Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a...

420
1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM SERVIÇO SOCIAL RENATO FRANCISCO DOS SANTOS PAULA Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista (im)possibilidades neodesenvolvimentistas e projeto profissional DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL SÃO PAULO 2013

Transcript of Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a...

Page 1: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

1

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM SERVIÇO SOCIAL

RENATO FRANCISCO DOS SANTOS PAULA

Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista

(im)possibilidades neodesenvolvimentistas e projeto profissional

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

SÃO PAULO

2013

Page 2: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

2

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM SERVIÇO SOCIAL

Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista

(im)possibilidades neodesenvolvimentistas e projeto profissional

RENATO FRANCISCO DOS SANTOS PAULA

SÃO PAULO

2013

Page 3: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

3

Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista

(im)possibilidades neodesenvolvimentistas e projeto profissional

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para obtenção do título de

Doutor em Serviço Social sob a orientação da

Professora Drª Maria Carmelita Yazbek.

São Paulo

2013

Page 4: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

4

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________

Profª Drª Maria Carmelita Yazbek (Orientadora)

_______________________________________________________

Profª Drª Raquel Raichelis Degenszajn (PUC-SP)

_______________________________________________________

Profª Drª Maria Lúcia Martinelli (PUC-SP)

_______________________________________________________

Profª Drª Potyara Amazoneida Pereira Pereira (UnB-DF)

_______________________________________________________

Profª Drª Berenice Rojas Couto (PUC-RS)

_______________________________________________________

Profª Drª Rosângela Dias de Oliveira da Paz (Suplente) (PUC-SP)

_______________________________________________________

Profª Drª Maria Luiza do Amaral Rizzotti (Suplente) (UEL-PR)

Page 5: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

5

AGRADECIMENTOS

O ciclo que se inicia e se encerra com a conclusão da tese e a sua defesa é, sem dúvida, um dos

marcos mais significativos na vida de qualquer pesquisador.

Atividade solitária, como se diz de modo corrente no meio acadêmico, é, ao mesmo tempo,

resultado de um “coletivismo” que se constrói ao longo de uma trajetória que extrapola os

“anos” formalmente estabelecidos para o exercício da atividade. É por isso que estas páginas de

agradecimentos são tão fundamentais quanto a própria tese. Todas as interações e interlocuções

realizadas ao longo de uma vida profissional e acadêmica se fazem aqui presentes, objetiva ou

subjetivamente, logo, as páginas destinadas a lembrá-las são sempre insuficientes, nos

obrigando a fazer escolhas justas, contudo, sempre incompletas.

O caminho que escolhi para isso foi tratar a nominata a partir das relações que se estabeleceram

de modo mais direto ao objeto e processamento da tese. Assim, destaco em primeiro lugar a

(re)acolhida que me foi dispensada no Programa de Estudos Pós-graduados em Serviço Social

da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) que, desde o Mestrado que conclui

nessa mesma casa, me foi um espaço da mais competente interlocução para a produção de saber

aliada à consolidação de relações de cumplicidade e muito fraternas que tornaram a árdua busca

de conhecimento racional/científico mais leve e prazerosa. Portanto, a todos os professores,

trabalhadores e colegas do PEPGSS-PUC-SP meu sincero muito obrigado.

O Serviço Social da PUC-SP (graduação e pós-graduação) tem a importância, de todos nós

conhecida e reconhecida, para o Serviço Social brasileiro não apenas por ter sido o nosso

primeiro lócus de formação profissional, mas por abarcar e ter abarcado parte significativa dos

nossos quadros pensantes mais ativos com suas produções “arrasadoras”. Nesse contexto, o

privilégio de ter convivido, ainda que pelas horas restritas às atividades acadêmicas, com os

mestres José Paulo Netto e Evaldo Vieira, fez as minhas buscas muito mais amplas e rigorosas,

tendo este último se tornado, além de uma fonte de inspiração, um amigo dileto que não se

furtou aos meus apelos e se dedicou à leitura dos meus alfarrábios; a tese em forma primitiva.

Ao mestre e amigo Evaldo Vieira compartilho que esta tese também é uma tentativa de

responder à altura da qualidade de sua interlocução.

Em um lugar não menos destacado, a responsabilidade de responder às expectativas da

interlocução de qualidade também se estende à rica orientação de Maria Carmelita Yazbek.

Como disse a poetisa, “feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina”1, pois não

se trata aqui de uma relação formal de orientador/orientando, mas sim de uma forma simbiótica

peculiar de tratar o conhecimento onde o respeito unido à admiração recíproca foram seus fios

condutores.

1 Cora Coralina.

Page 6: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

6

Outra relação intelectiva/afetiva deu-se com as mestres e amigas Raquel Raichelis e Rosangela

Paz, cujas presenças foram imprescindíveis para que eu nunca pensasse em desistir da

caminhada. A primeira, junto com minha orientadora e a querida Maria Lúcia Martinelli, deu ao

trabalho os rumos que ele deveria tomar com suas argutas e generosas considerações no rito da

qualificação. Meus agradecimentos dão-se na forma das ininterruptas produções que daqui

prosseguem na esteira de seus exemplos.

Ao professor Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida, cujo “marxismo impenitente” foi essencial

para que eu pudesse incorporar com segurança categorias e rumos analíticos por vezes

marginalizados no mundo acadêmico de orientação marxiana e marxista.

Aos professores Marco Aurélio Nogueira e Luís Filgueiras, pelo diálogo que se transformou em

contribuição aos meus estudos.

Aos companheiros de caminhada, amigos e colegas, professores Wanderson Fábio de Melo e

Eduardo Benzatti do Carmo, que também dispensaram parte de seu precioso tempo para ler e

opinar sobre os originais, melhorando em muito o que eu poderia fazer.

Aos companheiros do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e do

Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) que compartilharam dessa jornada,

compreendendo sua importância e com isso aliviando as tensões do nosso exercício profissional

nesses espaços.

Aos(Às) companheiros(as) assistentes sociais que, no primeiro desenho da pesquisa, se

dispuseram a participar dos grupos focais. Embora a pesquisa tenha amadurecido para outros

rumos, as ricas contribuições e seus depoimentos foram fundamentais para que o estudo se

concretizasse.

Aos colegas professores, trabalhadores e alunos da Faculdade Projeção de Ceilândia, do Curso

de Serviço Social, incentivadores, portanto, cúmplices do começo e, aos colegas professores,

trabalhadores e alunos da Universidade Federal de Goiás, cúmplices do final disso tudo.

Aos mestres que, generosamente, aceitaram compor a banca de arguição desta tese em meio a

tantas atribuições que se lhes exige o cotidiano.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pelo apoio na

realização do doutorado e da tese.

A todos vocês citados e aos não citados, meu muito obrigado.

Page 7: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

7

RESUMO

PAULA, Renato Francisco dos Santos. Serviço social, estado e desenvolvimento capitalista:

(im)possibilidades neodesenvolvimentistas e projeto profissional. 420p. Tese (Doutorado em Serviço

Social)- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2013.

A presente tese tem como objeto de estudo as particularidades dos projetos desenvolvimentistas

contidos na história da evolução do capitalismo brasileiro e suas implicações para o Serviço

Social e seus projetos profissionais. Sob a orientação da “economia política” como método,

parte do pressuposto de que as relações estabelecidas entre o Estado e as classes sociais são o

núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como

profissão partícipe da divisão social e técnica do trabalho no capitalismo de tipo monopolista.

Desta forma, resgata a evolução do debate sócio-histórico sobre o Estado tanto como categoria

de análise crítica quanto como “instrumento” de concreção dos interesses de classe por meio do

cotejamento aos clássicos da ciência política, dos pensamentos sociológico e econômico

universais. Presta-se à análise desses mesmos campos de conhecimento, em sua versão

brasileira, para, com isso, induzir a uma perspectiva totalizante que arrola os elementos gerais,

particulares e singulares do fenômeno considerado. Trata dos projetos desenvolvimentistas

como “momentos de síntese” do processo de evolução do capitalismo nacional com destaque

especial para o ciclo atual de acumulação em que se trava um debate sobre a existência ou não

de um projeto neodesenvolvimentista, cujos desdobramentos rebatem tanto na reconfiguração

do mercado particular de trabalho do Serviço Social, quanto nas suas formas de produzir

conhecimento, análises da realidade e orientações ético-políticas relacionadas à sua luta

antissistêmica cotidiana.

Palavras-Chave: Estado. Desenvolvimento Capitalista. Serviço Social.

Neodesenvolvimentismo.

Page 8: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

8

ABSTRACT

PAULA, Renato Francisco dos Santos. Serviço social, estado e desenvolvimento capitalista:

(im)possibilidades neodesenvolvimentistas e projeto profissional. 420p. Tese (Doutorado em Serviço

Social)- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2013.

The current thesis has as object of study the particularities of those developmentalist projects,

present in the history of the evolution of Brazilian capitalism as well as its implications in

Social Work and its professional projects. Under the lights of the ‘political economy’ as a

method, it departs from the assumption that the relationships established between State and the

social classes are the hard core through which circulate the legitimacy and the social orientation

of Social Work as a participating profession of the social and technical division of monopolist

capitalism. That way, it recovers the evolution of the socio-historical debate on State not only as

a category of critical analysis but also as an ‘instrument’ that makes concrete the class interests

through the collation to the Political Science canon as well as to the sociological and economic

thoughts taken as universal. It also lends itself to the analysis of such fields of knowledge in its

Brazilian version in order to induce to a totalizing perspective that does not abstain from listing

the general and particular elements of the phenomenon in question. It regards the

developmentalist projects as ‘moments of synthesis’ of the evolutionary process of the national

capitalism with special emphasis on the current cycle of accumulation in which there is a debate

on the existence or not of a neo-developmentalist project whose deployments hold in check the

reconfiguration of the private job market of Social Work as well as its ways of producing

knowledge, analysis of the reality and ethical-political orientations, in its daily anti-systemic

struggle.

Key Words: State. Capitalist Development. Social Work. Neo-developmentalism.

Page 9: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

9

RÉSUMÉ

PAULA, Renato Francisco dos Santos. Serviço social, estado e desenvolvimento capitalista:

(im)possibilidades neodesenvolvimentistas e projeto profissional. 420p. Tese (Doutorado em Serviço

Social)- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2013.

Cette thèse a comme objet d’étude les particularités des projets développementalistes présents

dans l’histoire de l’évolution du capitalisme brésilien et ses implications pour le Service Social

et ses projets professionels. Sous l’orientation de “l’économie politique” comme méthode, cela

part de l’hypothèse que les rélations établies entre l’État et les classes sociales sont le noyau dur

par où circulent la légitimité et l’orientation sociale du Service Social en tant que profession

participante de la division sociale et technique du travail dans le capitalisme monopoliste. Ainsi,

cela délivre l’évolution du débat sociohistorique en tant que catégorie d’analyse critique et aussi

en tant qu’instrument de concrétisation des intérêts de classe à travers le rapprochement aux

classiques des Sciences Politiques, des pensées sociologique et économique universelles. Cela

se prête à l’analyse de ces champs de connaissance dans sa vérsion brésilienne afin d’induire à

une perspective totalisante qui ne se abstient pas d’enrouler les éléments généraux, particuliers

et singuliers du phenomène en question. Cella s’occupe des projets développementalistes en tant

que “moments de synthèse” du processus d’évolution du capitalisme national, notamment en ce

qui concerne le cycle actuel d’accumulation où il y a un débat à propos de l’existence ou pas

d’un projet néo-développementaliste dont les dédoublements rebattent dans la reconfiguration

du marché particulier de travail du Service Social et aussi dans ses manières de produire

connaissance, analyses de la réalité et orientations étiques politiques à sa lutte anti-systémique

quotidienne.

Mots-clés: État. Développement Capitaliste. Service Social. Néo-développementalisme.

Page 10: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

10

LISTA DE QUADROS E FIGURAS

Quadro 1 – Trajetória intelectual de Nicos Poulantzas (o conceito de Estado capitalista) 109

Quadro 2 – Os 20 maiores grupos econômicos no Brasil, em receitas totais e áreas de

atuação de suas controladas (2009) 283

Quadro 3 – Tendências predominantes no debate profissional sobre “Estado” e temas afins 342

Figura 1 – Dupla estratégia da campanha OIT para estender a cobertura da Seguridade Social –

Cobertura de Benefícios 297

Page 11: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

11

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Taxas anuais de crescimento econômico – Brasil – 1920 a 1945 188

Tabela 2 - PEA versus PNB/ano – Brasil – 1976 a 1978 203

Tabela 3 - Apropriação da riqueza – Brasil - 1981, 1990, 1999 208

Tabela 4 - Despesas do governo central (% do total) - Brasil - 1994 a 2010 262

Tabela 5 - Participação da indústria no emprego (% do total) 273

Tabela 6 – Donos últimos que exibiram maiores ganhos de centralidade na

Reconfiguração das teias societárias entre 1996 e 2009 281

Tabela 7 – Programas apoiados pelo FMI na Europa 382

Tabela 8 – Cooperação oferecida pelo Brasil 2005-2009 383

Tabela 9 – Contribuição para organismos multilaterais 383

Page 12: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

12

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - Balanço de ACs julgados versus distribuídos no Cade com tempo médio –

2000 a 2011 240

Gráfico 2 - Tempo médio de tramitação dos ACs no SBDC (em dias) – 2005 a 2011 240

Gráfico 3 - Composição e crescimento do estoque financeiro global (em trilhões

de dólares%) 246

Gráfico 4 - Estoques da dívida externa (em % do RNB) – América Latina e Caribe,

e Brasil - de 1980 a 2010 250

Gráfico 5 - Serviço da dívida (capital + pagamento de juros) – Brics – 1995 a 2010

(em bilhões de dólares) 251

Gráfico 6 - Serviço da dívida total (% das exportações de bens, serviços e renda) –

Brics – 1995 a 2010 251

Gráfico 7 - O investimento estrangeiro direto nas regiões emergentes – 1990-2005

(em %) 252

Gráfico 8 - Ingressos líquidos de investimento estrangeiro direto

(em bilhões de dólares) 253

Gráfico 9 - PIB per capita (US$ atualizados) – Brasil - 1995 a 2011 256

Gráfico 10 - PIB na cotação atual do dólar – Brics – 1995 a 2011

(em bilhões e trilhões de dólares) 257

Gráfico 11 - Inflação (%) – Preço para o consumidor – Brasil - 1995 a 2011 258

Gráfico 12 - Inflação (%) – Preço para o consumidor – Brics, América Latina e

Caribe - 1995 a 2011 259

Gráfico 13 - Taxa de juros Selic acumulada anual e média mensal – Brasil –

1995 a 2012 260

Gráfico 14 - Dívida Interna (R$) – Brasil - 1994 a 2010 (em trilhões de real) 261

Gráfico 15 - Credores da dívida interna (%) – Brasil - abril de 2010 261

Gráfico 16 - Participação da indústria de transformação no PIB - Brasil,

economias desenvolvidas e economias em desenvolvimento no ano 2000 271

Gráfico 17 - PIB e subsetores (com ajuste sazonal) - Taxa (%) do primeiro

trimestre de 2012 em relação ao trimestre imediatamente anterior 272

Gráfico 18 - Valor adicionado real – PIB, agropecuária, mineração e

indústria de transformação: 2002-10 (índice 2002 – 100) – Brasil 274

Gráfico 19 - Dessubstituição de importações, indicadores: 1995 – 2002

Page 13: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

13

(média móvel 4 anos) – Brasil 274

Gráfico 20 - Participação no valor das exportações, segundo o fator

agregado: 2002-10 (%, média móvel 4 anos) – Brasil 275

Gráfico 21 - Dependência tecnológica: 1996-2010 (%) – calculado com

US$, valores constantes em 2010 – Brasil 276

Gráfico 22 – Trajetória do Gasto Social Federal – 1995 a 2010 291

Gráfico 23 – Taxas de Crescimento Real do Gasto Social Federal e do PIB,

1995 a 2010 293

Gráfico 24 – Taxas de Crescimento Real do Gasto Social Federal e do PIB,

1995 a 2009 293

Page 14: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

14

LISTA DE SIGLAS

ABEPSS – Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social

Ambev – Companhia de Bebidas das Américas

ANAS – Associação Nacional de Assistentes Sociais

BC – Banco Central

BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento

Bird – Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento

BM – Banco Mundial

BNDES – Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social

BNH – Banco Nacional de Habitação

BPC – Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social

Bric – Brasil, Rússia, Índia e China (países em desenvolvimento)

Cade – Conselho Administrativo de Defesa Econômica

CEB – Comunidade Eclesial de Base

Cepal – Comissão Econômica para América Latina e Caribe

CEF – Caixa Econômica Federal

CFESS – Conselho Federal de Serviço Social

CLT – Consolidação das Leis do Trabalho

CRAS – Centro de Referência de Assistência Social

CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência Social

DC – Desenvolvimento de Comunidade

DOC – Desenvolvimento e Organização de Comunidade

DEM – Democratas (partido político)

DRU – Desvinculação de Receitas da União

Eletrobras – Centrais Elétricas Brasileiras S.A.

EI – Empreendedor Individual

FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador

FGTS – Fundo de Garantia do Tempo de Serviço

FHC – Fernando Henrique Cardoso

Fiesp – Federação das Indústrias do Estado de São Paulo

FMI – Fundo Monetário Internacional

Geia – Grupo Executivo da Indústria Automobilística

GSF – Gasto Social Federal

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IED – Investimento Estrangeiro Direto

Page 15: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

15

Ipea – Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas

Iseb – Instituto Superior de Estudos Brasileiros

JK – Juscelino Kubistchek

LBA – Legião Brasileira de Assistência

MDIC – Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio

MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome

MP – Medida Provisória

OMC – Organização Mundial do Comércio

OIT – Organização Internacional do Trabalho

ONU – Organização das Nações Unidas

PAC – Programa de Aceleração do Crescimento

Paeg – Programa de Ação Econômica do Governo Castelo Branco

PASEP – Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público

PBF – Programa Bolsa Família

PCB – Partido Comunista Brasileiro

PCUS – Partido Comunista da União Soviética

PDS – Partido Democrático Social

PEA – População Economicamente Ativa

PEP – Projeto Ético-Político-Profissional

Petrobras – Companhia de Petróleo Brasileiro S.A.

PIB – Produto Interno Bruto

PIS – Programa de Integração Social

PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro

PNB – Produto Nacional Bruto

PND – Plano Nacional de Desenvolvimento

PNDH – Plano Nacional de Direitos Humanos

Pnud – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

PP – Partido Progressista

Protec – Sociedade Brasileira Pró-Inovação Tecnológica

PRR – Partido Republicano Rio-Grandense

PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira

Psol – Partido do Socialismo e Liberdade

PSTU – Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados

PT – Partido dos Trabalhadores

PTB – Partido Trabalhista Brasileiro

PUC – Pontifícia Universidade Católica

RNB – Renda Nacional Bruta

Page 16: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

16

SDBC – Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência

SESC – Serviço Social do Comércio

SESI – Serviço Social da Indústria

SENAC – Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial

SENAI – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial

SPVEA - Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia

Sudam – Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia

Sudene – Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste

SUS – Sistema Único de Saúde

SUAS – Sistema Único de Assistência Social

UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro

UNESCO – Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura

Unicamp – Universidade de Campinas

Unctad – Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento

URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

URV – Unidade Real de Valor

Page 17: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

17

SUMÁRIO

NOTAS INTRODUTÓRIAS 20

Capítulo I

ESTADO E RAZÃO MODERNA 52

1.1 A problemática do Estado 61

1.2 Problematizações mais visitadas: exemplos de evolução do pensamento sobre

o Estado 64

1.2.1 De Maquiavel a Hegel 67

1.2.2 Marx e os marxistas 78

1.2.3 A tradição liberal 129

Capítulo II

DESENVOLVIMENTO E CAPITALISMO: ESBOÇO DE INTERPRETAÇÃO

HISTÓRICA 156

2.1 Estado e desenvolvimento 162

2.1.1 Desenvolvimentismo no Brasil 165

2.1.2 Momentos de síntese da acumulação capitalista: o desenvolvimentismo

brasileiro 170

2.1.2.1 Expressões inaugurais: protoformas 171

2.1.2.2 A crise do café 185

2.1.2.3 A Era Vargas 187

2.1.2.4 O Plano de Metas de Juscelino Kubistchek 194

2.1.2.5 O desenvolvimentismo autocrático burguês 199

2.1.3 Um interlúdio para a redemocratização: protoformas do ajuste neoliberal 202

2.1.3.1 O Plano Cruzado (1986) 203

2.1.3.2 O Plano Bresser (1987) 206

2.1.3.3 O Plano Verão (1989) 206

2.1.3.4 Os Planos Collor I e II (1990 – 1991) 206

2.1.3.5 O Plano Real (1994) 209

Page 18: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

18

Capítulo III

CONTINUIDADE E RUPTURA: NOVO-DESENVOLVIMENTISMO OU

NEOLIBERALISMO À BRASILEIRA? 212

3.1 Modo de produção, expropriação e fluxos do capital 224

3.2 Acumulação, fetichismo e a crítica marxista ao desenvolvimento 234

3.3 Dependência (Sistema de Reciprocidades) e a nova roupagem do neoliberalismo 244

3.3.1 Continuidade e ruptura: novo-desenvolvimentismo ou neoliberalismo

à brasileira? 255

3.3.1.1 Primeira fase do novo ciclo: fase contrarreformista 256

3.3.1.2 Segunda fase do novo ciclo: fase de consolidação do

neoliberalismo à brasileira 263

3.4 A Política Social do neoliberalismo à brasileira: fugindo às injunções lineares 285

Capítulo IV

SERVIÇO SOCIAL NAS TRAMAS DO NEOLIBERALISMO À BRASILEIRA:

PASSADO, PRESENTE E FUTUTO 304

4.1 Das origens às tentativas de ressignificação 306

4.2 Construções pós-intenção de ruptura 325

4.2.1 Análises críticas sobre a reestruturação produtiva e a recomposição

do pensamento liberal 343

4.2.2 Análises críticas sobre a contrarreforma 358

4.2.3 Análises críticas sobre o terceiro setor 360

4.2.4 Análises críticas sobre a assistência e a proteção social 363

4.3 Neodesenvolvimentismo (?) e o projeto profissional: ameaça ou possibilidade? 368

À GUISA DE CONCLUSÃO 400

REFERÊNCIAS 407

Page 19: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

19

O correr da vida embrulha tudo.

A vida é assim: esquenta e esfria,

aperta e daí afrouxa,

sossega e depois desinquieta.

O que ela quer da gente é coragem.

João Guimarães Rosa

Page 20: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

20

NOTAS INTRODUTÓRIAS

Para algumas pessoas, as tarefas aparentemente mais simples tornam-se as mais

complexas quando têm de ser colocadas em prática. Os produtos acadêmicos, quase sempre,

costumam sofrer desse mal. O batismo de uma tese — no caso a finalização com seu título — é

um exercício tão descontraído quanto complexo. O produto que ora apresentamos para ser posto

em análise pelo Programa de Estudos Pós-graduados em Serviço Social da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo (PEPGSS-PUC-SP), como síntese de um curso de

doutorado, não se furtou a tal dualidade. Seu título não é autoexplicativo, porém, amplamente

sugestivo.

Antes de refletir o conteúdo da tese, o título anuncia — ao menos no campo das

expectativas de seu autor — a articulação entre categorias científicas, de um lado, relativamente

desgastadas no campo das ciências sociais e humanas por serem recalcitrantes, pois fundantes

da área chamada humanidades e, por outro, componentes categoriais insuficientemente tratados

no âmbito do Serviço Social brasileiro e menos ainda como manifestações, para além de

fenomênicas, em relação ininterrupta. O comum é encontrarmos abordagens que isolam esses

elementos ou quando os articulam entre si não os agregam a outras categorias de maior

amplitude, e, na maioria das vezes, são tratados de modo apenas descritivo ou apenas ensaístico.

A escolha dessa aventura consequente deu-se com plena consciência de sua

complexidade, suas dificuldades, seus limites, mas também com consciência de suas

possibilidades e do flanco teórico, metodológico e político que se abre como contribuição aos

debates interno e externo à categoria profissional dos assistentes sociais brasileiros. Ambos os

motivos foram mais estimuladores que temerários.

Serviço Social, Estado, desenvolvimentismo, capitalismo e projeto profissional

costumam frequentar a produção sociológica do tempo presente em cotejamento histórico com o

que há de clássico e tradicional no tempo passado. Não se explicam por si. Devem mesmo

associar-se internamente e a outras categorias, como modo de produção, sociedade, classes

sociais, questão social, políticas públicas, etc. e fazer valer-se de recursos epistemológicos da

História, da Economia Política e da Economia, da Ciência Política e da Filosofia Política, do

Direito, da Filosofia, da Sociologia, da Antropologia, da Psicologia, e até das “Ciências Duras”,

em alguma medida. Juntos, devem ser contextualizados conjunturalmente, em explícita

evidência das mediações que se lhes articulam e atribuem nexos, permitindo transcender da sua

materialização à abstração e de modo contrário.

Estas considerações iniciais evidenciam apenas a amplitude da temática. Não permitem

de per si identificar a que objeto a pesquisa se dedica de fato. E isso não se dá apenas porque a

pesquisa é um recurso inesgotável para o conhecimento, fazendo dos pesquisadores sempre

Page 21: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

21

aprendizes, mas se dá também porque a circunscrição metodológica de um objeto que se

constitui de modo relacional é, na maioria das vezes, relativa. Isso porque se referencia em

“fatos móveis”, mutáveis e dependentes de inúmeras variáveis.

Essa sentença ajuda a entender as dificuldades e idiossincrasias da definição de um

objeto que se constrói em um processo histórico em curso, contudo não é suficiente para

justificar sua apresentação “difusa”, como pode parecer ser. Por isso, manteve-se aqui a usual

escolha de algumas indagações provocativas e indicativas de possíveis lacunas no vasto campo

de conhecimento que utiliza de modo recorrente as cinco categorias em suas elaborações2.

Não é necessário precisar se foram os incômodos originados pela observação crítica e

pela prática cotidiana que motivaram as perguntas norteadoras ou se foi a ausência preliminar de

respostas. É um dilema similar ao do “ovo e a galinha”, que, embora exista concretamente, ao

ser real, sua solução imediata mostra-se indiferente para o que se pretende, ainda que um

raciocínio lógico possa se impor como recurso, pois o que nos incomodava primeiro era uma

problemática que insistia em nos provocar: a problemática teórico-prática do Estado. O que isso

quer dizer? Significa que há correntes de ideias em torno do Estado que remetem a formulações

teóricas sobre seus significados e significantes constantemente contrastadas.

Do mesmo modo, esses contrastes criam vida e tomam corpo quando se referenciam na

realidade mesma, com seus “homens concretos e suas vidas concretas”. Ou, se preferirmos os

termos de um intelectual de maior envergadura, considerar-se-á que a problemática é “o

conjunto de perguntas, ideias e suposições que delimitam o terreno no qual se produz

determinada teoria, terreno que nem sempre é visível na superfície do discurso teórico, e que, no

entanto, determina as condições e as possibilidades de enunciados desse discurso”, ou numa

outra opção: “a problemática é a unidade profunda de um pensamento teórico ou ideológico”3. E

isso nos mostra que há uma problemática ancestral em torno do Estado que foi precursora de

conhecimentos racionais modernos como os da Ciência Política ou da Filosofia Política. Isto

sim antecede, a nosso ver, o dilema da galinha com seus ovos.

A temática não esgotada do Estado, por se atrelar a relações sociais concretas, atravessa

como lâmina a vida cotidiana desde o trabalhador humildemente iletrado até os PhDs das mais

complexas ciências, desafiando-os como a esfinge que espera para devorar os que não decifram

seus enigmas, pois, como referiu Marx, “o modo de produção da vida material condiciona o

processo de vida social, política e intelectual”4 conformando a consciência dos homens e o

modo como esses tomam consciência da vida.

2 São elas: Serviço Social, Estado, Desenvolvimentismo, Capitalismo e Projeto Profissional.

3 ALTHUSSER (1965). In: BOITO JR, Armando. Estado, política e classes sociais: ensaios teóricos e

históricos. São Paulo: Unesp, 2007. 4 MARX. Karl. Contribuição à crítica da economia política. Tradução de Florestan Fernandes. São

Paulo: Expressão Popular, 2008.

Page 22: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

22

Ao chegar ao nosso terreno — o campo do Serviço Social — essa problemática

inacabada (por ter como base um objeto inacabado) vai ganhando aderência de diferentes

matizes. Atrela-se ao Serviço Social por ser inevitável como um elemento, que justifica sua

existência como profissão na divisão social e técnica do trabalho, ao mesmo tempo em que lhe

condiciona a legitimidade. Disso decorre o primeiro enigma da esfinge: Como nos apropriamos

de tal problemática? Como o Serviço Social se apropriou da problemática teórico-prática do

Estado? E, numa imanente reciprocidade, cabe a dúvida invertida: Como o Estado, em suas

metamorfoses ininterruptas, apropria-se e relaciona-se com o Serviço Social?

As respostas não estão prontas. Elas vão sendo descobertas nos caminhos que conduzem

a investigação. Ou, como nos lembra Marx: “Não há entrada já aberta para a ciência”. E delas

— das respostas — vamos selecionando o que de fato nos interessa inquirir com mais vigor no

momento, que nada mais é do que o próprio objeto de estudo: as particularidades dos projetos

desenvolvimentistas contidos na história da evolução do capitalismo brasileiro e suas

implicações para o Serviço Social e seus projetos profissionais. Esta sim, de fato, é uma

forma mais precisa de interpelar o modo como o processo relacional entre o Estado e a profissão

se manifestam no concreto da vida e no subjetivo das relações.

A inquietação sobre o tratamento dispensado pelo Serviço Social à problemática

teórico-prática do Estado impôs-se com tal força que não pôde ser eliminada como pano de

fundo. Ambos — Serviço Social e Estado — são suficientemente relacionais e, por isso mesmo,

apresentam quantidade relativa de estudos, pesquisas, ensaios, em torno de si, que pudemos

utilizar como ponto de partida. “A galvanização necessária para constituição do objeto se fez

possível quando o referenciamos a formação social particular que o inscreve em sua dinâmica: a

formação social capitalista e, sua base constitutiva: o desenvolvimento capitalista de feições

monopólicas”5. Nele, encontramos de modo cíclico, em momentos de síntese, um fenômeno

particular historicamente determinado: o chamado desenvolvimentismo.

Esse último é tomado como a ação peculiar do desenvolvimento imanente das

sociedades de tipo capitalista monopolista, que prescreve um conjunto de medidas voltadas para

a manutenção e aperfeiçoamento de si mesmo, provocando mudanças nas relações sociais, na

5 A constituição do Brasil como sociedade capitalista, embora tenha seus traços particulares e singulares,

não abdicou das características universais desse modo de produção, ou, como afirma Trotsky: “Não é

verdade que a economia mundial represente apenas a simples soma de frações nacionais uniformes. Não é

verdade que os traços específicos não passem de um ‘complemento dos traços gerais’, uma espécie de

verruga no rosto. Na realidade, as particularidades nacionais formam a originalidade dos traços

fundamentais da evolução mundial (...) não se pode reorganizar nem mesmo compreender o capitalismo

nacional sem encará-lo como parte da economia mundial. As particularidades econômicas dos diferentes

países não têm uma importância secundária. Basta comparar a Inglaterra e a Índia, os Estados Unidos e o

Brasil. Os traços específicos da economia nacional, por mais importantes que sejam, constituem, em

escala crescente, os elementos de uma unidade mais alta que se chama a economia mundial”. In:

TROTSKY, Leon. Revolução e contrarrevolução na Alemanha. São Paulo: Ciências Humanas, 1979.

Page 23: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

23

luta entre e intraclasses. É no escopo desse produto histórico que as articulações mais evidentes

entre o Serviço Social e o Estado se mostram, mesmo na realidade brasileira.

Não é por acaso que a origem do Serviço Social como profissão está atrelada ao

conjunto de medidas desenvolvimentistas empregadas pelo Estado burguês quando leva a cabo

seus intentos de modernização nos idos dos anos 1930. E também não é por acaso que tanto a

requisição formal pelo Estado de “trabalhadores sociais” quanto o debate em torno desse

processo se repõem na contemporaneidade.

Encontramos, nesses tempos, um mundo igual, mas diferente. Igual porque as

características estruturais do processo de acumulação capitalista, que não podem prescindir do

desenvolvimento, insistem em permanecer: a expropriação do trabalho, a expansão dos níveis de

acumulação, etc. Diferente porque as forças produtivas se encontram num estágio mais elevado,

causando inflexões diretas na conjuntura e no desenho ideopolítico das classes e dos Estados,

afetando sua própria maneira de existir6.

No Brasil, se vê mais do mesmo quando identificamos que a necessidade de

concertação entre Estado e mercado, Estado e classes permanece desde o Império, passando

pela Primeira República, pelo Estado Novo, pela ditadura civil-militar até a redemocratização

contemporânea, porém se renova com o impulso dos avanços técnicos e tecnológicos, de uma

nova morfologia no mundo do trabalho, nas interpenetrações do capital desterritorializado nos

Estados nacionais, nas roupagens que assumem as políticas públicas, e, como não poderia

deixar de ser, pelas características e pelos efeitos das crises sistêmico-estruturais do capitalismo

monopolista de cariz financista7.

6 Ou, como referiu Iamamoto: “O ‘moderno’ se constrói por meio do ‘arcaico’, recriando nossa herança

histórica patrimonialista ao atualizar marcas persistentes e, ao mesmo tempo, transformando-as no

contexto de mundialização do capital sob a hegemonia financeira. As marcas históricas persistentes ao

serem atualizadas se repõem modificadas ante as inéditas condições históricas presentes, ao mesmo

tempo que imprimem uma dinâmica própria aos processos contemporâneos. O novo surge pela mediação

do passado, transformado e recriado em novas formas nos processos sociais do presente. A atual inserção

do país na divisão internacional do trabalho, como um país de economia dita ‘emergente’ em um mercado

mundializado, carrega a história de sua formação social, imprimindo um caráter peculiar à organização da

produção, às relações entre o Estado e a sociedade, atingindo a formação do universo político-cultural das

classes, grupos e indivíduos sociais. Tais desigualdades revelam o descompasso entre temporalidades

históricas distintas, mas coetaneamente articuladas, atribuindo uma marca histórica particular à formação

social do país. Afetam a economia, a política e a cultura, redimensionando simultaneamente nossa

herança histórica e o presente. Imprimem um ritmo particular ao processo de mudanças em que tanto o

novo quanto o velho se alteram em direções contrapostas: a modernidade das forças produtivas do

trabalho social convive com padrões retrógrados nas relações de trabalho, radicalizando a ‘questão social’

”. IAMAMOTO, Marilda Villela. Trabalho e indivíduo social: um estudo sobre a condição operária na

agroindústria canavieira paulista. São Paulo: Cortez, 2001. p. 101-102. 7 Por crise estrutural ou sistêmica entendemos, em conformidade com Mészáros, que se refere “a uma

condição que ‘afeta a totalidade de um complexo social em todas as relações com suas partes

constituintes ou subcomplexos, como também a outros complexos aos quais é articulada’ (...) Põe em

questão a própria existência do complexo global envolvido, postulando sua transcendência e sua

substituição por algum complexo alternativo (...). Uma crise estrutural não está relacionada aos limites

imediatos, mas aos limites últimos de uma estrutura global”. In: MÉSZÁROS, István. Para além do

capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.

Page 24: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

24

É esse quadro que, ao responder a novas manifestações do capital, repõe a necessidade

de reconfiguradas medidas de desenvolvimento que incluem também o debate sobre a relação

das profissões com a sociedade em que se inserem, pois, assumindo uma nova forma de

objetivação, o capital impõe dali em diante a universalização do trabalho.

O chamado novo-desenvolvimentismo, no Brasil, surge em um cenário controverso que

aponta, ao mesmo tempo, de um lado, o desgaste do ideário neoliberal e do insucesso das

medidas de contrarreforma dos anos 19908, e, de outro, a vitória desse mesmo ideário atestada

pelas características de um novo ciclo de desenvolvimento capitalista, no qual capital e trabalho

reordenam suas relações nos limites da revolução passiva, segundo os termos gramscianos9. É

uma alternativa que se coloca muito mais no plano ideopolítico e no imaginário coletivo do que

no campo das medidas econômicas de reversão reais dos postulados neoliberais.

Se, nos idos dos anos 1930, o projeto desenvolvimentista burguês encontrava coerência

e atos de reciprocidade com o projeto profissional dos assistentes sociais, na contemporaneidade

o novo-desenvolvimentismo promove um discurso de renovação das políticas de tratamento das

refrações da “questão social”, o que o impele a requisitar assistentes sociais para operá-las,

como sempre tem sido, mas se depara com um projeto profissional criticamente antagônico às

suas bases estruturais de legitimação.

Há então uma ruptura do Serviço Social com projetos burgueses de desenvolvimento?

Tal resposta não pode ser dada ao sabor do maniqueísmo corrente: “sim” ou “não”. Há, de um

lado, uma intenção de ruptura desde o Movimento de Reconceituação, como demonstra José

Paulo Netto em sua tese sobre a Ditadura e o Serviço Social que se concretiza pela aquisição e

“utilização” de um cabedal teórico-metodológico de bases marxianas e marxistas refletidas no

Código de Ética Profissional, na lei que regulamenta a profissão, nas Diretrizes Curriculares da

formação profissional, na produção acadêmico-científica e nos posicionamentos políticos

individuais ou coletivos do corpo profissional, mas há, ao mesmo tempo, e, contraditoriamente,

uma aderência relativa ao que há de civilizatório no exercício prático dos postulados da

8 Não há entre os analistas da economia política brasileira um consenso que ateste se a implantação do

neoliberalismo no Brasil foi exitosa ou fracassada. O que podemos encontrar com recorrência são

afirmações que se referem ao seu êxito no que tange às intenções de desmonte do Estado, retração de

direitos e ampliação da dependência externa. Não obstante, no que se refere a suas promessas de

socialização de bem-estar, é evidente o seu fracasso, pois as medidas que arrolamos foram motivações

suficientemente competentes para ampliar o fosso social das desigualdades. Se essa dialética “sucesso x

fracasso” pode, à primeira vista, parecer incongruente, uma análise mais atenta nos mostra que se trata de

um binômio que converge para o mesmo fim, qual seja a implantação de reformas regressivas na estrutura

dos Estados nacionais de capitalismo pouco avançado, denominado argutamente por Behring (2003) de

“contrarreforma”. 9 Segundo Coutinho, “uma revolução passiva implica sempre a presença de dois momentos: o da

‘restauração’ (trata-se sempre de uma reação conservadora à possibilidade de uma transformação efetiva e

radical proveniente ‘de baixo’) e da ‘renovação’ (no qual algumas das demandas populares são satisfeitas

‘pelo alto’, através de ‘concessões’ das camadas dominantes) (...) A revolução passiva, portanto, não é

sinônimo de contrarreforma; na verdade, numa revolução passiva, estamos diante de um reformismo ‘pelo

alto’”. (In: COUTINHO, Carlos Nelson. Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo. São

Paulo: Cortez, 2008).

Page 25: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

25

democracia burguesa, a exemplo da defesa dos direitos humanos, dos preceitos em defesa da

diversidade e do pluralismo das ideias, isto sem falar nas diretrizes relativas ao modus operandi

da profissão como a qualidade dos serviços prestados, o incentivo ao protagonismo e à

participação popular na agenda pública, o sigilo profissional, o direito dos usuários de serviços

sociais à informação, etc.

O projeto burguês, portanto, para se realizar, não precisa abrir mão desse segundo

conjunto de “características” da profissão. Ao contrário, pode conviver com elas e tomá-las

ainda como parte de suas estratégias de coerção ideopolíticas, fomentando a ilusão que nos leva

a tentar humanizar o inumano10

. Do mesmo modo, podemos tomá-las como parte constituinte

das táticas necessárias à construção de um projeto societário alternativo presente no conteúdo

interno dos movimentos sociais antissistêmicos, cuja adesão dos estratos profissionais críticos é

inequívoca.

Fica confirmada, deste modo, para nós, a necessidade de prosseguirmos

problematizando o Estado e suas relações a partir da escolha de elementos relacionais que

expressam uma totalidade concreta. As respostas sempre provisórias para as indagações

originárias que já citamos começam a fazer sentido quando se defrontam de modo arterial com

as singularidades das categorias basilares da investigação.

Por isso quando perguntamos: Qual o tratamento dispensado pelo Serviço Social

brasileiro à problemática teórico-prática do Estado, somos alçados inevitavelmente a uma

formulação mais específica, mais próxima da realidade objetiva que concretiza a profissão: De

que modo o Serviço Social brasileiro tem se relacionado com as transformações recentes, na

estrutura jurídico-política de nosso Estado, consubstanciadas num ciclo peculiar de

desenvolvimento capitalista?

Conferindo ainda mais precisão ao objeto, colocando-o em outro ângulo, a indagação

nos induz a prosseguir admitindo algumas premissas fundamentais. A primeira delas é que

tratamos o Serviço Social como uma especialização do trabalho coletivo, inserido na divisão

social e técnica do trabalho. A segunda, mas não menos importante, é que suas demandas

legitimadoras estão relacionadas às diferentes formas de enfrentamento das múltiplas variáveis

da “questão social”. Também se destaca o fato de que é na estrutura jurídico-política do Estado

que repousa a rede de inter-relações entre a base material de uma determinada sociedade e suas

várias instituições e onde suas formas de consciência são localizadas, como não nos deixa

esquecer Mészáros11

.

10

Já que tais características, quando referenciadas pelo modo capitalista de reprodução das relações

sociais absorvem, de modo ineliminavelmente aderente, as feições estruturantes desse modo, o que

implica a primazia do capital sobre o trabalho redundando num tipo de produção catastrófica, destrutiva e

desumana conforme demonstra Mészáros (2002). 11

MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social: ensaios de negação e afirmação. São Paulo:

Ensaio, 1993.

Page 26: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

26

Com esses pressupostos, fica mais fácil realizar a opção metodológica de circunscrever

a investigação aos resultados do produto histórico produzidos no campo relacional entre Serviço

Social e Estado, notadamente pelo modo como ambos participam dos projetos peculiares do

desenvolvimento capitalista. Por isso, perseguir parte dessas respostas implica, ainda, dialogar

com os elementos constitutivos gerais e particulares das transformações no processo de

reprodução social dos sujeitos individuais (os profissionais) e coletivos (as entidades da

categoria e de fora dela), ou, em outros termos, agregar outros pressupostos necessários à

análise da relação Serviço Social — Estado — Desenvolvimento, quais sejam: a) buscar o

sentido e a inteligibilidade da profissão na história da sociedade da qual ela é parte e expressão;

b) guiar-se pelo primado da produção e reprodução social, pois é nela e a partir dela que os

indivíduos se tornam sujeitos históricos, e; c) conferir centralidade a história, pois é nela que se

encontra a chave heurística da problemática anunciada.

Esses três pressupostos já foram arrolados por Iamamoto (2003, p. 151)12

como

fundamentais às análises da relação Serviço Social — Estado — Desenvolvimento capitalista, o

que nos leva a indagar o que há de inédito, então, na reflexão proposta, uma vez que a referência

em que mais nos apoiamos — a produção de Iamamoto — já nos adiantou tais chaves

heurísticas?

Ora, os três pressupostos ancoram-se na realidade concreta e objetiva. Sendo assim, o

caráter metamórfico das relações e processos sociais: conjunturas e estrutura, atendem às

requisições do seu tempo histórico. Deste modo, nunca haverá um conhecimento acabado sobre

tais relações, necessitando, antes, ser constantemente revisitado e referenciado a um tempo

histórico. Ademais, buscamos demonstrar, no desenrolar de toda nossa argumentação, que o

período recente do Estado brasileiro é particularmente rico em seu processo de rearranjo interno

e externo, devido ao modo como se reconfiguraram as correlações de forças nele,

movimentando de modo singular as relações entre as classes e as frações de classe.

Da contrarreforma do Estado praticada pelo Presidente da República Fernando Henrique

Cardoso até o novo-desenvolvimentismo do Presidente Lula da Silva e da presidenta Dilma

Roussef, transformações significativas aconteceram, na estrutura jurídico-política do Estado,

que não foram suficientemente tematizadas no espectro do Serviço Social brasileiro, nem o

serão ainda, simplesmente por estarem em curso. O que nos dá a medida exata dos limites da

tese sem prejuízo da sua relevância como parte dos estudos contemporâneos sobre o tema.

Do ponto de vista exterior ao Brasil, também se registram mudanças significativas, no

cenário mundial, avalizadoras da escolha temporal da proposta. Essas mudanças vão desde a

implementação dos imperativos da mundialização do capital, sentida, sobretudo, nos anos 1990,

até os marcos daquela que tem sido apontada como a mais grave crise estrutural desde 1929: a

12

IAMAMOTO, Marilda Villela. O serviço social na contemporaneidade: trabalho e formação

profissional. 6. ed., São Paulo: Cortez, 2003.

Page 27: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

27

crise sistêmica dos anos 1970, com uma erupção incontestável, em 2008, e que ainda penaliza

milhares de pessoas em todo o mundo, incluindo países de capitalismo avançado. Quais

elementos desse processo global têm interferência direta ou indireta nos trâmites do Estado

brasileiro, no período em questão? Ou seja, impõe-se também para nós o imperativo de

articular, analiticamente, a dialética das mudanças dentro e fora do País, considerando a

perspectiva de uma totalidade social cujos limites extrapolam as condições imediatas de

reprodução do gênero humano.

Do ponto de vista interno à profissão, consideramos que as diretrizes do projeto

profissional crítico do Serviço Social brasileiro, expressas no Código de Ética da Profissão, na

sua Lei de Regulamentação e nas Diretrizes Curriculares da formação profissional, necessitam

ainda de elementos que lhes agreguem valor teórico-prático para sua efetiva disseminação

hegemônica na formação e no exercício profissional, visto que a reposição do debate sobre o

desenvolvimento capitalista e seus ciclos particulares recentes apresentam tais virtudes em

potencial.

Não tratamos aqui de uma consideração retórica ou de desejo político. São as

transformações recorrentes na conjuntura e na estrutura que requisitam a construção dialética,

portanto, histórica, de táticas e estratégias que reconfigurem nossas dinâmicas internas,

conforme as requisições de um mesmo real-histórico. Os elementos de análise do projeto

profissional crítico sugeridos por uma ontologia do ser social possibilitam o entendimento dos

aspectos gerais e particulares das sociedades e Estados que operam na ordem do capital, desde

que se mantenham no campo da “ortodoxia marxista”13

.

Todavia, isso não implica dizer que as estratégias e táticas de enfrentamento ao padrão

de sociabilidade imposta, desse modo, são imutáveis ou passíveis de um único tratamento

ideopolítico e teórico-prático.

Ao contrário, nem sempre as mudanças provocadas pelo próprio capital visando à sua

(re)acomodação diante das transformações na sociedade são favoráveis ao projeto profissional

crítico ou mesmo de modo inverso. O que nos exige vigilância e reconstrução permanente de

tais estratégias e táticas, avançando/agregando conteúdos e inovando em formas de ação.

Esse é o escopo motivador do estudo que só adquire sentido no nível lógico se

associado ao que existe como produto histórico no campo das análises de matriz marxiana e

marxistas. Portanto, é um esforço que, caso se consagre acabado, será apenas parcialmente bem-

sucedido.

13

Segundo Lukács, a ortodoxia marxista diz respeito à fidelidade ao método de Marx. Nesse sentido,

consultar LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São

Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 63-64.

Page 28: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

28

Sobre o método

As aproximações aqui contidas relativas ao método proposto pelo estudo da crítica da

economia política, nos leva a pensar as particularidades dos projetos desenvolvimentistas que

caracterizam a história da evolução do capitalismo brasileiro e suas implicações para o Serviço

Social e seus projetos profissionais a partir da nucleação das categorias de totalidade,

contradição e mediação (NETTO, 2011, p. 58)14

.

A totalidade em questão apresenta-se como uma complexidade composta em processo

histórico plurissecular plasmada em complexidades partícipes de seu processo de constituição.

Isto é, uma totalidade concreta, que nada mais é do que a própria sociedade burguesa.

Essa sociedade específica, quando tomada nas suas formas dinâmicas de realização,

convoca como fulcro sustentador as relações materiais de produção, determinadas, nesse caso,

pelo capital e, a depender das condições históricas que encontram, imprimem sentido à

entificação do capitalismo e seu núcleo precípuo de dominação: o Estado burguês.

Isso significa dizer que o recurso à totalidade se impõe como modo de alcançar a

realidade como síntese de múltiplas determinações, por ser concreta, unidade do diverso

(MARX, 2011)15

, característica fundante e necessária ao estudo de formações sociais. É o

mesmo que considerar o resgate da realidade ontológica como realidade determinada pelas

condições materiais de existência condicionadas à processualidade da história. Ou, como

afirmou Lukács (2007, p. 59 ):

[A totalidade] é uma unidade concreta de forças opostas em uma luta recíproca (...)

significa que, quer em face de um nível mais alto, quer em face de um nível mais

baixo, ela resulta de totalidades subordinadas e, por seu turno, é função de uma

totalidade e de uma ordem superiores (...) Enfim, cada totalidade é relativa e mutável,

mesmo historicamente: ela pode esgotar-se e destruir-se — seu caráter de totalidade

subsiste apenas no marco de circunstâncias históricas determinadas e concretas.16

Assim, a formação social brasileira não se processa alheia à universalidade do

capitalismo, e nem mesmo se absteve da criação de traços particulares e singulares que a

distinguiram de outras formações congêneres. Em outros termos: Se as regras gerais do sistema

14

Como apontado por NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo:

Expressão Popular, 2001. p. 58. 15

Nesse sentido, é suficientemente conhecido o célebre excerto de Marx: “O concreto é concreto porque é

síntese de múltiplas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento

como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida

efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação”. (In: MARX, Karl.

Grundisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo:

Boitempo Editorial, 2011. p. 54). 16

LUKÀCS, Georg. As tarefas da filosofia marxista na nova democracia. In O Jovem Marx E Outros

Escritos. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2007. (Tradução Carlos Nelson Coutinho, José Paulo Netto).

Page 29: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

29

de produção generalizada de mercadorias permaneceram presentes na constituição da sociedade

capitalista brasileira, do mesmo modo penetraram as condições históricas objetivas dadas

preliminarmente, plasmando, em momentos de síntese, não apenas a sua universalidade como

também a formação e conformação do Estado burguês brasileiro que, desde a sua gênese até a

atualidade, funciona como agente das “revoluções passivas” que marcam sua história17

.

Essas revoluções pelo alto, embora acomodem interesses de classes, não suprimem a

luta a elas inerentes; deste modo, não podem ser entendidas como sinônimo de contrarrevolução

e nem mesmo de contrarreforma, mas sim de um “reformismo pelo alto” (COUTINHO, 2008, p.

93)18

. A persistência desse traço no desenvolvimento do capitalismo brasileiro nos leva, então, a

pensar o método sem a interferência do determinismo economicista típico da II Internacional ou

do stalinismo19

. Isso significa que:

17

As regras gerais do sistema generalizado de produção de mercadorias estão mais bem detalhadas no

Livro I, volume II de O Capital no item: Formas de Existência da Superpopulação Relativa. A Lei Geral

da Acumulação Capitalista, onde Marx assim a resume: “Quanto maiores a riqueza social, o capital em

função, a dimensão e energia de seu crescimento e consequentemente a magnitude absoluta do

proletariado e da força produtiva de seu trabalho, tanto maior o exército industrial de reserva. A força de

trabalho disponível é ampliada pelas mesmas causas que aumentam a força expansiva do capital. A

magnitude relativa do exército industrial de reserva cresce portanto com as potências da riqueza, mas,

quanto maior esse exército de reserva em relação ao exército ativo, tanto maior a massa da

superpopulação consolidada, cuja miséria está na razão inversa do suplício de seu trabalho. E, ainda,

quanto maiores essa camada de lázaros da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto

maior, usando-se a terminologia oficial, o pauperismo. Esta é a lei geral, absoluta, da acumulação

capitalista. Como todas as outras leis, é modificada em seu funcionamento por muitas circunstâncias que

não nos cabe analisar aqui”. (In: MARX, Karl. O capital. Livro I, v. II, Capítulo XXIII: A Lei Geral da

Acumulação Capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. p. 747). Do mesmo modo, a história

do desenvolvimento capitalista brasileiro, ao articular particular e geral, não é tratada como “evolução de

um movimento anterior que se desenvolve segundo as leis da natureza”, mas sim no processo de

desenvolvimento real que a engendra. Ver MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In:

Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

(Coleção Os Pensadores). 18

COUTINHO, Carlos Nelson. Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo. São Paulo:

Cortez, 2008. 19

Mészáros afirma: “O ‘dogmatismo stalinista’ rejeitado [por Lukács] foi definido mais uma vez,

primeiro em termos metodológicos: como a ‘ausência de mediação’, a reificadora ‘confusão da tendência

com o fato realizado’, ‘a subordinação mecânica da parte ao todo’, a afirmação de um ‘relacionamento

imediato entre os princípios fundamentais da teoria e os problemas da época’, a ‘restrição dogmática do

materialismo dialético’ e, mais importante, como crença errônea de que o ‘marxismo era uma reunião de

dogmas’. Lukács também declarou categoricamente que o único modo de exercer influência ideológica

era a ‘crítica imanente’, que coloca as questões metodológicas em primeiro plano”. (In: MÉSZÁROS,

István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005 e MÉSZÁROS, István. O poder da

ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004). Quanto ao determinismo economicista, fatorialista e

evolucionista, da II Internacional, sobram as críticas também feitas pelo próprio Lukács, quando afirma

que os motivos econômicos não são o que distingue o marxismo da ciência burguesa, mas sim a

perspectiva da totalidade (Ver História e Consciência de Classe) e também Lênin quando se refere à

complexidade que envolve o “desenvolvimento desigual” típico do capitalismo que se exacerba em sua

fase monopolista. (Ver Imperialismo Fase Superior do Capitalismo).

Page 30: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

30

(...) a totalidade concreta e articulada que é a sociedade burguesa é uma totalidade

dinâmica — seu movimento resulta do caráter contraditório de todas as totalidades

que compõem a totalidade inclusiva e macroscópica. Sem as contradições, as

totalidades seriam totalidades inertes, mortas — e o que a análise registra é

precisamente a sua contínua transformação. A natureza dessas contradições, seus

ritmos, as condições de seus limites, controles e soluções dependem da estrutura de

cada totalidade — e, novamente, não há fórmulas/formas apriorísticas para determina-

las: também cabe à pesquisa descobri-las. (NETTO, 2011, p. 58)20

.

Nesse movimento é que o método nos invoca a apreender as contradições que,

originadas na base material da infraestrutura econômica, portanto, como fator ontológico

primário da socialidade (MARX, 2008)21

partem para novos graus de complexidade, sobretudo

pela generalização da política diante de um contexto social saturado de novas determinações,

fazendo com que as lutas de classes — expressando relações de poder e de interesses se

espraiem — por meio da ideologia, da cultura, da política, da religião, etc., — por toda a

superestrutura (GRAMSCI apud COUTINHO, 2006)22

, onde o jogo de interrelações entre a

base material de determinada sociedade e suas várias instituições e formas de consciência

podem, assim, ser localizadas (MÉSZÁROS)23

. Isso confere centralidade ao terceiro elemento

do núcleo duro do método, que são as mediações. Elas impedem o imediatismo na consideração

da totalidade. Deste modo,

(...) uma questão crucial reside em descobrir as relações entre os processos ocorrentes

nas totalidades constitutivas tomadas na sua diversidade e entre elas e a totalidade

inclusiva que é a sociedade burguesa. Tais relações nunca são diretas; elas são

mediadas não apenas pelos distintos níveis de complexidade, mas, sobretudo, pela

estrutura peculiar de cada totalidade. Sem os sistemas de mediações (internas e

externas) que articulam tais totalidades, a totalidade concreta que é a sociedade

burguesa seria uma totalidade indiferenciada — e a indiferenciação cancelaria o

caráter do concreto, já determinado como “unidade do diverso”. (NETTO, 2011, p.

58)24

.

Portanto, um conjunto de mediações se coloca ao corolário de busca entre as

determinações que fundam as disputas de interesses na sociedade com suas bases materiais e os

20

Como apontado por NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo:

Expressão Popular, 2001. p. 58. 21

MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Prefácio. Tradução de Florestan

Fernandes. São Paulo: Expressão Popular, 2008. 22

COUTINHO, Carlos Nelson. O conceito de sociedade civil em Gramsci e a luta ideológica no Brasil de

hoje. In: ______. Intervenções: o marxismo na batalha de ideias. São Paulo: Cortez, 2006. 23

MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social: ensaios de negação e afirmação. São Paulo:

Ensaio, 1993. 24

Como apontado por NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo:

Expressão Popular, 2001. p. 58.

Page 31: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

31

sujeitos coletivos que dão vida e forma às categorias que queremos colocar em relação. Assim,

Estado, desenvolvimento capitalista e desenvolvimentismo compõem uma unidade complexa e

contraditória de um mesmo movimento, voltado, sobretudo, às dinâmicas de acumulação que

analisamos detalhadamente e, em seguida, suas articulações endógenas e exógenas em interação

com um produto histórico particular da divisão social do trabalho que é o Serviço Social e seus

projetos profissionais. O elo que garante tais articulações não é senão o Estado, que se

materializa na realização de programas de administração da vida social sumarizados nos

governos que resultam das disputas societárias mais amplas.

Sendo, o governo, a forma fundamental que a classe dominante encontra para legitimar-

se enquanto classe e enquanto dominante pela tomada hegemônica do Estado, os programas e

projetos governamentais assumem, assim, a forma mais evidente, porém não a única, de

expressar os interesses desse bloco no poder. Esses programas e projetos assumem a prevalência

da política econômica burguesa na medida em que esta se estrutura no processo de fetichização

de toda a produção, e, por consequência de toda a vida social, impedindo a crítica de sua

economia política.

Esta última, por sua vez “se inicia pela mercadoria, no momento em que se trocam

alguns produtos por outros” (ENGELS, 2011, p. 283)25

o que, de per si, implica uma relação e a

conformação subsequente de relações recíprocas que fazem toda a produção ser socialmente

determinada (MARX, 1978, p. 103)26

. A política econômica burguesa, por seu turno, funda-se

no mito que confere autonomia tanto à mercadoria quanto à individualização das relações

sociais de produção originárias de um processo evolutivo natural e inequívoco, com uma

história fatalista e unilateral. (id., ibid.)27

.

Com isso, torna-se imperativo colocar em exame as medidas econômicas propostas

pelos governos burgueses como a melhor forma de desvendar, em suas contradições, os seus

nexos internos e o modo como se articulam aos “complexos do complexo” social macroscópico

na esteira da luta entre e intraclasses, do qual o Serviço Social é parte e expressão.

25

ENGELS, Friedrich. Comentários sobre a contribuição à crítica da economia política de Karl Marx. In:

MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2011. 26

MARX, Karl. Introdução à crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção

Os Pensadores). 27

Na mesma Introdução à Crítica da Economia Política, (1978, p. 103-104), Marx ironiza esse processo

de fetichização e a-historicidade, em David Ricardo e Adam Smith e seus seguidores, quando afirma: “O

caçador e o pescador, individuais e isolados, de que partem Smith e Ricardo, pertencem às pobres ficções

das robinsonadas do século XVIII (...) Os profetas do século XVIII, sobre cujos ombros se apoiam

inteiramente Smith e Ricardo, imaginam este indivíduo do século XVIII — produto, por um lado, da

decomposição das formas feudais de sociedade e, por outro, das novas forças de produção que se

desenvolvem a partir do século XVI — como um ideal, que teria existido no passado. Veem-no não como

um resultado histórico, mas como ponto de partida da História, porque o consideravam como um

indivíduo conforme à natureza — dentro da representação que tinham de natureza humana —, que não se

originou historicamente, mas foi posto como tal pela natureza. Esta ilusão tem sido partilhada por todas as

novas épocas, até o presente”.

Page 32: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

32

Com este método, partimos sempre da relação primeira e mais simples que existe

historicamente, de fato; portanto, aqui, da primeira relação econômica com a qual nos

encontramos. Depois procedemos à sua análise. Pelo próprio fato de se tratar de uma

relação, está implícito que há dois lados que se relacionam entre si. Cada um desses

dois lados é estudado separadamente, a partir do que se depreende de sua relação

recíproca e sua interação. Encontramo-nos com contradições que exigem solução.

Porém, como aqui não seguimos um processo de reflexão abstrato, que se desenvolve

exclusivamente em nossas cabeças, mas uma sucessão real de fatos, ocorridos real e

efetivamente em algum tempo ou que continuam ocorrendo, essas contradições

também estarão determinadas na prática, onde, provavelmente, também será

encontrada sua solução. E, se estudarmos o caráter dessa solução, veremos que se

consegue criar uma nova relação, cujos dois lados opostos teremos agora que

desenvolver, e assim sucessivamente. (ENGELS, 2008, p. 282-283)28

.

Desse modo, recorremos ao modo lógico de análise, para buscar, no processo de

desenvolvimento do capitalismo brasileiro, “as soluções” apresentadas pelo bloco no poder,

conforme apontara Engels, para dirimir suas contradições imanentes29

.

Por serem muitas e variadas, pelo contexto histórico, escolhemos um tipo específico de

alternativa (solução) tratada aqui como momento de síntese que se origina da negação (parcial)

das lógicas operantes do sistema capitalista (pelas suas crises imanentes e seus limites) em

confronto com sua afirmação mesma (autorreprodução e expropriação do trabalho), e que se

volta para a ampliação ininterrupta dos níveis de acumulação.

Assim, os programas e projetos econômicos dos governos burgueses são pensados

como produtos históricos tipificados conjunturalmente, porém, plasmados na dinâmica própria

do desenvolvimento capitalista, sobretudo, na fase dos monopólios. Com isso, procuramos não

conferir autonomia ao modo analítico lógico perante a história, afinal:

[O método lógico] não é, na realidade, senão o método histórico despojado

unicamente de sua forma histórica e das casualidades perturbadoras. Lá, onde começa

essa história, deve começar também o processo de reflexão; e o desenvolvimento

posterior desse processo não será mais que a imagem refletida, de forma abstrata e

teoricamente consequente, da trajetória; uma imagem refletida corrigida, porém

corrigida de acordo com as leis da própria trajetória histórica; e, assim, cada fator

pode ser estudado no ponto de desenvolvimento de sua plena maturidade, em sua

forma clássica. (ENGELS, 2008, p. 282-283)30

.

28

ENGELS, Friedrich. Comentários sobre a contribuição à crítica da economia política de Karl Marx. (In:

MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2011). 29

Nesse sentido, podem ser situados tanto os processos históricos de “modernização conservadora”

registrados ao longo da história dos países capitalistas, incluindo o Brasil, quanto os “reformismos às

avessas”: os contrarreformismos. O reformismo real, criação das esquerdas, também é alternativa que

depende das injunções históricas, como, por exemplo, no advento da social-democracia. 30

ENGELS, Friedrich. Comentários sobre a contribuição à crítica da economia política de Karl Marx. (In

MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2011).

Page 33: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

33

Assim, destacamos como categoria central, que colocaremos em relação com um

elemento crucial, no processo de desenvolvimento do nosso capitalismo, que são as iniciativas

de administração da res publica, consubstanciadas em projetos socioeconômicos e políticos que,

tendo como fulcro o nacionalismo, a modernização pensada pela via da industrialização e o

intervencionismo estatal orientado para o mercado, foram denominados de “políticas

desenvolvimentistas”31

. Associados a esses momentos específicos do desenvolvimento

capitalista, os “planos voltados para estabilidade econômica” se fazem notar pelo mesmo fim:

manter o funcionamento da supremacia das “liberdades” do mercado e exponenciar os níveis de

acumulação com a forte interveniência estatal.

Desse modo, examinamos esses momentos desde suas impostações primitivas coloniais

(neste caso, relacionadas à entificação do capitalismo no Brasil pela “via colonial”, como

demonstrara José Chasin) até suas expressões mais modernas, como na Era Vargas, no Plano de

Metas de Juscelino Kubistchek, nos programas econômicos dos governos militares e no ajuste

neoliberal expresso nos Planos Cruzado, Bresser, Verão, Collor I e II e Real.

Como manifestações de uma vontade política que se constrói no confronto classista, o

esboço de uma interpretação histórica sobre o pensamento econômico brasileiro pela via das

particularidades desenvolvimentistas evidencia suas raízes conservadoras, constantemente

atualizadas pela modernização evidente das forças produtivas, ratificando o “fetichismo da

mudança”:

Genericamente, a valorização da mudança e a preservação das tradições constituem os

dois principais traços distintivos entre o progressismo e o conservadorismo. Mas

existe mais complexidade nisto. (...). Para o conservador, o divino rege a sociedade e

o indivíduo, delineando eternos direitos e deveres. Portanto, o problema político

também é religioso e ético. Nada de igualdade e de uniformidade, o que vale é a

variedade e o enigma da vida tradicional. Assim, o conservador concorda com a

existência de ordens e classes, mas acredita que a única e verdadeira igualdade é a

igualdade moral, prestigiando ao mesmo tempo a autoridade, indispensável à vida

social. (VIEIRA, 1998, p. 35)32

.

31 Para Marx, as categorias exprimem (...) formas de modo de ser, determinações da existência. Para ele,

o “concreto pensado é composto das categorias, das mediações, das particularidades que são propriedade

do real”, portanto, “o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de

proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo como concreto pensado” (Ver

Contribuição à Crítica da Economia Política, p. 127-128). Ianni (1986) também esclarece que “na

medida em que a explicação se sintetiza na categoria que poderíamos traduzir em ‘conceito’, ‘numa lei’,

então a construção da categoria é, por assim dizer, o núcleo, o desfecho da reflexão dialética. Explicar

dialeticamente é construir a categoria ou as categorias que resultam da reflexão sobre o acontecimento

que está pesquisado (...). Marx retoma a concepção de que explicar a realidade é não só descobrir os

nexos que constituem a realidade, mas ajudar essa realidade a se constituir. Portanto, o pensamento

impregna o real, entra na constituição do real”. (In: IANNI, Octávio. Construção de categorias.

Transcrição de aula dada no Curso de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-SP, no primeiro

semestre de 1986). 32

VIEIRA, Evaldo. Poder político e resistência cultural. São Paulo: Autores Associados, 1998.

Page 34: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

34

No pensamento conservador, a propriedade privada e a liberdade ligam-se

intimamente, ficando a sobrevivência de uma dependente da sobrevivência da outra.

Prefere os sentimentos à razão, não confiando no sofismo e no cálculo, rejeitando a

ideia de reforma. O conservadorismo distingue reforma e mudança, e considera

legitima para a sociedade apenas a mudança33, que se deve processar lentamente como

acontece no corpo humano, sempre sob direção do divino. Na mudança conservadora,

se substituem elementos individuais por elementos individuais, particularidades por

particularidades, enquanto a mudança progressista atinge a totalidade, o indesejável e

o mundo que o torna possível. O que importa ao conservador é o imediato e o real,

desprezando e excluindo a especulação e a hipótese. Fustiga, portanto, a generalização

e o pensamento sistemático. Colocando-se o pensamento na perspectiva do tempo, o

conservador fixa-se no passado, à medida que ele participa do presente. (Id., ibid,, p.

36)34.

Assim, cumpriu-nos ir além dos conteúdos contidos nas iniciativas governamentais de

gestão econômica e trazer à baila a presença ativa dos sujeitos históricos que compõem a arena

dessa totalidade social. Os discursos ideopolíticos que proferem são construídos no interior dos

conflitos societários e passam ao nível gnosiológico, quando referenciados ao grupo social que

se vinculam, permitindo, assim, explicitar suas “visões de mundo”. Isto é,

Quase nenhuma ação humana tem por sujeito um indivíduo isolado. O sujeito da ação

é um grupo, um “Nós”, se bem que a estrutura atual da sociedade tenda por meio do

fenômeno da reificação a ocultar este “Nós” e a transformá-lo em soma de várias

individualidades distintas e fechadas umas para as outras (...) Uma concepção de

mundo é precisamente este conjunto de aspirações, de sentimentos e de ideias que

reúne os membros de um grupo (ou o que é mais frequente, de uma classe social) e os

opõe a outros grupos. (GOLDMAN apud VIEIRA, 1998)35

.

Assim, tanto o conteúdo dos programas quanto os discursos proferidos por seus agentes

protagônicos demonstram a capacidade de os sujeitos históricos formularem respostas às

intempéries de uma realidade social concreta que encontra razão nas dinâmicas dos grupos

sociais que atuam no conflito classista, permitindo, de modo reiterado, alçar a análise ao campo

da totalidade.

33

Lembremo-nos de que os grandes apelos de campanha de políticos que se colocaram como

“alternativa” a situações político-estruturais mais longas foi o termo “mudança”. Barack Obama colocou-

se, em 2008, como o candidato da “mudança”. No Brasil, o novo marketing político admitido pelo Partido

dos Trabalhadores também imprimiu o “selo da mudança” à campanha de Lula, em 2002, só para citar

dois exemplos conhecidos e próximos de nós. Nesses discursos, a “reforma” aparece mas não com sentido

de reversão estrutural de determinadas institucionalidades, mas sim como apêndice, acessório, da

mudança, perdendo seu sentido progressista. 34

VIEIRA, Evaldo. Ob. Cit., 1998. 35

Id., ibid.

Page 35: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

35

O homem torna-se um ser que dá respostas precisamente na medida em que,

paralelamente ao desenvolvimento social e em proporção crescente, ele generaliza,

transformando em perguntas os seus próprios carecimentos e suas possibilidades de

satisfazê-los, bem como na medida em que, na sua resposta ao carecimento que a

provoca, funda e enriquece a própria atividade com estas mediações, frequentemente

bem articuladas. Desse modo, não apenas a resposta, mas também as perguntas são

um produto imediato da consciência que guia a atividade. Mas isso não anula o fato

de que o ato de responder é o elemento ontologicamente primário nesse complexo

dinâmico. (LUKÁCS, 2007, p. 229)36

.

Os discursos proferidos por grandes personalidades que transitam no mundo da

sociedade política refletem a vida e o pensamento dos sujeitos coletivos que os circundam e

com eles se relacionam organicamente, mas não como individualidades iluminadas, que retiram

da cartola mágica respostas aos problemas que se apresentam, mas sim como individualidades

construídas, em um fazer histórico, cujos comportamento, acontecimentos e instituições, com os

quais estão envolvidos, se referenciam ao grupo social, para além dos reflexos imediatos

provindos das determinações econômicas, afinal, o homem faz a sua história, mas não como a

quer (MARX, 1978)37

.

Desse modo, no itinerário de busca da configuração do desenvolvimento do capitalismo

brasileiro, destacando nele os momentos de síntese desenvolvimentista, arrolamos como objetos

para análise discursos proferidos pelas autoridades políticas máximas na esfera executiva,

considerando que o período que marca as inflexões de envergadura na implantação do ajuste

neoliberal nos interessou particularmente. Assim, os excertos de discursos analisados de

Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva e Dilma Roussef, ao apresentarem a síntese do que

ensejam implantar no processo de desenvolvimento do Estado/economia brasileira, eivam-se de

fatores subjetivos próprios das disputas que se processam por meio das relações entre o todo e

as partes. De modo contrário, na dinâmica da integração dos elementos ao conjunto, essas

sínteses tornam-se concretas, ainda que tal relação não se construa e nem se evidencie de modo

imediato.

A opção temporal por esse período (1995 ao momento atual) está atrelada à própria definição do

objeto de estudo que, ao estabelecer os nexos relacionais entre o desenvolvimento capitalista (e

o papel protagônico do Estado) e o Serviço Social, identifica um contexto social saturado de

novas determinações que não apenas reconfiguram a relação capital versus trabalho, em níveis

ainda não vivenciados no País, como também faz com que uma nova morfologia do trabalho

obrigue a profissão a ampliar seu dinamismo crítico na construção de respostas ao processo de

36

LUKÁCS, Georg. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. (In: O jovem Marx

e outros escritos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.

p.225-245). 37

MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte. (In: Manuscritos econômico-filosóficos e outros

textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Coleção Os Pensadores).

Page 36: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

36

lutas antissistêmicas de que participa. O que tem provocado, inclusive, uma profusão difusa das

análises desses mesmos discursos e dos programas por eles anunciados, levando, às vezes, até

no meio acadêmico, a interpretações que conferem autonomia a indivíduos, personalidades

políticas ante o confronto de grupos e classes estruturalmente presentes na realidade social.

Imputações parecidas com: “esqueceu-se do que disse no passado” ou “rendeu-se à ordem”

aparecem na maior parte das análises nos limites da dialética indivíduo/grupo mais próximas da

vontade (idealizada) do que da razão (real/concreta)38

.

Os indivíduos podem, sem dúvida (...) separar seu pensamento e suas aspirações da

atividade cotidiana deles; o fato fica excluído, entretanto, quando se trata de grupos

sociais (...). Para o grupo, a concordância entre o pensamento e o comportamento é

rigorosa. (GOLDMANN, 1967, p. 19)39

.

Por conseguinte, a

visão do mundo elaborada pelo grupo (...) só existe nas consciências individuais dos

seus membros e que, em cada uma delas, se apresenta sob a forma de uma maior ou

menor variação de uma mesma estrutura que surge à apreensão global do grupo como

um processo de estruturação do conjunto. (GOLDMANN, 1984, p. 26 )40

.

O próprio Marx nega a linearidade determinista do caminho que confere autonomia ao

sujeito ante os fatos históricos quando, no prefácio da segunda edição do 18 Brumário de Luís

Bonaparte, critica Víctor Hugo por tratar “o acontecimento” como “um raio caído do céu”, e

Proudhon, por transformar sua narrativa histórica do golpe de Estado “em uma apologia

histórica do seu autor”. Conclui dizendo que ambos caem “no erro dos nossos historiadores

pretensamente objetivos”.

Refere que seu caminho analítico-metodológico se diferencia por “demonstrar como a

luta de classes na França criou circunstâncias e condições que possibilitaram a uma personagem

medíocre e grotesca desempenhar um papel de herói” referindo-se a Napoleão III (MARX,

38

Ao fazer a crítica da autonomia do sujeito perante a realidade social, não estamos desconsiderando o

fato de que os sujeitos históricos participam dos processos em tela por atos contínuos de reciprocidade

com essa mesma realidade, o que configura a elevação do ser social. Desse modo, o lugar e o papel que

ocupam na trama contribui para convocar certas “mediações” que não estão dadas da mesma forma para

todos os seres. Esse processo ficará evidente quando tratarmos, no item 3.3.1 em diante, do fenômeno

batizado por Singer (2012) de “lulismo”. Ali se verifica a centralidade de uma “individualidade”, mas não

se justifica autônoma perante o grupo. O fenômeno está mais próximo daquilo que Weber tipificou como

“liderança carismática”, cujos fins são convergentes: a manutenção do poder de um “bloco no poder”. 39

GOLDMANN, Lucién. Sociologia do romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. Ou ver também:

FREDERICO, Celso. A sociologia da literatura de Lucién Goldmann. Revista Estudos Avançados, v.

19, n. 54, São Paulo, maio/ago. 2005. 40

GOLDMANN, Lucién. Espistemologia e filosofia política. Tradução de Conceição Jardim e Eduardo

Nogueira. Lisboa: Presença, 1984. Ou ver também: FREDERICO, Celso. Ob. Cit., 2005.

Page 37: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

37

1978, p. 325)41

. O que nos leva a analisar com rigor os conteúdos internos dos discursos e suas

imbricações com o grupo, na contemporaneidade, elevados aos níveis globais.

Desse modo, somos induzidos a pesquisar os “atributos teóricos e práticos das

proposições dos sujeitos a fim de corresponder a sua complexidade e revelar o núcleo social de

determinada posição” (GOLDMANN, 1984, p. 26)42

, que, como dissemos, são elevados à aldeia

global, na contemporaneidade, a partir do processo de mundialização do capital sentido desde os

anos 80.

Quanto aos componentes relacionais afetos ao Serviço Social, destacam-se duas ordens

de fatores distintos pelas características que apresentam, porém, com unidade causada pelos

processos sociais que os engendram: um deles é a relação ontogenética da profissão com o

capitalismo de tipo monopolista, e, por isso mesmo, com momentos de mais expressão nos

ciclos desenvolvimentistas e o outro são as transformações no mundo do trabalho, decorrentes,

para nós, sobretudo, pelo modo como as respostas dadas ao enfrentamento de refrações da

“questão social” metamorfoseiam-se em conformidade com as metamorfoses da política social

implementada pelo Estado burguês. Isso implica dizer que

(...) a emergência [e o desenvolvimento ulterior]43 da profissão deve sua existência à

síntese das lutas sociais que confluem num projeto político-econômico da classe

hegemônica de manutenção do sistema perante a necessidade de legitimá-lo em

função das demandas populares e do aumento da acumulação capitalista. (...) A

“questão social” não determina, por si só, a gênese do Serviço Social. Ela apenas dá a

base para a emergência da profissão quando se transforma em objeto de intervenção

do Estado, quando surge uma mediação política entre a “questão social” e o Estado;

mediação esta instrumentalizada pelas políticas sociais cujo executor terminal é o

assistente social. (NETTO apud MONTAÑO, 2011, p. 33-34)44.

Com esses elementos, compreendemos sumariamente os componentes que dão

legitimidade ao advento do Serviço Social, mas também à sua reprodução como práxis

socialmente útil45

na esfera da reprodução social.

Como produto histórico, portanto, determinado socialmente, a profissão que se atrela à

relação estabelecida entre o Estado e as classes sociais, pela mediação das políticas, encontra

41

MARX, Karl. Ob. Cit., 1978. 42

GOLDMANN, Lucién. Ob. Cit, 1984. Ou ver também: FREDERICO, Celso. Ob. Cit., 2005. 43

Grifo nosso. 44

MONTAÑO, Carlos Eduardo. A natureza do serviço social: um ensaio sobre sua gênese, a

“especificidade” e sua reprodução. 2. ed., São Paulo: Cortez, 2011. 45

Práxis compreendida como “atividade humana sensível”, como explorado por Marx nas teses sobre

Feuerbach: “A questão se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não é teórica, mas prática. É

na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, a saber, a efetividade e o poder, a criteriosidade de

seu pensamento. A disputa sobre a efetividade ou não efetividade do pensamento isolado da práxis — é

uma questão puramente escolástica”. MARX, Karl. Teses contra Feuerbach. São Paulo: Abril Cultural,

1978. (Coleção Os Pensadores).

Page 38: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

38

razão na esteira mesmo do desenvolvimento capitalista configurado no aprofundamento do

corporativismo de Estado e de políticas desenvolvimentistas, que se repetem desde os anos 30,

no Brasil.

Esse simulacro exógeno rompe com a visão a-histórica e evolucionista da profissão e

permite, ao mesmo tempo, que sejam verificadas as maneiras como os agentes profissionais e os

demandantes dos serviços sociais (chamados de usuários) imprimem razão teleológica a ela,

ainda que sob o movimento de instâncias superiores típicas das lutas que se travam na dinâmica

societária mais ampla.

Dessa forma, os discursos dos agentes profissionais também refletem aspirações dos

sujeitos coletivos com os quais se relacionam, devendo, assim, ser referenciados tanto à

dinâmica societária quanto aos grupos a que pertencem, tal como fizemos com os discursos

presidenciais. Ambos — os discursos presidenciais e os discursos dos agentes profissionais —

se articularão quando têm de tratar do mesmo fenômeno emergente da realidade social: o

desenvolvimento social/capitalista. No caso particular da profissão, pela mediação das políticas

sociais46

.

O caminho da profissionalização do Serviço Social é, na verdade, o processo pelo

qual seus agentes — ainda que desenvolvendo uma autorrepresentação e um discurso

centrados na autonomia dos seus valores e da sua vontade — se inserem em

atividades interventivas cuja dinâmica, organização, recursos e objetivos são

determinados para além do seu controle. Esta inserção — em poucas palavras, a

localização dos agentes num topus particular da estrutura sócio-ocupacional —, quase

sempre escamoteada pela autorrepresentação dos assistentes sociais, marca a

profissionalização: precisamente quando passam a desempenhar papéis que lhes são

alocados por organismos e instâncias alheios às matrizes originais das protoformas do

Serviço Social é que os agentes se profissionalizam. (NETTO, 2001, p.72)47

.

Na conjuntura recente do País, esse processo é peculiarmente emblemático, pois está

engrendrado na complexificação das lutas classistas, a partir de dois momentos significativos de

alteração na rota do processo histórico do desenvolvimento capitalista em escala global: o

primeiro diz respeito à alternativa neoliberal, como resposta à crise dos Estados Sociais desde os

anos 70, cujos desdobramentos se dão de modo tardio no Brasil dos anos 90; e, o segundo, está

afeto à substituição desse primeiro projeto — neoliberal — pelo que se convencionou chamar de

social-liberalismo, que passou a funcionar a partir de 2003, acelerando-se a partir de 2007,

46

Portanto, é evidente que tratamos as políticas sociais a partir da sua relação orgânica com a política

econômica e com a política desenvolvimentista. 47

NETTO, José Paulo. Capitalismo monopolista e serviço social. 3. ed., ampl. São Paulo: Cortez, 2001.

Page 39: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

39

quando suas medidas de gestão político-econômicas são tratadas pelo discurso oficial como

políticas neodesenvolvimentistas48

.

É desse modo que podemos também analisar, pelos discursos e documentos oficiais, os

interesses reais que inflexionam a disputa à realidade mesma e, nela, a profissão na quadra

histórica atual. E, sendo atual, encontramos os registros das manifestações que se travam não

apenas na oficialidade, mas também nos aparelhos da sociedade civil, da mídia à academia, o

que nos obriga a “estudar a descida de suas proposituras das cúpulas da intelligentsia até o

âmbito social, além do modo como suas ideias, influências e assimilações se relacionaram com

os diversos grupos em disputa” (MELO, 2009, p.7)49

.

Com a complexificação tecnológica, os instrumentos de comunicação midiáticos

assumem um lugar na arena de disputas ideopolíticas em níveis crescentes. Hoje, se dá, por

exemplo, importância fundamental a campanhas políticas feitas pela Internet. A utilização de

48 Como doutrina econômico-filosófica, o social-liberalismo emerge na Inglaterra na transição do século

XIX para o século XX, no bojo do processo de questionamento dos postulados centrais do liberalismo

clássico; sobretudo, a liberdade. O pensamento de intelectuais como T. H. Green e L. T. Hobhouse

destacam-se. Se, no liberalismo clássico, as liberdades individuais se garantiriam pela lógica do laissez-

faire, com o mínimo ou nenhuma intervenção estatal, no social-liberalismo, essas mesmas liberdades

seriam asseguradas com a intervenção do Estado, promotor das condições sociais e econômicas

garantidoras desse exercício. Como vertente de orientação política, nesse primeiro momento, serve apenas

para ampliar o debate sobre os rumos de orientação do Estado, sendo sufocada tanto pela social-

democracia quanto pela predominância das modernizações conservadoras que se aplicam no âmbito do

próprio liberalismo como forma dominante, em que anos mais tarde se converterá em neoliberalismo.

Desse modo, as teses do social-liberalismo retornarão com força e com novas roupagens, quando a crise

conjuntural da hegemonia neoliberal, já na metade para o fim do século XX, passa a requisitar medidas de

“reparação” das bases de acumulação capitalistas afetadas pela crise, em um contexto em que as

orientações do Consenso de Washington expressavam seus limites. Associa-se a isso, no âmbito mesmo

da crise, a agudização das expressões da “questão social” que passam a ocupar lugar de destaque nas

preocupações da classe dominante neoliberal. Processo que contribui para o advento de teses que vão

desde a “modernização conservadora” do neoliberalismo, sob o signo da “humanização” do sistema, até

as de um campo “pseudo-progressista”, que propagam a reversão da economia que acumula “pelo alto”

pela economia que “acumula a partir da inclusão mercantil” dos “de baixo”. Destacam-se, deste modo,

sujeitos políticos como Amartya Sen (capacidades, capital e desenvolvimento humanos); Anthony

Giddens (com sua Terceira Via); Pierre Rosanvallon (propalando a existência de uma “nova questão

social”, este, inclusive, causando imensa agitação no debate brasileiro sobre a “questão social” no âmbito

do Serviço Social); Joseph Stiglitz (as falhas do mercado e assimetrias comunicativas); Alan Touraine (a

via 2 ½ ); John Williamson (com seu pós-Consenso de Washington); André Gorz (com seu eco-

socialismo e seu “adeus ao proletariado); Alain Lipietz (com seu paradigma ecológico central), dentre

outros. Segundo Castelo, o social-liberalismo no Brasil começa quando a ideologia dominante admite

maior intervenção do Estado na área social, nos idos dos anos 1990. “Os ideólogos neoliberais foram

subitamente tomados de assalto por um certo tipo de humanismo, dotando os seus planos de ajuste

macroeconômico de condicionamentos sociais. Têm-se, assim, uma inflexão do pensamento hegemônico

em relação ao debate sobre mercado e bem-estar social, na qual uma epistemologia de direita –

maximização e otimização dos recursos, escassez relativa, capital humano – é envernizada por uma

suposta ética de esquerda, com palavras de ordem como justiça social, solidariedade, filantropia e

voluntariado. Busca-se uma terceira via, um sincretismo entre o mercado e o Estado capaz de promover o

bem-estar social.” CASTELO, Rodrigo. O social-liberalismo e a globalização da “questão social”.( In: IV

CONFERÊNCIA INTERNACIONAL "LA OBRA DE CARLOS MARX Y LOS DESAFÍOS DEL

SIGLO XXI”, 2008). 49

MELO, Wanderson Fábio. Institucionalização e modernização: o debate no Senado Federal entre

Fernando Henrique Cardoso e Roberto Campos (1983-1989). Tese (Doutorado em História Social)-

Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), 2009.

