juiz por antonomsia do ofcio em a arte, e regras da prdica, e de quem todos os pregadores nos contentramos de ser aprendizes, para nos podermos chamar mestres. S se podia duvidar em que, sendo o juiz o escritor do livro, fosse J o coroado com ele, e que o livro, que haja de ser glria para quem o comps, fosse glria para quem o lesse? Mas quem abrir o livro achar soluo dvida, porque em cada um dos sermes que contm, ver que podendo s ser glria de quem os escreve, so juntamente coroa de quem os l. No so s glria de quem os fez, mas tambm ventura dos que os tm. Ao menos para comigo, assim o julga com J o meu afeto: Coronam mihi. Digo pois de cada um destes sermes o que disse Plnio no II livro das suas Epstolas, Ep. 3: Proemiatur apte, narrat aperte, pugnat acriter colligit fortiter, ornat excelse. Comea com energia viva, que atrai; prossegue com claridade singular, que deleita; prova com viveza grave, que admira; recolhe com variedade eloqente, que ensina; adorna com excelncia sentenciosa, que suspende, e, o que mais dificultoso, Postremo docet, deectat, afficit. Diverte como se no advertisse; ensina como se no recreasse; deleita como se no repreendesse, aproveita como se no deleitasse. No s no h neles coisa que encontre ao servio real, mas muitas para que V. Alteza continue a obedincia com que obrigou ao autor a dar estampa este livro, para que saia luz com os mais trabalhos to luzidos de seus estudos e engenho, para a glria de Deus, e honra destes remos. Isto sinto, isto digo, e o que no sei dizer o

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que mais sinto. Em 5. Francisco de Lisboa, 29 de agosto de 678. Fr. Joo da Madre de Deus LICENAS DA RELIGIO Eu, Lus lvares, da Companhia de Jesus, provincial da Provncia de Portugal, por particular concesso que para isso me foi dada de nosso muito reverendo Padre Joo Paulo Oliva, prepsito-geral, dou licena para que se imprima este livro, Primeira Parte dos Sermes do Padre Antnio Vieira, da mesma Companhia, pregador de S. Alteza. O qual foi examinado e aprovado por pessoas doutas e graves da mesma Companhia. E por verdade dei esta assinada com meu sinal e selada com o selo de meu Ofcio. Dada em Lisboa aos 18 de setembro de 1677. Lus lvares DO SANTO OFCIO Vistas as informaes que se houveram, pode-se imprimir esta Primeira Parte dos Sermes do Padre Antnio Vieira, da Companhia de Jesus, e impressos tornaro para serem conferidos com o original e se dar licena para correrem, e sem ela no correro. Lisboa, 15 de julho de 1678 Manoel de Magalhes de Meneses Manoel Pimentel de Souza Manoel de Maura Manoel Fr. Valrio de S. Raimundo DO ORDINRIO Pode-se imprimir o primeiro tomo dos Sermes do Reverendo Padre Antnio Vieira, da Companhia de Jesus, e pregador de S. Alteza. Lisboa, 6 de agosto de 1678. Fr. Cristvo, Bispo de Martria DO PAO Pode-se imprimir, vistas as licenas do Santo Ofcio e Ordinrio, e depois de impresso tornar a esta mesa, para se conferir e taxar, e sem isso no correr em Lisboa. 30 de agosto de 1678. 30 de agosto de 1678 Marqus Presidente Magalhes de Menezes Mausinho Carneiro Est conforme com seu original. Convento de N. Senhora da Graa, 15 de setembro de 1679.

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Fr. Diogo de Teive Pode correr em Lisboa, 15 de setembro de 1679. Taxam este livro de SERMES do Padre Antnio Vieira em mil e duzentos ris. Lisboa, 18 de setembro de 1679 Marqus R. Magalhes de Menezes Roxas Basto Rgo Lampria F.C.B. PRIVILGIO REAL Eu, o prncipe, como Regente e Governador dos Remos e Senhorios de Portugal e Algarves, fao saber que o Padre Antnio Vieira me representou, por sua petio, que tinha impresso, com as licenas necessrias, a Primeira Parte dos Sermes que oferece em um tomo, que contm quinze, pedindo-me lhe fizesse merc conceder privilgio na forma do estilo, e visto o que alegou, hei por bem que por tempo de dez anos nenhum livreiro nem impressor possa imprimir nem vender o Livro dos Sermes referidos, nem mand-lo vir de fora do Reino, sob pena de perdimento dos volumes que lhe forem achados, e de cinqenta cruzados, a metade para a minha cmera, e a outra para o acusador. Este alvar se cumprir como nele se contm, e valer, posto que seu efeito haja de durar mais de um ano, sem embargo da Ordem do Livro 2, tit. 40, em contrrio. E pagou de novos direitos quinhentos e quarenta ris, que se carregaram ao tesoureiro deles, Pedro Soares, Fol. 63 do Liv. 4 de sua receita. Luis Goudinho de Niza o fez em Lisboa, a trinta de setembro de mil seiscentos e setenta e nove. Jos Fagundes Bezerra o fez escrever. PRNCIPE Marqus Mordomo-Mor Alvar do Padre Antnio Vieira, por que V. A. h por bem de lhe conceder privilgio por tempo de dez anos, para nenhum livreiro ou impressor vender nem imprimir ou mandar vir de fora do Reino o Livro dos Sermes de que trata, na maneira acima declarada.

SERMO DA SEXAGSIMA PREGADO NA CAPELA REAL Este sermo pregou o Autor no ano de 1655, vindo da Misso do Maranho, onde acho1u as dificuldades que nele se apontam, as quais vencidas, com novas ordens reais voltou logo para a mesma Misso.

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Semen est Verbum Dei I O pregador evanglico ser pago no s pelo que semeia como pelas distncias que percorre, e no volta nem mesmo diante das dificuldades que a natureza lhe apresenta: as pedras, os espinhos, as aves, o homem. Cristo ordenou que se pregasse a todas as criaturas porque h homens-brutos, homens-pedras, e homens-homens. O que aconteceu com a semente do Evangelho aconteceu com os missionrios do Maranho. No age mal o pregador que volta busca de melhores instrumentos. Este sermo servir de prlogo aos outros sermes quaresmais. E se quisesse Deus que este to ilustre e to numeroso ouditrio sasse hoje to desenganado da pregao, como vem enganado com o pregador! Ouamos o Evangelho, e ouamo-lo todo, que todo do caso que me levou e trouxe de to longe. Ecce exiit qui seminat, seminare: Diz Cristo que saiu o pregador evanglico a semear a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. No s faz meno1 do semear, mas faz tambm caso de sair: Exiit, porque no dia da messe, ho-nos de medir a semeadura e ho-nos de contar os passos. O mundo, aos que lavrais com ele, nem vos satisfaz o que despendeis, nem vos paga o que andais. Deus no assim. Para quem lavra com Deus, at o sair semear, porque tambm das passadas colhe fruto. Entre os semeadores do Evangelho, h uns que saem a semear, h outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear, so os que vo pregar ndia, China, ao Japo; os que semeiam sem sair so os que se contentam com pregar na ptria. Todos tero sua razo, mas tudo tem sua conta. Aos que tm a seara em casa, pagar-lhes-o a semeadura; aos que vo buscar a seara to longe, ho-lhes de medir a semeadura, e ho-lhes de contar os passos. Ah! dia do juzo! Ah! pregadores! Os de c, achar-vos-eis com mais pao, os de l, com mais passos: Exiit seminare. Mas daqui mesmo vejo que notais, e me notais, que diz Cristo que o semeador do Evangelho saiu, porm no diz que tornou, porque os pregadores do Evangelho, os homens que professam pregar e propagar a f, bem que saiam, mas no bem que tornem. Aqueles animais de Ezequiel, que tiravam pelo carro triunfal da glria de Deus, e significavam os pregadores do Evangelho, que propriedades tinham? Nec revertebantur cum ambularent: uma vez que iam, no tornavam (Ez. 1,12). As rdeas por que se governavam, era o mpeto do esprito, como diz o mesmo texto; mas esse esprito tinha impulsos para os levar, no tinha regresso para os trazer, porque sair para tornar, melhor no sair. Assim argis com muita razo, e eu tambm assim o digo. Mas pergunto: e se esse semeador Evanglico, quando saiu, achasse o campo tomado, se se armassem contra ele os espinhos, se se levantassem contra ele as pedras, e se lhe fechassem os caminhos, que havia de fazer? Todos estes contrrios que digo, e todas estas contradies experimentou o semeador do nosso Evangelho. Comeou ele a semear, diz Cristo, mas com pouca ventura. Uma parte do trigo caiu entre espinhos, e afogaram-no os espinhos: Aliud cecidit inter spinas, et sim ul exortae spinae suffocaverunt ilud. Outra parte caiu sobre as pedras, e secou-se nas pedras por falta de umidade: Aliud cecidit super petram, et natum aruil, quia non habebat humorem. Outra parte caiu no caminho, e pisaram-no os homens, e comeram-no as aves: Aliud cecidit secus viam, ei concucatum esi, ei volucres coeli comederuni illud. Ora, vede como todas as criaturas do mundo se armaram contra esta sementeira. Todas as criaturas, quantas h no mundo, se reduzem a quatro gneros: criaturas racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como os1A

semente a paIavra de Deus (Lc. 8,11)

