SERRA-IBIAPABA-CEARÁ-Tese-Ligio-Maia-UFF

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA LÍGIO JOSÉ DE OLIVEIRA MAIA SERRAS DE IBIAPABA. De aldeia à vila de Índios: Vassalagem e Identidade no Ceará colonial - Século XVIII NITERÓI, 2010

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    LGIO JOS DE OLIVEIRA MAIA

    SERRAS DE IBIAPABA. De aldeia vila de ndios: Vassalagem e Identidade

    no Cear colonial - Sculo XVIII

    NITERI, 2010

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    LGIO JOS DE OLIVEIRA MAIA

    SERRAS DE IBIAPABA. DE ALDEIA VILA DE NDIOS: VASSALAGEM E IDENTIDADE

    NO CEAR COLONIAL - SCULO XVIII

    Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obteno do Grau de Doutor em Histria.

    Orientadora: PROF. DR. MARIA REGINA CELESTINO DE ALMEIDA

    Niteri, 2010

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    LGIO JOS DE OLIVEIRA MAIA

    SERRAS DE IBIAPABA. DE ALDEIA VILA DE NDIOS: VASSALAGEM E IDENTIDADE

    NO CEAR COLONIAL - SCULO XVIII

    Aprovada em 12 de Maro de 2010.

    BANCA EXAMINADORA

    _____________________________________________

    Profa. Dra. Maria Regina Celestino de Almeida (Orientadora) Universidade Federal Fluminense UFF

    _______________________________________________

    Prof. Dr. Eurpedes Antnio Funes Universidade Federal do Cear UFC

    _______________________________________________

    Prof. Dr. John Manuel Monteiro Universidade de Campinas UNICAMP

    _______________________________________________

    Prof. Dr. Joo Pacheco de Oliveira Filho Museu Nacional UFRJ

    _________________________________________

    Profa. Dra. Mariza de Carvalho Soares Universidade Federal Fluminense UFF

    _______________________________________________

    Profa. Dra. Mrcia Fernanda Ferreira Malheiros (Suplente) Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ

    _______________________________________________

    Profa. Dra. Elisa Frhauf Garcia (Suplente) Universidade Federal Fluminense UFF

    Niteri, 2010

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo ao CNPq pelo apoio de bolsa de pesquisa que me possibilitou, alm da estadia no Rio de Janeiro para concluso das disciplinas do curso, a oportunidade de trabalhar em diferentes instituies como no Arquivo Nacional, Biblioteca Nacional e Instituto

    Histrico e Geogrfico Brasileiro. CAPES pela bolsa sanduche, com a qual pude realizar pesquisas tanto em Portugal quanto na Itlia.

    professora Dr. Mara Regina Celestino de Almeida pela disponibilidade na orientao e percurso comigo trilhado ao longo dos ltimos quatro anos. Sua aceitao, quase imediata, de meu projeto de pesquisa bem como a coordenao de sua disciplina, durante um dos cursos no doutorado, foram momentos especiais de meu trajeto profissional e at pessoal. Ainda nas orientaes, devo um agradecimento particular professora Dr. ngela Domingues, investigadora do Departamento de Cincias Humanas do IICT (Instituto de Investigao Cientfica Tropical) e do Centro de Histria do Alm-Mar, da Universidade Nova de Lisboa. Com ela, pude no apenas discutir parte deste trabalho, mas ainda desfrutar de sua afetuosa companhia e sempre disponibilidade diante de algumas demandas surgidas no perodo de minha estadia em Lisboa.

    Na UFF, um agradecimento especial a todos os docentes e colegas de curso que comigo compartilharam algumas inquietaes durante a pesquisa. Tanto nas disciplinas quanto nos Encontros e Seminrios pude constatar a seriedade e a fecundidade das conversas e discusses acadmicas. Entre os professores, Luciano Figueiredo, Rodrigo Bentes Monteiro e Mariza Soares. A esta ltima, agradeo ainda pela participao na banca de qualificao e

    leitura crtica de parte desta tese. Alguns colegas tambm foram fundamentais pelas discusses acadmicas ou mesmo pela simples e agradvel companhia na cidade maravilhosa, entre eles, Ivaldo Marciano, Gabriel Aladren, Pollyanna Mendona, Carlos Ximendes, Marcelo Cherche, Irenilda Cavalcante e Silvana Jeha. Ainda aos colegas de histria indgena, Jina Borges, Mrcia Malheiros, Elisa Garcia, Mariana Dantas e Rafael Ale Rocha. Ao Mrio Branco, colega e tambm pesquisador dos jesutas no Brasil, meu agradecimento particular pela sua disponibilidade quanto s minhas demandas fora do Rio de Janeiro. Aos baianos, Orahcio e Nilto, este ltimo colega de doutorado e meu irmo de

    convivncia e de algumas angstias entre elas, a de viver fora do Nordeste - minha mais fraterna considerao. Finalmente, meu agradecimento a todos os funcionrios do Programa de Ps-graduao em Histria (UFF), especialmente a Silvana, de quem tive o auxlio imprescindvel nas pelejas burocrticas.

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    No Arquivo Histrico Ultramarino, meus agradecimentos aos funcionrios Fernando,

    Otvio e Mrio. Todos mui cordiais e atenciosos. Inesquecveis sero, por muito tempo, as conversas com Jorge, do setor de digitalizao, que com sua arte de contador de histrias, revelou-me algumas peripcias de suas andanas em frica ao tempo da ditadura de Salazar e mesmo de suas frias no Brasil. No fumdromo, na cantina e na Sala de Brasil, a

    companhia de Jos Sintra Martinheira tambm foi bem esclarecedora para compreender um pouco melhor a imensido do acervo desta instituio. No poderia deixar de mencionar ainda minha gratido a dois grupos de pesquisadores. O primeiro ligado ao Curso de Cincias Sociais da Universidade Federal do Cear (UFC) e liderado pela professora Dr. Isabelle Braz Peixoto da Silva, o GEPE (Grupo de Estudos e Pesquisas tnicas), cujos colegas eu mantive contatos preciosos, particularmente em cursos ministrados por excelentes pesquisadores. Nos Encontros nacionais da ANPUH, o grupo de historiadores ligado ao Simpsio de histria indgena sob coordenao geral do Prof.

    Dr. John Monteiro, tambm me propiciaram momentos de agradvel convvio intelectual e a certeza do desenvolvimento e sofisticao que tm alcanado os estudos acerca dos povos indgenas no Brasil. Na UFC, onde fiz o mestrado, deixei amigos preciosos com quem tenho procurado

    manter apesar da distncia certa vinculao acadmica e pessoal. Entre eles, Mnica Nunes, Eudes Gomes, Ldia Nomia e Sander Cruz. Ao professor Dr. Eurpedes Funes a minha dvida ainda maior; com ele aprendi que a expresso rato de arquivo uma analogia feliz mesmo que no parea muito agradvel que o historiador deve levar em conta durante seu trabalho de pesquisa para testar quaisquer modelos tericos.

    Finalmente, agradeo de todo corao minha famlia: minha me, Tereza Maia, meus irmos, Lgia, Ldio e Liege; alm de minha companheira, Alana, pois as viagens e as longas estadias, para a concluso desta tese, significaram uma privao s vezes bastante difcil de todos eles. Ainda no primeiro ano de curso, em 2006, perdi uma pessoa muito importante na minha vida: meu pai, Manoel Nogueira Maia. Esta tese dedicada a ele.

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    O passado , por definio, um dado que nada mais modificar. Mas o conhecimento do passado uma coisa em progresso, que incessantemente se transforma e aperfeioa.

    Marc Bloch, Apologia da Histria, ou, O ofcio de historiador.

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    SUMRIO

    Introduo.............................................................................................................................. 15 Um panorama necessrio: situando o objeto........................................................................... 18 A historiografia local............................................................................................................... 23 Serras de Ibiapaba: vassalagem indgena e as fronteiras coloniais...................................... ... 29 O espetculo da busca: o encontro com as fontes coloniais................................................. 38

    Parte I Homens e Espaos: fronteiras e limites na experincia colonial....................... 44 Captulo 1 ndios nas Serras de Ibiapaba........................................................................ 46 1.1. Os Tupinamb do interior: deslocamentos e fluxos culturais............................... 47 1.2. Antigos donos das Serras...................................................................................... 62

    Captulo 2 Conquista de terras, conquista de almas....................................................... 81 2.1. Pecuria no Cear: caminho do gado, caminho de homens................................. 83

    2.2. Experincia indgena na expanso pastoril: as datas de sesmarias....................... 90 2.3. Aldeamentos jesuticos: da Missio ideal s experincias coloniais.................... 104 2.4. Regulamento das Aldeias: normas para si e para os outros................................ 112 2.4.1. A aldeia como espao indgena............................................................ 121

    Parte II Aldeia de Ibiapaba: funes e significados...................................................... 134 Captulo 3 Aldeias e misses na capitania do Cear..................................................... 136 3.1. A Cruz e a Espada: catequese, violncia e rivalidades....................................... 136 3.2. De Misso Aldeia: os preparativos para uma nova Cristandade..................... 150

    Captulo 4 Aldeia de Nossa Senhora da Assuno........................................................ 160 4.1. Espaos de vivncias.......................................................................................... 160

    4.1.1. O Plano da aldeia................................................................................. 162 4.1.2. A igreja da aldeia de Ibiapaba: centro do contorno urbano................. 167

    4.2. O negcio dos jesutas........................................................................................ 178 4.2.1. As fazendas de gado e as culturas de plantio....................................... 180 4.2.2. O Servio dos ndios............................................................................ 191

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    Captulo V ndios da Ibiapaba: o brao forte da capitania...................................... 200 5.1. Oficiais ndios: guerreiros e vassalos dEl Rei................................................... 202 5.2. Entre armas e ardis: a Rebelio de 1713......................................................... 210

    Parte III Vila Viosa Real e sua integrao ao Diretrio Pombalino.......................... 221 Captulo 6 Vila Viosa Real............................................................................................. 223 6.1. Incio incerto, medidas urgentes......................................................................... 224

    6.2. Viva o Senhor Rei D. Jos primeiro de Portugal: a elevao da Vila Viosa Real............................................................................................................................ 230

    6.2.1. O seqestro dos bens de raiz, mveis e semoventes............................ 234 6.2.2. Distribuio das terras na nova vila..................................................... 237 6.2.3. Distribuio do gado na nova vila....................................................... 247

    6.3. A direo laica em Vila Viosa Real.................................................................. 248 6.3.1. Trabalho com honra e desinteresse: o primeiro diretor da nova vila... 248 6.3.2. De homens inteis a vassalos: educao para a civilizao................. 252 6.3.3. Os termos de vereao e as primeiras medidas.................................... 259

    Capitulo 7 Os ndios vilados: continuidades, descontinuidades e limites.................... 268 7.1. Intermedirios do Diretrio: o caso de D. Felipe de Sousa e Castro.................. 268 7.2. As lideranas indgenas e os cargos de distino social..................................... 275

    7.2.1. Oficiais ndios: distino social na nova vila....................................... 277 7.2.2. Nem Camaro, nem Algodo: a famlia Sousa e Castro...................... 282 7.3. Os ndios vilados no crepsculo setecentista...................................................... 291 7.3.1. O infeliz estado dos ndios nesta capitania....................................... 292 7.3.2. Para alm das misrias: os limites do diretrio.................................... 302

    Concluso.............................................................................................................................. 312 Fontes e Bibliografia............................................................................................................ 315 Apndice O confisco dos bens jesuticos na capitania do Cear....................................... 336 Caderno de Anexos.............................................................................................................. 344

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    CADERNO DE ANEXOS

    I. LISTA DE MAPAS E FIGURAS Figura 1 - Localizao poltico-geogrfica da cidade de Viosa do Cear. Figura 2 - Percurso dos jesutas Francisco Pinto e Luiz Figueira da Barra do Jaguaribe s Serras de Ibiapaba, em 1607. Figura 3 - Mapa geogrfico da capitania do Cear e Vilas de ndios. 1814. Figura 4 - Localizao da Vila Viosa Real e So Benedito, lugar de ndios. Figura 5 - Plano da Vila Viosa. 1860. Figura 6 - Ncleo urbano do Centro histrico da cidade de Viosa do Cear. Figura 7 - Ncleo urbano atual sobreposto ao traado antigo, de Freire Alemo, da cidade de Viosa do Cear. Figura 8 - Desenho da atual igreja matriz de Viosa do Cear e sua reconstituio primitiva, na Aldeia de Ibiapaba do sculo XVIII. Figura 9 - Desenho da Vila Viosa Real, 1860.