Page 40: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

40

redes sociais extrapola a esfera do entretenimento e atinge todo o âmbito das formas de

reprodução espiritual da sociedade.

Hoje a comunicação falada é um meio de difusão ideológica que tem uma rapidez,

uma área de ação e uma simultaneidade emotiva enormemente mais amplas do que a

comunicação escrita (...) o cinema e o rádio superam todas as formas de comunicação

escrita, desde o livro até a revista, o jornal. (GRAMSCI, 2002)50

.

O autor dos Cadernos do Cárcere, mesmo não tendo vivido a revolução da Internet, já

atribuía à imprensa e aos meios de comunicação em geral importância fundamental no campo da

disputa de “ideias” capazes de promover o que Gramsci chama de “reforma intelectual e moral”

da sociedade subvertendo toda “a cultura”. Como agentes privados de hegemonia, esses

“aparelhos” não se constrangem, ao reproduzir projetos políticos que tenham convergência a

seus interesses, por isso, se fazem de uma importância crescente para os sujeitos políticos que

querem potencializar suas “armas” para a disputa. O objetivo é, como se sabe, formar consensos

coletivos por meio da opinião pública.

O que se chama de “opinião pública” está estreitamente ligado à hegemonia política,

ou seja, é o ponto de contato entre a “sociedade civil” e a “sociedade política”, entre o

consenso e a força (...) A opinião pública é o conteúdo político da vontade política

pública, que poderia ser discordante: por isso, existe luta pelo monopólio dos órgãos

da opinião pública — jornais, partidos, Parlamento —, de modo que uma só força

modele a opinião e, portanto, a vontade política nacional, desagregando os que

discordam numa nuvem de poeira individual e inorgânica. (GRAMSCI, 2002b)51

.

No Brasil contemporâneo, o longo período de democracia liberal de massas que

vivemos consolidou a ideia de esses aparelhos funcionarem como agentes poderosos de

formação da opinião pública, e suas liberdades tornam-se tão sagradas quanto as liberdades do

mercado. Desse modo, percebemos que as disputas em torno de um projeto

neodesenvolvimentista que se possibilita a partir das configurações de um neoliberalismo com

traços tipicamente verde e amarelo, o que denominamos de neoliberalismo à brasileira52

(ou

pelo advento do social-liberalismo com traços peculiares) se espraiam para todos os agentes

privados de hegemonia — universidades, escolas, rádio, televisão, partidos políticos,

movimentos sociais, Parlamentos, etc. —, animando as disputas, mas também os debates em

50

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. v. 4, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 51

Id., Ibid., v. 3. 52

Vide item 3.3.1.

Page 41: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

41

torno da temática do desenvolvimento com efeitos progressivos e regressivos ao mesmo

tempo53

.

É nesse ínterim que o projeto profissional do Serviço Social é convocado a atuar. Nessa

disputa por hegemonia, se colocam possibilidades de interveniência nos campos constitutivos

dos “complexos sociais particulares”, na prospecção de um tipo alternativo de um complexo

social macroscópico alternativo ao que está subsumido pela ordem do capital. Saturando a

realidade, descobrem-se os caminhos.

Sobre a exposição

A rota que ampara a exposição é resultado de uma escolha racional mais afeta à

pretensão de certo didatismo, do que necessariamente uma indicação metodológica unívoca,

pois o percurso da investigação não se deu na mesma ordem em que a exposição ocorre. E nem

é necessário que assim seja, como demonstra nosso mestre alemão no processo de elaboração de

sua obra magistral: Das Kapital.

É mister, sem dúvida, distinguir, formalmente, o método de exposição do método de

pesquisa. A investigação tem de apoderar-se da matéria, em seus pormenores, de

analisar suas diferentes formas de desenvolvimento, e de perquirir a conexão íntima

que há entre elas. Só depois de concluído esse trabalho, é que se pode descrever,

adequadamente, o movimento real. Se isto se consegue, ficará espelhada, no plano

ideal, a vida da realidade pesquisada, o que pode dar a impressão de uma construção a

priori. (MARX,1971, p. 16)54

.

O esforço de tornar a exposição inteligível — e acessível — nos levou a utilizar

inúmeras referências, algumas recorrentemente já abordadas em nossa área acadêmica, outras

nem tanto, mas todas referidas ao raciocínio apresentado como forma de ilustrar, esclarecer,

complementar, ou agregar sentido ao que se argumenta. Indiretamente, também se pode ter

como resultado o indicativo de estudos a posteriori, que podem tornar aquilo que aqui se tem

algo mais acabado.

Cumpre-nos, dessa forma, apelar à paciência dos leitores, diante de extensas citações

que buscam preservar o fio condutor das análises em que estão inseridas para, desse modo, seus

autores participarem ativamente da exposição, pois, com eles, através de suas produções,

dialogamos intensamente.

53

Progressivos quando permitem a politização da vida social, convocando os “cidadãos comuns” a

debaterem os rumos ético-políticos das medidas, e regressivas, quando os mecanismos da disputa pela

hegemonia consagram a prevalência do conservadorismo e conseguem, como também apontou Gramsci,

espraiar para toda a sociedade o projeto societário burguês como sendo o projeto de toda a sociedade.

Tratamos disso no Capítulo 4. 54

MARX, Karl. O capital. Livro I, v. I, Pósfácio da 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.

Page 42: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

42

Esses diálogos e sua narrativa se fundam na análise histórica entendida como a melhor

forma de desvendar o que há de determinismos dialéticos nas relações próprias do objeto de

estudo. Todavia, isso não significa o desprezo ao modo lógico de análise, ao contrário, como

dissemos alhures. Buscamos estabelecê-los como dois níveis de uma mesma unidade, ou seja,

como um duo dialético que nos eleva do particular para o geral, mas também possibilita o

caminho de volta capturando todas as mediações necessárias que lhe são constitutivas55

.

Assim, no Capítulo I, optamos por trazer as bases epistemológicas do pano de fundo em

que as argumentações posteriores se assentam. Não se trata do objeto em si, mas do modo como

ontogeneticamente foi se configurando ao longo dos tempos, como conhecimento e prática.

Primeiro, tratamos de resgatar um pressuposto indispensável. Referimo-nos ao fato de

que o Estado só existe, seja como construção mental, seja como algo materialmente entificado,

no âmbito da racionalidade humana. Fora do projeto racional, é algo etéreo e amorfo. Prova

disso é o fato de ser matéria fundante de campos do conhecimento que se dedicam ao estudo da

vida humana nas suas mais amplas dimensões, na esfera mesma das ciências humanas. Por isso

esses estudos não têm forma acabada, assim como o Estado também não a tem56

.

Não obstante, sua forma inaugural, como objeto de interesse científico, data em

consonância com o projeto racional ilustrado, que coloca o homem no centro dos

acontecimentos cognoscíveis. Nesses ínterim e contexto, batizam a dinâmica na qual as relações

humanas acontecem de modo pensado de Política. Ao dar nome ao conjunto das relações,

conseguem também tratá-las no campo do conhecimento, estabelecendo, a partir daí, um

caminho sem reverso, ou seja, surgem ciências destinadas a pensar os aspectos relacionais da

condição humana com destaque para as relações de poder, as estruturas sociais em que essas

55

E o recurso à história é, ao mesmo tempo, o recurso à razão, afinal “o conteúdo da razão é aqui o

mesmo conteúdo de história, embora por conteúdo compreendamos não a miscelânea de fatos históricos,

mas o que faz da história um todo racional: as leis e tendências para as quais os fatos apontam, e das quais

eles recebem sua significação”. Por isso mesmo, além das notas e referências extensas, o próprio texto

apresenta-se, em quantidade, acima da média convencionada para estudos dessa ordem na

contemporaneidade, pois a inquisição da razão histórica nos interpelou a associar o modo descritivo e

analítico culminando na densidade qualitativa do ensaio. (In: MARCUSE, Herbert. Razão e revolução:

Hegel e o advento da teoria social. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 195). 56

Não se trata de afirmar que o Estado é, assim, infinito. Ao contrário, enquanto perdurar a luta de classes

ele permanece como “instrumento e agente” da configuração dos interesses burgueses, contudo, se

transforma, ao sabor das “mudanças” que ocorrem no movimento entre e intraclasses decorrentes da

dinâmica processante da produção social. Do mesmo modo como objeto de interesse científico:

“permanece enquanto a luta de classes permaneça latente ou se revele apenas em manifestações

esporádicas” (MARX, 1971, p. 10). Ele deixa de existir quando superada a lógica da dominação burguesa

e instalada a “ditadura do proletariado”. (MARX, 1978). Ou, “a condição da libertação da classe laboriosa

é a abolição de toda classe, assim como a condição da libertação do terceiro estado, da ordem burguesa,

foi a abolição de todos os estados e de todas as ordens (MARX, 2009). Essa afirmação sumária será mais

bem abordada no desenvolvimento da tese que estamos apresentando. Ver: MARX, Karl. O capital.

Livro I, v. I, Pósfácio da 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. MARX, Karl. O 18 brumário

de Luís Bonaparte. (In: Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Abril

Cultural, 1978. Coleção Os Pensadores). MARX, Karl. Miséria da filosofia: resposta à filosofia da

miséria do Sr. Proudhon. Tradução de José Paulo Netto. São Paulo: Expressão Popular, 2009. p.124.

Page 43: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

43

relações se assentam, as maneiras como se vive e sobrevive em sociedade; antes, o que é

sociedade, e assim por diante.

Deste modo, o Capítulo I inicia-se com a tentativa de resgatar, historicamente, como a

dimensão política da vida social foi se configurando em matéria de análise científica e, ao

mesmo tempo, como parâmetro de organização dessa mesma vida social, requisitando, para

isso, formas particulares de exercício de poder.

Como os homens não são iguais, suas ideias também não são iguais, logo, toda a

necessidade de ordem racional das coisas da vida social é controversa. Assim emerge a

problemática do Estado, fundada nas controvérsias sobre as razões e o modus operandi do

exercício do poder.

Intelectuais e estadistas se envolvem com o assunto desde remotos tempos. Arrolamos,

assim, as abordagens mais significativas, ao menos no uso acadêmico corrente, no intuito de

refazer com elas o percurso evolutivo, porém não linear, da razão moderna voltada para os

aprofundamentos teóricos e práticos da problemática com que se ocupam.

Ao longo do tempo, percebemos que a maior parte dessas elaborações acaba por se

constituir em matrizes de pensamento, que são diversificadas, por legatários diferentes,

conforme seus interesses particulares e também do grupo social a que se vinculam.

Isto é, o conjunto de significações do pensamento de determinado autor compõe

parcela da realidade e por este motivo não pode deixar de ser integrada no âmbito do

comportamento de um grupo social. Isto nos libera de uma elaboração de tipo

meramente biográfico quando nos remete às mediações que provocam

discrepâncias entre as pretensões do autor e o significado de sua obra

atribuído por ele mesmo e por outrem. (VIEIRA, 1981, p. 16)57

.

Por isso, fomos de Maquiavel a Hegel, de Marx a Mandel, de Benjamin Constant a

Hayek, com direito a interlúdios em Durkheim e Weber, abordando suas elaborações originais,

as escolas que fundam, e seus desdobramentos nas tintas de outros autores, na releitura de seus

textos e analisando seus conteúdos.

Evidentemente que não se trata de apuração das possíveis teorias do Estado contidas nas

formulações dos intelectuais citados, ainda que este seja um relevante e prazeroso exercício,

antes, o que queremos é explicitar a construção e evolução de um pensar crítico sobre o Estado,

que interrelaciona normatividade e operatividade como meio embrionário para uma

contribuição ao estudo sobre o Estado na contemporaneidade, em tempos de acirramento das

perversidades do capitalismo e porque, nessa evolução de pensamento, estão as chaves

57

VIEIRA, Evaldo. Autoritarismo e corporativismo no Brasil: Oliveira Vianna & companhia. São

Paulo: Cortez, 1981.

Page 44: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

44

heurísticas que esclarecem os modos históricos com que se concretiza o desenvolvimento da

ordem do capital.

Assim, a parcela do projeto racional dedicada às relações de poder que supõem o Estado

como o ente central dessas relações foi sumarizada a ponto de nos esclarecer o intrínseco

componente de desenvolvimento que está nela contido quanto nas instâncias com que

fatalmente se relaciona. O recurso aos clássicos não se fez por diletantismo, mas sim por sua

relevância histórica, por seus conteúdos atemporais, bem como por suas constantes reposições

na vida prática enfeixadas em várias formas de “neos” — neomarxismo, neopositivismo,

neoliberalismo, neokeynesianismo, neodesenvolvimentismo, neoconservadorismo, e assim por

diante.

No Capítulo II traçamos nova tentativa. Empreendemos esforços para propor uma linha

de interpretação histórica que desse conta de evidenciar a inter-relação entre duas de nossas

grandes categorias de trabalho: Estado e Desenvolvimento Capitalista, particularizados no

contexto brasileiro. Procuramos buscar na dinâmica mais fundamental de funcionamento da

formação social capitalista como se constitui a necessidade imanente dessa formação

empreender processos “evolutivos”, quais as características genéricas e particulares desses

processos, quais as correlações de força que disputaram a hegemonia dos “aparelhos privados de

hegemonia” na sociedade civil e como a luta entre classes e frações de classes condensaram no

Estado seus interesses.

Levantamos, nesse capítulo, de modo muito breve, as interpretações mais recorrentes,

em nossos compêndios de história socioeconômica, sobre o que vivemos de

desenvolvimentismo. Ainda que o uso desse termo nos surja na memória como algo recente, de

influência cepalina58

, as protoformas de medidas planejadas de desenvolvimento capitalista,

emanadas de um poder central, podem ser buscadas já no Brasil colonial.

É difícil precisar o início do desenvolvimentismo no Brasil. Uma certidão de

nascimento desse processo seria tão provisória quanto contestada. Há várias alternativas que, se

sujeitando tão somente a nossas preferências racionais, podem iluminar alguns caminhos. Uma

delas é identificar a indissociabilidade — orgânico-estrutural — entre capitalismo e

desenvolvimento e, na tarefa difícil de precisar o início do capitalismo, incluir na narrativa seu

inerente desenvolvimento, uma vez que suas características inaugurais pressupõem mudanças

evolutivas substantivas nas forças produtivas, fulcro do desenvolvimento de tipo capitalista.

A escolha desse percurso, embora racional, não se mostra razoável para um trabalho

acadêmico que deve se ater a um foco e buscar prescrição mais que descrição de fatos históricos

— caso se busque cumprir os objetivos formais de uma tese de doutorado —, por isso,

vislumbramos outra alternativa.

58

Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), organismo da ONU.

Page 45: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

45

Sem abrir mão de passar em exame as características fundantes do capitalismo, em

correlação com as mediações que unem seus nexos internos ao desenvolvimento, podemos

estabelecer parâmetros característicos do fenômeno desenvolvimentista — tomando-o como

produto histórico —; verificar sua recorrência; analisá-lo a luz da conjuntura; identificar as

particularidades estruturais em que se assenta e as inflexões que provoca nas relações sociais.

Enquanto metodologia, esse caminho pouco difere do anterior, pois a descrição e a prescrição

do primeiro podem utilizar-se dessas etapas para tornar suas análises mais científicas que

ideopolíticas.

A diferença está em que o uso desse caminho, para nós, pressupõe recortes temporais e

espaciais mais precisos, obrigando o pesquisador a se manter no trânsito ininterrupto entre as

determinações gerais e particulares do fenômeno, buscando o equilíbrio entre elas, saindo disso

apenas para efeitos narrativos, mas não para fins analíticos, pois se trata de uma realidade não

fragmentada.

Considerando que desse processo inevitavelmente emergem correntes categoriais de

raciocínio e de explicações, o percurso metodológico sugerido não pode existir em abstrato — o

primeiro poderia optar pela dedução. Se não for capaz de afirmar-se no real, antepondo-se a

outro real, como síntese, o fenômeno/processo histórico do desenvolvimentismo deixa de existir

enquanto expressão das contradições engendradas no processo dinâmico da luta de classes59

.

Se “o concreto é concreto porque é síntese de múltiplas determinações”, então, nos

cabe identificar as determinações fundantes do fenômeno eivadas de mediações que expõem a

totalidade da vida social.

Como não se trata de promover a releitura da história, mas sim de buscar nela os

episódios que nos interessam, ainda que estejam sempre vinculados a muitos outros, cinco

períodos históricos se destacaram: a estruturação do Estado republicano, a crise do café, a Era

Vargas, o Plano de Metas de Juscelino Kubistchek, e o desenvolvimentismo no modo

autocrático burguês.

Os cinco períodos são bastante distintos, do ponto de vista das determinações

conjunturais, e, em certa medida mesmo das determinações de tipo estrutural, contudo, há uma

característica comum a todos eles, que lhes confere certa unidade, articulando-os no tempo

59

Refere Marx: “Mais uma vez que a razão conseguiu pôr-se como tese, esta tese, este pensamento,

oposto a si mesmo, desdobra-se em dois pensamentos contraditórios, o positivo e o negativo, o sim e o

não. A luta entre esses dois elementos antagônicos, compreendidos na antítese, constitui o movimento

dialético. O sim tornando-se não, o não tornando-se sim, o sim tornando-se simultaneamente sim e não, o

não tornando-se simultaneamente não e sim, os contrários se equilibram, neutralizam, paralisam. A fusão

desses dois elementos contraditórios constitui um pensamento novo, que é a sua síntese. Este novo

pensamento se desdobra ainda em dois pensamentos contraditórios que, por seu turno, se fundem em uma

nova síntese. Deste trabalho de processo de criação nasce um grupo de pensamentos. Este grupo de

pensamentos segue o mesmo movimento dialético de uma categoria simples, e tem por antítese um grupo

contraditório. Destes dois grupos de pensamento nasce um novo, que é sua síntese”. (In: MARX, Karl.

Miséria da filosofia: resposta à filosofia da miséria do Sr. Proudhon. Tradução de José Paulo Netto.

São Paulo: Expressão Popular, 2009. p.124).

Page 46: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

46

histórico e ao que há de peculiar no Brasil: em todos eles se percebe a exclusão de momentos

radicais do tipo revolucionário jacobino. Dito de outro modo, são todos momentos de revolução

passiva60

, em termos gramscianos.

Além disso, se percebe ainda que, desde sempre, as correntes que propugnam por um

desenvolvimentismo articulado entre capital nacional e estrangeiro apresentam uma força diante

da diversidade do bloco no poder. Essas correntes conseguem ora a hegemonia ora impingir a

parte estruturante de seus interesses na formação da hegemonia de outra fração da classe

burguesa no bloco dominante.

Desse modo, a interpendência das relações capitalistas contemporâneas, acirrada com a

mundialização do capital, é apenas o reflexo dessa “fase superior do imperialismo” em versão

high tech, como anunciara Lênin em sua antecipação da fase financista do capital, que agora

assistimos com maior vigor.

Uma última peculiaridade que levantamos, mas não derradeira, de todo o processo

estudado, é o modo desigual como o nacionalismo se configura como amálgama ideológica das

disputas pelo desenvolvimento. É uma ideologia mutante, capaz de aderir em separado, ou ao

mesmo tempo, a diferentes correntes de pensamento, sejam elas complementares ou

antagônicas, assumindo a forma de seus protagonistas (e vice-versa) e se apresentando sempre

como culturalmente superior.

Os momentos de síntese do desenvolvimentismo brasileiro são interrompidos por uma

conjuntura que assiste a um duplo movimento: a redemocratização do País associada à

implantação da agenda de ajuste neoliberal. Embora a implantação mais drástica e efetiva de tal

agenda só se faça sentir nas quadras dos anos 90, o cenário pautado por amplas experimentações

de caráter socioeconômico é que lhe abrem caminhos.

O caso mais emblemático das protoformas do ajuste são os planos de estabilidade

econômica, que só fizeram por arruinar o pouco que havia se conseguido em termos de

desenvolvimento com os ciclos desenvolvimentistas anteriores. O Plano Cruzado, o Plano

Bresser, o Plano Verão e os Planos Collor I e II lançam as bases para o neoliberalismo, mas

sequer se aproximam dos seus postulados mais fundamentais.

É somente com o Plano Real, responsável pelo controle inflacionário, que a agenda

toma corpo; afinal, a diretriz da estabilidade monetária figura como um dos princípios basilares

nas cartilhas dos organismos multilaterais desde o Consenso de Washington. A opção, para esse

capítulo, foi a ênfase em uma narração descritiva, pois se buscou trazer ao debate os elementos

que informam fases substantivas do processo de desenvolvimento do capitalismo e Estado

brasileiro para que, no avançar das argumentações, pudéssemos identificar a dialética de

continuidade e ruptura em uma realidade saturada de novas determinações.

60

Ver nota de rodapé 9.

Page 47: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

47

Assim, estão dadas as bases para problematizarmos as conjunturas mais próximas de

nós, que trazem como epicentro do processo de acumulação a contrarreforma do Estado e

adaptações verde e amarela no processo de inflexão social-liberal. O eixo fundante, pois, do

Capítulo III, consiste no caminho sugerido pelo método da economia política, que entende o

desenvolvimento econômico como o “mito fundador” do capitalismo, sustentado na exploração

da força de trabalho em níveis sempre crescentes.

A necessidade de desenvolvimento desse modo de acumulação está, assim, ancorada em

duas variáveis estruturais: o trabalho livre ascendente e, em mesmo nível, a expropriação desse

mesmo trabalho livre, que, em última análise, nos remete aos diferentes tratamentos dados ao

valor trabalho.

Ocorre que o objetivo dessa exploração do homem pelo homem está na extração

exponencial da mais-valia. Desse modo, o aumento da produtividade coloca-se como condição

que, para existir, se faz necessário o desenvolvimento dos meios de produção em ato análogo ao

desenvolvimento das forças produtivas, processo ininterrupto.

Emerge daí a contradição fundamental do modo capitalista de produção: a reiteração do

sentido coletivo do trabalho, o que lhe confere, nesse processo, um caráter altamente

civilizatório e a apropriação privada não apenas dos meios e modos de trabalho, mas também

dos resultados dessa produção, a riqueza socialmente produzida.

Portanto, desenvolvimento e capitalismo formam a unidade que confere sentido à

expropriação do trabalho e sua alienação. Mas nem o desenvolvimento nem o capitalismo

existem em abstrato e muito menos o modo como se expressam concretamente pode abrir mão

de instituições concretas que atuem no nível ideopolítico intentando alcançar seus objetivos de

manutenção e reprodução.

Por isso mesmo, todas as elaborações teóricas e práticas feitas pelos intelectuais e

estadistas, que elencamos no Capítulo I, contribuem para esse caminho, pois colocam o Estado

como um sujeito indispensável para as provocações do desenvolvimento nas sociedades de tipo

capitalista, mas também no socialismo61

.

E sendo, o Estado, uma espécie de “síntese” da diversidade social, a forma que

assumem suas instituições tende a ser coerente com o que protagoniza o modo de produção e as

classes no poder. Assim, o desenvolvimento em ação, com protagonismo ou não do Estado,

pode ser facilmente identificado como desenvolvimentismo.

O movimento de ordem global, que leva a desterritorialização do capital, reedita as

velhas formas de dependência econômica dos países da periferia capitalista, em relação ao

centro, agudizando a dependência. No Brasil, esse movimento é sincronizado à implantação do

neoliberalismo, nos anos 90, que se dividirá em duas fases, conforme nossa construção teórica.

61

Embora o socialismo não seja nosso foco, não podemos passar ao largo da importância do Estado para

as sociedades desse tipo, tanto as “pensadas” quanto as efetivamente “realizadas”.

Page 48: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

48

A primeira é marcada pelo contrarreformismo do Estado e terá como características

estruturais ampla agenda de privatização, ofensiva liberalização econômica e todos os

sacrifícios sociais pensáveis em nome da estabilização monetária. A segunda etapa logra do

espólio ambiguamente bendito e maldito da primeira. Bendito, pois recebe o programa de

estabilização monetária (o plano real) consolidado e com seu manual para manutenção

acabados, o que abre espaço para a implantação de medidas não econômicas de cunho eleitoral e

populistas. Maldito, pois os custos sociais do ajuste atingem desde a máquina estatal sucateada,

passando pelos baixos índices de crescimento até a deterioração das condições de reprodução da

classe trabalhadora.

Oportunisticamente, os governos que recebem esse espólio, a partir de 2003, embora

mantenham os eixos fundantes do ajuste — sobretudo a política superavitária e a ausência de

reformas de base e estruturais — modificam as estratégias, promovendo nova concertação entre

Estado–mercado–sociedade, ou em outros termos, uma modernização conservadora das relações

capital-trabalho, ou, nos dizeres de Singer (2012), uma reforma gradual e um pacto conservador.

Negada, pelo discurso oficial, que se trata de um novo ciclo, mais maduro, de

implantação da ofensiva neoliberal, a programática é transmutada em forma de novo

desenvolvimentismo, baseado no crescimento econômico sustentável e na distribuição de renda

para equidade e justiça social. Uma nova geração de políticas sociais se institui de modo

ascendente, em especial as que têm, para este projeto, caráter redistributivo, ao mesmo tempo

em que reformas por dentro causam um movimento regressivo em outras áreas sociais, como a

previdência e a educação, por exemplo.

Assim, no Capítulo III, argumentamos, sob as características factuais desse processo,

que não se trata de um novo-desenvolvimentismo, mas sim de um tipo peculiar de

neoliberalismo, uma nova fase amoldada à realidade e às especificidades do País: um

neoliberalismo à brasileira.

No Capítulo IV vai se delineando, por meio também de resgate histórico, as relações

que se estabelecem entre Serviço Social – Estado – Desenvolvimento. Ali, vamos recuperando o

que já se sabe sobre a profissão, como sua imersão dualista no modo capitalista de produção e

vida, como meio de evidenciar que são as contradições da sociedade em que se insere que são

tomadas como suas próprias contradições, bem como algumas de suas características essenciais,

como o desenvolvimento, como seu componente imanente.

A base para essa discussão ancora-se naquilo que, de fato, se tornou a intenção em

última instância de nossa análise. Ou seja, ao concordarmos com a literatura corrente do Serviço

Social, que nos mostra que a profissão só pode ser entendida no contexto das relações sociais —

no âmbito da produção e reprodução social — próprias da sociedade da qual é parte e expressão,

e, ainda, nos mostra também que a gênese, a manutenção e o dinamismo histórico particulares

da profissão estão diretamente vinculados aos momentos em que a sociedade que lhe requisita é

Page 49: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

49

submetida, por intermédio do Estado, a medidas deliberadamente planejadas de

desenvolvimento, concluiremos o que a literatura também já explorou, que é o entendimento de

que Serviço Social e o desenvolvimento capitalista compõem uma unidade de contrários, em

atração e retração contínuas próprias das contradições que sustentam a reprodução social de

caráter burguês, condicionadas a múltiplas determinações gerais e singulares dos processos

históricos de cada sociedade.

Desse modo, a particularidade dessa relação, no caso brasileiro, estudada por

pesquisadores como Marilda Villela Iamamoto, Raul de Carvalho, José Paulo Netto, Maria

Lúcia Martinelli, Maria Carmelita Yazbek, Leila Lima Santos, Vicente de Paula Faleiros, em

direções distintas, porém convergentes, ao tratar das imbricações ontogenéticas do Serviço

Social com o capitalismo monopolista nos caminhos da crítica marxista, só para citar alguns

nomes, encontra nas transformações conjunturais recentes, sobretudo aquelas afetas ao âmbito

das estruturas jurídico-políticas do Estado, requisição para ser revisitada, pois trabalhamos a

hipótese de que essa conjuntura também é uma espécie de revisitação de um passado não muito

distante.

Em outros termos e em traços largos: O Serviço Social brasileiro surge e se justifica no

contexto das medidas de desenvolvimento traçadas na Era Vargas, que, como todas as medidas

de desenvolvimento clássicas pressupõe um reordenamento da chamada área social, como forma

de garantir um duplo resultado: a reposição e o controle da força de trabalho, associados à

manutenção e/ou ampliação dos níveis de consumo e, por consequência, de acumulação.

Para isso, os assistentes sociais ocupam a linha de frente desse processo, atuando junto à

classe subalterna, na pretensão de incorporá-la à lógica concreta e subjetiva da sociedade de

mercado. É assim nos contextos históricos que se sucedem: no desenvolvimentismo

empreendido por Juscelino Kubistchek com seu Plano de Metas; e no desenvolvimentismo

praticado pelos governos militares com vistas à modernização conservadora.

Assistimos a uma interrupção do uso dessas clássicas estratégias de desenvolvimento62

quando a crise do capital, em prenúncio de seu modo financista avançado, impõe o

reordenamento dos Estados nacionais sob o signo do neoliberalismo. Isso redundou no

enxugamento das máquinas estatais na lógica de um desmonte, na retração de conquistas

históricas da classe trabalhadora configuradas, sobretudo, no campo dos direitos sociais, na

agudização da relação de interdependência econômica dos países subdesenvolvidos e dos países

em desenvolvimento aos de capitalismo central e no deslocamento do enfrentamento das

62

Claro que essas estratégias se associam a outras e que estão condicionadas às características próprias do

seu momento histórico. Contudo, o que arrolamos aqui é um pressuposto fundamental que, embora possa

aparecer de modos diferenciados em cada conjuntura, mantém sempre o seu fim último que é participar

positivamente das medidas de desenvolvimento empregadas pelo Estado acriticamente, como foi no

passado, ou criticamente, como se faz na contemporaneidade.

Page 50: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

50

variáveis da “questão social” do âmbito do Estado para a sociedade civil com o desmonte das

políticas sociais e o apelo ao voluntarismo e ao associativismo civil, dentre outras medidas.

A substituição da trajetória histórica da implantação de medidas de desenvolvimento de

tipo tradicional pelo neoliberalismo rebateu na profissão de várias formas, mas vale destacar um

duplo movimento: de um lado, acelerou o processo de incorporação das matrizes do pensamento

social crítico, aprimorando com seu uso as diferentes formas do exercício e da formação

profissional, o que possibilitou a construção de molduras mais maduras para o projeto

profissional; e, por outro lado, assistiu-se à precarização da natureza das relações e condições de

trabalho com a gestão flexível dos processos de trabalho — contratos precários, parciais,

temporários, por projeto, terceirizados, etc. —, associada à redução de postos não apenas pelo

desmonte das políticas públicas, mas também pela implantação do voluntariado em larga escala.

A história nos mostra que o conjunto das condições econômicas e políticas do período

seguinte leva o País a apresentar uma série de novos arranjos econômicos voltados para o

desenvolvimento amalgamados pela ofensiva ideológica do novo desenvolvimentismo. Isso foi

possível graças a um contraditório e perverso arranjo. De um lado, a propagação (à direita e à

esquerda) do fracasso não assumido do neoliberalismo, sobretudo em suas promessas de

inflexões positivas na agenda social de bem-estar e, por outro lado, as críticas (à esquerda) do

sucesso da ofensiva neoliberal por alcançar tanto a estabilidade (com a política superavitária e

de juros altos) quanto por possibilitar a emergência de uma nova oligarquia: a financeira63

.

Ocorre que essa retomada é feita sob condições históricas muito peculiares64

, o que nos

obriga a investigar seus nexos internos para trabalhar no limiar da hipótese de sua própria

(in)existência. Mas isso se atrela a outra evidência, que se problematizada corretamente pode

nos levar a respostas, ainda que parciais, sobre o entendimento do momento presente, qual seja:

63

A não realização do neoliberalismo nos moldes do que foi orientado no Consenso de Washington e

publicado nas cartilhas das agências multilaterais, com vistas ao ajuste e ao contrarreformismo dos

Estados, é um argumento utilizado por vários ensaístas nas mais diferentes teses. No Brasil, o

contrarreformismo de FHC e Bresser Pereira é tratado como algo interrompido, por analistas que

identificam que a privatização absoluta, como o principal pilar de sustentação do contrarreformismo, não

chegou a se realizar, em virtude da derrota do PSDB nas eleições de 2002. A Privataria Tucana, livro-

dossiê do jornalista Amaury Ribeiro Júnior, de 2011, mostra tal interrupção. Mas há ainda aqueles que,

como Behring (2003, p. 102) identificaram, com cautela, “sinais de esgotamento” da programática

neoliberal decorrentes dos resultados da eleição de 2002. Há os que evidenciam “mudanças na

continuidade”, como é o caso de Boito Jr. (2005) ao tratar da Reforma do Neoliberalismo no governo

Lula, e, o mais surpreendente, é o reconhecimento recente de Bresser Pereira de que há, de fato, um

esgotamento do modelo praticado no Brasil dos anos 1990 (Vide entrevista concedida por Bresser Pereira

à revista Desafios do Desenvolvimento, de abril de 2008, ano 5, n. 42). Mas há, por outro lado, produções

como as de Filgueiras (2006) que demonstram de modo claro e objetivo a vitória da programática

neoliberal. 64

Algumas produções podem ajudar a compreender melhor o que estamos chamando de condição

histórica peculiar, como, por exemplo: IASI, Mauro Luis. As metamorfoses da consciência de classe o

PT entre a negação e o consentimento. São Paulo: Expressão Popular, 2006; VIANNA, Luiz Werneck.

Esquerda brasileira e tradição republicana estudos de conjuntura sobre a era FHC-Lula. Rio de

Janeiro: Revan, 2006 ou ANTUNES, Ricardo. A desertificação neoliberal no Brasil (Collor, FHC e

Lula). Campinas/SP: Autores Associados, 2004. Cada qual a seu modo.

Page 51: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

51

a reconfiguração das políticas sociais contida no novo-desenvolvimentismo recompõe o lugar

que ocupam os assistentes sociais na divisão do trabalho, assim, havendo de fato novo-

desenvolvimentismo, há um novo Serviço Social que o acompanha? De que forma isso ocorre?

Nessa inquietação residem os motivos da investigação que levam, ainda nesse capítulo,

a reflexões sobre a particularidade desse momento neodesenvolvimentista (?) deparar-se com

um projeto profissional que já é capaz de decifrar suas contradições, bem como seus reais

intentos e, ao mesmo tempo, propor a inserção crítica dos profissionais no mundo contraditório

e conflituoso do trabalho.

Não menos significativo é o amadurecimento teórico-analítico que o Serviço Social vem

registrando, ao longo das últimas décadas. Desse modo, recortes da realidade contraditória e

perversa são feitos em forma de estudos analíticos, que permitem, além de desvendar o real nele

mesmo, propor estratégias para seu enfrentamento.

Categorias centrais como trabalho, Estado, Serviço Social e Desenvolvimento

Capitalista encontraram, assim, na passagem para o novo século, formulações indispensáveis

para seu entendimento na perspectiva da totalidade. As teses sobre a reestruturação produtiva, a

contra-reforma, o terceiro setor e a assistencialização da proteção social agregam sentido

ineliminável ao entendimento do Serviço Social nas tramas do neoliberalismo à brasileira.

Levam-nos, ainda, a sugerir de modo inferente possibilidades ao projeto profissional na

conjuntura em tela.

Assim, se o novo desenvolvimentismo (?) é um momento peculiar de síntese do

desenvolvimento capitalista que “captura” o Serviço Social nas malhas das contradições que

expressa, é possível, do mesmo modo, capturar as lacunas e limites que apresenta como formas

objetivas e concretas de iluminar e instrumentalizar um projeto profissional de bases ética e

política antissistêmicas.

Temos clareza de que o ensaio teórico que apresentamos como forma de tese de

doutorado é tão relativo quanto insuficiente, devendo, deste modo, ser submetido à crítica

própria dos processos que fazem avançar o conhecimento.

Page 52: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

52

Capítulo I

ESTADO E RAZÃO MODERNA

É evidente que a consciência dos homens continuará a ser determinada pelos

processos materiais que reproduzem a sociedade, mesmo quando os homens

tiverem chegado a regular suas relações sociais de modo que estas melhor

contribuam para o desenvolvimento de todos. Mas quando estes processos

materiais se tiverem tornado racionais, resultando do trabalho concreto dos

homens, a dependência cega da consciência às relações sociais terá deixado

de existir. A razão, quando determinada por condições sociais racionais, é

determinada por si mesma. A liberdade socialista abarca ambos os lados da

relação entre consciência e a existência social

Herbert Marcuse

A preocupação dos seres humanos em explicar os fatos e fenômenos que circundam a

sua vida é tão antiga quanto sua própria existência. Nessa preocupação reside a origem de

descobertas científicas fundamentais ao processo civilizatório de nossa espécie.

Após séculos de explicações atribuídas a vontades sobrenaturais, a humanidade indaga

sobre a necessidade de encontrar respostas nas coisas, nelas mesmas, e vê no homem o agente

nuclear de seu próprio destino.

Nos enciclopedistas franceses, na Astronomia e Física, com Pascal e Newton; na

Química, com Lavoisier; na Matemática, com Descartes; na Medicina e Biologia, de Hipócrates

a Darwin; nas Artes, na Cultura, Literatura, nas Engenharias e em todos os objetos

cognoscíveis, com seus seres cognoscentes, o homem e a sua razão ocupam o leit motiv desses

campos do conhecimento, ao mesmo passo em que promovem a ruptura com as explicações

teocêntricas no período ilustrado65

.

Mas a construção da racionalidade humana não se limita a esses campos de

conhecimento destacados. Desenvolve-se, pari passu, uma razão que busca desvendar as

dinâmicas, das mais simples às mais complexas, da sociedade humana; suas formas de

organização, seus sentidos, sua razão histórica. Assim, desenvolvem-se campos do

conhecimento que vão desde os sentidos e a razão da política, por exemplo, entendida em

Aristóteles como o caminho para se alcançar a felicidade humana, até as diversas formas de se

viver nas polis como os diferentes regimes e instituições políticas, passando evidentemente pela

construção do direito positivo, dos contratos sociais, dos ciclos de desenvolvimento das

sociedades emergentes de mercado, e das sociedades que podem ser construídas depois de

atestadas determinadas condições da evolução humana, como o socialismo ou o comunismo.

65

O período a que nos referimos compreende boa parte do século XVIII. Nele, intelectuais europeus,

sobretudo franceses, argumentam sobre a supremacia da razão humana opondo-se frontalmente à lógica

teocrática e teocêntrica e ao absolutismo monárquico.

Page 53: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

53

A expansão desse leque de possibilidades de conhecimento funda, como uma

necessidade de sua própria justificativa, disciplinas que se dedicam a esmiuçar as

particularidades de um objeto sociopolítico de investigação, que sempre em processo de franca

expansão se desdobrará em ininterruptos conjuntos de novos objetos: a política. É assim que

nasce a filosofia política, a ciência política, a sociologia política e a sociologia da política, cujas

distinções entre elas não subtraem o fulcro comum existente nas relações sociopolíticas

humanas66

.

A raiz comum dessas ciências sociais está na necessidade imperativa de construir, pela

razão lógico-abstrata, ou empírica, explicações, precedidas de métodos, para as questões afetas

ao poder e ao Estado. Esses são tomados como variáveis interdependentes e a categoria política,

que os une, adquire ênfase diferenciada, a depender dos motivos que suscitam sua análise, do

método ao resultado.

A Filosofia Política, por exemplo, sendo filosofia, utiliza como recurso metodológico o

raciocínio lógico dedutivo, e tem, assim, um caráter normativo. Está, portanto, na raiz dos

conhecimentos científicos, em especial do campo denominado de humanidades. Aristóteles

afirma que a Filosofia estuda os princípios originários de todas as coisas e o “Ser enquanto Ser”,

ou seja, as essências. Adjetivada com a política, a filosofia tende a indagar a essência lógica e

racional do poder.

Filósofos políticos como os ingleses Thomas Hobbes (1588-1679), ou John Locke

(1632-1704), e o suíço Jean Jacques Rousseau (1712-1778) se ocuparam em pensar como as

relações de poder podem ser estabelecidas de modo a atender às necessidades de sobrevivência

dos homens, quando estes transcendem de seu estado primitivo (natural) para a condição de

seres que sobrevivem em sociedade, e, nesse salto, legitimam um poder superior que garanta

essa coexistência. A partir de uma construção lógico-abstrata inferem sobre a origem do Estado

e da sociedade e atribuem à entificação do primeiro a sobrevivência do segundo. Pensavam num

Estado ideal.

A contribuição da Filosofia Política apresenta-se, ainda, na sua preocupação em

caracterizar com precisão o “fenômeno político”, ou seja, estabelecer com rigor lógico

a especificidade dos fatos políticos em relação a outros tipos de acontecimentos. Ao

distinguir, por exemplo, o campo político do mundo da moralidade privada, a

Filosofia Política contribui com a autonomização do saber político. A Filosofia

Política, então, dá os parâmetros para a construção do saber científico tanto da Ciência

Política quanto da Sociologia Política, mas não se confunde com elas. (SOUZA,

2008, p. 9)67

.

66

E, ainda assim, não são apenas “essas ciências” que se preocupam com as “coisas da vida societal”,

mas são estas que nos interessam por ora. 67

SOUZA, Nelson Rosário de. Sociologia política. Curitiba: Iesde Brasil S. A., 2008.

Page 54: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

54

O raciocínio dedutivo que a caracteriza funda tanto a lógica como sua ciência quanto às

teorias do conhecimento. Encontramos, por exemplo, no Ensaio sobre o Entendimento Humano,

de John Locke, as premissas para “a análise de cada uma das formas de conhecimento que

possuímos, a origem de nossas ideias e nossos discursos, a finalidade das teorias e as

capacidades do sujeito cognoscente relacionadas com os objetos que ele pode conhecer”

(CHAUÍ, 2010, p. 167)68

.

A Ciência Política, por seu turno, sustenta-se na empiria. O método é o indutivo,

diferente da dedução que se pratica na Filosofia, embora isso não seja suficiente para explicar as

diferenças fundamentais entre os saberes de um ou outro campo, considerando-se, ainda, que tal

distinção só é possível no sentido stricto, pois, num sentido amplo e não técnico, o termo

ciência política pode se referir ao estudo de qualquer fenômeno, ou estrutura, afetos ao campo

da política.

Bobbio (2007, p. 164) não só confirma tal assertiva quanto anuncia que a preocupação

principal da Filosofia Política é com aquilo que deveria ou poderia vir a ser, enquanto a Ciência

Política contém pressupostos de operatividade, ainda que isso não signifique que “os ideais

tenham sido na história das mudanças políticas menos ‘operativos’ do que os conselhos dos

‘engenheiros sociais’” 69

.

O centro das preocupações permanece nas relações de poder, embora a ênfase da

Ciência recaia um pouco mais sobre as instituições e nos regimes que as orientam. A instalação

dos regimes políticos ajuda a conformar o desenho dos Estados, e, com isso, se conformam

também as instituições estatais70

. Nelas se materializa a sua estrutura jurídico-política, alvo das

problematizações pioneiras da Ciência Política71

.

Assim, notamos que a Ciência Política se debruça sobre as particularidades da relação

poder-Estado-sociedade tratando, além dos regimes políticos, como já mencionado, dos

problemas afetos às eleições, do poder, da autoridade, administração pública, das relações

exteriores, dos partidos, dentre outros. Conceitos estes entrecortados por categorias sociológicas

que os sustentam e/ou os contextualizam como: classes sociais, ideologia, status, etc., próprios

da Sociologia, e requisitados como recurso interdisciplinar.

68

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 14. ed., São Paulo: Ática, 2010. 69

BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. 13. ed., Brasília: UnB, 2007. 70

Claro que não é uma afirmação linear. A opção pelos regimes políticos é uma construção histórica

decorrente da confluência de inúmeras variáveis, que dão sentido ao Estado, mas a luta por um regime

específico também pode ser o fator decisivo na inauguração de um tipo de Estado qualquer. 71

Por isso que o modo como as considerações sobre o poder, feitas por Maquiavel (Niccolò Machiavelli,

1469-1527) em O Príncipe, são consideradas como notas postulares, que dão origem ao Estado moderno,

mesmo nas conjunturas absolutistas. Do mesmo modo, Montesquieu (1689 – 1755) quando propõe a

constituição tripartite dos poderes do Estado: Judiciário, Legislativo e Executivo, mesmo em outra época,

rende-se a pensar também “relações de poder”. São dois exemplos, por serem “incomuns” que nos

mostram como as questões da estrutura estatal ocuparam tanto filósofos quanto cientistas políticos,

fazendo com que a interdependência entre os saberes se estabeleça como um imperativo para a definição

de um campo de conhecimento científico que tem por objeto um ente relacional, sendo um conhecimento

mais dinâmico e não rígido como se define nas ciências naturais.

Page 55: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

55

Mas como disciplina, a Sociologia Política se calça, sobretudo, nas relações sociais

decorrentes do modo como os indivíduos se organizam no processo de produção e reprodução

social da vida, criando sempre, na correlação de forças, mecanismos civilizatórios de

participação no “mundo dos homens”. Antonio Gramsci (1891–1937) ao estabelecer o esquema

dialético de distinção entre sociedade política e sociedade civil72

possibilita a compreensão do

modo pelo qual a sociologia política pode se ocupar em estudar as maneiras como a sociedade

influencia a arena pública, exerce o poder, disputa e conquista hegemonia na esfera estatal.

Antes dele, Hegel (1770-1831), e outros, da escola idealista alemã, enalteceram a

atividade livre e racional e se ocuparam em pensar “o eu” e “o todo” como forma de projetar um

Estado ético e de liberdade em suas práticas políticas73

. Isto porque a disciplina sugere a

articulação dialética entre Sociologia e Política, a primeira tratando dos problemas da sociedade

humana ancorada por teorias sociais amplas e a segunda tratando dos meios e processos

civilizatórios que circundam a organização da sociedade e as formas para se resolver os

problemas elencados pela primeira.

Esse conhecimento pode, ainda, ser adjetivado, quando reduzimos seu escopo de

atuação em Sociologia da Política. Aqui não se trata de nenhum campo autônomo das ciências

sociais, apenas da definição com precisão, por meio de um anúncio prévio do recorte

epistemológico desejado. Equivale a outras adjetivações da Sociologia, como sociologia da

educação, sociologia do trabalho, sociologia da administração, sociologia da religião, sociologia

da cultura, etc.

Em síntese, as motivações que induzem os seres humanos a pensar e a fazer política, de

sua essência à técnica, não prescindem da interdependência de categorias como o Estado e o

poder, portanto, cumpre-nos considerar que o Estado, nas ciências sociais, é um dos objetos que,

ao lado de outros, como o poder e a sociedade, como já dissemos, legitima a racionalidade das

teorias do conhecimento e funda as principais ciências que se ocupam da política, no âmbito do

advento da modernidade.

É quase consenso, no campo das ciências sociais, que esses elementos interdependentes,

em especial o Estado, sejam considerados seus objetos estruturantes. Contudo, ao longo do

processo que os torna elementos constitutivos imprescindíveis para a formulação de um

pensamento crítico, em especial no bojo da tradição marxista, é possível notar que nem sempre

72

Gramsci estabelece uma distinção dialética entre estes dois segmentos: a Sociedade política, que

compreende os aparelhos de coerção sob o controle das burocracias executivas e do aparato jurídico-

militar, e Sociedade civil, que abarca o conjunto de organizações responsáveis pela difusão das ideologias

que sustentam o consenso (hegemonia) no Estado burguês, ainda que dentre esses “aparelhos” possam

existir aqueles que se colocam contrários à lógica dominante. Esses organismos vão desde o partido

político e organizações sindicais até os veículos de comunicação, Igreja, Escola, etc. Sobre isso

voltaremos a tratar no item 1.2.2. 73

Neste sentido consultar: MARCUSE, Herbert. Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social.

São Paulo: Paz e Terra, 2004.

Page 56: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

56

seus componentes axiais econômicos e políticos estão presentes de modo decisivo na orientação

das análises.

Perry Anderson e Atílio Borón, por caminhos distintos, submeteram esse processo à

crítica, e, no final, convergem, ao demonstrar que a construção ontológica dessas categorias

deve permitir plasmar-se no movimento dialético próprio da realidade em que se assenta,

recusando a linearidade e a construção da crítica (que articula teoria e prática políticas)

entendida apenas como uma sucessão evolutiva natural de fatos, acontecimentos e vontades

pessoais de seus protagonistas.

Ambos chamam a atenção para a centralidade da luta de classes como mola propulsora e

estruturante das ciências sociais, que buscam lastro no Estado e em suas dinâmicas econômicas,

políticas, ideológicas, etc., inerentes, no âmbito da tradição marxista. Inferem que sua ausência

pode conduzir a um academicismo distante da prática revolucionária concreta (Anderson)

quanto à legitimação da ordem burguesa e do pensamento conservador (Borón). O historiador

inglês faz referência ao movimento descontínuo do tratamento dessas categorias no marxismo

ocidental (eurocentrado) e o sociólogo argentino relembra do resgate da problemática74

do

Estado no contexto latino-americano, nas últimas quadras do século XX, após um longo período

de marginalização nos círculos político e acadêmico.

Anderson (2004) refere que o marxismo ocidental foi acometido de um silêncio sobre as

estruturas econômicas e políticas como objetos centrais da teoria, causado por um deslocamento

para a filosofia:

O deslocamento básico de todo o eixo gravitacional do marxismo europeu no sentido

da filosofia foi resultado do abandono progressivo de estruturas econômicas ou

políticas como objetos centrais da teoria. (...) Os determinantes externos que levaram

à substituição da economia e da política pela filosofia como foco principal da teoria

marxista e das assembleias partidárias pelos departamentos acadêmicos como seus

centros formais estavam inscritos na sombria história do período (...) [Mas] o evento

decisivo para tal transformação foi a tardia descoberta do mais importante trabalho do

jovem Marx — os Manuscritos de Paris de 1844, que foram publicados pela primeira

vez em Moscou, em 1932. (ANDERSON, 2004, p. 69-70)75

.

Refere, o historiador inglês, que ainda que os impactos dessa descoberta tenham sido

abafados pela vitória do nazismo, na Alemanha, e “pelo início dos expurgos na Rússia, em

1934”, os Manuscritos “causaram profunda e duradoura impressão” em Lukács, Marcuse e

Lefebvre. O primeiro, “trabalhando sob a supervisão de Riazanov, em seu exílio em Moscou,

em 1931, os decifrando”; o segundo, afirmando com um ensaio de 1932 que “os Manuscritos

74

Sobre o conceito de “problemática do Estado”, ver o item 1.1. 75

O autor faz uma distinção entre o tratamento teórico conferido ao Estado no campo filosófico daquele

do campo da ciência política, sendo que o último é que orienta institucionalmente a configuração do

Estado. (In: ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental nas trilhas do

materialismo histórico. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004).

Page 57: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

57

colocavam toda a teoria do socialismo científico sobre novas bases” e enfatizava “em particular

sua visão de que eles demonstravam a importância vital dos fundamentos filosóficos do

materialismo histórico em todos os estágios da obra de Marx” e, o último, sendo o responsável

pelas primeiras traduções dos Manuscritos.

O desdobramento dos estudos desses autores, mas também de outros marxistas

europeus, como Althusser, Gramsci, Della Volpe, dentre outros, eclodiu em recorrentes

formulações sobre o método, causando um afastamento cada vez maior dos “filósofos

profissionais” da prática política das massas proletárias. (Id., ibid.).

A trajetória do desenvolvimento do próprio Marx foi paradoxalmente invertida pelo

marxismo ocidental como um todo. Enquanto o fundador do materialismo histórico

moveu-se progressivamente da filosofia para a política e então para a economia como

terreno central de seu pensamento, os herdeiros da tradição que apareceram depois de

1920 gradualmente afastaram-se da economia e da política para se aproximar da

filosofia, abandonando o envolvimento direto com aquelas que foram as grandes

preocupações do Marx da maturidade, quase tão completamente como este tinha

abandonado o exame direto das questões filosóficas que o tinham interessado na

juventude. (...). Na verdade, está claro, o que ocorreu não foi, nem poderia ter sido,

mera inversão. A empreitada filosófica do próprio Marx estava dirigida, antes de tudo,

para um acerto de contas com Hegel e seus mais importantes herdeiros e críticos na

Alemanha, especialmente Feuerbach. (Id., 2004, p. 72)76

.

Outro elemento destacado por Anderson, para a reversão do eixo categorial central de Marx, no

marxismo ocidental, foi, de um lado, a experiência real de implantação do socialismo, que leva

o debate teórico à endogenia, e, por outro, a influência do stalinismo77

. Refere:

76

O autor faz distinção entre o tratamento teórico conferido ao Estado no campo filosófico daquele do

campo da ciência política, sendo que o último é o que orienta institucionalmente a configuração do

Estado. (In: ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental nas trilhas do

materialismo histórico. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004). 77

Nascimento (2007) em seu artigo O Estado Capitalista na Análise de Nicos Poulantzas, ao discorrer

sobre o contexto histórico em que a obra deste autor foi elaborada, refere polemicamente, nas trilhas do

raciocínio de Anderson, que: “Durante mais de vinte anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, a

produção teórica do marxismo ocidental no campo da teoria política e da teoria econômica foi

praticamente inexistente em termos de contribuições originais. Os textos sobre política e economia, que

surgiram após a Segunda Guerra Mundial, em sua maioria, eram da lavra dos burocratas dos partidos

comunistas e tinham como apanágio a ‘esterilidade’ teórica, pois não apresentavam nenhuma contribuição

decisiva ou original. Tal esterilidade seria tributária de dois elementos. Por um lado, pelo fato de que as

discussões sobre a luta de classes e sobre o imperialismo terem sido praticamente monopolizadas pela

cúpula dos partidos comunistas (os quais submetiam todas as suas teses à linha oficial do PCUS). Por

outro, pela novidade que representava o fenômeno de consolidação de uma dominação burguesa fundada

não mais em práticas autocráticas, mas, sobretudo, em práticas democráticas — baseadas na democracia

representativa e sufragista. O fenômeno da consolidação em países de capitalismo avançado da

democracia burguesa teria escapado às análises de Marx e Lênin e, posteriormente, à tradição que herdara

o legado teórico desses autores”. (In: NASCIMENTO, Adriano. O Estado capitalista na análise de Nicos

Poulantzas. Revista Palavra Mundo, v. 1, n. 1, Campinas/SP, 2007).

Page 58: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

58

Com a vitória do “Socialismo em um País” na União Soviética, seguida pela

progressiva burocratização do Comintern e pelas perspectivas nacionalistas adotadas

pelo comunismo europeu durante e após a Segunda Guerra Mundial, os marcos do

debate marxista passaram por uma mudança fundamental. Ocorria agora não apenas

uma distancia cada vez maior da militância política, mas de qualquer horizonte

internacional. (ANDERSON, 2004, p. 72)78

.

Mas o que o autor de Considerações sobre o Marxismo Ocidental não aborda é que a

produção que categoriza como filosófica, em sentido negativo, mesmo sendo produzida em

círculos acadêmicos oficiais, isto é, para além das “escolas operárias, do partido, dos

movimentos sociais” não foi encastelada pelos muros da academia sem sofrer nenhuma

influência da agitação social que ocorria do lado de fora. Justamente o aprofundamento de

questões como as do “método” possibilitaram um novo tipo de relação entre teoria e prática

revolucionária, permitindo à teoria lapsos temporais mais longos para sua elaboração e

maturação ainda que em contraste com a urgência cotidiana da luta de classes79

.

Além disso, os acontecimentos que levam à adoção da Nova Política Econômica (NEP),

após o X Congresso do PCUS, ao assegurar uma série de concessões mercantis na União

Soviética, não se furtam da interlocução com intelectuais marxistas de maior envergadura,

preocupados com os rumos da Revolução, após a desestabilização do Comunismo de Guerra.

Mesmo nesse contexto, e nisto Anderson é preciso, segundo nossa interpretação, o

desenvolvimento de um tipo mais complexo de Estado que acontecia em países como os

Estados Unidos, Inglaterra ou Alemanha (ou mesmo a Itália unificada que chamará a atenção de

Gramsci) não fora objeto, pelo menos de imediato, de análise do marxismo ocidental. Isto é, o

tipo de Estado capitalista necessário à reprodução dos interesses das classes dominantes, que

pressupõe a radicalização do trabalho livre – uma de suas características fundantes –, e sustenta-

se nos estatutos da democracia burguesa (representação, sufrágio, aparelhos jurídicos-estatais,

etc.), desestimula a esquerda a produzir teses sobre ele, uma vez que não encontravam

referências contundentes sobre o tema em Marx ou em Lênin.

78

O autor faz uma distinção entre o tratamento teórico conferido ao Estado no campo filosófico daquele

do campo da ciência política, sendo que o último é o que orienta institucionalmente a configuração do

Estado. (In: ANDERSON, Perry. Ob. Cit., 2004). 79

Seria um bom exercício, no sentido de aprimorar nossa afirmação, proceder à análise biográfica dos

principais intelectuais marxistas europeus, estes citados por Anderson, e, nelas constatar a influência do

contexto social em que vivem e produzem em suas formulações teóricas e o retorno destas à realidade

(prática social) mesma. Não procederemos a tal análise, para não enviesar nosso raciocínio

argumentativo, contudo, nos permitimos indicar, por exemplo, o estudo de Michael Löwy sobre A

Evolução Política de Lukács (1909-1929) publicado homonimamente no Brasil (São Paulo: Cortez, 1998)

com a tradução de Heloísa Helena A. Mello, Agostinho Ferreira Martins, anexos traduzidos por Gildo

Marçal Brandão. Do mesmo modo, o leitor pode recorrer a biografias de Althusser, Lefebvre, Marcuse (e

outros membros da Escola de Frankfurt), Gramsci, entre outros.

Page 59: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

59

O Estado burguês democrático em si nunca foi objeto de qualquer trabalho importante

de Marx, que morreu antes de sua realização, ou de Lênin, cujo inimigo, na Rússia

czarista, era um tipo totalmente diferente de Estado. Eram de escala pouco menor os

problemas suscitados pelo rápido avanço da economia capitalista mundial nas duas

primeiras décadas após a segunda Guerra do que as dificuldades existentes no

desenvolvimento de uma teoria política capaz de apreender e analisar a natureza e os

mecanismos da democracia representativa como uma forma madura de poder burguês.

(Id., ibid.,)80

.

Evidentemente que a publicação, em 1917, de O Estado e a Revolução, de Lênin, uma

obra capital dentro do marxismo, segundo os dizeres de Florestan Fernandes, marca uma

inflexão substantiva nos estudos sobre a problemática teórica e das práticas políticas ao Estado

afetas. Mas são justamente os ventos revolucionários da mudança que fazem com que o próprio

Lênin se dedique aos assuntos da Revolução abdicando de aprofundamentos posteriores,

corroborando a afirmação anterior de Anderson.

Borón (1994, p. 243), por sua vez, refere-se ao desterro e retorno do Estado informando

que “o Estado se transformou em um dos eixos principais do debate que atualmente agita as

ciências sociais e a vida política das sociedades contemporâneas”. O autor atribui esse agito ao

advento neoconservador

que prevalece em todo o mundo e que converteu o Estado em uma espécie de

bête noire81

que é preciso destruir. Isto não poderia deixar de surpreender o

estudioso da ciência política, dado que, anteriormente a este esmagador

retorno, o conceito de Estado havia sido excomungado da academia e

desterrado para os nebulosos territórios da ideologia e do pensamento pré-

científico. As razões: uma supostamente incurável vaguidão conceitual e um

traço cronicamente formalista o privavam de todo valor heurístico. (Id.,

ibid., p. 243).

E prossegue:

80

E, de fato, o Estado da democracia liberal de massas não foi objeto das análises marxianas. Nem o

pudera, afinal, não foi esee o tipo de Estado que Marx conheceu. Contudo, procede a crítica do Estado em

obras como Introdução à Crítica e a Filosofia do Direito de Hegel; Sobre a Questão Judaica; Glosas

Críticas Marginais ao Artigo “O Rei da Prússia e a Reforma Social, de um Prussiano”; 18 Brumário de

Luís Bonaparte e Guerra Civil na França. Neste último, defendendo a “destruição do Estado”. No

Manifesto do Partido Comunista, escrito em parceria com Engels, os autores chegam a proferir uma

“defesa” da democracia, mas em conformidade ao entendimento corrente no movimento operário da

época: democracia, tendo o proletariado como “classe dominante”. 81

Besta negra (tradução nossa).

Page 60: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

60

Em 1953 – uma época em que, da mesma forma que hoje, também se falava

do “fim das ideologias” e do triunfo do capitalismo – David Easton

expressava eloquentemente o consenso prevalecente dentre os cientistas

sociais de seu tempo ao afirmar que “nem o Estado nem o poder são

conceitos que servem ao desenvolvimento da pesquisa política”. (Id.,

ibid.p.243).

Como um objeto pulsante para as ciências, até mesmo de um modo geral, isto é, para

além das sociais e políticas, como fênix, o Estado ressurge e recupera sua inevitabilidade. Borón

(1994, p. 245) lembra a produção latino-americanista que invade a academia norte-americana,

tratando de temas como a dependência, o subdesenvolvimento e o Estado, entre os anos 60 e 70.

O regresso virtuoso do Estado como objeto de interesse científico subverte o posicionamento

anterior de Easton, que é levado a afirmar que “o Estado agora sitiou o sistema político” e

assim, numa tentativa de explicar esse retorno, elenca três principais motivos para o fenômeno:

1) o ressurgimento cíclico do marxismo nos Estados Unidos; 2) a persistente necessidade dos

conservadores de encontrar alguém a quem possam culpar pela desordem atual das sociedades

ocidentais; 3) as recentes tendências em matéria de pesquisa, orientadas para análise de políticas

(policy analysis).

Borón (1994) considera os argumentos de Easton insuficientes e, por isso, acrescenta a

eles: 1) a indubitável estatificação dos processos de acumulação capitalista e da vida cotidiana

nas sociedades burguesas [...] a partir da recomposição keynesiana posterior à Grande

Depressão de 1929; 2) o caráter penetrante e de longa duração da crise política que afeta os

estados contemporâneos, qualquer que seja seu tipo e forma, em todos os seus níveis e,

finalmente; 3) a insuportável leveza teórica e a aridez conceitual da ciência política

convencional.

Os argumentos de Easton não alcançam os componentes estruturais das relações sociais

que engendram a formulação científica. Uma análise mais comprometida com as reais

condições em que se autoproduz a crítica, deve levar em conta não apenas os elementos

conjunturais, mas também as estruturas em que são gestados. Os diferentes padrões de

acumulação capitalista, como bem refere Borón (1994), estão na base de qualquer investigação

sobre o Estado e as relações de poder. Além disso, ignorar a participação estatal nos processos

de reprodução ampliada do capital, com inflexões em toda a vida social, é no mínimo manter-se

na superficialidade da análise.

Por isso, esses blecautes nas formulações sobre o Estado, ao longo da história, estão, em

nossa opinião, mais condicionados à prevalência do complexo ideológico burguês de

determinados tempos, que busca encobrir as contradições engendradas por seu sistema

socioeconômico do que necessariamente uma possível irrelevância da temática como objeto de

pesquisa. O Estado nunca abandonou a cena intelectual e política das academias, dos

Page 61: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

61

Parlamentos, dos partidos ou das praças públicas. Mesmo quando considerado irrelevante, sua

presença na difusão das teses sobre sua própria irrelevância o manteve vivo e afeto ao campo da

racionalidade humana.

Assim, esse Capítulo I busca passar em exame as construções racionais modernas82

mais

visitadas pelos estudiosos do tema Estado e das relações de poder, nos domínios da Filosofia

Política, da Ciência Política e da Sociologia. De modo que seus desdobramentos, nos campos da

Economia e do Direito, fiquem evidentes. São formulações dos mais variados matizes: do

jusnaturalismo ao idealismo alemão, atravessando a tradição marxista, incorporando os

postulados liberais, e, por fim, deslocando o debate conceitual para os tipos predominantes de

Estado.

Outrossim, afirmamos que não se trata de uma apuração das possíveis teorias do Estado

contidas nas formulações que elencamos, ainda que este seja um relevante e prazeroso

exercício, antes, o que queremos é explicitar a construção e evolução de um pensar crítico sobre

o Estado que inter-relaciona normatividade e operatividade como meio embrionário para uma

contribuição ao estudo sobre o Estado na contemporaneidade, em tempos de acirramento das

perversidades do capitalismo, e, porque, nessa evolução de pensamento, estão as chaves

heurísticas que esclarecem os modos históricos como se concretiza o desenvolvimento da ordem

do capital.

É uma espécie de introdução sobre as formas heterogêneas de se pensar e construir o

Estado, considerando que nosso estudo se referencia num tipo específico: o Estado capitalista, o

que lhe confere características próprias, dentre as quais destacaremos suas formas particulares

de desenvolvimento e, nelas, a movimentação ético-política do Serviço Social, no que tange

tanto à incorporação da ciência e filosofia política pela profissão quanto a suas conexões com

um projeto profissional de bases antissistêmicas.

1.1 A problemática do Estado

As preocupações de grande quantidade de intelectuais em explicar o que é e entender

como funciona a sociedade humana (desde o primitivismo até o capitalismo contemporâneo) e

nela o Estado justifica-se, dentre outros motivos, porque intencionam, via de regra, conferir

direcionamento político e ideológico ao Estado, seja para destruí-lo, após transformá-lo em

82

Recorremos, às vezes, às formulações pré-modernas apenas para efeitos de contextualização histórica

de determinados raciocínios.

Page 62: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

62

instrumento para a revolução proletária (Marx, Engels e Lênin), seja para disputá-lo na esteira

da “condensação de relações de força” que engendra (Poulantzas)83

.

Essa articulação intencional pode se dar de várias formas. Por meio dos partidos

políticos, a forma institucional mais utilizada para essas disputas, mas pode ocorrer também por

meio e influência das corporações, de agentes públicos ou privados isolados, de organizações

sindicais, de movimentos sociais, dentre outros, sempre na direção de corroborar ou refutar

grandes ou pequenas construções teóricas que o tiveram como objeto de análise.

É no teor dessas construções teórico-metodológicas que os diferentes governos têm

encontrado sustentação para colocar em prática suas epistemologias as quais, alçadas ao campo

concreto e real da luta de classes, refletem os interesses dos grupos a que se vinculam,

transformando-se em ação concreta, ou, nos termos atuais, em programas de governo.

Desde o jusnaturalismo de Hobbes, Locke, ou Rousseau, até a incursão contemporânea

que leva Anthony Blair a seguir os mandamentos da Terceira Via de Giddens, ou mesmo nas

articulações de pensamento e ação entre Bresser Pereira e Fernando Henrique Cardoso, em suas

ofensivas contrarreformistas no Brasil, intelectuais e estadistas se confundem e se identificam

fenomenicamente em processos parasitários de retroalimentação84

.

As defesas pelo fortalecimento ou enfraquecimento, existência ou inexistência do

Estado, podem ser dos mais diversos matizes, como dito alhures. Há os que sugerem o fim do

Estado como forma de dar vazão à supremacia do mercado e sua mão invisível; há os que

defendem o seu fim como a única maneira de proporcionar a efetiva igualdade entre os homens.

Outros podem defender sua existência mediante a exacerbação de seu poder regulatório

e coercitivo, interferindo nas liberdades individuais, como é o caso dos regimes autocráticos, ao

passo que outros podem pensá-lo neutro, diante das disputas próprias da democracia liberal

burguesa. Da direita à esquerda, todos têm opinião e posicionamento sobre o Estado. Processo

histórico este que o alça dos braços da ciência e filosofia políticas para o campo das teorias do

direito, da administração, da administração da produção, etc.

83

A grande questão colocada por Marx, Engels e muitos outros intelectuais da tradição marxista é a

“extinção” desse “comitê gestor dos negócios comuns da burguesia”. As distinções entre eles, incluindo

agora Gramsci, se davam no campo de como encaminhar tal extinção — a luta proletária mesmo — de

modo a lograr o êxito revolucionário necessário. Lênin, por exemplo, foi contundente a esse processo

quando propõe a “guerra de movimento” e dá outros encaminhamentos em O Estado e a Revolução se

aproximando do que Marx argumentou em A Guerra Civil na França. Gramsci, por seu turno, propôs a

“guerra de posição” na sociedade civil com a generalização da política pelos aparelhos privados de

hegemonia. Um “marxismo” que destoa destes é mesmo o de Poulantzas, que, ao conceber o Estado como

“condensação de relação de forças”, abre terreno para que se pense em disputas no e pelo Estado. No

Capítulo IV, veremos como essas construções influenciaram o tratamento dispensado pelo Serviço Social

à problemática teórico-prática do Estado redundando em um ecletismo de posições. 84

Um exemplo interessante são as observações traçadas por Napoleão Bonaparte e a rainha Cristina da

Suécia sobre O Príncipe, de Maquiavel. Há várias edições dessa obra que agregam as notas dos dois

estadistas. A que utilizamos é a da Editora Jardim dos Livros (São Paulo, 2007), tradução direta do

italiano por Ana Paula Pessoa. Nela, os comentários de Napoleão e rainha Cristina estão incorporados

como notas.

Page 63: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

63

O fato é que a definição de Estado nunca será algo acabado, signatário de uma verdade,

o que levou Pereira (2008) a afirmar que o Estado, “além de ser um conceito complexo, é um

fenômeno histórico e relacional”85

.

Desde que jacobinos e girondinos se sentaram em lados opostos, na Assembleia

Francesa de 1791, a vida de estadistas e estudiosos do Estado tornou-se imbuída da

inevitabilidade de sua problematização, ainda que, por vezes, presa ao maniqueísmo do

antagonismo político marcado pelas noções de direita e esquerda. Desse modo, tanto um polo

quanto outro não conseguem precisar, mesmo na polarização que anunciam, uma definição

unívoca do Estado; contudo, adicionam elementos que buscam defini-lo ora por suas funções,

ora pelas instituições ou corporações que o compõe, ora por sua relação inexorável com a

sociedade, ora por todos esses elementos juntos, e assim por diante. Trata-se, então, de entender

que o Estado não “existe em abstrato (sem vinculações com a realidade e a história) e nem de

forma absoluta (assumindo sempre e para toda vida uma única forma)” (Id., ibid.). Por isso, a

natureza do Estado é de imanente problemática.

Por problemática, entendemos “o conjunto de perguntas, ideias e suposições que

delimitam o terreno no qual se produz determinada teoria, terreno que nem sempre é visível na

superfície do discurso teórico, e que, no entanto, determina as condições e as possibilidades de

enunciados desse discurso” (BOITO Jr., 2007, p. 42)86

ou, como referiu Althusser (apud BOITO

Jr., 2007, p. 42): “A problemática é a unidade profunda de um pensamento teórico ou

ideológico”.

Desse modo, Boito Jr. (2007) nos lembra que distintas teorias podem ser construídas

com base em uma única problemática. Em nosso conjunto argumentativo, a problemática

teórico-prática do Estado encontra abrigo numa miríade de teses e teorias que mantém sempre

uma base comum, qual seja, a processualidade de sua entificação, o que incide em sua estrutura

e nas formas que se materializam ao sabor de distintas conjunturas.

Ratificando em outros termos, nos interessa, assim, um tipo particular de Estado, ou

seja, o referido a uma formação social específica, historicamente determinada, cujas

características lhe dão forma estrutural e que, de modo ainda mais específico, se referencia

também a contingências conjunturais. Trata-se, pois, daquele tipo de Estado dotado de

obrigações positivas que inevitavelmente o impelem a exercer regulações sociais por meio de

políticas. Ou seja, o Estado em ação (PEREIRA, 2008, p.99).

85

Segundo a autora, histórico, porque não existe de forma absoluta e inalterável. É algo em movimento e

constante mutação ... relacional porque não é um fenômeno isolado, fechado ou circunscrito em si

mesmo e autossuficiente, mas um fenômeno em relação. (In: PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira.

Política social: temas & questões. São Paulo: Cortez, 2008). 86

BOITO JR, Armando. Estado, política e classes sociais. Ensaios teóricos e históricos. São Paulo:

Unesp, 2007.

Page 64: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

64

É esse tipo de Estado que interessa à tese que ora apresentamos, pois esse é o tipo que

protagoniza impulsos cíclicos voltados ao seu próprio desenvolvimento, em ato de

reciprocidade ao desenvolvimento do modo de produção capitalista e que, ao longo dos tempos,

tem sido objeto de interesse científico com inflexões diretas nos rumos que as sociedades

humanas têm tomado, desde o advento da Modernidade. Sobre essas particularidades,

retornaremos mais adiante, todavia, é importante resgatar a trajetória evolutiva na construção do

pensamento teórico e prático, ou seja, da problemática mesma do Estado nas formulações de

maior influência, de base racional, conforme já anunciamos.

1.2 Problematizações mais visitadas: exemplos de evolução do pensamento sobre o

Estado

É notória a preocupação de intelectuais e estadistas em definir e pensar o Estado nas

suas mais variadas formas e expressões. Dedutiva ou indutivamente, é possível perceber um fio

evolutivo, porém não linear, nas formulações teórico-práticas mais visitadas sobre o tema. Tais

formulações expressam, nas ações de seus emissores, as “consciências sociais práticas” dos

grupos sociais a que se vinculam87

.

Marcados pela heterogeneidade, há grupos de formuladores que primam pela

explicitação de valores universais, ou por elementos categoriais fundantes, que conduzem a

análises totalizantes, e, recorrem, sobretudo, às ciências sociais88

. Outros, também com

diferenciações internas, nos apresentam de modo mais evidente os valores sensíveis que

conformam a problemática do Estado. Estes, por sua vez, dialogam mais fortemente com a

filosofia política89

.

Há ainda um terceiro grupo, que se ocupa menos da problemática teórico-prática do

Estado (por vezes, até a nega) por entender que as funções a ele afetas se reduzem à participação

na busca pelo êxito dos processos que visam administrar as relações sociais como derivação

direta dos mecanismos de gestão das relações de produção. São os que se ancoram

87

Esses intelectuais, mas, sobretudo, os “estadistas”, podem ser entendidos como ideólogos de seus

grupos sociais. Ideologia aqui tratada não como falsa consciência, conforme nos esclarece Mészáros,

quando afirma: “a ideologia não é ilusão nem superstição religiosa de indivíduos mal orientados, mas

uma forma específica de consciência social, materialmente ancorada e sustentada. Como tal, é insuperável

nas sociedades de classes”. (In: MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo

Editorial, 2004). 88

São expoentes dessa perspectiva: Marx (1818-1883); Engels (1820-1895); Lênin (1870-1924); Lukács

(1885-1971); Gramsci (1891-1937); Althusser (1918-1990); Mandel (1923-1995) e Poulantzas (1936-

1979); Durkheim (1858-1917); Weber (1864-1920). 89

Destacam-se: Hobbes (1588-1679); Locke (1632-1704); Kant (1724-1804); Rosseau (1712-1778);

Hegel (1770-1831).

Page 65: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

65

fundamentalmente no direito positivo e nas teorias gerais da administração das empresas e dos

negócios capitalistas90

.

De modo geral, todas as perspectivas, por serem também ideológicas, apresentam

natureza ontológica que se traduz numa espécie de função social, isto é, refletem também não

apenas o papel que a ideologia desempenha ante o grupo social de seus portadores como

também a conscientização como prévia ideação da prática social de seus agentes. Deste modo,

o conjunto de intenções que serão implementadas pelos agentes portadores da ideologia, em

termos ontológico-práticos, são encontradas sob duas formas essenciais de embate ético-

político: o liberalismo e o socialismo.

Os primeiros, na sua maioria, se guiam pelos primados da política econômica burguesa,

evidenciando, em seus constructos, o liberalismo como valor ético para o tipo de Estado que

defendem, ainda que conjunturas históricas específicas possam levá-los a radicalizar ou atenuar

as diretrizes liberais, como é o caso do liberalismo radical autocrático ou o social-liberalismo. Já

entre os socialistas, podem se destacar tendências, do mesmo modo autocráticas, e outras que,

revisando ou reformando as bases de sustentação de suas teses, desembocam em uma

heterogeneidade de acepções que vão desde a social-democracia até o capitalismo

humanizado91

.

As fronteiras entre o conhecimento produzido por esses três grupos de formuladores são

tênues, por vezes, possibilitando articulações positivas, quando há algum tipo de identificação

ético-política ou metodológica; ou negativas, quando se trata de tomar o outro por antagonista.

Contudo, se faz lídimo afirmar que não estamos pondo em confronto filosofias e sociologias,

afinal:

90

Os mais visitados nesse campo costumam ser: Adam Smith (1723-1790); Thomas Malthus (1766-

1834); David Ricardo (1772-1823); Fayol (1841-1925); Hayek (1849-1992); Taylor (1856-1915); Henry

Ford (1863-1947); F. Mises (1881-1883); Keynes (1883-1946); e Friedman (1912-2006). 91

O “revisionismo”, como ficou conhecido o movimento protagonizado por Bernstein e Kaustky,

sobretudo a partir da II Internacional, propunha a revisão dos escritos de Marx subtraindo deles a

perspectiva de uma irrupção violenta e revolucionária como meio de superação do capitalismo. Sem

dúvida, são os teóricos mais importantes da gênese da social-democracia. As teses sobre o capitalismo

humanizado, embora tenham bases clássicas, estão em voga na pós-modernidade, inclusive em grande

parte dos chamados novos movimentos sociais. Ver, nesse sentido, de Boaventura de Sousa Santos:

Para uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez, 2007; Poderá o Direito Ser

Emancipatório? Vitória: Faculdade de Direito e Fundação Boiteux, 2007; Renovar a Teoria Crítica e

Reinventar a Emancipação Social. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007; A Gramática do Tempo. Para

uma Nova Cultura Política. Porto: Afrontamento, 2006. Também publicado no Brasil, 2. ed., São Paulo:

Cortez, 2006, e Fórum Social Mundial: Manual de Uso. São Paulo: Cortez.

Page 66: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

66

em um ensaio, Le philosophe et La sociologie, Merleau-Ponty assinalava os riscos de

uma rivalidade cultivada entre filósofos e sociólogos, os primeiros considerando-se

possuidores da verdade porque detentores da Ideia, os segundos reivindicando para si

a posse do verdadeiro porque conhecedores do Fato. É uma rivalidade obscurantista

que priva o filósofo de contato com o mundo e o sociólogo, da interpretação do

sentido de sua investigação; tal atitude esconde algo típico da ideologia: a crença na

existência do Sujeito do Conhecimento como olhar separado que sobrevoa

imaginariamente o real e o domina através de um sistema de representações, sem que

seja preciso indagar qual o sentido dos fatos nem qual a necessidade das ideias ao

serem realizadas pela experiência. (CHAUÍ, 2007, p. 104)92.

Queremos evidenciar, portanto, a relevância do pensamento construído pelos

intelectuais que consideramos significativos para nossa análise — também por serem

referências recorrentes no Serviço Social —, pois, na sua maioria, inauguram escolas de

pensamento que nos influenciam até os dias atuais, à direita, à esquerda; na porosidade do

centro, ou em suas frações.

Das relações de poder (e sua manutenção) em Maquiavel até condensar correlações de

forças típicas da vida social, em Poulantzas, a problemática do Estado foi se metamorfoseando,

de cérebro em cérebro, até chegar aos elementos que nos permitem hoje elencar categorias

teóricas para a análise de suas diferentes nuanças conceituais, teóricas, políticas, metodológicas

e éticas.

Conferimos um destaque especial para as “narrativas” no campo da tradição marxista,

tanto por sua diversidade quanto pela abrangência, mas, sobretudo, porque é nesse campo que

residem os nexos ontológicos da crítica que empreendemos.

Ademais, a variedade de perspectivas no bojo dessa tradição tende a mostrar a

fecundidade da problemática do Estado nesse campo de construção do conhecimento, mantida a

unidade interna com relação ao modo como os diferentes autores evoluíram a sínteses

diferenciadas partindo do mesmo tema, isto é, seus caminhos metodológicos coincidem nas

preocupações que circunscrevem as análises da configuração e do desenvolvimento do Estado

burguês, ou Estado capitalista93

. Deste modo, a presença das classes sociais e da

processualidade das relações de produção e reprodução social é constante, nos autores

marxistas, conquanto se tratar de categorias centrais, na obra de Marx. Não por acaso, neste

grupo, encontramos estadistas revolucionários, como Lênin ou Trotski.

Não estamos assim, como já destacamos, apurando teorias do Estado contidas nas

formulações dos intelectuais que convocamos, antes, estamos explicitando a construção e

92

CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 12. ed., São Paulo:

Cortez, 2007. 93

Utilizaremos sem distinção os termos “Estado capitalista” e “Estado burguês” entendendo a burguesia

como a classe que emerge como dominante no tipo capitalista de Estado, apresentando vinculação

orgânica entre si.

Page 67: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

67

evolução de um pensar crítico sobre o Estado, que inter-relaciona a normatividade e

operatividade como meio embrionário para uma contribuição ao estudo sobre o Estado na

contemporaneidade, e os modos como nos relacionamos com tais estudos (e práticas) ao longo

do evolvimento da profissão dos assistentes sociais.

1.2.1 De Maquiavel a Hegel

Nicolau Maquiavel (1469-1527) é reconhecidamente o primeiro sujeito político a se

deter sobre a problemática do Estado moderno. As considerações que registra em O Príncipe

são citadas por um sem-número de intelectuais como sendo as notas que dão origem a esse tipo

de Estado, o Estado moderno.

Contrapondo-se aos argumentos aristotélicos, Maquiavel não entende o Estado como

instrumento que assegura a felicidade e a virtude humanas e nem como veículo intermediário

entre o Reino dos Céus e da Terra como se pensava na Idade Média. Para ele, o Estado tem um

funcionamento próprio, regras e características próprias, apreendidas tanto a partir da

observação da dinâmica das Repúblicas ou Principados quanto da interação entre súditos e

Príncipe, o que, seguramente, o credencia a estabelecer as tendências predominantes para o

funcionamento desse Estado. Por isso que, na apresentação de seus escritos a Lourenço de

Médici, refere:

Espero, todavia, não se repute presunção o atrever-se um homem de condição baixa e

humilde discorrer sobre os governos dos príncipes e inculcar-lhes regras. Assim como

os que desenham paisagens se colocam nos vales para apreciar a natureza das

montanhas; em lugares elevados e nas cumeadas dos montes para apreciar a dos vales;

da mesma forma, para bem conhecermos a índole dos povos é mister sermos

príncipes, e para conhecermos bem a dos príncipes precisamos ser do povo.

(MAQUIAVEL, 2007, p. 28).94

Sua humildade irônica é acompanhada por um princípio de empiria, no modo como diz

estudar o Estado, associado a uma espécie de convencimento para aceitação de suas ideias. O

autor de O Príncipe preocupava-se em afastar-se das abstrações da mente para ocupar-se das

coisas como elas “realmente são”, pois não via a realidade como espontaneamente harmônica.

Referia-se à verdade objetiva das coisas:

94

MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Jardim dos Livros, 2007.

Page 68: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

68

Em todo o caso, sendo minha intenção escrever coisa útil para quem saiba entendê-lo,

julguei mais conveniente ir atrás da verdade efetiva do que das aparências, como

fizeram muitos imaginado repúblicas e principados que nunca se viram nem

existiram. Entre como se vive e como se devia viver há tamanha diferença, que aquele

que despreza o que se faz pelo que se deveria fazer aprende antes a trabalhar em prol

da sua ruína do que de sua conservação. Na verdade, quem num mundo cheio de

perversos pretende seguir em tudo os princípios da bondade, caminha para a própria

perdição. Daí se conclui que o príncipe desejoso de manter-se no poder tem de

aprender os meios de não ser bom e a fazer uso ou não deles, conforme as

necessidades. (MAQUIAVEL, 2007, p. 139-140).95

E, com isso, Maquiavel (2007, p.27-28) também trata a política como “a arte do

possível (...) a arte da realidade que pode ser efetivada, a qual leva em conta como as coisas

estão e não como elas deveriam estar”. Levando-se isso em conta, é desse modo que o Príncipe

deve agir para ter controle de seu principado.

Estado e política são mais do que categorias, para a análise teórico-filosófica de

Maquiavel. A prática política “realista” que sugere é a que propicia as condições objetivas de se

configurar um Estado moderno e coeso em torno do poder de seus governantes. Por isso é que

Maquiavel afirma que é bom que o príncipe seja temido e amado, contudo, na impossibilidade

da conquista dos dois sentimentos, o temor lhe é preferencial. O temor gera mais segurança e

fidelidade ao governante que o contrário: “os homens têm menos escrúpulos de ofender quem se

faz amar do que quem se faz temer, pois o amor depende de uma vinculação moral que os

homens, sendo malvados, rompem; mas o temor é mantido por um medo de castigo que não nos

abandona nunca”. E arremata: “Por conseguinte, deve-se estabelecer o terror; o poder do Estado,

o Estado moderno, funda-se no terror”. (MAQUIAVEL apud GRUPPI, 1980, p.11)96

.