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animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturas insensveis, como as pedras, e no h mais. Faltou alguma destas que se no armasse contra o semeador? Nenhuma. A natureza insensvel o perseguiu nas pedras; a vegetativa, nos espinhos; a sensitiva, nas aves; a racional, nos homens. E notai a desgraa do trigo, que onde s podia esperar razo, ali achou maior agravo. As pedras secaram-no, os espinhos afogaram-no, as aves comeram-no, e os homens? Pisaram-no: Concucatum est ab hominibus, diz a glosa. Quando Cristo mandou pregar os apstolos pelo mundo, disse-lhes desta maneira: Euntes in mundum universum, praedicate omni creaturae: Ide, e pregai a toda a criatura (Mc. 16,15). Como assim, Senhor? Os animais no so criaturas? As rvores no so criaturas? As pedras no so criaturas? Pois ho os apstolos de pregar s pedras? Ho de pregar aos troncos? Ho de pregar aos animais? Sim, diz S. Gregrio, depois de Santo Agostinho; porque, como os apstolos iam pregar a todas as naes do mundo, muitas delas brbaras e incultas, haviam de achar os homens degenerados em todas as espcies de criaturas; haviam de achar homens-homens, haviam de achar homens-brutos, haviam de achar homenstroncos, haviam de achar homens-pedras. E quando os pregadores evanglicos vo pregar a toda a criatura, que se armem contra eles todas as criaturas? Grande desgraa! Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho no foi a maior. A maior a que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho. Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram l os semeadores. Se bem advertirdes, houve aqui trigo mirrado, trigo afogado, trigo comido, e trigo pisado. Trigo mirrado: Natum aruil, quia non habebat humorem; trigo afogado: Exortae spinae suifocaveruni iud; trigo comido: Volucres coeli comederuni ilud; trigo pisado: Concucatum est. Tudo isto padeceram os semeadores evanglicos da Misso do Maranho de doze anos a esta parte. Houve missionrios afogados, porque uns se afogaram na boca do grande rio Amazonas; houve missionrios comidos, porque a outros comeram os brbaros na Ilha dos Aros; houve missionrios mirrados, porque tais tornaram os da jornada dos Tocantins, mirrados da fome e da doena, onde tal houve, que andando vinte e dois dias perdido nas brenhas, matou somente a sede com o orvalho que lambia das folhas. Vede se lhe quadra bem o Natum aruit quja non habebat humorem? E que sobre mirrados, sobre afogados, sobre comidos, ainda se vejam pisados e perseguidos dos homens: Concucatum est? No me queixo, nem o digo, Senhor, pelos semeadores; s pela seara o digo, s pela seara o sinto. Para os semeadores isto so glrias: mirrados sim, mas por amor de vs mirrados; afogados sim, mas por amor de vs afogados; comidos sim, mas por amor de vs comidos; pisados e perseguidos sim, mas por amor de vs perseguidos e pisados. Agora torna a minha pergunta. E que faria neste caso, ou que devia fazer o semeador evanglico vendo to mal logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura? Desistiria da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, s porque tinha l ido? Parece que no. Mas se tornasse muito depressa a casa a buscar alguns instrumentos com que alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto tornar atrs? No por certo. No mesmo texto de Ezequiel, com quem arglistes, temos a prova. J vimos, como dizia o texto, que aqueles animais da carroa de Deus, quando iam, no tornavam: Nec revertebantur cum ambuarent (Ez. 1,12). Lede agora dois versos mais abaixo e vereis que diz o mesmo texto que aqueles animais tornavam semelhana de um raio ou corisco: Ibant et revertebantur in simil itud inem fuguris coruscantis (Ez. 1,14). Pois se os animais iam e tornavam semelhana de um raio, como diz o texto que quando iam no tornavam? Porque quem vai e volta como um raio, no torna. Ir e voltar como raio, no tornar, ir por diante. Assim o fez o semeador do nosso Evangelho. No o desanimau nem a primeira, nem a segunda, nem a terceira perda; continuou por diante no semear, e foi com tanta felicidade que nesta quarta e ltima parte do trigo se restouraram com vantagem as perdas dos demais; nasceu, cresceu, espigou, amadureceu, colheu-se, mediu-se, achou-se que por um gro multiplicara cento. Etfecitfructum centuplum.

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Oh! que grandes esperanas me d esta sementeira! Oh! que grande exemplo me d este semeador! D-me grandes esperanas a sementeira, porque, ainda que se perderam os primeiros trabalhos, lograr-se-o os ltimos; d-me grande exemplo o semeador, porque depois de perder a primeira, a segunda, e a terceira parte do trigo, aproveitou a quarta e ltima, e colheu dela muito fruto. J que se perderam as trs partes da vida, j que uma parte da idade a levaram os espinhos, j que outra parte a levaram as pedras, j que outra parte a levaram os caminhos, e tantos caminhos, esta quarta e ltima parte, este ltimo quartel da vida, por que se perder tambm? Por que no dar fruto? Por que no tero tambm os anos o que tem o ano? O ano tem tempo para as flores e tempo para os frutos. Por que no ter tambm o seu outono a vida? As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento; aquelas poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, s essas so as venturosas, s essas so as discretas, s essas so as que duram, s essas so as que aproveitam, s essas so as que sustentam o mundo, Ser bem que o mundo morra fome? Ser bem que os ltimos dias se passem em flores? No ser bem, nem Deus quer que seja, nem h de ser. Eis aqui por que eu dizia ao princpio que vindes enganados como pregador. Mas para que possais ir desenganados como sermo, tratarei nele uma matria de grande peso e importncia. Servir como de prlogo aos sermes que vos hei de pregar, e aos mais que ouvirdes esta quaresma. II Semen est verbum Dei. O trigo do Evangelho a palavra de Deus; os espinhos, as pedras, os caminhos e a terra boa, os diversos estados do corao do homem. Se a palavra de Deus to eficaz, por que vemos to pouco fruto? O trigo que semeou o pregador evanglico, diz Cristo, que a palavra de Deus. Os espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa em que o trigo caiu, so os diversos coraes dos homens. Os espinhos so os coraes embaraados com cuidados, com riquezas, com delcias, e nestes afoga-se a palavra de Deus. As pedras so os coraes duros e obstinados, e nestes seca-se a palavra de Deus, e se nasce, no cria razes. Os caminhos so os coraes inquietos e perturbados com a passagem e tropel das coisas do mundo, umas que vo, outras que vm, outras que atravessam, e todas passam, e nestes pisada a palavra de Deus, porque ou a desatendem, ou a desprezam. Finalmente a terra boa so os coraes bons, ou os homens de bom corao, e nestes prende e frutifica a palavra divina com tanta fecundidade e abundncia, que se colhe cento por um: Et fructum fecit centuplum. Este grande frutificar da palavra de Deus o em que reparo hoje; e uma dvida ou admirao que me traz suspenso e confuso depois que subo ao plpito. Se a palavra de Deus to eficaz e to poderosa, como vemos to pouco fruto da palavra de Deus? Diz Cristo que a palavra de Deus frutifica cento por um, e j eu me contentara com que frutificasse um por cento. Se com cada cem sermes se convertera e emendara um homem, j o mundo fora santo. Este argumento da f, fundado na autoridade de Cristo, se aperta ainda mais na experincia, comparando os tempos passados com os presentes. Lede as histrias eclesisticas e ach-las-eis todas cheias de admirveis efeitos da pregao da palavra de Deus. Tantos pecadores convertidos, tanta mudana de vida, tanta reformao de costumes; os grandes desprezando as riquezas e vaidades do mundo, os reis renunciando os cetros e as coroas; as mocidades e as gentilezas metendo-se pelos desertos e pelas covas. E hoje? Nada disto. Nunca na igreja de Deus houve tantas pregaes, nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se semeia a palavra de Deus, como to pouco o fruto? No

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h um homem que em um sermo entre em si e se resolva; no h um moo que se arrependa; no h um velho que se desengane; que isto? Assim como Deus no hoje menos onipotente, assim a sua palavra no hoje menos poderosa do que dantes era. Pois se a palavra de Deus to poderosa, se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, por que no vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta to grande e to importante dvida ser a matria do sermo. Quero comear pregando-me a mim. A mim ser, e tambm a vs: a mim, para aprender a pregar; a vs, para que aprendais a ouvir. III Tal deficincia pode provir ou de Deus, com a graa, ou do pregador com a doutrina, ou do ouvinte, com entendimento. Deus porm no falta: ele o sol e a chuva, e o Evangelho no fala das sementes que se perdem por falta das influncias do cu. A culpa portanto ou do pregador ou dos ouvintes. Mas mesmo os piores ouvintes, os espinhos e as pedras, ho de aceitar a palavra de Deus. Segue-se pois que a culpa do pregador Fazer pouco fruto a palavra de Deus no mundo, pode proceder de um de trs princpios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermo, h de haver trs concursos: h de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; h de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; h de concorrer Deus com a graa, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, so necessrias trs coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho, e cego, no se pode ver por falta de olhos; se tem espelho, e tem olhos, e se de noite, no se pode ver por falta de luz. Logo h mister luz, h mister espelho, e h mister olhos. Que coisa a converso de uma alma, seno entrar um homem dentro em si, e ver-se a si mesmo? Para esta vista so necessrios olhos, necessria luz e necessrio espelho. O pregador concorre com o espelho, que a doutrina; Deus concorre com a luz, que a graa; o homem concorre com os olhos, que o conhecimento. Ora, suposto que a converso das almas por meio da pregao depende destes trs concursos: de Deus, do pregador, e do ouvinte, por qual deles havemos de entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus? Primeiramente, por parte de Deus no falta, nem pode faltar. Esta proposio de f definida no Conclio Tridentino, e no nosso Evangelho a temos. Do trigo, que deitou terra o semeador, uma parte se logrou e trs se perderam. E por que se perderam estas trs? A primeira perdeu-se porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira, porque a pisaram os homens, e a comeram as aves. Isto o que diz Cristo, mas notai o que no diz. No diz que parte alguma daquele trigo se perdesse por cousa do sol ou da chuva. A cousa por que ordinariamente se perdem as sementeiras, pela desigualdade e pela intemperana dos tempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou porque falta ou sobeja o sol. Pois por que no introduz Cristo na parbola do Evangelho algum trigo que se perdesse por cousa do sol ou da chuva? Porque o sol e a chuva so as influncias da parte do cu, e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus, nunca por falta do cu, sempre por culpa nossa. Deixar de frutificar a sementeira ou pelo embarao dos espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das influncias do cu, isso nunca , nem pode ser. Sempre Deus est pronto de sua parte com o sol para aquentar, e com a chuva para regar, com o sol para alumiar, e com a chuva para amolecer, se os nossos coraes quiserem: Qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et