    II. LISTA DE DOCUMENTOS Documento 1 - Carta Patente de Capito-mor da nao Tabajara da Vila Viosa Real passada a D. Jos de Sousa e Castro.

    Documento 2 - Carta do Mestre-de-Campo da Vila Viosa Real, D. Felipe de Sousa e Castro, ao Desembargador Bernardo Coelho da Gama e Casco. 21/11/1759. Documento 3 - Relao de todo gado vacum, cavalar, mido e demais encontrado na Vila

    Viosa Real e repartido s pessoas abaixo.

    Documento 4 - Relao dos Nomes com que se denominaram as Novas Vilas e lugares, eretas das antigas Aldeias, seus oragos, vigrios, Diretores e Mestres.

    Documento 5 - Matrias e amostras de rendas e fiados dos ndios das escolas de Viosa Real (material escrito).

    Documento 6 - Matrias e amostras de rendas e fiados dos ndios das escolas de Viosa Real (rendas e fiados).

    III. LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Flutuao demogrfica nas Serras de Ibiapaba Sculo XVII. Quadro 2 - Flutuao demogrfica nas Serras de Ibiapaba Sculos XVIII-XIX. Quadro 3 - Distribuio de Sesmarias na Capitania do Cear, 1679-1824.

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    Quadro 4 - Nmero de Batismos da Aldeia de Ibiapaba (1699-1725). Quadro 5 - Nmero de Assentos dos Mortos de Vila Viosa Real (1759-1764). Quadro 6 - Nmero de Assentos dos Mortos de Vila Viosa Real (1765-1771). Quadro 7 - Causa mortis na Vila Viosa Real (1807-1811). Quadro 8 - Relao de ndios na Vila Viosa Real por sexo, idade, nascidos e mortos no ano de 1784. Quadro 9 - Rol de todo gado vacum, cavalar, mido e do mais que se achou nas antigas aldeias, que por ordem de S. Majestade Fidelssima se erigiram em vilas e repartio que deles se fez s pessoas abaixo declaradas (10/02/1761). Quadro 10 - Descrio da Capitania do Cear: vilas, freguesias, povoaes e populao (Post. 1766). Quadro 11 - Lista das Companhias militares de ndios na Vila Viosa Real (1770-1772). Quadro 12 - Salrios pagos pelos Servios dos ndios nas Serras de Ibiapaba (1767). Quadro 13 - Mapa das quatro fazendas de gado vacum, cavalar e mido da Aldeia de Ibiapaba (1761). Quadro 14 - Relao nominal da diviso de terras em Vila Viosa Real (1759-1761). Quadro 15 - Mapa dos habitantes da capitania do Cear Grande, em 1808.

    IV. LISTA DE RECEITA/DESPESA E CATLOGO Lista 1 - Receita e Despesa das Trs Classes dos Bens da Companhia de Jesus na Capitania do Cear (1759-1786). Lista 2 - Catlogos Breves e Trienais dos missionrios da Companhia de Jesus da Provncia

    do Brasil nas aldeias do Cear e Rio Grande do Norte (1701-1757).

    V. LISTA DE FOTOS Foto 1 - Placa comemorativa dos 300 anos de fundao da aldeia de Ibiapaba. Viosa do Cear/CE. Foto 2 - Igreja Matriz de Viosa, no local da antiga igreja da Aldeia de Ibiapaba. Viosa do Cear/CE. Foto 3 - Vista lateral da Igreja Matriz de Viosa, no local da antiga igreja da Aldeia de Ibiapaba. Viosa do Cear/CE. Foto 4 - Mosteiro dos jesutas na cidade de Baturit (CE).

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    Foto 5 - Martrio do Beato Incio de Azevedo e 40 companheiros pintado pelo padre Francisco Freire, Superior da Casa de Baturit (CE), entre 1935 e 1939. Foto 6 - Pintura da Aldeia de Ibiapaba do Sculo XVIII. Foto 7 Cadeira que teria sido usada por padre Vieira quando esteve na Aldeia de Ibiapaba, em 1660.

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    ABREVIATURAS

    ABN - Anais da Biblioteca Nacional - RJ AHU - Arquivo Histrico Ultramarino Portugal AHU-PE - Arquivo Histrico Ultramarino Documentos avulsos da Capitania de

    Pernambuco AHU-CE - Arquivo Histrico Ultramarino Documentos avulsos da Capitania do Cear AHU-PI - Arquivo Histrico Ultramarino Documentos avulsos da Capitania do Piau AHTC - Arquivo Histrico do Tribunal de Contas - Portugal ANRJ - Arquivo Nacional do Rio de Janeiro APEC - Arquivo Pblico do Estado do Cear APEP - Arquivo Pblico do Estado de Pernambuco ARSI - Arquivo Geral da Companhia de Jesus em Roma BGUC - Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra BNL - Biblioteca Nacional de Lisboa BNRJ - Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro CCJ - Constituies da Companhia de Jesus e normas complementares IEB - Instituto de Estudos Brasileiros USP (SP) RIHGB - Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro RJ MACC - Os Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval respeitantes ao Brasil RIC - Revistas do Instituto Histrico, Geogrfico e Antropolgico do Cear

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    RESUMO

    Esta tese visa refletir sobre as mudanas histricas pelas quais passaram os grupos indgenas nas Serras de Ibiapaba (CE), ao longo do sculo XVIII, procurando entend-las tambm a partir da perspectiva dos ndios. Sob os efeitos das legislaes indigenistas abrangentes como o Regimento das Misses (1686) e o Diretrio pombalino (1757), houve mudanas da maior importncia, especialmente, na forma de governo dos ndios aldeados:

    entre 1700-1759, com governo dos jesutas na aldeia de Nossa Senhora da Assuno, tambm chamada aldeia de Ibiapaba; e a partir de 1759, com a elevao da antiga aldeia categoria de Vila Viosa Real, ento, sob administrao laica (com diretor e cmara local) e direo espiritual de padres seculares. Todo esse processo contou com a participao dos grupos

    indgenas, particularmente de suas lideranas. O objetivo da tese, por conseguinte, compreender a ao indgena em diferentes contextos histricos setecentistas demonstrando que, mesmo na condio de dominao, eles buscaram diante das incertezas participar dos meandros do Antigo Regime, como ndios aldeados e vassalos dEl Rei.

    Palavras-chave: Histria do Cear; histria indgena; diretrio pombalino; misses religiosas.

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    ABSTRACT

    This thesis aims to reflect on the historical changes in which indigenous groups had Ibiapaba Mountains (CE) throughout the eighteenth century, also trying to understand them from the perspective of the Indians. Under the effects of wide-ranging indigenous laws as the Regiment of Missions (1686) and the Pombal Directory (1757), there were many important changes, specially the form of indian villagers government: between 1700-1759, with the government of the Jesuits in the Village of Nossa Senhora de Assuno, also known as "village of Ibiapaba", and from 1759, with the rise of the old village to the category of Vila Viosa Real, under secular administration (with local director and council) and spiritual direction of secular priests. All this process had the participation of indigenous groups, particularly their leaders. Therefore, the aim of the thesis is to understand the Indian action in different historical contexts seventyish demonstrating that even in domination condition, they tried, uncertainly, to participate of the intricacies of the Old Regime, like villagers indigenous

    and vassals d'El Rei.

    Keywords: History of Cear; indigenous History; Pombal Directory; religious Missions.

  • Introduo

    Em 1860, na localidade de Pimenteiras, termo da Vila Viosa Real, no Cear, o Sr. Antnio Marques Assuno, antigo morador, observava curioso uma classe de homens que se preparava para certa festividade. Antes do baile ritmado por msicas e danas, parte do sbado tambm era dedicada fabricao de uma bebida conhecida como o vinho da mandioca ou o cauhin, como dizia. No pice da festa, a religiosidade ganhava intensidade

    atravs dos sortilgios dos feiticeiros e da fala das mulheres, velhas ndias que se valendo dos mistrios da Me dgua, ajudavam a eximir as donzelas da culpabilidade de sua precoce deflorao, cujo ritual da seita era atentamente observado por seus pais durante o preparo da bebida1.

    Deixando, pelo menos por enquanto, o aspecto simblico dessa prtica festiva, convm atentar para os dizeres rituais que os praticantes entoavam acerca das relaes de contato com as comunidades no indgenas. Nas suas reunies, continua o narrador, recordam-se de suas afrontas, e injrias, qualquer que tenham recebido por si, ou por suas famlias, e por qualquer movimento de suas seitas operam contra aqueles de quem se julgam afrontados. Mas no cotidiano da convivncia que as formas de tratamento so tomadas por sinais claros de uma antiga disjuno social, pois os ndios:

    Querem ser tratado com todo respeito por seu prprio nome, ou posto, e quando muito (em caoada) ndios, ou ndia. Agastam-se fortemente, e tomam por injria quando o chamam cabcu-lo, Cunhan, porque dizem eles Cabcu-los so os brancos, e eles so ndios. Entrei no conhecimento desta seita entre eles me disseram, que a palavra de Cabcu-lo, os brancos qualificaram com desprezo, e que s os tratam por esse nome no momento do dio e de fazer pouco 2 (grifos meu).

    1 Relatrio dos costumes, e algumas seitas mais notveis que ainda existem entre os nossos indgenas do Termo

    de Viosa [1860]. BNRJ, I-28, 10, 34. De acordo com o relato, durante a fermentao do cauim surgia uma nata a qual chamavam cabesso e que deveria ser tirada por uma ndia donzela sob olhar atento dos pais. Se a nata vazasse da peneira fina era sinal de que a moa no era mais virgem. As ndias velhas, ento, amadrinhavam-na afirmando que a causa ocorrera porque a moa havia passado sob a sombra de um arco-ris em algum olho dgua, lugar da Me dgua. Voltar-se- a esse assunto no captulo 2. 2 Idem.

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    Nesse manuscrito indito, escrito a pedido de Freire Alemo - botnico e chefe da Expedio Cientfica que viajou pelo Cear, entre fevereiro de 1859 e julho de 1861 - o Sr. Assuno seguira as Instrues da Seo Etnogrfica e narrativa de viagem que poca

    tinha por dirigente Gonalves Dias, ento na Europa, por misso especial, recolhendo documentos para os acervos da Biblioteca e do Arquivo nacionais do Rio de Janeiro3.