Com essas e outras considerações, Maquiavel passa a ser referência para todos os que se

dedicam às coisas da política e do poder97

. Seus escritos não trazem, a rigor, uma teoria do

Estado, mas os principais determinantes das práticas políticas que conformam o Estado, cuja

95

Id., ibid. 96

GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel — as concepções de Estado em Marx, Engels,

Lênin e Gramsci. Porto Alegre: L&PM Editores, 1980. 97

Os comentários tecidos por Napoleão Bonaparte e a rainha Cristina da Suécia, sobre O Príncipe,

contidos em várias edições da obra, como já citamos, indicam a influência do pensador italiano para além

de seu tempo, sobretudo no que se refere ao exercício de poder do Estado. Nesse sentido, recomendamos

a leitura de qualquer uma das edições que tragam esses comentários, e, também, de HELLER, Agnes. O

homem do renascimento. Lisboa: Editorial Presença, 1982. Coleção Métodos, em especial o Capítulo 10

- Filosofia Social, Política, Utopia, em que a autora nos brinda com uma discussão filosófica sobre como

os axiomas maquiavélicos chamam a atenção tanto para o emprego de métodos políticos quanto os de

violência, para o controle do príncipe, de modo que os fins (já que os meios já foram convocados)

permaneçam com seu “caráter ético” inalterado. Ainda, o terceiro volume dos Cadernos do Cárcere, de

Antonio Gramsci, em que o autor trata da temática da “decadência ideológica” e, por fim, o ensaio Marx e

o Problema da Decadência Ideológica Burguesa. (In: LUKÁCS, Georg. Marxismo e teoria da

literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2009).

Page 69: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

69

característica fundante é conquistar (mais pela força do que pela tradição) e manter o poder

sobre seu povo, ou seja, o Estado como aparelho de dominação.

A partir desse pressuposto, outras formulações foram surgindo e agregando novas

categorias às explicações sobre o Estado e o poder. O francês Jean Bodin (1530-1596), por

exemplo, discorre, por quase toda sua obra, sobre a questão da “soberania”. Polemizando com

Maquiavel, afirma que o Estado constitui-se essencialmente por um poder em que a soberania é

seu pilar de sustentação primordial.

Ao sistematizar o tratamento da categoria soberania98

, afirma que se está tratando de

um poder perene e quase sem limites. Suas limitações são apenas a lei divina e as leis naturais,

mas considera que o príncipe soberano deve, ainda, respeitar os contratos que estabelece com

seus súditos, sem prejuízo da centralização do poder que se reserva.

Na esteira de seu pensamento, a problemática da coesão social, entendida como função

política e moral do Estado, ocupa o centro das atenções dos intelectuais da escola jusnaturalista,

que a partir dali se fundará.

Deste modo, o inglês Thomas Hobbes (1588-1679) é o primeiro a tratar do Estado

como momento de síntese da elevação dos indivíduos de um estado primitivo, natural, estado de

natureza, para um estado social.

Tendo por referência a sociedade inglesa de seu tempo, já num estágio de

desenvolvimento avançado, se comparada a outras sociedades europeias ou asiáticas da época,

Hobbes percebe a capilarização de valores estruturados numa sociabilidade fundada na

propriedade privada e que encontra, na sociedade que se organiza a partir das dinâmicas da

acumulação primitiva, suas formas mais acabadas, e, dessa percepção, infere que o homem é

naturalmente competitivo às últimas consequências: homo homini lúpus.

A competição por riquezas, prazeres, honrarias e outras formas de poder conduz à

luta, à inimizade e à guerra. (...) Assim, considero como principal inclinação de toda a

humanidade um perpétuo e incessante afã de poder, que cessa apenas com a morte.

Sua causa nem sempre é o fato de que o homem espera um prazer mais intenso que

aquele já alcançado, ou que não chegue a satisfazer-se com um poder moderado, mas,

sim, o fato de não poder ter assegurados seu poderio e os meios de seu bem-estar atual

sem adquirir novos bens. Dessa forma, os reis, cujo poder é maior, tratam de

assegurá-los, em seu país, por meio de leis e, no exterior, mediante guerras; o desejo

da fama de novas conquistas; em outras, o de prazeres fáceis e sensuais; em outras,

ainda, a admiração, o desejo de atingir a excelência em alguma arte ou habilidade

mental. (HOBBES, 2009, p. 78)99

.

98

Em sua obra, de 1576, Les Six Livres de la Republique (Os Seis Livros da República). 99

HOBBES, Thomas. Leviatã, ou, matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução

de Rosina d’Angina. São Paulo: Martin Claret, 2009. (Coleção A Obra-Prima de cada Autor. Série ouro,

1).

Page 70: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

70

Isto é, o desejo incessante de poder, de propriedade, de bens e riquezas, leva os homens

a destruírem-se uns aos outros.

Essa é a causa pela qual os homens quando desejam a mesma coisa e não podem

desfrutá-la por igual, tornam-se inimigos e, no caminho que conduz ao fim (que é,

principalmente, sua sobrevivência e, algumas vezes, apenas seu prazer), tratam de

eliminar ou subjugar uns aos outros. (...) se alguém semeia, constrói ou possui uma

área conveniente, pode estar certo de que chegarão outros que, unindo suas forças,

procurarão despojá-lo e privá-lo do fruto de seu trabalho e até de sua vida ou

liberdade. O invasor, por seu turno, assumirá o mesmo perigo enfrentado por aquele

cuja propriedade invadiu e a quem subjugou. (Id., ibid., p. 94).

Por isso, quando não existe um poder comum capaz de manter os homens numa

atitude de respeito, temos a condição do que denominamos guerra; uma guerra de

todos contra todos. (Id., ibid., p. 95)100

.

Para que isso não aconteça, um ente de poder absoluto deve ser legitimado por esses

homens, de modo que exerça seu poder na preservação da espécie humana barrando a sua

autodestruição. A existência desse ente é legitimada por uma espécie de contrato entre os

homens. Esse contrato estabelece as normas da convivência social, que, não por acaso, já

estavam relativamente dadas na esfera da circulação mercantil simples, sobretudo a liberdade.

Os desejos de vida fácil e de prazeres sensuais dispõem os homens a obedecerem a

um poder comum, pois fazem-nos renunciar à proteção que poderiam esperar de seu

próprio esforço e labor. (...) A razão sugere normas de paz adequadas, que podem ser

alcançadas pelos homens mediante o mútuo acordo. Essas normas são conhecidas

como leis da Natureza. (HOBBES, 2009, p. 78)101

.

Em outros termos, para Hobbes (2009), a superação do estado de natureza se dá quando

os homens voluntariamente alienam-se de seus direitos naturais em favor de um ente de

soberania absoluta responsável pela preservação da vida dos indivíduos. Este ente, o Estado,

surge por meio de um contrato em que o soberano (Estado) só pode ser questionado

individualmente e com a comprovação de que não teria cumprido sua tarefa de proteger a vida

do indivíduo reclamante. As características do processo de mercantilização da vida levam

Hobbes (2009) a formular a tese do Estado absoluto, o ente em questão102

.

100

HOBBES, Thomas. Leviatã, ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução

de Rosina d’Angina. São Paulo: Martin Claret, 2009. (Coleção a Obra-Prima de cada Autor. Série ouro,

1). 101

Id., ibid. 102

Neste sentido, consultar MACPHERSON, C. B. A teoria política do individualismo possessivo. De

Hobbes a Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

Page 71: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

71

No Leviatã, uma de suas principais obras, Hobbes inicia por aquilo que Macpherson

(1979, p. 29)103

denomina de “proposições psicológicas” e que, ao discorrer sobre as sensações,

a imaginação, a memória, o apetite e a aversão, demonstraria por dedução a necessidade de um

soberano para os indivíduos atomizados, ainda que incompletas:

(...) as proposições com as quais Hobbes abre a argumentação de Leviatã, das quais se

poderia dizer que são sobre o indivíduo como tal, completamente abstraído da

sociedade (...) não contém tudo o que é necessário para a dedução da necessidade do

estado soberano. Se, por outro lado, empregarmos a expressão propostas psicológicas

para incluir a afirmativa de Hobbes sobre o comportamento inevitável dos indivíduos

uns em relação aos outros, em qualquer sociedade (em especial, a proposta de que

todo indivíduo procura sempre ter maior poder sobre os outros), ou sua afirmativa

semelhante quanto ao comportamento humano na ausência hipotética de qualquer

sociedade (i.e., em estado de natureza), nesse caso as propostas psicológicas

realmente contém tudo o que é necessário para a dedução da necessidade de um

soberano, mas elas não são sobre o bicho humano como tal; foi preciso acrescentar

algumas suposições sobre o comportamento humano na sociedade civilizada. É

possível partir da luta universal pelo poder na sociedade, ou do estado de natureza

para a necessidade do soberano, sem nenhuma outra suposição, mas não é possível

partir do indivíduo como sistema mecânico, para a luta universal pelo poder ou para o

estado de natureza sem nenhuma outra suposição104

.

Portanto, as proposições de Hobbes (ibid., p. 31) estão pautadas no individualismo em

que se encontram os homens em estado de natureza. Suas deduções são hipoteticamente lógicas

e não históricas e remetem à defesa do poder monárquico absolutista.

A necessidade de preservar a paz e a integridade dos homens também aparece em John

Locke (1632-1704). Para este, o Estado tem a atribuição de preservar a liberdade dos homens,

tal qual em Hobbes, porém, liberdade em seus direitos de propriedade, pois os homens já seriam

livres em seu estado natural. Para ele, o contrato que delega poderes regulatórios ao Estado deve

prever a limitação da própria liberdade natural dos homens, justamente, a fim de preservar a

propriedade. Locke é reconhecidamente uma referência do liberalismo político105

.

Para Locke (2006), diferentemente de Hobbes, a liberdade e a igualdade já existiriam

no momento anterior ao surgimento do Estado (estado de natureza) e seriam responsáveis pela

harmonia entre os homens. Essa harmonia só seria quebrada com a intempérie da violação do

direito natural à propriedade. Para protegê-la, garantindo a continuidade da harmonia, é

estabelecido um contrato social onde os homens legitimam um corpo político específico (o

Estado) que se encarrega de proteger a propriedade privada dos indivíduos. No Capítulo VIII,

103

Id., ibid. 104

Id., ibid. 105

No campo econômico, são notórias suas posições mercantilistas.

Page 72: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

72

Locke refere-se ao início do que denomina “sociedades políticas”, afirmando que os homens se

juntam nessas comunidades e se submetem a um governo com a finalidade de preservar suas

propriedades.

Se todos os homens são, como se tem dito, livres, iguais e independentes por natureza,

ninguém pode ser retirado deste estado e se sujeitar ao poder político de outro sem o

seu próprio consentimento. A única maneira pela qual alguém se despoja de sua

liberdade natural e se coloca dentro das limitações da sociedade civil é através de

acordo com outros homens para se associarem e se unirem em uma comunidade para

uma vida confortável, segura e pacífica uns com os outros, desfrutando com

segurança de suas propriedades e melhor protegidos contra aqueles que não são

daquela comunidade. Esses homens podem agir desta forma porque isso não prejudica

a liberdade dos outros, que permanecem como antes, na liberdade do estado de

natureza. Quando qualquer número de homens decide constituir uma comunidade ou

um governo, isto os associa a eles formam um corpo político em que a maioria tem o

direito de agir e decidir pelo restante. (LOCKE, 2006, p. 139)106.

A vida em estado natural — estado de natureza, sem a existência do Estado — não

assegura a propriedade. Sua construção, assim, se justifica para garantir uma normalidade

advinda do exercício do direito sagrado da propriedade.

Percebemos, nas formulações de Locke (2006), a nítida influência das relações

mercantis de seu tempo. A tendência crescente do trabalho livre e a expansão dos mercados são

características que, fundadas também num contrato entre classes, transfundem-se para sua noção

de Estado e passam a ser referência para a democracia liberal burguesa107

. Isto é, do mesmo

modo como os contratos entre indivíduos, nas relações mercantis, podem ser desfeitos sob

determinadas condições, também o poder delegado ao Estado para garantir a preservação da

propriedade pode ser desfeito a qualquer tempo. A condição para que isso ocorra é o não

cumprimento dessa função estatal estruturante.

A relação entre propriedade e liberdade é a raiz da sociabilidade pensada por Locke

(2006), na qual todas as esferas da vida social passam a ser regidas por contratos garantidores de

liberdade econômica: o trabalho, as heranças, o casamento, etc. Portanto, mesmo o Estado tendo

poderes coercitivos, a soberania está no contrato social, e, de modo indireto, nos indivíduos,

pois esses são portadores de direitos individuais, o que os eleva a condição de cidadãos e não

mais súditos. Evidencia-se, ainda em Locke (2006), a distinção entre público (Estado ou

106

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos: ensaio sobre a origem, os

limites e os fins verdadeiros do governo civil. Tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. 4. ed.,

Bragança Paulista: Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, 2006.. 107

Não apenas das relações mercantis, mas destaca-se a experiência da Revolução Gloriosa de 1688 que

promoveu o ocaso do absolutismo na Inglaterra instaurando a Monarquia Parlamentar e a Bill of Rights

(Declaração de Direitos), em 1689, que consolidava a preponderância do Parlamento na administração do

Estado limitando os poderes reais.

Page 73: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

73

sociedade política) e privado (mercado ou sociedade civil), porém inter-relacionados e com

nítida direção social dada pelo segundo sobre o primeiro108

.

Essa soberania do povo é implícita em Locke (2006), mas nítida, em Immanuel Kant

(1724-1804), o que apenas reafirma um dos princípios basilares da democracia liberal. A

Democracia, para Kant, deve ser fortemente regulada, a ponto de determinar quem são os

cidadãos que gozam o direito de exercê-la. Baseia-se, deste modo, na força da lei que, para

Kant, é tão inviolável, consistindo crime até mesmo seu próprio questionamento, afinal, a lei

corresponde à própria soberania do povo.

Com efeito, contanto que não haja contradição em que um povo inteiro dê por voto o

seu assentimento a uma tal lei, por muito penoso que lhe seja aceitá-la, esta lei é

conforme ao direito. Mas se uma lei pública é conforme a este último, por

conseguinte, irrepreensível no tocante ao direito, então, está-lhe também ligada a

autoridade para constranger e, por outro lado, a proibição de se opor à vontade do

legislador, mesmo sem ser pela violência, isto é, o poder no Estado que dá à lei o seu

efeito é também irresistível, e não existe nenhuma comunidade que tenha uma

existência de direito sem um tal poder, que suprime toda a resistência interna, pois

esta teria lugar segundo uma máxima que, uma vez universalizada, aniquilaria toda a

constituição civil e o estado em que unicamente os homens podem estar na posse dos

direitos em geral. Daí se segue que toda a oposição ao poder legislativo supremo, toda

a sedição para transformar em violência o descontentamento dos súditos, toda a

revolta que desemboca na rebelião, é num corpo comum o crime mais grave e mais

punível, porque arruína o seu próprio fundamento. E esta proibição é incondicional,

de tal modo que mesmo quando o poder ou o seu agente, o chefe do Estado, violaram

o contrato originário e se destituíram assim, segundo a compreensão do súdito, do

direito a ser legislador, porque autorizou o governo a proceder de modo violento

(tirânico), apesar de tudo, não é permitido ao súdito resistir pela violência à violência.

(KANT, 1993).109

Logo, notamos que há uma antinomia em Locke (2006) e em Kant (1993) ao

estabelecerem o povo como soberano, contudo, limitarem o exercício dessa soberania a uma

parte específica desse povo. No raciocínio kantiano, a assertiva “a soberania pertence ao povo”

carrega, pois, consigo, as marcas de um certo eufemismo, ao afirmar e negar ao mesmo tempo o

exercício dessa soberania. Os não proprietários não dispõem, para Kant (1993), do direito, por

exemplo, de votar e serem votados.

Um sincretismo conclusivo entre democracia liberal e Estado de Direito se apercebe

nas formulações do filósofo prussiano. Notamos até mesmo uma espécie de naturalização das

relações sociais classistas emergentes ou de dominação do homem pelo homem de Maquiavel

108

LOCKE, John. Ob. Cit., 2006. 109 KANT, Imannuel. A paz perpétua e outros opúsculos. Tradução de A. Mourão. Lisboa: Eds, 1993.

p. 70, 179.

Page 74: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

74

(2007) a Kant (1993). Não há neles uma consideração acerca das debilidades que as relações

sociais fundadas a partir das relações mercantis causam na sociabilidade humana, por

estruturarem-se na mais profunda apartação social. Isto aparecerá apenas em Jean Jacques

Rousseau (1712-1778), que denuncia os males que o processo civilizatório sob os auspícios

burgueses causa à humanidade110

.

Rousseau inspira-se basicamente na experiência democrática da República de Genebra,

sua cidade natal, que apresenta uma prática diferente da democracia burguesa que se instaura na

Inglaterra, na França, após a Revolução de 1830, e na Itália, em 1848111

. Em Genebra, a

soberania estava conferida a uma Assembleia permanente de cidadãos, que representavam a

vontade geral do povo. Rousseau sabia que esse sistema seria impraticável em um Estado cujas

proporções são maiores do que as de uma cidade, por isso admitia que suas formulações

tratavam de um Estado ideal, a que todos deveriam aspirar, mas que nunca existiu e talvez

nunca viesse a existir.

A importância conferida por Rousseau à Assembleia foi tamanha que ele desconsidera a

repartição tripartite de poderes proposta por Montesquieu (Executivo, Legislativo e Judiciário),

em defesa da Assembleia como lócus de representação do corpus público. A importância da

Assembleia, a partir da maneira como Rousseau a trata, se desdobra em outras vertentes e

extrapola sua época, como, por exemplo, quando Lênin assume que nos Sovietes “os poderes

legislativo e executivo identificam-se e o poder representativo é dominante”112

.

Rousseau aproxima-se dos demais contratualistas quando admite a necessidade de um

contrato social como forma de garantir unidade e estabilidade à comunidade societal, mas

destoa deles, quando defende que esse contrato deve garantir a igualdade como forma de acesso

à liberdade plena dos cidadãos, em uma crítica contumaz à propriedade privada. Para Rousseau,

a propriedade privada está na gênese da desigualdade entre os homens113

.

A tradição do direito natural (jusnaturalista) perdurou praticamente durante o século

XVII e parte do XVIII até o momento em que a filosofia alemã passa a problematizá-la, tendo,

justamente, em Georg Wilhem Friedrich Hegel (1770-1831) seu maior expoente.

Diferentemente dos jusnaturalistas, que pensavam um Estado ideal, o filósofo alemão

constrói seu pensamento sobre o Estado sob a influência das relações socioeconômicas que

vivencia, isto é, a partir da consolidação do capitalismo como modo de produção dominante e é

110

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Martin Claret, 2009. 111

Nesse sentido, é importante que se estude o pensamento de Benjamin Constant de Rebecque (1767-

1830), que evidencia a generalização do liberalismo como ideal, em toda a Europa, na contramão do que

idealizou Rosseau. 112

GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel — as concepções de Estado em Marx, Engels,

Lênin e Gramsci. Porto Alegre: L&PM Editores, 1980. 113

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Origem e fundamentos da desigualdade entre os homens. Mem-

Martins/Portugal. Publicações Europa-América, 1976.

Page 75: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

75

sobre este Estado que tece suas considerações modulares em Princípios da Filosofia do

Direito114

.

Admite que a estrutura econômica baseada na propriedade privada (portanto capitalista)

é depositária de um caráter civilizatório, conquanto “a propriedade é a personificação da

personalidade” (HEGEL, ob. cit.). Por outro lado, Hegel não justifica o sistema generalizado de

produção de mercadorias, como Hobbes e Locke, pois considera que a estrutura de tal sistema

se constitui entrave ao alcance do interesse comum autêntico, todavia, não considera que a

ordem social fundada na propriedade privada deva ser superada.

Isto se deve a uma razão simples: Para Hegel, a ordem posta representa o momento da

sociedade humana compatível com a possibilidade da realização da liberdade e o Estado é o

responsável por essa realização, na medida em que condensa nele a universalidade dos

interesses sem, contudo, subtrair as individualidades pessoais, particulares. Afirma:

É o Estado a realidade da liberdade concreta. A liberdade concreta consiste em a

individualidade pessoal, com os seus particulares, de tal modo possuir o seu pleno

desenvolvimento e o reconhecimento dos seus próprios direitos (nos sistemas da

família e da sociedade civil) que, em parte, consciente e voluntariamente como seu

particular espírito substancial, agindo para ele como seu fim último. Disto provém que

nem o universal tem valor e é realizado sem o interesse, a consciência e a vontade

particulares, nem os indivíduos vivem como pessoas privadas unicamente orientadas

pelo seu interesse e sem relação com a vontade universal; deste fim são conscientes

em sua atividade com a vontade universal; deste fim são conscientes em sua atividade

individual. (HEGEL, 1997, p. 211-212)115

.

Conclui:

O princípio dos Estados modernos tem esta imensa força e profundidade: permite que

o sujeito da subjetividade alcance a extrema autonomia da particularidade pessoal ao

mesmo tempo que o reconduz à unidade substancial, mantendo assim esta unidade no

seu próprio princípio. (Id., ibid., p. 212)116.

Hegel estabelece distinção entre este ente capaz de universalizar os interesses e esta

outra esfera, a dos interesses particulares, notadamente inaugurando um conceito de sociedade

civil afeto ao segundo e de Estado político referenciado ao primeiro. Notar-se-á, pelos excertos,

114

Vivendo o “capitalismo de Napoleão Bonaparte”, Hegel situa Princípios da Filosofia do Direito à sua

época. Refere: “Um segundo motivo para que este esboço fosse impresso e posto, igualmente, ao alcance

do grande público: o desejo de que as notas primitivamente destinadas a serem apenas breve alusões a

concepções afins ou divergentes, as consequências ulteriores etc., explicadas posteriormente nas próprias

lições, sejam desenvolvidas nesta redação a fim de aclarar, algumas vezes, o conteúdo mais abstrato do

texto e lograr uma referência mais explícita a ideias conexas e contemporaneamente correntes”. (In:

HEGEL, George Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Prefácio do Autor. Tradução de

Norberto de Paula Lima e Márcio Pugliese. São Paulo: Ícone, 1997. p. 25). 115

Id., ibid. 116

Id., ibid.

Page 76: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

76

que não se trata de distinção antagônica, mas sim de um duo-dialético em que se verifica um

complexo sistema de mediações. Isto afasta Hegel das teses de elevação do estado de natureza

para o estado Social117

. Essas mediações, protagonizadas pelos atores da sociedade civil

hegeliana, como a família, mas, sobretudo, as corporações, respondem pela eticidade nela

contida, ao mesmo tempo em que pela universalização da vontade geral.

No filósofo alemão não há uma relação antinômica entre vontade singular e vontade

universal, na qual a segunda reprima ou recalque a primeira, mas existe um

movimento dialético pelo qual a vontade singular dos indivíduos, através da vontade

particular das corporações, é aufheben – isto é, conservada, eliminada e elevada a

nível superior – na vontade geral da coletividade estatal. O indivíduo, tornando-se

membro da corporação, capacita-se a ser cidadão do Estado, sem por isso deixar de se

orientar também pelo seu interesse individual, mas reconhecendo que a satisfação

desse interesse passa pela articulação dele com os interesses particulares (da

corporação) e universais (do Estado). (COUTINHO, 1996, p. 134)118

.

Hegel não trabalha, assim, com os postulados da democracia liberal que convergem para

a vontade da maioria entendida como vontade geral. Nesse sentido, como descrevemos antes, se

afasta criticamente dos jusnaturalistas, em especial de Rousseau, e, na tentativa de dar

objetividade ao seu conceito de vontade geral, de defini-lo e situá-lo concretamente, concebe

uma concepção de democracia, de Estado democrático. Coutinho (1996) nos lembra que, ao

negar o contratualismo – ou a necessidade de um contrato tácito entre os homens na formação

do Estado -, Hegel nega também as formas institucionais de representação e representatividade

coletivas, propostas por Rousseau para mediar o alcance da vontade geral. Evidente isto, para

Hegel, na medida em que, para ele, o Estado antecede a sociedade civil:

Essa negação do contrato, por outro lado, levou Hegel a se contrapor expressamente à

ideia da soberania popular e do sufrágio universal igual; para ele, todos os membros

de uma sociedade deveriam opinar, mas não sobre o geral e, sim, somente sobre o que

lhes diz diretamente respeito, ou seja, deveriam participar apenas no nível de uma

assembleia corporativa, não de uma câmara legislativa para a qual cada um votasse ou

fosse votado enquanto indivíduo. (Id., ibid. p. 135).

117

Gruppi (1980, p. 24) lembra que “Hegel restabelece plenamente a distinção entre Estado e sociedade

civil formulada pelos pensadores do século XVIII, mas põe o Estado como fundamento da sociedade civil

e da família, e não vice-versa. Quer dizer que, para Hegel, não há sociedade civil se não existir um Estado

que a construa, que a componha e que integre suas partes; não existe povo se não existir o Estado, pois é o

Estado que funda o povo e não o contrário. É o oposto da concepção democrática, segundo a qual a

soberania é do povo, que a exprime no Estado, mas o fundamento da soberania fica sempre no povo”. 118

COUTINHO, Carlos Nelson. Marxismo e política: a dualidade de poderes e outros ensaios. 2. ed.,

São Paulo: Cortez, 1996.

Page 77: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

77

Muitos críticos de Hegel, incluindo Marx ou, em outra escala, Sartre (1905-1980)119

,

identificam o caráter determinista das considerações hegelianas sobre Estado e sociedade, na

medida em que m evidenciadas a irrelevância da intersubjetividade dos indivíduos e a dimensão

teleológica de suas ações.

Ainda assim, podemos atribuir a Hegel a construção de uma consciência sobre a coisa

pública. Um ethos público que se sobrepõe ao privado nele emerge como forma embrionária

para se pensar tanto modelos de democracia quanto de sociedades emancipadas, em que pese

seu “conformismo” ante as relações socioeconômicas do capitalismo emergente de seu tempo.

Em resumo, podemos asseverar que é nesse intelectual que se delineia com vigor tanto o

uso da “razão” moderna, sobretudo pós-Revolução Francesa, como leit motiv da história

humana, quanto a configuração do Estado como objeto de interesse científico e filosófico, por

representar a materialização de práticas políticas e sociais contemporâneas.

A evolução do pensamento acerca da problemática do Estado, de Maquiavel a Hegel,

encontra, pois, sentido, nos processos sociais em que é construída. Isto, levando-se em contra o

método histórico-dialético:

O princípio dialético não é um princípio geral que se aplique igualmente a qualquer

coisa. É verdade que qualquer fato, seja ele qual for, pode ser submetido à análise

dialética, como o copo d’água da discussão famosa de Lênin120. Mas todas estas

análises levariam às estruturas do processo sociocultural e viriam a mostrar que este

processo é que constitui os fatos analisados. A dialética toma os fatos como elementos

de uma totalidade histórica definida da qual eles não se podem isolar. Ao se referir ao

exemplo do copo d’água, Lênin afirma que a totalidade da prática humana deve entrar

na “definição do objeto”; a objetividade independente do copo d’água fica, pois,

dissolvida. Todo fato só pode ser submetido à análise dialética na medida em que cada

fato é influenciado pelos antagonismos do processo social. (MARCUSE, 2004, p.

270)121.

Poderíamos ter tornando ainda mais extenso o esboço da interpretação histórica que

procedemos, adjetivando a narrativa com a inclusão dos condicionantes sociais — decorrentes

da base material da vida e da luta de classes vinculada a tal base — que permitiram aos autores

expressar os posicionamentos que tiveram. Contudo, além de nos obrigar a recorrer a inúmeras

digressões, tornando exaustiva a narração, não vimos prejuízo na seleção dos elementos

marcantes, vinculados diretamente ao que interessa, a esta parte do estudo, que é explicitar o

119

Ver, deste autor: Crítica da Razão Dialética e Questões do Método (qualquer edição). 120

Selected Works, Nova York, 1934, International Publishers, v.ix, p. 62 sgs. (nota original). No Brasil, a

menção ao copo d’água, pode ser encontrada em: LÊNIN, V. I. Sobre a emancipação da mulher. São

Paulo: Alfa-Ômega, 1980. 121

MARCUSE, Herbert. Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social. Tradução de Marília

Barroso. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

Page 78: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

78

modo como a humanidade empreende, ao longo de sua história, explicações racionais

justificadoras de sua existência e dinâmicas sociais, para, com isso, sustentar nossas

argumentações sobre o modo como dispensamos, no âmbito do Serviço Social, tratamento a esta

problemática geral e particular.

1.2.2 Marx e os marxistas

A filosofia hegeliana capilariza-se de tal modo que se torna praticamente leitura

obrigatória nos meios acadêmicos e políticos, a partir do início do século XIX; da Alemanha se

alastrando para todo o ocidente, em ondas menores. Karl Heinrich Marx (1818-1883) sofre

influência direta dessa filosofia, ora aproximando-se dela, ora afastando-se. Inicialmente estuda

Direito, mas depois se dedica à História e à Filosofia, de modo que tal dedicação o leva a

aprofundar os estudos sobre os constructos hegelianos, tornando-se um crítico destes.

Marx não tinha, no centro de suas preocupações teóricas, a problemática do Estado,

como teve Hegel em Princípios da Filosofia do Direito. Sua preocupação partia da necessidade

de construir uma crítica das críticas que já se faziam a Hegel pelos neo-hegelianos, como Bruno

Bauer (1809 – 1872), Arnold Ruge (1802-1880), Max Stirner (1806-1856), mas,

principalmente, Feuerbach (1804-1872), com quem, mais tarde, viria a polemizar de modo mais

contundente; considerando a crítica como instrumento capaz de elevar o discurso à prática,

transformando concretamente a sociedade a qual fornece os elementos para a construção desse

mesmo discurso. Portanto, suas preocupações partiam da realidade concreta e objetiva do

Estado alemão de sua época, calçado nas relações de exploração do trabalho pelo capital.

O incômodo de Marx com Hegel passa pelo fato de que as formulações hegelianas partiam de

uma perspectiva burguesa, de uma era pós-napoleônica, que, de certo modo, alimentava parte

significativa das aspirações da classe dominante, sobretudo da Alemanha de sua época. Afinal,

em Hegel, o Estado contém nele mesmo os ideais da Moral e racionaliza com isso todos os

domínios da vida social122

. Assim, são as forças opressoras originadas nas relações sociais

capitalistas que interessam a Marx compreender e combater, sem admitir nenhum tipo de

concertação entre opressor e oprimido. Nesse sentido, Coutinho (1997) revela:

122

Consultar: LOSURDO, Domenico. Hegel, Marx e a tradição liberal. Liberdade, igualdade, estado.

Tradução de Carlos Alberto Fernando Nicola Dastoli e Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Unesp, 1998.

Biblioteca Básica. Nesta obra, Losurdo demonstra como Hegel se posiciona pela “superação” dos

resquícios da ordem feudal, a divisão dos principados neofeudais. Desnuda o “falso dilema” de Norberto

Bobbio que insiste em classificar Hegel como defensor do Estado opressor prussiano.

Page 79: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

79

Tal como já sugerimos ao analisar as aporias de Rousseau, também aqui as razões dos

limites de Hegel – mas também de sua grandeza – podem ser apontadas no ponto de

vista de classe que adota em sua obra. Se Rousseau, ao formular sua utopia

democrática anticapitalista, expressava a perspectiva de classe dos artesãos e dos

pequenos proprietários – e essa perspectiva é responsável tanto por seus méritos

quanto por suas limitações – Hegel, ao contrário, adota em sua filosofia política o

ponto de vista da classe burguesa tal como essa se havia constituído na época pós-

napoleônica. Decerto, como sempre, é preciso concretizar: em função das peculiares

condições da Alemanha da época, Hegel busca frequentemente conciliar esse ponto de

vista burguês com os interesses das classes dominantes da velha ordem feudal.

Vejamos um exemplo dessa conciliação: embora continue atribuindo grande

importância aos estamentos (Stände) herdados da época feudal na estruturação do seu

Estado “racional”, Hegel afirma claramente que a pertinência a um estamento já não é

simplesmente algo “natural”, dado a priori, como no feudalismo, mas, resulta,

sobretudo, da "liberdade dos particulares", da mobilidade social trazida pelo

capitalismo. Por isso, quando fala em "estamentos" na Filosofia do Direito, ele está

frequentemente designando (salvo no caso da aristocracia fundiária) um fenômeno

social que se aproxima bem mais da moderna situação de classe, própria da sociedade

capitalista emergente, do que da velha ordem hierárquica do Ancien Régime (A

burocracia, ou o Mittelstande, por exemplo, é uma condição social aberta a todos os

que revelem qualificação para tanto, independentemente do nascimento). Além disso,

o fato de ser ele mesmo um "servidor público", um membro da Mittelstande, talvez

explique a grande importância que atribui à burocracia no quadro da nova ordem

burguesa, uma importância que, de resto, só iria se acentuar no período sucessivo da

evolução do capitalismo. Por tudo isso, não me parece equivocado dizer que,

enquanto Rousseau expressa uma utopia anacrônica (ainda que plena de implicações

políticas positivas para o presente e para o futuro), Hegel descreve na Filosofia do

Direito, ao contrário, um Estado análogo – em suas linhas fundamentais – ao Estado

burguês moderno realmente existente123.

Se estas eram suas preocupações, evidentemente que não é possível estabelecer a crítica

que pretende passando ao largo da problemática do Estado. Assim, publica nos Anais Franco-

Alemães, em 1844, Sobre a Questão Judaica124

e Crítica da Filosofia do Direito de Hegel125

pensamentos que sintetizam inauguralmente a crítica pretendida. No primeiro, Marx distingue, a

seu modo, o que Hegel também fizera: sociedade civil de sociedade política; privado e público.

De modo análogo a Hegel, entende sociedade civil como o conjunto das relações

econômicas, porém, e aí se afasta de Hegel, social e historicamente determinadas, portanto

relações econômicas burguesas, objetivas e concretas, base do tecido societário e a partir do

123

COUTINHO, Carlos Nelson. Hegel e a democracia. Conferência proferida para o Instituto de Estudos

Avançados da Universidade de São Paulo (USP) em 13 de julho de 1997. Disponível em:

<www.iea.usp.br/artigos>. Acesso em: 15 fev. 2013. 124

MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010. 125

Id. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005.

Page 80: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

80

conjunto de mediações que a determinam é que se funda o Estado no campo superestrutural,

frontalmente opondo-se à lógica hegeliana de que é o Estado que funda a sociedade civil126

.

Marx demonstra interação entre as duas esferas, compreendendo que o Estado é

expressão da sociedade, portanto, não podem ser entendidos fora dessa natureza relacional. No

prefácio de Contribuição à Crítica da Economia Política, é que Marx (2008, p. 47) apresenta

formalmente esta conclusão:

Minhas investigações me conduziram ao seguinte resultado: as relações jurídicas, bem

como as formas do Estado, não podem ser explicadas por si mesmas, nem pela

chamada evolução geral do espírito humano; essas relações têm, ao contrário, suas

raízes nas condições materiais de existência, em suas totalidades, condições estas que

Hegel, a exemplo dos ingleses e dos franceses do século 18, compreendia sob o nome

de “sociedade civil”. Cheguei também à conclusão de que a anatomia da sociedade

burguesa deve ser procurada na Economia Política127

.

Portanto, Marx (2008, p. 47) não apenas afirma que o Estado só pode ser explicado e

entendido a partir da sociedade civil (a anatomia da sociedade burguesa a que se refere é a da

sociedade civil), como entende que é no Estado em que as formas de consciência são

encontradas:

(...) na produção social da própria existência, os homens entram em relações

determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção

correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas

materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da

sociedade [sociedade civil], a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura

jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência

[Estado]128.

E prossegue anunciando o dinamismo das relações socioeconômicas burguesas, capaz

de conferir também um movimento dinâmico ao Estado, o que faz deste um ente relacional e

transitório:

126

Marx define a estrutura social em dois níveis: a infraestrutura, estrutura ou base que é o lócus onde

acontecem as relações econômicas que sustentam toda a dinâmica de uma sociedade. O domínio da

infraestrutura é inevitavelmente o exercício de poder próprio da sociedade burguesa. O outro nível é a

superestrutura na qual residem as estruturas jurídicas, o Estado e os aparelhos do Direito e as instâncias

ideológicas, políticas, morais, etc. da sociedade. 127

MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008. 128

Grifos nossos.

Page 81: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

81

O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e

intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o

seu ser social que determina sua consciência. Em uma certa etapa de seu

desenvolvimento, as forças produtivas materiais de uma sociedade entram em

contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua

expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam

desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas

relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social. A

transformação que se produziu na base econômica transforma mais ou menos lenta ou

rapidamente toda a colossal superestrutura. (Id.,ibid., p. 48).

Esses excertos nos mostram a maneira como Marx realiza o tratamento que dispensa à

problemática do Estado. Isto é, partindo o seu raciocínio das condições materiais e objetivas em

que se realiza a vida social, o que prossegue é a perspectiva revolucionária da transformação.

Portanto, o Estado não é um fim em si mesmo e por isso não necessita ser tratado como

instância onde se finaliza a realização da humanidade129

.

Essa constatação teria levado Marx a não formular uma teoria geral do Estado, mas sim

tratá-lo transversalmente na quase totalidade de sua produção. Essa transversalidade, conferida

ao Estado por Marx, em suas obras, salta aos olhos, quando o autor problematiza as

características fundantes da sociedade capitalista, como, por exemplo, a divisão de classes

sociais, a exploração do trabalho pelo capital, os princípios da ideologia e da política (classista)

burguesa e a Revolução.

No Manifesto do Partido Comunista, texto que constrói em parceria com Friedrich

Engels (1820-1895), por exemplo, os autores afirmam: “A história de todas as sociedades que já

existiram é a história das lutas de classes”. Desse modo, informam que o Estado burguês é

classista, e arrematam: “O poder executivo do Estado moderno não passa de um comitê para

gerenciar os assuntos comuns de toda a burguesia” 130

.

Em que pesem as inúmeras reproduções e traduções existentes do Manifesto (até mesmo

por seu caráter instrumental-partidário), que podem levar a interpretações diversas, não há como

ignorar que essa passagem do opúsculo refere-se ao modo como a burguesia consegue ter no

Estado a direção social de seus interesses.

129

Nesta afirmação, identificamos o ineditismo da construção marxiana sobre o Estado por ficar evidente

seu distanciamento da maior parte das produções anteriores sobre o tema. Ou seja, para Marx, o Estado

não é o instrumento para se alcançar a felicidade, como queria Aristóteles, e nem o Reino dos Céus, como

se pensava na Idade Média; não é resultado de um contrato tácito entre os homens com delegação para

harmonizar suas relações sociais nem muito menos a expressão máxima da vontade geral, instância

universalizadora dos interesses particulares como pensou Hegel. O Estado é tão somente um momento de

síntese da superestrutura que tende a ser transformado na medida em que se transformam as relações

sociais de produção. 130

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Tradução de Maria Lúcia

Como. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

Page 82: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

82

Como Marx já havia alertado para a permeabilidade do Estado burguês aos interesses

de uma classe dominante, a afirmação da dupla Marx-Engels não pode ter seu caráter crítico

reduzido a uma interpretação possibilista de Estado asséptico, ou acima das classes. Neste

sentido, Trotsky (1879-1940) tece o seguinte comentário sobre a afirmação contundente contida

no Manifesto:

Nesta fórmula concentrada, que para os dirigentes sociais-democratas aparecia como

um paradoxo jornalístico encontra-se, na verdade, a única teoria científica sobre o

Estado. A democracia criada pela burguesia não é, como pensavam Bernstein e

Kautski, uma concha vazia que se pode, tranquilamente encher com o conteúdo de

classe desejável. A democracia burguesa só pode servir à burguesia. O governo de

“Frente Popular” dirigido por Blum ou Chautemps, Caballero ou Negrin é tão

somente “uma delegação que administra os negócios comuns de toda a classe

burguesa”. Quando esta delegação se sai mal em seus negócios, a burguesia expulsa-a

do poder a pontapés. (TROTSKY, 1937 )131

.

Essa é a tônica, que, embora Trotsky classifique como “teoria científica sobre o

Estado”, tem muito mais um aspecto denunciador do que propriamente teórico. Os elementos

teóricos que tornam a afirmação racional, lógica e mesmo empírica surgirão, como já dissemos,

no estudo detalhado da sociedade burguesa e sua dinâmica de reprodução, e, consequentemente,

as formas imanentes de sua superação, este, sim, o objeto real de estudo da vida de Marx,

lapidados maduramente em O Capital.

Ocorre que a influência da construção marxiana nos domínios da economia, da filosofia,

da história, da ciência política e do direito, funda uma escola, uma corrente de pensamento ou,

em outros termos, uma tradição que atenderá pelo nome de marxismo, ou, de tão vasta,

marxismos, como se referiu Netto (1985, p.8-9) acerca das “vertentes diferenciadas e

alternativas de uma já larga tradição teórico-política”, bem ao modo das problematizações

próprias da teoria científica. Afinal, conclui Netto: “A hipótese de um marxismo único, puro e

imaculado remete mais à mitologia política e ideológica do que à crítica racional” 132

.

Assim, desde Engels, que construiu com Marx os pilares dessa tradição, até os

signatários contemporâneos dessa escola, como Mészáros ou Hobsbawn, o marxismo tem se

apresentado vigorosamente como teoria da sociedade burguesa e sua ultrapassagem pela

revolução proletária (NETTO, 1985), instigando os que nele se fundamentam a inquerir sobre as

131

Citação retirada do texto A Atualidade do Manifesto do Partido Comunista, escrito por Leon Trotsky

como prefácio à primeira edição do manifesto publicada na África do Sul, em outubro de 1937. Pode ser

encontrado, no Brasil, na edição de 1998, publicada pela Boitempo Editorial, com a organização de

Osvaldo Coggiola e tradução de Álvaro Pina. Todavia, nosso primeiro contato com o texto se deu a partir

da edição comemorativa dos 150 anos do manifesto publicada para a Campanha Financeira da corrente O

trabalho, do Partido dos Trabalhadores, seção brasileira da 4a Internacional.

132 NETTO, José Paulo. O que é marxismo. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Coleção Primeiros Passos).

Page 83: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

83

questões da vida social, o que inclui, evidentemente, a problemática do Estado e, porque não, do

desenvolvimento da sociedade capitalista.

A proximidade afetiva e política de Engels com Marx forneceu à obra de Engels uma

unidade teórica inalienável ao pensamento do filósofo alemão. Reconhecendo a necessidade de

associar o materialismo dialético – o método – à Teoria da História, Engels investiga as origens

da família, da propriedade privada e do Estado, publicando em 1884 um livro que leva esse

mesmo nome. Coincide com o advento da antropologia e da etnologia.

Engels se vale de anotações de Marx sobre a obra A Sociedade Antiga, do etnólogo

norte-americano Lewis Henry Morgan e, através do estudo de tribos daquele país, investiga sua

organização a partir do direito materno, a posterior apropriação de excedentes de produção

como forma primitiva de origem do patriarcado e a consequente formação de um Estado que

preserve a ordem mantendo a desigualdade (de gênero) e classes, a partir de um pressuposto

simples:

De acordo com a concepção materialista, o fator decisivo na história é, em última

instância, a produção e a reprodução da vida imediata. Mas essa produção e essa

reprodução são de dois tipos: de um lado, a produção dos meios de existência, de

produtos alimentícios, habitação, e instrumentos necessários para tudo isso; de outro

lado, a produção do homem mesmo, a continuação da espécie. (ENGELS, 2002,

p.10)133

.

Justamente as formas histórica e socialmente determinadas de continuação da espécie

humana que levam Engels a aprofundar-se nessa investigação. Por isso que, em seu estudo, a

sociedade não é um conjunto formado pelas partes, mas, uma dessas partes, é a família134

, ao

contrário, a família antecede ao capitalismo, mas encontra nele condições de se transformar em

algo funcional e, praticamente, estrutural ao sistema, devido ao seu imbricamento às relações de

produção simples e ampliadas:

133

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo:

Centauro, 2002. 134

Já pensada como lócus que organiza os homens em sua constituição como ser humano genérico para a

produção e reprodução das condições materiais de sobrevivência, mas também para a reprodução

espiritual, isto é, as formas de consciência social: jurídicas, religiosas, artísticas ou filosóficas, por meio

das quais os indivíduos tomam consciência dos processos atinentes à reprodução material. Essa

consideração, embora diga respeito também à família, a ultrapassa, pois a realização do ser humano

genérico como tal não se limita a ela, ao contrário, a extrapola. A família é vista, pois, por Engels, como

apenas uma das formas encontradas pelo capital para sustentar seus intentos reprodutivos. Nesse sentido,

ver nossa dissertação de Mestrado Trabalho, Família e Ser Social: Elos que Unem a Centralidade do

Trabalho às Relações Familiares, defendida no Programa de Estudos Pós-graduados em Serviço Social

da PUC-SP, em 2005.

Page 84: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

84

[A família] constitui-se, propriamente, uma das condições históricas encontradas pelo

capitalismo no processo de sua formação. Envolvida nesse processo, a família se

transforma porque, em última instância, é determinada pelas necessidades de

reprodução do modo de produção. Mais ainda, as alterações que sofre implicam

diferenciações que correspondem às condições específicas de formação das novas

classes. Mas sua forma inicial, derivada de condições históricas específicas, fundada

em um tipo característico de divisão sexual do trabalho, certamente influi na forma

alterada que assume posteriormente. (DURHAM, 1985, p. 08 apud PAULA, 2008, p.

28-29)135

.

Assim, para Engels, a sociedade funda-se, mesmo as sociedades primitivas, quando a

divisão social simples e de gênero do trabalho tomam forma como meio de organizar a

produção e reprodução das condições de vida material, tendo a família como canal intermediário

para esse fim.

Nas sociedades primitivas, essa divisão do trabalho não implicava nem a subordinação

da mulher ao homem, nem vice-versa, sendo matriarcais; muito menos a apropriação privada

dos excedentes de produção. É o desenvolvimento das forças produtivas, com a domesticação e

a criação de gado, por exemplo, que leva essa função masculina a ser entendida também como

forma de credenciamento ao poder paterno, definindo não apenas a sucessão (herança) como a

própria propriedade privada. A autoridade do pai sobre os demais membros da família funda um

tipo de dinâmica, nesse espaço privado, que é rapidamente difundida não apenas para todos os

outros grupos familiares como também para as relações societais mais amplas, com auxílio de

um arcabouço de valores burgueses emergentes.

Ocorre que nem todas as famílias são iguais, muito menos as propriedades. Portanto, as

dinâmicas familiares e sua formação complexificam-se e, justamente por isso, alteram as

relações econômicas – de produção e reprodução social -, na consolidação das classes com

inflexões no jogo ético-politico de interesses que essas classes empreendem entre si e entre suas

frações. É nesse sentido que o Estado surge como forma de “colocar em ordem” a

“desestruturação” da sociedade, percebida em seus grupos de convívio, ação que, segundo

Engels, não era necessária nas sociedades tribais. Gruppi (180, p. 30), nesse sentido, lembra:

135

PAULA, Renato Francisco dos Santos. Revisitando o método em Marx sob a motivação da

centralidade da família na política de assistência social e no trabalho dos assistentes sociais. In: ______.

As coisas e seu lugar: diálogos sobre serviço social, assistência social, direitos e outras conversas. v. 1,

São Paulo: Giz Editorial, 2008.

Page 85: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

85

Tudo começa quando se diferencia a posição dos homens nas relações de produção.

Por um lado temos os escravos, pelo outro, o proprietário de escravos; de uma parte o

proprietário da terra, de outra, os que nela trabalham, subjugados pelo proprietário.

Quando se produzem essas diferenciações nas relações de produção, determinando a

formação de classes sociais e, por conseguinte a luta de classes, surge a necessidade

do Estado: a classe que detém a propriedade dos principais meios de produção deve

institucionalizar sua dominação econômica através de organismos de dominação

política, com estruturas jurídicas, com tribunais, com forças repressivas, etc.

Isso implica dizer que o Estado surge como instrumento de dominação, tendo, de modo

imanente, o caráter classista em todos os seus equipamentos institucionais. A unidade interna,

nos argumentos de Engels referenciada aos estudos de Marx, aparece mais uma vez quando

percebemos que tanto em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, quanto na Guerra Civil na

França, ou mesmo na Crítica ao Programa de Gotha, o Estado é entendido como um ente que

nasceu da necessidade de refrear os antagonismos de classes, resulta que ele é sempre

o agente da classe mais poderosa e economicamente dominante a qual, como

consequência de sua riqueza, se transforma na classe politicamente dominante e

adquire, assim, novos meios para oprimir e dominar as classes dominadas. (ENGELS,

prefácio à Crítica do Programa de Gotha).

Em síntese, poucos são os marxistas que se aventuraram ou se aventuram a identificar

uma teoria orgânica do Estado em Marx. O mais comum é encontrarmos a afirmação da

existência de uma teoria orgânica do Estado burguês em Marx, resguardadas as aproximações

sócio-históricas empreendidas por Engels ou em suas obras conjuntas.

Ocorre que a célebre afirmação de Marx de que “os homens fazem sua própria história,

mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas

com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”136

serviu e tem servido,

ainda contemporaneamente, tanto para sabermos o que sustenta a prática política (revolucionária

ou não) quanto para a construção ou inquisição teórica da História e da realidade, que nada mais

são do que as circunstâncias com as quais os homens se defrontam.

Em outros termos, estamos dizendo que, sob circunstâncias conjunturais distintas, o

espólio marxiano foi devida ou indevidamente apropriado nas inúmeras tentativas de lhe agregar

argumentos naquilo que os legatários identificaram como ausência, omissão ou insuficiência em

seu arcabouço. É, assim, a problemática do Estado é o caso mais emblemático dessas

complementações.

Em Lênin, temos uma forma inaugural dessa tentativa, mas ela prossegue – como

dissemos, em circunstâncias e objetivos distintos – em Gramsci, em Althusser ou em

136

MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte. In: Manuscritos econômico-filosóficos e outros

textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores).

Page 86: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

86

Poulantzas, para citar apenas os mais visitados (ou mais polêmicos). Com isso, não estamos

nivelando ou equalizando essas construções, ao contrário, o que elas trazem de similitude é o

Estado como objeto central e o referenciamento explícito a Marx e Engels.

Não se furtam à centralidade da luta de classes, como motor da História, e nem aos

mecanismos de expropriação do trabalho pelo capital. Contudo, se distinguem quanto a vários

aspectos, dentre os quais se destacam: os aspectos ontológicos práticos do desenvolvimento da

sociedade burguesa, e as formas distintas de levar a cabo o projeto de transformação radical da

sociedade, ou seja, os modos de encaminhar a Revolução, e, consequentemente, proceder à

extinção do Estado.

Vladimir Ilitch Ulianov Lênin (1870-1924), por exemplo, produz vigoroso ensaio

marxista sobre o Estado, em meio à experiência da Revolução Russa de 1917 e em eufórica

polêmica com os militantes da Segunda Internacional, sobretudo Karl Kautsky (1854–1938)137

.

Portanto, O Estado e a Revolução, de Lênin, é um caso exemplar daquelas construções teóricas

que dissociam teoria e prática, em especial a prática revolucionária. Tecendo a crítica a Kautsky

(e aos que chamou de sociaischauvenistas) Lênin (2007, p. 24) anuncia seus objetivos ao situar

seus escritos no contexto em que se inserem:

Em tais circunstâncias, e uma vez que se logrou difundir tão amplamente o marxismo

deformado, a nossa missão é, antes de mais nada, restabelecer a verdadeira doutrina

de Marx sobre o Estado. (...) Assim, apoiados em provas, demonstraremos, à

evidência, que o atual “kautskismo” as deturpou138

.

Logo, no seu intuito de combater ao que chamou de deformação do marxismo, Lênin

(2007, p. 25) retoma o eixo central do que pensaram Marx e Engels sobre o Estado e em

referência direta ao segundo, em seu A Origem da Família, da Propriedade Privada e do

Estado, recupera o caráter do Estado como “produto e manifestação do antagonismo

inconciliável das classes”, entendendo este como o “ponto de importância capital e fundamental

em que começa a deformação do marxismo”:

De um lado, os ideólogos burgueses e, sobretudo, os da pequena burguesia, obrigados,

sob a pressão de fatos históricos incontestáveis, a reconhecer que o Estado não existe

senão onde existem as contradições e a luta de classes, “corrigem” Marx de maneira a

fazê-lo dizer que o Estado é o órgão da conciliação das classes.

Lênin não vê em Marx a possibilidade dessa construção teórica (a da conciliação de

classes como função do Estado). Para ele, em Marx, “o Estado não poderia surgir nem subsistir

137

Karl Kautsky nasceu em Praga, em 1854, e foi um dos fundadores da social-democracia. 138

LÊNIN, V. I. O estado e a revolução: o que ensina o marxismo sobre o Estado e o papel do

proletariado na revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

Page 87: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

87

se a conciliação das classes fosse possível”. O Estado é um instrumento de dominação que, ao

institucionalizar os interesses burgueses na sua estrutura, amortece a colisão das classes, mas

não as concilia. Esse ponto nevrálgico da análise marxiana será mais tarde retomado por

Gramsci, ao tratar da hegemonia como processo, e por Poulantzas, quando trata da influência

das instâncias política e ideológica nas estruturas do Estado burguês sob a dominação do

econômico.

Para Lênin (2007, p. 44), o tratamento dispensado ao Estado, por Marx e Engels, deve

servir à elucidação não apenas do modus operandi da Revolução como para a instalação da

ditadura do proletariado:

A doutrina da luta de classes, aplicada por Marx ao Estado e à revolução socialista,

conduz fatalmente a reconhecer a supremacia política, a ditadura do proletariado, isto

é, um poder proletário exercido sem partilha e apoiado diretamente na força das

massas em armas. O derrubamento da burguesia só é realizável pela transformação do

proletariado em classe dominante, capaz de dominar a resistência inevitável e

desesperada da burguesia e de organizar todas as massas trabalhadoras exploradas

para um novo regime econômico.

Ou seja, trata-se da manutenção do Estado como aparelho de dominação, pelo menos no

que tange aos momentos afetos à transição do capitalismo para o comunismo, pois o processo

revolucionário pressupõe a abolição das classes como tal, logo, Lênin não está falando apenas

de uma substituição simples e mecânica do poder burguês pelo poder proletário. Pensando na

transição e no Estado como instrumento insuperável desse processo, Lênin (2007, p. 44-45)

admite que o “proletariado precisa do poder político [do Estado]139

, da organização centralizada

da força, da organização da violência, para reprimir a resistência dos exploradores e dirigir a

massa enorme da população (...) na edificação da economia socialista”.

A ditadura do proletariado é, pois, o início da transição para o comunismo, fazendo as

massas converterem-se de classe dominada para classe dominante. Não há, em Lênin, qualquer

concessão a reformas ou revisões no âmbito do Estado, ao contrário, o revolucionário russo

preconiza a extinção do Estado, pois no limite invoca a supressão das classes sociais140

.

O poder das argumentações leninistas sobre o Estado foi tamanho que extrapolou os

limites da Rússia percorrendo o mundo. Quando atingem a Itália, provocam um jovem

comunista italiano, militante do PCI141

, e o levam a aprofundar-se sobre os desdobramentos da

Revolução.

139

Grifo nosso. 140

A possibilidade revisionista foi dura e criticamente problematizada por Rosa Luxemburg (1871-

1919) em seu ensaio Reforma Social ou Revolução?, de 1899. 141

Partido Comunista Italiano.

Page 88: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

88

Antonio Gramsci (1891-1937) recupera alguns eixos da ditadura do proletariado em

Lênin e assevera que esta não se trata de uma transformação institucional, mas sim de mudanças

profundas na estrutura econômica (base) e política o que, por consequência, altera também os

paradigmas do pensamento humano na esfera da cultura e das ideologias142

.

Nesse sentido, Gramsci reconhece em Lênin o uso adequado do materialismo histórico,

também como método143

quando Lênin dissocia a construção do pensamento (a filosofia

política) da prática política revolucionária, reconhecendo o marxismo como a filosofia da

práxis. Nesse sentido, para Gramsci, filosofia é também ação. Portanto, está sustentando a

existência de uma ciência marxista de ação política (CARNOY, 1988, p. 89)144

O princípio teórico-prático da hegemonia tem também ele uma porta gneseológica e,

portanto, nesse campo é de se pesquisar o aporte máximo de Illich [Lênin] para a

filosofia da práxis. Illich [Lênin] teria feito progredir (efetivamente) a filosofia (como

filosofia) tanto quanto fez progredir a doutrina e a prática políticas. A realização de

um aparato hegemônico, enquanto cria um novo terreno ideológico, determina uma

reforma das consciências e dos métodos de conhecimento, é um fato de

conhecimento, um fato filosófico. (GRAMSCI, 1975)145

.

Se, de um lado, o filósofo italiano considera úteis as considerações leninistas sobre a

práxis para sua formulação da noção de hegemonia, por outro, afasta-se delas, quando distingue,

no campo ontológico-prático, hegemonia de ditadura do proletariado. Para Gramsci, Lênin foi

um dos primeiros a se referir à noção de hegemonia. Lênin a teria empregado em virtude do

estudo da direção do proletariado quando da Nova Política Econômica (NEP) na Rússia146

.

Entendeu hegemonia como a capacidade de direção política do proletariado sobre as

demais classes, em especial o campesinato. Gramsci traz o conceito para as democracias mais

complexas do ocidente e relaciona à direção política do proletariado sobre a pequena burguesia.

Acresce, nessas considerações, as reafirmações de Marx e Engels, no que tange ao papel das

relações de produção baseadas na exploração do trabalho pelo capital, na conformação da

sociedade burguesa (a base ou estrutura), contudo, dedica maior ênfase ao papel da

superestrutura nesse processo de dominação.

142

Trata-se de uma das muitas distinções entre Lênin e Gramsci. Lênin procederá a uma crítica

contundente ao que chamou de “desvio ideológico à esquerda” protagonizado por uma parte dos

comunistas alemães, ingleses e italianos, sobretudo. A crítica de Lênin emerge após a Terceira

Internacional. Consultar: LÊNIN, V. I. Esquerdismo: doença infantil do comunismo. Porto Alegre: Anita

Garibaldi, s/d. 143

E não apenas como filosofia. 144

CARNOY, Martin. Estado e teoria política. Campinas/SP: Papirus, 1988. 145

GRAMSCI, Antônio. Cadernos do cárcere. Q. 10, 1975. 146

A Nova Política Econômica (NEP) surge na Rússia, após a vitória das teses de Lênin, no X Congresso

do PCUS, que sucede ao “comunismo de guerra”. Durante a NEP, previu-se a permissão de certas

práticas mercantis na Rússia socialista. Na perspectiva de Lênin, o proletariado urbano teria de dirigir os

pequenos camponeses, os agentes dessas relações mercantis.

Page 89: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

89

Confere, pois, um papel importante aos aspectos culturais, ideológicos, políticos,

religiosos, componentes, segundo ele, da superestrutura, afastando-se, deste modo, das

tendências de um marxismo economicista. Para Gramsci, os elementos conjunturais (que são

também historicamente determinados) da ideologia, da política, da cultura, das visões de mundo

concorrentes – burguesa ou proletária, etc., participam do processo de formação da consciência

por meio da qual os sujeitos entendem a si e ao mundo em que vivem.

Nesse sentido, o entendimento da centralidade da propriedade privada dos meios de

produção na ordem burguesa é necessário, mas não suficiente para entender a sociedade como

um todo e os processos sociais pelos quais os indivíduos tomam consciência de si e do mundo,

pois o processo de superação de um modo de produção para outro 147

não é uma injunção linear,

mecânica, ao contrário, é submetida a toda sorte de contingências sociais148

.

Ele [Gramsci] atribuiu ao Estado parte dessa função de promover um conceito

(burguês) único da realidade e, consequentemente, emprestou ao Estado um papel

mais extenso (ampliado) na perpetuação das classes. Gramsci conferiu à massa dos

trabalhadores muito mais crédito do que Lênin, ao considerar que eles próprios eram

capazes de desenvolver a consciência de classe, porém ele considerou que na

sociedade ocidental os obstáculos a tal consciência eram muito mais formidáveis do

que Lênin imaginava: não era simplesmente a falta de um entendimento de sua

posição no processo econômico que impedia os trabalhadores de compreender o seu

papel de classe, nem eram somente as instituições “privadas” da sociedade, como a

religião, as responsáveis por manter a classe trabalhadora longe da autoconsciência,

mas era o próprio Estado que estava encarregado da reprodução das relações de

produção. Em outras palavras, o Estado era muito mais do que o aparelho repressivo

da burguesia; o Estado incluía a hegemonia da burguesia na superestrutura.

(CARNOY, 1988, p. 90-91).

Em outros termos, esses pressupostos permitiram que Gramsci propusesse uma

complementação às formulações de Marx, Engels e Lênin, sobre o Estado. Neles, conclui-se a

definição do Estado como braço repressor da burguesia sobre o proletariado, sendo, esse,

residente numa sociedade civil em que se realiza o “conjunto do intercâmbio material dos

indivíduos, no interior de um estágio determinado de desenvolvimento das forças produtivas”

(CARNOY, 1988, p. 92). Já em Gramsci, há inflexões desse intercâmbio na superestrutura,

fazendo do Estado um Estado ampliado:

147

E a formação social a ele inerente: do primitivismo ao feudalismo, do feudalismo ao capitalismo, do

capitalismo ao comunismo, etc. 148

Embora atribua relevância aos aspectos da superestrutura, como a ideologia, a política e a cultura, que

em Marx estavam na base, Gramsci não abdica da necessidade de uma articulação orgânica entre essas

esferas nos domínios do que ele chamara de bloco histórico.

Page 90: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

90

O Estado em sentido amplo, com novas determinações, comporta duas esferas

principais: a sociedade política (que Gramsci também chama de “Estado em sentido

estrito” ou de “Estado de coerção”), que é formada pelo conjunto de mecanismos

através dos quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão e da

violência, e que se identifica com os aparelhos de coerção sob controle das

burocracias executiva e policial-militar; e a sociedade civil formada precisamente pelo

conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias,

compreendendo o sistema escolar, as Igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as

organizações profissionais, a organização material da cultura (revistas, jornais,

editoras, meios de comunicação de massa), etc. (COUTINHO, 1989, p. 76-77)149

.

Ou seja, o salto gramsciano estabelece a distinção dialética entre sociedade política e

sociedade civil, sem dar margem a interpretação de que se constituem em blocos imutavelmente

antagônicos, ao mesmo tempo em que evidencia as relações de poder como sua mediação

inevitável. Assim, o exercício do poder praticado pelo Estado é mediado por um conjunto de

instituições que formam essas duas esferas (sociedade política e civil) e que, para atender aos

interesses das classes dominantes, são “sequestradas” por ela na conquista da hegemonia.

Seguindo esse raciocínio, o conceito de hegemonia será fundante para toda a argumentação

gramsciana.

A hegemonia, no caso burguês, é o processo pelo qual o aparato ideológico dominante

se difunde no conjunto da vida social e conquista legitimidade, expressando ilusoriamente que,

na ideologia burguesa, estão contidos os valores universais de uma civilidade comum a todos.

A luta pela hegemonia deve atravessar como um trem desgovernado todas as esferas da

vida social para ser legítima. Carnoy (1988, p. 95) explica que Gramsci atribui dois significados

principais para a hegemonia:

O primeiro é um processo na sociedade civil pelo qual uma parte da classe dominante

exerce o controle, através de sua liderança moral e intelectual, sobre outras frações

aliadas da classe dominante (...). Ela não impõe sua própria ideologia ao grupo aliado;

mas antes representa um processo politicamente transformativo e pedagógico, pelo

qual a classe (fração) dominante articula um princípio hegemônico, que combina

elementos comuns, extraídos das visões de mundo e dos interesses dos grupos aliados.

E o segundo significado está na relação entre as classes dominantes e as dominadas:

149

COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci – um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro:

Campus, 1989.

Page 91: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

91

A hegemonia compreende as tentativas bem sucedidas da classe dominante em usar

sua liderança política, moral e intelectual para impor sua visão de mundo como

inteiramente abrangente e universal, e para moldar os interesses e as necessidades dos

grupos subordinados (...) A hegemonia não é uma força coesiva. Ela é plena de

contradições e sujeita ao conflito. (Id., ibid., p. 95).

Com esse conceito, Gramsci consegue mostrar o quão complexo se tornou o exercício

do poder nas sociedades capitalistas, sobretudo as de capitalismo avançado. Complexo porque

não se sustenta apenas na coerção física (força) ou apenas no consentimento (consenso). Ao

contrário, funciona com a articulação orgânica desses dois modos de exercício de poder. Com a

liderança social-moral, a burguesia consegue tornar seu arcabouço de valores – valores

burgueses – aceitos pelas massas como sendo seus.

Conformam, com o uso das instituições sociais-jurídico-políticas, uma identidade

subalterna que transforma o homem em déspota de si mesmo, de modo mais eficiente do que

aquele pensado por Marx, quando utilizou essa figura de linguagem se referindo à alienação do

trabalho. Com o domínio do Estado, conseguem exercer o monopólio legal da violência,

utilizando, quando necessário, a força repressiva do aparato policial-militar. É a junção desses

dois componentes de dominação que fazem da hegemonia burguesa o ingrediente indispensável

de sua dominação.

A conquista da hegemonia por parte da classe dominante é um instrumento tão poderoso

e eficaz que consegue legitimar tanto os Estados autocráticos (conseguindo adesão civil popular

ao nazismo, ao fascismo, às ditaduras, etc.) quanto às democracias liberais de massas

(universalizando os valores do liberalismo, do neoliberalismo, do populismo, do nacionalismo,

do desenvolvimentismo, do neodesenvolvimentismo, etc.).

Manter essa articulação orgânica entre os instrumentos de repressão não é tarefa fácil,

para a classe dominante, nem nas autocracias, menos ainda nas democracias.

As oscilações do movimento histórico, motivadas, sobretudo, pela luta de classes que

não deixa de existir com a existência de uma hegemonia burguesa, podem induzir a burguesia a

utilizar apenas um mecanismo de poder em detrimento do outro. É possível, ainda, que a luta de

classes leve a uma intensificação do ativismo político das classes subalternas. Outra

possibilidade são as rupturas entre frações da classe burguesa, que podem se sentir preteridas ou

mesmo insatisfeitas com a condução do grupo dominante.

Temos ainda a possibilidade da separação das classes sociais de seus partidos políticos,

de modo que suas lideranças deixem de ser reconhecidas como tal. Enfim, todas essas

possibilidades sócio-históricas, dentre outras, levam a uma crise de autoridade, que Gramsci

denominou de crise de hegemonia. Essas crises fazem parte da estrutura dos Estados burgueses

e são responsáveis pelo dinamismo político em seu interior.

Page 92: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

92

[A crise de hegemonia] se caracteriza (...) por um período relativamente longo de

maturação, no qual se dá uma complexa luta por espaços e posições, um movimento

de avanços e recuos. Como toda a crise, a de hegemonia pode dar lugar a diferentes

alternativas, isto é, pode ter diferentes soluções. De imediato, a classe dominante pode

ter condições de continuar dominando através da pura coerção; a médio prazo, ela

pode certamente recompor sua hegemonia, por meio de concessões, de manobras

reformistas, etc., para o que contará com a incapacidade das forças adversárias de

apresentar soluções positivas e construtivas. Mas a tendência dominante, ainda que

não inevitável, é de que as classes dominadas – favorecidas pelo caráter estrutural da

crise – ampliem seu arco de alianças e sua esfera de consenso, invertam em seu favor

as relações de hegemonia e, desse modo, ao se tornarem classes dirigentes (ao

apresentarem e conquistarem consenso para propostas de solução dos problemas do

conjunto da nação), criem condições para chegarem à situação de classes dominantes.

(COUTINHO, 1989, p.93)150

.

Para Gramsci, a classe dominante reconhece não apenas a possibilidade da crise, mas a

sua inevitabilidade no movimento real de desenvolvimento do capitalismo, ainda que não a

admita de pronto. Assim, estão dadas as condições da disputa pela hegemonia, tanto entre as

classes fundamentais da sociedade burguesa, quanto entre suas as frações. Gramsci recorre,

então, ao conceito de guerra de posição para se referir a tal forma de disputa, e, ainda, faz

referência ao papel dos intelectuais orgânicos no processo da condução revolucionária.

Lênin, seguindo os ensinamentos de Marx e Engels, propôs, como vimos, que a

ascensão proletária deve ser alcançada por meio da tomada violenta do Estado, para, na

sequência, extingui-lo. O controle de seu aparelho repressor e coercitivo é, então, condição

suficiente para que a luta proletária logre êxito. Esse processo recebe de Lênin o nome de

“guerra de movimento”. Gramsci reformula a questão entendendo que o controle do aparato

repressivo do Estado não é a condição suficiente para que o movimento operário consolide seu

poder sociopolítico.

O movimento contra hegemônico deve assegurar também o controle daquilo que ele

identificou como componentes elementares da superestrutura: a ideologia, a cultura, a política, a

religião, a comunicação, etc. Sem o domínio desses mecanismos, capazes de difundir um

pensamento proletário, dificilmente o movimento contra hegemônico logra êxito. A ideia de

Gramsci é que a contra hegemonia pode se espraiar e se capilarizar em todo o proletariado,

atingindo inclusive militantes menos atuantes e não militantes; portanto, seria um processo

gradual que recebe de Gramsci o nome de guerra de posição, como dissemos alhures.

Esse raciocínio não significa que Gramsci tenha abdicado por completo da possibilidade

estratégica da guerra de movimento. Ao contrário, para demonstrar que também há nela

150

Id., ibid.

Page 93: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

93

viabilidade histórica, estabelece que no Oriente a guerra de movimento é mais adequada que no

Ocidente.

Lá (no Oriente, pensando mesmo na Rússia), a prevalência do poder estatal sobre a

sociedade civil é quase absoluta, o que implica a possibilidade de êxito da tomada de “poder”

pelo proletariado apenas com a conquista dos aparelhos repressores de Estado. Já no Ocidente,

as relações entre Estado e sociedade civil são mais equilibradas, o que significa que a subversão

simples, por meio de um ataque violento ao Estado, não daria conta de garantir a manutenção

perene do domínio pleno da sociedade.

Gramsci pôde formular, de modo positivo, sua proposta de estratégia para os países

“ocidentais”. Nas formações “orientais”, a predominância do Estado-coerção impõe à

luta de classes uma estratégia de ataque frontal, uma “guerra de movimento”, voltada

diretamente para a conquista e conservação do Estado em sentido restrito; no

“Ocidente”, ao contrário, as batalhas devem ser travadas inicialmente no âmbito da

sociedade civil, visando à conquista de posições e de espaços (“guerra de posição”),

da direção político-ideológica e do consenso dos setores majoritários da população,

como condição para o acesso ao poder de Estado e para sua posterior conservação.

(COUTINHO, 1989, p. 89).

Podemos, assim, apreender que a guerra de posição para Gramsci leva em conta as

estruturas, a conjuntura e as relações sociais de cada país em particular, o que pressupõe

detalhada análise sócio-histórica do estágio de desenvolvimento das forças produtivas locais,

associada aos mecanismos que conformam a identidade genérica da sociedade civil que ali se

realiza, como meio fundante para subsidiar as estratégias revolucionárias. Ainda, é possível

considerar que os enunciados gramscianos induzem a um modo diferente de organização das

massas proletárias, na medida em que estas devem se preparar também para o exercício do

poder no Estado, substituindo, nas instituições, a cultura burguesa por uma cultura operária

irremediavelmente amparada pela aquisição de uma consciência de classe conquistada nesse

processo.

Além disso, Gramsci confere especial atenção ao papel do partido, de um partido de

massas capaz de arregimentar intelectuais orgânicos que emergem no contexto da consciência

de sua própria classe social.

Esses intelectuais teriam funções análogas às do partido, pois ajudam a construir a

contra hegemonia naquilo que compete à difusão direta de um pensamento proletário.

Contribuem, sobretudo, para manter alerta a classe trabalhadora quanto às ofensivas

desestruturadoras de sua organização, preconizadas por vários processos sociais complexos,

destacando-se entre eles a revolução passiva. Nesse processo, seriam concedidos, às classes

Page 94: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

94

trabalhadoras, meios para o aprimoramento das suas condições de sobrevivência, nos momentos

em que a burguesia se vê ameaçada, desmobilizando os movimentos das massas151

.

As contribuições de Gramsci à tradição marxista são, ainda hoje, sem dúvida, de capital

importância. Formam, junto com as de Lênin, os esforços mais significativos na tentativa de se

construir uma “teoria do Estado” no âmbito do marxismo. Porém, como teorias e como esforços

não se esgotam em si mesmas, muito menos repousam incontestáveis.

Na metade da década de 1960, surge na França uma corrente de pensamento que

“buscou harmonizar o pensamento marxista com a natureza aparentemente ‘automática’ e

organizada da sociedade capitalista adiantada, uma sociedade onde tanto a classe operária como

a burguesia desempenham papéis ‘prescritos’” (CARNOY, 1988, p. 119). É a corrente

estruturalista que renova as leituras críticas nos domínios da linguagem (Saussure e Jacobson),

da antropologia (Lévi-Strauss), da psicologia (Lacan), do conhecimento e das relações sociais

(Focault), dentre outros.

A ideia principal era combater o subjetivismo que colocara o homem como sujeito no

centro dos sistemas metafísicos (CARNOY, 1988). Assim, a crítica marxista disponível sobre o

Estado, na época, não ficou imune a uma “revisão estruturalista”. Essa corrente é de uma

importância que não pode ser ignorada, no âmbito dos estudos marxistas, pois promoveu uma

verdadeira inquietação nas ciências sociais e políticas de sua época fomentando debates até os

dias atuais. Da ‘pena’ do filósofo argelino radicado na França, Louis Althusser (1918-1990),

saíram as principais reflexões e polêmicas dessa cena152

.

Althusser (1985, p. 62-63) identifica que a presença do Estado como categoria analítica,

na obra marxiana, é uma presença descritiva e trata a descrição como etapa primeira para o

desenvolvimento teórico, mas não deve ser considerada a teoria em si:

151

O conceito de revolução passiva, como demonstramos na primeira parte da tese, é bem mais complexo

do que este aqui sumarizado. Gramsci teve por referência, para tratar desta noção, a Unificação Italiana, a

Unificação Alemã. Logo, verificamos a dimensão da complexidade histórica que reveste o conceito.

Quanto aos intelectuais, no segundo volume dos Cadernos do Cárcere, Gramsci os entende como aqueles

que são capazes de dar voz às aspirações da classe. Um dos exemplos que utiliza são os técnicos

industriais por defenderem a industrialização em contraponto a membros da hierarquia eclesial, como os

padres, por exemplo, por defenderem a propriedade latifundiária. 152

Tornou-se notório o debate entre Louis Althusser e E. P. Thompson. As críticas de Thompson a

Althusser podem ser verificadas no ensaio Contra o Estruturalismo de Althusser em O Aristóteles do

Novo Idealismo Marxista que compõe sua coletânea Miséria da Teoria (The Poverty of Theory).

Page 95: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

95

Quando, ao falarmos da metáfora do edifício [base e superestrutura]153 ou da teoria

marxista do Estado dizemos que são concepções ou representações descritivas de seu

objeto, não escondemos nenhuma segunda intenção crítica. Pelo contrário, tudo leva a

crer que os grandes descobrimentos científicos não podem deixar de passar pela etapa

que chamamos uma “teoria” descritiva. Esta seria a primeira etapa de toda teoria, ao

menos no campo da ciência das formações sociais. Como tal, poder-se-ia, - e no nosso

entender deve-se – encarar esta etapa como transitória e necessária ao

desenvolvimento da teoria154.

O autor preocupa-se em esclarecer que não está, com essa distinção, subjugando a teoria

marxista do Estado. Ao contrário, refere que tenta deixar evidente que a descrição nela contida

reflete tanto a empiria (e o real mesmo) quanto as conclusões a que se pode chegar a partir dela.

Logo, na teoria descritiva do Estado em Marx e nos marxistas estariam os elementos essenciais

e intransponíveis para se avançar na construção de uma teoria geral:

Diremos, com efeito, que a teoria descritiva do Estado é justa uma vez que a definição

dada por ela de seu objeto pode perfeitamente corresponder à imensa maioria dos

fatos observáveis no domínio que lhe concerne. Assim, a definição de Estado como

Estado de classe, existente no aparelho repressivo de Estado, elucida de maneira

fulgurante todos os fatos observáveis nos diferentes níveis da repressão, qualquer que

seja o seu domínio (...). (Id., p. 64).

Partindo desse pressuposto — traço comum em Marx, Engels e todos os demais

marxistas (a dominação de classes) —, Althusser passa a discorrer sobre o que considera

essencial na “teoria marxiana do Estado” e se aproxima de conclusões sobre o que chama de

aparelhos ideológicos de Estado, mas, para isso, incorpora em seus argumentos, anteriormente,

uma densa reflexão sobre o papel da ideologia na perpetuação das classes e da estrutura do

Estado burguês. Vamos ao papel da ideologia e depois retornamos à teoria do Estado.

Althusser diz utilizar-se do mesmo procedimento metodológico que infere ter sido

utilizado por Marx ao antecipar a formulação da teoria por construções descritivas. Desse modo,

descreve o que podemos chamar de “ideologia em geral” (a descrição da ideologia) para depois

discorrer sobre a existência em organicidade de uma ideologia em particular, uma teoria sobre a

ideologia.

Assim, argumenta que a ideologia no sentido lato não tem história. Ela existe em

qualquer formação social, independentemente das relações socioprodutivas que se estabeleçam.

Aqui, vale um adendo: Althusser parte de um conceito de história tal qual expresso no

Manifesto do Partido Comunista, a história como a luta de classes (CARNOY, 1988, p. 121).

153

Grifo nosso. 154

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado. Notas sobre os aparelhos ideológicos de

Estado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.

Page 96: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

96

Portanto, segundo Althusser, a ideologia é inevitável para os homens. Basta que existam

homens e relações sociais.

Mas o autor de Aparelhos também considera que a existência de ideologias particulares

– estas, sim, referidas ao modo de produção específico – assumem formas específicas,

materializadas em aparelhos específicos e, em última instância, determinadas pela luta de

classes imersa em uma formação social. Portanto, há uma existência material da ideologia

condicionada à existência de aparelhos que a porta.

(...) uma ideologia existe sempre num aparelho e em suas práticas. Essa existência é

material; essa relação imaginária com relações reais (ideologia) é, ela mesma, dotada

de uma existência material e esta é a prática da ideologia no seio de aparelhos

específicos da sociedade. Assim, Althusser expressa a noção estruturalista de que o

conhecimento do funcionamento interno de uma estrutura deve preceder o estudo de

sua gênese e evolução. (Id., ibid., p. 121-122).

Ao descrever mesmo a lógica de funcionamento da ideologia é que Althusser busca

desvendar seus nexos internos. Um dos sentidos atribuído ao estudo das estruturas é, pois, o

estudo das relações formais entre os diversos componentes positivos ou negativos (equivalentes

ou antagônicos) que formam um determinado fato, ou fenômeno social, que nada mais é do que

a própria lógica de funcionamento interno (e externo), à estrutura desse fato ou fenômeno.

Portanto, para se certificar da existência e da validade material de aparelhos ideológicos, se faz

necessário conhecer a estrutura das ideologias que os sustentam.

Carnoy (1988) lembra que, para Althusser, a ideologia funciona como “um mecanismo

pelo qual os indivíduos voluntariamente se sujeitam a ela (o consenso hegemônico de Gramsci)

e é essa sujeição que os define na própria sociedade”. Isto implica dizer que, para nosso autor, o

Sujeito não possui autonomia no processo de construção de suas representações sobre o mundo.

Ao contrário, o Sujeito é apenas portador das “relações estruturais nas quais está situado”. Essas

relações estruturais têm uma existência material, objetiva:

No caso da ideologia, o Sujeito de Althusser “age na mesma medida em que sofre a

atuação do seguinte sistema: a ideologia existente num mecanismo ideológico

material, prescrevendo práticas materiais governadas por um ritual material, as quais

existem nos atos materiais de um sujeito que atua conscientemente segundo suas

ideias” (...) Ele sustenta que a ideologia reconhece os indivíduos como sujeitos,

subordina-os ao “sujeito” da própria ideologia (por exemplo, Deus, o capital, Estado),

garante que tudo seja realmente assim e que, contanto que os sujeitos reconheçam o

que são e ajam em consonância com isso, tudo estará bem. (CARNOY, 1988, p.

122).

Page 97: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

97

Assim, a existência material e objetiva das relações estruturais que formam a ideologia

não pode persistir a não ser no interior de um aparelho ideológico que se configura como ente

superior que submete sua vontade aos Sujeitos, o que Althusser denomina de mecanismo de

sujeição:

O indivíduo é, pois, “livre”, autor e responsável por seus atos, mas, é, ao mesmo

tempo, sujeito a uma ideologia que age como uma autoridade superior. O indivíduo é

destituído de toda liberdade, exceto a de aceitar a sua submissão. (Id., ibid., p. 122).

Desse modo, Althusser reconhece que não é tarefa simples para a burguesia manter o

seu poder fazendo uso do mecanismo de sujeição155

. Esse mecanismo possui uma arquitetura

complexa, e, que, para ter êxito, não pode prescindir de ter espraiado “os valores” que dão

conteúdo à visão de mundo burguesa. Esse processo não se dá somente pela tomada do poder do

Estado, antes, necessita da instalação dos Aparelhos Ideológicos, “nos quais essa ideologia se

realiza, que ela se transforma na ideologia dominante” (Id.).

Se afirmamos, antes, que é um processo complexo, cabe-nos considerar que a

complexidade a que nos referimos pressupõe conflitos, tensões. É, pois, assim, que a instalação

dos aparelhos ideológicos tem como parâmetros a luta de classes, que não é subtraída do mundo

dos homens quando a hegemonia burguesa prevalece. Sendo assim, não se subtrai também a

necessidade de um Estado como ente regulador das relações sociais na sociedade classista

burguesa, o que confere, segundo Althusser (1985), um caráter estrutural ao Estado, já definido

anteriormente por Marx e outros marxistas. Por isso, afirma:

O Estado é, antes de mais nada, o que os clássicos do marxismo chamaram de o

aparelho de Estado. Este termo compreende: não somente o aparelho especializado

(no sentido estrito), cuja existência e necessidade reconhecemos pelas exigências da

pratica jurídica, a saber: a política – os tribunais – e as prisões; mas também o

exército, que intervém diretamente como força repressiva de apoio em última

instância (o proletariado pagou com seu sangue esta experiência) quando a policia e

seus órgãos auxiliares são “ultrapassados pelos acontecimentos”, e, acima deste

conjunto, o Chefe de Estado, o Governo e a Administração. (Id., ibid., p. 62-63).

Em resumo, temos que a ênfase conferida por Althusser à ideologia, no contexto da

superestrutura, “admite que a reprodução das relações de produção tem lugar através da

155

Diferente de Gramsci, pois quando se refere à disputa por hegemonia, Gramsci confere ao sujeito um

papel protagônico calçado nas bases materiais de sua existência. Althusser, de outro modo, confere

centralidade à ideologia contida nos aparelhos, o que acaba por determinar toda a estrutura societal. Esse

tipo de distinção conduzirá a formulação althusseriana de Estado a um caminho bastante peculiar, no

campo da tradição marxista. Essa peculiaridade será assumida pelo Serviço Social nas primeiras

aproximações que faz ao “marxismo” e, consequentemente, influirá no modo como os agentes

profissionais e intelectuais se apropriarão do Estado como categoria teórico-analítica e como objeto das

lutas antissistêmicas que travará na esteira da intenção de ruptura. Trataremos disso no Capítulo IV.

Page 98: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

98

ideologia que, no modo capitalista de produção, é, em última instância, realizada no contexto da

luta de classes” (CARNOY, 1985, p. 123). Isto posto, podemos retornar às formulações

althusserianas sobre o Estado.

Althusser, mesmo procedendo a um corte epistemológico na obra de Marx — jovem

Marx, vinculado à filosofia, e Marx revolucionário156

— diz resgatar as elaborações marxianas

sobre os processos fundantes da produção e reprodução social lembrando que todas as

formações sociais reproduzem suas condições e formas de existência a partir do modo como

organizam sua produção.

Nesse processo, os homens contraem relações sociais, evidenciam-se a divisão social e

técnica do trabalho e as classes. Althusser então afirma que são as classes (e o movimento entre

elas) que determinam o nível de desenvolvimento das forças produtivas. Estas, por seu turno,

tendem a tornar-se cada vez mais diversificadas, fazendo sempre mais difusa e heterogênea a

divisão do trabalho.

Para Althusser, a divisão do trabalho é um componente essencial dos processos

reprodutivos da sociedade, sujeita a várias mediações, no limite, conformadoras da ideologia

dominante. A principal delas é a educação a que os trabalhadores estão submetidos, e que, no

capitalismo, diferentemente da escravidão ou da servidão, não está imbricada diretamente à

produção, mas fora dela, contando assim com mais uma mediação, protagonizada agora pelas

instituições educativas.

Esse parece ser um argumento adicional àquilo que Gramsci havia atribuído como

responsabilidade ou participação da esfera da cultura (e mesmo da educação) na perpetuação

das classes e da ideologia dominante inerente. A educação tem, adicionalmente, um papel

decisivo na própria divisão do trabalho, conquanto se estrutura na formação de habilidades

variadas, para que os indivíduos ocupem lugares diferentes e tenham, por assim dizer,

comportamentos diferenciados na divisão do trabalho.