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pluit super justos et injustos2. Se Deus d o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus, que se quiserem fazer bons, como a negar? Este ponto to claro que no h para que nos determos em mais prova. Quid debui facere vineae meae, et nonfeci? - disse o mesmo Deus por Isaias3. Sendo pois certo que a palavra divina no deixa de frutificar por parte de Deus, segue-se que ou por falta do pregador, ou por falta dos ouvintes. Por qual ser? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas no assim. Se fora por falta dos ouvintes, no fizera a palavra de Deus muito grande fruto; mas no fazer nenhum fruto e nenhum efeito, no por falta dos ouvintes. Provo. Os ouvintes ou so maus, ou so bons: se so bons, faz neles grande fruto a palavra de Deus; se so maus, ainda que no faa neles fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae spinae suffocaverunt illud. O trigo que caiu nas pedras, nasceu tambm, mas secou-se: Et natum aruiL O trigo que caiu na terra boa, nasceu e frutificou com grande multiplicao: Et natum frcitfiuctum centuplum. De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu na m terra no frutificou, mas nasceu, porque a palavra de Deus to fecunda, que nos bons faz muito fruto, e to eficaz, que nos maus, ainda que no faa fruto, faz efeito; lanada nos espinhos, no frutificou, mas nasceu at nos espinhos; lanada nas pedras, no frutificou, mas nasceu at nas pedras. Os piores ouvintes que h na Igreja de Deus so as pedras e os espinhos. E por qu? Os espinhos por agudos, as pedras por duras. Ouvintes de entendimentos agudos, e ouvintes de vontades endurecidas, so os piores que h. Os ouvintes de entendimentos agudos so maus ouvintes porque vm s a ouvir sutilezas, a esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e s vezes tambm a picar a quem os no pica: Aliud cecidit inter spinas. O trigo no picou os espinhos, antes os espinhos o picaram a ele; o mesmo sucede c. Cuidais que o sermo vos picou a vs, e no assim: vs sois o que picais o sermo. Por isso so maus ouvintes os de entendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda so piores, porque um entendimento agudo pode-se ferir pelos mesmos fios, e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quanto as setas so mais agudas, tanto mais facilmente se despontam na pedra. Oh! Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda so piores que as pedras. A vara de Moiss abrandou as pedras, e no pde abrandar uma vontade endurecida: Percutiens virga bis silicem, et egressae sunt aquae largissimae. Induratum est cor Phamonis4. E com os ouvintes de entendimentos agudos e os ouvintes de vontades endurecidas seremos mais rebeldes, tanta a fora da divina palavra que, apesar da agudeza, nasce nos espinhos, e apesar da dureza nasce nas pedras. Pudramos argir ao lavrador do Evangelho, de no cortar os espinhos e de no arrancar as pedras antes de semear, mas de indstria deixou no campo as pedras e os espinhos, para que se visse a fora do que semeava. E tanta a fora da divina palavra, que sem cortar nem despontar espinhos, nasce entre espinhos. E tanta a fora da divina palavra, que sem arrancar, nem abrandar pedras, nasce nas pedras. Coraes embaraados como espinhos, coraes secos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus, e tende confiana; tomai exemplo nestas mesmas pedras e nestes espinhos. Esses espinhos e essas pedras agora resistem ao semeador do Cu, mas vir tempo em que essas mesmas pedras o aclamem, e esses mesmos espinhos o coroem. Quando o semeador do cu deixou o campo, saindo deste mundo, as pedras se quebraram para lhe fazerem aclamaes, e os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa5.E se a palavra de Deus at dos espinhos e das pedras triunfa, se a palavra de Deus at nas pedras, at nos espinhos nasce, no triunfar dos2 O qual faz nascer o seu sol sobre bons e maus, e vir chuva sobre justos e injustos (Mt. 5,45). 3 Que coisa h que eu devesse ainda fazer minha vinha, que lhe no tenha feito? (Is. 5,4.) 4 Ferindo duas vezes com a vara a pederneira, saram dela guas copiosssimas (Nm. 20,11). E endureceu-se o corao de Fara (Ex. 7,13). 5E partiram-se as pedras (Mt. 27,51). E tecendo uma coroa de espinhos, ha puseram sobre a cabea (Mt. 27,29).

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alvedrios hoje a palavra de Deus, nem nascer nos coraes, no por culpa, nem por indisposio dos ouvintes. Supostas estas duas demonstraes, suposto que o fruto e efeito da palavra de Deus no fica nem por parte de Deus, nem por parte dos ouvintes, segue-se por conseqncia clara, que fica por parte do pregador. E assim . Sabeis cristos por que no faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis pregadores por que no faz fruto a palavra de Deus? Por culpa nossa. IV No pregador deve-se considerar a pessoa, a cincia, a matria, o estilo, a voz. A pessoa: uma coisa o semeador, outra o que semeia; uma coisa o pregador outra o que prega. As aes que do ser ao pregador: Hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. De nada vale a funda de Davi sem as pedras. At o Filho de Deus, enquanto Deus, no obra de Deus, palavra de Deus. No cu Deus necessariamente amado porque Deus visto, o que no acontece na terra onde apenas Deus ouvido. Os sermes fazem pouco efeito porque no so pregados aos olhos mas aos ouvidos. Seguir o exemplo do Batista. Os ouvintes e as ovelhas de Jac. Contra esse argumento l o exemplo do profeta Jonas.

Mas como em um pregador h tantas qualidades e em uma pregao h tantas leis, e os pregadores podem ser culpados em todas, em qual consistir esta culpa? No pregador podem-se considerar cinco circunstncias: a pessoa, a cincia, a matria, o estilo, a voz. A pessoa que , a cincia que tem, a matria que trata, o estilo que segue, a voz com que fala. Todas estas circunstncias temos no Evangelho. Vamo-las examinando uma por uma, e buscando esta cousa. Ser porventura o no fazer fruto hoje a palavra de Deus, pela circunstncia da pessoa? Ser porque antigamente os pregadores eram santos, eram vares apostlicos e exemplares, e hoje os pregadores so eu e outros como eu? Boa razo esta. A definio do pregador a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho no o comparou ao semeador, seno ao que semeia. Reparai. No diz Cristo: saiu a semear o semeador, seno, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit qai seminat semiitare. Entre o semeador e o que semeia h muita diferena: uma coisa o soldado, e outra coisa o que peleja; uma coisa o governador, e outra o que governa. Da mesma maneira, uma coisa o semeador, e outra o que semeia: uma coisa o pregador, e outra o que prega. O semeador e o pregador nome, o que semeia e o que prega ao, e as aes so as que do o ser ao pregador. Ter nome de pregador, ou ser pregador de nome, no importa nada; as aes, a vida, o exemplo, as obras, so as que convertem o mundo. O melhor conceito que o pregador leva ao plpito, qual cuidais que ? E o conceito que de sua vida tm os ouvintes. Antigamente convertiase o mundo; hoje por que se no converte ningum? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos; antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obras so tiro sem bala: atroam mas no ferem. A funda de Davi derrubou o gigante, mas no o derrubou com o estalo seno com a pedra: infixus est lapis in fronte ejus6. As vozes da harpa de Davi lanavam fora os demnios do corpo de Soul, mas no eram vozes pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a mo: David tollebat citharam, et percutiebat manu sua7. Por isso Cristo comparou o pregador ao semeador. O pregar, que falar, faz-se com a boca: o pregar, que semear, faz-se com a mo. Para falar ao vento, bastam palavras: para falar ao corao, so necessrias obras. Diz6 E a pedra se encravou na sua testa (1 Rs. 17,49). 7 Davi tomava a harpa, e a tocava com a sua mo(1 Rs 16,23)