    Os ndios de Vila Viosa Real - antiga aldeia jesutica elevada categoria de vila pelo diretrio pombalino, na segunda metade do sculo XVIII - ainda queriam ser reconhecidos por sua distino: eram ndios e no caboclos! O evento narrado pelo antigo morador de Pimenteiras, deixa a ns, pesquisadores, questes importantes e analiticamente profundas que dizem respeito a uma continuidade histrica e identitria dos grupos indgenas na regio das Serras de Ibiapaba. O que se chama aqui de continuidade no deve ser confundida com uma

    espcie de cultura original que permanecera com o passar do tempo. Refiro-me a uma continuidade histrica, isto , a permanncia de uma distino social em que o modo de ser ndio, com o tempo, foi se transformando e, como se ver frente, os ndios de Vila Viosa Real eram (e so) herdeiros de um longo processo de relaes intertnicas entre ndios e no ndios4. De forma que, sob as mais variadas demandas colonialistas (escambo, fora militar, trabalhos compulsrios, etc.) suas formas de vivncia foram sendo transformadas e readaptadas. Em outras palavras, em um perodo de tempo considervel, os ndios a partir de suas prprias experincias buscaram para si um novo sentido, re-atualizando suas tradies,

    3 Criada, em 1856, no IHGB, a Imperial Comisso Cientfica e Comisso Exploradora das Provncias do Norte

    congregavam nomes importantes no cenrio cientfico da poca nas reas de Botnica, Mineralogia, Zoologia, Geografia e Etnografia. Parte do material coletado por Gonalves Dias, perdeu-se em um naufrgio no muito bem explicado. No deixa de ser sintomtico no iderio cientfico do Oitocentos, a relao entre ndios e Natureza uma vez que o mencionado Relatrio fora feito sob superviso de um botnico, mesmo havendo um responsvel (substituto de Gonalves Dias) da Seo de Etnografia. Sobre a Comisso, vide: Porto Alegre, Maria Sylvia. Comisso das Borboletas: a cincia do Imprio entre o Cear e a Corte (1856-1867). Fortaleza: Museu do Cear, 2003. No h maiores informaes sobre quem seria o Sr. Antnio Marques Assuno, autor dessa descrio, mas era comum membros da Comisso Cientfica solicitar ajuda de colaboradores locais, em geral, moradores alfabetizados das localidades que no seriam visitadas. 4 Atualmente na cidade de Crates (CE) esto concentradas cerca de dez aldeias urbanas; os grupos indgenas

    nesta cidade, e outras prximas a regio de Ibiapaba (Quiterianpolis, Monsenhor Tabosa, Poranga e Tamboril), justificam sua identidade a partir de memrias coletivas interligadas histria colonial dos ndios. Em 2008, os vrios grupos foram cadastrados pela FUNASA (Fundao Nacional de Sade, ligada a FUNAI) como etnias indgenas, portanto, tendo reconhecida sua distino social. Em 2004, os Tabajara de Crates conseguiram retomar cerca de 6.000 hectares de suas antigas terras nas Serras de Ibiapaba, no local conhecido como Nazrio, onde residem cerca de dez famlias a espera do reconhecimento de suas terras. Os ndios esto organizados atravs do CIPO (Conselho Indgena dos Povos Tabajara e Kalabaa de Poranga) e AMITK (Associao de Mulheres Indgenas Tabajara e Kalabaa), com uma Escola Diferenciada Indgena, em Poranga. Cf. Memorial da Cultura Cearense. Povos indgenas no Cear: organizao, memria e luta. Fortaleza: Grfica Ribeiro, 2007; Palitot, Estevo Martins. Descobrir-se ndio na cidade: as aldeias urbanas em Crates/Ce. Trabalho apresentado na 26 Reunio Brasileira de Antropologia, entre os dias 01 e 04 de junho de 2008. Porto Seguro (BA), Brasil.

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    reelaboradas para distinguirem-se, e como se viu no relato acima, para reafirmar sua prpria

    histria, cultura e identidade. No Setecentos, a poltica indigenista de integrao dos grupos indgenas sociedade

    braslica5, cujo importante vetor eram as misses religiosas, seria significativamente alterada, a partir de 1757, com a introduo da proposta assimilacionista do primeiro-ministro de D. Jos I, Sebastio Jos de Carvalho e Melo. Dentre os vrios dispositivos legais construdos com o fim de tornar indistinto os ndios de outros vassalos dEl Rei, a poltica do diretrio pombalino incentivava os casamentos mistos, entre ndias e brancos, e, considerava pernicioso abuso chamar os ndios de negro, cativo, caboclo ou tapuia6.

    Como se v, ao rejeitarem a designao de caboclo, poderia se dizer que os ndios assumiram as prerrogativas indistintas reverberadas na poltica do diretrio pombalino. Contudo, ao assumirem-se como ndios, os grupos na localidade de Pimenteiras, demarcaram uma relao social de alteridade com os no ndios, desafiando o iderio da assimilao, ao

    mesmo tempo em que se reportavam a uma condio histrica pretrita, mas ainda distintiva. na problemtica histrica dessa aparente contradio, ilustrada com o evento da

    comemorao da cauinagem, que se fundamenta esta pesquisa. O sculo XVIII o recorte temporal escolhido, pois nele que se constroem as significativas transformaes processada

    nas relaes sociais entre ndios e no ndios nas Serras de Ibiapaba, grosso modo, impelida pelas legislaes indigenistas do Regimento das Misses (1686) para o Diretrio (1757). Este recorte, todavia, no se configura como uma espcie de camisa-de-fora, pois houve a necessidade analtica de tornar inteligvel o incio do contexto setecentista; possvel apenas com uma discusso aprofundada de algumas questes do sculo XVII com o fim de traar,

    mesmo que de forma aproximada, as aes dos religiosos (jesutas e outras ordens religiosas), das autoridades civis e dos prprios grupos indgenas.

    5 Em acordo com os argumentos de Alencastro, uso o termo braslico para designar a sociedade colonial na

    Amrica portuguesa ao longo dos sculos XVI, XVII e primeira metade do sculo XVIII. Os ndios eram conhecidos como brasilienses e, por brasileiros, os cortadores de pau-brasil. Ainda, segundo o autor, braslicos tornam-se brasileiros, como hoje conhecido, apenas ao longo do sculo XVIII, no mago da economia do ouro, engendrando uma diviso inter-regional do trabalho e um mercado interno colonial, emergindo posteriormente uma idia de filiao a uma comunidade supra-regional, com uso da mesma lngua e territrio. Alencastro, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formao do Brasil no Atlntico Sul. So Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 28. 6 O diretrio pombalino mencionava o abuso de chamar os ndios de Negros, de acordo com o 10. Pela

    Direo adaptao do diretrio, feita pelo governador de Pernambuco, Luiz Diogo Lobo da Silva que o abuso se estendia para nomes como cativos, caboclo e tapuia (11). Cf. Directorio, que se deve observar nas povoaes dos ndios do Par e Maranho, em quanto sua Magestade no mandar o contrrio. 03/05/1757, 58. In: Naud, Leda Maria Cardoso (org.). Documentos sobre o ndio brasileiro (1500-1822) 2 parte. Revista de Informao Legislativa. Braslia, vol. 8, n.29, pp. 263-279, 1971 (Daqui em diante, citado como Diretrio...); Direo com que interinamente se devem regular os ndios das novas vilas e lugares, erectos nas aldeias da capitania de Pernambuco e suas anexas. In: IHGB. Arquivo 1.1.14 Correspondncia do Governador de Pernambuco (1753-1791), fls. 123-164. Daqui em diante, citado como Direo...

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    Por outro lado, ao mencionar as significativas mudanas advindas com as distintas

    legislaes indigenistas, no sculo XVIII, no se pretende fazer uma reflexo no campo jurdico do Antigo Regime; mas compreender a luz das atuais e seminais discusses da histria indgena - a partir das legislaes mencionadas e outras fontes coloniais - os efeitos, as mudanas e as novas relaes processadas a partir dos diversos contextos histricas deste

    perodo.

    Um panorama necessrio: situando o objeto

    As frondosas e verdejantes Serras de Ibiapaba7, situadas em meio ao semi-rido nordestino e a noroeste do estado do Cear, deixam qualquer visitante atnito diante de

    tamanha beleza entre ambientes e lugares, aparentemente sufocantes. O planalto de Ibiapaba ou Serra Grande como mais conhecido nos plos tursticos -, constitui-se, geogrfica e politicamente, nos dias atuais, numa faixa montanhosa que se inicia a 40 km do litoral e se estende 110 km aos confins ocidentais em territrio cearense abrangendo as cidades de

    Carnaubal, Croat, Guaraciaba do Norte, Ibiapina, So Benedito, Tiangu, Ubajara e Viosa do Cear. Com uma altitude mdia de 800 m, as Serras de Ibiapaba compreendidas como um conjunto morfolgico natural - apresenta uma cobertura vegetal caracterizada pela presena de floresta mida, no sentido norte-sul, mudando a oeste com uma vegetao conhecida como carrasco constituda por caatingas, cerrado e matas secas8.

    Foi nesse altiplano fincado no semi-rido, quase um osis cercado de caatingas, que se desenvolvera um dos maiores redutos missionrios da Companhia de Jesus no Brasil fora da rea das Misses do Paran-Uruguai conhecidos como os Trinta Povos missioneiros. De acordo com a carta anual de 1696, assinada pelo padre Miguel Antunes, existia em todo o Estado do Maranho nas aldeias administradas pelos jesutas cerca de 11.000 almas; no centro e sul do Brasil, em 1702, contabilizava-se cerca de 15.450 ndios missionados; na capitania

    7 Ibiapaba, que na lngua dos naturais quer dizer Terra Talha, no uma s serra, como vulgarmente se chama,

    seno muitas serras juntas, que se levantam ao serto das praias de Camuci, e mais parecidas a ondas de mar alterado que a montes, se vo sucedendo, e como encapelando umas aps das outras. Vieira, Antnio, S.I. Relao da Misso da Serra de Ibiapaba [1660]. In: Giordano, Cludio (coord.). Escritos Instrumentais sobre os ndios. So Paulo: EDUC/Loyola/Giordano, 1992, pp. 122-190. Apesar de hoje se convencionar chamar Serra da Ibiapaba, uso a expresso Serras de Ibiapaba: primeiro por no haver uma distino clara nos documentos coloniais, aparecendo ora no singular ora com flexo; segundo e mais importante, por ressaltar a riqueza de seu aspecto morfolgico e histrico, elementos fundamentais na anlise de diversas questes que sero levantadas ao longo deste trabalho. 8 Costa Filho, Jos Sales (org.). Vale do Corea e Ibiapaba: plano de desenvolvimento inter-regional. Fortaleza:

    Secretaria de desenvolvimento local e regional, 2004.

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    geral de Pernambuco e suas anexas, no mesmo ano, havia cerca de 6.700 ndios, dos quais, 4.000 deles estavam na aldeia das Serras de Ibiapaba9.

