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SERVIÇO SOCIAL E SISTEMA PENAL: considerações sobre a assistência prestada à egressos do sistema penitenciário Debora Cristina G. de Araujo 1 Resumo O presente estudo tem por objetivo apresentar, sinteticamente, uma análise sobre o trabalho do assistente social junto a egressos do sistema penitenciário no estado do Rio de Janeiro a partir da experiência do projeto “Agência da Cidadania” do Banco da Providência. Destaca-se que tal investigação é fruto do trabalho de conclusão de curso (TCC) da autora, defendida no ano de 2015 pela Faculdade de Serviço Social da UERJ. Palavras-chave:Sistema Penal; Serviço Social; Egressos do sistema penitenciário Abstract The purpose of this study is to present an analysis of the work of the social worker with graduates of the penitentiary system in the state of Rio de Janeiro, based on the experience of the Banco da Providência "Citizenship Agency" project. It is noteworthy that such research is the result of the author's graduation work (TCC), defended in 2015 by the Faculty of Social Work of UERJ Keywords: Penal System; Social service; Egresses from the penitentiary system 1 Assistente Social formada pela Faculdade de Serviço Social da UERJ. Mestranda do curso de Pós- Graduação em Serviço Social da UERJ. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPES. E-mail: [email protected]

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SERVIÇO SOCIAL E SISTEMA PENAL: considerações sobre a assistência prestada à egressos do sistema penitenciário

Debora Cristina G. de Araujo1

Resumo O presente estudo tem por objetivo apresentar, sinteticamente, uma análise sobre o trabalho do assistente social junto a egressos do sistema penitenciário no estado do Rio de Janeiro a partir da experiência do projeto “Agência da Cidadania” do Banco da Providência. Destaca-se que tal investigação é fruto do trabalho de conclusão de curso (TCC) da autora, defendida no ano de 2015 pela Faculdade de Serviço Social da UERJ.

Palavras-chave:Sistema Penal; Serviço Social; Egressos do sistema penitenciário

Abstract

The purpose of this study is to present an analysis of the work of the social worker with graduates of the penitentiary system in the state of Rio de Janeiro, based on the experience of the Banco da Providência "Citizenship Agency" project. It is noteworthy that such research is the result of the author's graduation work (TCC), defended in 2015 by the Faculty of Social Work of UERJ

Keywords: Penal System; Social service; Egresses from the

penitentiary system

1 Assistente Social formada pela Faculdade de Serviço Social da UERJ. Mestranda do curso de Pós-

Graduação em Serviço Social da UERJ. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

Superior – CAPES. E-mail: [email protected]

1. INTRODUÇÃO

O presente estudo tem por objetivo apresentar, sinteticamente, uma análise

sobre o trabalho do assistente social junto a egressos do sistema penitenciário no estado do

Rio de Janeiro a partir da experiência do projeto “Agência da Cidadania” do Banco da

Providência. Destaca-se que tal investigação é fruto do trabalho de conclusão de curso

(TCC) da autora, defendida no ano de 2015 pela Faculdade de Serviço Social da UERJ.

Entendemos que mediante o aumento da interface punitiva do Estado frente aos

problemas sociais, o trabalho com ex-apenados por parte dos assistentes sociais necessita

de uma análise crítica da realidade social brasileira, tendo em vista a busca da emancipação

humana, a defesa dos direitos humanos e da classe trabalhadora, além do fortalecimento do

projeto ético-político profissional.

2. SISTEMA PENAL BRASILEIRO E SERVIÇO SOCIAL: algumas considerações

Para compreender, mesmo que sinteticamente, o sistema penal brasileiro na

atualidade e a trajetória de ex-presidiários no pós-cumprimento da pena é necessário

analisar aspectos importantes do contexto sócio-histórico do sistema punitivo no que tange a

questões econômicas e políticas mais gerais.

Entende-se que o aprisionamento sempre fez parte da trajetória histórica da

humanidade, porém o tratamento dispensado sobre os chamados “criminosos” foi adquirindo

diferentes configurações até chegar ao modelo atual de apreensão da pena privativa de

liberdade como grande invenção de controle social. Tal modelo tem sua criação a partir do

século XVII com a emersão da sociedade industrial e o consequente desenvolvimento da

sociedade capitalista2, em que as condições de pobreza e miséria se expandiam por todo o

continente Europeu.