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o Evangelho que a palavra de Deus multiplicou cento por um. Que quer isso dizer? Quer dizer que de uma palavra nasceram cem palavras? No. Quer dizer que de poucas palavras nasceram muitas obras. Pois palavras que frutificam obras, vede, se podem ser s palavras? Quis Deus converter o mundo, e que fez? Mandou ao mundo seu Filho feito homem. Notai. O Filho de Deus, enquanto Deus, palavra de Deus, no obra de Deus: Gertitum, nonfactum. O Filho de Deus enquanto Deus e Homem, palavra de Deus e obra de Deus juntamente: Verbum caro factum est8 De maneira que at de sua palavra desacompanhada de obras, no fiou Deus a converso dos homens. Na unio da palavra de Deus com a maior obra de Deus consistiu a eficcia da salvao do mundo. Verbo divino palavra divina, mas importa pouco que as nossas palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de obras. A razo disto porque as palavras ouvem-se, as obras vem-se; as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos. No cu ningum h que no ame a Deus, nem possa deixar de o amar. Na terra h to poucos que o amem; todos o ofendem. Deus no o mesmo, e to digno de ser amado no cu como na terra? Pois como no cu obriga e necessita a todos ao amarem, e na terra no? A razo porque Deus no cu Deus visto; Deus na terra Deus ouvido. No cu entra o conhecimento de Deus alma pelos olhos: Videbimus eum sicut est9 na terra entra-lhe o conhecimento de Deus pelos ouvidos: Fides ex ouditu10 E o que entra pelos ouvidos, cr-se, o que entra pelos olhos, necessita. Viram os ouvintes em ns o que nos ouvem a ns, e o abalo e os efeitos do sermo seriam muito outros. Vai um pregador pregando a Paixo, chega ao pretrio de Pilatos, conta como a Cristo o fizeram rei de zombaria, diz que tomaram uma prpura e lha puseram aos ombros; ouve aquilo o ouditrio muito atento. Diz que teceram uma coroa de espinhos, e que lha pregaram na cabea; ouvem todos com a mesma ateno. Diz mais que lhe ataram as mos e lhe meteram nela uma cana por cetro; continua o mesmo silncio e a mesma suspenso nos ouvintes. Corre-se neste passo uma cortina, aparece a imagem do Ecce homo: eis todos prostrados por terra, eis todos a bater nos peitos, eis as lgrimas, eis os gritos, eis os alaridos, eis as bofetadas. Que isto? Que apareceu de novo nesta igreja? Tudo o que descobriu aquela cortina tinha j dito o pregador. J tinha dito daquela prpura, j tinha dito daquela coroa e daqueles espinhos, j tinha dito daquele cetro e daquela cana. Pois se isto ento no fez abalo nenhum, como faz agora tanto? Porque ento era Ecce homo ouvido, e agora Ecce homo visto; a relao do pregador entrava pelos ouvidos, a representao daquela figura entra pelos olhos. Sabem, padres pregadores, porque fazem pouco abalo os nossos sermes? Porque no pregamos aos olhos, pregamos s aos ouvidos. Porque convertia o Batista tantos pecadores? Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos, o seu exemplo pregava aos olhos. As palavras do Batista pregavam penitncia: Agite poenitentiam: Homens fazei penitncia (Mt. 3,2) e o exemplo clamava: Ecce homo: eis aqui est o homem que o retrato da penitncia e da aspereza. As palavras do Batista pregavam jejum e repreendiam os regalos e demasias da gula, e o exemplo clamava: Ecce homo: eis aqui est o homem que se sustenta de gafanhotos e mel silvestre. As palavras do Batista pregavam composio e modstia, e condenavam a soberba e a vaidade das galas, e o exemplo clamava: Ecce homo: eis aqui est o homem vestido de peles de camelo, com as cerdas e cilicio raiz da carne. As palavras do Batista pregavam despegos e retiros do mundo, e fugir das ocasies e dos homens, e o exemplo clamava: Ecce homo: eis aqui o homem que deixou as cortes e as cidades, e vive num deserto e numa cova. Se os ouvintes ouvem uma coisa e vem outra, como se ho de converter? Jac punha as varas manchadas diante das ovelhas quando concebiam, e daquii8 E o Verbo se fez carne (Jo. 1. 14). 9 Ns outros o veremos bem como ele (1 Jo 3,2) 10A f pelo ouvido (Rom. 10.17).

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procedia que os cordeiros nasciam manchados11.Se quando os ouvintes percebem os nossos conceitos, tm diante dos olhos as nossas manchas, como ho de conceber virtudes? Se a minha vida apologia contra a minha doutrina, se as minhas palavras vo j refutadas nas minhas obras, se uma coisa o semeador e outra o que semeia, como se h de fazer fruto? Muito boa e muito forte razo era esta de no fazer fruto a palavra de Deus, mas tem contra si o exemplo e experincia de Jonas (Jon. 1,2-4). Jonas, fugitivo de Deus, desobediente, contumaz, e ainda depois de engolido e vomitado, iracundo, impaciente, pouco caritativo, pouco misericordioso, e mais zeloso e amigo da prpria estimao que da honra de Deus e salvao das almas, desejoso de ver sovertida a Nnive, e de a ver soverter com seus olhos, havendo nela tantos mil inocentes. Contudo, este mesmo homem com um sermo converteu o maior rei, a maior corte e o maior, reino do mundo, e no de homens fiis, seno de gentes idlatras. Outra logo a cousa que buscamos. Qual ser? V O estilo: deve ser muito fcil e muito natural. Por isso Cristo compara o pregar ao semear uma arte sem arte. A coisa est no cair est na queda, na cadncia, no caso. O mais antigo pregador o cu, semeador de estrelas. Deve-se pregar como quem semeia e no como quem azuleja ou ladrilha. No fazer do sermo um xadrez. As palavras devem ser como as estrelas: claras e distintas. O enigma dos nomes prprios desbatizando os santos. O argumento bom, mas h autores que o contradizem. Ser porventura o estilo que hoje se usa nos plpitos? Um estilo to empeado, um estilo to dificultoso, um estilo to afetado, um estilo to encontrado a toda a arte e a toda a natureza? Boa razo tambm esta. O estilo h de ser muito fcil e muito natural. Por isso Cristo comparou o pregar ao semear: Exiit qui seminat seminare. Compara Cristo o pregar ao semear, porque o semear uma arte que tem mais de natureza que de arte. Nas outras artes, tudo arte: na msica tudo se faz por compasso, na arquitetura tudo se faz por regra, na aritmtica tudo se faz por conta, na geografia tudo se faz por medida. O semear no assim. uma arte sem arte: caia onde cair. Vede como semeava o nosso lavrador do Evangelho. Caa o trigo nos espinhos, e nascia: Aliud cecidit inter spinas, et simul exortae spinae. Caa o trigo nas pedras, e nascia: Aliud cecidit super petram, et natum. Caa o trigo na terra boa, e nascia: Aliud cecidit in terrwn boiram, et natum. Ia o trigo caindo e ia nascendo. Assim h de ser o pregar. Ho de cair as coisas e ho de nascer, to naturais, que vo caindo, to prprias, que venham nascendo. Que diferente o estilo violento e tirnico que hoje se usa! Ver vir os tristes passos da Escritura, como quem vem ao martrio; uns vm acorrentados, outros vm arrastados, outros vm estirados, outros vm torcidos, outros vm despedaados; s atados no vm. H tal tirania? Ento no meio disto: Que bem levantado est aquilo! No est a coisa no levantar, est no cair: Cecidit. Notai uma alegoria prpria de nossa lngua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, s de trs nasceu: para o sermo vir nascendo, h de ter trs modos de cair. H de cair com queda, h de cair com cadncia, h de cair com caso. A queda para as coisas, a cadncia para as palavras, o caso para a disposio. A queda para as coisas, porque ho de vir bem trazidas, e em seu lugar; ho de ter queda. A cadncia para as palavras, porque no ho de ser escabrosas, nem dissonantes; ho de ter cadncia. O caso para a disposio, porque h de ser to natural e to desafetado que parea caso e no estudo. Cecid ii; cecidit; cecidit.11 Punham as ovelhas os olhos nas varas, e pariam as suas crias manchadas e vrias, e pintadas de diversas cores (Gn. 30, 39).