    Os nmeros, pelos menos em parte, ajudam a explicar a insistncia com que os primeiros missionrios portugueses enviados ao Maranho compreenderam a regio, possesso ainda desconhecida dos portugueses, no incio do sculo XVII, mas que j havia excitado os franceses para a constituio da Frana Equinocial. No por menos que os empreendimentos catequticos tivessem o apoio das inmeras autoridades colonialistas, para ligar por terra o caminho e a comunicao entre o Estado do Brasil e o Estado do Maranho e Gro-Par10. De modo que, durante boa parte do sculo XVII, a capitania do Cear e, especialmente as Serras de Ibiapaba, correspondia, nos discursos produzidos, a um limite fronteirio que devia ser integrado, efetivamente, ao imprio portugus.

    Neste sentido, justifica-se o uso da expresso Serras de Ibiapaba para referir-se a essa rea a noroeste da capitania do Cear no apenas como uma identificao espacial, mas como

    uma categoria analtica, ela mesma, compreendida como uma regio colonial, espao social de interao histrica, com participao de diferentes agentes coloniais. Parece-me, ento, relevante a considerao formulada por Mattos:

    Se a regio possui uma localizao espacial, este espao j no se distingue tanto por suas caractersticas naturais, e sim por ser um espao socialmente construdo, da mesma forma que, se ela possui uma localizao meramente temporal, este tempo no se distingue por sua localizao meramente cronolgica, e sim por um determinado tempo histrico, o tempo da relao colonial. Deste modo, a delimitao espao-temporal de uma regio existe enquanto materializao de limites dados a partir das relaes que se estabelecem entre os agentes, isto , a partir das relaes sociais11.

    Em outras palavras, a regio colonial foi fruto da ao de uma poltica colonialista

    cujo fim era integrar o espao ou a regio (no caso, as Serras de Ibiapaba), numa lgica de expanso territorial em que tanto homens como espaos deveriam ser dominados como uma garantia real de pertencerem ao Imprio portugus. Neste sentido, a formulao analtica

    9 Cf. Informao para a Junta das Misses de Lisboa, 1702. In: Leite, Serafim. Histria da Companhia de

    Jesus no Brasil. Lisboa/Rio de Janeiro: Livraria Portuglia/Editora Nacional do Livro, 1945, V, pp. 569-573; Idem, IV, p. 138. 10

    O Estado do Maranho e Gro-Par, separado do Estado do Brasil, foi criado por carta rgia de 13 de junho de 1621 e abrangia, grosso modo, parte da capitania do Cear at o extremo norte amaznico. Em 1757, passou a chamar-se Estado do Gro-Par e Maranho, absorvido ento pelo Estado do Brasil, em 1774. O Cear que fazia parte do Estado do Maranho, em 1621, dcadas depois, em 1654, passou a fazer parte da capitania geral de Pernambuco, na condio de capitania anexa ou subordinada at o final do sculo XVIII. Sobre o assunto, vide: Studart Filho, Carlos. O Antigo Estado do Maranho e suas capitanias feudais. Cear: Imprensa Universitria do Cear, 1960. 11

    Mattos, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: a formao do Estado imperial. 2ed. So Paulo: Hucitec, 1990, p. 24.

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    apropriada aqui de regio colonial, distancia-se do aspecto meramente produtivo como um de

    seus elementos determinantes, escolhendo como referncias mais importantes, o discurso construdo para sua integrao e as aes posteriormente efetuadas.

    Como se ver ao longo desta tese, as formas de organizao dos grupos indgenas, elaboradas pelas polticas indigenistas - seja atravs da aldeia, como um reduto que se pretendia exclusivamente cristo, seja atravs da vila, com direo laica - significou, cada uma a seu modo, uma das preocupaes da Coroa como forma de manuteno de seus domnios, mesmo no mais longnquo serto colonial. Essas duas variveis histricas a aldeia e a vila corresponderam a realidades impostas aos ndios, mas que eles tambm delas participaram, elaborando de forma criativa estratgias de ao que pudessem, de alguma forma, garantir-lhes espaos de manobra, mesmo que continuassem em condio de dominao.

    Nesse processo, a ao catequtica dos companheiros de Jesus se confundia com os

    empreendimentos da Coroa; ou dizendo melhor, a ao missionria desses sacerdotes era parte constitutiva dos preceitos de dominao. Neste sentido, necessrio apresentar brevemente a ao dos jesutas na capitania do Cear.

    De acordo com Serafim Leite os jesutas conheceram seis perodos histricos distintos ou simultneos, assim apresentados:

    - Primeiro (1607-1608), com os padres Francisco Pinto e Luiz Figueira, numa ao catequtica precursora, mas tambm de explorao, finalizada com a morte do primeiro missionrio e retorno do ltimo para Pernambuco;

    - Segundo (1656-1662), com os padres Pedro de Pedrosa, Antnio Ribeiro e Gonalo Veras sob superiorato do padre Antnio Vieira, com fundao da Misso de Ibiapaba;

    - Terceiro (1662-1671), com os padres Jacobo Ccleo e outros, cuja ao desdobrava-se entre o forte (depois cidade de Fortaleza), Parangaba, Camocim e Ibiapaba;

    - Quarto (1691-1759), com a retomada de Ibiapaba e fundao da Aldeia de Nossa Senhora da Assuno, com os padres Ascenso Gago e Manuel Pedroso;

    - Quinto (1723-1759), com a fundao do Hospcio do Cear sob direo do padre Joo Guedes;

    - Sexto (1741-1759), com os padres jesutas na administrao das aldeias de Parangaba, Paupina, Caucaia e dos ndios Paiacu12.

    12 Leite, Serafim. Op. Cit., III, p. 3.

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    Mesmo que oferecendo uma viso geral do conjunto, o esquema organizado por Serafim Leite no diz muito acerca do processo missionrio nas Serras de Ibiapaba, por isso necessrio alguns esclarecimentos.

    No sculo XVII, houve trs tentativas frustradas de aldeamento com os ndios nas Serras de Ibiapaba. Inicialmente, com os padres Francisco Pinto e Luiz Figueira nos anos de

    1607-1608, que, a mando do provincial da Companhia de Jesus no Brasil, padre Ferno Cardim e do governador geral do Brasil, Diogo Botelho, organizaram a primeira expedio missionria em direo ao Meio-Norte colonial. O padre Pinto, missionrio experimentado na lida catequtica com os ndios do Rio Grande, apreendido na memria jesutica como pioneiro e fundador das misses no Maranho e, ainda, como um modelo a ser seguido pelos jesutas nas entradas missionrias ao serto colonial13. Por outro lado, o velho sacerdote que teria sido curado milagrosamente pelo padre Jos de Anchieta, na Bahia tambm era chamado de Pa-Pina pelos nativos; e, por seus milagres em fazer chover no rido serto fora

    apreendido na cosmologia tupi como sendo Amanaiara, o senhor da chuva14. O fim dessa primeira experincia missionria foi trgico, com a violenta perda do padre Francisco Pinto, morto a pauladas pelos ndios Tarairi, em 1608.

    Em segunda tentativa (1656-1662), os jesutas estiveram entre os ndios sob superviso do padre Antnio Vieira, ento superior e visitador das misses maranhenses. Organizado o reduto cristo nas Serras de Ibiapaba, em 1660, pelo prprio Antnio Vieira, a Misso tomou o nome de So Francisco Xavier, certamente em homenagem a um dos fundadores da Companhia, conhecido por sua influncia no Oriente15. Vale mencionar que esse um perodo fecundo de acirradas disputas no Estado do Maranho, entre missionrios,

    colonos e representantes do poder local pelo controle da mo-de-obra indgena. Pode-se dizer que o malogro desse novo empreendimento esteve ligado a todo contexto de conflitos que

    13 Cf. Para instruo dos missionrios do Maranho darei uma breve notcia do modo e forma que se deve

    observar nestas entradas ao serto, e que comumente obrava o padre Francisco Pinto, que deve ser o exemplar dos nossos missionrios. Carta de certo missionrio. S.l.n.d. Apud Studart, Baro de. Francisco Pinto e Luiz Figueira: o mais antigo documento existente sobre a histria do Cear. In: Commemorando o Tricentenrio da vinda dos primeiros portuguezes ao Cear, 1603-1903. Fortaleza: Tip. Minerva, 1903, pp. 47-92. 14

    Enterrado em Ibiapaba, seus restos mortais foram disputados por um sacerdote e pelos ndios da aldeia de Parangaba, no Cear, que os esconderam em lugar at hoje incerto. Cf. Cunha, Manuela Carneiro da. Da Guerra das Relquias ao Quinto Imprio: importao e exportao da histria do Brasil. Novos Estudos CEBRAP. So Paulo, n. 44, maro, pp. 73-87, 1996. 15

    Ao que se sabe, Xavier foi o nico do grupo fundador da Companhia, em 1540, que conseguiu uma projeo internacional, marca caracterstica dos missionrios apenas nos dois sculos seguintes. Ele comportava a imagem do jesuta apstolo, desbravador de terras estranhas, tendo sido canonizado junto com Incio de Loyola, em 1622. OMalley, John W. Os primeiros jesutas. So Leopoldo, RS: Editora UNISINOS; Bauru, SP: EDUSC, 2004, pp. 55, 123.

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    marcara a presena jesutica, tanto em Belm quanto em So Lus, culminando na expulso dos religiosos, em 166116.

    A ltima tentativa dos inacianos de estabelecimento de um reduto evangelizador junto aos nativos, deu-se em 1691, com o superiorato do padre Manuel Pedroso e seu companheiro, padre Ascenso Gago. Aps a reunio de diferentes grupos indgenas locais e ajuda de importantes autoridades seculares, no dia 15 de Agosto de 1700, era fundada a Aldeia de Nossa Senhora da Assuno nas Serras de Ibiapaba. Permanecendo ela sob governo dos missionrios at a expulso dos companheiros de Jesus de todos os domnios portugueses, em 1759.

    A aldeia dos jesutas comportava diferentes grupos indgenas, entre eles, os Tapuia Anac, Aconguau e Rerii; e os Tabajara, do tronco lingstico Tupi e falantes da lngua geral, representando estes ltimos, a maior parte dos ndios aldeados: em 1756, por exemplo, havia na aldeia 5.474 tabajaras para apenas 632 tapuias aldeados17. A antiga aldeia dos jesutas estava situada, na hoje cidade de Viosa do Cear (CE) e como se ver, em momento oportuno, h uma ligao profunda dessa cidade com a histria dos jesutas na regio18.

    A partir de 1759, com a expulso dos jesutas e implementao da poltica do diretrio, a antiga aldeia dos jesutas seria elevada categoria de vila de ndios, com nova denominao: Vila Viosa Real. Com direo laica de um diretor, em geral, um militar indicado pelo governador geral de Pernambuco, em cooperao com a cmara local e direo restrita de padres seculares no espiritual, esse novo contexto representou, grosso modo, na forma da lei, a indistino entre os vassalos ndios e os no ndios. Uma das mais drsticas implicaes dessa nova ordem era que as terras, antes usufrudas de forma coletiva, passariam

    a ser loteadas individualmente com pagamento de dzimos a Coroa e entrada de moradores circundantes no ndios nas antigas terras das misses, com pagamento de aforamentos para a cmara.