Assim, os primeiros movimentos voltados para a privação de liberdade são

realizados na Holanda e Inglaterra com a criação das “House of Corretion” ou “Workhouses”,

modelos de prisões, que tinham por objetivo a reeducação dos “delinquentes” através da

disciplina e trabalho forçado. Ou seja, visavam tornar a população de “delinquentes”

2 De acordo com estudos que trabalham a evolução da privação de liberdade como pena, os fundamentos da

mudança da prisão-custódia para a prisão-pena se deu a partir da segunda metade do século XVII, quando a pena de morte passou a ser ineficiente frente aos aumentos de delitos. Ressalta-se que antes do referido século, a prisão era apenas um estabelecimento de custódia criado para que pessoas acusadas de crimes esperassem a sua sentença, bem como doentes mentais e pessoas privadas do convívio social por condutas identificadas como desviantes, a exemplo de moradores de rua (chamados de “mendigos”), prostitutas, entre outros.

socialmente úteis, regulando a sua utilização de acordo com as necessidades de valoração

do capital.

Segundo Julião,

o objetivo fundamental dessas instituições de trabalho, além de servir como meio de controle dos salários, reforçadas, especialmente no caso holandês, pela ideologia religiosa calvinista, era de que o trabalhador aprendesse a disciplina capitalista de produção. Serviam como instrumento de dominação, tanto no aspecto político como econômico e ideológico, impondo a hegemonia de uma classe sobre a outra, eliminando, consequentemente, toda possibilidade de surgir uma ação que ponha em perigo a homogeneidade do bloco de dominação socioeconômica (2012, p.44).

Dessa forma, a razão econômica foi um fator de grande importância na

transformação da pena privativa de liberdade e é somente a partir do século XVIII que esta

passa a ser reconhecida, de forma definitiva, à substituição da pena de morte. Além disso,

as casas de detenção e presídios dão origem, juntamente com a sua população carcerária,

ao que hoje chamamos de Sistema Penitenciário.

Mediante o que foi mencionado, entendemos que a burguesia teve o seu poder

legitimado à medida que o capitalismo tornou-se o modo de produção dominante, sendo as

relações sociais pautadas na desigualdade e contradições de classe. Tal desigualdade pode

ser evidenciada pela acumulação de riqueza e lucro por parte do capitalista e da pobreza

vivida pela classe trabalhadora.

Embora o modo de produção da sociedade capitalista neste período de transição

da prisão-custódia para prisão-pena estivesse pautado na livre concorrência das indústrias e

sua expansão comercial demonstrasse um importante desenvolvimento econômico, houve a

necessidade de conquistar novos espaços para investimento do capital e consumo, que

ultrapassassem a exportação de mercadorias. Com isso,

gradativamente, a fusão e a internacionalização de significativos setores produtivos e bancários deram origem aos grandes blocos capitalistas. Os trustes e os cartéis passaram a comandar a concorrência, expulsando do mercado os capitais pequenos, com o objetivo de controlar o mercado para o acréscimo do lucro – configuração de uma forma ampliada de concorrência, visando aos superlucros (FORTI, 2010, p. 49).

Para esta forma ampliada de concorrência definida por associações, dá-se o

nome de capitalismo monopolista. Segundo Netto (2007, p. 20), “a constituição da

organização monopólica obedeceu à urgência de viabilizar um objetivo primário: o

acréscimo dos lucros capitalistas através do controle dos mercados”.

Nesta etapa dos monopólios, o modo capitalista de produção encontra-se

organizado em níveis mundiais por meio da circulação de suas mercadorias em países

considerados periféricos e/ou pelo uso de força de trabalho e matéria-prima com preços

mais baixos. A utilização destas estratégias de valorização do capital e de geração de mais-

valia é realizada em beneficio dos países mais desenvolvidos e de uma lógica que cria

mecanismos para o aumento do consumo, principalmente dos produtos das indústrias de

bens de consumo.

Dando destaque ao papel do Estado, é perceptível que na etapa dos monopólios

o mesmo passa a assumir novos papéis, modificando as condições do mercado e

protegendo os indivíduos das suas consequências econômicas e sociais, pela via de

políticas sociais ou do chamado Estado de Bem-Estar Social (Welfare State). Há então uma

ampliação da legislação social como uma maneira de reprodução do modo de produção

vigente e de manutenção/controle dos trabalhadores.