Assim, para Althusser, a educação é também um componente da superestrutura, em

reciprocidade orgânica com a base onde os aparelhos ideológicos realizam seu exercício de

poder. Logo, a reprodução das relações de produção é “garantida, na maior parte, pela

superestrutura ideológica e jurídico-política”. E vai mais além, ao referir que a reprodução das

relações de produção “é garantida, na maior parte, pelo exercício do poder do Estado nos

aparelhos do Estado, por um lado, o aparelho (repressivo) do Estado, por outro, os Aparelhos

Ideológicos do Estado”. (ALTHUSSER apud CARNOY, 1985, p. 125)157

.

156

O que deixa de fora do eixo gravitacional de suas formulações, obras capitais como, por exemplo,

Manuscritos Econômicos Filosóficos de 1844, fundamental para a compreensão dos processos

“alienantes”, “alienadores” e “alienados” típicos da formação social capitalista. 157

Carnoy complementa o raciocínio de Althusser: “Ele diz: ‘na maior parte’, porque as relações de

produção existentes são, primeiramente, reproduzidas pelo sistema de punição e recompensa da própria

produção pela materialidade dos processos de produção. Mas a repressão e a ideologia estão,

Page 99: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

99

Em outros termos, podemos asseverar que Althusser sustenta a superestrutura na base

admitindo que a relação orgânico-dialética entre elas confere tanto uma autonomia (relativa) à

superestrutura quanto um jogo de ações recíprocas.

Assim é que chegamos ao seu entendimento sobre o Estado. Isto é, para Althusser, o

Estado sustenta-se na base e é o responsável por “criar”, manter e reproduzir os aparelhos que

carregam em si os amplos e complexos mecanismos da ideologia dominante. Além da própria

ideologia dominante com o encargo finalístico de manter a dominação burguesa, “capacitando a

burguesia para o exercício de seu poder”.

O Estado é uma “máquina” de repressão que permite ás classes dominantes (no século

XIX à classe burguesa e à “classe” dos grandes latifundiários) assegurar a sua

dominação sobre a classe operária, para submetê-la ao processo de extorsão da mais-

valia (quer dizer, à exploração capitalista). (ALTHUSSER, 1985, p. 62).

Tampouco se opõe ao raciocínio marxista-leninista que preconiza a tomada do Estado

como medida transitória para a superação do capitalismo, contudo, fazuma releitura particular

desse raciocínio, incorporando a noção de aparelho ideológico e de aparelho de Estado que

desenvolve. Althusser entende que a transição proposta por Marx e Engels ratifica sua distinção

entre Estado e aparelho do Estado, pois a tomada do Estado pelo proletariado não implica

linearmente a extinção do primeiro, mas sim a substituição do domínio burguês pelo domínio

proletário nos aparelhos. Somente a conclusão do motim comunista é que levaria ao fim do

Estado e de todos seus aparelhos.

O papel do aparelho repressivo do Estado consiste essencialmente, como aparelho

repressivo, em garantir pela força (física ou não) as condições políticas da reprodução

das relações de produção, que são em última instância relações de exploração. Não

apenas o aparelho de Estado contribui para sua própria reprodução (existem no Estado

capitalista as dinastias políticas, as dinastias militares, etc.) mas também, e sobretudo,

o Aparelho de Estado assegura pela repressão (da força física mais brutal às simples

ordens e proibições administrativas, à censura explicita ou implícita, etc.) as

condições políticas do exercício dos Aparelhos Ideológicos do Estado.

(ALTHUSSER, 1985, p. 74).

Aspecto importante se evidencia nesse excerto. A distinção entre aparelho repressivo de

Estado e aparelhos ideológicos do Estado tem como pano de fundo não apenas as funções

imediatas e reprodutivas de um e outro, mas, também, o lugar que ocupam na trama societária.

Isto é, Estado permanece referenciado à esfera pública, logo, todo seu aparato responsável pela

naturalmente, presentes na produção”. O que nos leva a insistir: novamente o sujeito se coloca como

componente secundário em todo o processo.

Page 100: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

100

repressão é do domínio público (e legitimado socialmente para esse fim), já os aparelhos

ideológicos de Estado existem, fundamentalmente, no mundo privado158

.

Assim, há uma unidade a ser percebida no primeiro e uma pluralidade no segundo.

Embora seja uma distinção importante, não ocupará por muito a caneta de Althusser. Suas

preocupações voltam-se mais para as funções do aparelho repressor do Estado e dos aparelhos

ideológicos do que necessariamente para o lugar que ocupam.

Assim, as relações que se estabelecem entre esses dois tipos de aparelhos são mais

importantes de serem evidenciadas, pois são nelas que se verifica o modo como as classes

disputam o poder. Ademais, há uma unidade conferida à pluralidade dos aparelhos ideológicos

de Estado, dada pela ideologia dominante e pelas condições criadas pelo Estado em sua função

repressiva.

A centralidade conferida à ideologia, no pensamento de Althusser, não é apenas o

núcleo central da escola que ajuda a fundar – o marxismo estruturalista – como também é fonte

de inspiração para seus alunos. Dentre eles, destaca-se um jovem grego, membro do Partido

Comunista da Grécia, que, exilado em Paris, tomou contato com as ideias do mestre, mas não

demorou muito em traçar seu próprio caminho.

Nicos Poulantzas (1936 – 1979), lamentavelmente, não pôde explorar todo seu

potencial intelectual, por ter morrido jovem, aos 43 anos de idade, cometendo suicídio em Paris.

Isso significa que tratar de seu legado é tratar de uma trajetória inconclusa, tal qual seu mestre,

que embora tenha tido mais anos de vida que o aluno, foi acometido de tragédias pessoais que o

impediram de avançar em suas obras.

A análise da produção tanto de Althusser quanto de Poulantzas atesta um percurso

evolutivo, de amadurecimento teórico, que nos permite relativizar parte das negatividades

atribuídas ao estruturalismo-marxista pelos que advogam por outras correntes dessa tradição,

tanto no campo da produção acadêmica, quanto na prática política.

Um motivo para tal perspectiva é notada quando passamos em exame e em modo

comparativo obras como Aparelhos Ideológicos de Estado, de 1970 e Ce qui ne peut plus durer

158

Althusser (1985, p. 67-68) dá alguns exemplos de aparelhos ideológicos de Estado explicando:

“Designamos pelo nome de aparelhos ideológicos do Estado um certo número de realidades que

apresentam-se ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas. Propomos

uma lista empírica, que deverá necessariamente ser examinada em detalhe, posta a prova, retificada e

remanejada. Com todas as reservas que esta exigência acarreta podemos, pelo momento, considerar como

aparelhos ideológicos do Estado as seguintes instituições (a ordem de enumeração não tem nenhum

significado especial): AIE religiosos (o sistema das diferentes Igrejas); AIE escolar (o sistema das

diferentes “escolas” públicas e privadas); AIE familiar; AIE jurídico; AIE político (o sistema político, os

diferentes partidos); AIE sindical; AIE de informação (a imprensa, o rádio, a televisão, etc.); AIE cultural

(Letras, Belas Artes, esportes, etc.)”. Esta lista, ressalvadas as condições apresentadas pelo autor,

expressa parte do conjunto de “sujeitos coletivos” reconhecidos por Gramsci como “aparelhos privados

de hegemonia”, contudo, quando alçados à relação e à processualidade histórica da formação e

conformação do Estado, se distinguem. Para Althusser, os AIEs possuem relação “umbilical” com o

Estado. Já em Gramsci ao “aparelho privado de hegemonia” implica autonomia em relação ao Estado em

sentido stricto.

Page 101: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

101

dans le Parti Communiste159

, de 1978 (uma preocupação inédita de Althusser com as coisas do

Partido) (NETTO, 2010)160

e O Estado, o Poder, o Socialismo, de 1978 (que registra inflexão

gramsciana de Poulantzas) com tudo o que ambos produziram nas fases primeiras de suas

trajetórias intelectuais.

Como citamos, a interrupção prematura da vida e obra desses autores não nos permite

certificar o rumo que seus programas teóricos tomariam, contudo, é possível partir tanto do

percurso que traçaram como do que nos deixaram como registro mais maduro para que não os

deixemos de fora do processo analítico que empreendemos. No caso de Poulantzas, isso nem

seria possível, considerando que suas formulações maduras são nucleares para nossas análises

sobre o tratamento dispensado pelo Serviço Social à problemática teórico-prática do Estado.

Nesse sentido, nosso passeio pelas considerações clássicas marxistas sobre o Estado

prossegue resgatando o Poulantzas de Poder Político e Classes Sociais, de 1968, e o de O

Estado, o Poder, o Socialismo, de 1978, registrando-se um lapso temporal de dez anos.

A inquietação que motiva o programa teórico de Poulantzas é centralmente a

problemática teórico-prática do Estado. Mais especificamente do Estado capitalista, partindo,

assim, de uma crítica mais contundente que a de Gramsci e de Althusser à visão instrumentalista

do Estado.

Como vimos, a ideia do Estado-instrumento é aquela ancorada de modo largo no

excerto retirado do Manifesto do Partido Comunista: “O poder executivo do Estado moderno

não passa de um comitê para gerenciar os assuntos comuns de toda a burguesia” 161

.

Lido com a abstração do contraditório e de mediações centrais, portanto, sem o foro da

totalidade, esse excerto do Manifesto opõe frontalmente e de modo simples burguesia e

proletariado e não se admite nenhuma autonomia do Estado, nem mesmo relativa, com relação à

classe dominante. Poulantzas discorda desta leitura e, no texto de 1968, especifica seu

entendimento sobre a polêmica, afirmando de imediato reconhecer a autonomia relativa do

Estado capitalista, ainda numa impostação estruturalista:

159

“Isso não pode perdurar no Partido Comunista” (tradução livre). 160

NETTO, José Paulo. Pósfacio. In: COUTINHO, Carlos Nelson. O estruturalismo e a miséria da

razão. 2. ed., São Paulo: Expressão Popular, 2010. 161

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Tradução de Maria Lúcia

Como. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

Page 102: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

102

Por autonomia relativa deste tipo de Estado, entendo, aqui não diretamente a relação

das suas estruturas com as relações de produção, mas a relação do Estado com o

campo da luta de classes, em particular a sua autonomia relativa em relação às classes

ou frações de bloco no poder e, por extensão, aos seus aliados ou suportes. Esta

expressão encontra-se nos clássicos do marxismo, designando o funcionamento do

Estado em geral no caso em que as forças políticas presentes estão “prontas a

equilibrar-se”. (POULANTZAS, 1977, p. 252)162

.

Assim, apenas anuncia a polêmica que envolve sua problematização nada

autoexplicativa, o que o impele a esclarecer:

Emprego-o, aqui, em um sentido simultaneamente mais amplo e mais estreito, para

designar um funcionamento específico do Estado capitalista. Espero, por isso mesmo,

marcar nitidamente a distância que separa esta concepção do Estado de uma

concepção simplista e vulgarizada, que vê no Estado o utensílio ou o instrumento da

classe dominante. Trata-se, pois de apreender o funcionamento específico do tipo

capitalista de Estado relativa aos tipos de Estado precedentes, e demonstrar que a

concepção do Estado em geral como simples utensílio ou instrumento da classe

dominante, errônea na sua própria generalidade, se revela particularmente inapta para

apreender o funcionamento do Estado capitalista. (Id., ibid., p. 252).

Identificar uma função instrumental do Estado, para Poulantzas, não é defini-lo. O

Estado deve ser contextualizado163

.

O Estado e os elementos de sua constituição, reprodução e metamorfoses são de capital

importância para o tratamento analítico de qualquer processo social geral ou particular.

Considerações conceituais, sobre uma formação social qualquer, requerem, antes, as

explicitações de seus elementos constitutivos e suas formas de organização – sejam políticas,

ideológicas, culturais, em última instância, determinadas pelo econômico164

.

162

POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. São Paulo: Martins Fontes, 1977. 163

Do mesmo que a produção do autor, também deve ser contextualizada. Não se pode perder de vista

que Poulantzas escreve no momento m que os partidos comunistas europeus ocidentais abandonam

gradativamente o programa da revolução, isto é, o eurocomunismo, ao propalar o “pluralismo político”,

também se reveste de ambiguidade, tanto por ser entendido como alternativa ao stalinismo quanto por

receber a alcunha de revisionista. Essa disputa e movimentação ideopolíticas marca sobremaneira a

produção de Poulantzas nesta fase. 164

O conceito de “última instância” será amadurecido por Poulantzas no percurso que separa Poder

Político e Classes Sociais de O Estado, o O poder, o Socialismo, definindo “última instância” como uma

espécie de “matriz” que determina essencialmente o restante das coisas, e que, ao mesmo tempo, mantém

uma organicidade dialética radical (como raiz) com elas. Algo próximo do asseverado por Chasin (2000,

p. 38): “... estamos aqui, completamente afastados de uma concepção em que a determinação em última

instância do estado pelo econômico seja uma forma de pensar a relação como uma sorte de

distanciamento e afrouxamento da determinação econômica. Ao contrário, última instância significa

determinação essencial, raiz para além da qual nada há a buscar, terminação precisamente porque ela é a

radicalidade das coisas e sua gênese. Que medeie aí uma gama de mediações e a determinação

fundamental não seja entendida mecanicamente também é uma clara evidência”. (In: CHASIN, José. A

Page 103: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

103

No caso específico da formação social capitalista, se faz mister estabelecer os nexos

causais entre a formação social específica e o tipo de Estado que lhe confere legitimidade, mas

sempre exercendo uma função particular de constituir o fator de coesão dos níveis desta mesma

formação social (POULANTZAS, 1977, p. 42). Desses níveis, evidente que a instância

econômica assume o papel dominante, contudo, é no conjunto das lutas por poder, hegemonia,

luta entre e intraclasses que as transformações políticas ocorrem e materializam não apenas o

Estado, mas as classes em si motivando a história, no confronto. Em outros termos, afirma

Poulantzas (1977, p. 43):

Com efeito, já podemos descobrir um índice desta função do Estado no fato de que,

para além de fator de coesão da unidade de uma formação, é também a estrutura na

qual se condensam as contradições entre os diversos níveis de uma formação. O

Estado é assim o lugar no qual se reflete o índice de dominância e de

sobredeterminação que caracteriza uma formação, um dos seus estágios ou fases. Por

isso, o Estado aparece como um lugar que permite a decifração da unidade e da

articulação das estruturas de uma formação (...). É a partir da relação entre o Estado,

fator de coesão da unidade de uma formação, e o Estado, lugar de condensação das

diversas contradições entre as instâncias, que podemos assim decifrar o problema

política – história. Esta relação designa a estrutura do político, simultaneamente como

nível específico de uma formação e como lugar das suas transformações, e a luta

política como “motor da história” tendo como objetivo o Estado, lugar de

condensação das contradições entre instâncias defasadas por temporalidades próprias.

Portanto, o Estado seria um importante vetor de comunicação ou uma espécie de

transmissor que veicula as contradições de um nível específico para outro nível específico da

formação social. Suas artérias, determinantes para que o Estado funcione como fator de coesão,

são fundadas por instâncias da vida social, como a política, a ideologia, a cultura, determinadas

pela última, que é a econômica.

Nesse sentido, Poulantzas vai além da formulação gramsciana sobre hegemonia,

entendendo que o Estado consegue se fazer valer como representante da vontade geral,

difundindo os valores burgueses como civilizatórios e desprovidos de conteúdo classista, mas

seu principal feito, para Poulantzas, é conseguir unidade política entre as frações de classe

burguesa configurando um bloco no poder165

. A unificação da burguesia (ainda que sempre

miséria brasileira: 1964 – 1994 – do golpe militar à crise social. Santo André/SP: Estudos e Edições Ad

Hominem, 2000). 165

Estabelecem-se aí atração e retração entre Gramsci e Poulantzas, relação que mais tarde será

transformada em extensão do pensamento do segundo sobre o primeiro. Gramsci trata da luta por

hegemonia no seio da sociedade civil, sem, contudo, subtrair mediações ininterruptas que articulam

nexos, portanto, a luta mesma dos aparelhos privados de hegemonia na esfera superestrutural, portanto,

no Estado. O Poulantzas de Poder Político e Classes Sociais, por seu turno, avança considerando os

processos de luta no interior do Estado, porém, busca detalhes desse processo na dinâmica que coesiona e

fragmenta as classes protagonistas do confronto, transmutando as contradições dele emanadas de um

Page 104: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

104

provisória) no âmbito do Estado também funciona como exemplo para toda a sociedade,

condicionando uma espécie de concertação entre burguesia e proletariado no âmbito das

instituições públicas e mantendo o poder de classe da primeira sobre a segunda.

Essa concertação ancora-se nos estatutos da igualdade formal, base estruturante dos

Estados capitalistas, de regime democrático liberal, sobretudo. É por essa razão que Poulantzas

dedica especial atenção às transformações que ocorrem nas estruturas jurídico-políticas do

Estado, na intenção de denunciar que as instituições do Estado capitalista tratam os cidadãos de

modo vazio, isto é, sem considerá-los inseridos na estratificação social das classes.

A acomodação provisória das relações capital-trabalho convence de tal maneira as

massas (por meio do mecanismo de sujeição sugerido por Althusser) que faz com que o direito-

positivo, pai do postulado positivista da neutralidade, se legitime como normatizador supremo

da sociedade em seu conjunto, portanto, acima das classes, mascarando que sua formatação

obedece aos interesses da classe dominante. E, sendo norma jurídica, deve ser obedecida por

todos (novamente o poder coercitivo do Estado). Nessa unidade ideopolítica, existente no

âmbito das relações entre o Estado e a luta de classes, reside a grande função do Estado burguês.

Nos seus termos, refere:

Isto conduz, ao nível das relações entre Estado e a luta política de classes, a um

resultado aparentemente paradoxal, mas que constitui, de fato, o “segredo” desse

Estado-nacional-popular-de-classe: o poder institucionalizado do Estado capitalista de

classe apresenta uma unidade própria de classe, precisamente na medida em que se

pode apresentar como um Estado nacional-popular, como um Estado que não

representa o poder de uma classe ou de classes determinadas, mas sim a unidade

política de agentes privados, entregues a antagonismos econômicos, os quais o Estado

se apresenta com a função de ultrapassar, unificando esses agentes em um corpo

“popular-nacional”. (POULANTZAS, 1977, p. 272)166.

E o autor prossegue afirmando que a estratégia do Estado se apresentar como Ser acima

das classes relaciona-se diretamente a uma “função ideológica” precisa, responsável por lhe

conferir legitimidade, mas adverte:

nível para outro das instâncias que compõem esta “superestrutura”. O intuito é expressar o modo como se

constitui o “bloco no poder”. O que, a primeira vista, pode parecer um antagonismo, mais tarde será um

ponto fulcral de aproximação entre os dois intelectuais. 166

Essa função do Estado levantada por Poulantzas fica sobremaneira evidenciada nos momentos em que

o capitalismo necessita de medidas estatais planejadas para alavancar seu desenvolvimento. Veremos,

mais adiante, a infalibilidade dessa função, no Capítulo 2, quando tratarmos do papel do Estado tanto na

“criação” quanto na manutenção e difusão da ideologia nacionalista como pano de fundo estratégico para

o desenvolvimentismo em todas suas fases na história brasileira.

Page 105: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

105

Função ideológica que não deve, aliás, ser confundida com a intervenção do

ideológico na própria organização desse Estado, isto é, na instauração dos agentes na

qualidade de sujeitos jurídico-políticos e na constituição do corpo nacional-popular.

(Id,, ibid., p. 273).

Poulantzas preocupa-se em esclarecer que, com tais afirmações, não está

superdimensionando a instância ideológica em detrimento das múltiplas determinações da vida

social que funcionam sob a dominância do econômico, mas o modo como a ideologia se

apresenta na organização do Estado não pode se confundir com o Estado ideológico (o caráter

da ideologia na sua generalidade). Se isso ocorrer, fica fracassada a sua argumentação da

autonomia relativa do Estado ante as classes.

No desvendamento da ideologia reside, assim, uma das chaves heurísticas que permite

elucidar a função de coesão social do Estado:

Em uma palavra, o Estado “representante” da unidade política do povo-nação reflete-

se, não obstante, em todo um quadro institucional real que tende a funcionar

efetivamente, de acordo com a situação concreta das forças presentes, no sentido de

uma unidade própria do poder de Estado e de uma autonomia relativa a respeito das

classes dominantes. Se é verdade que não podemos superestimar esse quadro

institucional, e que é sempre necessário ter em vista o que ele esconde, não podemos,

por outro lado, negligenciar a eficácia específica que, conjugado com a função

ideológica de legitimidade do Estado, apresenta em relação à sua unidade própria e a

sua autonomia relativa. (Id., ibid., p. 273).

Na expectativa de aprofundar o problema da unidade do Estado, o autor inclui em seu

texto considerações sobre os elementos que compõem a democracia política dos Estados

capitalistas e que participam do processo ideopolítico de deflagração desta mesma unidade,

como a representatividade, o interesse geral, a opinião pública, o sufrágio universal, as

liberdades públicas, enfeixando-os no estudo do conceito de soberania popular e no conceito de

formação de povo. Não nos compete, para este texto, acompanhar o autor nesses argumentos;

antes, cabe-nos prosseguir um pouco mais no tratamento que dispensa à problemática da

unidade do Estado.

Com o intuito de mostrar a complexidade dessa problemática, Poulantzas também se

atém a não deixar margens para que a unidade a que se refere, galvanizada pela ideologia, seja

compreendida como sinônimo de homogeneidade no interior das classes fundamentais. O autor

menciona uma disputa de hegemonia intraclasses, que no limite não corrói o bloco no poder,

ainda que possa, em conjunturas históricas específicas, lhe causar fissuras.

Page 106: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

106

Determinamos, além disso, o tipo de relações entre as classes ou frações de classe que

fazem parte do bloco no poder. Contrariamente a certas noções que Marx emprega –

de fusão ou de síntese, por exemplo -, o bloco no poder constitui uma unidade

contraditória das classes ou frações dominantes, unidade dominada pela classe ou

fração hegemônica. Essa unidade do bloco no poder é constituída sob a égide da

classe ou fração hegemônica que polariza politicamente os interesses das outras

classes ou frações que fazem parte dela (...) as relações entre as diversas classes ou

frações desse bloco não podem consistir em uma partilha do poder político

institucionalizado, de que a classe ou a fração hegemônica possuiria apenas uma

parcela mais importante que as outras. (Id., ibid., p. 293-294).

E prossegue:

Em outras palavras, se a concepção de um poder de Estado dividido em parcelas não é

valida para as relações: classes dominantes - classes dominadas, ou ainda: classes

dominantes e classes-apoio ou aliadas, também não é para as relações entre classes e

frações que constituem o bloco no poder. Tanto assim que a representação da

correspondência entre o Estado e os interesses específicos da classe ou fração

hegemônica, na medida em que polarizam os das outras classes ou frações do bloco

no poder, sustenta essas análises de Marx. É sempre a classe ou fração hegemônica

que, em última análise se revela detentora do poder de Estado na sua unidade, e de

modo tão explicito que surge, muitas vezes em Marx, como a classe ou fração

“exclusivamente dominante”. (Id., ibid., p. 294).

E conclui:

Unidade política do bloco no poder sob a égide da classe ou fração hegemônica

significa, assim, unidade do poder de Estado, na sua correspondência com os

interesses específicos desta classe ou fração. (Id., ibid.).

Fica evidente, pelos excertos apresentados, que não se trata, para Poulantzas, do falso

princípio democrático burguês que diz: “No consenso, todos serão contemplados”. Ao contrário,

não há repartição fraterna do bolo do poder do Estado. As frações de classes burguesas que não

têm hegemonia no Estado também não tem o atendimento direto e inequívoco dos seus

interesses, o que causa fissuras na unidade classista.

A unidade recompõe-se quando se garante o espraiamento dos interesses da classe ou

fração dominante para toda a sociedade, atingindo a classe operária na criação e disseminação

de um perverso sentimento de “integração” destes ao corpo societário, por meio dos estatutos do

direito positivo, da igualdade formal, do sentimento de nação unificada onde todos estão sob o

jugo do mesmo conjunto de direitos e deveres, independentemente da classe a que pertencem.

Essa integração favorece a unidade, ao mesmo tempo em que consolida a já clássica

separação do trabalhador de seus meios de produção, naturalizando o antagonismo de classes.

Em outros termos, o Estado desempenha a dupla função de cindir e agregar, ou seja, legitima a

Page 107: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

107

separação do trabalhador de seus meios de produção, criando indivíduos atomizados,

juridicamente legitimados e os reunifica sob a pecha de Estado-nação. Por isso, para Poulantzas,

a legislação burguesa desempenha papel fundamental para o exercício do poder do Estado

incidindo diretamente nas relações sociais de produção, na instância econômica da vida social,

na infraestrutura167

.

É importante ressaltar, mesmo sob o risco de estarmos sendo repetitivos, que o modo

como Poulantzas descreve os mecanismos que conferem unidade à classe dominante e a

recomposição de suas frações no bloco no poder, serve, para esse autor, como meio de

comprovar sua tese da autonomia relativa do Estado, inclusive fazendo uso da ideologia como

antes já discorremos.

Se hegemonia não é homogeneidade e não há repartição do poder entre as frações de

classe burguesa, logo, o Estado burguês é um espaço imanente de conflitos e tensões.

Poulantzas (1977, p. 295) deixa clara a incapacidade de a burguesia eliminar essa contradição

interna, afirmando:

Entregues a si mesmas, as classes e frações ao nível da dominação política, não só se

esgotam em fricções internas, como se afundam, a maior parte das vezes, em

contradições que as tornam incapazes de governar politicamente. Mesmo se essas

contradições, no conjunto das relações de classe de uma formação capitalista, são

contradições secundárias, e raramente aspectos secundários da contradição principal,

nem por isso o seu impacto deixa de se revelar capital. Conjugadas com a contradição

principal, ou com o aspecto principal desta última, essas contradições originam, dado

o seu funcionamento de classe, uma situação sempre instável da dominação ao nível

político.

Com isso, busca mostrar que, às vezes, o Estado burguês precisa sacrificar a si mesmo

para manter seu poder e o da classe que representa. Isto é, o Estado acaba por exercer sua

autonomia relativa quando contraria os interesses da classe ou fração de classe no poder,

“concedendo” à classe dominada alguns benefícios, seja atendendo a suas reivindicações, seja se

antecipando a elas. Evidentemente que esta aparente subversão do Estado burguês logo se

transforma em benefício para a classe dominante, tal qual explícito no 18 Brumário de Luís

Bonaparte, e numa aproximação relativa ao conceito de Revolução Passiva em Gramsci. Nesse

sentido, Poulantzas (1977, p. 281) escreve:

167

A articulação entre a base e a superestrutura.

Page 108: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

108

Essa autonomia relativa permite-lhe [ao Estado] precisamente intervir, não somente

com vista a realizar compromissos em relação às classes dominadas, que, a longo

prazo, se mostram úteis para os próprios interesses econômicos das classes e frações

dominantes, mas também intervir, de acordo com a conjuntura concreta, contra os

interesses a longo prazo desta ou aquela fração da classe dominante: compromissos e

sacrifícios por vezes necessários para a realização do seu interesse político de classe.

Basta mencionar o exemplo das chamadas “funções sociais” do Estado, que

atualmente assumem uma importância crescente168

.

Em síntese, notamos que o texto de 1968 é influenciado pelos estatutos da escola

estruturalista, pois confere centralidade - relativa em Poulantzas e total em Althusser - à

estrutura em detrimento da presença protagônica do sujeito-político e suas ações teleológicas.

Isso leva à ratificação do Estado entendido mesmo como uma “estrutura” que tem por função

garantir a coesão social articulando os dispositivos ideológicos, políticos, jurídicos, etc. de uma

formação social de um nível a outro.

A inflexão que o levará a aprimorar tal posição está registrada no texto de 1978, O Estado, o

Poder, o Socialismo, mas não se faz sem mediações. Entre um texto e outro, Poulantzas

produziu ensaios, artigos e protagonizou até calorosos debates169

que o teriam levado a

abandonar o conceito de Estado como estrutura, tendo passado a considerar o Estado como

aparelho, para finalmente conceber, na obra citada, o Estado como relação, cuja função

essencial é econômica, o que, de certo modo, não o faz abandonar a percepção da existência de

aparelhos de Estado com finalidade repressivas, todavia, constituintes de uma forma política

determinada em processo de luta entre classes e frações. (Quadro 1).

168

É outra característica que compõe o escopo do desenvolvimento capitalista que emerge nas fases de

desenvolvimentismo, como mostraremos no Capítulo 2. 169

Na revista Crítica Marxista 27, encontramos também a transcrição do histórico debate entre Nicos

Poulantzas e Ralph Miliband, certamente o mais conhecido de seus embates, mas há outros, como o que

trava com o sociólogo brasileiro Fernando Henrique Cardoso sobre o conceito de classe social. Ver:

CARDOSO, Fernando Henrique. Althusserianismo ou marxismo? A propósito do conceito de classes em

Poulantzas. In: ZENTENO, Raúl Benítez (Org.). As classes sociais na América Latina: problemas de

conceituação. Tradução de Galeno de Freitas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. Mas não apenas. A

evolução do pensamento de Poulantzas parte, ainda, de uma autocrítica ao “estruturalismo” que tratou o

Estado como uma “estrutura invariante que produz, através do direito e do burocratismo burguês efeitos

ideológicos funcionais para a reprodução do sistema social” (CODATO, 2008) e de uma crítica a autores

como Bobbio, os eurocomunistas, dentre outros. Ou seja, sua produção está completamente imersa na

movimentação teórica dinâmica de seu tempo.

Page 109: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

109

Quadro 1 - Trajetória intelectual de Nicos Poulantzas (o conceito de Estado capitalista)

Periodização Obras Principais Conceito de Estado Função do Estado Extinção do Estado

1a fase Poder político e

classes sociais (1968) Estrutura Política: coesão (dos

níveis de uma formação) social

Destruição do

aparelho do Estado

Texto de transição O problema do Estado

capitalista (1969)

[artigo]

2a fase Fascismo e ditadura (1970)

Aparelho Político-ideológica: coesão de uma

formação social

dividida em classes

Textos de transição As classes sociais no

capitalismo de hoje

(1974). A crise das

ditaduras (1975)

Aparelho/relação Contradição intra e

interaparelhos

3a fase As transformações

atuais do Estado

(1976) [artigo] O Estado, o poder, o

socialismo

Relação Econômica: constituição (e não

apenas reprodução) das relações de produção

Modificação na

correlação de forças

em favor das massas dentro e fora do Estado

Fonte: CODATO, Adriano. Poulantzas, o estado e a revolução. Revista Crítica Marxista, n. 27, 2008. p. 72170.

Sendo relação, o Estado possibilita uma correlação de forças, e a transição socialista

passa necessariamente pelo fortalecimento das massas proletárias nessa correlação. Em seus

termos:

O Estado, no caso capitalista, não deve ser considerado como uma entidade intrínseca

mas, como aliás é o caso do “capital”, como uma relação, mais exatamente como a

condensação material de uma relação de forças entre classes e frações de classe, tal

como ele expressa, de maneira sempre específica no seio do Estado (...) Mas o Estado

não é pura e simplesmente uma relação, ou a condensação de uma relação; é a

condensação material e específica de uma relação de forças entre classes e frações de

classe. (POULANTZAS, 2000, p. 130-131)171.

A consideração madura de Poulantzas aproxima mais sua produção da realidade do

Estado capitalista contemporâneo. Tanto que, em seus argumentos, incluem-se considerações

inéditas para um marxista sobre o pessoal de Estado e se dedica ainda a questões da

Administração pública e o Partido, momento em que, lamentavelmente, sua vida e obra se

interrompem.

170

O autor da categorização expressa no Quadro 1 alerta para os limites e riscos de uma exposição como

esta: “ (...) quando se trata de uma obra de pensamento, ‘não se pode’, sem ser reducionista, ‘tratar como

simples elementos de informação etnográfica’, isto é, como elementos descritivos, menores ou acidentais,

‘os traços culturais que ela mobiliza’. Essas características, que estão presentes na obra de um autor e que

definem sua singularidade, só fazem sentido, (...) no contexto da própria obra em que elas estão inseridas.

Além disto, é preciso considerar, numa leitura mais contextual, o conjunto de obras a que a obra em

questão faz referência, e as relações que definem a posição do seu autor tanto no espaço político quanto

no espaço intelectual. Uma análise bem mais completa que a realizada aqui deveria ter presente todos

esses determinantes”. (In: CODATO, Adriano. Poulantzas, o estado e a revolução. Revista Crítica

Marxista, n. 27, 2008, p. 72). 171

POULANTZAS, Nicos. O estado, o poder, o socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

Page 110: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

110

Poulantzas insere-se num quadro de marxistas contemporâneos que se dedicaram a

“tecer considerações teóricas sobre o Estado e não somente contra ele”, e isso se deve à

emergência do Estado Social como um fenômeno inevitável de seu tempo e que, como tal, não

pode ser ignorado. Neste sentido, Pereira (2008, p. 107-108)172

afirma:

A presença insofismável do Estado Social exigiu também reavaliações na concepção

marxista desse Estado, detectadas nas análises pioneiras de autores contemporâneos

como John Saville, James O’Connor e o primeiro Claus Offe (...). Tais autores, em

vez de se prenderem à noção de Estado restrito, presente no pensamento marxiano do

século XIX, passaram a considerar um arco mais amplo de intervenção estatal, dando

importância ao seu caráter contraditório e sua dimensão política ativa. Um pensador

marxista que pode ser considerado referência dessa nova abordagem (...) é Antonio

Gramsci, sobre quem recai o mérito de ter teorizado a respeito do Estado Ampliado e

da autonomia relativa deste, no que foi seguido e aperfeiçoado (em certos aspectos)

por Nicos Poulantzas173.

Com isso, não se quer dizer que esses estudiosos contemporâneos tenham rechaçado a

perspectiva de “bem-estar social” de Marx, mas sim que, confrontados com

fenômenos e processos inusitados no século XX, passaram a atualizar e ampliar o

legado teórico marxista, mesmo não apresentando uma contribuição homogênea.

[Assim, a literatura marxista foi se preocupando com questões mais densas]. Passou a

pôr em relevo a autonomia relativa do Estado e as contradições — principal e

secundária — na relação entre Estado e Sociedade (à guisa de Poulantzas); as

contradições e crises fiscais do Estado (O’Connor) e os mecanismos internos que

garantem ao Estado o caráter de classe (Claus Offe)174.

O Estado Social não é objeto de nossas considerações primeiras, contudo, convocamos

o excerto de Pereira (2008) para evidenciar que a problemática teórico-prática do Estado no

pensamento de Poulantzas se constrói em consonância com as dinâmicas sócio-históricas que se

registram em seu tempo. Essas considerações são adotadas por nós como o caminho mais

adequado para garantir coerência entre uma concepção de Estado e de luta antissistêmica e uma

concepção de projeto profissional que alia as possibilidades dadas pela natureza da profissão a

um projeto societário alternativo a ordem do capital. Ao final deste item e no capítulo 4,

retomamos esta posição.

A escalada de maturação teórica envolvendo mestre e discípulo no campo da tradição

marxista não se resume a Althusser e Poulantzas. O filósofo húngaro Georg Lukács (1885-

1971) e seu legatário mais proeminente, o filósofo também húngaro István Mészáros (1930 –

atual), representam o que há de mais profícuo e significativo desse tipo de relação.

172

PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. Ob. Cit., 2008. 173

Id., ibid. 174

Id., ibid.

Page 111: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

111

Ao tratarmos desses dois marxistas contemporâneos, estamos também tratando da

perspectiva ontológica do ser social como tratamento dos campos categoriais fundantes

marxianos. Isto é, lidamos tanto com uma forma específica de análise, que goza de prestígio

limitado ante as incursões de prevalência pós-modernas da contemporaneidade, quanto de

autores cujo eixo gravitacional de suas formulações não passa, de modo direto e derradeiro, pela

problemática do Estado, como os demais interlocutores da presente argumentação175

.

Netto (2004, p. 145) refere que o cariz ontológico do pensamento lukacsiano [e por

extensão, de Mészáros] incompatibiliza sua obra

(...) posterior aos meados dos anos 30 — e, notavelmente, as derradeiras construções

sistemáticas de Lukács, a Estética e a Ontologia... — com a ambiência cultural

contemporânea. Os traços constitutivos dessa ambiência colidem frontalmente com os

componentes estruturais do pensamento maduro de Lukács, direta ou mediatamente

vinculados à impostação ontológica: a ambiência dominante hoje na cultura de

oposição é visceralmente avessa às preocupações ontológicas176.

Isso não quer dizer que a escola lukacsiana não seja profícua na explicitação dos

dilemas contemporâneos. A afirmação do autor vai exatamente ao sentido contrário. A

impostação ontológica permite desvendar a complexidade das relações que se estabelecem no

metabolismo societário dinâmico negando as superficialidades e efemeridades privilegiadas no

tempo presente, pois permite que a totalidade dessas relações seja desvendada a partir do estudo

do Ser enquanto Ser: concebido como tendo natureza comum, que é inerente a todos os seres e,

ao mesmo tempo, particular e singular. Difere, desse modo, da metafísica, indo para além

dela177

.

Esse caminho eleito por Lukács (iniciemos por ele) não se deu como escolha autônoma

de sua consciência178

. Faz parte do processo mesmo de sua trajetória política179

. Nesse sentido, é

comum se estabelecer um corte epistemológico em sua produção, conhecido como fases do

jovem Lukács e do Lukács maduro. Alguns de seus antagonistas chegaram a distinguir, no

175

Porém, não significa que tenham ignorado a problemática. Mészáros, mais que Lukács, dispensou

dedicação contundente à problemática do Estado, o que não retira a natureza ontológica (do ser social) de

suas análises, nem de modo contrário. 176

NETTO, José Paulo. G. Lukács: um exílio na pós-modernidade. In: ______. Marxismo impenitente:

contribuição à história das ideias marxistas. São Paulo: Cortez, 2004. 177

Além da metafísica, difere também do neopositivismo e das perspectivas, mesmo que críticas,

epistemológicas, em que o desenvolvimento da ciência ocorre independentemente e de forma autônoma

em relação ao seu objeto. Também se diferencia das perspectivas fenomenológicas em que a existência do

Ser é sintetizada na sua imediaticidade, desconsiderando a gênese e a historicidade. 178

Como nenhuma “escolha” dessa natureza se dá por esse caminho. Antes, a base dinâmica, material e

objetiva das relações societais é que a funda, como afirmara Marx, quando se referiu ao fato de que “não

é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua

consciência”. 179

Consultar: LÖWY, Michael. Pour une sociólogie des intellectuels revolutionnaires; I´evolution

politique de Lukacs, 1909 – 1929. No Brasil, publicado sob o título A Evolução Política de Lukács (1909-

1929), pela Editora Cortez, em 1998.

Page 112: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

112

campo da tradição marxista, como Althusser, por exemplo, o Lukács filósofo, do

revolucionário.

O fato é que a obra lukacsiana, como contribuição ao tratamento da problemática do

Estado, no âmbito da tradição marxista, é eivada de polêmicas, circunscritas, sobretudo, ao

período de História e Consciência de Classe. E isso não é por acaso. Esse é o momento em que

o autor se aproxima de um tratamento particular do tema e é, do mesmo modo, o momento no

qual seu pensamento mais se distancia dele próprio.

Isto é, em História e Consciência de Classe, de 1923, Lukács procede a uma

aproximação acrítica da obra de seu professor e amigo Max Weber, que o leva a concordar, por

meio da teoria dos tipos ideais de Weber, com este último, que o Estado burguês é um ente

análogo à empresa capitalista.

Assim, o desenvolvimento capitalista criou um sistema de leis que atendesse suas

necessidades e se adaptasse à sua estrutura, um Estado correspondente, entre outras

coisas. A semelhança estrutural é, de fato, tão grande que nenhum historiador

realmente perspicaz do capitalismo moderno poderia deixar de constatá-la. Max

Weber descreve o princípio fundamental desse desenvolvimento da seguinte maneira:

“Ambos são, antes, bastante similares em sua essência fundamental. O Estado

moderno, de um ponto de vista sociológico é uma ‘empresa’ tal como uma fábrica; é

justamente o que tem de específico no âmbito histórico. E as relações de dominação

na empresa também estão, nos dois casos, submetidas a condições da mesma espécie”.

(LUKÁCS, 2003, p. 214-215)180.

Acabam por justificar a ordem do capital na medida em que conferem à racionalização

dos processos produtivos uma autonomia com relação ao complexo social em que ela se

constrói. Nem mesmo a luta de classes comparece como um fator determinante ao

desenvolvimento capitalista nesse recorte que fazem da realidade181. Lukács torna-se, com isso,

precursor do que se convencionou chamar de “marxismo weberiano”182

.

180

LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo:

Martins Fontes, 2003. 181

Paço-Cunha (2011) resgata o significado dessa aproximação retomando a crítica empreendida em

Para Além do Capital, de Mészáros, que nos mostra, por exemplo, um dos muitos traços que atestam a

continuidade da obra de Lukács empreendida por ele. Sobre a crítica de Mészáros, refere: “O peso da

influência weberiana é particularmente revelador a este respeito” [em História e Consciência de Classe].

Mészáros salienta a “aprovação incondicional” de Lukács em relação à “afinidade estrutural entre o

Estado capitalista e as empresas na sociedade de mercadorias” (p. 330 e 407) a partir das passagens de

História e Consciência de Classe, especificamente do famoso capítulo sobre a reificação. Lá aparecem os

efeitos dos tipos ideais, a partir dos quais, “sociologicamente falando, o Estado moderno é uma ‘empresa’

(Betrieb) idêntica a uma fábrica: esta, exatamente, é sua peculiaridade histórica” (WEBER, 1997, p. 40).

Com essas passagens, as quais atestam a recepção aberta da analogia entre Estado e Empresa, Mészáros

argumenta que “longe de identificar as especificidades históricas reais do ‘moderno capitalismo’, como

Weber alega, sua principal preocupação é a radical obliteração delas sob um acúmulo de características

funcionais superficiais” (1995, p. 331; 2002, p. 408). As críticas de Mészáros pesam sobre a “mera

analogia”, a “identidade mecânica” entre estado e empresa e as consequentes mistificações dessas formas

Page 113: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

113

Contudo, a trajetória de Lukács é construída em um processo de densidade histórica e

política que o permite avançar em forma e em substância, liberando-o da aproximação

weberiana rumo à perspectiva ontológica183

.

Ao primar pelos rumos de uma ontologia crítica do ser social, resgata a essencialidade

do pensamento marxiano, por meio de fidelidade ao método184

, o que o leva a fazer uso nuclear

da categoria totalidade. Desse modo, suas preocupações transcendem os recortes particulares

que se dirigem a propriedades parciais de um complexo social, dando um giro ontológico denso

na sua interpretação da produção marxiana.

Desde então [meados dos anos 1930], na obra lukacsiana, a questão da efetividade, da

gênese e da historicidade concretas do ser social passou a constituir o núcleo

irradiador e articulador da reflexão teórica, implicando consequentemente, para

retomar a formulação derradeira de Lukács, numa explícita “oposição entre

gnosiologia e ontologia”; em poucas palavras, desde então a direção ontológica

determinou o deslocamento do trato epistemológico, agora destituído do privilégio de

operação intelectiva fundante e disposto na arquitetura teórica num nível distinto

daquele que lhe cabia na filosofia ocidental especialmente desde Kant (e que, antes

deste giro, também desfrutara de privilégio na obra do próprio Lukács). (NETTO,

2004, p. 146)185.

Assim, a obra de Lukács, que parte da Estética e se consagra na Ontologia do Ser

Social, abandona, nos dizeres do próprio autor, as objetivações de caráter institucional como

objetos de interesse científico, para se dedicar às formas superiores do conhecimento e do

tratamento do Ser enquanto Ser:

“racional-burocráticas” em que, também argumenta ele, “o objetivo de Weber é a representação

tendenciosa das relações capitalistas como horizonte intransponível da própria vida social” (1995, p. 332;

2002, p. 409), retirando de cena “precisamente a verdadeiramente relevante categoria das classes em luta”

(p. 333, p. 410, grifo do autor). (In: PAÇO-CUNHA, Elcemir. (Auto)Crítica do marxismo weberiano: de

Lukács a Meszáros. Revista Verinotio de Filosofia e Ciências Humanas, n. 13, ano VII, abr. 2011).

Publicação semestral, ISSN 1981-061X. 182

No entanto, é importante situar que História e Consciência de Classe constituiu-se como um texto

importante ao debate marxista dos anos 1920. Ele sugere uma retomada das obras de Marx. A trajetória

intelectual de Lukács tem como referência uma crítica constante à ordem social e está diretamente

vinculada as lutas de classe na Hungria, no final da segunda década do século XX. Isto não se pode perder

de vista. 183

Estamos sendo exaustivamente reducionistas nessas afirmações. A evolução política, e,

consequentemente, os constructos teóricos de Lukács informam uma das mais brilhantes trajetórias na

construção do resgate dos postulados marxianos. Portanto, sugerimos que um aprofundamento expositivo

dessa iniciativa deva ser realizado, tanto por nós, em outro momento, quanto pelo leitor que assim desejar

fazê-lo. 184

O que, para Lukács, é a própria ortodoxia marxista. 185

NETTO, José Paulo. G. Lukács: um exílio na pós-modernidade. In: ______. Marxismo impenitente:

contribuição à história das idéias marxistas. São Paulo: Cortez, 2004.

Page 114: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

114

(...) de acordo com o objetivo de nossas investigações, só nos ocupamos com a ciência

e com a arte, e temos deixado conscientemente de lado as objetivações de caráter

institucional, como o Estado, o sistema jurídico, o partido, as organizações sociais,

etc. Seu estudo teria complicado excessivamente nossa análise, mas não teria alterado

em nada o resultado final. (LUKÁCS, 1970) 186.

Leitura apressada desse processo poderia inferir que se trata de um tratamento

fragmentado da realidade, por parte de Lukács, contudo, a maneira como aborda a relação entre

a ciência (o conhecimento científico) e a estética, inevitavelmente, o impele a considerar, de

algum modo, a existência dos complexos sociais objetivados institucionalmente como

mediações contidas no processo de formação da consciência, sobretudo, quando se refere à

cotidianidade, ainda que na teoria das esferas de objetivação genérica, seguida depois pela

escola de Frankfurt, se conceba a ciência e a arte como instâncias relativamente autônomas em

relação à luta de classes187

, porém, recompõe-se sempre a totalidade.

O que estamos dizendo é que, quando Lukács estabelece que o conhecimento científico

tem como ponto de partida as necessidades da vida cotidiana, ele se remete a um conhecimento

que, de per si, não é capaz de criar a realidade. Por isso que resgata o trabalho como categoria

fundante do ser social e o evidencia como ato teleológico. Do mesmo modo, não se furta de

tratar os processos de estranhamento e alienação que sofre o trabalho desde o início do

estabelecimento das relações mercantis.

na economia mercantil desenvolvida pelo capitalismo, o trabalho deixa de ser

determinado primordialmente pelas forças somáticas e intelectuais do trabalhador (...)

o problema é o grau de abstração, a alienação no que se refere à prática imediata da

vida cotidiana. (Id., ibid.) 188.

Ao mesmo tempo em que denuncia a alienação do cotidiano, a interação do trabalho

com a ciência amplia as mediações que tanto podem levar à reiteração dessa alienação quanto a

sua elevação a um patamar superior de consciência. Tanto os trabalhadores ficam presos à

186

LUKÁCS, Georg. Introdução à estética marxista. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Leandro

Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. 187 LUKÁCS, Georg (1966). Estética: La peculiaridad de lo estético. V. 1: Questiones Preliminares y de

Principio. Traduzido do original em alemão por Manuel Sacristán. Barcelona (España), Grijalbo; (1967),

Estetica: La peculiaridad de lo estetico. V. 3: Categorias Psicológicas y Filosóficas Básicas de lo Estético.

Traduzido do original em alemão por Manuel Sacristán. Barcelona (España), Grijalbo; (1967), Estetica:

La peculiaridad de lo estetico. V. 4: Questiones Liminares de lo Estético. Traduzido do original em

alemão por Manuel Sacristán. Barcelona (España), Grijalbo; (1972). Estetica: La peculiaridad de lo

estetico. V. 2: Problemas de La Mímesis. Traduzido do original em alemão por Manuel Sacristán.

Barcelona (España), Grijalbo, 2. ed.; e HELLER, Agnes (1984). Everyday Life. Traduzido do original

em húngaro por G. L. Campbell. London (England), Routledge & Kegan Paul; (1994). Sociología de la

Vida Cotidiana. Barcelona (España), Península, 4. ed. 188

Id. Introdução a estética marxista. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.

Page 115: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

115

cotidianidade devido à agudização das formas de divisão social e técnica (mecanização) do

trabalho, quanto é possível, pelo processo de suspensão dessa mesma cotidianidade, transformar

em reflexo científico o que nela está oculto.

Esse processo tem mesmo suas bases materiais, de modo que Lukács utiliza quase como

analogia o mito da mercadoria, de Marx, para explicá-lo189

. Por isso, concluímos que, mesmo

não se dedicando à problemática do Estado, Lukács fornece bases fundamentais para o

entendimento das formas de relações sociais mais amplas, mediadas pelo conhecimento e pela

estética, que possibilitam alcançar o processo de humanização e civilização emancipatórios, e

pressupõem, para tanto, o fim das formas de opressão e dominação do homem pelo homem, do

qual o Estado é um agente fundamental.

Nesta linha, Mészáros admite assumir o espólio de Lukács que, ao contrário do que se

espera de uma herança, não consistiu em algo pronto que este pudesse desfrutar, mas sim de

uma tarefa, deixada inacabada pelo mestre, a qual o receptor deveria dar prosseguimento. Em se

tratando de filósofos de tamanha envergadura, nota-se que não se trata de empreendimento

trivial. Mészáros coloca-se, assim, o desafio de dar prosseguimento ao desejo interrompido de

Lukács de escrever O Capital de nosso tempo. Para isso, não parte de um marco zero. Resgata

as pistas deixadas pelo mestre e com elas passa a inquirir o tempo presente, saturado de novas

determinações190

.

189

No livro I, volume I, de O Capital, Marx assim se refere à alegoria fantasmagórica da mercadoria: “A

mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos

homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do

trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho

total, ao refleti-la como relação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu próprio

trabalho. (...). Há uma relação física entre coisas físicas. Mas, a forma mercadoria e a relação de valor

entre os produtos do trabalho, a qual caracteriza essa forma, nada têm a ver com a natureza física desses

produtos nem com as relações materiais dela decorrentes. Uma relação social definida, estabelecida entre

os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas (...) Chamo a isto de fetichismo,

que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável

da produção de mercadorias”. In: MARX, Karl. O capital. Livro I, v. I. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 1971. p. 81. 190

Iamamoto (2007) assim sumariza esses tempos: “A efetiva mundialização da ‘sociedade global’ é

acionada pelos grandes grupos industriais transnacionais articulados ao mundo das finanças. Este tem

como suporte as instituições financeiras que passam a operar com o capital que rende juros (bancos,

companhias de seguros, fundos de pensão, fundos mútuos e sociedades financeiras de investimento),

apoiadas na dívida pública e no mercado acionário das empresas. Esse processo impulsionado pelos

organismos multilaterais captura os Estados nacionais e o espaço mundial, atribuindo um caráter

cosmopolita à produção e consumo de todos os países; e, simultaneamente, radicaliza o desenvolvimento

desigual e combinado, que estrutura as relações de dependência entre nações no cenário internacional. O

capital financeiro assume o comando do processo de acumulação e, mediante inéditos processos sociais,

envolve a economia e a sociedade, a política e a cultura, vincando profundamente as formas de

sociabilidade e o jogo das forças sociais. O que é obscurecido nessa nova dinâmica do capital é o seu

avesso: o universo do trabalho — as classes trabalhadoras e suas lutas —, que cria riqueza para outros,

experimentando a radicalização dos processos de exploração e expropriação. As necessidades sociais das

maiorias, a luta dos trabalhadores organizados pelo reconhecimento de seus direitos e suas refrações nas

políticas públicas, arenas privilegiadas do exercício da profissão [dos assistentes sociais], sofrem uma

ampla regressão na prevalência do neoliberalismo, em favor da economia política do capital. Em outros

termos, tem-se o reino do capital fetiche na plenitude de seu desenvolvimento e ação”. (In:

Page 116: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

116

Como o conhecimento na ótica marxiana instiga e provoca o ser cognoscente a portar-se

como sujeito, ante a processualidade real da história, a obra de Mészáros, em constante

movimentação, acompanhando a dinâmica do seu tempo, é uma rica fonte de informação e

crítica ao “incomensurável dinamismo totalizador do capital”, em seus termos.

Para Além do Capital torna-se seu cartapácio atual de monta maior, onde ficam

explicitadas das determinações mais gerais aos detalhes mais recônditos do funcionamento

sociometabólico do capital, tanto naquilo que ele carrega de inequívoco, estrutural, quanto ao

que surge no sistema de inovações provocado pelo avanço do controle metabólico das

interações entre o homem e a natureza.

Desse modo, a distinção que opera entre capital e capitalismo serve, de um jeito

definitivo — para sua coleção de argumentos —, para mostrar tanto os limites que a

identificação entre ambos ocasiona à luta antissistêmica quanto para descortinar as contradições

imanentes do capital que se materializam na forma específica que encontra para reproduzir-se,

que é o capitalismo. Afirma:

Antes de mais nada, é necessário insistir que o capital não é simplesmente uma

“entidade material” — também não é, como veremos na Parte III, um “mecanismo”

racionalmente controlável, como querem fazer crer os apologistas do supostamente

neutro “mecanismo de mercado” (a ser alegremente abraçado pelo “socialismo de

mercado”) — mas é, em última análise, uma forma incontrolável de controle

sociometabólico. (MÉSZÁROS, 2002, p. 96).

Portanto, o capital, para Mészáros, é

um sistema poderoso e abrangente, tendo seu núcleo constitutivo formado pelo tripé

capital, trabalho e Estado, sendo que essas três dimensões fundamentais são

materialmente constituídas e inter-relacionadas, sendo impossível superá-lo sem a

eliminação do conjunto dos elementos que compreende esse sistema. (ANTUNES,

2002, p. 3)191.

A partir dessa lógica, dedica-se a evidenciar o modo como o capital contemporâneo

exponencia os níveis de expropriação do trabalho e prossegue investigando o modo como o

Estado não apenas é utilizado pelo capital para essa empreitada quanto participa ativamente do

processo.

Para Mészáros, o sistema do capital não teria outra maneira para preencher suas funções

sociometabólicas sem a “extração máxima do trabalho excedente dos produtores de qualquer

IAMAMOTO, Marilda Villela. Serviço social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e

questão social. São Paulo: Cortez, 2007. p. 106-107). 191

ANTUNES, Ricardo. Resenha de para além do capital. Disponível em:

<www.boitempoeditorial.com.br>. Acesso em: 16 fevereiro de 2013.

Page 117: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

117

forma compatível com seus limites estruturais” (Id., ibid., p. 99). Para isso, impõe a divisão

social hierárquica do trabalho como relacionamento determinado de poder e a apresenta como

justificava ideológica absolutamente inquestionável e pilar do reforço da ordem estabelecida

(Id.).

Para esta finalidade, as duas categorias claramente diferentes da “divisão do trabalho”

devem ser fundidas, de modo que possam caracterizar a condição, historicamente

contingente e imposta pela força, de hierarquia e subordinação como inalterável

ditame da “própria natureza”, pelo qual a desigualdade estruturalmente reforçada seja

conciliada com a mitologia de “igualdade e liberdade” — “livre opção econômica” e

“livre escolha política” segundo a terminologia de The Economist — e ainda

santificada como nada menos que ditame da própria razão (...). Com relação à sua

determinação mais profunda, o sistema do capital é orientado para a expansão e

movido pela acumulação. (Id., ibid., p. 99-100).

Se, para Mészáros, o capital é um sistema de mediações de segunda ordem (de caráter

antagônico e potencial destrutivo), o trabalho é, desse modo, a nucleação das mediações de

primeira ordem — as atividades produtivas — sob o qual o capital se assenta.

As dimensões constitutivas desses dois sistemas são inconciliáveis, ativando, assim, o

espectro da incontrolabilidade do capital numa forma que faz prever a autodestruição (tanto de

si mesmo quanto da humanidade em geral). O autor afirma que não é possível, para o capital,

um controle duradouro de si próprio, no máximo, ajustes limitados circunscritos à dinâmica de

expansão e acumulação192

. Arrola, deste modo, o que chama de “desafios estruturais de controle

no sistema de capital”, sumarizando esses desafios em três grandes ordens de limites

antagônicos:

Primeiro, a produção e seu controle estão radicalmente isolados entre si e

diametralmente opostos. Segundo, no mesmo espírito e surgindo das mesmas

determinações, a produção e o consumo adquirem uma independência e uma

existência separada extremamente problemáticas, de modo que, no final, o “excesso

de consumo” mais absurdamente manipulado e desperdiçado; concentrado em poucos

locais, encontre seu corolário macabro na mais desumana negação das necessidades

elementares de incontáveis milhões de pessoas. E, terceiro, os novos microcosmos do

sistema do capital combinam-se em alguma espécie de conjunto administrável, de

maneira que o capital social total seja capaz de penetrar (...) no domínio da circulação

global (...) na tentativa de superar a contradição entre produção e circulação.

(MÉSZÁROS, 2002, p. 105).

192

Ajustes dos quais o (neo)desenvolvimentismo faz parte.

Page 118: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

118

É nesse sentido que o Estado moderno participa da aventura destrutiva do capital como

seu complemento imprescindível: corrigindo as falhas estruturais do sistema. Nessa ótica, não é

possível conceber o capital sem o Estado, afinal, este é uma “estrutura política compreensiva de

mando do capital, um pré-requisito para a conversão do capital num sistema dotado de

viabilidade para sua reprodução, expressando um momento constitutivo da própria

materialidade do capital” (ANTUNES, 2002; MÉSZÁROS, 2002, p. 121).

O Estado moderno constitui a única estrutura corretiva compatível com os parâmetros

estruturais do capital como modo de controle sociometabólico. Sua função é retificar

— deve-se enfatizar mais uma vez: apenas até onde a necessária ação corretiva puder

se ajustar aos últimos limites sociometabólicos do capital — a falta de unidade em

todos os três aspectos referidos na seção anterior [citados no excerto anterior]193

.

(MÉSZÁROS, 2002, p. 107).

Além do mais, dada

a modalidade única de seu metabolismo socioeconômico, associada a seu caráter

totalizador (...) estabelece-se uma correlação anteriormente inimaginável entre

economia e política (...) O Estado moderno imensamente poderoso — e igualmente

totalizador — se ergue sobre a base deste metabolismo socioeconômico que a tudo

engole, e o complementa de forma indispensável (e não apenas servindo-o) em alguns

aspectos essenciais. (Id., ibid., p. 98).

Portanto, o Estado não é um ente superestrutural, relativamente autônomo, erguido sob

as condições históricas que determinam o grau de desenvolvimento das forças produtivas, e que

fica à espera das ordens do capital para realizar suas funções. Antes, o Estado como estrutura de

comando político do sistema sociometabólico do capital, é, ao mesmo tempo, constituinte

[como momento de síntese] da sua própria base. Se tal base está referida ao complexo de

mediações de primeira ordem, a função do Estado de retificar as disfunções do sistema

sociometabólico, decorrentes do choque entre seus microcosmos constitutivos, é função que

nasce no seio do próprio processo de constituição desse sistema e não fora dele. Em termos

coloquiais: O Estado não presta assistência técnica externa ao capital quando de suas crises, ele

é, pois, o próprio mecanismo reparador das falhas contidas na estrutura mesma do capital,

constituído na dinâmica expansiva de acumulação e autrodestruição do sistema194

.

193

Grifo nosso. 194

Mas há que se entender o termo “mecanismo” não como um instrumento, mas como algo inerente ao

processo de reprodução do capital. A gênese do Estado fundamenta-se no antagonismo das classes

sociais. Ou seja, a relação entre o Estado e a economia não é de mera instrumentalização, mas de

essencialidade para a sobrevivência das classes em luta, e, portanto, da própria humanidade. Contudo,

essa gênese também indica o limite do Estado, que é sua existência fundamentada nos conflitos de classe

e, portanto, em uma sociedade emancipada; superando a existência das classes sociais, supera-se a própria

necessidade material do Estado.

Page 119: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

119

Argumento que faz cair por terra tanto a interpretação liberal da supremacia

(autonomia) mercadológica quanto a crítica de esquerda, que alega favorecer, o Estado,

pontualmente, o capital com medidas político-econômicas regressivas, apenas por aliar-se à

classe dominante. O capital plasmado mesmo no Estado, torna ambos processos mais

complexos do que as inferências imediatas a seu respeito pressupõem.

A análise do Estado, sob o signo do capitalismo monopólico não fica restrita a Gramsci,

Poulantzas ou Mészáros. A seu modo, Ernest Ezra Mandel (1923 – 1995) também trata do

Estado em seus particularismos contemporâneos195

, situando-o num momento de elevada

industrialização mundial com inflexões decisivas em toda a economia, em especial o modo

como o domínio burguês se manifesta na regulação estatal, que é análoga à regulação (ou a falta

dela) da própria economia burguesa196

.

Mesmo com esse recorte temporal, Mandel mantém o eixo central da tradição marxista

que entende as vinculações (i)mediatas do Estado burguês com a classe dominante e as

adequações que procede para o melhor atendimento de seus interesses:

O que é válido em relação às tentativas privadas dos monopólios de regular a

economia aplica-se igualmente à regulamentação do Estado. (...) Já tentamos mostrar,

no capítulo 15, que o Estado no capitalismo tardio continua sendo o que era no século

XIX – um Estado burguês que em última instância só pode representar os interesses

da classe burguesa (“o capital como um todo), sobretudo de seu estrato

socioeconômico dominante. (MANDEL, 1982, p. 385)197.

Para Mandel, no capitalismo tardio, as funções do Estado atinentes ao atendimento dos

interesses da classe dominante estão diretamente ligadas a essa função reguladora,

correspondendo, portanto, às necessidades de “expansão, circulação e acumulação de capital”,

não se furtando assim de ter, esse processo, como base constitutiva, as relações de produção

fundamentais originadas no trabalho humano. Sendo assim, classifica as principais funções do

Estado burguês em:

195

Sofrendo as consequências do II Pós-Guerra. 196

Segundo Mandel: “As funções superestruturais que pertencem ao domínio do Estado podem ser

genericamente resumidas como a proteção e a reprodução da estrutura social (as relações de produção

fundamentais), à medida que não se consegue isso com os processos automáticos da economia. Por isso

nem todas as funções do Estado são hoje ‘puramente’ superestruturais, como não o eram nas formações

sociais pré-capitalistas” (In: O Capitalismo Tardio, p. 333). 197

MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982. (Coleção Os Pensadores).

Page 120: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

120

1. Criar as condições gerais de produção que não podem ser asseguradas pelas

atividades privadas dos membros da classe dominante;

2. Reprimir qualquer ameaça das classes dominadas ou de frações particulares

das classes dominantes ao modo de produção corrente através do Exército, da polícia,

do sistema judiciário e penitenciário;

3. Integrar as classes dominadas, garantir que a ideologia da sociedade continue

sendo a da classe dominante e, em consequência, que as classes exploradas aceitem

sua própria exploração sem o exercício direto da repressão contra elas (porque

acreditam que isso é inevitável, ou que é ‘dos males o menor’, ou a ‘vontade

suprema’, ou porque nem percebem a exploração). (Id., ibid., p. 333-334).

A síntese dessas funções, em Mandel (1982, p. 337), o leva a contrapor-se tanto às

perspectivas gramscianas, quanto às categorias do jovem Poulantzas. Do primeiro, destoa de sua

noção de hegemonia como forma de direção política classista radicando o entendimento de

hegemonia como dominação198

. Do segundo, diverge sobre a autonomia relativa do Estado e

suas funções políticas. Refere:

A autonomização do poder do Estado na sociedade burguesa é decorrência da

predominância da propriedade privada e da concorrência capitalista; mas essa mesma

predominância impede que essa autonomização deixe de ser relativa. A razão disso é

que as decisões do “capitalista total ideal”, enquanto transcendem os interesses

competitivos conflitantes de capitalistas específicos, têm efeitos importantes sobre

esses interesses199.

Se, para o jovem Poulantzas, de Poder Político e Classes Sociais, o Estado capitalista

contemporâneo goza de autonomia relativa, no sentido de tornar coesiva as frações de classe

burguesa no bloco no poder, sendo mais do que um simples aparelho da fração monopolista do

capital, para Mandel, o Estado é uma forma maximizada do capitalista particular: capitalista

total ideal, que assume sempre como consequência de suas decisões o cumprimento dos

interesses das diferentes frações do capital.

Isso explica madelianamente, as disputas que se travam no interior das instituições. Para

Mandel, Poulantzas pecou por ter supervalorizado as funções políticas do Estado e ignorado que

a propriedade privada e a concorrência, como bases estruturais do sistema, impedem a

autonomia do Estado mesmo que relativa.

198

Ver: MANDEL, Ernest. Crítica do euro-comunismo. 1978. Fotocopiado. Também o historiador

inglês Perry Anderson travou polêmica contra o conceito de hegemonia de Gramsci em seu artigo As

Antinomias de Gramsci. Nele, argumenta que o termo já era utilizado pelos bolcheviques e mencheviques

para se referir à “ofensiva” social-democrata, que propunha a união dos operários com os camponeses na

luta contra o czarismo. Refere que Gramsci não teria conseguido dar maior coesão/unidade ao termo, pois

não o circunscrevera de modo preciso nem na sociedade civil e nem na sociedade política. 199

MANDEL, Ernest. Ob. Cit., 1982.

Page 121: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

121

Nesse sentido é que Mandel avança, com relação a seus antecessores, no que tange à

explicitação do modo manipulador do capitalismo tardio200

. Nesse sentido, sua construção

teórica é ressonante com a própria construção marxiana, encontrada em O Capital e que trata

particularmente da construção dos processos de alienação do trabalho na deturpação deste como

modo fundante do ser social.

Para Mandel, as formas de dominação do Estado burguês de capitalismo tardio estão

cada vez mais renunciando ao uso direto da força em favor de formas de coerção ideológicas,

justamente pela necessidade instransponível que tem, o capital, do trabalho livre. Mas essa

renúncia também favorece a consolidação do liberalismo como substância de sustentação do

Estado burguês, pois permite a reiterada minimização de suas funções:

O governo do capital se distingue de todas as formas pré-capitalistas de governo pelo

fato de não se basear em relações extraeconômicas de coerção e dependência, mas em

relações ‘livres’ de troca que dissimulam a dependência e sujeição econômicas do

proletariado (separação entre meios de produção e subsistência) e lhe dão a aparência

de liberdade e igualdade. (Id., ibid.., p.336).

E prossegue:

Como essas relações de troca em geral foram internalizadas pelos produtores diretos,

especialmente no período do capitalismo ascendente, quanto mais desimpedidas a

dominação econômica e a expansão do capital, tanto mais a burguesia poderia abster-

se do uso direto da coerção das armas contra a classe operaria e tanto mais era

possível reduzir o poder do Estado às funções mínimas de segurança201. (Id., ibid., p.

336).

Se os excertos mandelianos que citamos até agora estão em consonância com a sua

matriz teórico-metodológica, é na continuação de seus argumentos que encontraremos os nexos

explícitos de formulação de sua teoria do Estado.

200

Por modo manipulatório do capitalismo contemporâneo, estamos entendendo o aperfeiçoamento das

instâncias que formam a sociedade capitalista (econômicas, políticas, ideológicas, jurídicas, culturais,

etc.) sob a ótica das classes dominantes contemporâneas. Esse aperfeiçoamento dá-se em decorrência do

espetacular avanço e desenvolvimento das forças produtivas nos fins do século XX e início do século

XXI, que sustentaram a mundialização ou a circulação do capital, inaugurando uma aldeia global de inter-

relações e interdependências sob a determinação da esfera econômica, contudo, com inflexões nos

campos da política, da ideologia e da cultura, sendo esta última uma das principais formas de difusão do

pensamento burguês mundial entre as massas e de conformação de uma subjetividade capitalista.

Elementos para essa consideração podem se encontrados em Habermas em sua teoria do agir

comunicacional, mas o tratamento desse processo como “capitalismo manipulatório” pode ser visto em

ALVES, Giovanni. Trabalho e subjetividade – O espírito do toyotismo na era do capitalismo

manipulatório. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010 e COUTINHO, Carlos Nelson. Marxismo e política

a dualidade de poderes e outros ensaios. 2. ed., São Paulo: Cortez, 1996. 201

Essa redução do Estado, mais tarde será confirmada como um dos pilares ideopolíticos de implantação

do neoliberalismo.

Page 122: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

122

Mandel (1982, p. 335-336) prossegue por considerar o isolamento das esferas pública e

privada como peculiaridade da sociedade burguesa decorrente da “generalização sem igual da

produção de mercadorias, da propriedade privada e da concorrência de todos contra todos”.

Portanto, considera difícil ou mesmo impossível que um capitalista isolado possa representar os

interesses gerais do capital, diferentemente do que ocorreu no Estado feudal, quando o rei

exercia tal poder de representação. Daí, Mandel distingue Estado de Governo, citando Kautsky:

‘A classe capitalista reina, mas não governa. Contenta-se em dar ordens ao Governo.’

A concorrência capitalista determina assim, inevitavelmente, uma tendência à

autonomização do aparato estatal, de maneira que possa funcionar como um

‘capitalista total ideal’, servindo aos interesses de proteção, consolidação e expansão

do modo de produção capitalista como um todo, acima e ao contrário dos interesses

conflitantes do ‘capitalista total real’ constituído pelos ‘muitos capitais’ do mundo

real. (Id., ibid., p. 336).

De fato, percebemos duas consequências desse processo nada triviais. De um lado,

notamos uma função, atribuída ao Estado, de lidar com os conflitos de interesses das classes,

mas não das classes fundamentais, antagônicas, burguesia e proletariado, mas sim das frações da

classe burguesa202

. Isto é, considerando a tendência exponencial da concorrência entre os

próprios capitalistas e a variedade de interesses que encerram – uns representam o capital

industrial, outros o comercial, outros o capital bancário, e assim por diante -, o Estado tende a

ser o grande harmonizador desses interesses, tendo como fim último a reprodução ampliada e

genérica do capital, beneficiando os capitalistas no seu conjunto, ainda que haja prevalência de

uma fração sobre outra.

202

O modo como os capitalistas ampliariam a concorrência, inclusive entre si, já havia sido anunciado por

Marx, em suas considerações sobre o processo de acumulação primitiva, no Livro I de O Capital. Refere:

“Desintegrada a velha sociedade, de alto a baixo, por esse processo de transformação, convertidos os

trabalhadores em proletários e suas condições de trabalho em capital, posto o modo capitalista de

produção a andar com seus próprios pés, passa a desdobrar-se outra etapa em que prosseguem, sob nova

forma, a socialização do trabalho, a conversão do solo e de outros meios de produção em meios de

produção coletivamente empregados, em comum, e, consequentemente, a expropriação dos proletários

particulares. O que tem de ser expropriado agora não é mais aquele trabalhador independente e sim o

capitalista que explora muitos trabalhadores. Essa expropriação se opera pela ação das leis imanentes à

própria produção capitalista, pela centralização dos capitais. Cada capitalista elimina muitos outros

capitalistas”. (In: MARX, Karl. O capital. Livro I, v. II, Capítulo XXIV: A chamada acumulação

primitiva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971).

Page 123: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

123

O capital é incapaz de produzir por si mesmo a natureza social de sua existência em

suas ações; precisa de uma instituição independente, baseada nele próprio, mas que

não esteja sujeita a suas limitações, cujas ações não sejam determinadas, portanto,

pela necessidade de produzir (sua própria) mais-valia. Essa instituição independente,

‘ao lado, mas fora da sociedade burguesa’, pode, baseada simplesmente no capital,

satisfazer as necessidades imanentes negligenciadas pelo capital. O Estado não deve

ser visto, portanto, nem como um simples instrumento, nem como instituição que

substitua o capital. Só pode ser considerado uma forma especial de preservação da

existência social do capital ‘ao lado, mas fora da concorrência’. (ALTVATER apud

MANDEL, 1982, p. 336).

E, por outro lado, é responsável pela manutenção da ordem burguesa, pelo controle

ideopolítico da massa subjugada203

. Tal controle pode, desta forma, ser sustentado na ideia de

um Estado acima das classes. Ou seja, a heterogeneidade dos interesses burgueses passa a ser

identificada com a heterogeneidade dos interesses de toda a sociedade.

A rigorosa utilização do Estado burguês como arma dos interesses de classe dos

capitalistas é escondida tanto dos atores quanto dos observadores e vítimas dessa

tragicomédia pela imagem mistificadora do Estado como árbitro entre as classes,

representante do ‘interesse nacional’, juiz neutro e benevolente dos méritos de todas

as ‘forças pluralistas’. (Id., ibid., p. 347).

Com tal legitimidade, o Estado credencia-se para regular a vida social, e, nessa

regulação estende seu braço de modo oscilante, ao sabor das conjunturas, ora interferindo na

economia – para preservar os interesses dos proprietários -, ora interferindo na organização civil

da sociedade. Esta última função (intervir na sociedade) é até mesmo entendida como uma

necessidade premente, considerando que a organização da classe trabalhadora afeta o

desenvolvimento livre e desimpedido do capital.

203

Mandel alerta: “O capitalismo tardio caracteriza-se pela combinação simultânea da função diretamente

econômica do Estado burguês, do esforço para despolitizar a classe operária e do mito de uma economia

onipotente, tecnologicamente determinada, que pode supostamente superar os antagonismos de classe,

assegurar um crescimento ininterrupto, um aumento constante do consumo e, assim, produzir uma

sociedade ‘pluralista’. A função objetiva da ideologia ‘economicista’ é, sem dúvida, tentar desmantelar a

luta de classe do proletariado. Mas a necessidade objetiva dessa ideologia corresponde exatamente à

compulsão cada vez maior do Estado em intervir na economia capitalista tardia, e ao perigo de que essa

intervenção eduque a classe operária em relação a todas as formas econômicas e sociais da sociedade cuja

riqueza produz – potencialmente – uma ameaça terrível ao capitalismo tardio”. (In: O capitalismo tardio.

São Paulo: Abril Cultural, 1982, p. 341).

Page 124: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

124

O principal objetivo da política econômica burguesa não é mais anular os

antagonismos sociais, mas sim descarregar sobre os assalariados os custos do

reforçamento de cada indústria capitalista nacional na luta concorrencial. O mito do

pleno emprego permanente está desvanecendo. Aquilo que a sedução e a integração

política não conseguiram realizar efetiva-se agora pela reconstrução do exercito

industrial de reserva e pelo cancelamento das liberdades democráticas do movimento

dos trabalhadores (entre outras, a repressão estatal à greve e ao direito de greve). A

luta pela taxa de mais-valia desloca-se para o centro dinâmico da economia e da

sociedade, como ocorreu entre a virada do século e a década de 30 [do século XX].

Por conseguinte, uma explicação do capitalismo tardio deve incluir também uma

análise critica do papel desempenhado pelo Estado burguês tardio e pela ideologia

burguesa tardia na luta de classes contemporânea. (MANDEL, 1982, p. 332).

Nesse excerto, fica evidente, ainda, a fúria expansionista do capital. Isto é, não se trata

apenas de barrar os movimentos operários como forma de manter a coesão social, mas, ao

mesmo tempo, deve dispensar atenção aos proprietários nacionais, considerando a ampliação da

concorrência externa (resultado da desterritorialização crescente do capital).

Logo, o Estado também deve intervir na manutenção dos capitalistas individuais204

. Isso

implica dizer que embora o Estado difunda a ideia de que a manutenção da lógica burguesa leva

a estágios crescentes e prósperos de desenvolvimento ininterrupto, este mesmo Estado (e sua

burguesia correspondente) sabe que isso é um mito e que as crises fazem parte dessa lógica.

Assim, a regulação voltada para a defesa dos interesses também dos capitais nacionais

tem o intuito de preservá-los das crises cíclicas quando, não muito, o Estado os presenteia com

espécies de bônus em forma de acessos aos fundos públicos e financiamentos a juros baixos

pelos bancos públicos em nome do incentivo ao desenvolvimento.

Assim, há no Estado uma tendência de intervir sempre mais em esferas originalmente

produtivas da economia, a fim de criar condições de produção que já não podem ser

garantidas pelo capital privado. Essas condições vão desde a infraestrutura real e a

esfera da educação e administração, até certos ramos da produção de matérias-primas,

do sistema de transporte e mesmo até ramos da produção que ‘avançam’ demais

tecnologicamente (usinas de energia nuclear, por exemplo). (Id., ibid., p. 389).

Essa tendência identificada por Mandel deve, contudo, ser referenciada

conjunturalmente, pois, por mais que contenha elementos gerais que sobrevivem em qualquer

tempo histórico do capitalismo, ela possibilita identificar na história os momentos onde esta

função é racional e deliberadamente planejada e executada, condição essencial para o

desenvolvimento em ação: o desenvolvimentismo.

204

Raciocínio que retomamos no Capítulo III, ao tratar do advento do (neo)desenvolvimentismo no

Brasil.

Page 125: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

125

Sem dúvida, de modo estrutural, o Estado desempenha a função clássica de manter e dar

suporte às esferas produtivas fundamentais, tanto que, em momentos de crise nas bases de

acumulação, esses investimentos são receitados como remédios para superação dessas crises,

vide as fórmulas keynesianas e neokeynesianas, de que trataremos mais adiante, e isso implica a

valorização direta do capital que possui base produtiva e de acumulação em seus próprios

territórios nacionais.

Outrossim, com o avanço do processo de desterritorialização, que converge na

mundialização do capital, essa função do Estado tende a ser relativizada ou, de certo modo,

deslocada para os fóruns de decisão econômica globais em detrimento dos fóruns locais205

. Se o

processo clássico de intervenção na produção fundamental foi invocado nos anos 30,

perdurando como paradigma até meados dos anos 80, essa invocação requisita novos elementos,

a partir da revolução tecnológica e do neoliberalismo dos anos 90 até os dias atuais, culminando

no processo de transnacionalização das economias.

O papel que tem a política ‘nacional’ monetária e de crédito de moderar o ciclo

industrial sofre a ameaça de ser decisivamente reduzido. Essa ameaça também está se

tornando realidade na medida em que a ‘onda longa’ de expansão acelerada, sob

condições de uma nova revolução tecnológica, levou a uma nova fase de concentração

e de centralização aceleradas de capital, que transformou a firma multinacional na

forma organizacional decisiva da empresa do capitalismo tardio. (Id., ibid., p. 392).

E prossegue:

O Estado burguês tardio tem muito menos influencia sobre essa forma organizacional

do que sobre os trustes e monopólios ‘nacionais’ do período anterior. Assim como o

crescimento das forças produtivas sobrepuja o Estado nacional, também sobrepuja

gradualmente o papel do Estado no controle do ciclo industrial e na promoção e no

crescimento de melhorias econômicas. Quanto mais os monopólios pensam que se

subtraíram à lei do calor em nível nacional, tanto mais tornam-se sujeitos a ela em

nível internacional. (Id., ibid., p. 392).

A internacionalização da concorrência cria uma aldeia de capitalistas globais, ao mesmo

tempo em que agudiza as diferenças e desigualdades de desenvolvimento entre os países. A

subordinação dos países com menor grau de desenvolvimento aos países de capitalismo

avançado é inevitável, nessa ordem, pois o capital justifica, mesmo moralmente, que a

socialização de seu modus operandi e de sua ideologia inerente são as condições civilizatórias

205

E mesmo as tentativas de se estabelecer relações capitais em grandes blocos regionais não têm logrado

êxito, a exemplo não apenas do Mercosul, mas da própria comunidade europeia nesta segunda década do

século XXI.

Page 126: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

126

para desenvolver-se no tempo corrente, o que se constitui mais num ideal do que em realização,

como demonstra Celso Furtado em seu O Mito do Desenvolvimento206

.

A oferta de mão de obra e de commodities passa a ser, assim, a mola propulsora da

concorrência entre os países com menor grau de desenvolvimento, e, nessa lógica, dependentes.

Importante ressaltar que as relações entre países ricos e pobres, ou desenvolvidos e dependentes,

não se limita à esfera de circulação mercantil, de mercadorias. Além do aparato ideológico,

como frisamos, invade os domínios da política e da formulação de políticas, do aparato jurídico-

normativo até os modelos mesmo de administração dos próprios Estados nacionais. Isso reforça

o citado princípio da desterritorialização:

Sua conduta [a das empresas multinacionais] corresponde simplesmente à lógica de

um modo de produção baseado na propriedade privada e na concorrência, e não numa

‘soberania nacional’ que em última instância deve subordinar-se aos interesses globais

do capital. Essa mesma lógica não leva apenas a evitar perdas, mas também a

maximizar os lucros – em outras palavras, leva à especulação monetária que tem por

finalidade conseguir ganhos financeiros rápidos e, consequentemente, a constantes

transferências internacionais de somas enormes de capital-dinheiro. (Id., ibid., p. 330-

331).

O quadro da análise mandeliana é, sem dúvida, fundamental para o entendimento do

Estado burguês, no contexto do capitalismo tardio. Sua análise não se centra na problemática do

Estado, propriamente, mas no referenciamento preciso das manifestações gerais e particulares

de um Estado histórica e socialmente determinado, qual seja, o Estado burguês do final do

século XX, com foco nas suas funções relativas à acumulação. Evidenciam-se, assim, o

desenvolvimento capitalista como sinônimo de acumulação e o desenvolvimentismo como meio

pelo qual o Estado viabiliza o cumprimento dos interesses da classe dominante de tempos em

tempos.

Percebemos, nesse rápido passeio pelas construções teórico-metodológicas e

ideopolíticas do Estado, dos jusnaturalistas aos filósofos marxistas, que os autores foram

tendencialmente se afastando da definição abstrato-geral do Estado e se aproximando mais

propriamente da identificação de suas funções e funcionamento mesmo.

Desde a descrição, identificada por Althusser como momento primeiro da construção

da teoria, até a generalização do capitalista singular no Estado de Mandel, as problematizações

sobre o tema têm avançando inevitavelmente para prescrever diferentes formas de ser do

Estado, como, por exemplo, o Estado de transição ou o Estado socialista, como também a sua

superação.

206

FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.

Page 127: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

127

Recorremos, deste modo, a aproximações sucessivas, identificadas no lastro da tradição

marxista para recolher aquilo que nos interessa enquanto elementos essenciais de uma

concepção de Estado, considerando o caráter inacabado de uma teoria geral do Estado neste

campo.

Contudo, mesmo sob o risco de parecer reducionistas, arrolamos de modo sumário

características que passaremos a considerar em nossa elaboração, sem prejuízo de outras que

possam vir a se agregar posteriormente:

1. O Estado é um ente social e historicamente determinado, de natureza fundamentalmente

relacional;

2. Sua existência está condicionada ao uso da razão. Isto é, só existe no âmbito do projeto

da racionalidade humana, em sua dimensão política. Fora disso, não se realiza, é etéreo

e amorfo;

3. Só pode ser entendido se referenciado a uma formação social específica. Isto é, adquire

a identidade da sociedade em que se insere. Identidade está vinculada ao modo como se

estabelecem as relações sociais — consequência direta dos processos de produção e

reprodução da vida social — e a maneira como as disputas de poder são travadas nessas

relações;

4. Portanto, sua existência não pode ser desvinculada do surgimento das classes, nem da

dinâmica que estabelecem entre si e suas frações;

5. Por ser relacional, não há consenso sobre apresentar autonomia, ainda que relativa, ante

a dinâmica das classes sociais;

6. Além de ser revestido ideologicamente pelo formato que assume, oscila entre papéis

protagônicos, ou marginais, no processo de criação e difusão da ideologia dominante,

sem abrir mão desse papel em nenhuma condição histórica;

7. Sua participação nos processos de reprodução das relações sociais é, em algumas

análises, orientada pela classe dominante; em outras, é a própria classe dominante

plasmada em sua forma. Alterna, assim, intervenções ora drásticas, ora moderadas, na

vida socioeconômica, sempre com o fim último de manter os níveis exponenciais de

expansão e acumulação capitalistas;

8. O monopólio legal da violência é uma característica própria intransponível, razão da

sua autojustificação;

9. O caráter contraditório de sua existência reflete-se, dentre outras formas, no fato de

possuir intrinsecamente as condições para sua manutenção perpetuadora como também

de sua superação, para alguns, e extinção, para outros. Contradição essencial do sistema

do capital incorporada pelo Estado burguês, ou inexorável a ele. Portanto, desse modo,

é indispensável para a transição socialista. Não há, por outro lado, consenso sobre as

Page 128: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

128

formas de encaminhamento dessa transição, gerando as mais profícuas polêmicas no

campo da tradição marxista.

10. Acompanhando a evolução humano-social, os Estados migraram de simples

organizações locais para conglomerados complexos mundializados. Portanto, suas

formas contemporâneas não conseguem abdicar das relações imbricadas que se

estabelecem na aldeia global.

Essas características mostram a heterogeneidade interna (e externa, por ter condicionantes

materiais — históricos e sociais — claros) da problemática teórico-prática do Estado. Da

filosofia política clássica à ciência econômica contemporânea.