    No sentido mais abrangente, a vassalagem indgena perderia, doravante, o mesmo significado que possua, por exemplo, na primeira metade do sculo XVIII. A capitania do Cear j estava integrada a administrao colonial, em grande parte, resultado do processo de violncia que se abateu sobre os povos indgenas no perodo, imediatamente anterior, com a

    16 Expulso que se repetiria em 1684, no Maranho. No Brasil meridional, os padres foram expulsos em 1640,

    pelas cmaras municipais da capitania de So Vicente, cujo ponto fulcral era a manuteno da escravido nativa. Cf. Monteiro, John M. Negros da Terra: ndios e bandeirantes nas origens de So Paulo. So Paulo: Companhia das Letras, 1994, pp. 129-153. 17

    Certido do nmero de ndios na misso da Ibiapaba passada pelo padre Joo Brewer, visitador das misses (13/02/1756). AHU-CE, cx. 6, doc. 416. 18

    Cf. Caderno de Anexos, Figura 1 e Foto 1.

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    ocupao das terras para as frentes pastoris em concomitncia com a Guerra do Au (c. 1683-1716).

    Por outro lado, mesmo com a pretensa assimilao pelo diretrio, os grupos indgenas nas Serras de Ibiapaba procuraram adaptar-se s novas demandas coloniais, especialmente, atravs das lideranas indgenas, entres elas, o mestre-de-campo D. Felipe de Sousa e Castro,

    personagem fundamental para se mensurar de forma mais abrangente os efeitos e os limites da poltica de Pombal nas Serras de Ibiapaba, na segunda metade do sculo XVIII.

    A historiografia local

    A historiografia sobre as Serras de Ibiapaba est, sem dvida, confundida com a historiografia dos jesutas no Cear. Apesar de haver inmeros trabalhos, a qualidade analtica dessas obras , sobre vrios aspectos, bastante questionvel. E a razo porque a maior parte dos estudiosos, grosso modo, segue repetindo o que algum autor em obra considerada

    clssica sobre o assunto j havia dito. Neste sentido, h um vcuo analtico considervel em relao temtica histrica de Ibiapaba em temas que vo desde os grupos indgenas, primitivos povoadores do altiplano, at a fundao da Vila Viosa Real e os eventos que dela se seguiram com a poltica pombalina que, no caso da regio Nordeste, manteve sua

    prerrogativa legal pelo menos at o ano de 183319. Sabe-se que toda forma de classificao comporta em si mesma algum tipo de

    arbitrariedade. Mesmo assim, ao menos em termos expositivos, possvel reconhecer quatro tipos diferentes de estudos acerca da histria nas Serras de Ibiapaba. A primeira delas compreende trabalhos publicados por historiadores no profissionais e sem vinculao

    acadmica, composto, em sua maior parte, por profissionais liberais que resolveram a partir de uma ligao sentimental com a regio escrever sobre sua cidade natal, quaisquer delas, localizada nas Serras. Tambm no raro o ufanismo a pessoas ilustres que nasceram ou tiveram uma passagem marcante pela histria local, particularmente, autoridades civis,

    19 O diretrio pombalino foi extinto por carta rgia enviada ao capito-general do Par (12/05/1798). Cf. ANRJ,

    Cdice 807, vol. 11, fls. 23-24; RIHGB, vol. XX, pp. 437 e segs. Como lembra Isabelle Silva, no Cear o diretrio foi extinto apenas em 1833, sendo estabelecido, novamente, no ano de 1843, ou seja, pouco antes da instalao das Diretorias de ndios, objeto do decreto imperial que criara o Regulamento acerca das Misses de catequese e civilizao dos ndios, em 1845. Assim, so necessrios estudos especficos para se saber do real alcance do fim do diretrio, em regies diferentes. Cf. Silva, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de ndios no Cear Grande: dinmicas locais sob o Diretrio pombalino. Campinas: Pontes Editores, 2005, pp. 184, 185.

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    religiosas e polticas que conseguiram construir uma influncia no Cear ou mesmo no

    Brasil20.

    Um segundo grupo de estudiosos diz respeito a autores sacerdotes que por sua vinculao Igreja conseguiram, a partir de fontes eclesisticas locais (especialmente, livros de visitao, livros de batismo, livros de casamento e livros de bito), trazerem a lume um acervo importante e pouco trabalhado pelos historiadores. Parte desse importante corpus documental est, hoje, desaparecido, ou, simplesmente, est sob guarda eclesistica e indisponvel ao grande pblico. o caso, por exemplo, de autores como o bispo Dom Jos Tupinamb da Frota e dos padres Francisco Sadoc de Arajo e Vicente Martins21.

    Com exceo apenas de Vicente Martins, o objetivo desses autores colocar as Serras de Ibiapaba no mago da historiografia cearense, enfatizando a forma de ocupao da regio pelos baianos e aorianos. Ao referir-se a ocupao atravs das sesmarias, disse Arajo: as terras banhadas pelo Acara foram povoadas dentro de um critrio de seleo de sesmeiros,

    gente de boa linhagem, predominante entre as famlias primeiras, sentimentos de elevadas virtudes morais e tendncias para o aprimoramento moral22. Nada poderia ser mais ufanista! Nessa perspectiva que a histria dos jesutas tratada com certo herosmo fundador, vistos como desbravadores do serto que pelo voluntarismo com que se dedicaram converso dos

    ndios - no raro, apresentados como seres incivilizados -, so apontados como heris da civilizao e f simultaneamente23.

    O historiador cearense, Capistrano de Abreu, j havia compreendido as Serras de Ibiapaba como um dos vetores de ocupao do Serto de dentro24, de modo que a novidade dos autores citados est, precisamente, em buscar comprovar essa assertiva j clssica da historiografia colonial. E a partir dela, construir outras perspectivas analticas que pendem,

    20 Cf. Barros, Luiz. Histria de Viosa do Cear. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1980; Siqueira,

    Joo Otvio. Viosa do Cear (notcias esparsas). Fortaleza: Edies Livro Tcnico, 2005; Arajo, F. Sadoc de. Histria da cultura sobralense. Sobral: Imprensa Universitria, 1978; Brando, Jos Hudson. So Benedito: dos Tabajaras ao terceiro milnio. Fortaleza: Premius, 2002. 21

    Frota, D. Jos Tupinamb da. Histria de Sobral. Fortaleza: Editora Henriqueta Galeno, 1974; Arajo, F. Sadoc de. Cronologia sobralense (1604-1800). Fortaleza: Grfica Editorial Cearense, 1974; ________. Estudos ibiapabanos. Sobral: imprensa universitria/Universidade Vale do Acara, 1979; Martins, Vicente. O Hospcio dos jesutas de Ibiapaba. RIC, tomo XLII, pp. 143-168, 1928; _________. O Hospcio dos jesutas de Ibiapaba (continuao). RIC, tomo XLIII/XLIV, pp. 95-144, 1929. A cidade de Sobral no faz parte dos municpios localizados nas Serras de Ibiapaba, mas est dentro do grande Vale do Acara, que compreende a rea norte, prxima as Serras. No perodo colonial essa regio da capitania do Cear era formada pela Ribeira do Acara, justificando a aproximao histrica entre Sobral e as Serras de Ibiapaba. 22

    Arajo, F. Sadoc de. Cronologia sobralense (1604-1800). Op. Cit, p. 14. 23

    Idem. Na literatura, parece-me significativo quanto percepo do papel fundador dos jesutas, o trabalho de Batista Arago intitulado Bravos da Misso (Fortaleza: Grfica Editorial Cearense, 1979). 24

    Cf. O Serto. In: Abreu, Joo Capistrano de. Captulos de histria colonial. Rio de Janeiro: Fundao Biblioteca Nacional/Ministrio da Cultura, s/d.

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    irrevogavelmente, para a proeminncia da figura do colonizador, enquanto aos ndios nada

    mais restava que sofrerem o avano iminente da Cristandade e da Civilizao. Entre essas novas perspectivas est a da Ibiapaba francesa. Alguns estudiosos no

    titubeiam em afirmar que a histria do Cear ainda no foi escrita corretamente, segundo eles, porque a colonizao comeara pelas Serras de Ibiapaba atravs da influncia dos primeiros

    expedicionrios franceses que adentraram o interior maranhense at a regio ibiapabana, comercializando com os ndios e dando origem a uma fecunda relao franco-tupi25. Essa discusso, todavia, no me parece relevante, simplesmente porque concebe o princpio da histria do Cear a partir da interveno do europeu e, como se ver frente, as Serras de Ibiapaba constitua uma rea de interao social mesmo antes da chegada de franceses, holandeses e portugueses.

    A historiografia sobre a capitania do Cear produzida por estudiosos ligados ao Instituto Histrico, Geogrfico e Antropolgico do Cear (fundado em 1887 e congnere local do IHGB) foi at bem pouco tempo a nica voz autorizada sobre a histria cearense. Os trabalhos sobre as Serras de Ibiapaba que se confundem com a histria da Companhia de Jesus, formuladas por esses pesquisadores, correspondem ao terceiro grupo de estudos sobre essa temtica. A meu ver, os autores mais relevantes so Carlos Studart Filho, Guilherme

    Studart (ou Baro de Studart) e Geraldo Silva Nobre26. Mesmo a monumental obra de Serafim Leite, Histria da Companhia de Jesus no

    Brasil (1938-1950), indiscutivelmente, referncia obrigatria aos estudiosos da Companhia no Brasil, valeu-se de trabalhos de Baro de Studart, Vicente Martins e outros autores, e mesmo de informaes por eles prestadas no perodo em que esteve no Cear, buscando documentos

    para a feitura de sua obra, especialmente o tomo III Norte, fundaes e Entradas (sculos XVII e XVIII), publicado em 1943.

    Entre os autores mencionados, apenas Studart Filho possui sistemticos trabalhos sobre os ndios na capitania do Cear sendo, reconhecidamente, um intelectual ligado aos estudos indgenas, particularmente, a partir da dcada de 196027. Seu estudo sobre a misso

    25 Cf. Arajo, F. Sadoc de. Estudos ibiapabanos. Op. Cit. Segundo o autor, possvel que os tabajaras retirados

    do norte do Brasil para a apresentao na cidade francesa de Rouen, em 1550, em homenagem ao rei Henrique II e Catarina de Mdicis, tenham sido levados de Ibiapaba. Idem, p. 26. 26

    Studart Filho, Carlos. A misso jesutica da Ibiapaba. RIC, tomo LXI, pp. 5-68, 1945; Studart, Baro de. Notas para a histria do Cear. Braslia: Senado Federal, 2004 [1892]; Nobre, Geraldo Silva. Histria eclesistica do Cear. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1980. 27

    Cf. Studart Filho, Carlos. Estudos de histria Seiscentista. Fortaleza: Tipografia Minerva, 1958; ____________ Aborgines do Cear. Fortaleza: Editora do Instituto do Cear, 1965; _________ . Pginas de Histria e Pr-Histria. Fortaleza: Editora do Instituto do Cear, 1966.

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    jesutica da Ibiapaba28, todavia, pouco acrescenta ao que j havia sido publicado por Vicente Martins.

    Mesmo sem desprender-se da defesa do trabalho dos jesutas, Vicente Martins consegue ao menos discorrer sobre a aldeia de Ibiapaba de modo pioneiro, sistematizando a partir de documentos eclesisticos locais, um conjunto de informaes at ento nunca realizado. Sua influncia constatada pela publicao de seus trabalhos na Revista do Instituto do Cear, repercutindo, sobremaneira, em todos os autores posteriores que escreveram sobre a mesma temtica. Porm, ele se afasta de autores religiosos que buscavam colocar a histria das Serras de Ibiapaba no cerne da historiografia cearense.