Assim,

a necessidade de uma nova modalidade de intervenção do Estado decorre primariamente, como aludimos, da demanda que o capitalismo monopolista tem de um vetor extra-econômico para assegurar seus objetivos estritamente econômicos. O eixo da intervenção estatal na idade do monopólio é direcionado para garantir os superlucros dos monopólios – e, para tanto, como poder político e econômico, o Estado desempenha uma multiplicidade de funções (ibid., p. 25).

É na ampliação das políticas sociais que o Estado burguês foi legitimado, os

conflitos entre o capital e o trabalho “amenizados” e as expressões da questão social

passam a ser meio de intervenção mesmo com peculiares características de fragmentação.

Focalizando um período histórico mais a frente, nos cabe frisar que em meados

dos anos 1960, o período de expansão do capitalismo demonstra os seus primeiros sinais

de crise ou, de uma maneira mais geral, os anos entre 1965 e 1970 marcaram uma fase em

que o referido sistema produtivo não conseguiu mais os mesmos níveis anteriores da

reprodução do capital e, de certo modo, a intervenção por parte do Estado com gastos nas

políticas de cunho social passam a ser questionados.

Nesse sentido, a crise do Estado de Bem-Estar Social acaba alterando tanto a

esfera da produção, quanto da sociedade, surgindo então nos anos 1980 novas

experiências no modelo de produção pautadas na flexibilização do trabalho e no ideário

político-ideológico neoliberal, que traz uma nova forma de regulação do Estado. Dessa

forma, o neoliberalismo propõe entres outros aspectos,

um Estado forte para romper poder dos sindicatos e controlar a moeda e de outro lado, um Estado parco para os gastos sociais e regulamentações econômicas; forte disciplina orçamentária visando à contenção de gastos sociais e restauração de uma nova taxa natural de desemprego, com a recomposição do exército industrial de reserva; reforma fiscal diminuindo impostos para os rendimentos mais altos e o desmonte dos direitos sociais, implicando quebra da vinculação entre a política social e esses direitos, que compunha o pacto político anterior (BRISOLA, apud BERINHG, 2009, p.309).

Com essa crise os direitos trabalhistas são desregulamentados, as condições

de trabalho precarizadas e a força de trabalho, devido ao processo de globalização,

substituída pelas máquinas e tecnologia, aumentando assim o desemprego estrutural e o

exército industrial de reserva. Além disso, o Estado passa a intervir menos nas políticas

sociais e consequentemente a questão social (cf. Iamamoto, 2008) se agudiza, trazendo

como forma de controle das tensões, novamente, o aparato policial, o que segundo Madeira

(2008, p.81) não ocorria no Welfare State, pois “o crime e os demais fenômenos eram vistos

e tratados como problemas sociais”.

Mesmo não havendo um Estado de Bem-Estar Social no Brasil, muito menos

uma política de pleno emprego, o processo de reestruturação produtiva acarretou

modificações nos setores produtivos e de intervenção do Estado brasileiro na década 1990

através de diversas reformas contidas, especificamente, no Plano Diretor de Reforma do

Estado (PDRE).

Assim, apesar da constituição da garantia de direitos pela Carta Magna de 1988,

considerada como “Constituição Cidadã”, as políticas sociais e a estrutura econômica a

partir da ideologia neoliberal contida no PDRE trazem consequências sociais para a classe

trabalhadora, seja na combinação público-privada através dos estabelecimentos do Terceiro

Setor ou no aumento do desemprego e da precarização das condições de trabalho.