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J que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mimo estilo do mais antigo pregador que houve no mundo. E qual foi ele? O mais antigo pregador que houve no mundo foi o cu: Coeli enarrant gloriam Dei, et opera manuom ejus annuntiat firmamentum, diz Davi12.Suposto que o cu pregador, deve de ter sermes e deve de ter palavras. Se tem, diz o mesmo Davi: tem palavras e tem sermes, e mais, muito bem ouvidos: Non sunt loquelbe, neque sermones, quorum nou oudiantur voces eorum13. E quais so estes sermes e estas palavras do cu? As palavras so as estrelas, os sermes so a composio, a ordem, a harmonia e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do cu, como estilo que Cristo ensinou na terra? Um e outro semear: a terra semeada de trigo, o cu semeado de estrelas. O pregar h de ser como quem semeia, e no como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas: Stellae manentes in ordine suo (Jz. 5,20). Todas as estrelas esto por sua ordem, mas ordem que faz influncia, no ordem que faa lavor. No fez Deus o cu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermo em xadrez de palavras. Se de uma parte est branco, da outra h de estar negro; se de uma parte est dia, da outra h de estar noite; se de uma parte dizem luz, da outra ho de dizer sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra ho de dizer subiu. Basta que no havemos de ver num sermo duas palavras em paz? Todas ho de estar sempre em fronteira com o seu contrario? Aprendamos do cu o estilo da disposio e tambm o das palavras. Como ho de ser as palavras? Como as estrelas. As estrelas so muito distintas e muito claras. Assim h de ser o estilo da pregao; muito distinto, e muito claro. E nem por isso temais que parea o estilo baixo: as estrelas so muito distintas e muito claras e altssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; to claro que o entendam os que no sabem, e to alto que tenham muito que entender nele os que sabem. O rstico acha documentos nas estrelas para a sua lavoura, e o mareante para a sua navegao, e o matemtico para as suas observaes e para os seus juzos. De maneira que o rstico e o mareante, que no sabem ler, nem escrever; entendem as estrelas; e o matemtico, que tem lido quantos escreveram, no alcana a entender quanto nelas h. Tal pode ser o sermo: estrelas, que todos as vem, e muito poucos as medem. ' Sim, padre: porm esse estilo de pregar, no pregar culto. Mas fosse! Este desventurado estilo que hoje se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto; os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto no escuro, negro, e negro boal e muito ceirado. possvel que somos portugueses, e havemos de ouvir um pregador em portugus, e no havemos de entender o que diz? Assim como h lxicon para o grego, e calepino para o latim, assim necessrio haver um vocabulrio do plpito. Eu ao menos o tomara para os nomes prprios, porque os cultos tm batizados os santos, e cada autor que alegam um enigma. Assim o disse o Cetro penitente; assim o disse o Evangelista Apeles; assim o disse a guia de frica, o Favo de Claraval, a Prpura de Belm, a Boca de Ouro. H tal modo de alegar! O Cetro penitente dizem que Davi, como se todos os cetros no foram penitentes; o Evangelista Apeles, que s. Lucas; o Favo de Claraval, S. Bernardo; a guia de Africa, Santo Agostinho; a Prpura de Belm, S. Jernimo; a Boca de Ouro, S. Crisstomo. E quem quitaria ao outro cuidar que a Prpura de Belm Herodes, que a guia de frica Cipio, e que a Boca de Ouro Midas? Se houvesse um advogado que alegasse assim a Bartolo e Baldo, haveis de fiar dele o vosso pleito? Se houvesse um homem que assim falasse na conversao, no o haveis de ter por nscio? Pois o que na conversao seria necedade, como h de ser discrio no plpito? Boa me parecia tambm esta razo, mas como os cultos pelo polido e estudado se defendem com o grande Nazianzeno, com Ambrsio, com Crislogo, com Leo, e pelo escuro e12 Os cus publicam a glria de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mos (SI. 18,1). 13 No h linguagem, nem fala, por quem no sejam entendidas as suas vozes (SI. 18,4).

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duro com Clemente Alexandrino, com Tertuliano, com Basfiio de Sclucia, com Zeno Veronense, e outros, no podemos negar a reverncia a tamanhos autores, posto que desejramos, nos que se prezam de beber destes rios, a sua profundidade. Qual ser logo a cousa de nossa queixa? VI A matria: o sermo deve ter um s assunto, uma s matria. O semeador semeava trigo, e s. Se lanasse terra grande variedade de sementes, nada colheria. Exemplos do Batista e de Jonas. O sermo e a rvore. Os ensinamentos dos clssicos pagos e dos Padres da Igreja. Esta porm no ainda a cousa da falta de frutos da palavra de Deus. Ser pela matria, ou matrias, que tomamos pregadores? Usa-se hoje o modo que chamam de apostilar o Evangelho, em que tomam muitas matrias, levantam muitos assuntos, e quem levanta muita caa e no segue nenhuma, no muito que se recolha com as mos vazias. Boa razo tambm esta. O sermo h de ter um s assunto e uma s matria. Por isso Cristo disse que o lavrador do Evangelho no semeara muitos gneros de sementes, seno uma s: Exiit qui seminat seminare semen. Semeou uma semente s, e no muitas, porque o sermo h de ter uma s matria, e no muitas matrias. Se o lavrador semeara primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso e mido, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confuso verde. Eis aqui o que acontece aos sermes deste gnero. Como semeiam tanta vanedade, no podem colher coisa certa. Quem semeia misturas, mal pode colher trigo. Se uma nou fizesse um bordo para o Norte, outro para o Sul, outro para Leste, outro para Oeste, como poderia fazer viagem? Por isso nos plpitos se trabalha tanto e se navega to pouco. Um assunto vai para um vento, outro assunto vai para outro vento; que se h de colher seno vento? O Batista convertia muitos em Judia; mas quantas matrias tomava? Uma s matria: Parate viam Domini14. a preparao para o reino de cristo. Jonas converteu os ninivitas; mas quantos assuntos tomau? Um s assunto: Adhuc quadraginta dies, et Ninive subvertetur15. a subverso da cidade. De maneira que Jonas em quarenta dias pregou um s assunto, e ns queremos pregar quarenta assuntos em uma hora? Por isso no pregamos nenhum. O sermo h de ser de uma s cor, h de ter um s objeto, um s assunto, uma s matria. H de tomar o pregador uma s matria; h de defini-la, para que se conhea; h de dividila, para que se distinga; h de prov-la com a Escritura, h de declar-la com razo, h de confirm-la com o exemplo, h de amplific-la com as cousas, com os efeitos, com as circunstncias, com as convenincias, que se ho de seguir, com os inconvenientes, que se ho de seguir, com os inconvenientes, que se devem evitar; h de responder s dvidas, h de satisfazer s dificuldades, h de impugnar e refutar com toda a fora de eloqncia os argumentos contrrios, e depois disto h de colher, h de apertar, h de concluir, h de persuadir, h de acabar. Isto sermo, isto pregar, e o que no isto, falar demais alto. No nego, nem quero dizer que o sermo no haja de ter variedade de discursos, mas esses ho de nascer todos da mesma matria, e continuar, e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os olhos? Ora vede. Uma rvore tem razes, tem troncos, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim h de ser o sermo: h de ter razes fortes e slidas, porque h de ser fundado no Evangelho; h de ter um tronco, porque h de ter um s assunto e tratar uma s matria. Deste tronco ho de nascer diversos ramos, que so diversos discursos, mas nascidos da mesma matria e continuados nela. Estes ramos no ho de ser secos, seno cobertos de folhas, porque os discursos ho de ser vestidos e ornados de14 Aparelhai o caminho do Senhor (Mt. 3,3). 15 Daqui a quarenta dias ser Nnive subvertida (Jon. 3,4).

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palavras. H de ter esta rvore varas, que so a repreenso dos vcios; h de ter flores, que so as sentenas; e, por remate de tudo, h de ter frutos, que o fruto, e o fim a que se h de ordenar o sermo. De maneira que h de haver frutos, h de haver flores, h de haver varas, h de haver folhas, h de haver ramos, mas tudo nascido e fundado em um s tronco, que uma s matria. Se tudo so troncos, no sermo, madeira. Se tudo so ramos, no sermo, so maravalhas. Se tudo so folhas, no sermo, so versas. Se tudo so varas, no sermo, feixe. Se tudo so flores, no sermo, ramalhete. Serem tudo frutos, no pode ser, porque no h frutos sem rvore. Assim que nesta rvore, a que podemos chamar rvore da vida, h de haver o proveitoso do fruto, o formoso das flores, o rigoroso das varas, o vestido das folhas, o estendido dos ramos, mas tudo isto nascido e formado de um s tronco, e esse no levantado no ar, seno fundado nas razes do Evangelho: Semimore semen. Eis aqui como ho de ser os sermes; eis aqui como no so. E assim no muito que se no faa fruto com eles. Tudo o que tenho dito pudera demonstrar largamente, no s com os preceitos de Aristteles, dos Tlios, dos Quintilianos, mas com a prtica observada do principe dos oradores evanglicos, S. Joo Crisstomo, de S. Baslio Magno, S. Bernardo, S. Cipriano, e com as famosssimas oraes de S. Gregrio Nazianzeno, mestre de ambas as Igrejas. E posto que nestes mesmos Padres, como em Santo Agostinho, S. Gregrio, e muitos outros, se achamos Evangelhos apostilados com nomes de sermes e homilias, uma coisa expor, e outra pregar, uma ensinar, e outra persuadir. E desta ltima que eu falo, com a qual tanto fruto fizeram no mundo Santo Antnio de Pdua e S. Vicente Ferrer. Mas nem por isso entendo que seja ainda esta a verdadeira cousa que busco. VII A Cincia: ser a falta de cincia a cousa da esterilidade da palavra de Deus? O pregador deve pregar do seu e no do alheio; deve lutar com as prprias armas, como Davi que recusou as armas de Soul. Cristo encontrou os apstolos refazendo as suas redes;como as redes, a pregao deve ter chumbo e cortia. Na descida do Esprito Santo as lnguas de fogo desceram sobre a cabea dos apstolos e no sobre as lnguas, para significar que o que sai da boca pra nos ouvidos, mas o que sai pela boca, mas da cabea, convence o entendimento. Razo por que desceu uma lngua sobre cada apstolo. O Batista, entretanto, contraria esta assero do autor. Ser porventura a falta de cincia, que h em muitos pregadores? Muitos pregadores h que vivem do que no colheram, e semeiam o que no trabalharam. Depois da sentena de Ado, a terra no costuma dar fruto, seno a quem come o seu po como suor do seu rosto. Boa razo parece tambm esta. O pregador h de pregar o seu, e no o alheio. Por isso diz Cristo que semeou o lavrador do Evangelho o trigo seu: Semen suum. Semeou o seu, e no o alheio, porque o alheio e o furtado no bom para semear, ainda que o furto seja de cincia. Comeu Eva o pomo da cincia, e queixava-me eu antigamente desta nossa Me; j que comeu o pomo, por que lhe no guardou as pevides? No seria bem que chegasse a ns a rvore, j que nos chegaram os encargos dela? Pois, por que o no fez assim Eva? Porque o pomo era furtado, e o alheio bom para comer, mas no bom para semear; bom para comer; porque dizem que saboroso; no bom para semear, porque no nasce. Algum ter experimentado que o alheio lhe nasce em casa, mas esteja certo que se nasce, no h de deitar razes: e o que no tem razes, no pode dar frutos. Eis aqui por que muitos pregadores no fazem fruto: porque pregam o alheio e no o seu: Semen soum. O pregar entrar em batalha com os vcios; e armas alheias, ainda que sejam as de Aquiles, a ningum deram