    Se o padre Vicente Martins conseguiu sistematizar informaes esparsas, de fontes eclesisticas sob sua guarda e hoje indisponveis (ou perdidas), seu trabalho abrange apenas o perodo jesutico nas Serras de Ibiapaba, entre 1607-1759. De forma complementar, o trabalho do Baro de Studart, Notas para a histria do Cear (1892), ainda , hoje, a coletnea de fontes setecentistas mais importante do perodo ps-jesuta. O captulo IV, dedicado elevao das antigas aldeias jesuticas a vilas de ndios, a partir de 1759, traz um conjunto de fontes da maior relevncia. O autor, todavia, um partidrio afoito do trabalho dos padres, tomando partido contra as reformas pombalinas:

    Em nome de que princpios foram expelidos das colnias os missionrios? A liberdade das pessoas e dos bens dos indgenas. E eram eles escravos dos missionrios? E dado que fossem, que lucro houveram em trocar senhores, que ao menos lhes garantiam alguma cousa, por senhores, que tudo lhes roubavam? To boa foi a reforma de Pombal, tanto ela favorecia os habitantes das aldeias e consultava-lhes os interesses que ao findar o sculo XVIII at aquelas aldeias que estavam prximas a Fortaleza (Parangaba, Caucaia e Paupina) eram um monto de runas29.

    A concepo do autor de que a runa apresentada nas vilas de ndios se deu pela troca de senhores, dos abnegados jesutas pelos cobiosos administradores locais, diretores e capites-mores. A reforma de Pombal, assim, nada trouxera de bom aos ndios das antigas aldeias. Mas e os ndios, no possuam qualquer trao de manobra, no tinham eles algum tipo de escolha frente s drsticas mudanas histricas que vivenciavam naquele momento?

    Essa importante problemtica no elaborada por quaisquer dos autores at aqui

    discutidos. H, portanto, uma lacuna na historiografia local sobre as Serras de Ibiapaba ou sobre a histria da Companhia de Jesus, no Cear, que considerem os grupos indgenas como agentes do processo histrico, grupos sociais tambm com seus prprios interesses, ainda que

    28 Studart Filho, Carlos. A misso jesutica da Ibiapaba. Op. Cit.

    29 Studart, Baro de. Op. Cit., pp. 194, 195.

  • 27

    estivessem na condio de dominados. A produo de autores ligados ao Instituto do Cear

    pode muito bem ser avaliada na sentena proferida por Geraldo Nobre, em sua Histria eclesistica do Cear (1980): A nova Misso da Ibiapaba somente se extinguiria com a expulso dos jesutas, em 1759, mas existem poucas notcias do que nela ocorreu, como se no tivesse histria, falta de acontecimentos de importncia30.

    Esta tese visa contribuir, na medida do possvel, para sanar essa lacuna analtica percorrendo por todo sculo XVIII caracterizado pela ausncia de fontes sistematizadas e com carter etnogrfico as mudanas processadas no apenas pela legislao indigenista, mas apontando a agncia indgena nos diversos contextos histricos setecentistas no mago do Antigo Regime.

    Finalmente, o quarto tipo de estudos sobre as Serras de Ibiapaba compreende alguns trabalhos acadmicos com uma perspectiva histrica. O primeiro de que tenho conhecimento da professora Lucimara Frota, uma dissertao de mestrado, defendida na Universidade de

    So Paulo, em 1973. O objetivo da autora, contudo, era apontar naquele momento, as condies econmicas do altiplano, contribuindo para demonstrar suas formas de ocupao pelas fazendas de gado tanto do Cear quanto do Piau31.

    Outro trabalho acadmico, mas referente ao seiscentos nas Serras de Ibiapaba, e

    publicado em francs de Joo Viegas. Neste texto, o autor discute o papel do padre Vieira como defensor dos ndios no Brasil, sem fazer, contudo, uma contextualizao do empreendimento do sacerdote s Serras de Ibiapaba32.

    Em relao temtica indgena em Ibiapaba, observando a interao social entre ndios, colonos e jesutas h ainda duas pesquisas acadmicas.

    O trabalho de Mnica Mesquita de Sousa, intitulado Misso na Ibiapaba. Estratgias e tticas na Colnia nos sculos XVII-XVIII, realizado a partir das categorias analticas de Michel de Certeau tticas e estratgias em que a autora buscou compreender a resposta indgena doutrinao dos religiosos, especialmente, como uma forma encontrada pelos ndios para diminurem o impacto da colonizao sobre sua cultura e a devastao dos colonizadores sobre seus territrios33. Apesar da relevncia da proposta, acredito que ela no

    30 Nobre, Geraldo Silva. Op. Cit., p. 182.

    31 Cf. Frota, Lucimara Silveira de Arago. Ibiapaba no sculo XVII: uma anlise de suas condies scio-

    econmicas atuais. Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Histria da Universidade de So Paulo, So Paulo, 1973. 32

    Viegas, Joo. La Mission dIbiapaba. Le pre Antnio Vieira & le droit des Indiens. Prface dEduardo Loureno. Paris: Chandeigne,/Unesco, 1998. 33

    Sousa, Mnica Hellen Mesquita de. Misso na Ibiapaba. Estratgias e tticas na Colnia nos sculos XVII-XVIII. Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Histria da Universidade Federal do Cear, Fortaleza, 2003, p. 3.

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    conseguiu analisar, satisfatoriamente, a misso dentro de um processo histrico contnuo,

    encarando as transformaes culturais tambm como fruto direto de escolhas e negociaes dos grupos indgenas. Como afirma a autora:

    A perda de uma boa parcela de cultura nos grupos indgenas aldeados ocorreu de forma gradativa, como uma resistncia tenaz por parte dos ndios, que rejeitavam ou aceitavam mais facilmente costumes e rituais cristos conforme o impacto que estes provocavam em sua organizao social 34.

    Mesmo reconhecendo o esforo da autora em apontar a resposta indgena aos sacramentos dos religiosos, acredito que neste trabalho, ela no conseguiu se desvincular de uma noo substantivista de cultura, compreendida como algo que se guarda e que se perde e, no como um fenmeno social humano que se transforma com o passar do tempo. Neste

    sentido, parece-me importante reconhecer com Miguel Bartolom que ao invs de se pensar em uma resistncia cultural como sugere a autora -, se devesse refletir sobre uma cultura de resistncia, entendida como a luta em favor de um conjunto de referncias culturais que um grupo social assume como sendo fundamental para sua prpria configurao identitria, no

    interior do processo histrico35. Um outro trabalho na via da temtica indgena, tambm dissertao de mestrado, de

    minha prpria autoria e intitulado Cultores da Vinha Sagrada: misso e traduo nas Serras de Ibiapaba (Sculo XVII). Nela, defendi que o espao da misso jesutica era o locus privilegiado onde se construiu uma relao de alteridade, em que ndios e jesutas a partir de seus prprios referenciais, formulam uma traduo ou entendimento do outro, mesmo que fossem portadores de lgicas culturais distintas. Meu objetivo, assim, no era construir uma histria dos jesutas ou uma histria dos ndios, em Ibiapaba, mas apontar a relao histrica entre esses agentes, no contexto histrico seiscentista36.

    Em certa medida, apesar de outro contexto, esta tese uma continuidade analtica sobre a histria processada nas Serras de Ibiapaba com a participao de diferentes agentes coloniais. Por outro lado, se a temtica indgena nas Serras de Ibiapaba referente ao sculo XVII j foi objeto de anlise histrica, inclusive, de trabalhos acadmicos, o mesmo no pode ser dito em relao ao perodo colonial do sculo seguinte.

    34 Idem, p. 76.

    35 Cf. Bartolom, Miguel Alberto. Bases culturais da identidade tnica no Mxico. In: Zarur, George (org.).

    Regio e Nao na Amrica Latina. Braslia: Editora UnB; So Paulo: Editora Oficial do Estado, 2000, pp. 135-161. 36

    Maia, Lgio de Oliveira. Cultores da Vinha Sagrada: misso e traduo nas Serras de Ibiapaba (Sculo XVII). Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Histria da Universidade Federal do Cear, Fortaleza, 2005.

  • 29

    O trabalho de Isabelle Silva, Vilas de ndios no Cear Grande, originalmente tese de doutorado na Universidade de Campinas, procura dar conta da dinmica cultural processada no interior das antigas aldeias jesuticas elevadas a categoria de vilas, com a poltica pombalina: aldeia de Caucaia, depois Vila de Soure; aldeia de Parangaba, depois Vila Nova de Arronches; aldeia de Paupina, depois Vila de Mecejana; aldeia dos Paiacu, depois Vila de Monte-mor o Novo da Amrica; e aldeia de Ibiapaba, depois Vila Viosa Real. Seu livro, todavia, restringe-se a segunda metade do sculo XVIII, e enfatiza, especialmente, algumas vilas em detrimento de outras, em parte acredito, pelo acesso da autora s fontes pesquisadas37.

    O livro de Isabelle Silva insere-se em um conjunto de textos, de outros pesquisadores, que tm procurado compreender a agncia indgena antes ou imediatamente posterior ao estabelecimento da poltica pombalina nas capitanias subordinadas capitania geral de Pernambuco38. Esta tese, por conseguinte, pretende apontar a experincia histrica dos ndios

    coloniais nos dois contextos setecentistas, isto , antes e depois da poltica do diretrio, compreendendo todo sculo XVIII como um perodo fecundo para identificar e analisar as continuidades e descontinuidades em que estiveram envolvidos.

    Por fim, as diferentes problemticas desse conjunto de trabalhos, citado acima, por serem abrangentes e no especficas historiografia sobre as Serras de Ibiapaba sero discutidas ao longo desta pesquisa.

    Serras de Ibiapaba: vassalagem indgena e as fronteiras coloniais

    Diferente dos ndios do serto que viviam no corso, aos ndios das aldeias eram

    garantidas a posse da terra e o bom tratamento das autoridades, de acordo com as diferentes legislaes indigenistas no perodo colonial. Uma vez catequisados pelos religiosos, seriam esses ndios, de acordo com os documentos do sculo XVIII, vassalos teis. De fato, desde o sculo XVI, os ndios aldeados estavam sujeitos ao pacto de vassalagem, adquirindo o

    37 Mesmo reconhecendo a importncia da Vila Viosa Real, em relao s outras vilas de ndios, no Cear, a

    autora apresenta os conflitos pela estruturao do diretrio, especialmente, a partir da documentao do livro de criao da Vila de Monte-mor o Novo da Amrica, hoje, cidade de Baturit (CE), e publicado em edio fac-smile. Cf. Silva, Isabelle Braz Peixoto da. Op. Cit. 38

    Cf. Porto Alegre, Maria Sylvia. Aldeias indgenas e povoamento do NE no final do sculo XVIII: aspectos demogrficos da cultura de contato. Cincias Sociais Hoje. So Paulo: ANPOCS/Hucitec, pp. 195-218, 1993; Pires, Maria Idalina da Cruz. Resistncia indgena nos Sertes nordestinos na ps-conquista territorial: legislao, conflito e negociao nas vilas pombalinas. 1757-1823. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Histria da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2004; Lopes, Ftima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de ndios do Rio Grande do Norte sob o diretrio pombalino no sculo XVIII. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Histria da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005.