Com isso, a política criminal brasileira possui estreita relação com as medidas

sociais, porque o Estado Penal emerge como principal medida de manutenção da ordem

social pelas classes dominantes, em que a prática punitiva da população pauperizada e

“excluída” se torna uma constante e as medidas de privação de liberdade – encarceramento

– cada vez maior. Para Teixeira

A maneira neoliberal de se trabalhar as questões sociais é criminalizando-as, em um modelo de superlotação do sistema penitenciário e do aumento das penas. Enfim, são elaboradas legislações que expressam um desejo de vingança baseado no discurso da “lei e da ordem”. Sob a ótica da “proteção aos cidadãos de bem”, se oculta à impotência (ou a inoperância) dos governos em face de questões as quais eles não podem (ou não desejam) resolver, a não ser através da elaboração de uma falsa ideia de unidade diante de um inimigo interno, inimigo este selecionado entre os membros das classes sociais subalternas (2007, p. 36)

Nesta perspectiva, o Direito Penal brasileiro fundamenta-se em três legislações:

O Código Penal, o Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal (LEP) – criada no

ano de 1984 a partir de um tratado da ONU que estabelece regras mínimas para o

tratamento de sentenciados, sendo um dos seus fundamentos “a oferta de meios pelos

quais os apenados e os submetidos às medidas de segurança venham a ter participação

construtiva na comunhão social” (MADEIRA, apud Exposições de Motivos, Lei de

Execuções Penais, n.13). Todavia, a LEP mostra em sua estrutura o quão distante as

legislações formuladas estão da realidade penitenciária e social.

Portanto, a Lei de Execução Penal em seu artigo primeiro visa à integração

social dos condenados e demonstra no artigo décimo a preocupação por parte do Estado

com as medidas de assistência material, saúde, religiosa, jurídica, educacional e social a

estes, estendendo assim os direitos constitucionais aos presos, buscando-se então a

chamada “ressocialização” 3. Contudo, entende-se que “está na hora de se admitir que [...] a

tão proclamada ‘ressocialização’ do infrator não passa de uma impostura, ou, de

propaganda enganosa de um sistema de justiça criminal que foi idealizado para punir o

pobre, nada mais do que isso”. (TEIXEIRA, 2007, p.23)

As medidas de assistência também se estendem aos processos extramuros, ou

seja, a volta do apenado para o convivo na realidade social, quando o preso torna-se

egresso. Classifica-se por egresso (art. 26 da LEP) para efeito do programa de assistência,

o liberado definitivo pelo prazo de prova de um ano a contar da saída do estabelecimento e

o liberado condicional no período de prova.

Partindo de tais perspectivas, a assistência ao egresso possui por características

principais a orientação e apoio para reintegrá-lo à vida em liberdade e a colaboração pelo

serviço de assistência social para obtenção de trabalho.

Todos estes serviços são implementados pelos programas de apoio aos

egressos criados no Brasil a partir do ano de 1990, que ocorreu em conformidade com a

Campanha da Fraternidade desenvolvida em 1997 cujo lema era “A Fraternidade e os

Encarcerados”, além da liberação por parte do Ministério da Justiça nos anos 2000 de

financiamentos públicos para projetos de redução de violência (ibidem, p.94).

Entretanto, muitos dos programas criados para os egressos não são

efetivamente desenvolvidos pelos entes federativos, seja pela quantidade de presos ou pelo

caráter neoliberal de incentivo a criação de ONG’s, transferindo responsabilidades do

Estado – principalmente no âmbito social – para a iniciativa privada e sociedade civil.

Segundo o pensamento de Madeira (2008, p.148) percebe-se que estes

programas visam

à reinserção social de egressos, calcados no trabalho, na escolarização e na profissionalização como forma de retorno à sociedade. Esses programas focalizam egressos, visando à redução dos índices de reincidência, e têm uma certa efetividade, embora restrita, haja vista a pequena população abrangida, e as dificuldades de colocação no mercado de trabalho para esta parcela populacional.

Nesse sentido, entendemos que o Serviço Social tem sido uma das profissões

demandadas para executar esses programas e projetos, com ações voltadas para a

3 As correntes da criminologia positivista e crítica divergem quanto ao significado do termo “ressocialização”, em

que para os positivistas não interessa questionar as leis e a sociedade, e sim os indivíduos, considerados anormais. Já a criminologia crítica entende que a sociedade que deve ser transformada, e não o “delinquente” (TEIXEIRA, 2007, pp. 32-34).

inclusão dos ex-presidiários no mercado de trabalho, sua qualificação profissional, entre

outras. Isso porque o surgimento do Serviço Social está atrelado à sociedade burguesa, ao

referido período de acirramento das expressões da questão social na época dos

monopólios, ou seja, para pensar a emergência desta profissão se faz necessário

compreender o movimento pelo qual se engendra a reprodução das relações sociais que

peculiarizam a formação social do capitalismo (Iamamoto e Carvalho, 1982).