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vitria16. Quando Davi saiu a campo como gigante, ofereceu-lhe Soul as suas armas, mas ele no as quis aceitar. Com armas alheias ningum pode vencer, ainda que seja Davi. As armas de Soul s servem a Soul, as de Davi a Davi, e mais aproveita um cajado e uma funda prpria, que a espada e a lana alheia. Pregador que peleja com as armas alheias, no hajais medo que derrube gigante. Fez Cristo aos apstolos pescadores de homens, que foi orden-los de pregadores. E que faziam os apstolos? Diz o texto, que estavam: Reficientes retia sua: Refazendo as redes suas17.. Eram as redes dos apstolos, e no eram alheias. Notai: Retia sua. No diz que eram suas porque as compraram, seno que eram suas porque as faziam; no eram suas porque lhes custaram o seu dinheiro, seno porque lhes custaram o seu trabalho. Desta maneira eram as redes suas, e porque desta maneira eram suas, por isso eram redes de pescadores que haviam de pescar homens. Com redes alheias, ou feitas por mo alheia, podem-se pescar peixes, homens no se podem pescar. A razo disto porque, nesta pesca de entendimentos, s quem sabe fazer a rede, sabe fazer o lano. Como se faz uma rede? Do fio e do n se compe a malha. Quem no enfia, nem ata, como h de fazer rede? E quem no sabe enfiar, nem sabe atar, como h de pescar homens? A rede tem chumbada que vai ao fundo, e tem cortia que nada em cima da gua. A pregao tem umas coisas de mais peso e de mais fundo, e tem outras mais superficiais e mais leves, e governar o leve e o pesado, s o sabe fazer quem faz a rede. Na boca de quem no faz a pregao, at o chumbo cortia. As razes no ho de ser enxertadas, ho de ser nascidas. O pregar, no recitar. As razes prprias nascem do entendimento, as alheias vo pegadas memria, e os homens no se convencem pela memria, seno pelo entendimento. Veio o Esprito Santo sobre os apstolos, e quando as lnguas desciam do cu, cuidava eu que lhes haviam de pr na boca, mas elas foram-se pr na cabea. Pois por que na cabea, e no na boca, que o lugar da lngua? Porque o que h de dizer o pregador, no lhe h de sair s da boca; h-lhe de sair pela boca, mas da cabea. O que sai s da boca pra nos ouvidos: o que nasce do juzo penetra e convence o entendimento. Ainda tm mais mistrio estas lnguas do Esprito Santo. Diz o texto, que no se puseram todas as lnguas sobre todos os apstolos, seno cada uma sobre cada um: Apparuerunt dispertitae linguae tanquam ignis, seditque supra singulos eorum18. E por que cada uma sobre cada um, e no todas sobre todos? Porque no servem todas as lnguas a todos, seno a cada um a sua. Uma lngua s sobre Pedro, porque a lngua de Pedro no serve a Andr; outra lngua s sobre Andr, porque a lngua de Andr no serve a Filipe; outra lngua s sobre Filipe, porque a lngua de Filipe no serve a Bartolomeu; e assim dos mais. E se no, vede o estilo de cada um dos apstolos sobre que desceu o Esprito Santo. S de cinco temos escrituras, mas a diferena com que escreveram, como sabem os doutos, admirvel. As penas todas eram tiradas das asas daquela Pomba Divina, mas o estilo, to diverso, to particular, e to prprio de cada um, que bem mostra que era seu. Mateus fcil, Joo misterioso, Pedro grave, Jac forte, Tadeu sublime, e todos com tal valentia no dizer, que cada palavra era um trovo, cada clusula um raio e cada razo um triunfo. Ajuntai a estes cinco, S. Lucas e S. Marcos, que tambm ali estavam, e achareis o nmero daqueles sete troves que ouviu S. Joo no Apocalipse: Locuta sunt septem tonitrua voces suas19 Eram troves que falavam e dearticulavam as vozes, mas estas vozes eram suas: Voces suas, suas, e no alheias, como notou Ansberto: Non alienas, sed suas. Enfim, pregar o alheio pregar o alheio, e com o alheio nunca se fez coisa boa. Contudo eu no me firmo de todo nesta razo, porque do grande Batista sabemos que pregou o que tinha pregado Isaas, como notou S. Lucas, e no com outro nome, seno de sermes: Praedicans baptismum poenitentiae in remissionem peccatorum, sicut scriptum est in libto16 Ptroclo, com as armas de Aquiles. foi vencido e morto. 17 Farei que vs sejais pescadores de homens (Mt. 4,19). 18 E lhes apareceram repartidas umas como lnguas de fogo, que repousaram sobre cada um deles (At. 2,3). 19 Sete troves fizeram ouvir as suas vozes (Apc. 10,3).

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sermonun Jsaiae Pmphetae20. Deixo o que tomau S. Ambrsio de S. Basilio, S. Prspero, e Beda, de Santo Agostinho, Teofilato, e Eutmio, de S. Joo Crisstomo. VIII A voz: antigamente a primeira qualidade do pregador era bom peito. Como se definiu o Batista. O pregador, voz que arrazoa e no voz que brada. Contudo s vezes valem mais os brados que a razo, como no julgamento de Cristo. Definio de Isaias contrria ao exemplo de Jesus, de Moiss, e de outros patriarcas e profetas. Concluso: a cousa da falta de fruto dos sermes no est nem na pessoa, nem no estilo, nem na matria, nem na cincia, nem na voz do pregador Ser finalmente a cousa que h tanto buscamos a voz com que hoje falam os pregadores? Antigamente pregavam bradando, hoje pregam conversando. Antigamente a primeira parte do pregador era boa voz e bom peito. E verdadeiramente como o mundo se governa tanto pelos sentidos, podem s vezes mais os brados que a razo. Boa era tambm esta, mas no a podemos provar com o semeador, porque j dissemos que no era oficio de boca. Porm o que nos negou o Evangelho no semeador metafrico, nos deu no semeador verdadeiro, que Cristo. Tanto que Cristo acabou a parbola, diz o Evangelho que comeou o Senhor a bradar: Haec dicens clamabat (Lc. 8,8). Bradou o Senhor, e no arrazoou sobre a parbola, porque era tal o ouditrio, que fiou mais dos brados que da razo. Perguntaram ao Batista, quem era? Respondeu ele: Ego vox clainantis in deserto (Jo. 1,23): Eu sou uma voz que anda bradando neste deserto. Desta maneira se definiu o Batista. A definio do pregador, cuidava eu que era voz que arrazoa, e no voz que brada. Pois porque se definiu o Batista pelo bradar, e no pelo arrazoar, no pela razo, seno pelos brados? Porque h muita gente neste mundo com quem podem mais os brados que a razo, e tais eram aqueles a quem o Batista pregava. Vede-o claramente em Cristo. Depois que Pilatos examinou as acusaes que contra ele se davam, lavou as mos, e disse: Ego nullam cousam invenio in homine isto (Lc. 23,14): Eu nenhuma cousa acho neste homem. Neste tempo todo o povo e os escribas bradavam de fora que fosse crucificado: At illi magis clamabant: crucifigatur (Mt. 27,23). De maneira que Cristo tinha por si a razo, e tinha contra si os brados. E qual pde mais? Puderam mais os brados que a razo. A razo no valeu para o livrar, os brados bastaram para o pr na cruz. E como os brados no mundo podem tanto, bem que bradem alguma vez os pregadores, bem que gritem. Por isto Isaias chamau aos pregadores nuvens: Qui sunt isti, qui ut nubes volant?21 A nuvem tem relmpago, tem trovo e tem raio: relmpago para os olhos trovo para os ouvidos, raio para o corao: com o relmpago alumia, com o trovo assombra, com o raio mata. Mas o raio fere a um, o relmpago a muitos, a trovo a todos. Assim h de ser a voz da pregador: um trovo da cu que assombre e faa tremer o mundo. Mas que diremos orao de Moiss: Concresat ut pluvia doctrina meo; fluat ut ros elo quium meum (Dt. 32,2)? Desa minha doutrina como chuva da cu, e a minha voz e as minhas palavras como orvalho, que se destila brandamente e sem rudo? Que diremos ao exemplo ordinrio de Cristo, to celebrado par Isaias: Non clamabit neque oudietur vox ejusforis (Is. 42,2): No clamar, no bradar, mas falar com uma voz to moderada, que se no possa ouvir fora? E no h dvida que o praticar familiarmente, e o falar mais ao ouvido que aos ouvidos, no s20 Pregando o batismo de penitncia para remisso de pecados, como est escrito no livro das palavras do profeta Isaias (Lc. 3,3s.). 21 Quem so estes que voam como nuvens? (Is. 60, 8)