  • 30

    direito proteo real, ao mesmo tempo em que suas obrigaes deveriam ser cumpridas

    como, por exemplo, lutando nas guerras contra estrangeiros ou grupos indgenas hostis e se dispondo a trabalharem em servios para o rei e para os moradores em troca de salrios. Esse sucinto painel ideal, formulado por Perrone-Moiss, como ela mesma explica, sofreria modificaes a partir do jogo de fora entre moradores, religiosos e autoridades laicas, em regies e contextos histricos diversos39.

    Mesmo com a drstica mudana processada pela aplicao do diretrio pombalino, a condio dos ndios como vassalos dEl Rei no desaparecera. Diferente da inteno legal e integracionista das aldeias crists, a nova legislao indigenista possua um carter assimilacionista que, como se disse, proibia que lhes dessem nomes afrontosos, como de Negros, para no confundi-los com escravos africanos; estabelecia tambm que no haveria qualquer distino de honras entre os ndios e outros vassalos da Coroa; e ainda incentivava os casamentos com os brancos40. Tudo isso, considerando a igualdade, que tem com eles [os ndios] na razo genrica de Vassalos de Sua Majestade41.

    Na carta rgia que extinguiu o diretrio, no Par, a rainha tambm manteve a indistino de vassalagem dos ndios:

    Hei por bem abolir e extinguir de todo o directrio dos ndios, estabelecido provisoriamente para o governo econmico das suas povoaes, para que os mesmos ndios fiquem sem diferena dos outros meus vassalos, sendo dirigidos e governados pelas mesmas leis que regem todos aqueles dos diferentes Estados que compem a monarquia, restituindo os ndios aos direitos que lhes pertencem, igualmente aos meus outros vassalos livres42.

    A condio de ndios aldeados, todavia, no os igualava a outros sditos da Coroa. De

    acordo com Almeida, essa era uma condio especial, baseado nas leis indigenistas, cujo tratamento desigual era prprio na sociedade do Antigo Regime onde cada um dos sditos possua sua funo na escala social; mas que vislumbrava alguns diretos e garantias, apropriados pelos ndios em momentos diversos ao longo do perodo colonial. Dito de outro modo, na condio jurdica de ndios aldeados, portanto, integrados colonizao, eles

    39 Perrone-Moiss, Beatriz. ndios livres e ndios escravos: os princpios da legislao indigenista do perodo

    colonial (sculos XVI a XVIII). In: Cunha, Manuela Carneiro da (org.). Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras/FAPESP, 1992, pp. 118, 119. 40

    Diretrio..., 10,11, 88. 41

    Idem, 83. 42

    Carta Rgia ao capito-general do Estado do Par acerca da emancipao da liberdade indgena e fim do Diretrio pombalino. 12/05/1798. ANRJ, Cdice 807, vol. 11, fls. 23-34.

  • 31

    passaram a manejar de forma criativa as novas prticas culturais e polticas em busca de seus prprios interesses 43.

    Todos esses aspectos mencionados quanto vassalagem indgena sero colocados e discutidos no contexto do sculo XVIII ao longo desta tese. Por ora, parece importante discorrer de forma mais aprofundada acerca da relao entre a conquista territorial da Coroa e

    a necessidade imperativa da participao indgena, enquanto sditos de seus domnios. No sculo XVII, a capitania do Cear era uma regio de passagem e de defesa, uma

    rea simbolicamente construda de demarcao militarizada atravs da criao e manuteno de fortes, por exemplo. Essa situao permanecera de modo mais ou menos semelhante tanto para a Coroa portuguesa quanto para comandantes holandeses - nos breves intervalos em que as Provncias Unidas dos Pases Baixos ocuparam o Cear (entre 1637-1644 e 1649-1654)44.

    poca, certa estabilidade na expanso colonialista no litoral impeliu novos impulsos em direo ao serto que, no caso do Cear, esteve diretamente ligado ao Maranho,

    conforme se observa na afirmao, em 1624, do capito Simo Estcio da Silveira: uma conquista muito grandiosa & dilatada, cuja governana S. Majestade tem demarcado desde o Cear at o ltimo marco do Brasil. No mesmo documento, a relao aparece de forma ainda mais intrnseca:

    No descobrimento desta Conquista tem S. Majestade, & os Senhores Reis passados metido muito cabedal, assim por terra, como por mar (...). At que o Governador daquele estado, Dom Diogo de Meneses, sabendo o cabedal, pelo pouco antes de seu tempo tinha metido neste [rasurado] Pero Coelho de Sousa, & as guerras que andou com Mel Redondo nas Serras de Goapava [Ibiapaba], & que entre aquele Gentio havia notcias do Maranho (entendendo que estes descobridores deviam andar perto dele) mandou conservar as amizades que ele deixou feitas com o Gentio do Cear, pelo Capito Martim Soares Moreno, que havia andado na companhia do dito Pero Coelho naquelas guerras: & para isso lhe deu hum barco, & alguns companheiros com que residiu trs anos no Cear, & adquiriu pilotos & novas notcias no Maranho45.

    O combate da tropa de Pero Coelho e os grupos indgenas nas Serras de Ibiapaba ser

    discutido no primeiro captulo. Importa perceber na citao acima, a interligao entre a

    43 Almeida, M. Regina Celestino de. Metamorfoses indgenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio

    de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, pp. 25, 102. 44

    O governador do Maranho, Bento Maciel Parente, representou a Coroa a construo de fortes ou guarnies em So Lus, Rio das Amazonas e Seara [Cear] que precisavam ser, ainda, militarizados para proteo de 42 lguas de costa para impedir o comrcio dos naturais com os inimigos. Representao de Bento Maciel Parente a El-rei sobre as coisas tendentes a defesa e observao e bom governo da Provncia do Maranho [04/08/1636]. In: RIC, tomo XXIV, p. 234, 1910; sobre o perodo holands, no Cear, vide: Cmara, Jos Aurlio. Aspectos do domnio holands no Cear. RIC, tomo LXX, pp. 5-36, 1956. 45

    Relao sumria das cousas do Maranho [07/03/1624]. In: ABN, vol. 94, anexo, 1974.

  • 32

    amizade e pacificao dos ndios nas Serras e as autoridades, como uma etapa fundamental

    para manuteno de uma proteo dos domnios da Coroa em direo ao imenso Maranho que, sob vrios aspectos, era ainda completamente desconhecido e sem a posse efetiva dos agentes colonialistas. Os ndios, neste sentido, eram parte fundamental da ideologia de dominao que da em diante se deveria desenrolar.

    A criao por carta rgia do Estado do Maranho compreendendo as capitanias do Maranho, Par e Cear, no ano de 1621, est no bojo dessa preocupao pela agregao efetiva do territrio cujo significado no era apenas localizado, quer dizer, a partir da influncia ou no da capitania do Cear, como defendido por parte da historiografia, especialmente ligada ao Instituto do Cear; mas que estava no mbito de uma realidade ideolgica aterritorial, de um imprio portugus que se configurava no Atlntico Sul, preocupado em demasia com suas possesses no Alm-mar46.

    A instabilidade jurisdicional da capitania do Cear ao longo do seiscentos primeiro fazendo parte do Maranho, depois da capitania de Pernambuco, em 1654 - s pode ser compreendida no interior de um processo de afirmao scio-cultural dos limites territoriais da conquista europia; uma dinmica histrica cujo resultado era constantemente modificado, recuando ou avanando medida que os parcos ncleos de povoadores braslicos iam se

    constituindo e, a partir de seus interesses, pressionando os grupos indgenas de suas antigas reas de vivncia, traando novas e complexas configuraes sociais. Entre o extermnio, a fuga e a submisso, os grupos indgenas encontraram outras formas de interao, fruto direto de suas experincias e escolhas polticas.

    As Serras de Ibiapaba a partir de empreendimentos - de entradas catequticas e/ou de

    reconhecimento - em direo ao Maranho constituram-se no sculo XVII como uma regio colonial; cujos marcos temporal e espacial no podem ser medidos em pontos naturais nem, ainda, em eventos isolados, mas em um conjunto de relaes em que perpassavam interesses de autoridades metropolitana e local, de membros da Companhia de Jesus e dos grupos indgenas envolvidos, revelando complexos dispositivos de aproximao e reconhecimento para a conquista e para a converso47.

    46 Enquanto a costa Leste-Oeste (a Amaznia propriamente dita, Par, Maranho, Cear e Piau) permaneceu

    separada do miolo negreiro do Brasil, Angola se agregou completamente a ele. Assim, a constituio do Estado do Maranho estava no cerne dessa integrao do Imprio no Atlntico Sul. Alencastro, Luiz Felipe de. Op. Cit., p. 20; no mbito local, essa integrao se deu atravs da disputa de grupos de interesses privados, mas com projetos polticos que levavam em conta o contexto do ambiente internacional. Cf. Cardoso, Alrio. Insubordinados, mas sempre devotos: poder local, acordos e conflitos no Estado do Maranho (1605-1652). Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Histria da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002. 47

    Cf. Maia, Lgio de Oliveira. Op. Cit.

  • 33

    Mesmo considerando a relevncia analtica dessa perspectiva fundamental traar

    uma nova reflexo que se aproxime do significado dos limites e fronteiras que representavam as Serras de Ibiapaba. Em outras palavras, continuar desconsiderando amarras conceituais e demarcatrias que tm levado em conta apenas um lado dos interesses na expanso territorial, no caso, o da Coroa portuguesa. Sugerindo, por conseguinte, um processo naturalizado levado

    a efeito por uma espcie de agente auto-consciente cumprindo sua funo atravs de mecanismos de dominao.

    Essa armadilha analtica tem seduzido diferentes pesquisadores da histria americana colonial. No so poucos os trabalhos que se apropriam de certas categorias derivadas de conceitos como nao ou Estado, formulados apenas no sculo XIX, e remetidos ao perodo colonial e at ao perodo pr-colombiano de modo acrtico, sem levar em conta o perigo do anacronismo neles subjacentes. Guillaume Boccara atenta para essa questo sugerindo mesmo que tal perspectiva vem contribuindo, efetivamente, para a construo de

    uma Amrica indgena em grande parte imaginria; termos como naes e etnias - que possuem um valor organizacional e analtico complexos - so usados como referenciais para colocar cada povo (com sua prpria cultura) em cada territrio, traando uma fixao espao/cultura apenas aparente, embasada nas ideologias do Estado-nao oitocentista. necessrio, portanto, no perder de vista o vetor ideolgico na justificativa colonialista quanto aplicao de categorias fixas, grosso modo, bastante discutveis48.

    A realidade colonial no se engendrava como um simples reflexo de determinaes reais atravs de tratados de limites ou quaisquer outras formas de marcadores territoriais. A constituio de fronteiras e limites um processo de ininterrupta negociao. Um complexo

    de relaes sociais que diz respeito a diferentes agentes e interesses que se vale no mais das vezes de uma poltica de fora (violncia, por exemplo) para atingir seus objetivos. Por outro lado, era colocada em uso tambm uma poltica de aproximao, alastrando e negociando espaos quase sempre como resultados de diferentes experincias no Novo Mundo.

    ngela Domingues destacou que, diferente da Inglaterra isabelina que primava unicamente pela posse da terra, a Coroa portuguesa visava tornar domstico, til e civil no

    48 Boccara, Guillaume. Mundos Nuevos en las Fronteras del Nuevo Mundo. Mundo Nuevo Nuevos Mundos.

    Paris, revista eletrnica, n. 1, 2001. Disponvel em: http://nuevomundo.revues.org/document426.html. Acessado em fevereiro de 2008. A meu ver, a crtica do autor est em desconsiderar o processo histrico dessas categorias. A etnia, por exemplo, no uma designao fixa, mas uma identificao que pode ser apropriada (ou no) por um grupo nativo, ao mesmo tempo em que pode ser reconstruda (ou desconstruda) em outro momento histrico.