Compreende-se por reprodução das relações sociais na sociedade capitalista

a reprodução de um modo de vida e de trabalho que envolve o cotidiano da vida social. O processo de reprodução das relações sociais não se reduz, pois, à reprodução da força viva de trabalho e dos meios materiais de produção, ainda que os abarque. Ele refere-se à reprodução das forças produtivas sociais do trabalho e das relações de produção na sua globalidade, envolvendo sujeitos e suas lutas sociais, as relações de poder e os antagonismos de classe (IAMAMOTO, 2009, p.10)

Esta dinâmica aprofunda – como podemos perceber – os antagonismos de

classe e a miséria, tornando contraditórias as tentativas de encobrir a desigualdade, o que

suscita a intervenção de um profissional para atuar nas relações entre o trabalhador e o

empresariado, não só para o Estado regulamentar o mercado, mas para enfrentar e manter

o controle das pressões da classe trabalhadora. Vale destacar que a requisição da

intervenção dos assistentes sociais é realizada pela classe dominante para implementar e

executar as políticas sociais criadas pelo Estado.

Destaca-se que a profissão de Serviço Social no Brasil também correspondeu a

determinados mecanismos de controle do capital, sendo suas atividades desenvolvidas para

o “ajustamento” de situações identificadas como problemas, em que a resolutividade

encontrava-se no tratamento da “deficiência” do indivíduo e não em uma perspectiva de

análise da estrutura social. Somente no período em que ocorreu o denominado Movimento

de Renovação na profissão, mais especificamente na vertente de intenção de ruptura, que

esta forma de compreensão da realidade irá se modificar e os assistentes sociais, inclusive

os que trabalham no âmbito da execução penal, buscarão entender os determinantes que

influenciam a realidade social a partir de uma reflexão crítica, visando o fortalecimento da

classe trabalhadora.

Por isso, salientamos que é importante refletir sobre a complexidade que

atravessa o exercício profissional no campo da execução penal, imbricado de muitas

contradições que demandam desafios éticos aos profissionais.

3. O PROJETO “AGÊNCIA DA CIDADANIA”: a assistência prestada aos egressos do sistema penitenciário

Criada no ano de 2009 por meio de um setor denominado “Serviço Social do

Egresso”, a Agência da Cidadania do Banco da Providência é um dos projetos

desenvolvidos pela instituição visando atender às pessoas que passaram pelo sistema

prisional ou que ainda estejam cumprindo algum tipo de medida restritiva de liberdade. Sua

implementação se deu como uma forma de continuar atendendo às demandas espontâneas

dessa população estigmatizada, buscando prestar uma assistência fora das ações

complementares à Pastoral Carcerária.

O Serviço Social da Agência da Cidadania presta assistência aos egressos no

seu exercício profissional, através de diferentes ações profissionais, procedimentos e

instrumentos que permeiam o atendimento direto ou coletivo ao usuário dos serviços,

embora a principal atividade desenvolvida e que expressa a dimensão técnico-operativa

nesse espaço ocupacional seja o Curso de Preparação para o Mundo do Trabalho. Segundo

Guerra (2012, p. 40),

a dimensão técnico-operativa é a forma de aparecer da profissão, pela qual é conhecida e reconhecida. Dela emana a imagem social da profissão e sua autoimagem. Ela encontra-se carregada de representações sociais e da cultura profissional. É a dimensão que dá visibilidade social à profissão, já que dela depende a resolutividade da situação, que, às vezes, é mera reprodução do instituído, e em outras constitui a dimensão do novo. Não é supérfluo lembrar que a dimensão técnico-operativa vela a dimensão político-ideológica da profissão, como aquela pela qual o Serviço Social atua na reprodução ideológica da sociedade burguesa ou na construção da contra-hegemonia.