Diante de tamanha diversidade conceitual, cumpre-nos, por fim, explicitar que não

entendemos o Estado como uma hipostasia da superestrutura, ou como um ente aprisionado no

âmbito superestrutural, que sobrevive à espera das ordens burguesas voltadas à satisfação de

seus interesses de acumulação crescente.

Nem mesmo consideramos o estudo da problemática teórico-prática do Estado como

circunscrito ao método. O tratamento que dispensamos ao Estado procura associar três modos

distintos e relacionáveis de conhecimento: o conhecimento filosófico sobre ele construído,

contido nos clássicos do marxismo; a justaposição entre teoria marxista e teoria socialista,

portanto, o conhecimento político próprio das esquerdas marxistas; e o conhecimento científico

“exigido para conquistar o objeto de pesquisa (O Estado capitalista) das sociologias não

marxistas” (CODATO, 2008, p. 84-85).

Nesse entendimento, a concepção de Estado capitalista não se dissocia da dinâmica da

transição socialista, pois não há como ignorar a existência do Estado no processo de

constituição de uma sociedade que, ao mesmo tempo em que avança em conquistas

civilizatórias — todas elas referidas ao avanço das forças produtivas —, generaliza a

expropriação do trabalho e repõe, no mesmo processo, fissuras que permitem a sua superação.

Portanto, o Estado plasma-se no processo de lutas que friccionam a relação orgânica e

dialética entre estrutura e superestrutura, como mediação de interesses econômicos, políticos,

ideológicos, culturais, consequentes e que, em última instância, podem ser direcionados para a

conquista da emancipação humana. O erro comum consiste em considerar que o tratamento do

Estado como relação abrange concessões reformistas e mistificadoras à ordem do capital.

Ao contrário, tal tratamento nos permite, pois, percorrer trajeto analítico similar ao de Marx,

quando desvendou o mito da mercadoria e, nesses aprofundamentos, nos ensinou que o Capital

é antes de mais nada uma relação social. Desse modo, o poder do Estado, por analogia, é “visto

como uma forma-política determinada (isto é, ‘condensada’) pelas relações de força —

instáveis, cambiáveis, provisórias — entre as classes implicadas nas lutas políticas” (Id., ibid.,

p. 83).

Page 129: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

129

1.2.3 A tradição liberal

Se, na tradição marxista, as motivações para pensar o Estado partem do estudo do poder

e das categorias a ele vinculadas, na tradição liberal, o eixo estruturante clássico parece ser

mesmo as questões afetas à “liberdade”. Nada mais lógico, considerando que as revoluções que

se deram desde o século XVI 207

, ao consolidar a Democracia liberal como regime político

dominante, trouxeram consigo a liberdade como elemento imprescindível de uma luta pela

substituição do absolutismo monárquico por sociedades pautadas na “livre concorrência”, onde

o “trabalho livre” é apenas o seu maior expoente.

A liberdade a que se referiram os pioneiros da tradição liberal é a que se faculta aos

indivíduos no plano formal. É a garantia de que os cidadãos podem agir de modo desimpedido

na conformação de seus interesses particulares. Essa noção de liberdade, aqui muito sumarizada,

baliza a construção do Liberalismo como seu desdobramento no campo jurídico-político de

ordenamento das sociedades modernas e democráticas que surgem, em processo, desde o final d

século XVI208

, como já apontado. Contudo, a clareza acerca do seu potencial e significado

torna-se um ideal hegemônico, na Europa de século XVIII, antes, durante e depois da irrupção

da Revolução Francesa. Mas depois dela é que se alastra não mais como ideal, mas como

experiência real.

É o momento em que é derrotada a fase democrática da Revolução Francesa – a de

Robespierre, em 1793 – e tende-se a formar sociedades liberais do tipo que surgirá na

França após a revolução de 1830, ou no Piemonte (e depois na Itália toda, com a

unificação do país) em 1848. Na Inglaterra a partir da revolução de 1689, sempre

existira uma sociedade liberal. (GRUPPI, 1980, p.21).

207

A exemplo da Revolução Inglesa, de 1640 a 1688; a Americana, de 1776; e a Francesa, de 1789 a

1799. 208

Bobbio afirma que é muito difícil precisar a origem e definir o liberalismo como fenômeno histórico,

assim, destaca três ordens de fatores que explicitam tal dificuldade, mas que numa “história paralela de

diversos liberalismos” podem nos ajudar a compreendê-lo: “1. A história do liberalismo acha-se

intimamente ligada à história da democracia (...), pois o Liberalismo é justamente o critério que distingue

a democracia liberal das democracias não liberais (plebiscitária, populista, totalitária). 2. O Liberalismo se

manifesta nos diferentes países em tempos históricos bastante diversos, conforme seu grau de

desenvolvimento; daí ser difícil individuar, no plano sincrônico, o momento liberal capaz de unificar

histórias diferentes, e 3. Não é possível falar numa ‘história-difusão’ do Liberalismo, embora o modelo de

evolução política inglesa tenha exercido uma influência determinante, superior à exercida pelas

Constituições francesas da época revolucionária. Isto porque, conforme os diferentes países, que tinham

diversas tradições culturais e diversas estruturas de poder, o Liberalismo defrontou-se com problemas

políticos específicos, cuja solução determinou sua fisionomia e definiu seus conteúdos, que muitas vezes

são apenas uma variável secundária com relação à essência do Liberalismo”. (In: BOBBIO, Norberto, et

al. Dicionário de política. 13. ed., Brasília: UnB, 2007).

Page 130: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

130

E toda essa força não se dá apenas pela extraordinária capacidade revolucionária da

burguesia209

, mas sim porque conta também com programas teóricos bem elaborados por seus

intelectuais e estadistas defensores210

.

Um deles, que pode ser considerado como precursor dessa tradição, é Henri-Benjamin

Constant de Rebeque (1767 – 1830). Um pensador franco-suíço que organiza teórica e

politicamente uma das primeiras distinções entre Estado e sociedade civil na perspectiva liberal.

Parte de uma comparação entre as antigas sociedades gregas e romanas e as sociedades que

denomina modernas, com um olhar voltado preponderantemente para a Inglaterra.

Nessa comparação, salienta que nas sociedades antigas o poder do Estado era inevitável

e quase absoluto, pois as liberdades dos cidadãos só podiam ser exercidas na esfera pública. Era

na esfera pública que os cidadãos decidiam, nas assembleias, as questões decisivas para todo o

corpo societário, logo, os cidadãos que se dedicavam a isso deviam, desse modo, estar liberados

para essa função, o que exigia uma espécie de subsociedade formada por aqueles que

desempenhariam as funções produtivas – os escravos.

A coesão social nesse tipo de sociedade, segundo Constant, em seu livro Sobre a

Liberdade dos Antigos Comparada com a dos Modernos, de 1819, era garantida por uma

obrigação moral severa, a que identificou como “exercício cidadão”. Isto é, exercer a cidadania

significa “investir pesado” na participação nessa esfera pública com o objetivo último de

preservar a ordem. Além disso, ressaltava que, em sociedades pequenas e homogêneas, a

liberdade exercida na esfera pública tinha os limites relacionados à pouca quantidade daqueles

que podiam efetivamente exercer essa cidadania.

Em linhas gerais, Constant considerava esse tipo de modus operandi de sociedade um

estilo tirânico, pois toda a liberdade que deveria ser concedida no âmbito privado da vida social

estava submetida a essa espécie de vontade geral. Por isso mesmo, polemiza com Rousseau,

considerando que os princípios de igualdade preconizados por ele (Rousseau) destroem a

liberdade.

Com esse raciocínio, Constant elabora aquele que seria o eixo estruturante da tradição

liberal clássica, qual seja, “a identificação entre propriedade e liberdade, isto é, a liberdade

como diferença, e não como igualdade” (GRUPPI, 1980, p. 20).

Na sociedade dos Modernos, para Constant, deve prevalecer a ordem preconizada a

partir das garantias individuais, sobretudo as econômicas, regidas por uma legislação que, além

de preservá-las, deve proteger os indivíduos contra a interferência estatal na esfera da vida

209

É bastante conhecido de todos que, após consolidada a Revolução Burguesa, a burguesia transforma-

se em classe dominante, sendo assim conservadora, e não mais revolucionária, como fora antes. 210

Hobsbawn, ao se referir a o caráter da dupla revolução, afirma: “(...) foi o triunfo não da ‘indústria’

como tal, mas da indústria capitalista; não da liberdade e da igualdade em geral, mas da classe média ou

da sociedade ‘burguesa’ liberal; não da economia moderna’ ou do ‘Estado moderno’, mas das economias

e Estados em uma determinada região geográfica do mundo (...)” (In: A era das revoluções 1789-1848.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.

Page 131: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

131

privada. Defende a organização política representativa, sobretudo, nas sociedades maiores,

limitando a participação direta dos cidadãos na vida pública, pois não havendo escravos, a maior

parte dos cidadãos deve estar liberada para o trabalho livre.

Constant tambem é defensor da supremacia do mercado como ente regulador do

conjunto das relações sociais, ao evidenciar que a liberdade mercantil se sobrepõe à guerra, ou

seja, as nações devem estar em paz umas com as outras para proceder livremente as transações

comerciais. Com a guerra, não tem como haver liberalismo.

Mesmo com essas ideias, Benjamim Constant não é o único pioneiro do liberalismo

clássico mais visitado. Esse título cabe também ao históriador-aristocrata Alexis Henri Charles

Clérel, visconde de Tocqueville, ou apenas Alexis de Tocqueville (1805 – 1859).

Filho de família aristocrática, Tocqueville carregava consigo uma aparente contradição.

Defende ao mesmo tempo a aristocracia e as instituições democráticas. Contradição apenas

aparente, pois sua defesa da liberdade formal não alcança as formas mais elaboradas de

exercício direto da liberdade individual na vida pública, o que leva inevitavelmente à igualdade,

coisa que tanto teme. Aliás, a igualdade propalada pelos defensores de uma democracia não

liberal211

, legatários de Rousseau (ou não), é motivo das preocupações de Tocqueville, do

mesmo modo que Constant enxerga na igualdade a raiz de um poder tirânico.

Suas ideias contribuíram para levar a sociedade a promover um arranjo de coisas

aparentemente inconciliáveis, como afirma Gruppi (1980, p. 22-23):

A corrente democrática, que se afirmou na Revolução Francesa com Robespierre, na

verdade foi derrotada na história da Europa. Neste continente, após as décadas de

1860 e 1870, teremos regimes liberais; teremos uma fusão de liberalismo e

democracia, isto é, uma ampliação do sufrágio universal, da igualdade jurídica. Uma

mistura de liberalismo e democracia que, no entanto, reafirma sempre o direito da

propriedade, tutela sempre a iniciativa economica e o desenvolvimento capitalista.

A solubilidade entre democracia e liberalismo não foi simbiótica, isto é, embora o

arranjo que une as duas concepções possa ter provocado aparente harmonia social, a essência

disforme de cada uma delas permaneceu inalterada. Isso fez e faz com que o liberalismo, como

regime ideopolítico, seja um eterno por vir, obrigando os liberais a estarem sempre em estado

de alerta e, nas fissuras que surgem desse processo, promovendo sua reparação.

Essa característica da instabilidade do arranjo que promoveram já lhes fora anunciada

em seu próprio seio. O italiano Benedetto Croce (1866 – 1952) mesmo sendo um liberal e

vivendo em uma época em que “não há mais distinção entre Estado de Direito Liberal e Estado

Democrático” (Id., ibid.), preocupa-se em deixar evidentes as diferenças fundamentais entre um

modo e outro de sociedade.

211

Pautada nos estatutos da igualdade formal. Não percamos isso de vista.

Page 132: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

132

Para ele, os elementos históricos que causaram a fusão do liberalismo com a

democracia concentram-se na luta de ambos contra a monarquia absoluta e o clericalismo e com

a defesa que empregam da liberdade individual, da igualdade civil e política e da soberania

popular. Mas é justamente nessas aparentes amálgamas que residem diferenças substantivas.

Croce afirma que não há consenso entre liberais e democratas sobre os conceitos de: indivíduo,

igualdade, soberania e povo.

Para os democratas, os indivíduos eram seres iguais, a quem – como eles diziam –

devia-se propiciar uma igualdade de fato. Já para os liberais os indivíduos eram

pessoas iguais como homens, portanto sempre dignos de respeito, mas não eram

iguais como cidadãos (...) Além disso, para os liberais o povo não era uma soma de

forças iguais (conforme pensavam os democratas), mas sim um mecanismo

diferenciado, válido em cada uma de suas peças e em sua associação, com uma

unidade complexa, com governantes e governados, com classes dirigentes abertas e

móveis mas sempre necessárias para as tarefas do poder. (GRUPPI, 1980, p. 23).

Quanto ao conceito de soberania, refere:

A soberania para os liberais, era do conjunto (síntese), e não das partes analisadas

separadamente; isto é, a soberania encarnava-se na síntese política (dos governantes,

não dos governados). Para os liberais deve existir uma classe dirigente (...) que é a

elite da cultura [mas na verdade é a elite da base econômica]212. (Id., ibid., p. 23-24).

Essas distinções colocadas à luz, por Croce, serviram mais para fortalecer o arranjo do

que suplantá-lo. As fragilidades desse arranjo foram alvo de especulações, umas mais sérias,

outras nem tanto, mas que extrapolaram o feudo da democracia-liberal e possibilitaram análises

de importância capital para as ciências sociais e políticas, alternando entre a sua

autojustificativa, a crítica reformista e a crítica revolucionária.

Um nome clássico e indispensável para esse tipo de envergadura teórica e política é,

sem dúvida, o do sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917), reconhecido como o mais

importante intelectual a pensar a problemática da coesão social, na perspectiva da

autojustificativa, como antes mencionado.

Tendo essa problemática como um dos eixos fundantes de sua trajetória teórica, os

estudos durkheimianos influenciaram e ainda influenciam não apenas os campos do pensamento

sobre o Estado, mas as questões próprias da ciência social. Por hora, nos interessa seu

pensamento acerca do Estado e da sociedade.

Se, para Marx, o trabalho é a categoria que nos funda enquanto seres sociais, portanto,

imanente ao gênero humano, para Durkheim, uma importância parecida lhe será conferida. Para

212

Grifo do autor.

Page 133: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

133

ele, o trabalho é responsável por galvanizar a coesão social. Isto é, em seu livro Da Divisão do

Trabalho Social de 1893 argumenta que a modernização dos meios produtivos, com a

industrialização, redundou num exponencial crescimento da especialização do trabalho. Essa

diversificação, convertida em especialidades cada vez mais singulares, é uma forma superior de

promoção inequívoca da solidariedade entre os homens, tornando harmônicas suas relações e

coesa a sociedade.

O autor distingue a solidariedade pelo trabalho das sociedades menos desenvolvidas, ou

menos complexas, daquela solidariedade que emerge em sociedades complexas. Nas primeiras,

embora possa haver uma divisão social simples do trabalho, os indivíduos estão aptos a realizar

a maior parte das tarefas necessárias à sua sobrevivência. A organização desses coletivos

humanos está assegurada muito mais pelos costumes, pela crença, pelas tradições, do que por

uma relação de dependência recíproca.

Durkheim nomeia isso como solidariedade mecânica. Já no segundo tipo de sociedade

– as mais complexas –, a solidariedade, portanto, a coesão, é assegurada pela interdependência

que se estabelece entre os homens a partir da complexidade dos processos produtivos, que

decorre da divisão crescente do trabalho. A divisão social crescente do trabalho é uma

constatação que se verifica também em Marx, contudo, para Marx o crescimento exponencial do

caráter coletivo do trabalho encerra em si a contradição fundamental do modo capitalista de

produção, qual seja, quanto mais o caráter coletivo do trabalho aumenta, cresce em proporções

maiores a expropriação desse mesmo trabalho (e do trabalhador como agente intercambiante

orgânico dessa relação) pelo capital.

Essa contradição, para Durkheim, não é o problema a ser enfrentado. Ao contrário,

desse tipo de solidariedade, que o autor Da Divisão do Trabalho Social denomina de

“solidariedade orgânica”, emerge uma necessidade de regulação moral capaz de harmonizar o

processo desigual de entrada e manutenção dos homens no “mundo do trabalho”. Isto é, a

regulação da relação capital-trabalho não passa de uma questão moral, resolvida, deste modo,

com instituições criadas (ou reformadas) para esse fim, com base em normas integradoras.

Essas instituições e as normas morais têm por objetivo promover a integração adequada

dos indivíduos ou grupos ao convívio social, havendo inclusive meios para requalificar os

comportamentos desviantes ameaçadores da paz social. Nesse sentido, Durkheim, em O

Suicídio, discorre sobre o que chama de anomia, conceito que associa e identifica o

funcionamento inadequado da sociedade à patologia.

Com essa noção de coesão social, Durkheim habilita-se a tratar do Estado. Entende,

assim, o Estado como o ente “que concerta e expressa a vida social” justamente por ser o

responsável por resguardar o exercício dessa moral integradora a que se referiu anteriormente.

Isto é, o Estado está acima das classes.

Page 134: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

134

Como educador Durkheim enxergava na educação pública o veículo responsável por

formar a consciência dessa moral integradora sem “ideologismos” ou “confessionalismos”,

portanto, sendo o Estado responsável por essa educação não se opõe ao indivíduo, ao contrário,

lhe fornece as possibilidades de integração. Nessas possibilidades, está incluída sua libertação

do poder autoritário dos grupos de socialização, como a família, a Igreja e as corporações

profissionais. Mas isso não significa uma satanização desses grupos por parte de Durkheim.

Trata-se apenas de colocar as coisas no seu devido lugar, isto é, a esses grupos caberia a

nobre função de acompanhar a dinâmica do governo, informando e promovendo algumas

formas de participação dos cidadãos na vida pública, mais ou menos limitadas. Além desses

grupos, essa função é afeta ao âmbito da educação civil, dos jornais, mas, sobretudo, das

corporações de ofício organizadas, isto é, dos grupos de associação profissional. A estes estaria

reservada a tarefa de impedir que a autoridade conferida ao Estado extrapolasse seus limites,

cerceando a liberdade.

Durkheim dá extrema importância à organização corporativa nas sociedades

modernas. Nele descobriremos uma enunciação descritiva de Estado Corporativo, e

em análise eminentemente superestrutural, a preocupação se volta para o

esclarecimento de sua função [...] Durkheim traça não somente as linhas básicas do

movimento histórico das corporações, como ainda tenta demonstrar sua viabilidade no

início deste século. Critica economistas liberais por verem inevitavelmente as

corporações como sobrevivências do passado, as quais deveriam sofrer inteira

eliminação. (VIEIRA, 1981, p. 18)213.

A urgência da organização corporativa na sociedade moderna impõe-se, para Durkheim,

por motivos morais e não econômicos. Acredita que uma função social somente se mantém com

a disciplina moral, e, diante do egoísmo do industrial e do operário, do comerciante e do

empregado, fica completamente demonstrada a imperiosidade da regulamentação da vida

econômica [...] que encontra sua mediação exata (o freio a um possível autoritarismo) nas

corporações (VIEIRA, 1981). “Reveste-se desta maneira a corporação de uma função de

controle da estabilidade social” (Id., ibid., p. 18 ).

Por esse motivo, e não por outro, é que Durkheim desenvolve a noção de anomia para

designar comportamentos antissociais ou desviantes em relação às normas estabelecidas pelo

organismo social, cuja força moral das corporações evitaria os abusos estatais e privados214

. Por

isso, Vieira (1981) assevera que Durkheim concebe uma sociedade pluralista de grupos

213

VIEIRA, Evaldo. Autoritarismo e corporativismo no Brasil: Oliveira Vianna & Companhia. São

Paulo: Cortez, 1981. 214

Pois foi baseado na noção durkheimiana de anomia que um conjunto de políticas sociais foi construído

no Brasil pós-1930, durante a Era Vargas. Algumas dessas características permanecem até os dias atuais.

No caso da assistência social, tal marca começa a ser superada (ao menos no desenho da política e nos comandos de

sua gestão) com a instituição do Suas, o que não o isenta de tensionamentos e contradições.

Page 135: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

135

secundários protetores dos interesses individuais, enquanto o Estado se afigura como

individualista, sem estar confinado à administração de uma justiça totalmente negativa,

reconhecendo-se o direito e o dever de desempenhar um papel mais amplo em todas as esferas

da vida coletiva, sem ser mística. Considerando o Estado como órgão especial, destinado a gerar

representações de valor coletivo, o pensamento durkheimiano dirige-se ao intervencionismo

estatal na sociedade, sem recorrer à integral homogeneidade215

.

Caberia ainda às corporações organizar a base de representação política da sociedade,

tanto nas eleições quanto na manutenção do poder democrático, mais coeso. Em síntese,

encontramos em Durkheim uma noção de Estado funcional e corporativo.

Ainda no rol dos constructos teóricos e políticos que extrapolam a tradição liberal,

mesmo que possam provocar influência ou inflexões, encontramos as formulações do sociólogo

alemão Maximilian Karl Emil Weber, ou simplesmente Max Weber (1864 – 1920). Este bem

mais pessimista com relação ao Estado do que Durkheim.

Para o autor de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, a integral recorrência

às corporações na estrutura do Estado (inclusive nas eleições), como sugeriu Durkheim, ao fazer

do Estado uma entidade corporativa apenas o inviabilizaria, pois não daria conta de adequar-se à

época de profundas transformações econômicas e tecnológicas (Id., p. 21). Weber não era

contrário às corporações, mas criticava sua identificação integral no aparelho do Estado, como

estrutura:

Esta identificação, imprescindível para uma lei eleitoral destinada a ordenar a

representação corporativa, não chegaria a definir coisa alguma a respeito da função

econômica e social, alteradas com o progresso material. Não é difícil concluir disto

que, mudadas as funções, muda em consequência o significado de tarefas apenas

formalmente idênticas. (Id., ibid., p. 21-22).

Weber referenciou grande parte de seus estudos à Alemanha de sua época, unificada por

Otto von Bismarck. O Estado alemão, para Weber, era composto de uma estrutura quadripartite

de poder: os junkers, que eram os grandes proprietários de terra; os grandes industriais; a elite

do serviço público (os grandes burocratas); e o Exército. Os dois últimos detentores do maior

poder. Weber conferiu importância singular ao estudo da burocracia, por considerá-la como uma

forma peculiar de exercício de poder que, para ser positiva, tem de ser racional; caso contrário,

tende a extrapolar seus domínios e tornar-se tirânica:

215 O autor ainda completa: “O corporativismo renovado de Durkheim procura sua gênese nas antigas corporações,

isto é, nas associações de mercadores e artesãos, localizadas em determinada cidade e destinadas a regular o exercício

da profissão, o tempo de trabalho, a qualidade da produção e o combate à fraude”.

Page 136: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

136

Para Weber a ação da burocracia, que é racional quando limitada a sua esfera, torna-se

irracional quando atinge outras esferas. O burocrata pode ser ótimo funcionário,

cumpridor de seus deveres; será, porém, um péssimo estadista. (TRAGTENBERG,

2006, p. 175)216.

Mas, então, do que trata a burocracia, para Weber? Tragtenberg (ibid., p. 171) esclarece:

Burocracia é igual à organização. É um sistema racional em que a divisão de trabalho

se dá racionalmente com vistas a fins. A ação racional burocrática é a coerência da

relação entre meios e fins visados (...) implica predomínio do formalismo, de

existência de normas escritas, estrutura hierárquica, divisão horizontal e vertical de

trabalho e impessoalidade no recrutamento dos quadros.

Trata-se, pois, do tipo de dominação que Weber denominou de dominação legal, pois

conta com um aparato normativo que difere substancialmente da dominação carismática ou da

dominação tradicional217

. Portanto, o Estado é, para Weber, uma organização longeva, garantida

pela burocracia, e que transcende os projetos políticos que disputam o governo. O que diferencia

o Estado dos demais tipos de organização sociais e políticas, conclui, é um poder peculiar, o

monopólio legal da violência. Tal poder, consentido pela sociedade, é sustentado por um aparato

jurídico-administrativo moldado em conformidade com o estágio de desenvolvimento da

sociedade em questão e exercido por fluxos burocráticos precisos. Não por acaso, Weber é

referência para a construção de diversos fluxos da burocracia estatal contemporânea.

Se, de um lado, Weber, ou mesmo Durkheim, se dedicaram a pensar o Estado sob

macronarrativas, de outro, intelectuais com formação econômica, em sua maioria, dispuseram-

se a tratar e entender o Estado a partir da maneira como a sociedade burguesa se organiza para

acumular. Pensadores de uma política econômica que desse conta de alienar as resultantes da

contradição entre capital-trabalho, suas preocupações centraram-se em conferir eficiência ao

papel do Estado em ser importante indutor da acumulação, reprodutor de capital, ainda que para

isso fossem contrários à existência do próprio Estado, em certa medida.

Adam Smith (1723 – 1790), por exemplo, defendeu que as funções do Estado seriam

restritas a:

216

TRAGTENBERG, Maurício. Burocracia e ideologia. São Paulo: Unesp, 2006. 217

Weber ocupou-se de explicar cada um dos tipos ideais de dominação. A dominação tradicional é

signatária do conformismo.

Page 137: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

137

manter a segurança, administrar a justiça e cuidar de algumas instituições públicas. A

intervenção estatal em outros setores seria inútil e prejudicial. Para o autor de [A

Riqueza das Nações]218, a liberdade deveria ser almejada, ainda que implicasse em

desigualdade. Por isso, é considerado o pai da Economia Liberal. (SECURATO,

2007, p.34)219.

É da fonte de Adam Smith que brota a ideia do trabalho como valor, apropriada de

modo distinto em Durkheim e em Marx, mas, em Smith, a divisão do trabalho aparece como a

única fonte de crescimento.

Smith também dividiu o progresso em três etapas: caça e pastorícias pré-feudais,

sociedade agrícola e sociedade comercial. A passagem de uma para outra se daria

através de transformações na propriedade (Id., ibid., p. 34).

Propriedade que Smith defendia veementemente, pois, com a propriedade se estabelece

a desigualdade e esta, vista por ele de modo positivo, é condição para o incentivo ao trabalho,

um mecanismo contra a indolência. Essa consideração, acrescida de outras de caráter político,

fazem da obra de Adam Smith muito mais que tratados pragmáticos de economia. Com certa

licenciosidade, poderíamos lançá-las ao status de sistemas filosóficospois suas análises

incorporam um tipo de sistema de subjetividades da natureza humana e próprias à sociabilidade

capitalista ou da sociedade comercial, caso queiramos fazer uso de seus próprios termos.

Analisando o campo da motivação pelas paixões e vontades humanas a concorrência é muito

mais que uma manifestação concreta do modo como circulam as mercadorias, ela é antes um

componente da essência empreendedora do homem e de sua liberdade. Neste excerto, extenso,

porém importante, do primeiro volume de A Riqueza das Nações, isto nos parece ficar explícito:

No caso de quase todas as outras raças de animais, cada indivíduo, ao atingir a

maturidade, é totalmente independente e, em seu estado natural, não tem necessidade

da ajuda de nenhuma outra criatura vivente. O homem, entretanto, tem necessidade

quase constante da ajuda dos semelhantes, e é inútil esperar esta ajuda simplesmente

da benevolência alheia. Ele terá maior probabilidade de obter o que quer, se conseguir

interessar a seu favor a autoestima dos outros, mostrando-lhes que é vantajoso para

eles fazer-lhe ou dar-lhe aquilo de que ele precisa. É isto o que faz toda pessoa que

propõe um negócio a outra. Dê-me aquilo que eu quero, e você terá isto aqui, que

você quer - esse é o significado de qualquer oferta desse tipo; e é dessa forma que

obtemos uns dos outros a grande maioria dos serviços de que necessitamos. (SMITH,

1988, p. 24-25)220.

218

Grifo nosso. 219

SECURATO, José Cláudio. Economia: história, conceitos e atualidades. São Paulo: Saint Paul, 2007. 220

SMITH, Adam. A riqueza das nações. Livro I, v. I, São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Coleção Os

Economistas).

Page 138: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

138

E prossegue:

Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos

nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse. Dirigimo-

nos não à sua humanidade, mas à sua autoestima, e nunca lhes falamos das nossas

próprias necessidades, mas das vantagens que advirão para eles. Ninguém, a não ser o

mendigo, sujeita-se a depender sobretudo da benevolência dos semelhantes. Mesmo o

mendigo não depende inteiramente dessa benevolência. Com efeito, a caridade de

pessoas com boa disposição lhe fornece tudo o de que carece para a subsistência. Mas

embora esse princípio lhe assegure, em última análise, tudo o que é necessário para a

sua subsistência, ele não pode garantir-lhe isso sempre, em determinados momentos

em que precisar. A maior parte dos desejos ocasionais do mendigo são atendidos da

mesma forma que os de outras pessoas, através de negociação, de permuta ou de

compra. Com o dinheiro que alguém lhe dá, ele compra alimento. A roupa velha que

um outro lhe dá, ele a troca por outras roupas velhas que lhe servem melhor, por

moradia, alimento ou dinheiro, com o qual pode comprar alimento, roupas ou

moradia, conforme tiver necessidade (Id., ibid,, p. 24-25).

Deste modo, se há no homem um impulso natural à troca de vantagens por interesses

particulares, há também no mercado uma vocação para esse tipo de autorregulação. O bem-estar

geral não seria, assim, garantido pela solidariedade, mas sim pelo egoísmo, pois, na medida em

que cada um busca maximizar a realização de seus interesses particulares, impulsiona, por seu

turno, o progresso econômico de toda a sociedade. Uma espécie de mão invisível se encarrega

de ajustar essa marcha do individualismo ao todo social. Vejamos, em suas próprias palavras:

Ora, a renda anual de cada sociedade é sempre exatamente igual ao valor de troca da

produção total anual de sua atividade, ou, mais precisamente, equivale ao citado valor

de troca. Portanto, já que cada indivíduo procura, na medida do possível, empregar

seu capital em fomentar a atividade nacional e dirigir de tal maneira essa atividade

que seu produto tenha o máximo valor possível, cada indivíduo necessariamente se

esforça por aumentar ao máximo possível a renda anual da sociedade. Geralmente, na

realidade, ele não tenciona promover o interesse público nem sabe até que ponto o

está promovendo. Ao preferir fomentar a atividade do país e não de outros países ele

tem em vista apenas sua própria segurança; e orientando sua atividade de tal maneira

que sua produção possa ser de maior valor, visa apenas a seu próprio ganho e, neste,

como em muitos outros casos, é levado como que por mão invisível a promover um

objetivo que não fazia parte de suas intenções. Aliás, nem sempre é pior para a

sociedade que esse objetivo não faça parte das intenções do indivíduo. Ao perseguir

seus próprios interesses, o indivíduo muitas vezes promove o interesse da sociedade

muito mais eficazmente do que quando tenciona realmente promovê-lo. Nunca ouvi

dizer que tenham realizado grandes coisas para o país aqueles que simulam exercer o

comércio visando ao bem público (SMITH, 1988, p. 437 )221.

221

SMITH, Adam. Ob. Cit., 1988.

Page 139: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

139

Nas formulações de Adam Smith, podemos perceber tanto uma concepção liberal de

Estado opositora a qualquer emergência de um ethos público por ele impulsionado, quanto os

fundamentos de uma teoria para o desenvolvimento econômico do modo capitalista baseada

numa fórmula que não relaciona o valor de uso ao valor de troca222

.

Smith retém a mesma explicação dos economistas da escola fisiocrata (F. Quesnay e

outros) de que o crescimento econômico depende do excedente de riquezas

acumulado a cada período e do seu emprego produtivo no período seguinte. O

excedente é gerado pelo aumento da produtividade do trabalho impulsionado, por sua

vez, pela divisão do trabalho. A expansão dos mercados favorece a divisão do

trabalho. Em suma, o crescimento econômico depende de poupança, investimento e

aumento de produtividade. Basicamente, a mesma conclusão da moderna teoria do

crescimento econômico. (FEIJÓ, 2007, p. 227)223.

Smith preocupou-se tanto em enaltecer a supremacia do mercado em detrimento do

intervencionismo estatal quanto em estabelecer uma “teoria do valor” originada no modo como

entendia o trabalho.

De acordo com essa teoria, o trabalho é considerado o “dinheiro” da compra inicial

que era pago por todas as coisas, ou seja, o pré-requisito para qualquer mercadoria ter

valor era que esta fosse produto do trabalho humano. Nessa direção, o preço desse

produto seria a soma de três componentes: o salário, os lucros e os aluguéis.

(SECURATO, 2007, p. 34)224.

222

Segundo Securato, a teoria de Smith é substancialmente frágil, pois estabelece que “os três

componentes dos preços – salários, lucros e aluguéis – são eles próprios preços ou derivam destes. Ou

seja, não dá para explicar os preços em geral por uma teoria que os define através de outros preços. Smith

afirmava que o valor de uso e o valor de troca não estavam sistematicamente relacionados. O segundo

ponto fraco desta teoria era o fato desta levar a conclusões sobre o poder aquisitivo da moeda e não

mencionar os valores relativos de mercadorias distintas. Para Smith, a melhor medida do valor em uma

troca era a quantidade de trabalho contida em uma mercadoria. Como o trabalho exercia um papel

fundamental no processo de enriquecimento, Adam Smith defendia que o valor de troca deveria ser igual

ao salário, embora se tenha verificado que o valor de troca é diferente do preço. Portanto, o preço não

pode ser definido apenas pelo valor do trabalho contido na mercadoria, mas deve também incluir o

salário, o lucro do capital e a renda”. (In: Economia: história, conceitos e atualidades. São Paulo: Saint

Paul, 2007). Em Salário, Preço e Lucro, Marx utiliza o conceito de preço de produção, no lugar do

conceito de Smith de preço natural (preço ao qual a receita da venda é suficiente apenas para dar lucro). E

em O Capital define “o valor como objetivação do trabalho abstrato em mercadorias, medido pelo tempo

de trabalho socialmente necessário [e] diz que o valor se expressa em dinheiro como preço. (...) No

Capítulo III do Livro I, Marx afirma a possibilidade de uma “incongruência quantitativa” entre o preço e

a grandeza de valor, e não restringe esta possibilidade à ocorrência de oscilações do preço em torno do

valor” explicitando uma dinâmica não alcançada em Smith. (In: NETO, João Machado Borges. As várias

dimensões da lei do valor. Revista Nova Economia disponível em:

<http://www.face.ufmg.br/novaeconomia/sumarios/v14n3/140305.pdf>. Acesso em: 21 ago. 2012). 223

FEIJÓ, Ricardo. Desenvolvimento econômico, modelos, evidências, opções políticas e o caso

brasileiro. São Paulo: Atlas, 2007. 224

SECURATO, José Cláudio. Ob. Cit., 2007.

Page 140: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

140

E, ainda, considerava o rendimento como a soma dos salários com os lucros e as rendas,

dividindo o salário em: salário dos ocupados na produção e salário dos trabalhadores não

produtivos. A renda seria igualada ao preço, subtraído da soma dos salários com os lucros, ou

seja, Renda = Preço — (Salários + Lucros) (Id., ibid.). Uma fórmula que justifica, por tornar

natural, a expropriação do trabalho, afinal, nesta lógica, a evolução dos salários acompanha o

movimento desejado à economia pela mão invisível, retrai-se se a economia retrair-se e

expande-se se a economia expandir-se. E tudo isso, obviamente, sem a interferência do Estado.

Ainda que não tenha estabelecido relações diretas com todos eles, Smith influenciou

pensadores que vieram depois dele, e, noutros casos, sofreu influência de alguns de seus

contemporâneos. Destacam-se John Law (1671–1729); Thomas Malthus (1766–1834); Jean

Baptiste Say (1767-1832); David Ricardo (1772-1823) e Stuart Mill (1806–1873); e que

tiveram em comum o mérito de definir a economia partindo do fluxo que considera estruturantes

as leis que regem a formação econômica, a acumulação, a distribuição e o consumo.

Essas leis ancoram-se no contexto de uma concorrência perfeita, em que as condições

naturais do livre mercado – laissez-faire – são mantidas pela mão invisível smithiana,

maximizando o bem-estar econômico, e, como não poderia deixar de ser, sem a interferência

maléfica do Estado.

Com efeito, David Ricardo é sempre lembrado nos textos das ciências econômicas

como um dos economistas que, ao assumir o legado de Smith, incorporou a ele novos

elementos. Juntos, são os maiores representantes da chamada escola econômica clássica. Para

Ricardo, o trabalho é o único fator de produção225

, o que significa que os países não precisam

possuir iguais condições de produção para realizarem transações no comércio internacional.

Segundo ele, dois países podem beneficiar-se com o comércio, se cada um tiver uma vantagem

relativa na produção.

Os países exportarão os bens produzidos com o trabalho interno, de modo relativamente

eficiente, e importarão bens produzidos pelo trabalho interno, de modo relativamente

ineficiente, ou seja, o padrão de produção de um país é determinado pelas vantagens

comparativas.

Nessas transações, o Estado tem um papel importante, porém não determinante, afinal, a

costura política necessária à realização do comércio exterior não tem como se furtar da

participação estatal, mas os trâmites econômicos não lhe dizem respeito.

225

Os estudos econômicos recentes consideram que a organização econômica sustenta-se sob a égide das

unidades produtivas, das famílias e do governo: “As unidades produtivas desempenham papel essencial

porque realizam a reunião dos recursos de capital (de propriedade de outras unidades produtivas, de

propriedade das famílias, ou de propriedade do governo) com a força de trabalho proporcionada pelas

famílias, para, balizadas pelas regras estabelecidas pelo governo para harmonização das relações dentro

da sociedade, produzirem bens e serviços que se destinam ao consumo ou uso das famílias, do governo,

de outras empresas. Constitui-se, dessa maneira, aquilo que se denomina de sistema econômico. (In:

MUNHOZ, Dércio. Introdução à economia. Brasília, 2007. Apostilado).

Page 141: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

141

Em franco diálogo adesista com Malthus, Ricardo foi um crítico contundente da

intervenção estatal no campo da reprodução social da classe trabalhadora. Ambos defenderam

os interesses de latifundiários e industriais, difundindo a lógica (no caso de Ricardo, muito mais

no campo da dedução do que da empiria) de uma evolução social insustentável.

Isto é, a população mundial tende a crescer em proporções geométricas enquanto a

produção de alimentos, na melhor das situações, em proporções aritméticas. Esse descompasso

entre oferta e demanda só pode ser administrado se cada indivíduo consumir o absolutamente

necessário a sua sobrevivência, podendo, ainda, a humanidade, contar com a fome e com

guerras como meios para barrar o crescimento populacional iminente. Os esforços das

organizações de trabalhadores, como os sindicatos, ou do governo, com suas políticas

assistenciais, tendem a ser meros paliativos, cujos resultados agravam ainda mais o caos

anunciado por manter as condições de sobrevivência da população.

Isso porque Ricardo não considera a terra como um componente na determinação do

valor. Prevê que a vida das pessoas é vivida em terras cada vez menos férteis, com perda

crescente de suas capacidades produtivas aumentando os custos de vida e diminuindo a

capacidade de consumo. Em sua teoria do valor, considera que o valor é definido pela

quantidade de trabalho necessário à produção de determinados bens, não dependendo da

disponibilidade, da abundância, mas sim do modo e das dificuldades ou facilidades encontradas

em seu processo de produção, o que circunscreve sua teoria à aplicação de valor apenas para

bens reproduzíveis, isto é, um bem escasso tem valor por sua escassez e não pelo tempo de

trabalho nele utilizado.

Nota-se, então, que, assim como Smith, o pensamento econômico de Ricardo vai ao

encontro das aspirações de uma classe que busca legitimidade ideocultural na economia política

capitalista e a conseguem, pois influenciam gerações de economistas e estadistas liberais e, mais

recentemente, neoliberais226

e desenvolvimentistas, de certo modo227

.

226

Merecem destaque, até por terem sido citados, os economistas John Law, que é responsável pela

criação do “sistema bancário” e das primeiras formas de “mercado de ações”. Stuart Mill, por incorporar

o princípio filosófico do utilitarismo à economia, e Jean Baptiste Say, responsável por um dos arranjos

teóricos mais utilizados na economia liberal, que diz que, para que haja demanda efetiva, é necessária

uma oferta prévia, ou, como se lê na crítica keynesiana à Lei de Say, a oferta cria sua própria demanda e

demanda por outros produtos. 227 Em Marx e a Decadência Ideológica da Burguesia, texto que compõe a coletânea Marxismo e Teoria

da Literatura (São Paulo: Expressão Popular, 2009), Lukács afirma que Smith e Ricardo buscaram

desvendar a realidade de sua época. Contudo, no que se assistiu após 1848, foi a conversão dos

economistas burgueses à defesa da ordem, buscando justificá-la, sobretudo. Com isso, abandona-se a

descoberta da realidade. Na resenha da edição brasileira, Sartori aponta: “Com isso, o autor húngaro

mostra como, com a passagem da burguesia à posição defensiva diante do proletariado, há uma mudança

qualitativa na ideologia burguesa: para o autor, antes de 1848, houve a economia clássica, a democracia e

a busca de uma compreensão da história; depois, disso, mas principalmente depois da repressão brutal da

Comuna de Paris, aparecem, não autores honestos como Smith e Ricardo, mas a economia vulgar, não a

democracia, mas o liberalismo e, por fim, não a busca de uma compreensão das origens históricas da

sociedade capitalista, mas a procura pela justificativa das relações sociais existentes. Isso é chamado por

Lukács de “decadência ideológica da burguesia” – enquanto a burguesia tivesse tido um papel

Page 142: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

142

Ainda entre os pioneiros da Economia Política Clássica, encontramos as formulações do

inglês Alfred Marshall (1842 – 1924), líder da escola neoclássica de Cambridge.

Marshall aprimora Smith e Ricardo, tornando mais práticos seus conceitos, inclusive o

da mão invisível. Em Princípios de Economia, sua obra de 1890, enaltece a autorregulação do

mercado, como resume a estudiosa de seu pensamento, Joan Robinson (1982 apud

SECURATO, 2007):

As forças do mercado distribuíam os recursos da melhor maneira possível entre os

diversos usos alternativos. Daí o conceito de distribuição de renda baseado na justiça

natural. Isto é, a contribuição dos trabalhadores para a produção se refletiria nos

salários, enquanto que a contribuição do capital para a produção estaria nos lucros.

Isso seria justo, direito e natural 228.

Diferentemente de Ricardo, Marshall é mais voltado à empiria. Utiliza recorrentemente

a matemática nos modos em que explica os fenômenos que problematiza, abandonando a

dedução do primeiro. Por isso mesmo, atribui-se a Marshall a utilização dos métodos

matemáticos/analíticos na Economia moderna.

Importante contribuição para a Ciência Econômica foi sua síntese conciliadora das duas

teorias que se antagonizavam em seu tempo: a da economia política clássica e a da escola

marginalista.

Para a primeira, o valor se define pelo custo do trabalho, isto é, [o valor] se agrega ao

trabalho durante o processo produtivo, já, para a segunda, o valor se define em conformidade

com a utilidade que a mercadoria produzida encerra para o consumidor, ou seja, define-se por

sua utilidade marginal. Para superar esse impasse, Marshall admite a variável tempo na

definição do valor. O tempo — períodos longos ou períodos curtos — permite determinar tanto

os custos de produção quanto a utilidade (marginal) na formação do valor das mercadorias.

Mas a importância de Marshall não se restringe à sua matemática econômica. O

diferencial de sua produção está no caráter social que tenta imprimir a ela. Aparentemente um

contrassenso, o matemático Marshall utilizava a teoria econômica para problematizar as

questões sociais de seu tempo e tentar respondê-las à luz da economia. A pobreza, o papel da

mulher no trabalho, dentre outros temas sociais, podem ser encontrados em sua obra.

progressista, teria consigo um ímpeto honesto no sentido de se perceber dos nexos reais presentes na

sociedade existente, mesmo que, como disse Marx acerca de Ricardo, isso possa ter beirado o “cinismo”.

No entanto, segundo Lukács, quando a burguesia já se confronta com o proletariado no seio da sociedade

civil burguesa já consolidada, para a burguesia, perceber-se dos nexos presentes na sociedade capitalista é

ver-se como uma força já destituída de um ímpeto efetivamente revolucionário e progressista. Nisso, o

autor húngaro aponta uma relação entre os fenômenos ideológicos, dentre eles a arte e a literatura, e o

desenvolvimento das contradições da sociedade civil-burguesa. E a questão se liga, inclusive, ao realismo,

na medida em que, na época, se deixa de lado a busca do reflexo adequado da realidade e, segundo

Lukács, “paralelamente a este desprezo pelos fatos históricos, pelas forças reais motrizes da história,

surge uma tendência à mistificação”. 228

SECURATO, José Cláudio. Ob. Cit., 2007, e citação extraída de Marshall – Princípios de economia.

São Paulo: Abril Cultural, 1982. (Coleção Pensadores Econômicos).

Page 143: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

143

Contudo, essa inovação não o fez admitir um caminho estatizante ou socializador dos

meios de produção como alternativa ao enfrentamento da “questão social”. Antes, sua

humanização da economia é uma forma de ratificar ainda mais a autorregulação promovida pelo

predomínio do mercado, ainda que admita a interferência estatal para além das áreas de atuação

fundamentais arroladas por Adam Smith.

Para Marshall a degradante condição de pobreza, contraditoriamente ancorada na

produção e concentração da riqueza, pode ser atenuada com o aprimoramento do sistema de

livre mercado, com apoio de medidas estatais e de associativismo civil como sindicatos e

movimentos sociais destinados a este fim. As ideias de Marshall pareceram tomar maior vulto

ante as de Smith e Ricardo e ressoam mais tarde em alguns de seus destacados alunos, como

Keynes, Pigou ou Joan Robinson. Desse modo, a Ciência Econômica de cariz liberal passa não

só a ter novos interlocutores como também a flertar com outras referências teóricas e

metodológicas.

Nessa abertura, o austríaco Joseph Alois Schumpeter (1883-1950) admite a influência

de Karl Marx e de Leon Walras229

em seus estudos econômicos. Atacando veementemente o

primeiro, porém convergindo com ele na “predição” do fim do capitalismo e seguindo os passos

do segundo, sobretudo em seus raciocínios matemáticos, Schumpeter vai da economia ao direito

e do direito à sociologia. Uma de suas obras principais, no campo da Economia, Teoria do

Desenvolvimento Econômico, de 1911, aborda questões como:

229 Leon Walras foi um economista francês, nascido em 1834 e falecido em 1910. Conhecido no âmbito

da teoria econômica pelos importantes contributos que deixou na análise do conceito de utilidade

marginal e do equilíbrio geral de uma economia. A forte utilização da matemática em seus estudos foi um

traço marcante de Walras, fato que o tornou conhecido, juntamente com Vilfredo Pareto, como fundador

da escola matemática da Economia. Walras é também considerado um marginalista, na medida em que

utilizou e desenvolveu em seus estudos o conceito de utilidade marginal, como fonte do valor dos bens e

serviços de uma economia. No entanto, aquele que é considerado como principal contributo de Walras

para a ciência econômica é o seu trabalho nivela respeito da teoria do equilíbrio geral, ou seja, da forma

como determinada economia, na qual existe uma multiplicidade de bens, pode atingir o equilíbrio geral.

Embora não totalmente coroado de sucesso, os estudos de Walras, nesse nível, partiram da criação de um

sistema de equações simultâneas, em que o número de equações era igual ao de variáveis desconhecidas.

Resolvido o sistema, obter-se-ia os valores das quantidades e preços de equilíbrio. A determinação

individual da quantidade e do preço foi um dos contributos do raciocínio de Walras. Sua principal obra

foi Élements d'Économie Politique Pure, publicada em 1903, e que contém versão simplificada dos seus

estudos realizados anteriormente (na última década do século XIX). (In: Infopédia [Em linha]. Portugal,

Porto: Porto Editora, 2003-2012.

Disponível em: < www.infopedia.pt/$leon-walras>. Acesso em:> 22 ago. 2012).

Page 144: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

144

O estudo de um modelo econômico estacionário, fundamentado em um fluxo circular

da vida econômica; o “empreendedorismo” na figura do empresário inovador e

analisando a relação entre a inovação e a criação de novos mercados; a distinção entre

crescimento e desenvolvimento; a importância do crédito no crescimento econômico

idealizando o moderno banco de desenvolvimento; a relativização do crédito ao

consumidor como elemento essencial ao processo econômico; a impossibilidade da

transmissão “genética” do espírito empreendedor; a discussão da teoria do juro,

relacionando esse fenômeno com o processo de desenvolvimento e tratou, por fim,

dos ciclos econômicos, isto é, dos períodos de prosperidade e recessão econômica,

comuns no processo de desenvolvimento capitalista. (SECURATO, 2007, p. 38-

39)230.

A influência de Walras talvez tenha incidido sobre Schumpeter mais do que se tem

registro. A recorrência aos recursos matemáticos fez com que ele se referisse ao

desenvolvimento do capitalismo sempre com o uso de métodos e instrumentos lógicos, racionais

e pragmáticos. Com o sucesso disso, torna-se um dos fundadores da Sociedade de Econometria,

e torna-se seu presidente de 1937 a 1941 (Id., ibid.).

A formação liberal de Schumpeter o acompanha em suas elaborações teóricas, de modo

que mantém viva a doutrina da não interferência do Estado na economia. Isso o leva, inclusive,

a polemizar com seu contemporâneo Keynes, quando propõe que, diante da Grande Depressão,

nada deveria ser feito, isto é, a depressão seguiria seu próprio curso, até exaurir-se

(GALBRAITH, 1989)231

.

Schumpeter foge da ortodoxia econômica liberal de sua época criticando a escola

clássica do século XVIII e adotando em seus estudos sobre o desenvolvimento capitalista uma

espécie de evolucionismo. Para isso, dedica-se a pensar também o socialismo e a democracia, o

que inevitavelmente o leva a fazer considerações sobre o Estado. Tece, desse modo, detalhes

sobre suas funções, além de dizer que o Estado não deve interferir no mercado, máxima já

apregoada por seus antecessores e parte de seus contemporâneos liberais.

Na primeira parte do seu livro Capitalismo, Socialismo e Democracia, de 1942, constrói

crítica irônica e ambígua sobre a doutrina marxista. Dedica-se a destruir o marxismo como

programa teórico-científico, lançando-o ao campo das profissões de fé e do panfletarismo:

230

SECURATO, José Cláudio. Ob. Cit., 2007. 231 É importante lembrar que Keynes, como veremos mais adiante, foi o propositor da intervenção estatal

na economia como forma de postergar a crise. (In: GALBRAITH, J. K. O pensamento econômico em

perspectiva: uma história crítica. São Paulo: Pioneira; Editora da USP, 1989).

Page 145: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

145

Uma conquista puramente científica, mesmo que fosse muito mais perfeita que a de

Marx, nunca teria alcançado tal imortalidade no sentido histórico. Tampouco bastaria

seu arsenal de palavras de ordem partidárias. Parte de seu êxito, se bem que muito

pequena, pode, na verdade, ser atribuída à grande quantidade de frases candentes,

acusações apaixonadas e gesticulações coléricas que, prontas para serem usadas em

qualquer palanque, ele [Marx] colocou à disposição de seu rebanho. (SCHUMPETER,

1984, p. 21)232.

Mas admite, ao mesmo tempo, que em Marx estariam presentes fundamentos

importantes do desenvolvimento capitalista, cuja centralidade da explicitação de seus

motivadores econômicos não reduz tais fundamentos à economia, mas, antes, os contextualiza

nela de modo a entender a maneira como os grupos e classes sociais explicavam para si mesmos

sua própria existência, localização e comportamento, atingindo, assim, as esferas das religiões, a

metafisica, as escolas de arte, as ideias éticas, os desejos políticos, etc. (Id.). Refere.

(...) a explicação do papel e do mecanismo dos motivos não econômicos e a análise da

forma pela qual a realidade social se reflete nas psiques individuais são um elemento

essencial da teoria [marxista]233 e uma de suas contribuições mais significativas. (Id.,

ibid., p. 27).

Alguns autores chegam, inclusive, a afirmar certa afinidade metodológica entre eles,

como é o caso de José de Jesús Rodrígues Vargas que, em sua tese de doutoramento, identifica

ao menos cinco similaridades entre os dois autores, afirmando:

Existe una afinidad tan cercana de Schumpeter con Marx que alguno piensan que es

proclive al marxismo o al socialismo. Schumpeter toma de Marx la metodología y

asume principios teóricos que lo llevan a sacar conclusiones similares; puede ser muy

fácil para los investigadores académicos que parten de Schumpeter deslizarse a la

fuente principal, a Marx para poder entender mejor el desarrollo capitalista, en caso de

que no teman ser señalados de marxistas; los “evolucionistas” de hoy son

schumpeterianos pero también recurren a Marx; mientras que los marxistas, en

general, son más reacios a retomar a Schumpeter, además de las trabas ideológicas y

dogmáticas, puede creerse que algunas teorías schumpeterianas están mejor

explicadas en la teoría original, la marxista. (VARGAS, 2005)234.

232

SCHUMPETER, Joseph Alois. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar

Editores, 1984. 233

Grifo nosso. 234

VARGAS, José de Jesús Rodríguez. La nueva fase de desarrollo económico y social del

capitalismo mundial. Tese (Doutorado)- División de Estudios de Posgrado, Facultad de Economía,

Universidad Nacional Autónoma de México. (ISBN: 94-689-5228-1). Disponível em:

<http://www.eumed.net/tesis/jjrv/>.

Page 146: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

146

E prossegue:

Un segundo punto de coincidencia es sobre el desarrollo capitalista basado en la

acumulación, con perturbaciones e interrupciones, que tiende al equilibrio y

desequilibrio, es decir, la recurrencia de los ciclos. Económicos (...) La tercera, es que

la competencia capitalista es parte esencial para ambos autores. Para Marx es el

“fuego” que anima al capitalismo (decía que es “el motor esencial de la economía

burguesa”), es una lucha incesante y de aniquilación, mientras que Schumpeter, ve la

competencia como la “destrucción creadora” de las empresas, es el “dato de hecho

esencial”, “en ella consiste en definitiva el capitalismo y toda empresa capitalista tiene

que amoldarse a ella para vivir” (...) Una cuarta, es respecto al cambio tecnológico -la

nueva maquinaria o el mejoramiento y reemplazo del capital fijo- es básico para Marx

en la comprensión de los ciclos industriales y en el progreso capitalista, en tanto para

el austriaco, es la innovación -por cierto, normalmente se usa como “innovación

tecnológica” o cambio tecnológico, aunque no se refiere únicamente a la técnica- el

“impulso fundamental que pone y mantiene en movimiento a la máquina capitalista”

(...) En ambos existe una teoría de los ciclos, basada en la observación y

racionalización de la realidad, lo que muestra una apreciación teórica e histórica muy

creíble del proceso histórico del capitalismo y del mecanismo interno esencial. (Id.,

ibid.).

E conclui:

Una última coincidencia es que la teoría siendo una abstracción, una generalidad, es

fundamental para la comprensión de los fenómenos. Los economistas del siglo XIX

todos compartían el mismo método y en general, también posiciones parecidas con

respecto al ciclo. (Id., ibid.)235.

Semelhanças ou diferenças à parte, o fato é que Schumpeter atribui um papel

protagônico para a burguesia na transformação da sociedade, por suas ações inovadoras

(inovação é uma categoria constante em Schumpeter), na fase de ascensão do capitalismo, na

sua evolução para o capitalismo monopolista e no seu próprio ocaso. Uma das interpretações

mais utilizadas do evolucionismo schumpeteriano, notadamente propalada pelos

neoschumpeterianos, é aquela que refere que o espírito empreendedor ou inovador se transfere

do burguês para os trabalhadores das empresas e o empreendimento passa de individualizado a

socializado.

Com essa alteração, o eixo estruturante do capitalismo, a propriedade privada, se

esvazia em razão e sentido. Um novo tipo de controle estatal no sistema econômico emerge

atenuando a liberdade de contrato entre particulares, aqui sim bem diferente de Marx.

235

VARGAS, José de Jesús Rodríguez. Ob. Cit.

Page 147: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

147

Colocado em outros termos, a escola schumpeteriana verifica que, no capitalismo, há

um processo evolutivo de inovação e de destruição criadora, marcado por uma instabilidade

imanente. A inovação tecnológica, impulsionada pela criatividade do empresário, partindo do

modelo estacionário, é fulcro da estabilidade econômica quando ainda é recente, contudo,

depois de absorvidas pela sociedade, essas mesmas inovações estimulam o processo recessivo.

Uma concertação entre Estado e mercado é aceita mais pelos neoschumpeterianos do

que por ele próprio, mas, no final, convergem na existência de um paradigma que, baseado na

interferência do Estado, a limita e controla racionalmente, e desse paradigma uma crise se lhe

advém, após esse suposto caos: a revolução e a emergência de um novo paradigma236

.

Nesse sentido, Schumpeter apresenta sua conclusão sobre uma nova lógica social, que

deixa em aberto ser ou não o socialismo tal qual formulado pelos autores socialistas clássicos:

(...) o capitalismo, embora economicamente estável, e mesmo adquirindo estabilidade,

cria, ao racionalizar a mente humana, uma mentalidade e um estilo de vida

incompatíveis com suas próprias condições, motivos e instituições sociais

fundamentais, e se transformará, ainda que não por necessidade econômica e mesmo

provavelmente com algum sacrifício do bem-estar econômico, numa ordem de coisas

que será ou não chamada de Socialismo, dependendo de uma simples questão de

gosto e terminologia. (SCHUMPETER apud CARNEIRO, 2003, p. 87)237.

Essa afirmação torna evidente que suas preocupações são mais econômicas do que

políticas, na medida em que marginaliza a necessidade de uma elaboração mais contundente

sobre as demais instâncias que compõem uma ordem societária como a ideologia, a política, a

cultura, etc.238

que, inevitavelmente, nos levam saber se essa nova ordem pode ou não ser

chamada de socialista. Mas essa marginalização é só aparente, pois a Democracia, como a

manifestação política de um modelo econômico, é objeto de estudo que se materializa em seu

livro de 1942 e de lá podemos realizar inferências sobre o que pensa Schumpeter do Estado.

Enquanto o tradicionalismo científico em torno das questões do Estado sugere um

caminho intelectual que leva à problematização do Estado na sua conformação abstrata e

posteriormente material, em primeira instância, e o tratamento de suas formas políticas como os

regimes políticos que lhe preenchem de modo secundário, Schumpeter realiza um processo

inverso. Ele trata da Democracia e suas características e expressões materiais fundantes para daí

sugerir as funções e o papel do Estado.

236

Aqui se faz analogia direta ao conceito de paradigma de Thomas Khun e a revolução é referida apenas

no sentido de transformação radical das estruturas de um sistema econômico posto. 237

CARNEIRO, Ricardo. Os clássicos da economia. v. 2, São Paulo: Ática, 2003. A citação completa

pode se encontrada também no Economic Journal, v. 38, 1928, p. 386, sob o título A Instabilidade do

Capitalismo. 238

Exemplo da presença de categorias não econômicas, no legado de Schumpeter, é seu conhecido artigo

Ciência e Ideologia.

Page 148: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

148

Mas isso não é uma opção de método, em primeira análise, é antes um posicionamento

teórico-político que entende ser o regime (neste caso, a Democracia) definidor do Estado e não

o contrário. Sob suas aspirações liberais, evidencia os limites da Democracia em ato análogo aos

limites do próprio Estado. Tanto que o esclarecedor excerto que aqui segue é retirado do

subcapítulo de Capitalismo, Socialismo e Democracia, que trata justamente das “condições para

o êxito do método democrático” e nos evidencia que sua concepção de Estado limita este ao

pragmatismo técnico da execução das diretrizes e vontades emanadas do povo medidas pelas

instituições democráticas:

Mais uma vez, a condição em questão pode certamente ser satisfeita por uma

limitação correspondente das atividades do Estado. Mas seria um equivoco sério do

leitor pensar que tal limitação esteja necessariamente implícita. A democracia não

exige que qualquer função do Estado esteja sujeita a seu método político. Por

exemplo, na maioria dos países democráticos garante-se aos juízes grande medida de

independência em relação aos órgãos políticos. Outro exemplo é a posição do Banco

da Inglaterra até 1914. Algumas de suas funções eram, de fato, de natureza pública.

Não obstante, essas funções eram atribuídas ao que legalmente era apenas uma

empresa de negócios, suficientemente independente do setor político para ter uma

política própria. Certos órgãos federais nos Estados Unidos também servem de

exemplo. A Comissão de Comércio Interestadual incorpora uma tentativa de estender

a esfera da autoridade pública sem estender a da decisão política. Ou, para apresentar

ainda outro exemplo, alguns Estados norte-americanos financiam universidades

estaduais “sem quaisquer controles”, o que quer dizer, sem interferir, o que em certos

casos significa uma autonomia praticamente completa. Assim, pode-se fazer entrar

quase qualquer tipo de negócio humano na esfera do Estado sem que se torne parte do

material da competição pela liderança política, ou seja, aquele ponto além do qual

implica passar a medida que garante o poder e estabelece o órgão que deve tê-lo, bem

como o contato implícito no papel governamental de supervisor geral. É claro que

essa supervisão pode degenerar em influência viciosa. O poder do político de designar

os funcionários dos órgãos públicos não políticos, se usado sem consciência,

frequentemente será suficiente para corrompê-los. Mas isso não afeta o principio em

questão. (SCHUMPETER, 1984, p. 364)239.

O regime democrático, seja ele presidencialista ou parlamentarista republicano ou

monárquico, na acepção das linhas gerais dos pensadores do século XVIII, tem como

pressuposto fundamental a realização do bem comum alcançado pela execução das aspirações

do “povo”. Para isso, se faz necessária a existência de cidadãos, dentre os populares, ou não,

que recebem a delegação de representar e executar essa vontade-geral.

Segundo a análise de Schumpeter, essa dinâmica confere, às assembleias, câmaras, ou

aos parlamentos, um sentido técnico de existência, pois mesmo que seus componentes possam

239

SCHUMPETER, Joseph Alois. Ob. Cit., 1984.

Page 149: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

149

ter pontos de vista individualmente diferentes, no final deve prevalecer o que interessa à

vontade-geral, ao bem comum e o governo, do mesmo modo, submete-se a pôr em prática o

desejo coletivo.

A filosofia da democracia do século XVIII pode ser enunciada na seguinte definição:

o método democrático é o arranjo institucional para se chegar a decisões políticas que

realiza o bem comum fazendo o próprio povo decidir as questões através da eleição de

indivíduos que devem reunir-se para realizar a vontade desse povo. (Id., ibid., p.

313)240.

Schumpeter inicia por discordar desses princípios afirmando a existência inequívoca

deles, mas questionando sua factibilidade:

Afirma-se, então, que existe o Bem Comum, o farol óbvio da política, que é sempre

simples de definir e que qualquer pessoa normal pode ver através da argumentação

racional. Não há, portanto, qualquer desculpa para não vê-lo, e na verdade qualquer

explicação para a presença de pessoas que não o veem, exceto a ignorância — que

pode ser removida —, a estupidez e o interesse anti social (...) Quando aceitamos

todas as suposições feitas por essa teoria da política, ou nela implícitas, a democracia,

na verdade, adquire significado perfeitamente inequívoco, e não há qualquer problema

com ela, exceto o de como leva-la a efeito. (Id., ibid.).

Enumera um conjunto de razões pelas quais a doutrina democrática clássica não se

realiza plenamente. Primeiro, assevera que a existência do bem comum se ancora num sistema

de valores que deve ser aceito por todos, na sociedade, para que, a partir dele, se determinem os

parâmetros do que será considerado bom ou ruim e isso consiste já numa primeira dificuldade.

Mesmo que se convencionem os parâmetros de bem ou mal, bom ou ruim, ainda assim há

divergências no modo como esses valores devem ser alcançados. Não obstante todos terem que

se unir em torno da manutenção e possível ampliação do bom e da extinção do ruim.

240

Id., ibid.

Page 150: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

150

Além disso, esse bem comum implica respostas definidas a todas as perguntas, de

modo que todo fato social e toda medida tomada ou a ser tomada podem,

inequivocamente, ser classificadas como “boas” ou “ruins”. Todas as pessoas têm,

portanto, de concordar, ao menos em principio, em que há também um Bem Comum

do povo (= vontade de todos os indivíduos razoáveis), exatamente coincidente com o

bem, ou interesse, ou bem-estar, ou felicidade comuns. A única coisa, excetuando-se a

estupidez ou os interesses sinistros, que possivelmente pode trazer discordância e

responder pela presença de uma oposição é uma diferença de opinião quanto à

velocidade em que o objetivo, ele mesmo comum a quase todos, deve ser alcançado.

Assim, todos os membros da comunidade, conscientes de tal objetivo, conhecendo seu

próprio pensamento, discernindo o que é bom do que é ruim, tomam parte, ativa e

responsavelmente, na ampliação do primeiro e na luta contra o segundo, e todos os

membros assumem juntos o controle dos negócios públicos. (Id., ibid., p. 313).

Mas Schumpeter não para aí nesse primeiro argumento. Refere que, para o sucesso das

convenções sociais que os cidadãos estabeleceram, ainda que representados, estes deveriam ter

plena consciência de seus atos e opiniões e possuir um onisciente repertório de informações

sobre todos os assuntos da vida social. Ademais, admite que o processo que faz formar as

opiniões individuais ou coletivas é entrecortado e está sujeito a muitas variáveis, dentre as quais

aquelas de cunho não racional, o que pode pôr em risco, de fato, o caráter de vontade geral das

decisões tomadas241

. Esse caráter só será confirmado com o passar do tempo.

Em primeiro lugar, não existe algo que seja um bem comum unicamente determinado,

sobre o qual todas as pessoas concorrem ou sejam levadas a concordar através de

argumentos racionais. Isso se deve, basicamente, não ao fato de algumas pessoas

poderem desejar coisas diferentes do bem comum, mas ao fato muito mais

fundamental de que, para diferentes indivíduos e grupos, o bem comum está fadado a

significar diferentes coisas. Esse fato, oculto ao utilitarista pela estreiteza da visão que

ele tinha do mundo das valorações humanas, introduzirá brechas em questões de

princípios, que não podem ser reconciliadas através de argumentos racionais, pois os

valores supremos — nossas concepções do que devem ser a vida e a sociedade —

estão além do alcance da simples lógica. Em alguns casos, tais brechas podem ser

transpostas por compromissos; em outros, não (...). Mesmo que um bem comum

suficientemente definido — tal como, por exemplo, o máximo utilitarista de satisfação

econômica — se mostrasse aceitável para todos, isso não implicaria respostas

igualmente definidas para as questões isoladas. (Id., ibid., p. 314).

Também considerou a complexidade das sociedades contemporâneas como um fator de

óbice à realização da democracia de postulados clássicos. Em sociedades rudimentares,

241

Schumpeter não era entusiasta do assembleísmo ou das multidões. O irracionalismo humano, para ele,

aumenta na proporção em que a própria população aumenta.

Page 151: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

151

primitivas e homogêneas, ela teria mais chance de sucesso, sobretudo, por possibilitar o acesso à

informação construída na vida cotidiana, próxima aos indivíduos.

Há padrões sociais em que a doutrina clássica realmente se adapta aos fatos com um

grau de aproximação suficiente. Como já se disse, é o caso de muitas sociedades

pequenas e primitivas que, na realidade, serviram como protótipos aos autores de tal

doutrina. Pode ser o caso de sociedades que não sejam primitivas, desde que não

sejam muito diferenciadas e que não abriguem problemas sérios. A Suíça é o melhor

exemplo. Há bem pouco sobre o que brigar num mundo de camponeses onde,

excetuando-se bancos e hotéis, não existe qualquer indústria capitalista e onde os

problemas da política pública são tão simples e tão estáveis que se pode esperar que

uma esmagadora maioria os compreenda e chegue a um acordo sobre eles. Mas, se

podemos concluir que em tais casos a doutrina clássica se aproxima da realidade,

temos de acrescentar imediatamente que isso ocorre não porque ela descreva um

mecanismo efetivo de decisão política, mas apenas porque não há grandes decisões a

se tomar (Id., ibid., p. 334).

Schumpeter simplifica a democracia tratando-a como método e não como conjunto de

princípios. Alguns denominam esse pensamento de democracia procedimental. Atribui a si

mesmo a formulação de respostas aos impasses que a doutrina clássica levanta, quando confere

centralidade aos procedimentos operativos da democracia:

(...) o método democrático é aquele acordo institucional para se chegar a decisões

políticas em que os indivíduos adquirem o poder de decisão através de uma luta

competitiva pelos votos da população (...) [Assim] 242 dispomos de um critério

razoavelmente eficiente pelo qual podemos distinguir os governos democráticos de

outros (...) Estamos agora em posição um pouco melhor, em parte porque resolvemos

chamar a atenção para um modus procedendi cuja presença ou ausência é, na maioria

dos casos, fácil de verificar. (Id., ibid., p. 336-337).

Descartando qualquer possibilidade de cumprimento dessa vontade geral, que, para

Schumpeter, é um ideal e não realidade, o autor assevera que a teoria clássica dá créditos às

iniciativas dos cidadãos, sintetizados num sujeito coletivo bem maior do que eles de fato podem

arcar, não obstante ignorar a diferença inconciliável de perfis: uns são líderes outros não; há

disputas para se tornar representante do povo no âmbito da política, que nada mais são do que

disputas pelo poder; e, enfim, toda sorte de contingências que tornam as relações sociais

imperfeitas e improváveis243

.

242

Grifo nosso. 243

Schumpeter afirma: “É verdade que a administração de alguns desses negócios exige aptidões e

técnicas especiais, e portanto deve ser confiada a especialistas que as têm. Mas isso não afeta o princípio,

pois esses especialistas simplesmente agem de maneira a realizar a vontade do povo, exatamente como o

médico age de maneira a realizar a vontade do paciente de ficar são. É também verdade que, numa

Page 152: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

152

(...) a teoria incorporada nessa definição nos dá todo o espaço necessário para um

adequado reconhecimento do fato vital da liderança. A teoria clássica não fazia isso;

como vimos, atribuía ao eleitorado um grau completamente irrealista de iniciativa,

que praticamente significava ignorar a liderança. Mas os coletivos agem quase que

exclusivamente através da aceitação da liderança — esse é o mecanismo dominante

em praticamente qualquer ação coletiva que seja mais que um reflexo. As proposições

sobre o funcionamento e os resultados do método democrático que levam isso em

conta são infinitamente mais realistas do que as que não o fazem. Não se deterão na

execução de uma volonté générale, mas caminharão no sentido de mostrar como ela

emerge ou como é substituída ou falseada. O que chamamos de Vontade

Manufaturada não é mais externa à teoria, uma aberração a cuja ausência erguemos

nossas preces piedosas; ela entra na própria teoria. (Id., ibid., p. 337-338).

Ou seja, em última análise, o limite da democracia é estabelecido pela capacidade do

povo aceitar ou não quem governa. Esse pragmatismo schumpeteriano também atingiu as

instituições políticas. O partido, por exemplo, se transforma num meio para o exercício de

poder, em que sua programática ideopolítica não é o que o define, mas sim as regras do jogo que

disputa para alcançar esse poder. O partido é, assim, um representante do que Schumpeter

denominou de liderança competitiva. O Estado e sua administração são meros desdobramentos

dessa disputa.

Pois todos os partidos, é claro, em algum momento farão um estoque de princípios ou

plataformas; e esses princípios ou plataformas podem ser tão característicos do partido

que os adote e tão importantes para seu sucesso quanto o são as marcas dos produtos

vendidos por determinada loja. Mas a loja não pode ser definida em termos de suas

marcas e um partido não pode ser definido em termos de seus princípios. Um partido

é um grupo cujos membros se propõem agir combinadamente na luta competitiva pelo

poder politico. Se não fosse assim, seria impossível que diferentes partidos adotassem

exatamente ou quase exatamente o mesmo programa. (Id., ibid., p. 353).

Schumpeter aproxima-se de Marx na predição do fim do capitalismo, ainda que não se

arrisque a alcunhar a sociedade, que se coloca como alternativa, de socialista. Contudo, rende-se

adotando mesmo o socialismo como a designação que emprega, pois necessita de um referencial

ideopolítico e metodológico para elaborar suas teses.

Mas é mesmo sobre a Democracia e não o tipo de Estado – ainda que possamos retirar

elementos para essa definição no programa teórico de Schumpter — que ele se detém como

comunidade de qualquer tamanho, especialmente se apresenta o fenômeno da divisão do trabalho, seria

altamente inconveniente para cada cidadão isolado ter de entrar em contato com todos os outros cidadãos

sobre todos os assuntos a fim de fazer sua parte no governo ou administração. Será mais conveniente

reservar apenas as decisões mais importantes para o pronunciamento dos cidadãos isolados — digamos,

por referendo — e tratar do resto através de uma comissão apontada por eles — uma assembleia ou

parlamento cujos membros serão selecionados por voto popular” (Ob. Cit.).

Page 153: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

153

forma de blindar seu pragmatismo. Para ele, a Democracia apresenta elementos invariáveis que

a tornam aderente a vários tipos de Estado. Estabelece esse raciocínio para demonstrar sua

viabilidade, como possibilidade e não como exigência, também no socialismo244

. A Democracia,

como método, conteria, em qualquer contexto:

a) Material humano: “as pessoas que dirigem as máquinas partidárias (...) eleitas para

o parlamento (...) de qualidade suficientemente alta” (...) disponíveis para a vocação

política, que se proponham para eleição; (Id., ibid., p. 361).

b) Limitação do alcance efetivo das decisões:

o alcance depende não apenas, por exemplo, do tipo e da quantidade de questões que

podem ser manejadas corretamente por um governo sujeito à tensão da luta incessante

por sua vida política; depende também, em qualquer espaço e tempo dados, da

qualidade dos homens que formam tal governo e do tipo de máquina política e do

padrão de opinião pública com que eles têm de trabalhar (Id.,ibid., p.363);

c) Burocracia eficiente e racional:

o governo democrático deve dispor dos serviços de uma burocracia bem treinada e de

boa posição e tradição, dotada de forte senso de dever e de não menos forte espirit de

corps (...). Ela também deve ser suficientemente forte para guiar e, se necessário,

instruir os políticos que encabeçam os ministérios. Ela deve ser um poder em si

mesma (Id., ibid., p. 365);

d) Autocontrole democrático:

tudo que interessa aqui é que a prática democrática bem-sucedida em sociedades

grandes e complicadas tem invariavelmente se rebelado contra a ‘direção política pelo

banco de trás’ — a ponto de recorrer à diplomacia secreta e a mentir sobre intenções e

compromissos —, o que requer do cidadão um bocado de autocontrole para evitar

(Id., ibid., p. 366);

e) Respeito às diferenças e tolerância: “a concorrência efetiva pela liderança exige

grande dose de tolerância quanto às diferenças de opinião (...) o que significa a

disposição de subordinar suas próprias opiniões”. (Id., ibid., p. 367).

244

Schumpeter refere-se, deste modo, à aderência física da democracia: “Se um físico observa que o

mesmo mecanismo funciona diferentemente em diferentes tempos e lugares, conclui que seu

funcionamento depende de condições que lhe são estranhas. Só podemos chegar à mesma conclusão. E é

tão fácil ver quais são essas condições quanto foi ver quais eram as condições sob as quais se podia

esperar que a doutrina clássica da democracia se adaptasse, de maneira aceitável, à realidade. Essa

conclusão nos compromete definitivamente com aquela visão estritamente relativista que vem sendo

indicada todo o tempo. Exatamente como não há qualquer argumentação favorável ou contrária ao

socialismo para todos os tempos e lugares, não há qualquer argumento absolutamente geral que seja

favorável ou contrário ao método democrático”. (Ob. Cit., p. 361).

Page 154: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

154

Em síntese, Schumpeter refuta a teoria clássica do século XVIII, mas demonstra que,

com suas alterações pragmáticas, o método democrático tende a ser bem-sucedido, mesmo nos

seus muitos limites.

Nota-se, na construção do pensamento liberal, nítido deslocamento das questões

conceituais do Estado e da sociedade para as questões econômicas, mais notadamente da

política econômica capitalista, evidenciando de modo crescente a supremacia do mercado em

detrimento da autonomia (relativa ou interdependente) do Estado.

Em resumo, verificamos que a tradição liberal, mas também seus antagonistas

apresentam imensa heterogeneidade, desde o modo como se estruturam os pensamentos até as

maneiras de implementá-los. Nota-se, ainda, que há uma interdependência entre as instâncias

ideológicas, políticas, sociais e culturais encontradas nos processos de reprodução da vida

social, fatalmente referenciadas no modo de produção — portanto, na produção mesma — que

levam a instância econômica a determinar não apenas o conjunto dessas relações imbricadas,

como as formas que assumem os Estados e as classes.

Mas essa é uma conclusão possível, apenas, após a análise dos conteúdos internos, tanto

da tradição marxista quanto do pensamento liberal.

Em linhas gerais, a tradição liberal tende a negar a interdependência entre as instâncias

da vida social que citamos, sobretudo, a relação sinérgica entre economia e política. Como

vimos em vários de seus pensadores, a política, e, nela, o Estado, tem suas funções reduzidas à

missão de organizar os indivíduos atomizados. Isto é, ainda que o Estado, no plano político,

possa exercer um conjunto de atividades que podem aumentar ou diminuir, conforme a

conjuntura dos interesses de quem lhe domina, o sentido dessas atividades é sempre buscado no

fim último de organização asséptica dos indivíduos visando à acumulação.

O modo capitalista, portanto, busca disseminar que não há uma correlação intrínseca

nem entre as instâncias e nem com os indivíduos entre si e com essas mesmas instâncias. A

única admissão dos indivíduos agregados como possível corpo social coletivo se dá pelas

relações que estes estabelecem com o mercado, ou seja, as relações de troca, mercantis,

reforçando o fetiche da mercadoria.

A tradição marxista, por seu turno, com uma ampla distinção interna, responde à

problemática, sempre por meio de articulação de categorias convocadas pelo pensamento, mas

que repousam sob uma base material, e isso remete, na maioria das vezes, às relações classistas.

“O fato de a divisão em classes ter seu fundamento na produção faz com que as lutas políticas

tenham destino paralelo à importância que esse plano possui dentro da estrutura social

capitalista” (SADER, 1993, p.111-112)245

.

245

SADER, Emir. Estado e política em Marx. São Paulo: Cortez, 1993.

Page 155: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

155

E como não se faz economia ou política desprovida de ideologia, é no plano ideológico

que a burguesia, como se mostrou de Benjamin Constant a Shcumpeter, funda e propaga a

separação das instâncias e dos indivíduos, perpetuando o fragmento; o marxismo, por sua vez,

as agrega, na perspectiva da totalidade social.

Portanto, fica evidenciado que, embora o debate sobre a problemática do Estado tenha

ocupado lugar central nas formulações que levantamos, ela é apenas parte e expressão das lutas

políticas que se travam na sociedade. “O Estado, como soma de todos os fenômenos políticos,

ganha suas formas históricas das condições gerais das relações de produção na sociedade. Vale

dizer, ele é função do grau de desenvolvimento das lutas de classe em cada formação social”

(Id,, ibid.).

As perspectivas de desenvolvimento dos Estados e das sociedades emergem também

num campo de disputas mediadas pela concertação inevitável entre econômico e político, com

ênfases históricas diferenciadas e afetas ora ao pragmatismo das estratégias de desenvolvimento

ora aos rumos conceituais e filosóficos dos destinos das sociedades que evoluem. Deste modo,

Estado – Desenvolvimento – Capitalismo fazem parte de um mesmo complexo tenso e

contraditório. É o que passamos a tratar agora.

Page 156: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

156

Capítulo II

DESENVOLVIMENTO E CAPITALISMO: ESBOÇO DE

INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA

O trabalhador se torna tão mais pobre quanto mais riqueza produz,

quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão.

Karl Marx

Como já esclarecido, o que discorremos no primeiro capítulo nos serviu como base para

afirmar que, diante do corpo de argumentos que adotamos como recurso às nossas análises, não

podemos conceber o Estado, qualquer que seja o fulcro de sustentação ideopolítica no campo da

teoria social crítica, de modo dissociado das relações de produção que tipificam a formação

social em que se assenta.

Mais especificamente: o Estado capitalista é impensável fora das relações de tipo

capitalista que se estabelecem em seu interior. Portanto, quando falamos em desenvolvimento

capitalista tratamos também das transformações do Estado capitalista, em nível superestrutural,

mesmo que as nuanças do desenvolvimento do Estado possam ser secundarizadas ante a

prevalência das mudanças que ocorrem na estrutura socioeconômica da vida social.

O que nos interessa é colocar em exame essa simetria e, em conformidade ao que nos

revela a tradição marxista, argumentar que o desenvolvimento é condição de existência do

capitalismo, o qual conta sempre com a participação do Estado, por vezes como coadjuvante,

normalmente nas fases de estabilidade ou como protagonista, em especial, nos momentos de

crise.

Não obstante, a interferência estatal nos níveis de desenvolvimento capitalista, quando

racionalmente planejada, com seus níveis de interveniência acima do que corriqueiramente se

assiste, com abrangência em todas ou em quase todas as áreas de acumulação (de produção

direta e/ou de capitais), com finalidades específicas previamente planejadas e, por fim, com

apelos que constroem a adesão popular, de massas, são características que permitem a mutação

do substantivo desenvolvimento para o adjetivo desenvolvimentismo. Este último, também uma

necessidade imanente do capital, para garantir sua perpetuação como relação social246

, mas que

ocorre de forma episódica, sem se descolar de sua base estruturante.

Não reside nessa ideia-força a originalidade de nossos argumentos. Ao contrário,

mesmo um leitor iniciante, porém atento, de O Capital, verificará os meandros desse processo.

246

Esta é uma das muitas considerações capitais de Marx. Para ele, o “capital” não se confunde com o

“dinheiro” ou um objeto simples, antes, o capital é uma relação social. Movimento que acontece no

processo de mercantilização da vida, próprio do modo de produção capitalista.

Page 157: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

157

A lógica é simples e pode ser assim resumida: ao desmistificar o sentido da mercadoria como

forma elementar da produção capitalista, Marx demonstra que seu valor não é apenas

determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção, ainda que tenha

nele (no tempo de trabalho) sua forma de valor originária, mas considera a variável trabalho

humano na sua composição.

Evidente que o dispêndio de força humana na produção não é alheio a essa mesma

produção, contudo, há que se referenciar o contexto em que ela ocorre. Assim, o

empreendimento do trabalho humano produz uma mercadoria socialmente útil, portanto, uma

mercadoria que possui um valor de uso. No contexto em que essa mercadoria se insere, o das

relações de produção capitalistas, ela apresenta utilidade não apenas para seu produtor – na

maior parte dos casos não é mesmo para seu produtor –, mas sim para um terceiro que a

adquirirá para seu consumo, logo, essa mercadoria traz consigo, além do valor de uso um valor

de troca. É este que passa a prevalecer como forma dominante no capitalismo para a

determinação da equivalência entre as mercadorias.

A questão do intercâmbio simples de mercadorias estaria, com esse raciocínio,

inauguralmente desvendada, caso não existissem mediações essenciais nesse processo que não

podem ser ignoradas. Ou seja, a produção de mercadorias no capitalismo, ao carregar consigo a

prevalência de seu valor de troca, em detrimento do valor de uso, pressupõe a mediação do

dinheiro como modo de equivalência, ao mesmo tempo em que este tem, em si mesmo, a

propriedade de engendrar-se dinheiro.

Portanto, o dinheiro surge de modo já mitificado, como facilitador das relações de troca,

mas serve ainda para saldar dívidas ou simplesmente ser guardado.

A elucidação dessa contradição fundamental da mercadoria possibilitou que Marx

avançasse na resolução de outro dilema. Como um investidor, ou simplesmente o dono dos

meios de produção, pode receber mais do que investiu se há equivalência entre os valores

estabelecidos nas trocas?247

É aí que Marx resgata a centralidade do trabalho humano para a produção de

mercadorias248

e mostra como o dinheiro se converte em capital. Ou seja, o dono dos meios de

produção (ou mesmo o burguês que investe), para ser o que é, não parte de um marco zero. Ser

dono ou proprietário de máquinas, ou de dinheiro para investir, pressupõe a existência de uma

reserva de dinheiro (ou de mercadorias excedentes que foram trocadas por dinheiro) prévia.

247

A objetividade e concretude da acumulação exponencialmente crescente saltavam aos olhos de Marx e

de todos que viveram em sua época, considerando as enormes transformações na indústria e no comércio,

ainda consequências da Revolução Industrial. 248

Para Marx, o trabalho humano não se resume à atividade mecânica de produção de mercadorias. É

mais que isso. O trabalho é tratado ontologicamente por Marx como o processo que garante o

metabolismo orgânico dos homens com a natureza. Esse processo é melhor trabalhado no item 2.1 desta

tese.

Page 158: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

158

Essa reserva anterior não apenas mantém as máquinas em funcionamento como paga o trabalho

destinado à produção de novas mercadorias.

Essas novas mercadorias têm de ser úteis para alguém, caso contrário não há

justificativa para sua produção. Isso impõe a necessidade imediata da circulação dessas

mercadorias, sob pena de o proprietário perder seu investimento. Portanto, o mais importante

para o capitalista não é a produção (o trabalho concreto), mas sim a circulação, o que o leva a

incutir maior valor no chamado trabalho abstrato, aquele que inclui todas as dimensões

reificadas do processo produtivo.