  • 34

    apenas o solo, como os homens49. No norte do Brasil, a poltica do diretrio foi o ponto alto

    dessa ao definitiva de integrao da rea amaznica, considerada at ento terra livre que de acordo com o direito colonial era assim considerada porque no havia nela soberano cristo. Antes demarcada apenas por fortalezas em torno de cidades e na via fluvial constituda pelos rios Amazonas-Solimes, a Coroa percebeu a necessidade de atravs da uti

    possidetis reclamar sua posse sobre as vastas regies de conflitos de fronteiras (com Caiena, Guiana Holandesa e Vice-reinado de Nova Granada) com a transformao dos amerndios em sditos ou vassalos reais, sem distino em relao aos demais50.

    De modo que o que estava por trs do discurso humanista e iluminista do poderoso primeiro ministro de D. Jos I, Sebastio Jos de Carvalho e Melo definida com sua aprovao ao diretrio de 1757 era a salvaguarda das possesses portuguesas, onde os ndios a partir de ento seriam vassalos. Mesmo antes, em 1751, escrevera o futuro marqus de Pombal a Gomes Freire de Andrade, comissrio portugus no territrio das misses acerca do

    Tratado de Limites, que a riqueza de uma nao se mede pelo nmero e multiplicao de gente sob seu domnio51.

    Uma das hipteses sustentada por este trabalho consiste em afirmar a ntima relao entre vassalagem indgena nas Serras de Ibiapaba e a proteo da capitania do Cear e regies

    circunvizinhas, especialmente contra os grupos de ndios considerados hostis ao processo colonialista. A integrao das fronteiras do imprio portugus na sua colnia braslica - seja ao norte e extremo oeste, seja ao sul em reas de misses, quer tenha sido estabelecida pela diplomacia ou pela guerra aberta - no deve, por sua importncia, obstar a anlise de outras fronteiras, tambm chamadas de internas52, uma vez que nelas tambm houve a participao

    ativa de grupos indgenas.

    49 Domingues, ngela. Quando os ndios eram vassalos: colonizao e relaes de poder no norte do Brasil na

    segunda metade do sculo XVIII. Lisboa: Comisso nacional para as comemoraes dos descobrimentos portugueses, 2000, p. 76. 50

    Idem, pp. 85-87. 51

    E como a fora e a riqueza de todos os Pases consiste principalmente no nmero e multiplicao da gente que o habita: como este nmero e multiplicao da gente se faz mais indispensvel, agora, da Raia do Brasil, para a sua defesa, em razo do muito que se tm propagado os Espanhis nas fronteiras deste vasto continente, onde no podemos ter segurana sem povoarmos, mesma proporo as nossas provncias desertas que confinam com as suas povoadas: e como este grande nmero de gente que necessrio para povoar, guarnecer e sustentar uma to desmedida fronteira no pode humanamente sair deste Reino e Ilhas adjacentes (... ). O meio mais eficaz, em semelhantes casos, o de que serviram os Romanos com os Sabinos, e com as mais Naes que, depois, foram incluindo no seu Imprio. Carta de Sebastio Jos de Carvalho e Melo a Gomes Freire. 1751. In: ABN, vol. 50, p. 197. 52

    As fronteiras internas, para Domingues, so limites geogrficos controlados pela sociedade colonial (ncleos urbanos, trajetos fluviais) por oposio ao serto; ao passo que as fronteiras externas dizem respeito ao serto, nas reas que se pretendia definir com outros estados europeus. Domingues, ngela. Op. Cit., p. 85, nota 44.

  • 35

    Nas Minas Gerais coloniais, por exemplo, o que a Coroa chamava de terras

    proibidas no sculo XVIII rea interdita aos colonos, compreendida entre os distritos mineradores e a costa atlntica no passava de uma fronteira culturalmente construda. Inicialmente, os ndios habitantes chamados Botocudo termo genrico que designava diferentes grupos indgenas inimigos no serto do leste serviam aos propsitos da poltica

    fiscal portuguesa evitando como obstculos o contrabando do ouro e diamantes. poca a terra era inculta, uma barreira natural, e o ndio era um selvagem. Todavia, com o esgotamento gradual das reas mineradoras, ao longo do sculo, novas terras deviam ser exploradas o que impeliu uma mudana substantiva no discurso das autoridades colonialistas53. Ento, uma srie de documentos fora construda valorizando os recursos naturais nas terras proibidas. Os ndios, assim, de antigos obstculos que evitavam o contrabando passaram a ser demonizados sob a justificativa da antropofagia. A relao direta entre ndios e territrios a conquistar estava tambm rabiscada na cartografia usada pelas

    tropas de Entrada. Logo, a fronteira no apenas resultado da expanso europia, mas uma rea em constante interao entre culturas, com significados diferentes, inclusive, de mudanas de significao ao longo do tempo. Para os ndios, as terras proibidas eram reas de vivncia e de refgios, assim permanecendo at a mudana dos objetivos da Coroa na regio. Como aponta Langfur a constituio da fronteira do serto leste de terra de refgio para um refgio incerto - no comeou nem se resolveu com a ao isolada do prncipe regente que do Rio de Janeiro, em 1808, declarou guerra justa e guerra defensiva at o fim aos Botocudo canibais. A poltica de guerra aberta estendeu-se at 1831, porm as nuances desse processo de construo cultural da fronteira em relao direta aos ndios remontava, inicialmente, aos

    anos de 1763-1768, no governo de Luiz Diogo Lobo da Silva54. Vale notar que Luiz Diogo Lobo da Silva, antes, havia sido governador capito-

    general da capitania de Pernambuco (1756-1762), sendo o responsvel direto pelo estabelecimento da poltica pombalina nas antigas aldeias jesuticas. Nas Minas Gerais, contudo, a aplicao desse regulamento indigenista era sobre grupos de ndios nmades, sem experincia em aldeias missionrias, o que levou Lobo da Silva a fazer uma leitura particular da lei, mas com outro objetivo, determinando que antes de civilizar os habitantes das terras

    53 Cf. Langfur, Hal. Uncertaim Refuge: frontier formation and the origins of the Botocudo War in late colonial

    Brazil. Hispanic American Historical Review, 82:2, pp. 215-256, 2002. 54

    Idem; sobre Luiz Diogo Lobo da Silva, vide: A remunerao dos servios: Lus Diogo Lobo da Silva. In: Mello e Souza, Laura de. O sol e a sombra: poltica e administrao na Amrica portuguesa do sculo XVIII. So Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 327-349.

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    proibidas era necessrio reduzir com fora militar os ndios renitentes55. Como apontou Maria

    Lenia Resende, a liberdade indgena na lei de 1755 liberdade das suas pessoas, posses e comrcio era condicionada a obrigao dos ndios contriburem sociedade colonial mineira como vassalos, desde que aceitassem os preceitos da religio crist do rei, nova vida sedentria e trabalho industrioso. O contorno que se seguiu poltica indigenista nas Minas

    Gerais ao longo do sculo XVIII fora traado pelas inmeras bandeiras que entraram e dilataram os sertes contra o gentio silvestre56.

    Acredito que os exemplos mencionados so suficientes para demonstrar a dinmica e fluidez na constituio das fronteiras, especialmente, na relevncia para as autoridades coloniais dos grupos indgenas em situao de extrema interao, sobretudo, em espaos em que a administrao local era frgil porque ainda no interessava sobremaneira aos objetivos do imprio. Questo que se transforma quando a expanso deixa de ser uma posse meramente simblica para se tornar imperativa.

    Uma outra hiptese desta tese que as Serras de Ibiapaba constituam uma regio ou fronteira de significados diversos. Ao longo do sculo XVII, para as autoridades metropolitanas significou um ponto de apoio conquista do Maranho; para a Companhia de Jesus sempre foi um potencial reduto missionrio cujos gentios estavam ainda melhor protegidos da sanha cobiosa dos moradores do Maranho, renitentes escravistas de uso ilegal da mo-de-obra indgena. Para os diferentes grupos indgenas as Serras de Ibiapaba tambm apresentavam significados diversos. Inicialmente, uma rea de refgio ao colonialismo, de intensa instabilidade em conflitos inter-grupais pelo uso e usufruto dos recursos naturais. Em seguida, j com a presena dos missionrios, um refgio de outra natureza atravs da aldeia crist, reduto contra apresadores que vagavam pelo serto e contra uma poltica colonial de expanso absolutamente nociva s populaes indgenas - com a guerra aberta e usurpao das terras dos ndios do serto, os tapuias, que no estavam sob a tutela dos religiosos. Assim, diferente dos ndios do serto, passveis de escravido pelos resgates ou pela guerra justa no raro, justificativas falseadas -, ser ndio aldeado poderia significar a possibilidade real

    55 Langfur, Hal. Op. Cit., p. 251.

    56 A administrao da catequese ficava por conta do clero secular e os governadores preocupavam-se menos com

    a civilizao dos ndios, isolando-os nos sertes para intimidar a penetrao de contrabandistas; as seguidas proibies quanto ao uso das ordens religiosas embasavam-se no fato de que, sob pretexto da catequese, pudessem contrabandear e extraviar riquezas minerais. Cf. Resende, M. Lenia Chaves de. Gentios braslicos. ndios coloniais em Minas Gerais setecentista. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Histria da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003, pp. 31-92.

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    de apropriao de certo espao de sociabilidade, mesmo que baseado em outras

    experincias57.

    Essas mudanas de significao histrica para diferentes agentes no foram automticas e nem ao menos consecutivas. Elas coexistiram num mesmo contexto histrico e

    se modificavam durante o longo processo de interao e contatos entre portadores de lgicas

    culturais distintas. Uma trama complexa em que as tradies, o mpeto pelo enriquecimento ilcito e a ideologia missioneira perpassavam suas aes e escolhas, acordos e defeces; enfim, uma gama de possibilidades cuja incerteza parece ser a nica ligao possvel nesse emaranhado de experincias coloniais.

    Na primeira metade do sculo XVIII quando a regio de Ibiapaba era considerada uma fronteira no sentido empregado por Boccara, isto , como um espao sob um processo de domnio e integrao ao imprio portugus aos grupos indgenas eram concedidas, como vassalos teis, prerrogativas militares da maior relevncia; tanto na capitania do Cear quanto

    nas capitanias vizinhas, cujo raio de ao objetivava a manuteno da posse real e ajuntamento de novos vassalos.

    Pelo menos foi com esses objetivos que o padre Ascenso Gago, superior da aldeia de Ibiapaba e procurador das misses do Brasil e o padre Antnio de Sousa Leal elaboraram,

    juntos, uma consulta ao Conselho Ultramarino acerca de se no permitir que a aldeia tivesse sua jurisdio mudada para a capitania do Piau, pois, no apenas se arruinaria a aldeia, como se privaria o Cear dos seus defensores, ficando em risco as fazendas dos seus moradores. Assim, alm de ficar aquela fronteira [Piau e Cear] segura, poderiam, com a faculdade de conceder paz, atrair ao domnio del-Rei muitos vassalos 58

    As terras de Ibiapaba eram dos ndios, no h aqui qualquer negao. De fato, o que estava em jogo era a integrao de um domnio (d