Ou seja, o Curso de Preparação para o Mundo do Trabalho é a maneira como o

Serviço Social do projeto Agência da Cidadania intervém na questão social e expõe seu

posicionamento político e teórico. Sendo assim, este curso de formação possui uma

metodologia direcionada para as questões voltadas para a identidade pessoal e coletiva,

direitos e deveres, trabalho formal e informal, cidadania e inserção social e dependência

química. E esta metodologia pauta-se na denominada “Metodologia de Inclusão Social” que

possui quatro eixos principais:

1. Identificação de potencialidades e vocações, alterando os paradigmas que

têm garantido a perpetuação da pobreza;

2. Formação e qualificação profissional, através da cultura do

empreendedorismo, estímulo ao associativismo e à solidariedade;

3. Inserção no mundo do trabalho, aumento da renda familiar;

4. Capacitação de lideranças comunitárias como bases de apoio ao

desenvolvimento local. Com esta rede o Banco da Providência vida criar

condições de mapear as instituições locais e atender de forma articulada as

demandas das famílias.

Além de ser composta por três dimensões que são: desenvolvimento humano,

capacitação para o trabalho e geração de trabalho e renda. Seguindo esta lógica, a primeira

etapa do curso consiste na matrícula através de entrevista e preenchimento da ficha social

dos alunos que chegam encaminhados pelo Patronato Magarino Torres (instituição da

Secretaria de Administração Penitenciária – SEAP), de indicação de ex-participantes do

curso ou usuários e de outras instituições que trabalham com egressos do sistema prisional

ou apenados, como as instituições que compõem a Rede de Apoio ao Egresso do Sistema

Prisional.

Logo, essa primeira etapa do curso e da metodologia possuem uma dimensão

de caráter individual e coletiva. Individual porque o cadastro dos interessados inicia-se a

partir da mobilização dos egressos e uma entrevista para a matrícula nas Unidades do

Sistema Prisional que concedem Termos de Liberdade Provisória e Assistida,

principalmente o Patronato Magarinos Torres. E coletiva devido à primeira etapa do curso

ser feita a partir de encontros de grupo. Assim, “os procedimentos de caráter coletivo, os

grupais, são aqueles que envolvem o atendimento dos usuários em agrupamentos

organizados pelos assistentes sociais, geralmente tomando como critério a existência de

situações comuns” (TRINDADE, 2012, p. 87).

Cabe destacar que na etapa de mobilização dos participantes é feita uma

apresentação do projeto e do curso, tentando sensibilizar e mostrar a importância da

qualificação profissional no processo de “reinserção social” através do mercado de trabalho,

sendo estabelecido pela Instituição como meta a matrícula de 100 (cem) egressos durante o

ano, oferecendo 4 (quatro) turmas de preparação. O que nos remete as reflexões de Guerra,

pois a maneira como a ação profissional é realizada demonstra que

a dinâmica, as requisições e as condições objetivas sobre as quais a intervenção se realiza não são as mais adequadas à reflexão, a partir do que muitos profissionais se limitam a apenas realizar suas tarefas. [...] o cotidiano profissional também não facilita a percepção das demais dimensões da profissão. Tudo se passa como se o exercício profissional fosse isento de teoria, de uma racionalidade, da necessidade de se indagar sobre a realidade, de valores éticos e de uma direção política e social (2012, p.46).

O processo de trabalho do assistente social da Agência da Cidadania também

está subdividido em atendimentos individuais e em grupo, onde recebe e realiza

encaminhamentos para outras Instituições, participa de reuniões da Rede de Apoio ao

Egresso do Sistema Penitenciário e ministra as aulas do Curso de Preparação para o

Mundo do Trabalho, citado anteriormente. Além disso, inclui-se a supervisão dos estagiários

e as reuniões de planejamento com a gerente social (a quem seu trabalho está diretamente

subordinado).

Neste sentido, outro principal serviço oferecido pela equipe do Serviço Social é o

atendimento aos sujeitos que chegam até a Instituição por meio de encaminhamentos ou

demanda espontânea, no chamado “Plantão Social”. O “Plantão Social” é uma das

atividades mais emblemáticas da categoria profissional, principalmente no Banco da

Providência, pela sua dinâmica de atendimento de demandas mais imediatas, tais como:

recursos materiais para passagem, retirada de fotografia para carteira do regime condicional

e alimentação, falta de documentação, busca de orientações/informações sobre benefícios

concedidos pelo governo - a exemplo do Programa Bolsa-Família -, e o curso de

capacitação que é oferecido pelo projeto.