Com a venda de suas mercadorias, o proprietário recebe de volta não apenas o

equivalente ao seu investimento, mas um adicional. Esse adicional pode ser entendido como

resultado de seu trabalho no âmbito do gerenciamento da produção, da circulação e do

consumo: a mais-valia. Isso é possível graças à existência de uma mercadoria particular,

indispensável desse processo: a força de trabalho.

A força de trabalho tem seu valor de troca definido de acordo com o tempo socialmente

necessário para a produção das mercadorias, contudo, como essa mercadoria especial só se

concretiza tanto por sua venda quanto pela expropriação dos modos e meios necessários para a

consecução de suas tarefas, seu proprietário se faz livre para explorá-la ao máximo.

Esse processo mostra que o capital aparece como algo que se autorreproduz, afinal,

todos os proprietários terão como finalidade última extrair a mais-valia e os trabalhadores, por

seu turno, a intenção de tornarem-se um dia proprietários249

.

Sob essa roda viva se sustenta a espoliação do trabalho, base para o desenvolvimento

capitalista. Em outros termos: a extração da mais-valia como ideal no capitalismo leva ao

aumento da produtividade e o aumento da produtividade só é possível com o desenvolvimento

de tecnologias que renovem os meios de produção. Esse processo, por sua vez, só é possível

com o aprimoramento do trabalho como meio de libertação do homem das suas formas

primitivas de relação com a natureza. Implica, pois, todo esse processo, que o desenvolvimento

está no cerne das contradições do modo de produção capitalista, pois é, ao mesmo tempo,

condição para a manutenção das relações sociais a ele inerentes quanto para a criação das

condições de sua superação.

O primado do trabalho como mola propulsora do desenvolvimento capitalista é presente

em toda a obra de Marx, resvalando em Engels e, de modo crítico, em Lênin, Gramsci,

seguindo-se em vários outros marxistas, inclusive latino-americanos. Ou seja, a explicação

marxista para o desenvolvimento capitalista não se reduz à exposição racional e crítica da

mercadoria, porém encontra nela pressupostos fundamentais.

249

Também não discorreremos sobre a alienação do trabalho; fenômeno que caracteriza a subordinação

do trabalho ao capital. Por hora, é importante notar que ela faz parte do processo a que nos referimos. Ver

item 4.2.1.

Page 159: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

159

Marx, em O Capital, ocupa-se em desmistificar os argumentos dos economistas

burgueses que retiram do trabalho sua centralidade relativa ao desenvolvimento e o entendem

como um processo afeto ao crescimento dos fatores de produção e da riqueza mensurável de um

país. No Capítulo XXIII, A Lei Geral da Acumulação Capitalista, introduz, dizendo: “Não se

alternando a composição do Capital, a procura da força de trabalho aumenta com a acumulação”

(p. 712)250

.

Desse pressuposto, já constante desde o Livro I251

, elabora um raciocínio que redunda

em mostrar a contradição fundamental do modo capitalista, que consiste na expropriação

crescente do trabalho, em paralelo ao crescimento dos níveis de acumulação e apropriação

privada dos frutos desse mesmo trabalho, concluindo que a organicidade do desenvolvimento do

capitalismo se funda no mito do próprio desenvolvimento, na medida em que este não apresenta

condições objetivas de socializar os ganhos do trabalho com a classe que vive do trabalho.

Ao demonstrar que, na dialética produção-reprodução social, as relações sociais que dali

se contraem são sempre desfavoráveis aos trabalhadores e ao demonstrar também que essa

dialética se sustenta em complexos amplos de alienação, a exposição marxista do

desenvolvimento capitalista extrapola a predominância dos motivos econômicos e atinge a

história como um dos níveis consequentes de sua racionalidade.

De certo modo, encontraremos um evolucionismo relativo, na análise de Marx sobre o

desenvolvimento capitalista, quando este se dedica a apresentar o crescimento das forças

produtivas associado à luta de classes como mola propulsora da história responsável por

substantivas transformações políticas que levam a sucessões de modos de produção e de

formações sociais. Na introdução da Contribuição à Crítica da Economia Política, afirma:

Em grandes traços, podem ser os modos de produção asiático, antigo, feudal e

burguês moderno designados como outras tantas épocas progressivas da formação da

sociedade econômica (...) Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam

desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter, e as relações de produção

novas e superiores não tomam jamais seu lugar antes que as condições materiais de

existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha sociedade.

(2008, p.48)252.

250

MARX, Karl. O Capital. Livro I, v. II, Capítulo XXIII: A Lei Geral da Acumulação Capitalista. Rio

de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. 251

No Livro I, encontramos o esclarecimento sobre o sentido e a razão histórica do trabalho para Marx

nesta conhecida passagem: “Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a

natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu

intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças (...) Atuando

assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza”. Esta

formulação passa a ser o eixo fundante de toda lógica marxiana. 252

MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Tradução e introdução de Florestan

Fernandes. São Paulo: Expressão Popular, 2008.

Page 160: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

160

A abordagem de tipo evolucionista sugerida neste e em outros excertos, em especial no

Manifesto de 1848, foi objeto de diversas considerações com destaque para aquelas formuladas

no contexto da II e III Internacionais Comunistas, em atitude de cotejamento direto não apenas

com O Capital, mas com obras de predominância historicista, como O 18 Brumário de Luís

Bonaparte e As Lutas de Classes na França de 1848 a 1850, por exemplo. Na leitura que fazem

dessas obras, os marxistas da II e alguns poucos da III Internacionais, reivindicam a linearidade

da história como razão para o desenvolvimento da sociedade humana, a partir das inflexões

evolutivas no âmbito das forças produtivas253

.

O mecanicismo decorrente dessas análises não encontra ressonância nem mesmo em

Marx, pois, em seus estudos maduros, deixa evidente que, embora as transformações evolutivas

no âmbito das relações de produção possam estar no cerne do desenvolvimento da sociedade

humana, a passagem de uma formação social a outra não implica no desaparecimento unívoco

de todas as características e relações socioprodutivas do modo anterior. Ainda que, de modo

residual, o velho permanecerá presente no novo, contribuindo não apenas para sua

caracterização como sociedade mais complexa, mas também como forma empírica de

sustentação de novos tipos de conservadorismo.

Lênin nos parece ser o marxista mais contundente na crítica ao determinismo-

evolucionista. Em Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, obra que já citamos, o

revolucionário russo identifica as principais características de uma nova etapa do

desenvolvimento capitalista que se anuncia marcada pelos altos níveis de concentração de

capital possibilitada pelos monopólios. Sua crítica contundente ao mito do desenvolvimento

capitalista vem quando assevera que a substituição do modo tradicional da economia calçada no

tripé produção – distribuição – consumo cuja finalidade é a manutenção da livre concorrência

pautada pela exportação de mercadorias pelo modo monopolista - imperialista sustentado na

circulação de capital, agudiza a desigualdade nos modos de desenvolvimento entre as nações (e

também no interior de uma mesma nação). Afirma:

253

Nesse sentido, consultar: HOBSBAWN, Eric J. História do marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1984.

Page 161: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

161

O que caracterizava o velho capitalismo, no qual dominava plenamente a livre

concorrência, era a exportação de mercadorias. O que caracteriza o capitalismo

moderno, no qual impera o monopólio, é a exportação de capital. O capitalismo é a

produção de mercadorias no grau superior do seu desenvolvimento, quando até a força

de trabalho se transforma em mercadoria. O desenvolvimento da troca, tanto no

interior como, em especial, no campo internacional, é um traço distintivo e

característico do capitalismo. O desenvolvimento desigual, por saltos, das

diferentes empresas e ramos da indústria e dos diferentes países é inevitável sob

o capitalismo. (LÊNIN, 1979, p. 88)254.

Assim, Lênin começa por explicitar não apenas a ideia força com a qual temos

trabalhado desde o início de nossas argumentações de que o desenvolvimento é imanente ao

capitalismo, como também evidencia a imanência da desigualdade nele. Vai mais além. Refere

que a fase monopolista do imperialismo capitalista se traduz politicamente na partilha do mundo

pelas grandes potências consolidando a dependência socioeconômica, política e cultural dos

países da periferia capitalista255

.

Outros marxistas, como Gramsci e Trotski, também contribuíram com a crítica marxista

do desenvolvimento capitalista. O primeiro, como também já vimos de modo panorâmico, ao

(re)construir a categoria de revolução passiva evidencia como a transição de uma formação

social para outra — analisando emblematicamente o caso italiano — se dá num efeito

simbiótico entre as características do modo antigo com as do modo novo, isto é, uma relação

entre revolução e restauração.

Já o segundo, tratando das particularidades da Rússia czarista, que unia em si mesma

setores industriais modernos e setores de baixo desenvolvimento de forças produtivas. Trotski

identificou tal processo como uma espécie de desenvolvimento desigual e combinado256

generalizável para países cujas condições históricas apresentassem as semelhanças

fundamentais.

As considerações de Lênin (1979) e as de Marx, expressas no livro III de O Capital,

antecipam as fases posteriores do capitalismo que, em escala global, levará sua tendência

254

Grifos nossos. LÊNIN, Vladimir. O imperialismo: fase superior do capitalismo. Rio de Janeiro:

Globo, 1979. 255

Nesse sentido, Lênin refere: “Ao falar da política colonial da época do imperialismo capitalista, é

necessário notar que o capital financeiro e a correspondente política internacional, que se traduz na luta

das grandes potências pela partilha econômica e política do mundo, originam abundantes formas

transitórias de dependência estatal. Para esta época são típicos não só os dois grupos fundamentais de

países - os que possuem colônias e as colônias -, mas também as formas variadas de países dependentes

que, dum ponto de vista formal, político, gozam de independência, mas que na realidade se encontram

envolvidos nas malhas da dependência financeira e diplomática (...). Este gênero de relações entre

grandes e pequenos Estados sempre existiu, mas na época do imperialismo capitalista tornam-se sistema

geral, entram, como um elemento entre tantos outros, na formação do conjunto de relações que regem a

“partilha do mundo”, passam a ser elos da cadeia de operações do capital financeiro mundial” (Ob. Cit.,

1979). 256

TROTSKI, Leon. História da revolução russa. v. I. Rio de Janeiro: Saga, 1967.

Page 162: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

162

expansiva às últimas consequências257

. O modo financista em que aparece na

contemporaneidade mantém o núcleo duro do desenvolvimento capitalista, qual seja, a

expropriação, e não elimina suas contradições essenciais, gerando crises cíclicas e sistêmicas

que requisitam o desenvolvimentismo como estratégia de restauração conservadora.

Na dinâmica interna das relações sociais capitalistas, na sua face monopolista-

financista, em cotejamento com seu movimento global estrutural, residem especificidades

históricas que nos permitem retomar a crítica ao desenvolvimento(ismo) tradicional e

contemporâneo, como forma de desmistificar a desigualdade estrutural anunciada por Lênin,

ancorada na livre circulação de capital. Assim, os complexos sociais fundamentais — Estado e

Sociedade Civil — são convocados como categorias essenciais à elucidação das dinâmicas do

desenvolvimento capitalista.

2.1 Estado e desenvolvimento

De todos os campos da teoria social, o campo que se filia à tradição marxista, sem

dúvida, é um dos mais fecundos em debates, quase sempre acalorados, sobre aspectos

específicos ou gerais dos fenômenos sociais a que os intelectuais se propõem a analisar. Na

década de 1950, ocorreu o conhecido debate internacional sobre a transição do feudalismo

para o capitalismo258

, em que tomaram parte Paul Sweezy, Maurice Dobb, H. K. Takahashi,

Christopher Hill, Georges Lefebvre, A. Soboul e Giuliano Procacci259

. Divergiam

fundamentalmente sobre os condicionantes essenciais da transição que levara ao fim gradativo e

processual do modo feudal de organização da produção.

O ponto de convergência entre eles está no fato de admitirem que o capitalismo

revoluciona não apenas as características fundamentais dos modos de produção que o

antecedem, como também se faz acompanhar de um padrão de sociabilidade que se difunde de

modo ágil e rápido. Portanto, ainda que não haja consenso sobre a “certidão de nascimento” do

capitalismo, é inegável que, desde que esse modo de produção se torna dominante, não

abandona mais suas inerentes estratégias de legitimação. Essas estratégias ganham espaço de

formulação e são disseminadas na instituição dos Estados burgueses.

No capitalismo tardio, em sua feição monopólica, as características genéricas ganham

ainda mais força e tornam naturais para as massas, pela dominação que exercem a burguesia e o

257

Na América Latina, a crítica marxista ao desenvolvimento capitalista pode ser encontrada em vários

autores, inclusive brasileiros, que vão desde os já citados Florestan Fernandes ou Celso Furtado; mas uma

contundência maior deste tema é verificada em José Carlos Mariátegui e Ruy Mauro Marini. 258

Grifo nosso. 259

HOBSBAWM, Eric. Do feudalismo para o capitalismo. In: A transição do feudalismo para o

capitalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

Page 163: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

163

Estado burguês, suas crises cíclicas alternadas pelos períodos de ondas longas expansivas, como

demonstrara Mandel260

.

No período entre guerras, nos países de capitalismo avançado, a difusão desse modo de

produção consolidou Estados sob o signo da democracia liberal de massas. Essa combinação

entre a base material de sustentação do capital com o tipo de Estado que legitima vem sendo

propalada como o último estágio possível de desenvolvimento da história humana261

.

No Brasil, desde os anos 1970 esse processo ideopolítico toma fôlego e se naturaliza

não apenas no reformismo e contrarreformismo como também nas características particulares do

desenvolvimento capitalista brasileiro como o patrimonialismo, o clientelismo, o fisiologismo

político, o mandonismo local, dentre outras expressões do poder de classe burguês.

Alvo de estudos, por parte de intelectuais dos mais variados campos do conhecimento, a

democracia liberal de massas, expressão de um tipo particular de Estado burguês, tem

ressaltado, em algumas produções, aquilo que parte dos autores identifica como sendo suas

benesses. Por vezes, ignoram seus limites civilizatórios, quando não muito caem na armadilha

do fim da história ou se rendem ao institucionalismo. Parte dessa guinada à direita deve-se –

pelo menos no entendimento de nossa argumentação – ao abandono gradual de

problematizações totalizadoras acerca do Estado capitalista tanto na ciência política quanto na

prática política. Mas não entendamos esse abandono como um esvaziamento completo.

Se é correto perceber que se abre tal lacuna, também pode ser correto observar que as

tendências do conhecimento pós-moderno preenchem o vazio com incursões sobre aspectos

particulares, imediatos e efêmeros sobre a democracia liberal e seus componentes constituintes.

De um lado, nota-se uma adesão ao pragmatismo do funcionamento da máquina estatal,

de modo a despolitizar o Estado e as relações sociais a ele inerentes, a exemplo das produções

de Bresser Pereira sobre reforma do Estado quando ministro do Presidente FHC262

, por outro

lado, voltam-se as atenções à supremacia do mercado, isentando-o, falaciosamente, de relações

260

Essas “ondas” referem-se aos períodos em que o capitalismo se apoia na extraordinária evolução das

forças produtivas, para ampliar sua concentração de modo desterritorializado. Nesse sentido, Mandel

afirma: “Essa expansão (boom do pós-guerra) tinha dado um impulso poderoso a um novo avanço das

forças produtivas, a uma nova revolução tecnológica. Propiciou um novo salto para a concentração de

capitais e a internacionalização da produção, as forças produtivas ultrapassando cada vez mais os limites

do Estado burguês nacional (tendência que começou a se manifestar desde o início do século, mas que se

amplificou consideravelmente desde 1948)”. (In: MANDEL, E. A crise do capital: os fatos e sua

interpretação marxista. São Paulo: Ensaios, 1990. p.11-12). 261

As teses que anunciam o fim da História são um bom exemplo. A versão de Francis Fukuyama é o

exemplo mais conhecido entre nós. 262

BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Crise econômica e reforma do estado no Brasil: para uma nova

interpretação da América Latina. São Paulo: 34, 1996.

Id. A reforma do Estado dos anos 90: lógica e mecanismos de controle. Cadernos do Mare n. 1, Brasília,

1997.

Id. Um novo estado para América Latina. Novos Estudos, n. 50, São Paulo: Cebrap, março de 1998.

Id. Reforma do estado e administração pública gerencial. 3. ed. Rio de Janeiro. Fundação Getulio

Vargas, 1999.

Page 164: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

164

com o Estado, tanto por parte dos liberais defensores do laissez-faire quanto dos críticos da mão

invisível, sustentando as construções teóricas pós-modernas, como dissemos.

Contudo, para nós, é no interior do Estado e da sociedade civil – aqueles que para

Lukács são os dois complexos sociais fundamentais, em relação – que se evidenciam as sínteses

da dinâmica social com precisão. Para Mészáros (1993), é no Estado “onde a super estrutura

política e jurídica na rede de inter-relações dialéticas entre a base material de uma determinada

sociedade e suas várias instituições e formas de consciência são localizadas”263

. E tais formas

não são alheias ao jogo que se estabelece entre as classes. Ao contrário. Poulantzas264

afirma

que as classes consubstanciam no Estado uma condensação de relação de forças que

condicionam a relação com a sociedade por meio do complexo produtivo (relações de

produção), as instituições, a política e a ideologia.

Desse modo, as análises, na perspectiva da totalidade social, são fundamentais para se

entender o Estado e, com isso, compreender a sociedade e suas formas de organização, como,

por exemplo, a democracia liberal de massas. É nesse sentido que Ianni (1989, p. 7) afirma:

A análise do Estado é uma forma de conhecer a sociedade. Se é verdade que a

sociedade funda o Estado, também é inegável que o Estado é constitutivo

daquela. As forças sociais que predominam na sociedade, em dada época,

podem não só influenciar a organização do Estado como incutir-lhe

tendências que influenciam o jogo das forças sociais e o conjunto da

sociedade265.

263

MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social: ensaios de negação e afirmação. São Paulo:

Ensaio, 1993. 264

POULANTZAS, Nicos. O estado, o poder, o socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000. No geral,

uma aproximação entre a concepção poulantziana de Estado como condensação de correlações de forças

às formulações que dão destaque ao caráter opressor do Estado em defesa da propriedade privada como as

de um Mészáros, ou mesmo de um Mandel, tende a ser vista, em um primeiro impacto, como a

aproximação “impossível” ou, no melhor dos casos, “eclética”. Contudo, do ponto de vista daquilo que

se observa na formatação dos Estados capitalistas pós-mundialização, vemos uma complexificação das

relações que se estabelecem entre as frações da classe burguesa, e, deste modo, complexificam-se também

as disputas entre os aparelhos privados de hegemonia na sociedade civil em um movimento simétrico,

recíproco, simultâneo às disputas que ocorrem em nível superestrutural, não como simples reflexos, mas

como parte constituinte dessas mesmas disputas, afinal, é no domínio da superestrutura que residem os

elementos que garantem a permanência e continuidade da hegemonia burguesa, como o espraiamento de

sua ideologia, por exemplo, ou no caso do “nacionalismo” como um componente imprescindível para o

“desenvolvimentismo” voltado à acumulação, portanto, ao reforço do caráter opressor do Estado, todavia,

um fenômeno de imanência relacional, pois o nacionalismo não pode ser entendido de modo descolado do

processo de lutas que engendram a formação de Estados nacionais e suas classes. Por isso, a aproximação

que efetuamos, com as devidas cautelas, não é um somatório linear, ao contrário, apenas reflete a busca

das considerações essenciais no pensamento de cada autor que demonstram nada mais que a dialética e a

contradição existente na realidade social tal qual ela é. Considerar de modo estanque tanto o Estado

quanto a sociedade civil implica retirar os antagonismos e a dinâmica dialética da realidade. No caso do

Serviço Social, uma análise com esses elementos se torna ainda mais complexa, na medida em que as

políticas sociais são convocadas como um elemento mediativo essencial, na relação que se estabelece

entre o Estado e as classes. No Capítulo 4 trataremos melhor desse assunto. 265

IANNI, Octavio. Estado e capitalismo. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Brasiliense, 1989..

Page 165: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

165

É nesse caminho que os Estados contemporâneos se instituíram em suas características

fundamentais, após a insurreição de 1789, resguardadas suas particularidades históricas

(econômicas, políticas, culturais, ideológicas, etc.), e que vem provocando mudanças nas

estruturas dos Estados burgueses até os dias atuais, e que nos serve para ratificar a construção

engels-marxista que o aponta como transitório.

Transitório na perspectiva da conquista de uma ordem societária alternativa à ordem do

capital, mas permanente, caso nos referenciemos aos padrões burgueses que preconizam o

desenvolvimento de suas sociedades de mercado. Assim, desenvolver-se é parte e condição de

existência do Estado burguês.

2.1.1 Desenvolvimentismo no Brasil

A palavra desenvolvimento, via de regra, está associada a processos evolutivos. O

dicionário Caldas Aulete nos informa que desenvolvimento é a “ação ou resultado de

desenvolver(se)”. Isso confere ao substantivo qualidade genérica que nos permite utilizá-lo

referido a qualquer contexto em que uma evolução se apresente. Isto é, permite utilizar o

vocábulo em inúmeras situações, mas todas elas referidas a processos e não a algo estanque. Por

isso, o termo desenvolvimento carrega consigo a propriedade de adequar-se a qualquer processo

da vida social, pois esta pressupõe um imanente evolver, ininterrupto.

Com a sacralização do capitalismo, o termo desenvolvimento foi sendo identificado e

associado cada vez mais com o contexto econômico da sociedade, de modo a levar o dicionário

a incorporar um segundo significado à palavra: “crescimento global de um país ou região,

acompanhado de melhoria das condições de vida da população”. É um sentido um pouco mais

preciso, diante do componente genérico, embora intransponível, que é o desenvolvimento para o

sistema de acumulação capitalista e dele não se dissocia; em suma, o desenvolvimento torna-se

um conceito econômico e não apenas um componente do nosso léxico.

Como conceito econômico, notamos que o dicionário não está se referindo ao

crescimento global de um país ou região, acompanhado de melhoria das condições de vida da

população de países ou regiões quaisquer. Refere-se, pois, a países que apresentam, no conjunto

de suas forças produtivas, condições adequadas para superar um modo social de vida vigente

considerado ultrapassado, e, pressionado pela evolução dessas forças e a luta de classes a ela

inerente, tende a substituí-lo por novos padrões produtivos e novas relações sociais,

configurando não apenas a evolução civilizatória que representa, mas também suas crises

estrutural e cíclica.

Deste modo, o termo desenvolvimento, associado à evolução social capitalista,

apresenta a tendência dominante da hipertrofia de seus aspectos civilizatórios, escondendo a

expropriação em que se baseia. Em níveis globais, justifica a barbárie no modo capitalista, mas,

Page 166: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

166

em síntese, se refere sempre a fissuras consideráveis nos modos vigentes de organização da vida

social. Para Ianni (1989, p. 97), trata-se de um processo de ruptura com o presente:

Em alguns casos a ruptura é total, como ocorre nas nações que optam pelo

desenvolvimento segundo o modo socialista de organização da produção. O

socialismo consubstancia a teoria, o movimento de ideias, a concepção da história

desta alternativa. Em essência, implica a negação plena do presente, isto é, do modo

capitalista de produção, em sua forma colonial, semicolonial ou realizada. Em outros

casos dá-se apenas uma interrupção ocasional, uma quebra transitória daquelas

relações da nação consigo mesma e com o exterior266.

Assim, podemos facilmente identificar a origem do desenvolvimento em ação como

conceito generalizado e condição inerente à evolução humano-social, o que inevitavelmente nos

leva ao desenvolvimentismo, nos marcos da revolução técnica e científica que marcou a

transição do século XVIII para o XIX, conhecida como Revolução Industrial. A partir daí, a

industrialização coloca-se como condição essencial para o desenvolvimento, sustentando as

teses de autojustificativa e autorreprodução do capitalismo, amparadas por medidas estatais

denominadas de desenvolvimentistas.

A instituição do capitalismo como modo de produção dominante, ratificada pela

industrialização e pelos ideais emergentes na insurreição burguesa, vem acompanhada de um

corolário político e ideológico que coloca o desenvolvimentismo como elemento constituinte

dos processos reprodutivos do capital e análogo ao desenvolvimento humano, portanto

civilizatório, e que, como tal, deve ser almejado por todos.

No limite, estamos falando do processo de acumulação de capital e as formas de

sociabilidade que lhe dão legitimidade, fulcro do desenvolvimento (IANNI, 1989) nas suas

formas históricas singulares — comercial, industrial, monopolista ou financista —, como

demonstraremos nos itens 3.1 e 3.2. Por isso, não é de se estranhar que os dicionários não se

furtem a circunscrever o sentido do desenvolvimento em geral – conjunto de melhorias que

levam ao progresso e ao bem-estar social geral – ao desenvolvimento econômico.

Desse modo, os problemas afetos ao desenvolvimento motivaram, desde sempre,

economistas e cientistas sociais em especial, não apenas a constituírem-no como tema de

interesse científico, como também a disputarem, na esfera política, as diferentes e divergentes

teses e empreendimentos sobre o tema, como herança e consequência das análises que se

fizeram desde os clássicos aos contemporâneos levantados aqui em todo o Capítulo I. No Brasil,

adquiriram notoriedade ao tratar das questões afetas ao desenvolvimento (o subdesenvolvimento

e o desenvolvimentismo) intelectuais como Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni,

266

IANNI, Octávio. Ob. Cit., 1989.

Page 167: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

167

Florestan Fernandes, Ruy Mauro Marini, etc., mas, sobretudo, Celso Furtado, em perspectivas

bastante diferenciadas, o que torna o debate sobre a temática ricamente heterogêneo. Este

último, chega a desenvolver, como núcleo duro de seu programa teórico, a tese de que o

subdesenvolvimento é um fenômeno histórico singular, sustentado num mito que propaga a

difusão generalizada do desenvolvimento como possibilidade e meta de uma racionalidade

coletiva moderna.

Para Furtado o desenvolvimento é um mito, pois, de um lado, os padrões capitalistas de

produção e consumo em que se sustenta esgota as disponibilidades de recursos necessários à

sobrevivência e, por outro, a maioria dos países da periferia capitalista é excluída dos benefícios

do crescimento quando ele ocorre no centro (...) não se elevando de forma significativa com a

industrialização (FURTADO, 1974)267

.

Contudo, isso não significa que Furtado tenha se omitido de pensar possibilidades para

um desenvolvimento de tipo brasileiro, ou mesmo latino-americano. Passando em exame os

momentos em que o Brasil apresenta ciclos desenvolvimentistas, veremos como esse intelectual

se destaca por suas contribuições, que não se limitam ao campo das elaborações teóricas,

alcançando mesmo a gestão pública e suas formas de materialização, na medida em que, mesmo

crítico, propõe estratégias para o desenvolvimento daquelas que a Cepal considerou como

nações de capitalismo periférico.

Do subdesenvolvimento ao desenvolvimentismo – o desenvolvimento em ação – o que

está em jogo é o conjunto de políticas que impulsionam o crescimento econômico com medidas

de predominância estatal em conjunturas políticas adversas. Por isso mesmo, o epicentro do

desenvolvimento capitalista reside na junção do desenvolvimento técnico-científico com a

alteração que provoca, na esfera das relações socioculturais em dado momento histórico.

Ciclicamente se repetindo em outros momentos, quando se apresentam essas mesmas condições,

equivalendo a novos tipos de transformações socioculturais e econômicas.

Além da industrialização, o desenvolvimentismo capitalista clássico admite, via de

regra, um intervencionismo estatal orientado para o crescimento – quase sempre com

investimentos em infraestrutura e medidas de ampliação do consumo -, e o nacionalismo.

Portanto, a identidade do desenvolvimentismo está ontogeneticamente vinculada ao capitalismo,

mas é na sua feição monopólica que mais se evidencia, pois se verifica em suas medidas uma

espécie de concertação entre o Estado e o mercado, em seus processos particulares de

reestruturação decorrente de suas crises cíclicas, que encontra, nesse mesmo capitalismo dos

monopólios, condições adequadas tanto de propagação de seu corolário ideopolítico quanto das

267

FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. Uma

tese diferente sobre a insustentabilidade do padrão capitalista de desenvolvimento também pode ser

encontrada em: MÉSZÁROS, István. Produção destrutiva e estado capitalista. São Paulo: Ensaio,

1989. O autor discorre sobre o que chama de “desperdício catastrófico”.

Page 168: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

168

formas de produção e reprodução social, capazes de parametrizar os mercados e os Estados268

.

Portanto, o desenvolvimento e as crises fazem parte de um mesmo insidioso esquema269

.

Em outros termos, se entendermos as crises estruturais como aquelas que causam

rupturas no modo sistêmico de evolução do capitalismo, por vezes até alterando posições no

jogo dos mercados mundiais, ou, como sintetizou Mészáros (2002):

Crise estrutural (ou sistêmica) refere-se a uma condição que “afeta a totalidade de um

complexo social em todas as relações com suas partes constituintes ou subcomplexos,

como também a outros complexos aos quais é articulada” (...) Põe em questão a

própria existência do complexo global envolvido, postulando sua transcendência e sua

substituição por algum complexo alternativo (...). Uma crise estrutural não está

relacionada aos limites imediatos, mas aos limites últimos de uma estrutura global.

E entendermos ainda que essas fissuras na ordem podem partir de funcionalidades (ou

áreas) específicas do sistema e que, em efeito cascata, podem provocar a erosão de todo o

complexo social em que se assenta, passaremos a compreender o desenvolvimentismo

(materializado no arcabouço das medidas desenvolvimentistas), como um elemento intrínseco

tanto das crises quanto das alternativas que se colocam à sua superação, pois, como enfatiza

Ianni (1989, p. 97)270

, o desenvolvimento nos moldes capitalistas é “apenas uma interrupção

ocasional, uma quebra transitória daquelas relações da nação consigo mesma e com o exterior”,

de natureza fundamentalmente econômicas.

Contudo, não basta haver medidas de incremento à economia para provocar o

desenvolvimentismo. Como aparato dos Estados de democracia liberal, é necessário que haja

sua legitimação social. Portanto, por ser, o desenvolvimentismo, um processo que sustenta a

ruptura com o passado nos dizeres de Ianni (1989), ele também é a “ideologia dessa ruptura

parcial, frustrada, das nações que optam pelo desenvolvimento capitalista” e se associa a

componentes ideopolíticos, de acordo com o que se lhe permite a conjuntura e a estrutura

históricas. Nesse sentido, Ianni (1989, p. 98) refere:

268

O keynesianismo é o melhor exemplo, mas podemos citar também o advento do fordismo e a

acumulação flexível como formas singulares de expressão do modo de produção capitalista, em suas fases

monopolista e financista, que causaram mudanças, quando emergiram, nos padrões socioeconômicos

vigentes, alterando o comportamento dos estados e dos mercados. 269

As crises cíclicas caracterizam-se também por apresentarem condições históricas de “reparo”. Isto é,

diferem das crises estruturais, pois estas estão afetas ao impulso sociometabólico autodestrutivo do

capital. Mandel tratou das crises cíclicas e Mészaros das crises estruturais. Desse modo, a leitura dos dois

marxistas é recomendável. 270

IANNI, Octávio. Ob. Cit., 1989.

Page 169: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

169

Implica uma concepção abstrata da história em que as contradições essenciais do

sistema submergem nas soluções verbais da ideologia burguesa. A industrialização de

tipo capitalista, como ocorre no Brasil, produziu-se com o desenvolvimentismo, que é

seu ingrediente ideológico fundamental. Nacionalista ou associado ao capital externo,

esse desenvolvimentismo faz parte da corrente de ideias característica dessa etapa de

transição do sistema econômico-social nacional. No processo de conversão do capital

agrícola, comercial e bancário em capital industrial, essa doutrina constitui-se como

uma visão prospectiva da civilização industrial.

Tradicionalmente, a doutrina Cepalina271

tem orientado o processo de desenvolvimento

dos países que lhe são membros, ditando, sobretudo, as medidas necessárias para o

empreendimento. Por isso, o desenvolvimentismo é praticamente um monopólio de seu léxico.

No “dicionário” da Cepal, o desenvolvimentismo é associado e, por muitas vezes,

confundido com algumas de suas medidas estruturais, que podem ou não estar associadas, ou

implementadas em conjunto ou em separado, com a própria industrialização, o intervencionismo

e protecionismo, o fomento estatal pela via da criação ou fortalecimento de empresas e bancos

públicos, políticas expansionistas orientadas para o crescimento e incentivo ao consumo,

aumento dos investimentos em infraestrutura, dentre outras medidas, galvanizadas

ideopoliticamente pelo nacionalismo em suas muitas variações.

Não é por acaso que essas medidas se confundem com o próprio desenvolvimentismo.

Numa visão, ainda que panorâmica, pelas experiências desenvolvimentistas mundo afora,

perceberemos que são medidas recorrentes, portanto, podem ser consideradas como célula

mater do desenvolvimentismo.

Como vimos, Octavio Ianni (1989) nos lembra que esse processo reveste-se de

componentes ideológicos que sustentam sua autolegitimação – condição essencial para sua

existência -, mas o autor também nos recorda que o papel do Estado é fundamental para que um

governo possa ser considerado desenvolvimentista, pois não há desenvolvimentismo sem uma

racionalidade configurada em forma de “política” que contemple as metas desejadas e espraie

para toda a sociedade que o cumprimento dessas metas é algo análogo à conquista do bem-estar

geral.

271

Refere-se à Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), órgão das Nações Unidas e

responsável por “monitorar as políticas direcionadas à promoção do desenvolvimento econômico da

região latino-americana, assessorar as ações encaminhadas para sua promoção e contribuir para reforçar

as relações econômicas dos países da área, tanto entre si como com as demais nações do mundo (...)

Promover o desenvolvimento social e sustentável”. Funciona também como “centro de excelência,

encarregado de colaborar com seus Estados-membros na análise integral dos processos de

desenvolvimento. Esta missão inclui a formulação, seguimento e avaliação de políticas públicas e a

prestação de serviços operativos nos campos da informação especializada, assessoramento, capacitação e

apoio à cooperação e coordenação regional e internacional”. Disponível em:

<http://www.eclac.org/brasil/>. Acesso em: 15 ago. 2012.

Page 170: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

170

Desse modo, estes empreendimentos não preenchem apenas a agenda governamental,

mas se tornam a razão de ser do próprio governo e de modo abstrato do próprio Estado. O autor

lembra, por exemplo, que o Programa de Metas (1956-1960), da era Kubitschek, não apenas

explicitava as medidas deliberadas do governo como florescia como “fenômeno ideológico”:

Na ocasião em que foi posto em prática esse programa, desencadeou-se uma ampla

campanha de formação e orientação da opinião pública, de modo a criarem-se as

“expectativas e disposições” coletivas para a realização do esforço nacional destinado

a implantar a indústria de base. Associa-se o progresso material com o bem estar

coletivo, poupança, investimentos produtivos e elevação geral do nível de vida (Id.,

ibid., p. 99).

Mas, no Brasil o refinamento político que une as estratégias do núcleo duro do

desenvolvimentismo, com as ideologias burguesas que o sustentam, antecedem a conjuntura de

Juscelino.

2.1.2 Momentos de síntese da acumulação capitalista: o desenvolvimentismo brasileiro

Em nossa história, o desenvolvimento peculiar de nosso capitalismo, no contexto latino-

americano, sempre foi alvo de estudiosos de nossa sociologia quanto de nosso pensamento

econômico, como reiteradas vezes afirmamos. Seja qual for a natureza da análise, a questão do

desenvolvimento não se subtrai e por uma motivação simples: o desenvolvimento capitalista

peculiar brasileiro carrega consigo a propriedade de constituir-se como eixo aglutinador do

debate sobre nossa economia política apenas pela inevitabilidade das categorias que congrega.

Não há um consenso sobre uma possível historiografia do pensamento econômico

brasileiro com viés desenvolvimentista, ainda que possamos apontar alguns esforços, nesse

sentido272

; assim, optamos por evidenciar os momentos em que projetos de desenvolvimento são

levados a cabo redirecionando a economia e inflexionando a política, o que denominamos

momentos de síntese.

Esses momentos, já muito estudados, colocam a produção socioeconômica -acadêmica

- científica brasileira no rol das produções significativas sobre o desenvolvimento capitalista

periférico superando o binômio desenvolvimento - subdesenvolvimento, ao evidenciar a miríade

de possibilidades de concertação capitalista em sua evolução a partir de nossas particularidades.

272

Celso Furtado é responsável pelas primeiras aproximações rumo à construção de um pensamento

econômico brasileiro. Contudo, na contemporaneidade, é possível considerar como análises

historiográficas do desenvolvimento capitalista brasileiro, com destaque ao desenvolvimentismo, os

trabalhos de SZMRECZANYI, Tamás; COELHO, Francisco da Silva (Orgs). Ensaios de história do

pensamento econômico no Brasil contemporâneo. São Paulo: Atlas, 2007 e LOUREIRO, Maria Rita.

50 anos de ciência econômica no Brasil: pensamento, instituições e depoimentos. Petrópolis: Vozes,

1997. Ainda que tais autores não se entendam como “desenvolvimentistas”.

Page 171: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

171

Da Colônia aos dias atuais, projetos econômicos tem balizado nosso desenvolvimento

de maneiras diferenciadas. Optamos por elencar esses momentos e não empreender uma

historicização – sem abrir mão do nível histórico da análise – para que possamos mais adiante

verificar o processo de rupturas e continuidades que marca o momento presente.

Nos momentos de síntese, estão arrolados os principais fatos e as ideias que lhes

conferem lógica interna e história própria, o que nos permitirá, a partir do exame dos grupos e

ambientes sociais em que são gestados, conferir importância ao produto sócio-histórico que dali

emerge mediado pelos agentes e pelas instituições em relação.

2.1.2.1 Expressões inaugurais: protoformas

No Brasil, a substituição de um padrão de desenvolvimento por outro, ancorada no que

se evolui nas forças produtivas, é um componente que podemos perceber, ao passar em exame

aquilo que os historiadores chamam de Movimentos de Rebeldia, já no período Colonial273

. Ou,

se tomarmos a defesa da industrialização, como mote principal desse desenvolvimento,

encontraremos em Alberto de Seixas Martins Torres, o Alberto Torres (1865 – 1917), ou em

Rui Barbosa de Oliveira, o Rui Barbosa (1849 – 1923), ideias precursoras de um

desenvolvimentismo de tipo brasileiro (FONSECA, 2004)274

.

Nas revoltas nativistas, ou nas revoltas emancipacionistas, dois elementos que se

tornarão típicos do desenvolvimentismo brasileiro se destacam, embora, nas segundas, de uma

forma mais acabada que nas primeiras: o nacionalismo e o liberalismo.

O confronto entre as perspectivas de desenvolvimento que emergem nas revoltas

emancipacionistas contra os comandos portugueses trouxe consigo a ideia da soberania nacional

e, com isso, confrontaram o principal empecilho ao desenvolvimento imposto pelos

portugueses: o avanço do trabalho livre. A incorporação do trabalho livre, bem como a

273

As lutas contra o controle monopólico da Coroa Portuguesa tinham a influência das insurreições

libertacionistas internacionais, mas, no Brasil, foram acrescidas de componentes locais. A Revolta de

Amador Bueno, em 1641, em São Paulo, é um marco no chamado movimento nativista, seguida depois da

Guerra dos Emboabas, em Minas Gerais (1707 a 1709); da Revolta dos Mascates, em Pernambuco (1710

a 1711); e dos Motins do Maneta, na Bahia (em 1711, houve dois motins, um em outubro e outro em

dezembro). Esses movimentos foram marcados por “reivindicações” muito pontuais contra a Coroa

Portuguesa, mas já demonstram divergência de interesses no que tange às formas de exploração da

riqueza brasileira ou, em outros termos, sobre o modo de produção colonial. Representam uma espécie de

ruptura, mesmo parcial, da fração da classe dominante naquele momento histórico. Às revoltas nativistas,

seguem os chamados Movimentos Emancipacionistas, que, ainda que fossem motivados por questões

pontuais, trouxeram consigo ideais de libertação mais claros. Muitos deles já difundindo a existência de

uma “identidade brasileira” incapaz de ser subjugada por Portugal. Destacam-se, a Conjuração Mineira,

de 1789; a Conjuração Carioca, de 1794; a Conjuração Baiana, de 1798; a Conspiração dos Suaçunas, em

1801; e a Revolução Pernambucana; de 1817. (In: FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo:

Edusp, 2003). 274

FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Gênese e precursores do desenvolvimentismo no Brasil. Revista

Pesquisa & Debate, v. 15, n. 2 (26), p. 225-256, Programa de Estudos Pós-Graduados em Economia

Política. Departamento de Economia da PUC-SP, São Paulo, 2004.

Page 172: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

172

superação dos modos absolutistas da Coroa Portuguesa implicava uma revisão nas regras do

comércio e da exploração de riquezas, ainda que o abolicionismo não tenha sido tema

consensual entre os liberais do Brasil Colônia e uma parte da mão de obra já não era

exclusivamente escrava.

O fato é que a emergência de um sentimento nacional legítimo surge pari passu com as

reivindicações de um capitalismo mais moderno, pautado nos postulados liberais avançados que

se assistiam em outros países. Esses postulados já pressupunham, além da industrialização (no

caso brasileiro, se tratava de uma defesa da indústria), o intervencionismo estatal como seu meio

indutor e o estabelecimento de relações mercantis internacionais de cunho expansionista.

O mercado interno – industrial e agrícola – seria, nessa lógica, a força motriz de uma

economia que deveria articular-se e não opor-se aos mercados complementares estrangeiros.

Evidentemente que essas ideias, no Brasil, não se tornaram de pronto hegemônicas, contudo, os

defensores da indústria de base275

tinham no nacionalismo um potente álibi ideológico, que

poderia ser fortalecido com o auxílio de um Estado mais liberal e menos absolutista.

Dos industriais nacionalistas mais radicais aos mais moderados, a defesa da

estruturação da indústria brasileira com o apoio do Estado relegara a segundo plano a política de

mão de obra e as chamadas condições institucionais, que incluem “os processos sociais,

políticos e culturais (...) essenciais à interpretação dos processos econômicos e, (...) os modos de

apropriação, as estruturas de dominação, as relações de classe, o imperialismo e suas

modalidades recentes” (IANNI, 1989, p. 11)276

, entre outras, não são sequer mencionadas.

Cipriano José Barata de Almeida (1762 – 1838), o Cipriano Barata, destaca-se como porta-voz

desse nacionalismo liberal influenciando a imprensa e a política de sua época277

e inaugurando

uma espécie de xenofobismo tupiniquim.

Corroborando suas ideias, Manuel Alves Branco (1797 – 1855), então ministro da

Fazenda implanta, em 1844, a considerada primeira medida protecionista brasileira. A Tarifa

Alves Branco, como ficou conhecida a medida, aumentou as taxas de importação de uma série

de produtos sem similares nacionais para 30% e os com similares nacionais para 60%,

despertando a ira de fornecedores europeus, sobretudo os britânicos, e da decadente aristocracia

brasileira, que passaria a pagar mais caro para ostentar seus bens importados.

275

Indústria de base é a que produz o material que sustenta outras indústrias ou empresas, que podem ser

as próprias máquinas ou mesmo a matéria-prima. 276

Ianni está se referindo ao processo de expansão controlada das forças produtivas, em que o mercado

impede a criação de uma espécie de capitalismo de Estado, de modo a favorecer que o intervencionismo

estatal incida no aumento exponencial da acumulação de capital. Na era Kubistchek, isso é mais visível,

contudo, no período a que estamos nos referindo, as características fundantes dessa dinâmica já estão

dadas. 277

Neste sentido consultar: LEITE, Renato Lopes. Republicanos e libertários. Pensadores radicais no

Rio de Janeiro (1822). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000; SODRÉ, Nelson Werneck. A história

da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966; e VIANNA, Hélio. Contribuição à

história da imprensa brasileira (1812-1869). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945.

Page 173: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

173

Na intenção de equilibrar a balança comercial, acaba por induzir a substituição de

importações ao mesmo passo em que desperta um ciclo monopolista de industrialização

aproveitado estrategicamente pelo barão de Mauá, como já nos é de conhecimento278

. Em 1860,

o governo cede à pressão externa e reduz as tarifas.

Embora praticadas em outros países, essas medidas foram consideradas avançadas

demais para a época, por alguns brasileiros, e, por isso, encontraram todo tipo de resistências. A

principal delas vinha da burguesia agrária que, embora também fosse signatária do

nacionalismo, não via nessas medidas a vocação para o desenvolvimento brasileiro

independente. Ao contrário, se havia um setor que deveria funcionar como mola propulsora do

desenvolvimento, este não era o industrial, mas sim o agrícola, verdadeira vocação de um país

com tantas riquezas naturais como o Brasil. O setor primário encontrava sua defesa em Alberto

Torres (1865-1917), Américo Werneck (1855-1927) e Eduardo Frieiro (1889 – 1982), só para

citar os mais conhecidos.

A marca do nacionalismo agrário consistia em enaltecer o setor primário como a

vocação da economia brasileira, em associação a certo ufanismo que glorificava a

natureza privilegiada do país. Assim, com base na ideia de vantagens comparativas279,

aconselhava-se a especialização primária devido ao fato de os recursos naturais serem

fator abundante, enquanto a mão de obra e capital eram escassos. Américo Werneck,

mineiro autor de diversas obras sobre temas econômicos publicadas principalmente na

última década do século XIX, na mesma linha de Alves Branco, não via oposição

entre agricultura e indústria, mas entendia que o governo deveria concentrar mais

atenção na primeira, condenando o crescimento da época do Encilhamento280 como

artificial e responsabilizando o protecionismo como causa da inflação (FONSECA,

2004, p.5)281.

Fonseca refere ainda que, além de Werneck, Eduardo Frieiro negava a urbanização, o

protecionismo e a inflação, aspectos que associava à sociedade industrial e que emergiam em

278

CALDEIRA, Jorge. Mauá: empresário do império. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 279

Grifo nosso. A teoria das vantagens comparativas foi formulada por David Ricardo (1772-1823) em

seu livro The Principles of Polítical Economy and Taxation. Para ele, os países não precisam possuir

iguais condições de produção para realizar transações no comércio internacional. Dois países podem

beneficiar-se com o comércio, se cada um tiver uma vantagem relativa na produção. Ou seja, a razão da

produtividade é determinante para o comércio e não os custos absolutos da produção. Os países

exportarão os bens produzidos com o trabalho interno de modo relativamente eficiente e importarão bens

produzidos pelo trabalho interno de modo relativamente ineficiente, ou seja, o padrão de produção é

determinado pelas vantagens comparativas. 280

Grifo nosso. Encilhamento é como ficou conhecida a política econômica de marechal Deodoro da

Fonseca, primeiro presidente de nossa República, que visou “superar” a falta de dinheiro circulante no

País com o incentivo à indústria e ampliação das formas de emissão de papel-moeda. O resultado não foi

só apenas a colocação no mercado de muito mais papel-moeda do que o necessário, sob o lastro da dívida

pública como também a desvalorização da moeda (mil réis) pelo surto inflacionário que criara. 281

FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Gênese e precursores do desenvolvimentismo no Brasil. Revista

Pesquisa & Debate, v. 15, n. 2 (26), p. 225-256, Programa de Estudos Pós-graduados em Economia

Política, Departamento de Economia da PUC-SP, São Paulo, 2004.

Page 174: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

174

detrimento da humana vida do campo. Alberto Torres, por seu turno, se dedicava ao mesmo

ufanismo, acusando o capital estrangeiro de “dilapidar o país e drenar suas riquezas” (Id., ibid.).

Alberto Torres foi um dos ideólogos mais importantes a influenciar a geração

nacionalista das décadas de 1920 e 1930, inclusive do Estado Novo, apesar de seu

anti-industrialismo. Em momento em que os nacionalistas dividiam-se entre esquerda

e direita em consonância à polaridade internacional entre comunismo e fascismo, ao

mesmo tempo em que vários movimentos artísticos eclodiam, todos marcados por

nacionalismos de diversos matizes – o Modernismo, a Antropofagia, o Pau-Brasil, o

Anta -, Torres sempre perfilou-se ao lado mais conservador, embora repudiasse

também o fascismo: qualquer receita para o Brasil não poderia vir de fora. Ufanista,

enaltecia as matas virgens, as riquezas naturais e a superioridade da vida do campo,

sugerindo que deveria “regressar o homem ao trabalho da produção – as indústrias da

terra”, pois o “Brasil tem por destino evidente ser um país agrícola: toda a ação que

tenta desviá-lo deste destino é um crime contra sua natureza e contra os interesses

humanos”. (TORRES, 1938, p. 214 apud FONSECA, 2004, p. 6)282.

Não demora muito para que os defensores do desenvolvimento pela via da

industrialização encontrem uma alternativa para acomodar seus interesses com os da burguesia

nacionalista agrária. Diante dos postulados da recém-proclamada República e dos

desdobramentos da crise do Encilhamento é inevitável a acomodação das frações de classe que

compunham o bloco no poder.

Alguns [defensores da indústria] como Serzedelo Correa, general paraense e Ministro

da Fazenda de Floriano Peixoto, mencionavam que o Brasil precisava romper sua

situação colonial, própria dos países exclusivamente agrários. Como a maioria dos

outros defensores da indústria, Correa não chegava a criticar a agricultura: defendia a

complementaridade entre esta e as atividades industriais, não propunha a substituição

de uma por outra (...) O grande vilão, objeto de críticas mais ásperas, era o comércio

(FONSECA, 2004, p. 7)283.

Mas Correa não é uma voz ressoante. Os defensores da indústria são muito mais

pragmáticos, embora recorram também a um tipo de nacionalismo como suporte ideopolítico

que não rejeita o capital estrangeiro, ao contrário, muitos deles propõe a associação dos capitais

nacional e estrangeiro como forma de alavancar a indústria (Id.).

282

TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro. Introdução a um programa de organização

nacional. São Paulo, 1938. 283

FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Ob. Cit., 2004

Page 175: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

175

A maior parte dos defensores da indústria lamentava a omissão dos governos e

propugnava maior intervencionismo, inclusive tarifas, mas julgava desaconselhável

medidas radicais que pudessem prejudicar as relações com os grandes centros que,

além de mercados consumidores, eram supridores tanto de bens de capital como de

financiamento, todos realisticamente lembrados como indispensáveis à

industrialização. (Id., ibid., p.8).

Podemos perceber aqui certa diferença entre esses republicanos “defensores da

indústria” e seus antecessores. As práticas do livre comércio e a lei das vantagens comparativas

são criticadas, sem a menor chance de conciliação entre as teses. O intervencionismo estatal em

defesa da indústria é admitido e defendido em instituições importantes como a Associação

Industrial do Rio de Janeiro ou no Senado da República284

. Criticam o xenofobismo indicando

que o País deve aprender com as experiências de outros países.

O pragmatismo desse grupo redunda também na defesa da revisão da política aduaneira

e, de certa forma, limita suas aspirações ao aprimoramento da dinâmica e dos processos

produtivos. Segundo Fonseca (2004, p.9), outro grupo é que demonstra preocupação com “o

crédito, com o déficit público e com os empréstimos como elementos indispensáveis para

alavancar a economia (...) e defendidos como política anticíclica, a la Keynes”. Estes são os

chamados papelistas:

Sua importância muitas vezes é negligenciada, pois os nacionalistas e defensores da

indústria são muito mais citados. Todavia não se deve subestimar sua importância,

pois os papelistas afrontavam um principio basilar da política econômica clássica: o

das finanças sadias, materializado pelo equilíbrio orçamentário. Enquanto os

intervencionistas discutiam quando e em que condições poderia ou não o Estado

intervir na economia, recorrendo a argumentos doutrinários ou axiológicos (...) os

papelistas rompiam em algo mais simples: na operacionalização da política

econômica, trazendo a baila menos os fins últimos da ação estatal e mais a forma com

que esta é executada. (Id., ibid., p. 9).

Por isso, nas protoformas do desenvolvimentismo brasileiro, vamos encontrar um

debate nada marginal sobre as diretrizes de conversibilidade da moeda, pois é na dinâmica da

conversibilidade que reside o único ponto de consenso entre as várias correntes que pelejam

pela condução do Brasil ao desenvolvimento: o equilíbrio das contas públicas285

, mas é nela

284

Fonseca lembra do Manifesto da Associação Industrial do Rio de Janeiro, que cita os Estados Unidos

como paradigma da convivência de um sistema protetor com o liberalismo de suas instituições, e lembra

também do discurso de Amaro Cavalcanti no Senado, em 23 de julho de 1892, que recorre a autores

clássicos como Adam Smith e Stuart Mill, mostrando que estes admitiam a intervenção governamental

pró-crescimento. 285

Fonseca (2004, p. 9) lembra também que os papelistas tiveram atuação importante no debate que se

fazia à época nas faculdades de Direito que polarizava “os jus-naturalistas, defensores do direito natural e

Page 176: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

176

também que está a origem da contenda. Os papelistas enxergam dificuldades em se manter o

padrão-ouro no Brasil, justamente por ser um País pouco monetarizado286

.

Souza Franco (ministro da década de 1850), o barão de Mauá, os viscondes de Cruzeiro

e de Ouro Preto, João Alfredo e o conselheiro Lafaiete estão entre os papelistas mais

destacados. Não radicalizam contra os padrões de conversibilidade da moeda, contudo,

defendem flexibilidade no uso do ouro como âncora, aumentando um pouco seu lastro, o que

difere, por exemplo, de Rui Barbosa, que negava qualquer regra de conversibilidade

(FONSECA, 2004). Em síntese, o autor afirma:

Para os metalistas, a prioridade da política econômica era a estabilização e a política

cambial — e, portanto, a definição da taxa de câmbio —, seu epicentro. Defensores

do padrão ouro, estabeleciam a relação entre política monetária e balanço de

pagamentos: metais preciosos ingressariam naturalmente no país se a economia fosse

saudável e qualquer oferta de moeda sem lastro causaria inflação. A política

monetária deveria ser subordinada à política cambial. Via de regra os metalistas

apoiavam-se nos grandes mestres da Economia Clássica, como Smith, Ricardo e Say.

A taxa de juros era entendida como fenômeno real, a lá Ricardo, dependente da taxa

de lucro. Maior oferta de moeda não alterava o nível de atividade (...). Já a

preocupação maior dos papelistas, dos mais moderados aos mais radicais, era com o

nível de atividade econômica. Sua pergunta mais frequente, qual o nível de oferta

monetária mais condizente com o ânimo dos negócios, consistia verdadeira heresia

para os metalistas. Mauá, um de seus primeiros defensores, defendia o que se

convencionou denominar “requisito da elasticidade”: a oferta de moeda deveria ser

flexível ou elástica a ponto de não interferir negativamente nas atividades produtivas.

Menos teóricos e mais pragmáticos, apresentavam-se como coerentes com o bom

senso: simplesmente o governo deveria ajudar, e não prejudicar a economia

(FONSECA, 2004, p.12).

Esse debate trata, na verdade, de uma disputa pelo deslocamento do epicentro que

permite controlar o equilíbrio econômico. Para uns, a taxa de câmbio, para outros — os

papelistas —, a taxa de juros. A baixa monetarização do Brasil, um País predominantemente

agrícola com uma forte cultura de entesouramento dificulta a circulação da moeda, assim:

de matriz liberal-iluminista e os positivistas” e que o orçamento equilibrado era, de fato, o único ponto de

consenso entre eles. 286

O padrão-ouro é como ficou conhecido o sistema monetário que destacava a relação entre a moeda e

os níveis de preço, obrigando os bancos a converter as notas bancárias por ele emitidas em ouro ou prata

conforme o desejo de seus clientes. Isto é, a moeda passa a ser conversível, sendo referenciada nas

reservas de ouro.

Page 177: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

177

O crescimento tornava-se a variável central da economia, uma vez que a política

cambial deveria subordinar-se à política monetária, e esta às necessidades impostas

pela produção. Assim, a conversibilidade era vista como uma medida artificial,

prejudicial ao ânimo dos negócios; o câmbio alto não deveria ser buscado por uma

conversibilidade artificial, mas pela prosperidade da nação. Daí decorria que as

dificuldades do balanço de pagamentos não deveriam ser enfrentadas com medidas

restritivas, mas com mais crescimento. (Id., ibid., p.11).

O autor reafirma que os papelistas, com as ideias aqui sumarizadas, representam um

capítulo importante da história do desenvolvimentismo no Brasil. Em certa medida, antecipam o

keynesianismo, mas são importantes também por

(...) romper com princípios básicos da teoria econômica convencional, afrontando

dogmas quase consensuais, como a conversibilidade e o papel passivo da política

monetária (...) por inaugurar uma concepção de política econômica que a torna

responsável pelo crescimento: o Estado poderia e deveria atuar como agente

anticíclico. Quebrada esta primeira barreira, no desenvolvimentismo ia-se além: a

tarefa era o crescimento de longo prazo, capaz de gerar mudanças estruturais de

maior vulto e reverter os péssimos indicadores sociais: o desenvolvimento. Embora

não se propusesse ainda medidas de envergadura próprias ao desenvolvimentismo do

século 20, como empresas estatais e bancos de desenvolvimento, enfocava-se por

primeira vez a produção como a variável essencial da economia, a razão de ser da

política econômica, subordinando a ela as políticas monetárias, cambial e creditícia.

Redefinir este papel do Estado, ampliando-o, era imprescindível para a emergência do

desenvolvimentismo. (Id., ibid., p. 11).

Todas as correntes — os nacionalistas, os defensores da indústria e os papelistas —

voltam-se fundamentalmente para a economia, mas é na política que buscam pôr em prática

suas ideias e ideais. Não há como ser diferente, pois mesmo os liberais mais radicais nunca

abdicam totalmente do Estado como um agente que faz parte do jogo. Sendo assim, na esfera

política, se dão as disputas entre os diferentes grupos, mas também entre protagonistas de um

mesmo grupo, apresentando, deste modo, as variações internas que aqui, de modo muito breve,

já apresentamos.

Ocorre que a esfera política brasileira nem sempre foi do modo como a conhecemos

hoje. E essas iniciativas inaugurais do desenvolvimentismo brasileiro encontram um ambiente

político estruturado de uma forma que influenciará as estratégias de desenvolvimento que se

sucedem, pois é responsável, ao mesmo tempo, por um dos maiores problemas que o

desenvolvimento brasileiro terá de enfrentar: as desigualdades regionais.

E isso não se dá apenas porque as regiões brasileiras desenvolveram-se de modo

desigual, mas também porque nossa história construiu uma geopolítica desigual amparada,

sobretudo na forte lógica estadualista presente na gênese da Republica e da Federação e, de

Page 178: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

178

algum modo, como espólio de um Estado patrimonialista, a exemplo das Capitanias

Hereditárias.

É nesse sentido que Fonseca (2004) destaca a importância de uma quarta corrente de

pensamento contida nas protoformas do desenvolvimentismo brasileiro: o positivismo. Segundo

o autor, essa corrente manifesta sua hegemonia no Direito positivo. Isto é, predominando, na

Primeira República, partidos estaduais, predominam também Constituições estaduais. Desse

modo, os positivistas, mesmo com diferenças internas, conseguem manter relativa unidade

ideológica na formatação dessas Constituições e de todo o direito delas decorrentes287

.

O positivismo político domina a cena nos grandes centros econômicos, como São Paulo,

Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, enquanto que, neste último, “através da liderança de Júlio

de Castilhos, tornou-se ideologia oficial do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) e da

Constituição Republicana estadual” (Id., ibid.).

Esta estabelecia a “ditadura científica” de Comte, com supremacia do Executivo, ao

retirar do Legislativo — a Assembleia dos Representantes —, o direito de fazer leis,

que caberia ao Presidente do Estado. Sua função, ao se reunir apenas dois meses por

ano, era fiscalizar as contas públicas e garantir a moralidade da administração, com

poderes sobre o orçamento, mas teoricamente, mais um órgão técnico que político.

(Id., ibid., p. 13).

Os positivistas, embora defendam como os liberais o direito de propriedade, o associam

à análise das circunstâncias. Isto é, em determinadas situações, o Estado é autorizado a intervir

em nome do bem comum. O exemplo típico é a estatização das estradas de ferro do Rio Grande

do Sul, no governo de Borges de Medeiros. A justificativa é de que as empresas estrangeiras,

além de cobrarem caro pelos serviços, não davam conta da manutenção e ampliação necessárias

à malha ferroviária (Id., ibid.). São responsáveis, de certa forma, pela difusão da lógica de

laicização do Estado, partindo do suposto de que cabe a este contribuir para o progresso de toda

a sociedade administrando a educação e a evolução moral do povo e dando o melhor exemplo

de lisura no trato da coisa pública, sobretudo, pelo princípio da impessoalidade.

287

O autor destaca como correntes internas do positivismo três vertentes: “O positivismo religioso (a

‘Religião da Humanidade’, apregoada por Comte ao final da vida, e que inspirou a criação de templos

positivistas); o científico (apregoando as vantagens do método indutivo, a crítica à metafisica e a

supremacia do saber científico sobre o religioso ou filosófico, com a criação de uma ciência social

positiva — a Física Social); e o político, aconselhando regras para a boa administração das finanças e da

política, o de maior influência no Brasil e na América Latina e, principalmente, na gênese do

desenvolvimentismo” (FONSECA, 2004, p.13). Quando tratarmos da relação entre o Serviço Social e o

desenvolvimentismo brasileiro, veremos que a influência dessa corrente para o estabelecimento e

manutenção dessa relação não se deu de modo segregário às três vertentes. Ao contrário, o Serviço Social

brasileiro fundamentou sua autojustificativa, em suas origens, no positivismo como um todo, unindo,

através da propagação de princípios morais, o positivismo religioso, com o cientifico e o político.

Page 179: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

179

Apesar de defensores do intervencionismo por razões pragmáticas, este estava

limitado, na prática pelo preceito das “finanças sadias”. Conquanto se afastasse do

laisses-faire, o positivismo frequentemente recorria a critérios éticos como regras para

a “boa administração”. Os governantes não deveriam gastar mais do que

arrecadassem, dando exemplo à sociedade. Da mesma forma, não deveriam se

comprometer com empréstimos, a não ser em casos excepcionais, bem como

deveriam ser extremamente cautelosos na concessão de crédito, pois poderiam

privilegiar grupos específicos ou pessoas particulares, quebrando a regra da

impessoalidade e neutralidade do Estado (id., p. 15).

Como antes, permanece sendo a defesa do equilíbrio das contas o ponto de

convergência entre os positivistas e os liberais que, de certa forma, utilizavam esse argumento

na ofensiva contra os papelistas.

O Rio Grande do Sul é citado por Fonseca (2004) como o caso emblemático da

implementação do positivismo político ortodoxo associado ao que de outras correntes

interessava à produção e ao “progresso”. Primeiro, a distinção, na esfera pública, entre público e

privado, era o mote que justificava medidas que romperiam com qualquer indício do passado

Imperial em que não se sabia exatamente onde terminava um e começava o outro, ao mesmo

tempo, o pragmatismo dessa corrente admitia o intervencionismo, como já dissemos, mas

limitado à austeridade que impunha racionalidades fiscal e tributária.

Essa corrente dedicou-se também, do ponto de vista político, a pensar a gestão pública

como reguladora de uma parte importante das relações capital - trabalho. Fica muito evidente a

influência de Comte (neste caso, associada ao funcionalismo durkheimiano), nessa regulação

expressa, sobretudo nas protoformas de uma legislação trabalhista, ainda que esta não fosse a

intenção dos governos positivistas, como o governo gaúcho, por exemplo.

Os positivistas reconheciam a “ordem capitalista” como geradora do abismo social

brasileiro tal qual os positivistas europeus identificaram na Revolução Industrial a origem e a

agudização das desigualdades. E tal qual seus similares europeus, viam no crescimento do

liberalismo ortodoxo — que passa ao largo das desigualdades como problema coletivo e

público, e para alguns sequer é um problema — as brechas para uma insurreição comunista. O

governo gaúcho de Borges de Medeiros utiliza uma tática populista que será adotada por Vargas

anos depois, quando recebe os grevistas da paralisação de 1917 e atende suas reivindicações no

intuito de dar exemplo para a iniciativa privada.

Page 180: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

180

Se o tratamento dispensado aos grevistas contrasta com a repressão violenta verificada

em outros pontos do país, isto não significa que este tenha sido o comportamento do

governo gaúcho em outras greves nem que houvesse uma predisposição do PRR para

legislar sobre direitos trabalhistas, em busca de sua universalização. O servir de

exemplo ao setor privado aponta justamente neste sentido: o Estado não deveria

intervir diretamente na “questão social”, como ocorreu no Brasil a partir de 1930, mas

lançar mão de instrumentos indiretos como a persuasão, para conscientizar e induzir

os empresários a uma atuação que, em vez de fomentar os conflitos, procurasse uma

harmonia entre capital e trabalho, em consonância as ideias de Comte e Saint-Simon

(id., p. 16-17).

O curioso é que a bancada do PRR na Câmara Federal posicionava-se contrária à

regulamentação do trabalho, exceto para acidentes de trabalho, proteção às mulheres e

“menores”. Essa bancada tinha como um de seus membros mais proeminentes Getúlio Vargas.

Fonseca (2004) resume a importância do positivismo para a formação do

desenvolvimentismo brasileiro, pois este:

pragmaticamente ampliava a agenda do Estado, aceitando sua participação quando

houvesse “necessidade social” — expressão ampla o suficiente para abranger o

próprio desenvolvimento econômico e acolher suas principais propostas (...) por

acenar a um futuro a ser buscado, com a história correndo a seu favor — daí

progressista —, ao entendê-la como um processo evolutivo e conclamando os

governantes para sua construção. Assim, mais que com ideias específicas, como o

nacionalismo e a defesa da indústria, o positivismo contribuiu para algo mais

sofisticado e definidor, que é uma mudança de postura dos governantes, pois supunha

uma visão globalizante do processo histórico, a qual lhe dava um sentido (id., p. 17).

Demonstra ainda, o autor, que o mesmo Vargas que na bancada federal de seu partido se

posicionou contrário às concessões trabalhistas legislativas, muda a postura quando assume a

presidência do Estado gaúcho, em 25 de janeiro de 1928, e promove habilidosamente uma

concertação entre as “quatro correntes formadoras do desenvolvimentismo”288

o que

inevitavelmente implica também uma nova concertação das relações entre Estado, economia e

sociedade (ibid.). Propalada a ideia de que a razão da existência de um país (ou de um estado,

nesse país) é desenvolver-se, estabelecem-se, assim, as bases justificadoras do fortalecimento do

Estado289

. Torna-se legítima a primazia do Estado ante a economia e a sociedade. Primazia que,

como se nota em alguns interregnos de nossa história, se confunde com autoritarismo e

possibilita a manutenção de políticas econômicas de desenvolvimento, mas altera as bases

288

Os nacionalistas, os defensores da indústria, os papelistas e os positivistas. 289

Vargas tentará outra articulação na esfera política, quando se colocará a Washington Luís como

alternativa à contenda entre São Paulo e Minas Gerais, na disputa pela indicação à Presidência da

República, mas não terá êxito.

Page 181: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

181

políticas democráticas e organizativas do País, que é exatamente o que Vargas fará em seus dois

governos como Presidente da República.

Vargas, para acomodar interesses, dilui características das correntes ideopolíticas

mantendo o que lhes era mais caro naquele momento ou levando-as a concessões. Consegue

difundir o desenvolvimento como um objetivo maior e de responsabilidade de todos. Assim,

inaugura um fenômeno novo com essa concertação

(...) pois ao abandonar os princípios do orçamento equilibrado, da parcimônia com

relação a crédito e a empréstimos e, inclusive, ao defender o aumento cada vez maior

da presença do Estado na organização dos produtores e dos trabalhadores, fatalmente

não se pode mais falar em positivismo. As regras moralistas do “conservar

melhorando” e a evolução gradual do progresso vão sendo substituídas ou adaptadas

para se conciliarem com o objetivo maior do desenvolvimento. Este vai se tornando

um fim em si mesmo: esquecem-se os velhos dogmas em prol das exigências impostas

pela “complexidade da vida social”: ou seja, precisavam-se nova ideias, pois se estava

em nova época. O desenvolvimentismo, com isto, constrói sua imagem de

modernidade e contemporaneidade, propondo-se inserido e à frente de seu tempo (...)

(ibid., p. 17)290.

Seu discurso é impregnado de mensagens subliminares, que inflam pelo otimismo no

futuro e, ao mesmo tempo, agradam as correntes. Por exemplo, a substituição do progresso

positivista pela ideia de “marcha pelo desenvolvimento” não desagrada aos positivistas, ao

contrário, agrega ação ao seu sentido, o sentimento de que algo está acontecendo. Do mesmo

modo, o recurso ao termo “civilizador” era um forte apelo que o credenciava a classificar como

atrasado qualquer pensamento ou ação que impedisse a marcha.

Com isso, metamorfoseiam-se o positivismo e o papelismo. A ortodoxia do segundo

ancorada na ideia de “propugnar meio circulante para fomentar os negócios da lavoura” ou

“estimular as contrações da produção resultantes dos ciclos econômicos” não são mais unívocas

(id.). Antes, passam a compor o corolário do objetivo maior de todos que é o

desenvolvimentismo, admitindo para isso o intervencionismo quase irrestrito do Estado.

290

Em mensagem à Assembleia de Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, em 1928, Vargas

declara: “É preciso amparar a produção, estimular a indústria, desenvolver a circulação de riqueza,

disseminar a instrução, cuidar do saneamento público rural e urbano, facilitar a exploração de terras,

desenvolver a agricultura, melhorar a pecuária, desbravar o caminho para a marcha do Rio Grande do Sul,

no sentido de sua finalidade civilizadora”. (VARGAS, 1928, apud FONSECA, 2004, p. 18).

Page 182: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

182

A noção de uma política econômica heterodoxa, desvinculada das regras clássicas,

justificava-se frente o objetivo maior do desenvolvimento, associando um

instrumental de curto prazo para viabilizar o projeto de longo prazo (...) a superação

do papelismo se dá com o próprio abandono do padrão ouro a partir da I Guerra e da

crise de 1929. Como ser “papelista” sem existirem metalistas? A ortodoxia, em

matéria de política econômica, recorrerá a outros argumentos para afirmar pontos

como a neutralidade da moeda, a passividade da política monetária e as regras de

equilíbrio orçamentário e de balanço de pagamentos. Os adversários serão outros.

Polemizará, a partir daí com os desenvolvimentistas, como demostram os debates de

Roberto Simonsen com Gudinn, a partir da década de 1940, ou mesmo a controvérsia

sobre monetaristas e estruturalistas sobre inflação, nas décadas seguintes (id., p. 18).

O discurso conciliatório de Vargas não deixava de dar a devida importância àquilo que

ele considerava, na época, como essencial a uma política econômica desenvolvimentista: o

crédito291

. Não havia, não só no Rio Grande do Sul, mas em todo o Brasil grandes defensores do

padrão ouro como antigamente, sobretudo, em decorrência da crise que eclodiria em 1929, mas

que já começava a mostrar sinais de aproximação. Com isso, Vargas fez o que popularmente

pode ser ilustrado como “matar dois coelhos com um único golpe”: justificava o

intervencionismo sustentado na heterodoxia econômica e favorecia o crédito como meio de

superar os limites do crescimento:

291

Fonseca (2004) cita que, em 1927, Vargas escreve no Correio do Povo (3/12/1927, p. 2) o seguinte

texto: “É um conceito vulgar que se impõe como um aforismo. Todo o desenvolvimento econômico deve

ter por objetivo tomar a riqueza abundante pelo trabalho e ensinar o homem a usar essa riqueza pela

cultura. Mas, se o dinheiro metálico é a medida dos valores, ele, no conceito corrente dos economistas,

pela escassez de seu volume e pelas dificuldades de sua condição física, já não satisfaz à exigência do

progresso econômico. Com a imposição da própria necessidade, surgiu um elemento imaterial destinado a

atingir os limites da flexibilidade, que é o crédito. Ele se expressa por um estado de confiança e segurança

econômica. A relação mercantil, diz um financista moderno, criou a operação sem dinheiro pela simples

promessa de pagamento, que, por sua vez, se converte em riqueza, estimulando o trabalho e se

transmutando em novos valores”.

Page 183: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

183

Indo além do discurso, a importância do crédito e do papel do Estado no fomento à

produção materializou-se com a criação do Banco do Estado do Rio Grande do Sul

em 22 de junho de 1928 (...). Este deveria assumir o papel de estímulo às atividades

produtivas, ter uma “organização mais ampla de um banco de Estado” 292 . Sua

finalidade era “fazer a defesa de nossa produção, constituindo um propulsor da

riqueza e do progresso” (id., p. 18).

Operando uma lógica simples, a criação do banco estadual tem também efeito simbólico

importante. Os bancos estaduais já estavam servindo em São Paulo, Minas Gerais e no Espírito

Santo — para citar os mais importantes da época — como agentes financeiros fundamentais no

apoio à oscilante produção, sobretudo a cafeeira. No Rio Grande do Sul, já nasce com o intuito

de fomentar financeira e economicamente atividades produtivas diversas e ainda agir no

mercado de capitais modestamente.

Pela proposta do governo, o banco deveria contar com uma carteira hipotecária e uma

carteira econômica. À carteira hipotecária caberia, dentre outras incumbências,

conceder empréstimos aos produtores em prazo de até 30 anos, tendo como garantia

suas propriedades, além de financiamentos de curto prazo de capital de giro, de

armazenamento e venda da produção. Já a carteira econômica caberia realizar

empréstimos sobre warrants 293 e sobre notas promissórias para agricultores,

pecuaristas e municípios, além do próprio Estado (id., p. 19).

As medidas arroladas vão se configurar mais tarde como de um núcleo duro do

desenvolvimentismo, na sua fase de implantação nacional, com Vargas na Presidência da

República. Muitos historiadores identificam uma associação de populismo e nacionalismo no

292

É a protoforma do que se poderia chamar de “banco de desenvolvimento”. Os bancos de

desenvolvimento, tal qual os conhecemos hoje, serão aprimorados, no Brasil, após a implementação de

medidas para estancar os efeitos da crise de 1929. A definição corrente de banco de desenvolvimento é:

“Instituições financeiras controladas pelos governos estaduais, e têm como objetivo precípuo

proporcionar o suprimento oportuno e adequado dos recursos necessários ao financiamento, a médio e a

longo prazos, de programas e projetos que visem a promover o desenvolvimento econômico e social do

respectivo Estado. As operações passivas são depósitos a prazo, empréstimos externos, emissão ou

endosso de cédulas hipotecárias, emissão de cédulas pignoratícias de debêntures e de Títulos de

Desenvolvimento Econômico. As operações ativas são empréstimos e financiamentos, dirigidos

prioritariamente ao setor privado”. (Resolução CMN 394, de 1976). Disponível em:

<www.bcb.gov.br/pre/composicao/bd.asp>. Acesso em: 31 ago. 2012. 293

Warrant, no mercado de capitais, é um título que garante ao seu titular o direito (não a obrigação) a

comprar um determinado ativo, ao qual está subjacente, a um preço preestabelecido (preço de exercício,

ou strike price) e numa data preestabelecida (data da maturidade). Ou seja, o warrant é um caso particular

de opção. Trata-se, portanto, de uma garantia que permite exercer um direito conferido pelo warrant, uma

opção não padronizada. O ativo subjacente pode ser ações, índices de ações, obrigações, taxa de câmbio

ou futuros. O preço de exercício é o predeterminado. A data de maturidade (vencimento) é a data de

exercício do direito de compra ou venda (de acordo com o tipo de warrant). No entanto, há tipos de

warrants que permitem um exercício anterior à data da maturidade (warrants americanos).Warrant é uma

palavra anglo-saxônica que significa razão, justificação, autoridade, prova, autorização legal, mandado de

captura, garantia, penhor, ordem de pagamento, certificado ou diploma. Disponível em:

<www.thinkfn.com/wikibolsa/Warrants>. Acesso em: 31 ago. 2012 .

Page 184: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

184

discurso e na postura varguistas, já sentidos em sua atuação à frente do governo gaúcho,

todavia, como já evidenciamos, o arranjo que promove entre distintas correntes ideopolíticas lhe

confere um uso particular do sentido de populismo e de nacionalismo. A criação do banco

gaúcho, por exemplo, mostra que embora

(...) [a criação do Banco]294 possa servir como símbolo de uma nova postura do

Estado com relação a economia, não se pode associa-la a uma ideologia nacional

radical. Ao contrário, a integralização de seu capital inicial contou com renegociação

de empréstimos externos com a Compagnie Française du Port de Rio Grande do Sul

de 67.933.000 francos (US$ 2,7 milhões de dólares) e de Labenburg, Thalmann & Cia

Ltda, contraídos em 1921 e 1926, respectivamente de US$ 7,88 milhões e de US$

20,5 milhões. Reafirmava-se o nacionalismo pragmático dos precursores da defesa da

industrialização, o qual via de regra considerava como bem-vindo o capital

estrangeiro que viesse colaborar para a realização do projeto (id., p. 19).

A experiência gaúcha, embora não encontre muitas citações nos compêndios que tratam

do desenvolvimentismo nacional pode, como fizemos, ser tomada como exemplo mais factível

de como se foram criando condições para a evolução não só de um ideário, mas de políticas

desenvolvimentistas, o que, num amplo exercício de generalização, pode demonstrar aspectos

importantes do desenvolvimento do próprio capitalismo brasileiro. Nessa história também se

encontram traços embrionários das experiências que se seguiram nos 50 anos seguintes, com o

primeiro e o segundo governo de Vargas.

Se sairmos da experiência gaúcha, é mais comum encontrarmos referências que tratam

da transição do modelo agrário-exportador para o de industrialização, certificadas a partir da

produção cafeeira concentrada no sudeste brasileiro, sua crise, o modelo de substituição das

importações até chegarmos ao Estado Novo, e, somente a partir daí, o reconhecimento formal de

grande parte dos historiadores do início de nossa história desenvolvimentista.

Mas essa é muito mais uma escolha afeta à necessidade de recorte temporal do que

necessariamente a negação de protoformas desenvolvimentistas, numa regressão maior de

tempo, sem prejuízo do caráter relevante que a crise cafeeira e seus desdobramentos adquirem

em nossa história. Para que possamos traçar um quadro mais geral, optamos por abordar ambos

os tempos e processos.

294

Grifo nosso.

Page 185: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

185

2.1.2.2 A crise do café

A cafeicultura foi um dos pilares mais importantes de sustentação da economia

brasileira, desde 1840295

. A euforia em torno da produção desse produto levou a um caminho já

conhecido dos capitalistas que ascendem quando se aquecem determinados mercados: produzir

mais do que se pode vender. Dinâmica que acaba por demonstrar a fragilidade e os limites da

Lei de Say. O Brasil, com a vastidão de suas terras — e a concentração nas mãos de poucos —

tinha uma capacidade muito maior de produzir do que a dos compradores consumirem. A não

expansão do mercado consumidor internacional (já que a produção estava quase inteiramente

voltada para a exportação) leva não apenas à queda dos preços como também ao desequilíbrio

no balanço de pagamentos.

Como parte da solução do problema, uma articulação entre capitais — bancário,

estrangeiro e agrícola — foi pensada. Isto é, os bancos estaduais ficavam autorizados a contrair

empréstimos no exterior e comprar parte da produção excedente. Alguns autores, como Neto

(2004)296

, identificam esse momento como de incentivo à expansão e criação de bancos

estaduais, como f ocorreu com os bancos de São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo.

Mas essa medida deu apenas um fôlego momentâneo à crise, que passou a se agravar

com os impactos da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918). A criação do Instituto do Café foi

uma tentativa de apoiar com fomento e regulação a atividade cafeeira que não estancava seu

declínio. Países como os Estados Unidos, França, Itália, Holanda e Alemanha, que

representavam 84% do mercado consumidor de café brasileiro, diminuíram ou cancelaram suas

compras, não apenas pela crise, mas pela qualidade do café brasileiro, que caía. Para se ter uma

ideia, em 1929, os produtores brasileiros ainda estavam exportando a safra de 1927, enquanto

que a safra de 1928 ficara estocada. Essa experiência demonstrava a todos que pudessem

admitir, a irracionalidade da falta de planejamento com vistas a equilibrar oferta e demanda297

.

Se a situação brasileira fosse um caso isolado, provavelmente empréstimos estrangeiros

dariam conta de sanar o caos, ainda que isso aumentasse nossa dependência. Mas esse não era o

cenário mundial. Em outubro de 1929, ocorre uma das mais drásticas quedas nas Bolsas de

Valores em Wall Street levando à bancarrota milhões de cidadãos americanos298

.

Com isso, o governo brasileiro tem recusado pelo governo norte-americano um

empréstimo de US$ 50 milhões, valor para ser utilizado como apoio aos cafeicultores. A

295

No final do século XIX, o Brasil já era considerado o principal produtor d café, responsável por ¾ das

exportações mundiais (SECURATO, 2007, p. 233). 296

NETO, Yttrio Corrêa da Costa. Bancos oficiais no Brasil: origem e aspectos de seu desenvolvimento.

Brasília: Banco Central do Brasil, 2004. Disponível em:

<www.bcb.gov.br/htms/public/BancosEstaduais/livros_bancos_oficiais.pdf>. Acesso em 31 ago. 2012. 297

Nesse sentido, pode-se consultar: FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Cia

Editora Nacional, 2003. Em especial, a quinta parte: Economia de Transição para um Sistema Industrial. 298

O dia 24 de outubro de 1929 ficou conhecido como a quinta-feira negra.

Page 186: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

186

alternativa veio de uma companhia privada, a Schroeder and Company, que concedeu

empréstimo de US$ 10 milhões, ao Banco do Estado de São Paulo, para serem utilizados no

Instituto do Café, como tentativa de estancar a crise dos fazendeiros paulistas. Paliativa, a

medida não evita o colapso social que se segue. Há registros de todas as ordens de assassinatos,

suicídios, extorsões, cometidos por burgueses em declínio repercutidos também nas classes

trabalhadoras urbana e rural que só viam aumentar o desemprego e a pauperização299

.

Esse cenário econômico repercute no cenário político influenciando a política do café-

com-leite. De acordo com essa política, os estados de São Paulo e Minas Gerais se revezariam

na indicação do Presidente da República, desde o Pacto de Ouro Fino, de 1912. Como o paulista

Washington Luís era o presidente em exercício, o próximo seria o mineiro Antônio Carlos

Ribeiro de Andrada, contudo Luís insiste na indicação de seu afilhado político Júlio Prestes,

num momento em que São Paulo não estava tão seguro em sua pujança econômica, com a crise,

o que abre brecha para Getúlio Vargas, que até então parecia ser aliado de Luís, pois fora seu

ministro da Fazenda até o final de 1927, quando deixa o governo para assumir a presidência do

Estado do Rio Grande do Sul e se destacar na cena política nacional.

Vargas decide concorrer à Presidência da República por uma aliança entre mineiros e

gaúchos, que recebe o nome de Aliança Liberal. Em seu programa, a Aliança mantinha

compromissos políticos e ideológicos com as oligarquias regionais e acenava também à classe

média. Propunha um incentivo à produção nacional, que não se reduzisse ao cultivo do café e

,num rompante populista, confrontavam o descaso de Washington Luís com a “questão social”,

afirmando que esta era um problema que deveria ser enfrentando pelo poder público e não pela

polícia, como Luís afirmara em discurso recente.

Ainda assim, a força da oligarquia cafeeira, associada ao governo federal, mesmo que

descontente com ele, elege, em 1o de março de 1930, Júlio Prestes, gerando indignação em

vários estratos da oposição, com destaque para um grupo de tenentes-civis que passariam a se

organizar para resolver o que consideravam impasse, através da luta armada. A morte de João

Pessoa, governador da Paraíba, por João Dantas, seu adversário político, é apontada por

diversos historiadores como o estopim da Revolução de 1930, motivada pelos insatisfeitos com

o governo e que coloca Vargas no poder em 3 de novembro desse mesmo ano, marcando o fim

da Primeira República.

299

No Rio de Janeiro, a indústria Oswaldo Tardim & Cia decreta falência, acompanhada de inúmeras

outras empresas tradicionais da época. Em São Paulo, o empresário Abelardo Laudel de Moura, de 28

anos, tenta matar a esposa com uma navalha, mas não consegue. Ainda assim, degola o filho de 2 anos e a

filha e, em seguida, se suicida, motivado pela perda de seus bens com a crise. A tragédia ficou conhecida

como o crime da Rua Piauí, bairro de Higienópolis. Há muitos outros relatos que mostram o caos que se

instalou nesse contexto de crise.

Page 187: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

187

Um novo tipo de Estado nasceu após 1930, distinguindo-se do Estado oligárquico não

apenas pela centralização e pelo maior grau de autonomia como também por outros

elementos. Devemos acentuar pelo menos três dentre eles: 1. a atuação econômica,

voltada gradativamente para os objetivos de promover a industrialização; 2. a atuação

social, tendente a dar algum tipo de proteção aos trabalhadores urbanos,

incorporando-os, a seguir, a uma aliança de classes promovida pelo poder estatal; 3. o

papel central atribuído às Forças Armadas — em especial o Exército — como suporte

da criação de uma indústria de base e, sobretudo como fator de garantia da ordem

interna. (FAUSTO, 2003, p. 327)300.

Tentando juntar estes elementos em uma síntese, poderíamos dizer que o Estado

getulista promoveu o capitalismo nacional, tendo dois suportes: no aparelho do

Estado, as Forças Armadas; na sociedade, uma aliança entre a burguesia industrial e

setores da classe trabalhadora urbana. Foi desse modo, e não porque tivesse atuado na

Revolução de 1930, que a burguesia industrial foi promovida, passando a ter vez e

força no interior do governo. O projeto de industrialização (...) foi, aliás, muito mais

dos quadros técnicos governamentais do que dos empresários (id. p., 327)301.