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concilia maior ateno, mas naturalmente e sem fora se insinua, entra, penetra, e se mete na alma. Em concluso, que a cousa de no fazerem hoje fruto os pregadores com a palavra de Deus nem a circunstncia da pessoa: Qui seminat, nem a do estilo: Seminare, nem a da matria: Semen, nem a da cincia: Suum, nem a da voz: Clamabat. Moiss tinha fraca voz. Ams tinha grosseiro estilo, Salomo multiplicava e variava os assuntos, Balao no tinha exemplo de vida, o seu animal no tinha cincia, e contudo todos estes, falando, persuadiam e convenciam22. Pois se nenhuma destas razes que discorremos, nem todas elas juntas so a cousa principal, nem bastante, do pouco fruto que hoje faz a palavra de Deus, qual diremos finalmente que a verdadeira cousa? IX A verdadeira razo: as palavras dos pregadores so palavras de Deus, mas no so a palavra de Deus. As Escrituras, quando no tomadas em seu verdadeiro sentido, podem transformar-se em palavras do demnio, como no caso da tentao de Cristo. Analogia entre o pinculo do Templo e o plpito. Os pregadores e as duas falsas testemunhas do julgamento de Cristo. Admoestao de S. Paulo. Excelncia dos comedigrafos pagos sobre os maus pregadores. As palavras que tomei por tema o dizem: Semen est Verbum Dei. Sabeis, cristos, a cousa, por que se faz hoje to pouco fruto com tantas pregaes? porque as palavras dos pregadores so palavras, mas no so palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve. A palavra de Deus, como dizia, to poderosa e to eficaz, que no s na boa terra faz fruto, mas at nas pedras e nos espinhos nasce. Mas se as palavras dos pregadores no so palavra de Deus, que muito que no tenham a eficcia e os efeitos de palavra de Deus? Ventum seminabunt, et turbinem colligent (Os. 8,7), diz o Esprito Santo: Quem semeia ventos, colhe tempestades. Se os pregadores semeiam vento, se o que se prega vaidade, se no se prega a palavra de Deus, como no h a Igreja de Deus de correr tormenta em vez de colher frutos? Mas, dir-me-eis: padre, os pregadores de hoje no pregam do Evangelho, no pregam das Sagradas Escrituras? Pois como no pregam a palavra de Deus? Esse o mal. Pregam palavras de Deus, mas no pregam a palavra de Deus. Qui habet sennonem meum, loquatur serutonem meus23 disse Deus por Jeremias. As palavras de Deus pregadas no sentido em que Deus as disse, so palavra de Deus, mas pregadas no sentido que ns queremos, no so palavras de Deus, antes podem ser palavra do demnio. Tentou o demnio a Cristo a que fizesse das pedras po. Respondeu-lhe o Senhor: Non in solo pane vivit homo, sed in omni verbo quod procedit de Dei 24. Esta sentena era tirada do captulo oitavo do Deuteronmio. Vendo o demnio que o Senhor se defendia da tentao com a Escritura, leva-o ao templo, e alegando o lugar do salmo novento dizlhe desta maneira: Mitte de aeorsum; scriptum est enim quia Angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis (SI. 90,11): Deita-te da abaixo, porque prometido est nas Sagradas Escrituras que os anjos te tomaro nos braos, para que te no faas mal. De sorte que Cristo defendeu-se do diabo com a Escritura, e o diabo tentou a Cristo com a Escritura Todas as Escrituras so palavra de Deus; pois se Cristo toma a Escritura para se defender do diabo, como toma o diabo a Escritura para tentar a Cristo? A razo porque Cristo tomava as palavras da Escritura em seu verdadeiro sentido, e o diabo tomava as palavras da Escritura em sentido alheio e torcido. E as mesmas palavras que, tomadas em verdadeiro sentido, so palavras de Deus, tomadas22 Tardo de lngua (x. 4,10); Voce gracili, segundo os Setorta (Am. 1,1). 23 O que tem a minha palavra anuncie a minha palavra verdadeiramente (Jer. 23,28). 24 No s de po vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus (Mt. 4,4).

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em sentido alheio, so armas do diabo. As mesmas palavras, que tomadas no sentido em que Deus as disse, so defesa, tomadas no sentido em que Deus as no disse, so tentao. Eis aqui a tentao com que ento o diabo quis derrubar a Cristo, e com que hoje lhe faz a mesma guerra do pinculo do Templo. O pinculo do Templo o plpito, porque o lugar mais alto dele. O diabo tentou a Cristo no deserto, tentou-o no monte, tentou-o no Templo; no deserto tentou-o com a gula, no monte tentou-o com a ambio, no Templo tentou-o com as Escrituras mal interpretadas, e essa a tentao de que mais padece hoje a Igreja, e que em muitas partes tem derrubado dela, seno a Cristo, a sua f. Dizei-me, pregadores (aqueles com quem eu falo indignos verdadeiramente de to sagrado nome) dizei-me: estes assuntos inteis, que tantas vezes levantais, essas empresas, ao vosso parecer agudas, que prosseguis, achaste-las alguma vez nos profetas do Testamento Velho, ou nos apstolos e evangelistas do Testamento Novo, ou no Autor de ambos os Testamentos, Cristo? certo que no, porque desde a primeira palavra do Gnesis at a ltima do Apocalipse, no h tal coisa em todas as Escrituras25

Pois se nas Escrituras no h o que dizeis e o que pregais, como cuidais que pregais a palavra de Deus? Mais. Nesses lugares, nesses textos que alegais para prova do que dizeis, esse o sentido em que Deus os disse? esse o sentido em que os entendemos Padres da Igreja? esse o sentido da mesma gramtica das palavras? No, por certo, porque muitas vezes as tomais pelo que soam, e no pelo que significam, e talvez nem pelo que soam. Pois se no esse o sentido das palavras de Deus, segue-se que no so palavras de Deus. E se no so palavras de Deus, que nos queixamos de que no faam fruto as pregaes? Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que ns queremos, e no havemos de querer dizer o que elas dizem. E ento ver cabecear o ouditrio a estas coisas, quando devamos de dar com a cabea pelas paredes de as ouvir! Verdadeiramente no sei de que mais me espante, se dos nossos conceitos, se dos vossos aplousos. Oh! que bem levantou o pregador! Assim : mas que levantou? Um falso testemunho ao texto, outro falso testemunho ao santo, outro ao entendimento e ao sentido de ambos. Ento que se converta o mundo com falsos testemunhos da palavra de Deus? Se a algum parecer demasiada a censura, oua-me. Estava Cristo acusado diante de Caifs, e diz o evangelista S. Mateus que por fim vieram duas testemunhas: Novissime venerunt duo falsi testes (Mt. 26,60). Estas testemunhas referiram que ouviram dizer a Cristo que, se os judeus destrussem o Templo, ele o tomaria a reedificar em trs dias. Se lermos o evangelista S. Joo, acharemos que Cristo verdadeiramente tinha dito as palavras referidas. Pois se Cristo tinha dito que havia de reedificar o Templo dentro de trs dias, e isso mesmo o que referiram as testemunhas, como lhes chama o evangelista testemunhas falsas: Duo falsi testes? O mesmo S. Joo deu a razo: Loquebatur de templo corporis sui (Jo. 2,21). Quando Cristo disse que em trs dias reedificaria o templo, - falava o Senhor do templo mstico de seu corpo, o qual os judeus destruram pela morte, e o Senhor o reedificou pela ressurreio, e como Cristo falava do templo mstico e as testemunhas o referiram ao templo material de Jerusalm, ainda que as palavras eram verdadeiras, as testemunhas eram falsas. Eram falsas, porque Cristo as dissera em um sentido, e eles as referiram em outro, e referir as palavras de Deus em diferente sentido do que foram ditas, levantar falso testemunho a Deus, levantar falso25 D. Hieronymus in Prlogo Galeato: Sola o scripturarum aes est quam sibi possim omines vinditant, et cum oures populi sermone composite mulserint, hoc: legem Dei putant; nec: scire dignantur quid Prophetae, quid Apostoli senserit; sed ad sensum suum incogrua optant testimonia; quasi grande sit, et non viyiosissimum dicendi genus, depravare sententias, et ad voluntatem suam scripturam trahere repugnantem.