Nesse tipo de intervenção nem sempre o assistente social encontra-se atento

para a reflexão da realidade do sujeito, sendo levado pelo imediatismo do cotidiano, na

prioridade de dar respostas as demandas de forma rápida, pautada em analogias de outras

situações atendidas e sem uma qualificação teórica. Ademais, a superficialidade da ação

desenvolvida não considera as suas implicações éticas e políticas. Cabe destacarmos que é

imprescindível que a dimensão técnico-operativa esteja atrelada às demais dimensões

profissionais, isto é, as dimensões ético-político e teórico-metodológica que orientam a ação

profissional como:

art. 4º Constituem competências do Assistente Social: III - encaminhar providências, e prestar orientação social a indivíduos, grupos e à população; [...] V - orientar indivíduos e grupos de diferentes segmentos sociais no sentido de identificar recursos e de fazer uso dos mesmos no atendimento e na defesa de seus direitos (Lei nº 8662, 1993).

Diante do exposto cabe refletirmos sobre o que explicita a professora Yolanda

Guerra:

o padrão atual de políticas sociais privatista, mercantilista e assistencialista, que fragmenta, segmenta e setoriza as necessidades e categorias sociais, predispõe um tipo de intervenção: pontual, focalizada, imediata, burocrática, mimética, repetitiva, pragmática e eminentemente instrumental, exigindo pouca qualificação para responder as demandas imediatas, condicionando o exercício profissional às características e dinâmica do cotidiano e se limitando a ele (GUERRA, 2012, p. 53).

Por isso, identificamos que não é possível nas ações do Serviço Social um

atendimento “neutralizado”, ou seja, as ações dos assistentes sociais têm finalidades que

exigem a elaboração do melhor procedimento a ser utilizado, considerando consequências

éticas e fundamentos teóricos. Assim, pautando-se no projeto ético-político considerado

hegemônico, o exercício profissional estará direcionado para a busca de reflexão crítica

sobre a questão social, em uma perspectiva de totalidade, de acordo com os valores

sintonizados com os interesses da classe trabalhadora. O que nos remete a alguns

questionamentos sobre a “metodologia de inclusão social” utilizada no trabalho do Serviço

Social do projeto “Agência da Cidadania”, que tentaremos esclarecer no capítulo seguinte.

4. CONCLUSÃO

Para analisarmos as ações desenvolvidas pelo assistente social junto aos

egressos do sistema penitenciário buscamos verificar se as ações desenvolvidas pelo

Banco da Providência possuem um caráter imediatista, rotineiro e bucratizado, demandando

dos assistentes sociais uma atuação conservadora e irrefletida.

O que captamos por meio do presente estudo foi que as ações profissionais

desenvolvidas pela assistente social revelam traços conservadores da profissão, em que

parece que se revive o passado profissional. E, contraditoriamente, há momentos que

percebemos a busca de uma ação voltada para a perspectiva da garantia dos direitos

sociais, aprimoramento intelectual e rompimento com o conservadorismo, tendo em vista as

demandas institucionais na denominada “metodologia de inclusão social”.

Sabemos que o assistente social pode vislumbrar novas possibilidades de

trabalho e estratégias no rompimento de práticas repetitivas e rotineiras, sem reproduzir

em seu exercício profissional meros interesses capitalistas, tendo para isso que buscar

superar os elementos do cotidiano, ou melhor, o senso comum, a aparência dos fenômenos,

através da crítica à realidade social e ao âmbito sócio-ocupacional em que se encontra e,

assim, pautando-se nos Princípios Fundamentais do Código de Ética e do Projeto Ético-

Político.

Por outro lado, não podemos deixar de sinalizar que mesmo tendo os limites e

problemáticas já citados, o trabalho realizado pelo Serviço Social da Agência da Cidadania

possui um impacto, mesmo que mínimo, na vida dos egressos do sistema penitenciário

atendidos. Isso porque a Agência da Cidadania é um dos poucos projetos desenvolvidos

hoje no estado do Rio de Janeiro para esta população que sofre com os estigmas do

preconceito de já ter vivenciado o cárcere, cometerem o delito, além de serem pobres e

negros, na sua maioria. Contudo, ressaltamos que, a partir da perspectiva crítica, não é

possível o assistente social trabalhar com os objetivos de “reinserção” ou “ressocialização”,

pois a lógica do capitalismo é incompatível com os mesmo ao assegurar os mecanismos de

desigualdade social.

REFERÊNCIAS

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