2.1.2.3 A Era Vargas

A Era Vargas, como ficou conhecido o período em que Vargas esteve no poder por 15

anos, portanto de 1930 até 1945, marca um ciclo importante da história do desenvolvimentismo

brasileiro. A estratégia de incentivar a diversificação das atividades produtivas foi aos poucos

mostrando resultados, ao mesmo tempo em que Vargas consegue conciliar-se com a oligarquia

cafeeira federalizando, por exemplo, os problemas do café quando transfere as

responsabilidades do Instituto do Café do Estado de São Paulo para o Conselho Nacional do

Café.

A estratégia de substituição de importações, embora não seja criação do legado

varguista, assume nesse momento uma expressão particular para o projeto de desenvolvimento.

A crise de 1929 dificulta as importações, ao mesmo tempo em que encontra uma indústria de

base com sinais de expansão, sobretudo, no eixo Rio-São Paulo e uma capacidade ociosa de

vários setores, principalmente o têxtil. Contudo, tais dificuldades não atestam a

desintensificação industrial. Ao contrário, as taxas de crescimento anual da indústria seguem

superando o crescimento da agricultura (FURTADO, 2003)302

. (Tabela 1).

300

FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2003. 301

Id., ibid. 302

FURTADO, Celso. Ob. Cit., 2003.

Page 188: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

188

Tabela 1 - Taxas anuais de crescimento econômico – Brasil – 1920 a 1945

Anos Agricultura Indústria

1920 – 1929 4,4% 2,8%

1933 – 1939 1,7% 11,2%

1939 - 1945 1,7% 5,4%

Fonte: DINIZ, Eli. Empresário, estado e capitalismo no Brasil 1930-1945, p.67. Apud FAUSTO, Boris. Ob. Cit., 2003.

As taxas de crescimento anual da indústria nos permitem entender melhor o processo

de industrialização posterior a 1930. Elas indicam um considerável avanço entre 1933

e 1939 e um ímpeto menor entre 1939 e 1945. Isso significa que a indústria se

recuperou rapidamente dos anos de depressão iniciados em 1929, apesar de não se

poder falar de uma consistente política industrializante, por parte do governo.

(FAUSTO, 2003, p. 391).

A não renovação do equipamento industrial e as perturbações no comércio

internacional, resultantes do início da Segunda Guerra Mundial, concorreram para que

as taxas de crescimento caíssem entre 1939 e 1943. Lembremos porém que esse foi

um período importante, do ponto de vista qualitativo, para a sustentação do processo

de industrialização e sua expansão no após-guerra (Id., Ibid.).

Mas a intenção da Aliança, já anunciada na campanha, de diversificar a produção para

além da prioridade que se dava ao café, transforma-se em realidade, sobretudo, numa produção

agrícola voltada também para o mercado interno. O algodão, por exemplo, aumenta sua

importância devido ao incentivo que se oferta à indústria têxtil e a produção de arroz, feijão,

carne, açúcar, mandioca, milho e trigo sobe de 36%, em 1925-1929, para 48,3%, entre 1939 e

1943, no valor total das lavouras brasileiras.

Também como parte do núcleo duro dessa primeira fase do desenvolvimentismo

varguista, os investimentos em infraestrutura não passaram ao largo das estratégias do governo.

Com a Vale do Rio Doce, a Cia. Siderúrgica Nacional, entre outras empresas e medidas, a

diversificação das atividades industriais foi impulsionada, fazendo com que novas atividades de

base, como metalurgia, mecânica, material elétrico e material de transporte aumentassem sua

participação no valor adicionado da indústria303

.

O traço distintivo deste e do outro período varguista, o de 1951 a 1954, foi sem dúvida a

ampliação do entendimento acerca das estratégias e alcance da política econômica. Isto é,

Vargas não tarda a descobrir, como já fizera no governo do Rio Grande do Sul, que a aliança

303

Valor adicionado representa a diferença entre o valor da matéria-prima e o valor final do produto,

resultante do processamento industrial. Fausto (2003, p.393) reforça: “As indústrias tradicionais —

principalmente têxtil, vestuários e calçados, alimentos, bebidas, fumo e mobiliário —, apesar de

constituírem ainda 60% do valor adicionado da indústria, tiveram sua participação relativa diminuída,

pois, em 1919, representavam 72% desse valor. O crescimento das indústrias química e farmacêutica —

inclusive perfumaria, sabões e velas — foi extraordinário, triplicando sua participação entre 1919 e

1939”.

Page 189: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

189

com a classe trabalhadora é capaz de surtir efeitos maiores e melhores para o seu governo e para

seu projeto de desenvolvimento do que aquelas medidas afetas ao âmbito da coesão social, de

caráter positivista-funcionalista que utilizara no Rio Grande do Sul.

Desse modo, potencializa o aspecto estruturante das políticas sociais, pois nelas estão

contidas as formas essenciais de reprodução social com impactos diretos, como já dissemos, na

coesão social, mas também na sustentação de uma economia cujo mercado precisa se

versatilizar. Porém, atenção: o aspecto estruturante das políticas sociais, tanto no varguismo

quanto em outros momentos na história do capitalismo mundial, só se evidenciam ao se

descortinar o mito de que a política social e a política econômica formam unidades distintas ou

antagônicas. Ao contrário,

Compondo uma unidade, tanto a política econômica quanto a política social podem

expressar mudanças nas relações entre as classes sociais ou nas relações entre

distintos grupos sociais, existentes no interior de uma só classe. De outra parte,

através de ambas aquelas políticas, é possível evidenciar-se a atuação do Estado no

sentido de incentivar e ampliar o capitalismo monopolista no Brasil. Porém, embora

constituindo um todo, elas formalmente se distinguem e às vezes dão a enganosa

impressão de que tratam de coisas bem diferentes. (VIEIRA, 1983, p.10)304.

[A Política Social] Trata-se de estratégia voltada para o chamado desenvolvimento

econômico e, consequentemente, para atuar na correlação de forças sociais, segundo

as determinações daquele desenvolvimento. Considera-se, portanto, que qualquer

política social aplicada pelo governo representa de certa maneira as relações entre o

Estado e a Economia, durante a época em questão. Assim como a política econômica,

também a política social revela, em seu nível lógico e em seu nível histórico, as

transformações havidas nas relações de apropriação econômica e no exercício da

dominação política, presentes na sociedade brasileira. (Id., Ibid., p.10)305.

Desse modo, a Educação, como política social, passa a ocupar lugar estratégico na

agenda governamental, com o intuito de potencializar a formação de cidadãos capazes de

responder ao ciclo de desenvolvimento proposto com a criação, em novembro de 1930, do

Ministério da Educação e Saúde. Preocupação parecida invade a área da Saúde, que começa a

contar com medidas de implantação de uma política sanitária voltada, sobretudo, aos mais

pobres. Mas é mesmo no campo da política trabalhista que Vargas imprime sua marca na

agenda social.

Entendendo o caráter político que reveste o mundo do trabalho, o primeiro governo

Vargas associa a institucionalização de direitos trabalhistas à repressão a partidos e

304

VIEIRA, Evaldo. Estado e miséria no Brasil de Getúlio a Geisel 1951 a 1978. São Paulo: Cortez,

1983. 305

Id.

Page 190: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

190

organizações de esquerda, com um foco todo especial no Partido Comunista Brasileiro (PCB).

A criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio envolve a criação das Leis do

Trabalho e a regulação estatal da ação sindical, enquadrando a liberdade associativa dos

trabalhadores e criando o sindicalismo patronal e de Estado.

Esses 15 anos de poder varguista não foram mantidos facilmente. Vários

acontecimentos de caráter político o marcaram, mas todos relacionados aos experimentalismos

econômicos que ali se aplicaram: a Constituição de 1934, que institui o federalismo, anuncia

eleições diretas e secretas a partir de 1938, o voto feminino, a representação classista no

congresso e os direitos trabalhistas. De 1934 a 1937, o governo constitucional amplia seu braço

repressor com duras ofensivas contra organizações da esquerda comunista, dando finalmente um

golpe, em 1937, cancelando as eleições previstas para 1938 e instituindo a ditadura do Estado

Novo306

.

De inspiração fascista, a Constituição de 1937 centraliza o poder nas mãos do

Presidente, que suprime partidos, suspende as atividades do parlamento e cerceia a liberdade de

expressão e imprensa com a criação de um departamento estatal voltado à censura.

Ainda assim, Vargas mantém o ritmo das reformas econômicas e sociais numa clara

demonstração de que o desenvolvimento capitalista só não pode abrir mão do trabalho livre,

mas pode fazê-lo com a democracia. Assim, cria o salário-mínimo, em 1940, a Consolidação

das Leis do Trabalho (CLT), em 1943, e mantém o controle sobre a atividade sindical. Portanto,

concluímos que:

No Brasil (...) não se pode falar de política social sem se remeter à questão do

desenvolvimento econômico. No âmbito do capitalismo, tal desenvolvimento

representa transformação quantitativa e qualitativa das relações econômicas,

decorrente de processo de acumulação particular de capital. A situação favorável a

este desenvolvimento é gerada não somente pela denominada iniciativa privada, mas

também pela atuação do governo. Portanto, sendo fundamental a participação do

Estado brasileiro no processo de desenvolvimento econômico, facilmente se percebe a

relevância das várias políticas adotadas por ele, em especial a nível econômico e a

nível social (VIEIRA, Ibid., p.10)307.

O processo de industrialização teve prosseguimento com a substituição de importações

nos setores de bens de consumo não duráveis e de bens intermediários. O Estado, como indutor

desse processo, cria a Companhia Vale do Rio Doce, a Siderúrgica Nacional e uma empresa

para refino do petróleo.

306

O que nos permite falar em Estado Corporativo. Segundo. O demiurgo do Estado Corporativo no

Brasil foi Oliveira Vianna. Vargas enquadra-se, então, como um gestor da “máquina pensada por

Vianna”. (In: VIEIRA, Evaldo. Autoritarismo e corporativismo no Brasil: Oliveira Vianna e

Companhia. São Paulo: Cortez, 1981.). 307

VIEIRA, Evaldo. Ob. Cit., 1983.

Page 191: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

191

Mas foi mesmo a dubiedade de Vargas no plano interno (a associação do paternalismo

estatal com a repressão) e externo (a demonstração de simpatia pelo fascismo italiano sem

ruptura com a política e o governo norte-americanos) que levariam os militares a derrubar, em

1945, ano que coincide com o fim da II Guerra Mundial, a ditadura varguista308

.

Nesse interregno, Dutra vence as eleições de dezembro de 1945 e fica até a volta de

Getúlio, pelo voto, em 1951.

Ao voltar à Presidência pelo voto, Vargas encontra um País diferente daquele que

deixara em 1945. O intervencionismo estatal no campo econômico-financeiro deveria ser

redimensionado e isso já era por ele anunciado desde a campanha. O controle da inflação, o

desequilíbrio no balanço de pagamentos, que impedia o aumento da capacidade de importação,

a redução dos investimentos em infraestrutura, dentre outras situações da ocasião, legitimaram o

nacionalismo econômico que já implementara antes e que agora deveria ser revisitado.

Por tudo isso, o governo getulista precisou intervir vigorosamente no domínio

econômico, apresentando em 1951 o Plano Nacional de Reaparelhamento Econômico

– Plano Lafer, cujos recursos procederiam do Fundo de Reaparelhamento Econômico,

que seria dirigido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE),

criado em 1952 (...) O plano propunha investimentos em indústrias básicas, nos

setores de transporte, de energia, de frigoríficos e na agricultura, durante cinco anos

(Vieira, Ibid., p. 32)309.

Isso não significou, porém, um abandono, por Vargas, da iniciativa privada. Utilizando

de sua capacidade de conciliação já exaustivamente comprovada, o estatismo varguista

incomodava em níveis toleráveis a classe proprietária brasileira, afinal, tanto em seus discursos

quanto nos conteúdos do próprio plano ficavam evidentes os ganhos tanto para industriais

308

No campo marxista, prevalecem as teses que identificam Vargas como “bonapartista”, em detrimento

das perspectivas que o enquadram como uma variação do fascismo. Ruy Mauro Marini, em A dialética do

Desenvolvimento Capitalista no Brasil (In: SADER, Emir (Org.). Dialética da dependência. Uma

antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrópolis: Vozes/ Laboratório de Políticas Públicas (LPP),

2000), esclarece essa definição. Associa-se, à leitura de Marini, os escritos de Trotsky sobre

“bonapartismo” nos trabalhos de Ianni e Weffort sobre o “populismo”. (In: DEMIER, Felipe. Trotsky e

os estudos sobre o populismo brasileiro in outubro. São Paulo, 2005. p. 59-78 e ____. Do movimento

operário para a universidade: Trotsky e os estudos sobre o populismo brasileiro. Dissertação

(Mestrado)- PPGH/UFF. Mimeografado). Nesses textos, além de elucidações sobre o Vargas

“bonapartista” também fica claro o significado do “populismo” que é atribuído ao seu governo. 309

Neste momento em que uma das estratégias do desenvolvimentismo tradicional consiste em criar e/ou

fomentar órgãos estatais que funcionem tanto como agentes indutores das atividades produtivas e

financeiras, preconizadas pelo projeto de desenvolvimento, quanto como empresas estatais com

capacidade de produção e concorrência maior do que as das empresas atomizadas no âmbito privado.

Deste modo, Vieira (1983) nos lembra da criação do Banco do Nordeste do Brasil (BNB), da

Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), do Banco Nacional do

Desenvolvimento Econômico (BNDE), da Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras), do Plano Nacional de

Eletrificação e Centrais Elétricas Brasileiras S.A. (Eletrobras), dentre outras empresas menores.

Page 192: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

192

quanto para agricultores. A defesa era, sobretudo, para uma maior produção de bens, de modo a

diversificá-la cada vez mais reduzindo a importação de produtos aqui fabricados.

O protecionismo também foi praticado, nessa fase, sob a justificativa de que a indústria

brasileira ainda não possuía condições de competir em pé de igualdade com as estrangeiras.

Quando isso acontecesse, o Estado retiraria gradativamente seu intervencionismo. Esse

protecionismo veio associado ao incentivo à produção de matérias-primas necessárias à

alimentação da indústria de bens de consumo.

A marca social de Vargas permanece também nessa segunda fase, contudo, desta vez,

parece centrar esforços naquilo que de fato surtirá efeitos mais imediatos no plano de

desenvolvimento econômico. O ensino técnico-profissionalizante cresce; o incentivo à

contratação de mão de obra mais qualificada também cresce; os setores de serviços e de

assistência técnica são também incentivados; tudo isso é pensado para também interferir nos

níveis inflacionários e na redução do custo de vida, sendo, este último, um problema

recalcitrante nos discursos de Vargas. Só o salário-mínimo, a invenção de que mais se

orgulhara, aumenta quatro vezes, sob sua gestão, o que não reduz a pressão inflacionária,

embora compense as perdas parciais no poder aquisitivo da população pobre. Essa contradição

leva o governo a formular um programa de combate à inflação, o Plano Aranha:

Já havia, sem dúvida, desde 1952, severa condenação à elevação dos preços das

mercadorias no primeiro ano do governo de Getúlio. Dizia-se que, para enfrentar o

aumento nos preços, “apenas aumentou o salario mínimo, que só atinge a parte muito

pequena da população”. Subira no Rio de Janeiro, por exemplo, o preço de inúmeros

produtos (...) Também ficaram mais caros os alugueis de casa, bem como as

passagens de bondes, de ônibus e de trens. Um exame do primeiro ano do governo de

Vargas indicava como único possível êxito o “recuo das emissões”. Colocando em

dúvida até mesmo esse resultado, ressaltava que as reservas cambiais quase chegaram

ao fim, enquanto se registrava um déficit de três bilhões de cruzeiros na balança

comercial, sem formar-se estoques importantes em gêneros de primeira necessidade

(...) (Vieira, Ibid., p. 35-36)310.

A formulação de planos emergenciais parece ser não só uma forma predominante de

resposta governamental aos problemas do desenvolvimento socioeconômico no Brasil como,

por aqui, se institui como um pilar dos nossos ciclos desenvolvimentistas, pois é o que se nota

de Vargas a Dilma311

. No caso da alteração de rota provocada pelo abandono do Plano Lafer e a

adoção do Plano Aranha — analogamente à substituição de um ministro da Fazenda por outro,

Horácio Lafer por Oswaldo Aranha — fica evidente a ausência de um projeto maior e

consistente de desenvolvimento que pressuporia um modelo de Estado e dele o modo como este

310

VIEIRA, Evaldo. Ob. Cit., 1983. 311

Ou, pelo menos, o que estamos tentando evidenciar nesta tese.

Page 193: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

193

Estado estabeleceria suas relações com a sociedade no seu conjunto. Por isso, o Plano Aranha é

duramente criticado pelas oposições, sobretudo por não responder a medidas consideradas

necessárias pela ortodoxia econômica como a restrição de crédito e nova sistemática de controle

cambial.

Vargas insiste no seu nacionalismo econômico, alegando que todas suas medidas

visavam a conquista da autonomia econômica e financeira do Brasil, desagradando sempre os

investidores estrangeiros aqui instalados; mas como suas provocações nacionalistas não

extrapolavam o âmbito do discurso, a política econômica de relações internacionais seguia seu

curso. Na prática, o que se fazia era sempre o acolhimento do privado e estrangeiro como

necessário ao desenvolvimento do público e nacional:

A emancipação econômica seria obra do trabalho e de capitais brasileiros, ao menos

no principio com a ajuda do capital estrangeiro. Pelo fato de os investimentos

externos figurarem como apoio, seria impossível admitir, segundo Vargas,

compromissos nacionais indevidamente contraídos, bem como transferência para fora

do país de lucros oriundos de capitais nacionais. Getúlio entendia a emancipação

econômica como um perene processo de desenvolvimento, e sua noção de

industrialização abrangia o desenvolvimento econômico. Portanto, realizar o

desenvolvimento econômico suscitava o desígnio de emancipação econômica do

Brasil, além de significar predominantemente industrializa-lo. A trajetória ideológica

de Getúlio mostrava então que a industrialização conduziria diretamente ao

surgimento de um capitalismo nacional 312 , com a consequente emancipação

econômica da nação (VIEIRA, Ibid., p. 38).

A conjuntura desse segundo governo Vargas não é a mesma do Estado Novo, e nem

poderia sê-la. Portanto, a manutenção de sua ideologia nacionalista se restringe àquilo que é

fundamental ao fortalecimento da indústria, entendido por Vargas como o meio mais eficaz de

se alcançar a tal autonomia, afinal, a liberal-democracia em vigor parecia não abrir espaço para

um Estado autocrático burguês como fora o Estado Novo.

No plano internacional, um conjunto de dificuldades coloca-se no caminho de Vargas,

em especial no âmbito das relações com os Estados Unidos. Embora os investimentos norte-

americanos no Brasil não tenham diminuído, entre 1950 e 1954, o aumento de remessas para o

estrangeiro decorrentes dos lucros de seus investimentos por aqui aumentavam a níveis

insuportáveis. A exportação do café não estanca seus níveis de queda e o combate à inflação se

torna mais difícil. Tudo isso com rebatimento direto nas condições de vida da população

brasileira, dificultando a manutenção da euforia nacionalista.

312

Grifo nosso.

Page 194: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

194

Mas é preciso ressaltar que a inviabilidade deste nacionalismo, e do próprio governo

getulista em continuar, não se explica apenas pelas dificuldades oriundas da crise

econômica interna e pelos embaraços nascidos do investimento estrangeiro. Explica-

se, sobretudo através da enorme capacidade de pressão sobre o poder instituído,

atingida pelos grupos mais conservadores da sociedade brasileira, frontalmente

contrários ao nacionalismo econômico e à participação das massas populares no jogo

político, mesmo segundo o estilo getulista. Se bem que por pouco tempo naquela

época, a mobilização política em benefício do nacionalismo de Vargas sofreu o

impacto da agitação do radicalismo conservador (VIEIRA, Ibid., p. 41).

O conservadorismo reinante na época de que estamos tratando apresenta resquícios

fortes tanto de um legado colonialista (e coronelista, por assim dizer) quanto traços dominantes

de perspectivas fascistas. Portanto, não é difícil perceber porque as mudanças provocadas por

Getúlio, sobretudo, no campo social-trabalhista, mas também de modo claro na estrutura

jurídico-política do Estado, incomodavam tanto a esses setores. A ideia de progresso social,

sempre presente nos discursos de Vargas, remetia diretamente à noção funcionalista de paz ou

harmonia social e que pressupõe, para sua realização, um pacto relativamente estável entre

classes e frações de classes sociais. O modelo desenvolvimentista do segundo Getúlio, deste

modo, aprofunda essa concertação da relação entre o Estado e as classes, promovendo uma

relativa ascensão das classes populares no jogo político, tanto pela sua importância como base

de sustentação da estrutura produtiva necessária ao desenvolvimento pelo trabalho, quanto pelo

discurso e incorporação das suas necessidades de reprodução social no âmbito do Estado com

inflexões no mundo do trabalho privado313

.

O suicídio de Vargas, em 1954, põe fim ao nacionalismo peculiar que inaugura314

, mas

não ao nacionalismo em geral, pois as bases de um desenvolvimentismo brasileiro já estão

dadas e não serão desperdiçadas por Juscelino Kubistchek em seu Plano de Metas para o

desenvolvimento e a tentativa de consolidação de um capitalismo brasileiro de tipo moderno.

2.1.2.4 O Plano de Metas de Juscelino Kubistchek

O vultoso desenvolvimentismo de Juscelino é, sem dúvida, o que mais se destaca

quando o assunto é o desenvolvimento do capitalismo brasileiro. E não se dá por um possível

ineditismo nas suas ações, mas sim pelo fato de que as condições históricas em que assume o

313

Essas lições varguistas serão utilizadas no projeto de desenvolvimento que se impõe ao Brasil a partir

de 2003, particularmente em sua primeira fase, ainda que o Presidente Lula, seu principal articulador,

negasse qualquer influência varguista em sua política básica, como veremos mais adiante. 314

Outras expressões nacionalistas são percebidas em João Goulart ou em Jânio Quadros, por exemplo,

contudo, a menção que fazemos a Vargas se deve à natureza tipicamente desenvolvimentista das medidas

que tomou em seus governos.

Page 195: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

195

governo brasileiro estão pautadas em um legado que lhe permite avançar nas estratégias de

desenvolvimento.

Ou seja, a implantação da indústria de base em Vargas, por exemplo, é uma das

condições que o favorecem. Contudo, a incisividade das medidas de seu governo puderam levar

a cabo duas ordens de implicações decorrentes da atuação do Estado como agente indutor do

desenvolvimento capitalista: a renovação das formas de acumulação de capital e o

reordenamento funcional do mundo do trabalho motivado pelos incrementos à produção. A

combinação desses aspectos estruturais da ordem posta na conjuntura dos anos 1950-1960 teve

como amálgama o desenvolvimento industrial que, segundo Ianni (1989), se transformou “na

problemática maior, para todas as classes sociais”315

.

Juscelino, desde os discursos que fazia antes de se tornar Presidente da República

enaltece a importância do planejamento estatal. Algumas atividades do Estado, segundo Ianni,

são suficientes para revelar a importância que ele adquiriu “na formulação das possibilidades

reais de transformação e expansão das forças produtivas” orientadas para o desenvolvimento

planificado:

O Plano Salte, o Programa de Metas, o Plano Trienal, a Petrobras, o Banco do

Nordeste, o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e, ainda, a

Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, todos são criados a partir de

1948. E todas as transformações mais notáveis da economia brasileira desde então

estão relacionadas com o funcionamento destes órgãos governamentais, criados

especialmente para estimular o crescimento e a diversificação do sistema produtivo

nacional (IANNI, 1989, p. 19-20)316.

Pelas épocas, observa-se que esses órgãos não são criação do governo juscelinista.

Antes, já fazem parte do projeto de desenvolvimento varguista, assumem vigor no governo Café

Filho, que antecede o de JK, mas é apenas com a planificação do desenvolvimento, aplicada

neste último, que suas funções como agentes concertadores do capital desenvolvimentista

(público e privado) se tornam efusivamente evidentes.

Em JK, pouco se observa das tendências desenvolvimentistas que animavam o debate

sobre o desenvolvimento brasileiro da República a Vargas. A preponderância da

industrialização como mola propulsora do desenvolvimento subsume todas as demais correntes

ao industrialismo, sem prejuízo da permanência de algumas características fundantes do

315

Segundo Ianni (1989, p. 19), a centralidade da indústria no padrão de desenvolvimento proposto por

JK transforma-se em problemática para todas as classes sociais “pelo que envolve na repartição da renda,

nas relações das forças políticas, na supremacia das forças econômicas internas ou externas, na liderança

política da nação, os caminhos e o futuro da industrialização tornaram-se a área privilegiada dos debates e

choques entre as classes sociais, ou os seus grupos com interesses divergentes”. 316

IANNI, Octávio. Estado e capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989.

Page 196: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

196

positivismo e do papelismo, mas isso não se dá apenas pelo tipo de inclinação política de JK317

.

Essa condução encontra legitimidade e justificativa tanto num cenário internacional propenso à

aliança tática e estratégica entre Brasil e Estados Unidos quanto à difusão ideológica da

industrialização, como passaporte único ao desenvolvimento e à contemporaneidade.

O Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), ainda que mantivesse certa

autonomia ante o governo, funciona como importante centro propagador da ideologia

desenvolvimentista-industrialista de JK.

Um e outro [governo e Iseb] diluíam as diferenças de classe em nome das

necessidades do País. Ambos restringiam à mera industrialização e ao intenso

aumento de produtividade a concepção de desenvolvimento. Ambos queriam dizer

que o desenvolvimento apenas deveria ocorrer dentro do domínio da lei, com patrões

e empregados resolvendo pacificamente seus litígios, através de instituições criadas

para esta finalidade. Tratavam, enfim, de uma ideologia da ordem, destinada a inspirar

a industrialização do Brasil. De sua parte, Juscelino, procurava empreender seu

projeto industrialista, orientado para diversas regiões do território brasileiro, até

mesmo para aquelas que dispunham de condições mais difíceis para isto. De acordo

com ele, a industrialização envolvia crescente elevação de produtividade (VIEIRA,

Ibid., p. 88)318.

317

Alguns autores chegam, inclusive, a afirmar que, em JK, o nacionalismo característico de Vargas se

transforma em nacional-desenvolvimentismo, cuja diferença fundamental do segundo para o primeiro é

que este não só aceita, mas considera fundamental um arranjo quase simbiótico entre o Estado, a empresa

privada nacional e o capital estrangeiro, mesmo em áreas consideradas estratégicas para a “soberania” de

um país, como a infraestrutura básica e a indústria de base. Isso fica evidente em JK, quando se verifica a

injeção de capitais estrangeiros para o desenvolvimento de seu projeto de revitalização da indústria

automobilística, na área dos transportes aéreos, estradas de ferro, eletricidade e aço. Já o nacionalismo,

cuja maior expressão se dá no processo de substituição de importações, embora admita a presença e

participação do capital estrangeiro, impõe a ele muitos condicionantes. Além disso, sustenta a intervenção

e o controle estatal nas áreas estratégicas, como infraestrutura, transporte, telecomunicações, energia, etc.,

sempre em nome da autonomia do país como elemento indispensável ao corolário da busca pelo

desenvolvimento. A obra de Celso Furtado, produzida entre 1953-1955, é emblemática ao demonstrar as

características fundantes do nacional-desenvolvimentismo. Nesse sentido, consultar: OLIVEIRA,

Francisco de. Viagem ao olho do furacão: Celso Furtado e o desafio do pensamento autoritário brasileiro.

In: A navegação venturosa: ensaios sobre Celso Furtado. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, ou

BIELCHEWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimento.

Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. 318

Vieira ainda assevera que “(...) o pensamento desenvolvimentista revestia-se dos critérios de

veracidade e de objetividade, assumindo ao mesmo tempo o caráter de práxis. A nível lógico, partia-se do

pressuposto de que, na efetivação do desenvolvimento brasileiro, a aliança de classes aconteceria política

e ideologicamente. Garantida, portanto, a nível lógico, a paz social, representada pela ausência de luta de

classes e de perigosa luta ideológica, bastava somente vislumbrar o significado da prática respectiva.

Assim, a nível histórico, concedia-se ao desenvolvimento a força capaz de incentivar e de provocar a

industrialização. Entendendo-se a ideologia do desenvolvimento como dominante no País, entendia-se

simultaneamente que os interesses básicos das massas populares já estavam representadas nela, pondo-se

de lado a possibilidade de estas massas terem um projeto próprio para satisfazer suas carências. Por

conseguinte, a aliança de classes, o desaparecimento de graves antagonismos ideológicos e a firme crença

no desenvolvimento conduziriam tranquilamente à industrialização no Brasil”. (In: VIEIRA, Evaldo.

Estado e miséria no Brasil: de Getúlio a Geisel. São Paulo: Cortez, 1983).

Page 197: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

197

Mas, para isso, se fez necessária a retomada de algumas medidas de contenção

inflacionária, pois sem elas não seria possível nem aumentar a produtividade e nem abrir as

“portas do País ao capital estrangeiro”.

O programa anti-inflacionário somava-se à decisão de abrir a economia brasileira ao

capital estrangeiro, permitindo-lhe, sobretudo incentivos especiais. (...) O chamado

incentivo especial aos investidores externos aí queria dizer, antes de tudo, a concessão

às empresas estrangeiras da faculdade de importar sem cobertura cambial. Mas em

momentos distintos, outorgou-se ao capital externo outros tantos privilégios, como,

por exemplo, o deslocamento das exportações para o mercado livre, a diminuição de

câmbio para as remessas de lucros e as facilidades dadas às empresas estrangeiras

pelas instituições de crédito (VIEIRA, ibid., p. 83)319.

Prova disso é que a eleição de JK à Presidência da República foi saudada com vigor

pelo governo norte-americano, que via em sua recorrente apologia à planificação da Economia

brasileira num sentido liberal oportunidades tanto para a ampliação de mercado consumidor

como para a instituição de vantagens fiscais e tributárias na importação de commodities. O

desenvolvimento planificado de JK tem no Programa de Metas sua maior expressão. Ao final de

sua execução, o programa deveria ter dotado o País de uma infra e superestrutura industrial

capaz de modificar sua conjuntura econômica:

O Programa de Metas do Presidente Juscelino Kubitschek combinava recursos

públicos e privados na realização de seus projetos, os quais deveriam concretizar-se

em épocas distintas, uns ainda dentro de seu governo e outros a 5 a 10 anos mais

tarde. Tal Programa continha 30 setores tidos como prioritários, para onde se

concentrariam maciços investimentos. Os 30 setores estavam distribuídos da seguinte

forma: 5 metas para a energia, 7 metas para transportes, 6 metas para alimentação e 12

metas para indústria de base. Procurando atingir estas metas, por meio da execução de

obras e através da ampliação ou do estabelecimento de indústrias e de serviços

essenciais, Kubitschek visava acima de tudo a promover o “equilibrado

desenvolvimento econômico do País”. (VIEIRA, ibid., p. 85)320.

A racionalidade imposta à gestão pública no governo de JK suplantou o debate político,

colocando em seu lugar o burocratismo e o tecnicismo. Reduzindo todo um complexo processo

de desenvolvimento à industrialização, a única preocupação social no planejamento estatal era

com uma residual qualificação de trabalhadores para atuar na indústria, o que foi chamado de

infraestrutura educacional. A política social, em JK, não apresenta nem mesmo autonomia

relativa à política econômica. Sociabilidade e acesso à satisfação de necessidades de

319

VIEIRA, Evaldo. Ob. Cit., 1983. 320

Id., ibid.

Page 198: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

198

sobrevivência, por mais fundamentais que fossem, eram decorrência pura e simples do

desenvolvimento industrial e econômico pautados pelo aumento da produtividade. Os

investimentos que se fizeram no campo da habitação popular, da previdência social, da saúde e

da educação voltavam-se para os objetivos claros da manutenção e reposição da força de

trabalho, portanto, com foco nos trabalhadores produtivos e suas famílias.

Essa menção se faz importante, pois a marginalidade da política social em JK é um

traço que o distingue tanto de seus antecessores, como Vargas, e também de seus sucessores,

como os presidentes militares, ainda que estes últimos concebessem a política social como

elemento estratégico para o doutrinamento que incutiram na população, ela se fez presente por

melhorias sentidas, sobretudo, na estrutura da educação básica e fundamental (controlada) e da

saúde.

Mesmo com esse cenário, é difícil não compreender a lógica do desenvolvimento

juscelinista considerando os resultados do Programa de Metas

Entre 1955 e 1961, o valor da produção industrial, descontada a inflação, cresceu em

80%, com altas porcentagens nas indústrias do aço (100%), mecânicas (125%), de

eletricidade e comunicações (380%) e de material de transporte (600%). De 1957 a

1961, o PIB cresceu a uma taxa anual de 7%, correspondendo a uma taxa per capita,

ou seja, por habitante, de quase 4%. Se considerarmos toda a década de 50, o

crescimento do PIB brasileiro per capita foi aproximadamente três vezes maior que o

do resto da América Latina. (FAUSTO, 2003, p. 427)321.

As possibilidades da mobilidade social foram alimentadas pelo acesso ao consumo de

bens antes acessíveis apenas aos estratos mais ricos da sociedade. Assim como a casa própria

representou o sonho dos norte-americanos no american way life, o automóvel simbolizava o

sonho brasileiro. JK cria, neste sentido, o Grupo Executivo da Indústria Automobilística (Geia)

para incentivar a produção de automóveis no Brasil. O boom da indústria de automóvel amplia,

sobretudo, no ABC paulista o operariado industrial, acelerando a urbanização, como também

difunde o mito do transporte particular em detrimento dos investimentos em transporte coletivo

para as massas. Ainda assim, o trabalho nessas indústrias representava, para a população,

oportunidade de sobreviver em melhores condições de bem-estar.

Merece destaque ainda o ousado projeto de transferência da capital do País do Rio de

Janeiro para o Planalto Central. A construção de Brasília – inaugurada em 21 de abril de 1960 –

foi alvo de inúmeras controvérsias, mas todas elas secundarizadas pela euforia com que o

projeto foi tratado pelo governo. Desse modo, o sonho de uma nova vida transportou milhares

de trabalhadores de várias regiões do País, sobretudo do Nordeste, para participar da

empreitada.

321

FAUSTO, Boris. Ob. Cit., 2003.

Page 199: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

199

É importante salientar que a programática de desenvolvimento construída em JK com

base na concertação entre o capital nacional e o estrangeiro coincide com a jovialidade do

Fundo Monetário Internacional (FMI). Isto é, o FMI foi criado em 1946, como uma agência da

Organização das Nações Unidas (ONU), com o objetivo de promover a cooperação monetária

internacional, entre outros objetivos. As relações amistosas entre o Brasil e os Estados Unidos,

na primeira fase do governo JK, favoreceram os créditos concedidos ao País pela intermediação

desse Fundo.

Contudo, os gastos governamentais com a construção de Brasília e com a sustentação do

Programa de Metas redundaram em déficits no orçamento público exponencialmente crescentes.

Associa-se a isso a não contenção da inflação e a redução da capacidade arrecadatória do Estado

devido aos incentivos dados às empresas estrangeiras, tem-se como resultado o desequilíbrio do

balanço de pagamentos e o aumento da dívida pública e da dependência do Estado.

Juscelino procede alterações em sua equipe econômica e tenta colocar em prática um

novo plano de estabilização. O plano propunha seguir com restrições a ortodoxia econômica do

FMI, que é assim resumida por Fausto (2003, p. 434):

(...) visa obter o equilíbrio das contas externas (...) estimulando as exportações através

da liberalização do câmbio. Para isso propõe, de início uma desvalorização cambial e

o abandono do controle cambial pelo governo através de taxas de câmbio

diferenciadas – os chamados câmbios múltiplos. Ao mesmo tempo, trata-se de pôr fim

ao déficit público através do corte de gastos e/ou aumento da receita do Estado322.

Essas medidas redundam diretamente em recessão e desemprego, além de não se ter a

garantia de que lograrão êxito mesmo no longo prazo, pois um conjunto de fatores relacionados

à economia mundial se atrelam a elas como intervenientes consideráveis. Assim, um impasse

entre o Brasil e o FMI arrasta-se durante quase todo o ano de 1958 e início de 1959, quando,

em junho deste ano, JK resolve romper com o FMI abandonando a fase final do plano de

estabilização e pondo fim ao ciclo de crescimento que iniciara.

Essa ruptura, dentre outros aspectos que não nos compete arrolar, sugeriam uma

aproximação tanto de JK quanto de sua base aliada ao PTB e aos comunistas, gerando uma

instabilidade política que só teria fim com o golpe civil-militar de maio de 1964.

2.1.2.5 O desenvolvimentismo autocrático burguês

Os governos militares, de Castelo Branco (1964-1967) a João Figueiredo (1979-1985),

beneficiam-se do espólio desenvolvimentista de JK, ainda que na história econômica do país o

322

Id., ibid.

Page 200: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

200

período autocrático burguês goze de significativa independência analítica ante os demais

períodos.

As medidas econômicas, com a mão pesada do governo Castelo Branco, já não estavam

de modo linear ligadas a um projeto deliberado de desenvolvimento, embora seja inconveniente

desatrelá-las disso. Antes, buscavam retomar a estabilidade combatendo a inflação, mas,

sobretudo, intencionam controlar o caos econômico deixado por Goulart como forma de

suprimir a ameaça comunista. Nesse sentido, o governo revoga a lei de remessa de lucros

(proposta por João Goulart), beneficiando o capital estrangeiro investido no Brasil; estabelece o

controle sobre os salários; institui a correção monetária, operação destinada a atualizar o poder

aquisitivo da moeda, segundo índices determinados pelo governo; cria o Fundo de Garantia do

Tempo de Serviço (FGTS), em substituição ao antigo sistema de estabilidade e de indenização

dos trabalhadores demitidos; funda o Banco Nacional de Habitação (BNH) que, obtendo

recursos do FGTS, deve financiar a construção de casas populares; e cria o Instituto Brasileiro

de Reforma Agrária e o Estatuto da Terra.

Essas medidas convergem, no âmbito do Programa de Ação Econômica do Governo

Castelo Branco (Paeg), para a busca e ampliação do apoio social à administração castelista e

propõe até mesmo o diálogo com todas as camadas populares (VIEIRA, 1983, p. 203)323

.

Curiosamente, o Plano alcança propostas de reforma agrária. O Paeg cumpre seus objetivos. A

combinação do corte de despesas e aumento da arrecadação reduz o déficit público anual de

4,2% do Produto Interno Bruto (PIB), em 1963, para 3,2%, em 1964, e 1,6%, em 1965. A forte

inflação de 1964 tende a ceder gradativamente, e o PIB volta a crescer, a partir de 1966

(FAUSTO, 2003).

Essas medidas logram êxito tanto pelo modo autoritário como são praticadas, ou seja, os

sacrifícios sociais da classe trabalhadora não puderam ser contestados ao mesmo tempo em que

a Aliança para o Progresso, do Presidente norte-americano Kennedy, liberou o FMI para ajudar

o Brasil em seus intentos (idem).

Estavam dadas as condições para acontecer o Milagre Brasileiro. O extraordinário

desenvolvimento da economia, no período Médici (1969-1973), pode receber tal acunha, pois

conseguiu combinar o crescimento econômico com taxas baixas de inflação. Delfim Neto, então

ministro da Fazendo, toma a frente do I Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) (1972 –

1974) aproveitando a conjuntura internacional favorável. Nova abertura liberalizante se

processa e inúmeras empresas multinacionais se instalam no País.

Como os governos anteriores, o Plano também abrange investimentos em infraestrutura,

como usinas hidrelétricas e a expansão da Petrobras, Vale do Rio Doce e Telebrás. O

crescimento do PIB e a ascensão de uma nova classe média justificavam a euforia do momento.

323

Id., ibid.

Page 201: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

201

O “milagre” concentra-se, sobretudo, no aumento das exportações agrícolas; a expansão da

indústria e incentivos ao desenvolvimento regional da Amazônia e do Centro-Oeste, contudo,

não previram estratégias distributivistas. Delfim Neto alegava que não se podia colocar a

distribuição na frente da produção sob pena de distribuir o que ainda não existe, tornando

célebre a sua afirmação: “é necessário fazer o bolo crescer para depois distribui-lo”.

O milagre não se sustenta por muito tempo, pois a agudização dos níveis de

dependência da economia brasileira a torna vulnerável às variações do câmbio. Com a crise do

petróleo, de 1973, a moeda brasileira não só se desvaloriza em relação ao dólar como também

faz aumentar nosso endividamento externo. Celso Furtado, em O Brasil Pós-Milagre (São

Paulo: Paz e Terra, 1981), anuncia: “Em síntese, nesse período, não obstante um considerável

aumento do produto interno, não se assinala, na economia brasileira, nenhum ganho de

autonomia na capacidade de autotransformação, nem tampouco qualquer reforço da aptidão da

sociedade para autofinanciar o desenvolvimento”.

O declínio do surto desenvolvimentista também se reflete na vida política do País

acirrando o conflito de classes, levando o Presidente Médici a anunciar uma abertura “gradual e

segura” do regime. O último presidente militar, João Figueiredo (1979-1985), encarrega-se da

transição.

O fato é que o desenvolvimento ocorrido no período autocrático burguês é apontado por

vários autores, dentre muitos aqui já citados, como o período que chama a atenção do

capitalismo mundial para o Brasil e o coloca como possível potência econômica no continente

num futuro de longo prazo. Todavia, essa expectativa se confinava muito mais ao campo das

justificativas ideopolíticas para as experimentações macroeconômicas que por aqui se fizeram

do que necessariamente uma aposta real. O ufanismo da ditadura expresso no “ame-o ou deixe-

o” incute em muitos corações e mentes que o Brasil seria o país do futuro. Esse caminho

pareceu pavimentar o que Marini, em adaptação da tese trotskista para América Latina,

denomina de desenvolvimento desigual e combinado324

. Em síntese:

324 Consultar: MARINI, Rui Mauro. América latina: dependência e integração. São Paulo: Página

Aberta, 1992 e ______. Dialéctica de la dependencia. México: Ediciones Era, 1973.

Page 202: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

202

A ampliação do capitalismo no Brasil representa aqui o cerne do desenvolvimento. E

o Movimento de 1964 abriu totalmente este processo aos monopólios internacionais.

Isto quer dizer que as carências do mercado interno se colocaram em segundo plano,

preponderando os interesses do mercado externo. Rompia-se assim a tentativa de

combinar a ideologia nacionalista com o capitalismo internacional. E, se a

internacionalização da economia brasileira trouxe benefícios, até para certos grupos

sociais durante algum tempo, há indícios seguros de que relegou e explorou a grande

massa popular. O tal de desenvolvimento interdependente serviu sobretudo à

burguesia do monopólio, aliás nem sempre fiel a seus protetores (VIEIRA, 1983, p.

211)325.

2.1.3 Um interlúdio para a redemocratização: protoformas do ajuste neoliberal

O fim da ditadura civil-militar no Brasil se deve, sobretudo, a uma espécie de consenso

entre as frações da classe dominante pelo retorno à democracia, em que pese toda a mobilização

e lutas travadas por amplos setores da sociedade. Seu legado ainda se faz presente tanto nas

estruturas institucionais do Estado quando na difusão dos valores e modos que determinam a

sociabilidade burguesa brasileira. Ainda assim, consideramos os anos 1980 como época fecunda

em experimentalismos macroeconômicos e também de uma reversão cultural explícita que vem

influenciando as relações sociais até os dias atuais, mesmo que a Cepal classifique a década

como “perdida”.

Recebe o legado de sua década sucedânea e registra a intensificação da migração rural-

urbana; a diversificação das atividades econômicas produtivas; um modesto, porém

contundente, incremento nas atividades de gestão do mercado financeiro; novas oportunidades

de trabalho nos setores secundário e terciário; e acentuação no trabalho feminino326

.

O início dos anos 80, se não assiste a um crescimento expressivo da economia, registra um

crescimento vertiginoso da população. Segundo censo de 1980, do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE), a população brasileira cresceu de 93,13 milhões, em 1970, para

119 milhões. As atividades industriais intensificaram-se e, em 1980 o PIB brasileiro foi de 163

bilhões de dólares. O Brasil figurava como a 12a economia do mundo.

Os dados da época (fim dos anos 70 e início dos 80) apontam para uma eufórica arrancada

do crescimento econômico, com o aumento das exportações, gerando superávits na balança

comercial, além da cobertura dos serviços da dívida pelos influxos do capital estrangeiro.

Contudo, a lógica do “produtivismo” dos anos 70 implicava a criação de condições necessárias

325

VIEIRA, Evaldo. Ob. Cit., 1983. 326

Segundo Montali, em 1960, as mulheres representavam 17% da População Economicamente Ativa

(PEA), proporção que passou a 20,9%, em 1970; a 27,4%, em 1980; e a 35%, em 1985. A proporção de

mulheres na PEA urbana cresceu de 33,6%, em 1981, para 37,8%, em 1990, e sua taxa de atividade saltou

de 33,7%, em 1981, para 40,1%, em 1990 (In: MONTALI, Lilia. Família e trabalho na conjuntura

recessiva: crise econômica e mudança na divisão sexual do trabalho. Tese (Doutorado)- Universidade de

São Paulo (USP), São Paulo, 1995. p.23.

Page 203: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

203

para o investimento (subordinadamente externo) acumulando capital que, em tese, deveria

significar investimentos em solo nacional.

Com isso, tem-se a conivência em estrangular a vida econômica presente (e de várias

gerações) para lograr um futuro de desenvolvimento sustentado. Essa ideia defendida por

personalidades como Mário Henrique Simonsen e Delfim Neto, durante todo o período militar,

entraria em derrocada327

na crise de 1981-1983, pois o aumento exponencial da concentração de

renda, incidindo diretamente no aumento da desigualdade e da pobreza, não permitia a

sustentação de tal tese.

Tabela 2 - PEA versus PNB/ano – Brasil – 1976 a 1978

População economicamente ativa Quota do PNB por ano

50% mais pobres 17,71% | 14,91% | 11,6%

30% imediatamente acima 27,92% | 22,85% | 21,2%

15% da camada média 26,60% | 27,38% | 28,0%

5% mais ricos 27,69% | 34,86% | 39,0%

Fonte: Revista Isto É, 9 de agosto de 1979. (1976, 1977, 1978).

Com a explicitação evidente da contradição mais elementar do capitalismo: o aumento

exponencial da riqueza em consonância com a expropriação do trabalho, não foi possível, aos

governos em exercício, manter o controle das massas. Assim, sãoexpressivas as votações nos

candidatos da oposição, nas eleições de 1974, 1978 e 1982, e as mobilizações em prol dos

sindicatos, associações de professores e estudantes, o posicionamento da Igreja através de seus

setores progressistas, e as constantes greves de operários.

Mesmo na conjuntura economicamente favorável do período posterior (1984-1986), a

contradição fundamental de sustentabilidade do capital via mercado permanece. Ou seja, a

população economicamente ativa aumenta328

, assim como a participação das mulheres no

mercado de trabalho salta de 33,1%, em 1984, para 35,1%, em 1988, também a taxa de

desocupação quase se equipara à dos homens, 4,1% contra 4,3%, mas os salários baixos e a

dupla jornada permanecem.

Esse período é caracterizado, por muitos estudiosos, como o início concreto da

redemocratização.

2.1.3.1 O Plano Cruzado (1986)

Em 1984, a campanha pelas Diretas Já é organizada por um comitê supra-partidário e

pressiona o Congresso a colocar em votação a emenda proposta pelo deputado federal, pelo

327

Derrocada que ocorre com a crise econômica seguinte, mas a concepção enquanto pilar da economia

burguesa permaneceria viva como elemento fundante da ideologia liberal renovada nos anos 90. 328

A taxa de atividade da PEA de 1981 salta de 53,4 para 56,1, em 1985 (IBGE, 1987).

Page 204: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

204

PMDB-MT, Dante de Oliveira. A emenda obtém 298 votos a favor e 65 contra. Há ainda três

abstenções e 113 ausências. É importante lembrar que as ausências e os votos contrários eram

todos do PDS, partido liderado até hoje pelo então deputado paulista Paulo Salim Maluf, porém,

atualmente sob a sigla PP (Partido Progressista). Derrotada, a emenda não consegue os 2/3 de

votos necessários para sua aprovação, fazendo permanecer ainda as eleições indiretas.

Na iminência da sucessão presidencial, Paulo Maluf polariza com Tancredo Neves as

candidaturas. Maluf, notadamente candidato do sistema, e Tancredo acaba por se configurar

como candidato da oposição, ainda que com um leque ambíguo de alianças. O período fica

conhecido como Nova República. A eleição indireta para presidente acontece em 15 de janeiro

de 1985 e indica a vitória de Tancredo Neves. O acontecimento é marcado como um fato

importante da história do País, sendo televisionado e acompanhado pelo povo com forte

interesse. Eram recorrentes as promessas dos políticos da oposição, agora vitoriosa, de que esta

seria a última eleição indireta.

Os desafios do novo presidente, além de (re)instaurar a democracia no País, eram

muitos e de naturezas diferenciadas. De um lado, as aspirações populares pelo retorno à

democracia incluíam o desejo da melhoria das condições de vida, o aumento do nível de

emprego e melhores salários, o controle da inflação e da crise recessiva; por outro lado, o novo

governo deveria se preocupar com os desmandos dos organismos internacionais, principalmente

o FMI, com as renegociações da dívida externa e a revisão das relações exteriores do País com o

resto do mundo.

O apelo clássico para adesão às propostas reformistas é enfatizado pelo discurso dos

novos donos do poder: Um novo pacto social precisa ser feito para livrar o País das estruturas e

das práticas autoritárias de outrora. Evidencia-se novamente a utilização do “social” como

estratégia para ocasionar mudanças sem subverter a ordem. As mudanças devem ocorrer sem

perturbar a paz social. Ocorre que o presidente eleito nem chega a tomar posse. Tancredo Neves

morre em 21 de abril de 1985. A comoção que se instala no País personifica a figura do

Presidente no já conhecido messianismo político, ao mesmo tempo em que exige,

principalmente das esquerdas, mobilizações no sentido de inserir cada vez mais mecanismos de

participação democrática e popular na vida do País.

O vice-presidente José Sarney assume a Presidência sem ao menos desfrutar da frágil

estabilidade econômica do período iniciado, pois a necessidade de um reordenamento

institucional no País abala os ânimos tanto do mercado financeiro, quanto do setor produtivo,

acarretando recordes nos níveis inflacionários e desaceleração das atividades produtivas. O

número de falências e concordatas sobe para a casa dos 8%. A gravidade da situação econômica

do País desencadeia um amplo movimento de reivindicações e protestos, abalando a esperança

na Nova República.

Page 205: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

205

Com isso, em 28 de fevereiro de 1986, por meio do Decreto-Lei 2.283, o governo do

Presidente José Sarney cria um plano de estabilização econômica, chamado Plano Cruzado.

Criado em 1986, implementava as seguintes medidas: a desvalorização da moeda nacional em

três algarismos e a substituição do Cruzeiro; a moeda nacional passa a se chamar Cruzado,

sendo que cada um Cruzado corresponde a um mil cruzeiros; o congelamento dos preços

fixados em 28 de fevereiro de 1986, com vigência de um ano; o congelamento dos salários, pela

média dos últimos seis meses, além de um abono de 8% a todas as categorias como forma de

reposição salarial; a transferência para o setor privado de inúmeras empresas estatais; o corte de

20% nos investimentos do governo e, ao mesmo tempo, a definição das áreas sociais como de

investimento prioritário.

A ideia é reestabelecer o crescimento econômico do País, combater a inflação e distribuir

melhor a renda. De imediato, o apoio popular é percebido. A medida de congelar os preços

estipulados em tabela a partir do governo agrada às famílias pobres, em especial, pois a

instabilidade do período anterior não lhes dava condições sequer de planejar minimamente o

orçamento doméstico. Assim, a palavra fiscal era utilizada como sinônimo de direito. As

pessoas fiscalizavam de fato os comerciantes que desrespeitavam as regras estabelecidas.

Evidente que numa democracia burguesa, isto é, numa sociedade de classes, os interesses

logo começam a entrar em disputa. A desaceleração no âmbito produtivo, principalmente no

setor alimentício, leva, ao mesmo tempo em que trouxe de volta à mesa do trabalhador,

produtos como carne, leite e queijo, ao aparecimento de novos produtos, ou melhor, produtos

maquiados. Os produtores, para não reduzir sua margem de lucros, lançam novos produtos no

mercado que substituem os antigos e carecem, portanto, de novos preços. A Federação das

Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) pressiona o governo a descongelar gradativamente os

preços. Instaura-se uma velada crise política e o governo, após as eleições de novembro do

mesmo ano, lança o Plano Cruzado II, que radicaliza o primeiro. Promove uma série de aumento

de preços, faz a inflação [controlada artificialmente] voltar, o que esfacela a economia popular.

O controle artificial da inflação e as medidas decretadas pelo Plano Cruzado garantem um

“novo, porém breve, suspiro” de Estado Social para a sociedade brasileira sem, contudo,

provocar qualquer mudança estrutural que significasse reversão da ordem burguesa. O governo

se sente à vontade para promover alterações no plano econômico por decretos-lei. Assim, o

Plano Cruzado II, torna-se um dos mais duros pacotes econômicos já lançados no País.

Estabelece aumentos de preços deteriorando a economia popular. Em 20 de janeiro de 1987, o

governo suspende o pagamento dos juros da dívida externa, declarando moratória.

Page 206: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

206

2.1.3.2 O Plano Bresser (1987)

A popularidade do Presidente entra em declínio e com isso reformas ministeriais são feitas.

Em abril de 1987, Dílson Funaro é substituído por Luís Carlos Bresser Pereira e em junho do

mesmo ano anuncia-se o Plano Bresser, com as seguintes medidas: congelamento dos preços

por dois meses, elevação de tarifas e impostos, extinção do gatilho salarial329

, eliminação dos

subsídios do trigo e adiamento das obras de grande porte, como a Ferrovia Norte-Sul e o polo

petroquímico do Rio de Janeiro.

No plano da política externa, retomam-se as negociações com o FMI, suspendendo a

moratória. Medidas insuficientes que não impediram que a inflação atingisse, em 1987, a

extraordinária meta de 366%.

2.1.3.3 O Plano Verão (1989)

Em 1989, tem-se novo ministro da Fazenda. Maílson da Nóbrega, seguindo a tradição de

seus antecessores, anuncia o Plano Verão e muda novamente a moeda. Lança o Cruzado Novo

(agora com três zeros a menos) e mais arrocho salarial.

Em nome do desenvolvimento (agora social e não apenas econômico)330

prosseguem as

medidas de abertura da economia para o mercado externo acompanhadas de privatização de

empresas estatais e cortes nos gastos públicos.

Uma das medidas mais drásticas e polêmicas do Plano Verão foi a continuidade das

modificações ocorridas já no plano Bresser relativas à substituição do índice de correção das

cadernetas de poupança. O Índice de Preços ao Consumidor (IPC) passa a ser esse indicador, o

que no final resulta em perdas materiais do rendimento das cadernetas.

2.1.3.4 Os Planos Collor I e II (1990 – 1991)

Essa, sem dúvida, foi a conjuntura dos planos desastrosos. A Nova República pode ser

entendida como um período de investidas “amadoras” na regulação macroeconômica da

sociedade brasileira. Não que seus mantenedores fossem amadores, mas não se verificava a

existência de um projeto de desenvolvimento nacional que desse conta de compatibilizar

interesses das diversas frações da classe dominante sustentado em uma cooptação da classe

trabalhadora como se fizera no Brasil de outros tempos.

329

Relativo ao aumento automático dos salários sempre que a inflação atingisse a casa dos 20%. 330

O slogan do governo Sarney, “tudo pelo social”, foi amplamente divulgado pelo governo e pelos

meios de comunicação.

Page 207: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

207

Nem aqui, nem nos demais países da América Latina registravam-se as condições históricas

adequadas para sua inserção no mundo “democrático” em vésperas de globalizar-se, afinal, o

seu tradicional modelo de desenvolvimento desigual e combinado, não conferia a autonomia

mínima necessária para tal empreitada. Prova disso é que de Sarney a Lula, o número de

Medidas Provisórias (MPs) e decretos-lei do Executivo tem batido recordes históricos. Ou seja,

nossa classe política, com suas constantes investidas na pactuação consensuada do poder,

governa à revelia das instituições da democracia representativa, essencialmente da mesma forma

que os Atos Institucionais da época militar.

Incapaz de propor alterações substanciosas, o governo Sarney transfere para seu sucessor a

responsabilidade de amainar a crise. Crise que seria enfrentada à luz de um novo aparato legal: a

Constituição Federal de 1988.

Importante inovação estabelecida pela Constituição de 1988, segundo Fausto (2002), é a

eleição em dois turnos para os cargos majoritários. A ideia é que o candidato eleito tenha

sempre a maioria absoluta dos votos. A eleição de 1989 traz um cenário político plural inédito

na história do País. Foram 22 candidatos, ficando o total de votos assim contabilizado, no

primeiro turno, em percentuais: Collor: 25,11; Lula: 14,16; Brizola: 13,60; Covas: 9,49; Maluf:

7,30; Afif: 3,98; Ulysses: 3,90; Freire: 0,93; Aureliano: 0,73; Caiado: 0,59; Camargo: 0,46;

Enéas: 0,44; Marronzinho: 0,29; PG: 0,24; Zamir: 0,23; Lívia: 0,22; Eudes: 0,19; Gabeira: 0,15;

Brant: 0,13; Pedreira: 0,10; Horta: 0,10; Brancos: 1,43; Nulos: 4,24; Abstenções: 11,93 (TSE).

O Presidente eleito toma posse em 15 de março de 1990, no Congresso Nacional, diante das

câmeras de TV que transmitiram o evento para todo o País e com a presença de vários chefes de

Estado. No dia seguinte, em cerimônias também transmitidas pelas TVs, Fernando Collor baixa

um pacote de medidas econômicas, financeiras e administrativas composto por 23 MPs, ao qual

o governo chamou de Plano Brasil Novo, o qual, de imediato, fica mais conhecido como Plano

Collor ou Plano Cruzeiro. Seus objetivos declarados foram o combate à inflação, o

“enxugamento” da máquina do Estado e a eliminação do déficit público como condições para a

retomada do crescimento da economia.

Os eixos básicos do Plano Collor foram os seguintes: a reforma monetária, com a

substituição do Cruzado Novo pelo Cruzeiro, sem alteração do valor; a retenção por 18 meses

(na prática, confisco) das contas, em Cruzados Novos, das pessoas físicas e jurídicas nos valores

acima de NCz$ 50 mil. Até esse valor, as contas foram convertidas em cruzeiros. Para as

contas-correntes e as cadernetas de poupança e até NCz$ 25 mil , ou 20%, para as contas de

over e fundos de curto prazo; o congelamento parcial e controlado dos preços, que deveriam ser

praticados nos níveis em que estavam no dia 12 de março (antes houve um aumento

considerável nos preços); o fechamento de estatais, como início de um processo de

privatizações; nova abertura para o capital estrangeiro; eliminação de entraves para a

importação de bens de consumo; a contenção, visando a eliminação do déficit público,

Page 208: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

208

suprimindo-se despesas governamentais e colocando-se à venda imóveis e veículos até então

usados por funcionários e repartições federais.

Vale ressaltar que o Plano Collor não contemplou a questão da dívida externa, deixando

para negociá-la depois de obter os resultados internos, esperados com a aplicação das medidas

econômicas. O Plano Collor recebeu maciço apoio da população.

No início, apesar da confusão que se instaura na vida econômica do País, três ordens de

questões afloraram: a necessidade de ações anti-inflacionárias, a forma autoritária de sua

proposição e execução (MPs usadas como se fossem decretos-lei) e a inconstitucionalidade de

determinadas medidas propostas.

Alguns analistas na época afirmavam que o Plano Collor, de um lado, lesivo aos interesses

do País, sobretudo dos trabalhadores, aumentando o desemprego, por causar recessão e, além

disso, a privatização e a abertura econômica, aumentaria a dependência estrangeira. Do mesmo

modo, amplia as margens do patrimonialismo, ao não promover uma reforma institucional. Na

esfera política, as relações entre o Executivo e o Legislativo não eram das melhores. O

excessivo número de MPs não disfarçava o autoritarismo desse governo.

As condições em que o governo Collor recebe o País atestavam um momento grave de crise,

porém, com possibilidades concretas de reversão desse quadro, por meio de alterações

estruturais internas, mas que certamente, iriam em direção contrária aos interesses

conservadores no Congresso e no próprio Executivo.

Os vários planos econômicos citados até agora demonstraram um efeito muito superficial

sobre o poder aquisitivo real oriundo dos rendimentos do trabalho. Salvo os momentos

imediatos de sua implantação, nos demais, não apresentaram mudanças permanentes na relação

entre a distribuição da renda e a capacidade do consumo. Ademais, deixaram como sequela

perverso agravamento na concentração da renda.

Tabela 3 - Apropriação da riqueza – Brasil, 1981, 1990, 1999

Data Parcela

apropriada por

1% dos mais

ricos

Parcela

apropriada por

10% dos mais

ricos

Parcela

apropriada por

20% dos mais

pobres

Parcela

apropriada por

50% dos mais

pobres

1981 12,71 46,72 2,62 13,03

1990 13,80 49,05 2,11 11,35

1999 13,31 47,45 2,34 12,55 Fonte: IPEA. Ipeadata: base de dados macroeconômicos. Disponível em: <www.ipeadata.gov.br>.

O Plano Collor é, sem dúvida, responsável por uma das medidas mais traumáticas para a

população brasileira, em termos de arranjo macroeconômico. A intenção de bloquear cerca de

US$ 85 bilhões (2/3 da moeda em circulação) deu-se com a intervenção do governo nas

transações bancárias. Securato (2000) lembra que tanto poupadores quanto os correntistas foram

autorizados a retirar dos bancos, no máximo, Cr$ 50 mil. Com relação aos depósitos em contas

Page 209: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

209

remuneradas de curto prazo, permitia-se o saque de 20% sobre o total depositado, desde que não

ultrapassasse Cr$ 25 mil.

O dinheiro que havia sido bloqueado foi totalmente recolhido pelo Banco Central,

com a promessa de ser devolvido depois de 18 meses, em 12 parcelas mensais. Nesse

entretempo, o Cruzado sequestrado pelo governo ficaria rendendo juros e correção

monetária. Embora, teoricamente, afirmassem que ninguém sairia perdendo, na

prática, todos foram prejudicados por essas medidas, já que o governo ignorou a

inflação de fevereiro daquele ano. Apesar do choque, a inflação que tinha baixado,

voltou a aumentar em dezembro de 1990, chegando ao patamar de 18,3%. Por conta

disso, em fevereiro de 1991, foi posto em prática o Plano Collor II, com congelamento

de preços e salários e prefixação dos juros. Do mesmo modo que o primeiro, o Plano

Collor II também se mostrou ineficaz. (SECURATO, 2007, p. 256)331.

2.1.3.5 O Plano Real (1994)

O autoritarismo de Collor, sobretudo em sua relação com o Legislativo, o fracasso de

suas medidas econômicas e sua incapacidade de coordenar e/ou acomodar os diversos interesses

do bloco no poder o levaram ao impeachment, em setembro de 1992. Seu vice, Itamar Franco,

assume a Presidência332

.

Seguindo a tradição de seus antecessores, Itamar Franco assume o governo e, após

sucessivas trocas de ministros, anuncia um novo plano de estabilização econômica, sob o

comando do então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso. Nasceria aí o Plano Real.

A euforia em torno do nome de Fernando Henrique Cardoso lembra em muito a euforia

no início do governo Sarney. Desta vez, porém, dotada de um refinamento teórico-

metodológico, típico da intelligentsia que se constituiu no interior das lutas pela democracia e

conquistou notoriedade internacional, tentando explicar o fenômeno do subdesenvolvimento nos

países da periferia capitalista em fins dos anos 60.

O Plano Real lançado em julho de 1994, quando FHC ainda era ministro do governo

Itamar Franco, busca os mesmos macro-objetivos dos anteriores, com estratégias semelhantes,

como a contenção dos gastos públicos, privatização das estatais, controle da demanda por meio

da elevação dos juros, e pressão sobre os preços pela facilitação das importações.

A diferença é que não congelou os preços e nem salários, além disso, a transição para a

desvalorização da moeda foi gradativa, com a adoção provisória das Unidades Reais de Valor

331

SECURATO, José Cláudio. Economia: História, conceitos e atualidades. São Paulo: Sain Paul

Editora, 2007. 332

Discordamos das análises que atribuem a deposição do presidente Collor apenas às manifestações

populares que expressaram a insatisfação do povo com seu governo. Entendemos que tais manifestações,

embora fundamentais no processo, não podem ser analisadas de modo isolado do movimento e das

tensões que se estabeleceram entre as frações da classe dominante. (Consultar: CARVALHO, Rodrigo. A

era Collor: da eleição ao impeachment. São Paulo: Perseu Abramo, 2012).

Page 210: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

210

(URVs), que propunham o acompanhamento equiparado da moeda nacional ao dólar norte-

americano. A medida agradou os altos estratos da sociedade brasileira, mas também à classe

trabalhadora, que via seu poder aquisitivo crescer em conformidade com o aumento dos preços,

uma vez que o padrão de sociabilidade burguesa se parametriza crescentemente pelo consumo.

Essa seria a primeira medida para a criação da ilusão da estabilidade, base do governo e

instrumento de coerção ideopolítica que garantiria a eleição de Cardoso para a Presidência, em

sucessão a Itamar Franco, em janeiro de 1995, e sua reeleição no primeiro turno, em 1998.

O principal argumento utilizado na campanha à Presidência da República para a

sucessão de Itamar Franco era que somente o pai do Real teria condições de dar continuidade

ao processo em curso, colocando o País de fato no caminho do desenvolvimento sustentável.

Processo, esse, ameaçado pelos ataques especulativos culminantes em crises financeiras

internacionais de grande expressão (México, Rússia, Tóquio e mais tarde Argentina).

Outro argumento utilizado e que mais tarde passaria do campo ideológico e teórico ao

campo político-operacional, viria a ser a necessidade latente de funcionalizar o aparelho do

Estado brasileiro, falido e ineficiente, por meio de ampla reforma, nos moldes daquelas

realizadas por Thatcher, na Inglaterra, e Reagan, nos Estados Unidos. As teses de sustentação do

Welfare State, que já não serviam mais como paradigmas aos países de capitalismo central,

também não serviriam, de acordo com essa lógica, ao Brasil, que sequer chegou a ter um Estado

de Bem-Estar.

O cenário posto permite a retomada do debate sobre o planejamento estatal para o

desenvolvimento, esquecido nos governos anteriores por causa da urgência das experimentações

de planos econômicos inconsequentes.

Não se tratava da agenda de um desenvolvimento nos moldes do desenvolvimentismo

clássico e nem das proposituras ditas neodesenvolvimentistas que se fazem por agora (governos

Lula e Dilma). O projeto político-econômico tinha como cerne a contrarreforma do Estado em

sintonia com as propostas de difusão do neoliberalismo pactuadas no Consenso de Washington.

O primeiro governo de FHC persegue insistentemente as metas de estabilização pela via

do controle inflacionário, sem se preocupar com os custos sociais desse processo. Isso não

significa o esquecimento da área social, ao contrário, esta também foi contemplada com um

arranjo político-ideológico-doutrinário à altura da intelectualidade da então primeira-dama,

senhora Ruth Cardoso.

A área social, na contrarreforma, desloca-se do campo da responsabilidade estatal para o

campo do solidarismo privado. Com isso, a sociedade passa a se ocupar do enfrentamento das

mazelas da “questão social”, liberando o governo para cuidar da vida econômica do País.

O controle inflacionário privilegia a acomodação da poupança externa – compatível

com o perfil pessoal internacionalista de FHC – com juros altos e câmbio controlado. Tornaram-

se assim [juros altos e controle artificial do câmbio] sinônimos de desemprego, recessão,

Page 211: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

211

arrocho salarial e arrocho do crédito interno. Tanto que, em 1994, o Presidente Cardoso assume

o País com uma dívida pública que beira a casa dos R$ 60 bilhões e, oito anos mais tarde,

entrega o País ao Presidente Lula com uma dívida de R$ 623 bilhões.

Nos anos 90, destacam-se ainda o legado do extraordinário desenvolvimento das forças

produtivas sentido a partir dos 1980, que redunda, de um lado, em amplos processos de

reestruturação produtiva e, por outro, em novos padrões de sociabilidade capitalista com base na

desterritorialização crescente do capital e no desperdício catastrófico, como classifica Mészáros

(2002). Ou seja, o câmbio nas relações de trabalho – agora internacionalizadas – não significa

transferência de tecnologia entre países ricos e pobres, mas sim a consolidação do imperialismo

dos primeiros sobre os segundos, fazendo com que os procedimentos de ajuste neoliberal

figurem como remédios para as nações em crise ou em desenvolvimento com vistas a alcançar

as promessas da mundialização.

Page 212: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

212

Capítulo III

CONTINUIDADE E RUPTURA: NOVO-DESENVOLVIMENTISMO

OU NEOLIBERALISMO À BRASILEIRA?

A história do intervencionismo estatal não é nem uma história homogênea

nas diversas formações sociais, nem uma história linear de um Estado

acumulando e adjudicando, progressivamente, tais ou quais atividades ou

domínios econômicos intrínsecos: é uma história de desenvolvimento

desigual segundo as diversas formações, com avanços e recuos.

Nicos Poulantzas

Até aqui, temos visto como a tematização da problemática teórico-prática do Estado

tem se revestido de controvérsias, caminhos e descaminhos, desde suas formas mais primitivas,

de proto-Estado, até seus moldes atuais. O fato é que sua forma hegemônica contemporânea

provinda do advento da razão moderna adquire a particularidade histórica de se dissociar de um

regime político que possa acolher em seu interior aspirações éticas, políticas, ideológicas,

culturais, econômicas, dentre outras, que nada mais são do que as representações materiais e

simbólicas dos interesses das classes que se condensam no Estado como decorrência da luta que

empreendem no campo da produção e reprodução social333

.

Assim, o Estado burguês, ao acomodar os interesses da classe dominante e suas frações

em seu interior, sob o amalgama do pensamento liberal, legitima a democracia, que assume sua

forma, portanto democracia liberal, como seu revestimento político mais adequado. E isso se

deve a um fato muito simples: a sustentabilidade desse tipo de Estado que, por consequência, é

a sustentabilidade do próprio capitalismo e não pode prescindir da radicalização do trabalho

333

Para Poulantzas (2000, p. 147), as lutas populares estão inscritas na materialidade institucional do

Estado, mas não se esgotam aí. Refere: “As lutas políticas desencadeadas sobre o Estado não estão, tanto

quanto qualquer luta frente aos aparelhos de poder, em posição de exterioridade frente ao Estado, mas

derivam de sua configuração estratégica: o Estado, como é o caso de todo dispositivo de poder, é a

condensação material de uma relação”. O autor é bastante racional, ao considerar a assimetria dessa

relação quando informa que “a existência das classes populares não se materializa no seio do Estado da

mesma maneira que as classes e frações dominantes, mas de maneira específica” (p.145). Explica: “As

classes e frações dominantes se constituem no Estado mediante aparelhos ou setores que, certamente sob

a unidade do poder do Estado da fração hegemônica, não deixam de cristalizar um poder próprio dessas

classes e frações. Não é mediante aparelhos que concentram um poder próprio das classes dominadas que

elas se constituem no Estado mas, no essencial, sob a forma de focos de oposição ao poder das classes

dominantes. Seria falso — deslize com consequências políticas graves — concluir que a presença das

classes populares no Estado significariam que elas aí detenham poder, ou que possam a longo prazo deter,

sem transformação radical deste Estado” (p. 145). Retomaremos esta assertiva no Capítulo 4, quando

tratarmos do modo como o Serviço Social incorporou, ao longo de sua história, os postulados da

democracia liberal em suas expressões “participativas” e “representativas”, como forma de participar da

luta das classes subalternas por melhores condições de vida.

Page 213: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

213

livre, pois nele reside a chave primeira de todo o processo do desenvolvimento capitalista e da

acumulação que lhe é inerente.

Desta forma, a democracia burguesa tem disseminado, ao longo de sua história, seus

postulados, quase que como em profissão de fé, mundo afora, afirmando que essa formação

social, que combina capitalismo e democracia, é o estágio civilizatório mais elevado que a

espécie humana pode alcançar (PAULA, 2012)334

.

Como não poderia deixar de ser, considerando as contradições imanentes desse modo

de produção e sua formação social correspondente, os postulados liberais servem à acumulação,

mas também possibilitam relativa mobilidade social que, nos seus limites, não impede que a

classe-que-vive-do-trabalho335

, possa organizar-se em torno de uma luta por melhores condições

de vida e, nesse processo, constatar-se a aquisição de uma consciência de classe mesmo

relativa.336

No Brasil, uma sacralização da democracia liberal está sendo sentida desde o fim do

último período autocrático burguês (1964-1985) até os dias de hoje. Por aqui, se propala seu

triunfo atestado pela estabilidade das instituições jurídico-políticas de nosso Estado com

eleições diretas nos três níveis de governo; o exemplo mais acabado; e, mais recentemente

corroborada pela “estabilidade econômica” do Plano Real, seguido de políticas chamadas de

novas e desenvolvimentistas.

Caminhando para muito além dos componentes políticos e ideológicos desse processo,

o projeto de nossa democracia liberal é amparado pelos estatutos normativos dispostos na

Constituição Federal de 1988, alcunhada de Constituição Cidadã, justamente por apresentar as

diretrizes que nortiam a construção do sujeito-cidadão brasileiro. Lá, consagra-se o direito à

vida, mas também à propriedade, o direito do Estado exercer seu poder coercitivo, por ser

regulatório, mas também o direito à participação dos cidadãos na agenda pública. Só para

nominar dois exemplos simples de como o pensamento burguês controla, sob a aparência da

liberdade, as nossas relações sociais.

Nessa mesma contradição, acompanhando o processo de redemocratização de vários

Estados nacionais, sobretudo na América Latina, o Brasil vê reconfigurar-se na cena pública

sujeitos históricos outrora suplantados pela truculência da ditadura, no sentido de não apenas

334

PAULA, Renato Francisco dos Santos. O instituído e o instituinte do controle social da assistência

social no Brasil pós-Suas. XIII ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM SERVIÇO

SOCIAL – ENPESS. Anais. Juiz de Fora/MG, novembro de 2012. (ISBN 978-85-89252-11-9). 335

Termo alcunhado por Ricardo Antunes. (In: ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre

as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 8. ed., São Paulo: Cortez, Campinas: Unicamp,

2002). 336

Evidente que o processo de consciência de classe não ocorre assim de modo simples e linear, como

pode sugerir uma leitura primeira de nosso texto. Como não é possível aprofundar esse processo aqui,

interessa-nos apenas demonstrar que ele faz parte das contradições dadas pela realidade mesma da ordem

do capital e seus padrões de sociabilidade. Nos itens 4.2.1 e 4.2.2 esse processo é mais bem esclarecido.

Também a obra História e Consciência de Classe, de Georg Lukács, é elucidativa, nesse sentido.

Page 214: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

214

imprimir mais diretrizes democráticas ao arcabouço legislativo como também implantá-las

idealmente337

.

Reconstroem-se, na euforia da redemocratização, os conceitos de participação e de

sociedade civil. Conceitos estes muito caros tanto para a esquerda reformista quanto para a

esquerda anticapitalista, pois neles, por exemplo, se busca sentido às estratégias e táticas

pertinentes ao advento tanto da social-democracia quanto da Revolução Comunista, por etapas

ou por ruptura radical. Basta observar os embates teóricos da II Internacional, ou proceder a

uma análise sobre a instituição dos sovietes, na URSS; das comunas populares, na China; ou das

comunas socialistas, na atual Venezuela. Isto é, não se pode ignorar a importância dessas

categorias para a teoria e a prática da reforma (real e substantiva) ou da transição comunista.

Numa sociedade de transição, possibilidades civilizatórias emanam do interior de suas

contradições quando as oposições ao sistema dominante imprimem parte de seus interesses

imediatos como condição de luta.

(...) neste tipo de sociedade [a sociedade de transição] os direitos humanos estipulam

o padrão que no interesse da igualdade verdadeira, o direito ao invés de ser igual, teria

de ser desigual, de modo a discriminar positivamente em favor dos indivíduos

necessitados, no sentido de compensar as contradições e desigualdades herdadas.

(MÉSZÁROS, 1993, 217)338.

Porém, a discriminação positiva como parte do complexo mediativo e intermediário à

transição socialista não é algo dado à realidade factual. Nem no Oriente e nem no Ocidente. O

conceito de sociedade civil e com ele o de participação — que em Gramsci (ou mesmo

Poulantzas) adquirem inteligibilidade a partir da luta de classes — foram sobremaneira

vulgarizados visto que são empregados tanto pela “esquerda histórica quanto pelas novas

esquerdas, tanto pelo centro liberal quanto pela direita fascista” (NOGUEIRA, 2001, p. 216)339

,

o que torna a luta por direitos humanos cada vez mais cindida e desprovida do caráter de classe:

337

In: SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 338

MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social. Ensaios de negação e afirmação. São

Paulo: Ensaio, 1993. 339

NOGUEIRA, Marco Aurélio. As três ideias de sociedade civil, o estado e a politização. In:

COUTINHO, Carlos Nelson; TEIXEIRA, Andréa de Paula Teixeira. Ler Gramsci, entender a

realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

Page 215: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

215

Fala-se em sociedade civil para pensar a oposição ao sistema capitalista e para delinear estratégias

de convivência com o mercado, para propor programas democráticos radicais e para legitimar

propostas de reforma gerencial no campo das políticas públicas. Busca-se apoio na ideia de

sociedade civil tanto para projetar um Estado efetivamente democrático quanto para se atacar todo

e qualquer Estado. É em nome da sociedade civil que muitas pessoas questionam o excessivo

poder governamental ou as interferências e regulamentações feitas pelo aparelho de Estado. É em

seu nome que se combate a globalização neoliberal e se busca delinear uma estratégia em favor de

uma outra globalização, mas é também com base nela que se faz o elogio da atual fase histórica e

se minimizam os efeitos das políticas neoliberais. Muitos governos falam de sociedade civil para

legitimar propostas de reforma e ajuste, tanto quanto para praticar as mesmas políticas de sempre

com uma retórica levemente modernizada, do mesmo modo que outros tantos governos

progressistas buscam sintonizar suas decisões com as expectativas da sociedade civil. Em suma, o

apelo a esta figura conceitual serve tanto para imaginar a autonomia dos cidadãos, quanto para

viabilizar programas de ajuste fiscal e desestatização, nos quais se convoca a sociedade civil para

compartilhar encargos até então eminentemente estatais (id., ibid., p. 216).

Portanto, esse campo essencial dos nossos exames, contudo impreciso, busca

acomodação na América Latina justamente numa conjuntura em que se busca afirmar a

democracia sem que tenhamos vivido experiências democráticas sólidas que nos conduzissem

para um tipo de democracia que pudesse pautar uma real sociedade de transição. Se

acrescentarmos a isso a jovialidade dos próprios países latino-americanos, como Estados-

nacionais veremos o modo particular como o desenvolvimento capitalista se deu por aqui num

mix longevo de trânsito entre continuidades a esse próprio desenvolvimento e rupturas

peculiares que ilustram as excepcionalidades desse subcontinente ante os padrões de

desenvolvimento do capitalismo global (ALMEIDA, 2012)340

.

O autor alega que “no Brasil, as continuidades predominaram amplamente sobre as

rupturas, o que marcou o ritmo e as formas de organização e luta em processos que, por muito

tempo, representaram acúmulo de forças, mas que, na sequência, perderam empuxe e passaram

por mudanças qualitativas, terminando por se integrar à ordem” (id., p. 702).

E é justamente sobre esse processo integrador ou transformista341

que repousa uma

profusão de teses e reflexões que têm animado a produção acadêmica da última década

promovendo o retorno da academia ao debate sobre o desenvolvimento capitalista e suas

manifestações conjunturais concretas, como o processo que tem sido chamado de

340

ALMEIDA, Lúcio Flávio Rodrigues de. Entre o nacional e o neonacional-desenvolvimentismo: poder

político e classes sociais no Brasil contemporâneo. Revista Serviço Social e Sociedade, n. 112, edição

especial. São Paulo: Cortez, out./dez. 2012. 341

O “transformismo” é categoria gramsciana que, segundo Coutinho (1999) “significa um método para

implementar um programa limitado de reformas, mediante a cooptação pelo bloco no poder de membros

da oposição”. A categoria “transformismo” está diretamente vinculada às de “revolução-passiva” ou

“revolução-restauração”. (Ver: COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento

político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999 ou consultar o próprio Gramsci, em Cadernos do

Cárcere, v. 3).

Page 216: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

216

neodesenvolvimentismo, tratado, nesta tese, como um momento de síntese da acumulação

capitalista em sua fase financista.

Por ser o momento atual o mais longo período de democracia ininterrupta no País — 27

anos, desde 1985 — a acomodação de interesses dominantes na ossatura do Estado e nas

instituições desse regime democrático condicionaram não apenas a retração das pautas

contestatórias da classe trabalhadora como também possibilitaram metamorfoses regressivas e

veladas, mas nem sempre, nos estatutos civilizadores das relações sociais, como o pluralismo,

os direitos humanos, etc., como já dissemos.

Pela exploração bibliográfica das produções que tiveram como foco o desenvolvimento

capitalista brasileiro recente, algumas no campo da tradição marxista, notamos que o período

que coincide com a gestão federal do Presidente Cardoso (1995-2002) é repleto de análises que

caminharam mais coesas na crítica ao corolário neoliberal e contrarreformista que se estabelece

na época, já, de certo modo, com ataques pontuais as imperfeições do modelo institucional

democrático estabelecido342

.

Na conjuntura referida, as promessas de uma reforma gerencial no Estado brasileiro

incluíam a reparação das fragilidades institucionais e também, como que por encanto, uma

ressignificação qualitativa da sociedade civil que, muito mais ativa e politizada se auto-

organizaria em torno da gestão do bem-estar coletivo343

.

O projeto, tal qual fora concebido, não teve tempo suficiente para se realizar. Os dois

mandatos do Presidente Cardoso contaram com uma oposição crescente, e, que, aos poucos

aprendeu a se utilizar do deslocamento das atividades estatais para a “sociedade civil

organizada” para fortalecer a criação de sujeitos coletivos contra-hegemônicos, o que

contribuiu, em parte, para desacelerar o ritmo da ofensiva neoliberal.

Mas, talvez, esse tenha sido o motivo mais periférico para a não conclusão das

contrarreformas. O percurso traçado pelo governo não foi — e não seria por mágica — capaz de

prever os humores da economia mundial, sendo então acometido de quatro grandes crises

externas: a crise do México, em 1995; a crise asiática, em 1997-1998; a crise russa, em 1998-

1999; a crise interna Argentina; as inflexões econômicas decorrentes dos atentados em solo

norte-americano, no dia 11 de setembro de 2001; além das turbulências causadas na economia

mundial por dinâmicas especulativo-fraudulentas de grande monta, como o caso Parmalat ou a

falsificação de balanços da Enron/Arthur Andersen344

.

342

Um bom exemplo disso são os artigos referidos à análise de conjuntura submetidos à Revista Serviço

Social e Sociedade, n. 50 ao n. 72. 343

Esse deslocamento se deu, sobretudo, na área social, cuja maior expressão foi o movimento

denominado por Yazbek de refilantropização. (Ver YAZBEK, Maria Carmelita. A política social

brasileira dos anos 90: a refilantropização da “questão social”. Cadernos Abong, n. 3, São Paulo: Abong,

1995). 344

Ambos os casos referem-se à gestão fraudulenta especulativa de empresas multinacionais, cujos

desdobramentos resultaram em concordatas e falências impactando em todo mercado financeiro mundial.

Page 217: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

217

Outro aspecto é que, internamente, a decisão de abandonar o câmbio fixo pelo câmbio

flutuante leva a uma desvalorização do Real, em 1999, fazendo o governo reforçar a austeridade

de sua política econômica. Ademais, a prioridade concebida pelo governo ao grande capital

financeiro internacional, no processo de liberalização, paralisa pelas membranas (e não em seus

núcleos) as dinâmicas expansivas da burguesia interna (BOITO Jr., 2005)345

, empurrando-a para

a promoção de reordenamentos nucleares que, embora silenciosos, também acumularam capital.

Descobriram a dança das recomposições acionárias e o milagre dos fundos de pensão

(OLIVEIRA, 2009; LAZZARINI, 2011)346

, permitindo, assim, a manutenção da coesão da

classe proprietária nacional mesmo subordinada à internacionalização da economia347

.

Mesmo tendo que “driblar” tais intempéries, o ajuste neoliberal consegue calçar raízes

em solo brasileiro, fixando tanto em nossa institucionalidade quanto em nossa cultura política o

seu corpo essencial348

. Isso também contribui para uma relativa convergência no âmbito das

análises críticas sobre a ofensiva neoliberal no período.