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testemunho s Escrituras. Ah! Senhor, quantos falsos testemunhos vos levantam! Quantas vezes ouo dizer que dizeis o que nunca dissestes! Quantas vezes ouo dizer que so palavras vossas o que so imaginaes minhas, que me no quero excluir deste nmero! Que muito logo, que as nossas imaginaes e as nossas vaidades e as nossas fbulas no tenham a eficcia de palavra de Deus! Miserveis de ns, e miserveis dos nossos tempos! Pois neles se veio a cumprir a profecia de S. Paulo: Erit tempus curo sanam doctrinam non sustinebunt (2 Tim. 4,3): Vir tempo, diz S. Paulo, em que os homens no sofrero a doutrina s: Sed ad sua desideria coacervabunt sibi magistros prurientes ouribus: mas para seu apetite tero grande nmero de pregadores feitos a monto e sem escolha, os quais no faam mais do que adular-lhes as orelhas: A veritate quidem ouditun avertent, ad fabulas outem convertentur: fecharo os ouvidos verdade e abri-los-o s fbulas. Fbula tem duas significaes: quer dizer fingimento, e quer dizer comdia, e tudo so muitas pregaes deste tempo. So fingimento, porque so subtilezas e pensamentos areos, sem fundamento de verdade: so comdia, porque os ouvintes vm pregao como comdia, e h pregadores que vm ao plpito como comediantes. Uma das felicidades que se contava entre as do tempo presente, era acabarem-se as comdias em Portugal, mas no foi assim. No se acabaram, mudaram-se, passaram-se do teatro ao plpito. No cuideis que encareo em chamar comdias a muitas pregaes das que hoje se usam. Tomara ter aqui as comdias de Plouto, de Terncio, de Sneca, e vereis se no achveis nelas muitos desenganos da vida e vaidade do mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros e muito mais slidos do que hoje se ouvem nos plpitos. Grande misria, por certo, que se achem maiores documentos para a vida nos versos de um poeta profano e gentio que nas pregaes de um orador cristo, e muitas vezes sobre cristo religioso! Pouco disse S. Paulo em lhes chamar comdia, porque muitos sermes h que no so comdia: so farsa. Sobe talvez ao plpito um pregador dos que professam ser mortos ao mundo, vestido ou amortalhado em um hbito de penitncia (que todos, mais ou menos speros, so de penitncia, e todos, desde o dia em que os professamos, mortalhas) a vista de horror, o nome de reverncia, a matria de compuno, a dignidade de orculo, o lugar e a expectao de silncio. E quando este se rompeu, que o que se ouve? Se neste auditrio estivesse um estrangeiro que nos no conhecesse, e visse entrar este homem a falar em pblico naqueles trajas e em tal lugar, cuidaria que havia de ouvir uma trombeta do cu, que cada palavra sua havia de ser um raio para os coraes, que havia de pregar com o zelo e com o fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto, e com as aes havia de fazer em p e em cinza os vcios. Isto havia de cuidar o estrangeiro. E ns, que o que vemos? Vemos sair da boca daquele homem, assim naqueles trajos, uma voz muito afetada e muito polida, e logo comear com muito desgarro, a qu? A motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar finezas, a lisonjear precipcios, a brilhar auroras, a derreter Cristais, a desmaiar jasmins, a toucar primaveras, e outras mil indignidades destas. No isto farsa a mais digna de riso, se no fora tanto para chorar? Na comdia o rei veste como rei e fala como rei, o lacaio veste como lacaio e fala como lacaio, o rstico veste como rstico e fala como rstico, mas um pregador vestir como religioso e falar como... no o quero dizer por reverncia ao lugar. J que o plpito teatro e o sermo comdia, sequer no faremos bem a figura? No diro as palavras com o vestido e com o ofcio? Assim pregava S. Paulo, assim pregavam aqueles patriarcas que se vestiram e nos vestiram destes hbitos? No louvamos e no admiramos o seu pregar, no nos prezamos de seus filhos? Pois por que os no imitamos? Por que no pregamos como eles pregavam? Neste mesmo plpito pregou S. Francisco Xavier, neste mesmo plpito pregou S. Francisco de Borja, e eu, que tenho o mesmo hbito, por que no pregarei a sua doutrina, j que me falta o seu esprito?

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X No fazer caso das zombarias dos ouvintes: a doutrina que eles desestimam, essa a mais proveitosa; como o trigo que caiu no caminho. O pregador o mdico: no deve procurar agradar mas curar Diferena entre dois famosos pregadores de Coimbra. Esperana de melhores frutos para a quaresma que se inicia. Dir-me-eis o que a mim me dizem, e o que j tenho experimentado, que se pregamos assim, zombam de ns os ouvintes, e no gostam de ouvir. Oh! boa razo para um servo de Jesus Cristo! Zombem e no gostem embora, e faamos nosso ofcio. A doutrina de que eles zombam, a doutrina que eles desestimam, essa a que lhes devemos pregar, e por isso mesmo, porque a mais proveitosa e a que mais ho mister. O trigo que caiu no caminho, comeram-no as aves. Estas aves, como explicou o mesmo Cristo, so os demnios que tiram a palavra de Deus dos coraes dos homens: Venit diabolus et tollit verbum de corde eorum. Pois por que no comeu o diabo o trigo que caiu entre os espinhos, ou o trigo que caiu nas pedras, seno o trigo que caiu no caminho? Porque o trigo que caiu no caminho: Conculcatum est ab hominibus: pisaram-no os homens, e a doutrina que os homens pisam, a doutrina que os homens desprezam, essa a de que o diabo se teme. Desses outros conceitos, desses outros pensamentos, dessas outras subtilezas que os homens estimam e prezam, dessas no se teme, nem se acoutela o diabo, porque sabe que no so essas as pregaes que lhe ho de tirar as almas das unhas. Mas daquela doutrina que cai: secos viam; daquela doutrina que parece comum: secas viam, daquela doutrina que parece trivial: secas viam, daquela doutrina que parece trilhada: secos viam, daquela doutrina que nos pe em caminho e em via da nossa salvao (que a que os homens pisam e a que os homens desprezam) essa a de que o demnio se receia e se acoutela; essa a que procura comer e tirar do mundo. E por isso mesmo, essa a que deviam pregar os pregadores, e a que deviam buscar os ouvintes. Mas se eles no o fizerem assim, e zombarem de ns, zombemo-nos tanto de suas zombarias como dos seus aplousos. Per infamiam, et bonan famam, diz S. Paulo (2 Cor. 6,8). O pregador h de saber pregar com fama e sem fama. Mais diz o apstolo: h de pregar com fama e com infmia. Pregar o pregador para ser afamado, isso mundo, mas infamado, e pregar o que convm, ainda que seja com descrdito de sua fama, isso ser pregador de Jesus Cristo. Pois o gostarem ou no gostaremos ouvintes! Oh! que advertncia to digna! Que mdico h que repare no gosto do enfermo quando trata de lhe dar sade? Sarem, e no gostem; salvem-se, e amargue-lhes, que para isso somos mdicos das almas. Quais vos parecem que so as pedras sobre que caiu parte do trigo do Evangelho? Explicando Cristo a parbola, diz que as pedras so aqueles que ouvem a pregao com gosto: Hi sunt qui cum goudio suscipiunt verbum. Pois ser bem que os outros ouvintes gostem, e que no cabo fiquem pedras? No gostem, e abrandem-se; no gostem, e quebrem-se; no gostem, e frutifiquem. Este o modo com que frutificou o trigo que caiu na boa terra: Et fructum afferunt in patientia, conclui Cristo26. De maneira que o frutificar no se ajunta com o gostar, seno com o padecer; frutifiquemos ns, e tenham eles pacincia. A pregao que frutifica, a pregao que aproveita, no aquela que d gosto ao ouvinte, aquela que lhe d pena. Quando o ouvinte a cada palavra do pregador treme, quando cada palavra do pregador um torcedor para o corao do ouvinte, quando o ouvinte vai do sermo para casa confuso e atnito, sem saber parte de si, ento a pregao qual convm, ento se pode esperar que faa fruto: Et frucium afferunt in patientia. Enfim, para que os pregadores saibam como ho de pregar, e os ouvintes a quem ho de ouvir, acabo com um exemplo de nosso Reino, e quase de nossos tempos. Fregavam em Coimbra26 E do fruto pela pacincia (Lc. 8, 15).

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dois famosos pregadores, ambos bem conhecidos por seus escritos: no os nomeio porque os hei de desigualar. Altercou-se entre alguns doutores da Universidade qual dos dois fosse maior pregador, e como no h juzo sem inclinao, uns diziam este, outros aquele. Mas um lente, que entre os mais tinha maior autoridade, concluiu desta maneira: Entre dois sujeitos to grandes no me atrevo a interpor juzo; s direi uma diferena que sempre experimento: quando ouo um, saio do sermo muito contente do pregador, quando ouo outro, saio muito descontente de mim. Com isto tenho acabado. Algum dia vos enganastes tanto comigo que saeis do sermo muito contentes do pregador; agora quisera eu desenganar-vos tanto, que sareis muito descontentes de vs. Semeadores do Evangelho, eis aqui o que devemos pretender dos nossos sermes: no que os homens saiam contentes de ns, seno que saiam muito descontentes de si; no que lhes paream bem os nossos conceitos, mas que lhes paream mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas ambies, e enfim todos os seus pecados. Contanto que se descontentem de si, descontentem-se embora de ns. Si hominibus placerem, Christi servus non essem (Gal. 1, 10), dizia o maior de todos os pregadores, S. Paulo: Se eu contentara aos homens, no seria servo de Deus. - Oh! contentemos a Deus, e acabemos de no fazer caso dos homens! Advirtamos que nesta mesma igreja h tribunas mais altas que as que vemos: Spetaculum facti suminus Deo, angelis et hominibus27. Acima das tribunas dos reis, esto as tribunas dos anjos, est a tribuna e o tribunal de Deus, que nos ouve e nos h de julgar. Que conta h de dar a Deus um pregador no dia do juzo? O ouvinte dir: no mo disseram; mas o pregador? Vae mihi, quia tacui (Is. 6,5): Ai de mim que no disse o que convinha! - No seja mais assim por amor de Deus e de ns. Estamos s portas da quaresma, que o tempo em que principalmente se semeia a palavra de Deus na Igreja, e em que ela se arma contra os vcios. Preguemos e armemo-nos todos contra os pecados, contra as soberbas, contra os dios, contra as ambies, contra as invejas, contra as cobias, contra as sensualidades. Veja o cu que ainda tem na terra quem se pe da su