A profusão de conteúdos menos coesos e mais difusos sobre o desenvolvimento

capitalista brasileiro em curso se dá a partir do final de 2002, quando se formaliza a tendência

transformista do principal partido das esquerdas, o Partido dos Trabalhadores (PT), sobretudo

por meio de uma carta de sua principal liderança aos brasileiros, e se acentua a partir do

segundo semestre de 2005, quando o governo do Presidente Lula passa por dificuldades

políticas e institucionais que quase o levam ao impeachment, ao mesmo tempo em que as

tendências programáticas neoconservadoras do governo se mostram com mais clareza349

.

Os ataques críticos da esquerda antirreformista ao transformismo do PT e do Presidente

Lula ocorrem tardiamente, pois embora uma leva de analistas já tenha demonstrado sua

insatisfação na sequência da divulgação da Carta ao Povo Brasileiro, alguns do próprio PT e que

o abandonam posteriormente, muitos outros adotam a posição de cautela, evitando críticas

precipitadas, ainda que traços de continuidade do governo anterior já se fizessem claros, como

se percebe nestas notas de Behring (2003, p. 102):

345

BOITO JR, Armando. O governo Lula e a reforma do neoliberalismo. Revista Adusp, maio 2005. 346

LAZZARINI, Sérgio. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. São Paulo:

Campus/Elsevier, 2011. OLIVEIRA, Francisco de. Crítica da razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo:

Boitempo Editorial, 2009. 347

A lista poderia prosseguir, citando, por exemplo, os percalços das privatizações, o peso encilhador da

máquina do Estado servindo de entrave para diminuir o ritmo das reformas em seu próprio aparelho,

dentre outros fatores; como, no decorrer do capítulo, isso será tratado com detalhes, por ora, nos basta

fornecer uma imagem apenas panorâmica das implicações conjunturais em tela. 348

É o que também afirma Gonçalves (2012) em Novo Desenvolvimentismo e liberalismo enraizado.

Revista Serviço Social e Sociedade, n. 112. 349

Essas tendências se observam pelo reforço à austeridade fiscal, sobretudo, pela manutenção da política

de juros altos e superavitária. A crise deu-se, dentre outros motivos, por uma sucessão de denúncias da

oposição relacionadas a diversas formas de corrupção dentro do governo. A mais propalada foi a

denúncia de que os parlamentares da base aliada ao governo receberiam recursos “mensais” para votar a

favor de projetos de interesse do governo. O processo ficou conhecido como “mensalão”.

Page 218: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

218

Vejamos algumas linhas gerais que delineiam a condição da política social nos

tempos neoliberais, cujos traços gerais permanecem — considerando seu grau de

enraizamento e consolidação estrutural — apesar dos sinais de esgotamento neste

início de milênio (...) Do qual o resultado das recentes eleições presidenciais no Brasil

é muito significativo, ainda que num quadro interno de fortes concessões para as

‘pressões do mercado’ e num contexto de crescimento do belicismo e de

aprofundamento das tendências regressivas da economia mundial. Ainda assim, abre-

se uma nova correlação de forças e o clima geral é de esperança de mudanças

significativas de rota350.

É provável que os traços acadêmico-intelectuais que marcaram o contrarreformismo de

FHC, externalizados pela ampla produção técnica liderada por Bresser Pereira, mas seguido

bem de perto por outros membros do primeiro escalão, como Pedro Malan e José Serra, na área

econômica e o segundo, posteriormente, na Saúde; José Gregori, na Justiça; Adib Jatene, na

Saúde; Paulo Renato de Souza, na Educação; dentre outros, tenha deixado o projeto mais

evidente e, por isso mesmo, mais exposto e acessível a investigações acadêmicas e populares.

O primeiro governo Lula não apresenta o mesmo acabamento. O desenho de Estado

que se queria implementar estava claro nas mentes do Presidente e de seus auxiliares mais

próximos como o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, e o ministro da Fazenda, Antônio

Palocci, mas não se traduzia, pelo menos de modo claro e explícito como fora a obra de Bresser,

em documentos técnicos-políticos e metodológicos, o que explica em parte a cautela adotada

dos analistas críticos ao governo.

Outra parte da explicação recai sobre o enorme apelo popular que a imagem do

Presidente possui junto à classe subalterna, associada às mudanças que promove na relação

capital-trabalho, dando ao “subproletariado” pela primeira vez na história deste País, condições

(marginais e mais ideais que reais) de se sentir parte do poder político da nação, originando o

que Singer (2012) denominou de lulismo, novamente certificando-se da dinâmica de

continuidade e ruptura

O lulismo existe sob o signo da contradição. Conservação e mudança, reprodução e

superação, decepção e esperança num mesmo movimento. É o caráter ambíguo do

fenômeno que torna difícil sua interpretação351.

O ideal de nação e as estratégias para alcançar tal ideal começam a explicitar-se,

deixando mais claro o que Singer (2012) aponta como ambíguo e difícil, com a queda dos dois

braços direitos do Presidente, justamente José Dirceu e Antônio Palocci. A partir daí, o governo

350

BEHRING, Elaine Rossetti. Contrarreforma do estado, seguridade social e o lugar da filantropia.

Revista Serviço Social e Sociedade, n. 73, ano XXIV, São Paulo: Cortez, mar. 2003. 351

SINGER, André. Os sentidos do lulismo – reforma gradual e pacto conservador. São Paulo:

Companhia das Letras, 2012.

Page 219: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

219

passa a se cercar de outros perfis políticos, voltados agora para as atividades técnicas de sua

administração. Dilma Rousseff assume, no lugar de José Dirceu, a Casa Civil da Presidência da

República e Guido Mantega o Ministério da Fazenda. Em 2007, reestruturações internas em

todo Executivo federal levam o economista Márcio Pochmann à Presidência do Instituto de

Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) e Luciano Coutinho à Presidência do Banco Nacional

de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Modifica-se adjetivamente o perfil do

núcleo pensante do governo.

Não estamos afirmando que essas mudanças seriam as motivadoras da emergência do

que o governo passa a denominar por “novo desenvolvimentismo”, pois é possível perceber os

sinais de sua gênese muito antes desses fatos, contudo, seguramente, é possível inferir que a

partir deles é que o projeto novo desenvolvimentista toma forma metodológica acabada,

redundando a partir daí na profusão de análises críticas e/ou conservadoras sobre o fenômeno.

Tal fato se confirma quando defensores desse modelo, como Mercadante Oliva,

afirmam que o projeto petista para o Brasil se construiu na experiência, isto é, no exercício

prático da gestão pública, o que, de certa forma, contradiz toda a história do PT, que sempre

discursara em torno de um projeto alternativo para o País pautado numa reflexão crítica sobre

suas estruturas e seu poder político particular, de modo histórico e não pelo pragmatismo da

prática. A construção do projeto pela prática o eivara de incertezas:

Ainda é difícil prever com exatidão como serão o novo modelo e o mundo que

começa a ser desenhado neste início de milênio. Mas é provável que a exitosa

experiência brasileira recente lance algumas luzes sobre o assunto, antes que passe o

dia das inevitáveis transformações. Usamos o termo “experiência” porque é

exatamente disso que se trata. De fato, esse Novo Desenvolvimentismo que começou

a ser construído no Brasil não surgiu de um grande esforço teórico de reflexão sobre o

desenvolvimento brasileiro e nem de um planejamento estratégico prévio, mas sim da

práxis de um governo popular que procurou, desde o início, reverter os danos

causados ao país pela agenda neoliberal. O Novo Desenvolvimentismo no Brasil é,

assim, uma construção histórica coletiva que está sendo paulatinamente moldada por

novas forças políticas, inéditos cenários internos e externos e demandas sociais

seculares; um complexo processo em andamento que tem, ainda, a distinta marca

pessoal da liderança do presidente Lula. (MERCADANTE OLIVA, 2010, p. 10-

11)352.

352

A base material constitutiva de qualquer projeto político que se leve a cabo deve ser mesmo a

realidade em que se assentam as relações econômico-sociais. Nesse sentido, a afirmação de Mercadante

Oliva plasma-se na contramão de um idealismo que trata a realidade a partir das manifestações abstratas

do pensamento, o que é compatível com a dialética marxiana. Contudo, as implicações negativas da falta

de um projeto político racional e previamente planejado tendem a ser maiores do que as possíveis

intenções positivas contidas na agenda político-pessoal de seus protagonistas. É por isso, inferimos, que

se utiliza o recurso ao personalismo carismático do presidente Lula. Isto é, a incerteza gerada pela

ausência de projeto passa a ser suplantada pelas promessas de uma estabilidade futura afiançada pelo

crédito pessoal do líder político, o que tende a reforçar tanto o patrimonialismo quanto o clientelismo. (In:

Page 220: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

220

A partir disso, uma polarização se estabelece em duas correntes que disputam

hegemonia nas fileiras acadêmicas. A “corrente da ordem” passa a ter os órgãos oficiais de

inteligência como o Ipea e o IBGE e alguns núcleos universitários, como o de alguns

economistas da Unicamp e da UFRJ, como centros elaboradores tanto da metodologia quanto

das explicações legitimadoras da “nova ordem”353

. Almeida (2012) refere que essas correntes

são:

a que insiste em que [Lula] promoveu uma clara ruptura com a política implementada

por [FHC] e a que, ao contrário, afirma que o principal das políticas de Estado no

período 2003-2010, especialmente as políticas sociais, não somente deu continuidade

e aprofundou o que foi realizado pelo tucanato como também se apoiou em sólidos

fundamentos macroeconômicos estabelecidos nos anos FHC (governo Itamar

inconcluso)354.

Essa polarização é eivada de variações internas, em ambos os polos, que indicam que

esse debate está apenas no início. As variações internas, no âmbito de cada polo, se distinguem

naquilo que dão ênfase, pois no final mais se complementam do que se repelem.

Castelo (2012, p. 629) identifica que as correntes que contribuem para a autojustificação

do status quo governista se subdividem em três tipos:

A primeira pode ser chamada de macroeconomia estruturalista do

desenvolvimentismo. A ideia básica apresentada é a primazia do mercado e seus

mecanismos de produção da riqueza, com uma atuação reguladora do Estado nas

falhas do mercado, especialmente nas políticas cambiais e de juros, com destaque para

a promoção das exportações.355.

Essa corrente, segundo o autor, é inaugural da perspectiva novo desenvolvimentista no

Brasil, pois é marcada pela inflexão que sofre a elaboração de seu principal articulista na

direção do abandono sistemático da defesa das teses neoliberais para a propositura de um

modelo alternativo. Bresser Pereira, líder do contrarreformismo neoliberal no Brasil, durante a

Era FHC, passa, então, a defender um modelo de desenvolvimento nacional capaz de se

contrapor ao neoliberalismo (CASTELO, 2012), o que nos sugere, o caso emblemático de

Bresser Pereira, um transformismo às avessas.

MERCADANTE OLIVA, Aloizio. As bases do novo desenvolvimentismo no Brasil. Análise do

governo Lula (2003-2010). Tese (Doutorado)- Instituto de Economia da Unicamp, dezembro de 2010.) 353

Evidente que há dissonâncias e pluralismo de ideais e posturas nesses espaços, contudo, há uma

manifestação hegemônica que nos permite elaborar tal citação. 354

ALMEIDA, Lúcio Flávio Rodrigues de. Entre o nacional e o neonacional-desenvolvimentismo: poder

político e classes sociais no Brasil contemporâneo. Revista Serviço Social e Sociedade, n. 112, edição

especial. São Paulo: Cortez, out./dez. 2012. 355

CASTELO, Rodrigo. O novo-desenvolvimentismo e a decadência ideológica do pensamento

econômico brasileiro. Revista Serviço Social e Sociedade, n. 112, out./dez. 2012.

Page 221: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

221

A segunda corrente admite o pressuposto da primeira, que se refere a uma reinvenção

do nacional-desenvolvimentismo — que resultaria em algo bastante distinto do que foi

verdadeiramente o nacional-desenvolvimentismo — mas dá ênfase ao papel regulador do

Estado e à nova concertação entre capital-trabalho, por meio da centralidade conferida às

políticas de promoção de igualdades e oportunidades, bem ao gosto de intelectuais da linhagem

de um Amartya Sen356

.

A segunda corrente, chamada de pós-keynesiana, assemelha-se muito à primeira,

sustentando o papel do Estado como redutor das incertezas do ambiente econômico

para favorecer as tomadas de decisão de investimento do setor privado, variável

responsável em larga medida pelo crescimento econômico. Cabe ressaltar que tanto a

primeira quanto a segunda corrente advogam a tese da aliança do Estado com o

mercado (leia-se o empresariado industrial) contra os rentistas, como se essa

contraposição radical entre as frações da burguesia existisse em tempos de acelerada

fusão dos diferentes ramos do capital (agrícola, bancário, comercial, industrial e

rentista). Fala-se novamente em uma coalização nacional entre burguesia industrial

nacional, burocracia estatal, setores médios e trabalhadores, com hegemonia dos

primeiros dois grupos sobre os demais. (CASTELO, 2012, p. 629)357.

Essa corrente tem espaço relativo no Ipea e suas formulações metodológicas podem

ser encontradas no livro organizado por João Sicsú, Luiz Fernando Paula e Michel Renault

intitulado Novo Desenvolvimentismo: Um Projeto Nacional de Crescimento com Equidade

Social (Barueri, Rio de Janeiro: Manole, Fundação Konrad Adenauer, 2005).

A terceira corrente propala a reversão de tendências estruturais do neoliberalismo

puxadas por um reordenamento distributivo. A ênfase que confere às políticas sociais as

colocam como o eixo estruturante da política econômica que se quer desenvolver, assumindo

aquilo que Vieira já informara, nos anos 1980, e que citamos no Capítulo II, que assevera ser a

política social no capitalismo “um braço superespecializado da política econômica”358

. Na

lógica simples de ampliar o consumo de massa por meio da focalização e da seletividade das

políticas de transferência monetária, associadas a outras do tipo ampliação do microcrédito,

356

Nesse sentido, consultar MARANHÃO, Cézar Henrique. Desenvolvimento social como liberdade de

mercado: Amartya Sen e a renovação das promessas liberais. (In: MOTA, Ana Elizabete.

Desenvolvimentismo e construção de hegemonia crescimento econômico e redução da desigualdade.

São Paulo: Cortez, 2012.). 357

CASTELO, Rodrigo. Ob. Cit., out./dez. 2012. 358

Relembrando os dizeres do autor: “A política social trata-se de estratégia voltada para o chamado

desenvolvimento econômico e, consequentemente, para atuar na correlação de forças sociais, segundo as

determinações daquele desenvolvimento. Considera-se, portanto, que qualquer política social aplicada

pelo governo representa de certa maneira as relações entre o Estado e a Economia, durante a época em

questão. Assim como a política econômica, também a política social revela, em seu nível lógico e em seu

nível histórico, as transformações havidas nas relações de apropriação econômica e no exercício da

dominação política, presentes na sociedade brasileira” (VIEIRA, 1983, p.10).

Page 222: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

222

valorização real do salário-mínimo, etc., essa perspectiva se leva a cabo. Uma tese de

doutorado, que teve dentre seus arguidores Bresser Pereira e Delfim Neto, sistematiza o

pensamento dessa terceira corrente. As Bases do Novo Desenvolvimentismo no Brasil: Análise

do Governo Lula (2003-2010) foi o nome que a tese recebeu, sendo apresentada por seu autor,

Aloizio Mercadante Oliva, ao Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp),

em dezembro de 2010.

A terceira corrente é a social-desenvolvimentista, cujas propostas estão assentadas na

afirmação do mercado interno via ampliação do consumo de massas. O Estado tem

um peso maior nas propostas dessa corrente no que nas duas precedentes, e as

políticas macroeconômicas devem ser subordinadas às do desenvolvimento.

(CASTELO 2012, p. 629)359.

Castelo (2012) identifica a produção de Pochmann, que esteve à frente do Ipea como

seu presidente, de 2007 a 2012, com a de Mercadante Oliva, portanto, no campo do social-

desenvolvimentismo. De fato, os argumentos desses autores aproximam-se quando se referem à

substituição da hegemonia neoliberal por um novo modelo de desenvolvimento, mas isso não é,

entretanto, exclusividade desses autores. Como vimos, as três tendências arroladas também

admitem esse pressuposto.

A aproximação está, então, na defesa de que esse novo ciclo se assenta na conjugação

do crescimento econômico, na reafirmação da soberania nacional (Brasil como credor

mundial, acúmulo de reservas externas e diversificação de parceiros comerciais),

reformulação do papel do Estado (reforço nas empresas e bancos públicos, aumento

do funcionalismo público e o PAC360), e o choque distributivo (aumento do salário-

mínimo e dos gastos sociais — previdência, assistência, seguro-desemprego e abono

salarial — e expansão do crédito para pessoas físicas). (Id., p. 627 ).

A produção de Pochmann serve aos intentos de autojustificação do modelo

implementado após 2006361

, mas reserva um veio crítico ausente nas demais correntes. Não

afirmamos, contudo, que Pochmann inaugura uma quarta corrente. Todavia, agrega elementos

críticos a essa terceira que merecem nossa atenção. Suas críticas referem-se, sobretudo, aos

limites e às omissões estruturais desse novo modelo. Deste modo, Pochmann não adere

acriticamente à apologia sobre a emergência de uma nova classe média, como também não

359

CASTELO, Rodrigo. Ob. Cit., out./dez. 2012. 360

Programa de Aceleração do Crescimento. 361

E não em 2003, pois, como demonstramos, o projeto novo desenvolvimentista não se inaugura com o

governo Lula, em 2003. Demora um pouco para acontecer, isto é, emerge após a primeira grande crise

politico-institucional da Era Lula.

Page 223: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

223

poupa de críticas a não realização de reformas estruturais, como a reforma agrária, por exemplo,

e, ainda, a não preparação do País para o seu novo perfil demográfico:

A metamorfose pela qual passa a atual estrutura social brasileira prescinde de

interpretações mais profundas e abrangentes, que possam ir além da abordagem

rudimentar e tendenciosa a respeito da existência de uma nova classe média (...)

Causa constrangimento maior, contudo, o viés político difundido pelos monopólios

sociais construídos pelos meios de comunicação e seus “oráculos” midiáticos que

terminantemente manipulam o consciente da população em prol de seus próprios

desejos mercantis, defendendo o consumismo e negando a estrutura de classe na qual

o capitalismo molda a sociedade. (POCHMANN, 2012, p. 7)362.

Também se agrega nesse mesmo contexto a opção política rasteira que certos

intelectuais engajados à lógica mercantil se associam com uma retórica de classe de

rendimento desprovida de qualquer sentido estrutural, o que nada mais é do que a

tradução do caráter meramente propagandista dos imperativos do mercado. Ou, ainda,

a partir de rudimentar tratamento estatístico de dados da realidade, definidos por mera

percepção subjetiva, o estabelecimento de orientações de políticas públicas, quando

não de opção partidária (Id., Ibid., p. 7)363.

Entende-se que não se trata da emergência de uma nova classe — muito menos de

uma classe média. O que há, de fato, é uma orientação alienante sem fim, orquestrada

para o sequestro do debate sobre a natureza e a dinâmica das mudanças econômicas e

sociais, incapaz de permitir a politização classista do fenômeno de transformação da

estrutura social e sua comparação com outros períodos dinâmicos do Brasil (Id., Ibid.,

p. 8)364.

(...) o enfrentamento dos problemas que estão vinculados à emergência do capitalismo

urbano industrial não foram enfrentados. O Brasil não fez as reformas clássicas do

capitalismo contemporâneo, não fez a reforma agrária, não fez a reforma tributária e

não fez a reforma social. O Brasil tem uma estrutura fundiária hoje pior do que era

nos anos 50 quando ganhou primazia a defesa da reforma agrária. Nós estamos

falando de 60 anos de reforma agrária e a estrutura fundiária brasileira piorou, nós não

enfrentamos a questão fundiária, da tributação, os pobres continuam pagando mais

impostos, os ricos continuam pagando menos impostos. Qualquer país desenvolvido

tem uma estrutura fundiária menos concentrada, uma estrutura tributária progressiva e

não regressiva. O que avançou mais foi a estrutura social (...) Mas, para nós, estamos

gestando um novo ovo de serpente, cujo sinais de exclusão são muito maiores do que

esses que nós conhecemos agora. (Id., Ibid., p. 13-14)365.

362

POCHMANN, Márcio. Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira. São

Paulo: Boitempo, 2012. 363

Id., ibid. 364

Id., ibid. 365

Entrevista concedida à revista Caros Amigos, ano XIV, n. 161, ago. 2010.

Page 224: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

224

Toda essa agitação política, técnica, ideológica e metodológica em torno desse novo

desenvolvimentismo, como dissemos, está em curso e longe de se esgotar. Contudo, o caráter

unívoco dos elementos factuais que o materializam provocam certa recalcitrância no escopo

argumentativo que pode se configurar como base de uma perversa armadilha. De um lado, pode

levar ao enquadramento desse debate como um modismo passageiro, que tende a ser substituído

por outra temática, tão logo se inovem as orientações conjunturais da economia política

burguesa — e esse traço de modismo já é perceptível devido ao modo despolitizado e

desestrutural com que algumas adesões ao debate têm sido feitas à direita e à esquerda.

Por outro lado, corre-se o risco de marginalizar aquilo que tem importância capital ao

debate, que não é o novo desenvolvimentismo de per si, mas sim o desenvolvimento capitalista

e a sua dinâmica ineliminável de expropriação do trabalho com fins de acumulação crescentes.

Esse, sim, é o debate que permanece perene, atravessando conjunturas, e, que sem ele, qualquer

análise sobre desenvolvimentismo ou novo desenvolvimentismo se anula de sentido, se anula de

razão histórica.

Ao longo das seções deste capítulo, teremos a oportunidade de transitar pelos elementos

que compõem a dinâmica de continuidades e rupturas do processo analisado e que nos levam à

constatação, do mesmo modo que afirma Almeida (2012), que as continuidades se sobrepujaram

às rupturas, o que impede sobremaneira a admissão de um novo paradigma de desenvolvimento,

contudo, as ambiguidades apresentadas pelo momento conjuntural nos permite evidenciar suas

particularidades e arrolar um modo bem brasileiro de promover os arranjos a que se assiste.

Mas, de novo, insistimos, contextualizadas na dinâmica estrutural do modo capitalista de

desenvolver-se, cujas bases já foram desmistificadas por Marx, fato que passamos a resgatar.

3.1 Modo de produção, expropriação e fluxos do capital

No final dos anos 80 e durante toda a década seguinte, criaram força as teses que

advogaram o fim do trabalho como precondição ao fim da História (FUKUYAMA,

HABERMAS, GORZ, etc.). Essas teses, no geral, deslocavam a centralidade do trabalho para

esferas diversas da vida social, como a ciência, a comunicação, ou a formas humanizadas de

acumulação capitalistas, mais idealizadas do que reais. Antunes, em Adeus ao Trabalho? e em

Os Sentidos do Trabalho366

responde às vulgatas pós-modernas destruidoras do trabalho e de

sua centralidade na vida social. Nesses ensaios, o autor demonstra com rigor que o

deslocamento proposto pelos autores pós-modernos não é possível, pois a força de trabalho e o

366

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo

do trabalho. 8. ed., São Paulo: Cortez, Campinas: Unicamp, 2002. ______. Os sentidos do trabalho:

ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2. ed., São Paulo: Boitempo Editorial, 2000.

Page 225: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

225

trabalho permanecem cruciais para os sujeitos envolvidos no processo de produção e reprodução

social da vida, condicionados pela posição que ocupam na teia societária de classes.

Contudo, a incorporação dessas teses surte efeitos deletérios na maneira como o modo

de produção se materializa, a partir de então, pois pressupõe um reordenamento da lógica que

historicamente formata as sociedades capitalistas contemporâneas.

No Brasil, assistimos a esse processo com o contrarreformismo dos anos 90, que mesmo

destituindo o Estado da legitimidade que lhe é conferida pela sociedade, para regular a vida

social sob o primado público e invocando em seu lugar a supremacia do mercado, pareceu

apostar numa nova configuração desse mesmo mercado. Não mais um mercado sustentado na

relação capital que tem na força de trabalho sua força motriz, mas sim num mercado que se

preparava para se modernizar e receber sem barreiras o capital portador de juros, cujas relações

sociais a ele inerentes prescindiriam da sociabilidade do e pelo trabalho, podendo deslocar-se

para a ciência, a comunicação ou outras esferas da vida, à sua escolha.

O fetichismo capitalista encontrava ali suas bases para repousar tranquilamente no

gigante adormecido e reproduzir-se sem maiores impedimentos. As privatizações realizadas na

Era FHC, o direcionamento dado ao BNDES e a outros bancos públicos nos mostram como isso

aconteceu no Brasil (BOITO Jr., 2005; OLIVEIRA, 2009; LAZZARINI, 2011; ARCARY,

2011, RIBEIRO Jr., 2011)367

, mas antes de tratarmos disto é necessário compreender quais as

bases que racionalizaram esse processo, o que nos permitirá evidenciar as continuidades e

rupturas do processo de implantação do programa neoliberal e seus desdobramentos em forma

de um suposto novo desenvolvimento.

A liberalização econômica como medida de ajuste para os países periféricos em crise,

nos anos 90, foi assentada no solo mítico de que a preponderância das atividades de caráter

puramente monetário funcionaria como mola propulsora para um novo modo de acumulação e

desenvolvimento que se anunciava. Novo para os desavisados, pois Marx anunciara em O

Capital, em especial no Livro III, a dinâmica expansiva, mundializada, do fungierenden

Kapitalisten368

que se assentaria no mito ou fetiche da supressão do trabalho vivo e na

centralidade de atividades de gerenciamento complexo dos fluxos de capitais em detrimento das

atividades produtivas, mundo afora, deslocando da “fábrica” (como elemento simbólico da

produção) para os bancos comerciais e não comerciais (símbolo do capital monetarizado) a

367 BOITO JR, Armando. O governo Lula e a reforma do neoliberalismo. Revista Adusp, maio 2005;

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica da razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial,

2009; LAZZARINI, Sérgio. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. São Paulo:

Campus/Elsevier, 2011; ARCARY, Valério. Um reformismo quase sem reformas: uma crítica marxista

do governo Lula em defesa da revolução brasileira. São Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sundermann,

2011; RIBEIRO Jr., Amaury. A privataria tucana. São Paulo: Geração Editorial, 2011. 368

Funcionamento capitalista.

Page 226: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

226

força motriz da continuidade das relações sociais capitalistas avançadas369

. É, pois, a partir dos

enunciados marxianos sobre a acumulação primitiva que encontramos sentido nas formas

contemporâneas de acumulação uma vez que a essencialidade expropriativa do trabalho

permanece.

Segundo Marx, as formas primitivas de acumulação sofrem inevitavelmente — pelo

desenvolvimento sociometabólico do capital — um avanço em seus esquemas tradicionais. A

forma primitiva de acumulação, ou circulação mercantil simples, M – D – M (mercadoria –

dinheiro – mercadoria) seria metamorfoseada em D – M – D (dinheiro – mercadoria – dinheiro),

ou seja, já não se trataria mais de dinheiro utilizado apenas para intermediar a aquisição de

mercadorias para a produção e a venda. O objetivo capitalista passaria, desse modo, a ser a

transformação do dinheiro em mais dinheiro, partindo-se então não mais do dinheiro-

mercadoria, mas sim do dinheiro já convertido em capital, o que demonstraremos em seguida.

Ato contínuo, essa transformação é insuficiente, considerando que a conversão da

moeda em capital pressupõe uma etapa adiante daquela onde se obtém apenas o lucro; é

necessário se obter também o mais-valor a partir do lucro, assim sendo, se torna D – M – D’,

onde já há um acréscimo cristalizado no valor de M realizado em D’.

Como o objetivo permanente é o aumento do lucro pela expropriação, os juros que se

convertem em mercadoria dizem respeito a uma parcela da mais valia que será destinada à

reprodução de capital. O juro é, assim, uma parte do lucro destinada à remuneração do capital.

Imaginemos que a taxa média anual de lucro seja 20%. Então, máquina no valor de

100 libras esterlinas, nas condições médias e com aplicação média de inteligência e de

atividade útil, aplicada como capital, proporcionaria lucro de 20 libras esterlinas.

Assim, uma pessoa que dispõe de 100 libras esterlinas pode transformá-las em 120, ou

produzir um lucro de 20 libras esterlinas. Tem nas mãos um capital potencial de 100

libras esterlinas. Se transfere por um ano as 100 libras esterlinas a outra pessoa que as

aplica realmente como capital, dá a ela o poder de produzir 20 libras esterlinas de

lucro, mais-valia que nada custa ao cessionário que por ela não pagará equivalente. Se

no fim do ano pagar ao dono das 100 libras esterlinas 5, por exemplo, isto é, parte do

lucro produzido, terá pago o valor-de-uso das 100 libras esterlinas, o valor-de-uso de

sua função de capital, a função de produzir 20 libras esterlinas de lucro. A parte do

lucro paga ao cedente chama-se juro, que nada mais é que nome, designação especial

da parte do lucro, a qual o capitalista em ação, em vez de embolsar, entrega ao dono

do capital. (MARX, 1971, p. 392)370

369

Importante lembrar que a dinâmica da expansão capitalista foi tratada por Marx em outras obras para

além de O Capital, como, por exemplo, Os Grundisse 370

MARX, Karl. O capital. Livro 3, v. 5. Capítulo XXI - O capital portador de juros. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1971. Grifo nosso.

Page 227: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

227

Essas complexas transações impulsionam e modificam o papel das instituições que

concentram grandes montantes de capital monetarizado. Os bancos, embora mantenham seu

papel usurário, generalizam-se e passam a financiar o processo produtivo dependendo cada vez

mais da extração da mais-valia. Ou seja, há uma modificação substantiva no modo de circulação

de capital que agudiza o fetichismo.

O capital monetário (capital usurário dos bancos) é emprestado para o capitalista da

produção, que o recebe em forma de dinheiro. Este, por sua vez, realiza a produção de

mercadorias expropriando a força de trabalho, mas mantendo a produção com o dinheiro que se

imobiliza durante o processo de produção, justamente para manter a expropriação; somente após

o retorno da mercadoria para a esfera da circulação, esse dinheiro é acrescido de mais valor, “a

mercadoria é vendida”; finalmente, retorna para o capital monetário em forma de pagamento do

empréstimo inicial, acrescido de juros, ou seja: D – d – M – d’ – D’371

.

É interessante observar que, para o capital monetário, as etapas internas do processo são

de pouca relevância. A este interessa o retorno final do capital inicialmente investido acrescido

de juros (D – D’). Por esse motivo, sua interferência na esfera produtiva – aquela da extração do

trabalho não pago – se dá não por seu interesse no desenvolvimento do mundo do trabalho, mas

sim pela minimização dos riscos sobre seu investimento. Deste modo, esse acaba por influenciar

o mundo da produção, que fica sobremaneira a ele subjugado, dando-lhe parâmetros.

A importância do capital portador de juros templorificado nos bancos será tão crescente

que conferirá legitimidade ao mito que o torna pilar contemporâneo da acumulação capitalista,

em detrimento de sua base real: a esfera da produção. Não há como o capital produtivo ou

mercantil estabelecer-se sem relações imbricadas com o sistema monetário-financeiro. A

depender da grandeza do capital mercantil, este pode instituir sua própria instituição bancária,

deste modo, mantendo maior controle sobre seus investimentos nesse mercado flutuante, sem,

contudo, alterar o lugar que os bancos passam a assumir como financiadores do sistema

produtivo pelo crédito que concedem. A atualização da formação social capitalista passará a

contar, pois, com uma inexorável relação-articulação-estrutural entre capital produtivo e capital

monetário.

Os proprietários particulares buscam sempre expandir seus negócios. Para isso precisam

melhorar seu processo produtivo, seja através do investimento e incorporação das inovações

tecnológicas e de novos processos gerenciais, seja pela diversificação de suas atividades –

investem em diferentes áreas produtivas –, o fato é que, para isso, precisam esperar que se

completem as etapas do ciclo de transformação da moeda em capital ou mesmo do processo

mais simples de agregação de valor à mercadoria para gerar lucro. De um modo ou de outro,

vislumbram o necessário entesouramento que lhes resguardará de possíveis oscilações negativas

371

D = capital monetária, usurário; d = dinheiro; M = processo de produção das mercadorias; d’ =

dinheiro reconvertido pelo lucro; D’ = pagamento da usura bancária.

Page 228: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

228

que as investidas possam apresentar. É desse modo que a relação entre estes e os bancos se torna

inexorável, inclusive como relação constituinte do processo socializador do capital, como

dissemos antes.

O ponto de partida é o dinheiro que A adianta a B, o que pode ocorrer com penhor ou

sem ele; a primeira forma, entretanto, é a mais antiga, excetuados os adiantamentos

garantidos por mercadorias ou títulos como letras de câmbio, ações, etc. (...) Nas mãos

de B, o dinheiro converte-se realmente em capital, leva a cabo o movimento D – M –

D’ e volta a A sob a forma de D’, isto é, como D + Δ D, representando Δ D o juro.

Para simplificar, abstrairemos do caso em que o capital fica por longo tempo nas mãos

de B, e os juros são pagos periodicamente. O movimento é, portanto: D – D – M – D’

– D’. O que aparece, aqui duplicado é, primeiro, desembolso do dinheiro como capital

e, segundo, seu retorno como capital realizado, como D’ ou D + Δ D. (MARX, 1971,

p. 394)372

Os bancos são ao mesmo tempo proprietários de capital monetário e participantes do

processo de extração da mais valia, sem prejuízo de outras formas de monetarização, como

títulos, letras de câmbio ou ações, como aponta Marx, e tendem a concentrar o conjunto do

capital monetário que circula, hoje, de modo desterritorializado, no sistema formal legal e no

sistema paralelo dos paraísos fiscais. Nesse sentido, é importante chamar a atenção para o papel

dos Estados, como financiadores parceiros do sistema, quando exercem sua atribuição de

regular o mercado, sobretudo nos momentos de crise, constituem-se como verdadeiros

redentores da aventura predatória e suicida do capital, ao injetar recursos públicos para salvar

bancos da bancarrota. Esse é, de fato, um vetor importante do nosso tema, mas não entraremos

nele agora, para não desviar a lógica de exposição que estabelecemos.

O que nos chama a atenção, nesse caso, é que a base social que possibilita essa nova forma

do capital, forma mais desenvolvida, avançada, é ao mesmo tempo fundamental e velada. A

base social a que nos referimos está afeta ao trabalho (vivo) e sua expropriação, e isso significa

que as definições do valor trabalho, dos custos de todo o processo produtivo, das margens de

lucro e de juro não são definidas de modo abstrato e nem por vontade imperiosa de capitalistas

ou do Estado, ainda que estes controlem o processo. A base social que o legitima, como

dissemos, é alimentada pelo trabalho onde o excedente vincula-se diretamente à concentração

de capital monetário e seu grau de autonomização.

372

MARX, Karl. Ob. Cit., 1971

Page 229: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

229

Não vê que o tempo de produção e o tempo de circulação concorrem para determinar

o preço das mercadorias; que por essa razão, a taxa de lucro é determinada para dado

tempo de rotação do capital e que essa determinação do lucro segundo um tempo dado

acarreta a determinação do juro. Aí sua sagacidade, como sempre, consiste em

observar as nuvens do pó da superfície e presunçosamente proclamá-las algo

misterioso e importante. (Marx, 1971, p. 412)373

No capítulo XXV, do livro III – Crédito e Capital Fictício, de O Capital, Marx (1971, p.

460-461), ao demonstrar a articulação entre o sistema de crédito comercial e o sistema de

crédito bancário, evidencia o modo especulativo que passa a caracterizar a produção capitalista

em geral. Inicia dizendo:

Mostramos anteriormente (livro primeiro, capítulo III, 3, b) como surge, da circulação

simples das mercadorias, o dinheiro na função de meio de pagamento, estabelecendo-

se entre produtores e comerciantes de mercadorias relação de credor e devedor. Com

o desenvolvimento do comércio e do modo capitalista de produção que só produz

tendo em mira a circulação, amplia-se, generaliza-se e aperfeiçoa-se esse fundamento

natural do sistema de crédito. Em regra, o dinheiro aí serve apenas de meio de

pagamento, isto é, vende-se a mercadoria trocando-a não por dinheiro, mas por

promessa escrita de pagamento em determinado prazo (...). Até o dia de vencimento e

pagamento circulam por sua vez como meio de pagamento, e constituem o dinheiro

genuíno do comércio. Quando por fim se eliminam pela compensação entre débitos e

créditos, desempenham absolutamente o papel de dinheiro, pois não há conversão

final em dinheiro. Esses adiantamentos recíprocos entre produtores e comerciantes

constituem a verdadeira base do crédito, do mesmo modo que o instrumento de

circulação, a letra, constitui o fundamento do dinheiro de crédito propriamente dito, os

bilhetes de banco, etc. Estes baseiam-se não na circulação monetária, de metal ou de

papel emitido pelo Estado, mas na circulação das letras374

As metamorfoses sofridas ao longo dos tempos, no processo de inovação das formas de

crédito pela intermediação da letra375

caracteriza a especulação possibilitando o surgimento, a

diversificação e a ampliação das atividades monetárias-financeiras376

e agudiza o fetichismo.

Afinal, o anunciado gerenciamento da atividade complexa pressupõe um sem número de ações

que precisam ser controladas pelo capitalista, de modo que este se cerque de garantias positivas

para as transações. Uma das manifestações contemporâneas desse processo é, por exemplo, o

surgimento de empresas que se disponibilizam a administrar os “riscos” dos investimentos

373

Id., Ob. Cit., p. 412. 374

MARX, Karl. Ob Cit.. Capítulo XXV - Crédito e capital fictício, 1971. 375

Marx chama de “letra” todas as promessas de pagamento do crédito tomado, contratualizadas. 376

Nos capítulos seguintes, Marx trata do crédito público como decorrente do mesmo processo, mas é

importante notar que essa diversidade inclui as atividades de corretagem, de seguros, câmbio,

investimentos, fundos de pensão, mercados de futuros, etc., como formas não bancárias de capitalização.

Page 230: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

230

capitais, as chamadas venture capital ou simplesmente empresas de capital de risco377

. Moreira e

Souza (2011, p. 3) lembram que, para Schumpeter,

o desenvolvimento econômico processa-se por três fatores fundamentais: empresário

inovador, crédito bancário e inovações tecnológicas. O crédito bancário surge, muitas

vezes, em consequência de projetos rentáveis de investimento e de garantias

suficientes para minimizar o risco dos negócios. Em muitas situações, os

empreendedores, que recém iniciaram seus negócios, não possuem condições para

tomarem empréstimos. É nessa oportunidade que entra em cena o capital de risco378

Assim, os bancos configuram-se como um produto histórico decorrente da evolução das

formas de concentração de capital monetário, todavia, a diversificação das formas de circulação

e acumulação concorre com esse monopólio bancário, intensifica a divisão do trabalho, mas não

lhes retira a condição de intermediário da concentração.

Ligado a esse comércio de dinheiro desenvolve-se o outro aspecto do sistema de

crédito, a administração do capital portador de juros ou do capital-dinheiro como

função particular dos banqueiros. Tomar dinheiro emprestado e emprestá-lo torna-se

negócio especial deles. São os intermediários entre o verdadeiro emprestador e o

prestatário de capital-dinheiro. De modo geral, o negócio bancário, sob esse aspecto,

consiste em concentrar grandes massas de capital-dinheiro emprestável, e assim, em

vez do prestamista379 isolado, os banqueiros, representando todos os prestamistas, se

confrontam, com os capitalistas industriais e comerciais. Tornam-se os

administradores gerais do capital-dinheiro. Além disso, concentram todos os

prestatários perante todos os prestamistas, ao tomarem emprestado para todo o mundo

comercial. (MARX, 1971, p. 463)380.

377

Segundo Moreira e Souza, “capital de risco é o capital investido na forma de participações no capital

de empresas com potencial de rápido crescimento. O principal objetivo do investidor é obter retornos

acima da média do mercado, aceitando, assim, maiores riscos. Por apostar em empresas emergentes,

muitas vezes com um diferencial tecnológico, o investidor torna o capital de risco uma alternativa viável

de fonte de capital para pequenas e médias empresas; isso permite a criação de novos postos de trabalho e

a geração de novas tecnologias”. (In: MOREIRA, Cássio Silva; SOUZA, Nali de Jesus de. Capital de

risco e desenvolvimento econômico no Brasil: uma visão schumpeteriana. Disponível em:

<www.cassiomoreira.com.br>. Acesso em: 7 jan. 2012. 378

Id., Ob. Cit., p. 3. 379

Prestamista é um dos agentes envolvidos no funcionamento da mercadoria-dinheiro como capital. “O

funcionamento da mercadoria dinheiro como capital (ou “mercadoria capital”) envolve de maneira geral,

dois agentes principais: o capitalista monetário ou prestamista – detentor da soma em dinheiro – e o

capitalista produtivo ou atuante – aquele que obtém essa quantia do capitalista monetário por meio de

empréstimo e a aplica de maneira produtiva. No início do processo, o capitalista monetário cede o

dinheiro para o tomador de recursos. Este mobiliza os fatores de produção e ao final obtém o lucro, a

partir da mais valia. No momento de devolução ao portador original do dinheiro adiantado, o capitalista

produtivo cede também uma fração do lucro. Esta representa o que se chama juro” (CHOCIAY ,

Henrique; NEVES, Lafaiete Santos. O conceito de juros em Marx e Keynes e sua influência sobre os

modelos de crises financeiras. Revista Contribuciones a la Economia. Disponível em: <

www.eumed.net/ce/2009a/csn.htm>. Acesso em: 8 jan. 2012. 380

MARX, Karl. Ob. Cit., 1971.

Page 231: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

231

O capital portador de juros, embora se distinga do capital produtivo, assemelha-se a esse

quando, para sua reprodução, tem que se converter ele mesmo em mercadoria. Desse modo,

carrega consigo um valor de uso, base da tendência crescente da acumulação

Dinheiro – considerado aqui expressão autônoma de certa soma de valor, exista ela

em dinheiro ou em mercadorias – pode na produção capitalista transformar-se em

capital, quando esse valor determinado se transforma em valor que acresce, que se

expande. É dinheiro produzindo lucro, isto é, capacitando o capitalista a extrair dos

trabalhadores determinada quantidade de trabalho não pago – produto excedente e

mais-valia – e dela apropriar-se. Por isso, além do valor-de-uso que possui como

dinheiro, passa a ter outro valor-de-uso, isto é, o de funcionar como capital. Seu valor-

de-uso consiste agora justamente no lucro que produz, uma vez transformado em

capital. Nessa qualidade de capital potencial, de meio de produzir lucro, torna-se

mercadoria, mas mercadoria de gênero peculiar. Vale dizer – o capital como capital se

torna mercadoria. (Id. ibid., p. 392)381.

Marx (1971) afirma que esse valor de uso “o dinheiro adquire pelo fato de poder ser

transformado em capital e assim produzir em seu movimento a mais valia”. Diferentemente da

mercadoria comum, a mercadoria capital não tem o seu valor subsumido depois de consumida;

ao contrário, tem seu valor multiplicado. A capacidade de produzir o lucro médio, pela

valorização de seu valor de uso, possibilita que o capitalista monetário subjugue ou aliene – nos

dizeres de Marx, por exemplo, o capitalista industrial, pelo período em que este lhe deve o

capital emprestado. É a forma com que os capitalistas monetários encarnam “a figura do próprio

capital”.

No capital produtor de juros, a relação capitalista atinge a forma mais reificada, mais

fetichista. Temos nessa forma D – D’, dinheiro que gera mais dinheiro, valor que se

valoriza a si mesmo sem o processo intermediário que liga os dois extremos. No

capital mercantil, D – M – D’, temos pelo menos a forma geral do movimento

capitalista, embora se mantenha apenas na esfera da circulação e o lucro pareça por

isso ser mera decorrência da venda; todavia, configura-se em produto de uma relação

social e não em produto de uma simples coisa. A forma do capital mercantil

representa de qualquer modo um processo – unidade de duas fases opostas,

movimento que se decompõe em duas ocorrências contrárias, a compra e a venda de

mercadorias. Isto desaparece em D – D’, a forma do capital produtor de juros.

(MARX, 1971, p. 450).

Ou seja, voltamos novamente a constatar que o distanciamento do capital monetário do

capital produtivo no processo de circulação e acumulação, não implica a inexistência de uma

relação entre eles. O que ocorre, como dissemos, é um processo de invisibilidade no trânsito

381

Id. Ob. Cit., Capítulo XXI, do Livro III - O capital portador de juros, 1971.

Page 232: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

232

entre o capital usurário e o processo que gera a mais valia, o D – D’, isto é, já está contida, na

natureza do capital, a determinação social que gera a riqueza, antagonicamente fundada no

trabalho e em sua expropriação.

A predestinação social antinômica da riqueza material- sua oposição ao trabalho na

condição de trabalho assalariado – já se expressa, dissociada do processo de produção,

no direito mesmo de propriedade do capital. Esse aspecto particular, isolado do

próprio processo capitalista de produção, deste sendo resultado constante e, como tal,

condição permanente, revela-se na circunstância de o dinheiro e a mercadoria serem

em si mesmos capital latente, potencial, de poderem ser vendidos como capital e nessa

forma comandarem trabalho alheio, darem direito ao ato de apropriar-se de trabalho

alheio, sendo portanto valor que se expande. (Id., ibid., p. 410-411)382

Na base dessa expansão do capital, está embutido o juro, que funciona como uma espécie de

remuneração do capitalista monetário e o lucro destinado ao capitalista da base produtiva. Como

as etapas intermediárias da expansão do capital e sua reprodução em mais capital ficaram

escondidas, a expropriação do trabalho – a base que permitiu que isso acontecesse – é mais

ainda estranhada, pois o lucro do capitalista produtivo aparece como uma espécie de pagamento

por seus serviços gerenciais, afinal, foi o seu empreendedorismo (a principal virtude no

capitalismo, tão valorizada por Schumpeter) que o levou a transformar seu dinheiro em capital

rentável, ainda que houvesse riscos nessa transação. Portanto, aquela separação de que falamos

antes, entre as duas formas de ser do capital, se revela apenas aparente. Os objetivos de quem

expropria a força de trabalho para extrair riqueza e de quem se presta a monetarizar capital

passam a ser os mesmos.

Há certa analogia entre o capital assim emprestado e a força de trabalho em sua

relação com o capitalista industrial. Mas, enquanto o valor da força de trabalho é

pago, o do capital emprestado é restituído por esse capitalista. Para ele o valor-de-uso

da força de trabalho consiste em produzir com seu emprego mais valor (lucro) do que

possui e custa. Esse valor excedente é para o capitalista industrial o valor-de-uso. Do

mesmo modo, o valor-de-uso do capital-dinheiro emprestado se revela na capacidade

que possui de produzir e acrescer o valor. (Id., ibid., p. 406)383.

O desenvolvimento expoente do fetichismo está em suplantar a base de acumulação da

riqueza e reprodução do capital, pois a mais valia aparece como “coisa” e não como elemento

decorrente de uma relação social já que o capital em si mesmo é uma relação social, não

podendo confundir-se com dinheiro ou outras formas de sua manifestação. Também aparece, o

382

Id., ibid. 383

Id., ibid.

Page 233: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

233

capital fetichizado, como algo que, por si mesmo, se cria e se reproduz, naturalizando suas

formas de ser, reificando-as.

Sendo o capital mercadoria de natureza peculiar, possui modo particular de alienação.

Por isso, o retorno não expressa a consequência e o resultado de determinada série de

ocorrências econômicas, mas provém de um pacto jurídico especial entre o comprador

e o vendedor. O prazo de retorno depende de transcorrer o processo de reprodução; no

caso do capital produtor de juros parece que seu retorno como capital depende da

simples convenção feita entre prestamista e prestatário. Desse modo, o retorno do

capital nessa transação não parece mais resultar do processo de produção, e tudo se

passa como se o capital emprestado nunca tivesse perdido a forma dinheiro. (Id., ibid.,

p. 403)384 .

Pode-se considerar esse processo como a forma mais avançada de existir do capital, dentro

da formação social capitalista, afinal, as principais frentes estruturais que ataca para manter-se

como dominante, estão por ele apropriadas: as forças produtivas, o modo de produção, as

estruturas políticas da sociedade, a hegemonia burguesa pela difusão de sua ideologia, tudo isto

incidindo no padrão de sociabilidade reinante. Contudo, não é bem assim. A tendência

expansiva ilimitada o leva a não ter no capital portador de juros sua máxima expressão. A

generalização do capital portador de juros leva a que todo capital possa, em potencial, produzi-

lo, ao mesmo tempo em que todo o lucro pode ser considerado como juro de um capital.

Essas duas formas de se expressar o fetiche abrem caminho para a mercantilização de toda a

dinâmica produtora de riqueza, levando a formas de apropriação de capitais que virão-a-ser no

mercado, mas ainda não existem como tal (futuro). É o chamado capital fictício. Esse, por seu

turno, se afasta, miticamente, ainda mais, da base social que o legitima, e movimenta massas

financeiras ainda maiores, por meio de especulações e uma pressão crescente para desvencilhar-

se das regulações que se colocam sobre seus fluxos, sobretudo, pelo Estado.

É desse modo que as crises sistêmicas se tornam parte constitutiva do desenvolvimento

capitalista ao longo dos anos. Seu núcleo gerador consiste, pois, nos limites da extração dos

superlucros.

A financeirização, como sua forma manifesta na contemporaneidade, não pode ser tratada

como categoria acessória às análises que intencionam saber das coisas como elas são. É o que

nos indica, pois, a economia política marxista: entender as inter-relações entre os inúmeros

aspectos da realidade que os ditames pós-modernos nos têm levado a compreender

separadamente.

384

Id., ibid.

Page 234: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

234

O atual ciclo do desenvolvimento capitalista, ao não abrir mão da expropriação, no Brasil e

no mundo, embora apresente a dialética dinâmica de continuidade e ruptura, mantém firme seus

efeitos deletérios aos homens e ao planeta.

O capital expande sua face financeira integrando grupos industriais associados às

instituições financeiras (bancos, companhias de seguros, fundos de pensão, sociedades

financeiras de investimento coletivo e fundos mútuos) que passam a comandar o

conjunto da acumulação. Na busca incessante e ilimitada do aumento exponencial da

riqueza quantitativa — o crescimento do valor pelo valor —, os investimentos

financeiros tornam a relação social do capital com o trabalho aparentemente invisível.

Intensifica-se a investida contra a organização coletiva de todos aqueles que,

destituídos de propriedade, dependem de um lugar nesse mercado (cada dia mais

restrito e seletivo) para produzir o equivalente de seus meios de vida. Crescem as

desigualdades e o contingente de destituídos de direitos civis, políticos e sociais,

potenciados pelas orientações (neo)liberais, que capturam os Estados nacionais,

erigidas pelos poderes imperialistas como caminho único para animar o crescimento

econômico, cujo ônus recai sobre as grandes maiorias. (IAMAMOTO, 2007, p. 21)385.

3.2 Acumulação, fetichismo e a crítica marxista ao desenvolvimento

Para empreender uma crítica ao desenvolvimento capitalista com base em suportes

teóricos marxianos e marxistas, é fundamental a compreensão da superexploração da força de

trabalho inserida nos processos de produção e reprodução social. Assim, temos que, desde o

Livro I de O Capital, Marx segue fiel ao entendimento de que o modo de produção encerra em

si um conjunto de atividades que definem a reprodução social da vida. Marcado, objetiva e

subjetivamente, o modo de produção está historicamente vinculado a uma formação social e esta

é intrínseca a uma relação social dominante. A combinação entre propriedade, posse e uso dos

meios de produção é elemento inalienável na configuração do modo de produção.

(...) todo processo social de produção encarado em suas conexões constantes e no

fluxo contínuo de sua renovação, é ao mesmo tempo processo de reprodução. As

condições da produção são simultaneamente as de reprodução. Nenhuma sociedade

pode produzir continuamente, isto é, reproduzir, sem reconverter, de maneira

constante, parte de seus produtos em meios de produção ou elementos da produção

nova (...). No modo capitalista de produção, o processo de trabalho é apenas um meio

de reproduzir o valor antecipado como capital, isto é, como valor que se expande.

(MARX, 1971, p.659)386.

385

IAMAMOTO, Marilda Villela. Serviço social em tempo de capital fetiche capital financeiro,

trabalho e “questão social”. São Paulo: Cortez, 2007. 386

MARX, Karl. Ob. Cit., 1971.

Page 235: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

235

A substituição do escambo por formas de circulação de mercadorias intermediadas pela

moeda não significa a transladação desta para o capital, imediatamente, como demonstrado no

item anterior. Para que a moeda seja transformada em capital, é necessário que um dentre todos

os produtos mercantilizáveis – considerando que no capitalismo tudo vira mercadoria – esteja

sempre presente: a força de trabalho. A força de trabalho transformada em mercadoria é

contratada pelo proprietário dos meios de produção; que, por sua vez, dita as regras dos

processos de trabalho; tem posse das mercadorias produzidas e as vende no mercado. Processo

simples de obtenção de lucro e etapa primeira e instransponível da transformação da moeda em

capital.

O tratamento analítico e ideopolítico, em separado dessa etapa primitiva da produção

capitalista, fez com que as leis gerais da produção fossem convertidas em leis naturais da

economia política, escamoteando o processo de expropriação dela inerente, ao gosto dos

capitalistas de plantão: o grande mistério da mercadoria.

De fato, a exploração do trabalho vivo, expropriado, é, ao mesmo tempo, condição sine

qua non para a produção das mercadorias e a consequente reprodução das condições de vida e,

ainda, é condição também para a circulação e reprodução da moeda e sua transformação – aliada

a outros componentes de toda vida social – em capital.

Somente com esse conjunto de elementos em relação é possível entender a

transformação da moeda em capital e a centralidade que a atividade produtiva ocupa no

processo.

Com o próprio funcionamento, o processo capitalista de produção reproduz, portanto,

a separação entre a força de trabalho e as condições de trabalho, perpetuando, assim,

as condições de exploração do trabalhador. Compele sempre o trabalhador a vender

sua força de trabalho para viver, e capacita sempre o capitalista a comprá-la, para

enriquecer-se. Não é mais o acaso que leva o trabalhador e o capitalista a se

encontrarem no mercado, como vendedor e comprador. É o próprio processo que

continuamente lança o primeiro como vendedor de sua força de trabalho no mercado e

transforma seu produto em meio que o segundo utiliza para comprá-lo. Na realidade o

trabalhador pertence ao capital antes de vender-se ao capitalista (Id., ibid., p. 672)387

Marx desnaturaliza o caráter puramente econômico da atividade produtiva e

desnaturaliza também a exploração da força de trabalho, quando atribui objetividade às relações

sociais decorrentes dos meios de produção e reprodução sociais.

Embora o ato criativo do trabalho humano – associando trabalho vivo e morto – seja a

condição prerrogativa para a existência do próprio capital, também o é para a expropriação. A

forma específica de mercadoria que o trabalho assume no capitalismo é uma das características

387

Id.

Page 236: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

236

que permitem identificar esse tipo próprio de relação. Por isso, Marx demonstra que o capital é

uma relação social, por referir também as condições (ou não condições) históricas de

sobrevivência do trabalhador livre e expropriado:

(...) Os meios de produção e os de subsistência, dinheiro e mercadoria em si mesmos

não são capital. Tem de haver antes uma transformação que só pode ocorrer em

determinadas circunstâncias. Duas espécies bem diferentes de possuidores de

mercadorias têm de confrontar-se e entrar em contacto: de um lado, o proprietário de

dinheiro, de meios de produção e de meios de subsistência, empenhado em aumentar a

soma de valores que possui, comprando a força de trabalho alheia, e, do outro, os

trabalhadores livres, vendedores da própria força de trabalho e, portanto, de trabalho.

Trabalhadores livres em dois sentidos, porque não são parte direta dos meios de

produção, como escravos e servos, e porque não são donos dos meios de produção,

como o camponês autônomo, estando assim livres e desembaraçados deles.

Estabelecidos esses dois polos do mercado, ficam dadas as condições básicas de

produção capitalista. (Id., ibid., p.829-830)388.

O distanciamento entre o trabalhador e a sua produção tende a aumentar cada vez mais,

pois é nesse distanciamento que residem as principais possibilidades de acumulação crescente

do capital, logo, do próprio desenvolvimento capitalista.

O sistema capitalista pressupõe a dissociação entre trabalhadores e a propriedade dos

meios pelos quais realizam o trabalho. Quando a produção capitalista se torna

independente, não se limita a manter essa dissociação, mas a reproduz em escala cada

vez maior. O processo que cria o sistema capitalista consiste apenas no processo que

retira ao trabalhador a propriedade de seus meios de trabalho, um processo que

transforma em capital os meios sociais de subsistência e os de produção e converte em

assalariados os produtores diretos (...) a chamada acumulação primitiva (...). (Id.,

ibid., p. 830)389.

Mészáros (2002, p. 676) assevera que o capital, sobretudo na atualidade, possui uma

tendência destrutiva incontrolável, que é justamente o que o mantém enquanto modo de

produção sustentado na expropriação. Essa tendência, que se inicia pela expropriação e

aniquilamento do que há de humano no trabalho, pela sua alienação e estranhamento, extrapola

o mundo dos expropriados. Para o autor de Para Além do Capital, o capitalismo, em sua fase

avançada, apresenta uma autorreprodução destrutiva consubstanciada pela expansão do

consumo possibilitada “pela produção generalizada de mercadorias (...) fornecendo ao capital

388

Id., ibid. Capítulo XXIV, do livro III - A chamada acumulação primitiva. 389

Id., ibid.

Page 237: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

237

em crise novas margens de expansão e novas maneiras de sobrepujar as barreiras que

encontra”390

.

Dessa maneira, a dinâmica interna do avanço produtivo, baseada nas potencialidades

objetivas da ciência e da tecnologia, é gravemente distorcida, na verdade

fatidicamente desencaminhada, com a tendência à perpetuação das práticas

capitalistas viáveis – por mais perdulárias e destrutivas – e como o bloqueio das

abordagens alternativas que possa interferir nas exigências fetichistas do valor de

troca em auto-expansão. (MÉSZÁROS, 2002, p.679)391.

Associado a isto, temos que a expropriação atinge também os proprietários, pois, para

expandir-se, ainda que se reinvente na exploração do trabalhador, o capital precisará de novas

formas de acumulação que não ficam aprisionadas em seus modos primitivos.

Os monopólios caracterizarão essa tendência, amplificando as formas de expropriação.

A proletarização dos pequenos proprietários e a subsunção dos capitalistas tradicionais pelo

capital concentrado, nesse mesmo movimento monopolista, são apenas dois aspectos que

remetem á expropriação capilarizada e às novas formas de exploração genérica do trabalho.

Mesmo antes da constituição do capitalismo como tal, Marx anuncia essa característica ao

descrever o processo de acumulação primitiva (protoforma do capitalismo), possibilitando

acompanhar a tendência autodestrutiva desse modo de produção em sua linha “evolutiva”.

Desintegrada a velha sociedade, de alto a baixo, por esse processo de transformação,

convertidos os trabalhadores em proletários e suas condições de trabalho em capital,

posto o modo capitalista de produção a andar com seus próprios pés, passa a

desdobrar-se outra etapa em que prosseguem, sob nova forma, a socialização do

trabalho, a conversão do solo e de outros meios de produção em meios de produção

coletivamente empregados, em comum, e, consequentemente, a expropriação dos

proletários particulares. O que tem de ser expropriado agora não é mais aquele

trabalhador independente e sim o capitalista que explora muitos trabalhadores. Essa

expropriação se opera pela ação das leis imanentes à própria produção capitalista, pela

centralização dos capitais. Cada capitalista elimina muitos outros capitalistas. (Id.,

ibid., p. 881)392.

Essa é outra face do mesmo processo que nos permite caracterizar a conversão da

moeda em capital, caracterizar o capital como relação social e o modo de produção genérico

como propriedade de capitalistas que controlam os meios e modos de produção social,

expandindo-se e atingindo todas as dimensões da vida social.

390

MÉSZÀROS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, Campinas: Unicamp,

2002. 391

Id., Ob. Cit. 392

MARX, Karl. Ob. Cit. Livro I, v. II, Capítulo XXIV - A chamada acumulação primitiva, 1971.

Page 238: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

238

Na atualidade, antes mesmo do período que tem sido chamado de pós-neoliberalismo393

,

essa aventura acumulativa do capital já se fazia presente. A concentração crescente é instituinte

também desse modo particular de acumulação394

. As fusões, as aquisições e as joint-ventures

são bons exemplos desse processo, e que se associam a fenômenos que dão suporte e/ou se

complementam, como as terceirizações e os oligopólios.

A fúria de acumulação desimpedida do capital sempre foi uma preocupação para os

próprios capitalistas, que, divididos em frações de classe e cientes, de certo modo, da

necessidade da diversificação das atividades econômicas, buscaram, ao longo do tempo,

influenciar a intervenção estatal nos assuntos relacionados à livre concorrência, racionalizando o

impulso primitivo de aniquilação de uns pelos outros, como já anunciara Marx.

Desse modo é que se criam instituições públicas, privadas ou mistas, voltadas à

regulação para defesa dos interesses econômicos. Essas instituições são criadas tanto em nível

nacional, respondendo, portanto, pelos interesses econômicos de cada país, como também de

modo multilateral, tratando das questões afetas à economia globalizada, como é o caso tanto da

Organização Mundial do Comércio (OMC), por exemplo, ou do FMI.

No Brasil, as primeiras medidas antitruste datam de 1951, com a Lei 1.521, editada no

governo de Getúlio Vargas, e que define crimes contra a economia popular, o que pode ser

considerado um bom exemplo desse tipo de instituição395

. Em 1962, nova lei, inspirada no

Sherman Act norte-americano, cria o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

Em 1994, com a Lei 8.884, a instituição transforma-se em autarquia federal, vinculada ao

Ministério da Justiça, com personalidade jurídica própria e autonomia administrativa e

financeira. Cabe ao Cade (2012) “regular a livre concorrência no Brasil, garantindo uma relação

equilibrada entre a livre iniciativa, livre concorrência, proteção ao consumidor e a preservação

do interesse”396

.

A concentração de capital como fenômeno isolado, ou mesmo quando associada ao

processo de acumulação, não escolhe pátria. Isto é, acontece ao longo da história de formas

diferenciadas, em conformidade com o projeto político-econômico então vigente. No Brasil, por

exemplo, no período compreendido entre os anos 2000 e 2011, esse movimento da dinâmica do

capital monopolista também ocorreu, preservando as características dominantes desse modo de

produção em sua fase avançada397

.

393

Cf. SADER, Emir (Org.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. Rio de

Janeiro: Paz e Terra. 394

A concentração exponencial é presente em todas as fases do capitalismo. 395

Medidas antitruste são voltadas a regular a concorrência. 396

Disponível em: <www.cade.org.br>. 397

Por isso é importante distinguir “concentração” de capital de “acumulação”. Embora se tratem de

categorias referidas ao mesmo processo, a distinção que fazemos é fundamental para o entendimento

sobre as funções e participação do Estado no processo de desenvolvimento capitalista. A “concentração”

de que tratamos aqui está afeta à união de vários capitalistas em torno de uma mesma atividade que lhes

gera rendimentos. Já a “acumulação” se relaciona aos amplos processos de auto-reprodução do capital

Page 239: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

239

Segundo o Cade o processo de análise pelo Sistema Brasileiro de Defesa da

Concorrência (SBDC) das operações de fusão, aquisição, joint-ventures, etc. é conhecido por

Ato de Concentração. As operações que apresentam determinadas características – faturamento

no Brasil superior a R$ 400 milhões ou participação de mercado maior ou igual a 20% – devem

obrigatoriamente ser notificadas ao SBDC.

A preocupação do órgão com a qualidade das fusões e com a homogeneização do que se

coloca no mercado para consumo, ocupa um lugar marginal nos seus trabalhos, pelo menos é o

que se extrai de seus Relatórios de Gestão dos últimos dez anos398

, e que, em tese, teria

motivado as transformações recentes em sua estrutura, as quais mostraremos mais adiante. A

preocupação central residiria, pois, em que o órgão exerça uma influência positiva no mercado,

sem atrapalhar seus fluxos naturais, por meio de análises processuais cada vez mais tecnificadas

e ágeis. O Gráfico 1, por exemplo, mostra claramente a diminuição do tempo médio em que os

processos tramitam no Cade (excetuando-se o tempo para instrução processual) em comparação

com a quantidade de processos distribuidos e julgados. Uma sequência de queda sensível fica

evidente, interrompida em 2004, justificada pelo aumento do número de processos naquele ano

e a carência de quadro de pessoal especializado para o desempenho das funções

administrativas399

.

que não se restringe a atividades econômicas especificas nem mesmo se limita, na contemporaneidade, a

limites territoriais precisos. Como dissemos, as duas categorias formam um duo-dialético voltado à

manutenção da relação social capital, mas a primeira está sob maior controle do Estado quando este

regula as operações econômicas dos capitalistas, já a segunda transcende o exercício da autonomia

relativa do Estado na regulação e busca se pautar nos interesses mesmos da classe dominante expressos,

também, no modo como estes conquistam hegemonia no e pelo Estado. 398

O Cade disponibiliza, em sua biblioteca virtual, todos os seus Relatórios Anuais de Gestão, o que

consultamos ano a ano. 399

O Relatório de Gestão do ano de 2004 se encerra com uma nota assinada por sua presidenta expondo a

ausência de condições para o pleno desenvolvimento dos trabalhos do órgão. Declara: “Ressentindo-se

ainda de uma estrutura e quadro de funcionários próprios, e com a crescente demanda de apreciação de

matérias relativas à defesa da concorrência, o Cade contou, a partir do segundo semestre com o apoio de

25 técnicos o que certamente melhorou a capacidade do órgão responder a mencionada demanda. No

entanto, o caráter temporário do contrato desses técnicos renova a necessidade de busca de uma carreira

própria. As demandas para a realização das atividades do Cade continuam a exigir um considerável

reforço de pessoal especializado, tanto na área administrativa e técnica, quanto na área processual, o que

somente será resolvido com a aprovação da criação de um quadro permanente próprio do Cade, contendo

carreiras específicas para atuação na área da concorrência”. (Relatório de Gestão de 2004).

Page 240: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

240

Gráfico 1 – Balanço de ACs julgados versus distribuídos no Cade com tempo médio – 2000 a 2011

Fonte: Cade em números – Atos de concentração, jan./2012. Disponível em: <www.cade.gov.br >.

Do tempo em que um processo de AC circula, verifica-se que sua permanência no Cade

varia de 20% a 30% do tempo total (Gráfico 2). Com relação à quantidade de processos,

também se podem inferir progressos, no que tange à sua resolutividade. Em 2000, foram

julgados cerca de 78,3% do total de processos distribuídos com tempo médio, no Cade, de 87

dias; em 2011, o indíce de julgamentos sobe para 94,5%, com tempo médio de 45 dias. A partir

de 2003, verificamos que os julgamentos se sobrepõem ao estoque de processos, o que pode ser

explicado, em parte, por inovações técnicas e materiais, mas também se explica pela decisão

política em dar celeridade aos processos, considerando os aumentos nos níveis de investimento

no mercado interno, financiados sobretudo pelo BNDES, motivando fusões.

Gráfico 2 - Tempo médio de tramitação dos ACs no SBDC (em dias) – 2005 a 2011

Fonte: Cade em números – Atos de concentração, jan./2012. Disponível em: <www.cade.gov.br>.

Page 241: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

241

A leitura marxiana dos processos crescentes de acumulação leva em conta as iniciativas

de concentração de capital, sobretudo quando Marx se referencia em sociedades complexas,

tanto pela industrialização e urbanização, quanto pelo incremento dos sistemas bancários e das

transações financeiras que já em seu tempo vinham movimentando capitais mundo afora de

modo crescente. Portanto, como aporte, nos indica a gênese dessa preocupação da sociedade

burguesa (e de seus Estados, por extensão) em permitir que suas transações econômicas ocorram

de modo desimpedido.

No caso brasileiro, constata-se que as operações de fusão, aquisição e reestruturações

societárias alcançaram R$ 184,8 bilhões, em 2010, o que representou um crescimento de 55%

quanto ao volume alcançado em 2009. Em 2010, foram contabilizadas 143 operações de fusão,

aquisição e reestruturações societárias, ante 95 realizadas no País em 2009400

. Ainda que

pareçam extraordinários, esses números são mínimos, se comparados à concentração que ocorre

intraempresas. Isto é, a concentração verificada a partir do compartilhamento de posições

acionárias conjuntas nas mesmas empresas401

. É a continuidade de um processo que visa

deliberadamente ampliar a concentração de capital em alguns setores estratégicos como forma

de melhorar a suas condições na disputa global.

Nesse sentido, alguns casos como o da Ambev (fusão da Antárctica com a Brahma), da

Chocolates Garoto (adquirida pela Nestlé), do polêmico caso da BRF Brasil Foods (a fusão da

Sadia com a Perdigão), a RaiaDrogasil (liderando o comércio nacional de produtos

farmacêuticos) e o caso mais recente da Totvs e a Datasul que, juntas, passaram a deter 40% do

mercado brasileiro de softwares, nível bem maior do que os 20% aceitáveis para esse tipo de

transação, em outros ramos de atividade produtiva402

, são apenas alguns exemplos de como a

concentração vai se tornando parte não só recorrente mas reivindicada até mesmo como

necessária para manter patamares de desenvolvimento estipulados pelo mercado (e de interesse

do Estado)403

.

400

Ipea desafios – Cade – Fusão de competências. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br>. Acesso em:

5 set. 2012. 401

Utilizamos como referência o artigo de LAZZARINI, Sergio G. Mudar tudo para não mudar nada:

análise da dinâmica de redes de proprietários no Brasil como “mundos pequenos”. RAE-eletrônica, v.6,

n. 1, art. 6, jan./jul. 2007. A RAE-eletrônica é a revista online da Fundação Getúlio Vargas. 402

Há uma excepcionalidade para a indústria de tecnologia. 403 Isto será mais bem esclarecido quando tratarmos do neodesenvolvimentismo, nos próximos itens,

contudo, vale registrar que o projeto “desenvolvimentista” recente no Brasil não abriu mão de utilizar a

concentração como estratégia quando promove a reestruturação do Cade. Entre as mudanças realizadas no

Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, há a unificação no Cade das competências divididas

atualmente entre o próprio órgão, a Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae), ligada ao

Ministério da Fazenda, e a Secretaria de Direito Econômico (SDE), vinculada ao Ministério da Justiça.

Outra mudança proposta eleva o valor mínimo das operações de concentração econômica que exigirão

controle prévio do Cade, dos R$ 400 milhões já utilizados como referência para R$ 1 bilhão. Outra

alteração é que qualquer caso de compra ou fusão de grandes empresas que possa levar à concentração do

mercado terá que ser analisado previamente pelo Cade, e não depois de o negócio ter sido efetivado,

como ocorre atualmente. O projeto fixou um prazo para a conclusão de julgamentos: o tempo máximo de

análises de concentração cai para 120 dias com possibilidade de prorrogação pelas partes por 60 dias ou,

Page 242: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

242

A preocupação dos órgãos de defesa econômica, em contribuir para que esse processo

flua com êxito, como mostrado nos Gráficos 1 e 2 — explicitando a função gerencial burguesa

do Estado — também se atrela a uma concepção de desenvolvimento pautada e justificada

ideologicamente no que se pressupõe ser civilizatório na ordem do capital. O atendimento das

necessidades sociais pela via do emprego formal ou da qualidade dos serviços prestados,

possibilitados com o sucesso das empresas no mercado, é apenas uma de suas explicações, o

que contribui para naturalizar o processo de concentração. Mas não apenas. Por trás do

incômodo causado aos capitalistas burgueses, pela regulação estatal das suas transações, reside a

verdadeira justificativa para o exercício dessa ação regulatória por parte do Estado:

O enorme poder dos grandes conglomerados econômicos, que extrapola a mera luta

de preços e marcas, somente pode ser contra-arrestado pela política e pelas

instituições republicanas e democráticas; do contrário, estas serão meras

reverberações retóricas sem eficácia. A assimetria e o poder destrutivo entre tais

organizações econômicas e o simples cidadão, conduzido e instigado pela publicidade

a comportar-se como mônada — que é o cerne da própria publicidade — afetam a

vida cotidiana de forma irreparável. Longe da premissa neoliberal de que o excesso de

controle público sobre o comportamento das empresas cercearia sua liberdade de

investimento — que é no fundo o que explica a atitude do governo brasileiro de hoje

— as fraudes da Enron e da WorldCom nos EUA e os comportamentos relapsos-

agressivos das novas concessionárias de energia e telecomunicações no Brasil

indicam que o bom controle público, e políticas públicas de investimento rigorosas, é

que são condições sine qua non para a eficiência das empresas. (OLIVEIRA, 2005)404.

Portanto, o que se observa é uma clara articulação entre o econômico e o político, na

medida em que a concentração comparece como um componente importante aos fins últimos: a

acumulação.

Mas se o processo de acumulação do capital pauta doravante diretamente a ação do

Estado, ele só se traduz em seu seio quando articulado e inserido na sua política de

conjunto. Toda medida econômica do Estado tem portanto um conteúdo político, não

apenas no sentido geral de uma contribuição para acumulação do capital e para a

exploração, mas também no sentido de uma necessária adaptação à estratégia política

da fração hegemônica. (POULANTZAS, 2000, p. 171)405.

pelo Cade, por 90 dias. Antes, o Cade não precisava apresentar conclusões dos casos. Ipea desafios –

Cade – fusão de competências. Disponível em: <www.ipea.gov.br>. Acesso em: 5 set. 2012. 404

OLIVEIRA, Francisco de. Prefácio. In: BELLO, Carlos Alberto. Autonomia frustrada: o Cade e o

poder econômico. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005. 405

POULANTZAS, Nicos. Ob. Cit., 2000.

Page 243: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

243

Nesse processo, o papel econômico do Estado se exacerba e reconfigura seu lugar de

dominância ante as demais instâncias e funções que o compõe406

e mesmo nas democracias

liberais se nota o fortalecimento da função econômica do Estado em detrimento das instituições

(partidos, movimentos sociais, parlamentos, etc.) e, de modo relativo, de algumas frações da

classe dominante. Poulantzas (2000, 170) afirma que a reorganização política dos “aparelhos”

do Estado no sentido da acumulação fazem dele um “verdadeiro aparelho econômico

especializado”:

Não se trata simplesmente de atividades econômicas novas que dominariam, como

tais, outras atividades que continuariam, em si, imutáveis. O conjunto das operações

do Estado se reorganiza atualmente em relação a seu papel econômico. Isso vale,

além das medidas ideológico-repressivas do Estado, para sua ação na normalização

disciplinar, a estruturação do espaço e do tempo, o estabelecimento de novos

processos de individualização e corporalidade capitalistas, para a elaboração de

discursos estratégicos, para a produção da ciência. Tudo isso ocasiona consideráveis

transformações institucionais que afetam o conjunto dos aparelhos do Estado e que

têm precisamente por fio condutor seu papel econômico.

Desse modo, por analogia, considera-se que essa reorganização política das funções

econômicas do Estado é substancialmente presente nos momentos de síntese

desenvolvimentista. Essa dinâmica permite, nas brechas que abre, a implantação de medidas

regressivas tratadas como necessárias ao desenvolvimento que será, deste modo, desigual em

essência e combinado entre as diferentes fases de evolução das forças produtivas.

406

Como, por exemplo, as ideológicas, de repressão, etc. Poulantzas (2000, p. 170) afirma que a

reorganização política dos “aparelhos” do Estado no sentido da acumulação fazem dele um “verdadeiro

aparelho econômico especializado”: “Não se trata simplesmente de atividades econômicas novas que

dominariam, como tais, outras atividades que continuariam, em si, imutáveis. O conjunto das operações

do Estado se reorganiza atualmente em relação a seu papel econômico. Isso vale, além das medidas

ideológico-repressivas do Estado, para sua ação na normalização disciplinar, a estruturação do espaço e

do tempo, o estabelecimento de novos processos de individualização e corporalidade capitalistas, para a

elaboração de discursos estratégicos, para a produção da ciência. Tudo isso ocasiona consideráveis

transformações institucionais que afetam o conjunto dos aparelhos do Estado e que têm precisamente por

fio condutor seu papel econômico”. Deste modo, por analogia, podemos considerar que esta

reorganização política das funções econômicas do Estado é substancialmente presente nos momentos de

síntese desenvolvimentista.

Page 244: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

244

A noção de desenvolvimento desigual é utilizada em sua acepção clássica 407 : a

desigualdade entre o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento social, entre a

expansão das forças produtivas e as relações sociais na formação capitalista. Revela-

se como reprodução ampliada da riqueza e das desigualdades sociais, fazendo crescer

a pobreza relativa à concentração e centralização do capital, alijando segmentos

majoritários da sociedade do usufruto das conquistas do trabalho social.

Desenvolvimento desigual em outra dimensão não menos fundamental: os tempos

desiguais entre as mudanças ocorridas na produção material e as formas culturais,

artísticas, jurídicas, etc., que expressam as alterações da vida material. A tensão entre

o movimento da realidade e as representações sociais que o expressam estabelece

descompassos entre o ser e o aparecer. Atualiza fetichismos e mistificações que

acobertam as desigualdades e sua reprodução social. (IAMAMOTO, 2001, p. 102-

103)408

3.3 Dependência (Sistema de Reciprocidades) e a nova roupagem do neoliberalismo

Não há um marxista que não se refira à maneira como Lênin (1979, p. 87) demonstra a fase

de desenvolvimento do capital, que denominou de fase superior do capitalismo e a definiu como

imperialista caracterizada pelos monopólios. Nessa fase “o que existe de essencial neste

processo é a substituição da livre concorrência capitalista pelos monopólios capitalistas”. Deste

modo, afirma:

A livre concorrência constitui o traço essencial do capitalismo e da produção

mercantil em geral; o monopólio é exatamente o contrário da livre concorrência; mas

nós vimos esta última converter-se, sob os nossos olhos, em monopólio, criando nela

a grande produção, eliminando dela a pequena, substituindo a grande por uma ainda

maior, levando a concentração da produção e do capital a um ponto que fez e faz

surgir os monopólios: os cartéis, os sindicatos patronais, os trustes, e fundindo-se com

eles, os capitais de uma dezena de bancos que reúnem bilhões. Ao mesmo tempo, os

monopólios não eliminam a livre concorrência de que nasceram: eles existem acima e

ao lado dela, implicando assim contradições, fricções, conflitos particularmente

agudos e violentos. O monopólio constitui a passagem do capitalismo a um regime

superior409.

O regime superior a que Lênin se refere é o imperialismo caracterizado pelo monopólio e

que tem no capital financeiro (que não se confunde com capital bancário, mas representa sua

407

Conforme apresentada por Marx, no Tomo 3 de O Capital. 408

IAMAMOTO, Marilda Villela. Trabalho e indivíduo social: um estudo sobre a condição operária na

agroindústria canavieira paulista. São Paulo: Cortez, 2001. 409

LÊNIN, Vladimir. O imperialismo: fase superior do capitalismo. Rio de Janeiro: Globo, 1979.

Page 245: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

245

fusão com o capital industrial) sua base de sustentação410

. Além disso, essa nova fase pressupõe,

ainda, uma nova partilha do mundo, cujos limites de dominação não respeitam os domínios

tradicionais da geopolítica – que leva em consideração agregações culturais – extrapolando-os e

reconfigurando o globo conforme os interesses monopolistas de livre circulação do capital.

Segundo Lênin (1979, p. 88), esse imperialismo apresenta cinco características principais:

1) Concentração da produção e do capital atingindo um grau de desenvolvimento tão

elevado que origina os monopólios cujo papel é decisivo na vida econômica; 2) fusão

do capital bancário e do capital industrial, e criação, com base nesse “capital

financeiro”, de uma oligarquia financeira; 3) diferentemente da exportação de

mercadorias, a exportação de capitais assume uma importância muito particular; 4)

formação de uniões internacionais monopolistas de capitalistas que partilham o

mundo entre si; 5) termo da partilha territorial do globo entre as maiores potências

capitalistas.

Desde 1916, quando Lênin redigiu esse ensaio até os dias atuais, o movimento do capital

tem sido o mesmo: o dinamismo do capital que circula através do mercado financeiro tem se

colocado acima da taxa de crescimento do setor produtivo.

O monopólio que caracteriza essa nova fase é altamente concentrador de riqueza, ao

permitir ou mesmo incentivar a fagocitose dos pequenos empreendimentos capitalistas pelos

grandes. A concentração de capital exponenciada, assim, extrapola as possibilidades

concentradoras da base produtiva e atinge o universo dos capitais fictícios e faz deste o agente

indispensável ao processo de acumulação, criando um Sistema de Reciprocidades entre os

agentes envolvidos nele e com ele: Estado burguês, mercados, conglomerados bancários e

financeiros e grandes empresas nacionais e transnacionais.

A relação de dominância do capital financeiro não elimina os demais, ao contrário,

possibilita sempre em perspectiva futura o aumento dos ganhos de todos os envolvidos, ao

mesmo passo em que repõe atualizada a dependência das economias periféricas com relação ao

centro (MARINI, 1977)411

.

Em 2005, o Mckinsey Global Institute lança o relatório $118 Trillion and Counting: Taking

Stock of the World´s Capital Markets412

. Nele, são levantados a composição e o crescimento do

estoque financeiro global, de 1980 a 2003, e com projeções ousadas para 2004 e 2010, com os

seguintes componentes: depósitos bancários, títulos públicos, títulos privados e ações. Ainda

comparam esse crescimento com o PIB/nominal e o total de ativos financeiros com o PIB.

410

Base de sustentação do regime fetichizado, reificado e não sua base real. A base real permanece sendo

a expropriação da força de trabalho, do trabalho vivo. 411

MARINI, Ruy Mauro. Dialéctica de la dependência. 3. ed., Cidade do México: ERA, 1977. (Série

popular). 412

Contagem de 118 trilhões de dólares: balanço do mercado mundial de capitais (tradução livre).

Page 246: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

246

O estudo permite verificar que o estoque total desses componentes (ativos financeiros)

cresceu de US$ 12 trilhões, em 1980, o equivalente a 109% do PIB mundial, para US$ 118

trilhões, em 2003, mais de três vezes o PIB mundial. Provavelmente, as projeções de 2004 e

2010 não levaram em consideração as crises de 2008 (e nem suas bases, no caso, a crise de

2004) e nem as implicações que redundariam na crise de 2011, contudo, o estoque de ativos

mundial não deixou de ser ascendente, segundo dados do FMI.

Cintra (2005) informa que a estimativa do Mckinsey Global Institute não considera os

derivativos financeiros. Os valores nacionais dos derivativos de balcão atingiram U$$ 197

trilhões, em dezembro de 2003 (cujo valor bruto de mercado alcançava US$ 7 trilhões), e os

derivativos negociados em bolsas somaram US$ 36 trilhões, de acordo com o Bank for

International Settlements (BIS)413

.

Gráfico 3 - Composição e crescimento do estoque financeiro global (trilhões de dólares / %)

Fonte: MCKINSEY GLOBAL INSTITUTE. Taking stock of the world´s capital markets: 118 trillion and counting. Disponível

em: <http://www.mckinsey.com>.

Essa extraordinária e crescente massa de ativos de capital, além de comprovar a assertiva

leninista, sobre nova fase do capitalismo referenciada, sobretudo no livro III de O Capital,

também é resultado da internacionalização financeira do pós II Guerra, alcunhada anos mais

413

CINTRA, Marcos Antonio Macedo. Tendências da globalização financeira: a extraordinária liquidez

global. Revista Princípios, n. 79, São Paulo, jun./jul. 2005.

PIB/Nominal 10,1 24,4 29,9 30,5 36,1

Ativos

Financeiros/PIB

109 216 230 315 326

Page 247: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

247

tarde de globalização, liderada pelo sistema financeiro e pela moeda norte-americana. Por

parecer contraditório, as práticas dos Estados, na época, que tentavam se reerguer e ao mesmo

tempo dar conta dos novos arranjos que promoveram como alternativa para a crise da

superprodução de 1929 – keynesianismo - consubstanciaram medidas intervencionistas, sem

alternar para a planificação do tipo socialista da economia. A prevalência do crédito bancário

sobre a emissão de títulos negociáveis (securities) e a chamada repressão financeira foram as

principais características dos sistemas financeiros de então, responsáveis pela aparente

estabilidade dessa circulação nas três primeiras décadas que se seguiram à II Guerra Mundial.

“Esta incluía a separação entre os bancos comerciais e os demais intermediários financeiros,

controles quantitativos do crédito, tetos para as taxas de juros e restrições ao livre movimento de

capitais”. (BELLUZZO, 2005. p.15)414

.

Mas essas medidas foram insuficientes para encilhar o capital, ou mesmo impedir que um

novo período de crise internacional se iniciasse e, desta vez, no epicentro do mundo produtor do

ouro negro – o petróleo – e se alastrasse não apenas para os países da periferia capitalista como

também se estendesse como uma crise de longa duração. As manifestações mais importantes

dessa crise puderam ser sentidas no mercado financeiro e no comércio internacional, na inflação

crônica associada ao baixo crescimento econômico, dando origem a um novo fenômeno

chamado de estagflação. O caráter produtivo da crise é atribuído às mudanças no paradigma

tecnológico, que passam a ser chamadas de Terceira Revolução Industrial. (TAVARES, 2000,

p. 11)415

.

Os países de capitalismo central cederam às pressões inflacionistas decorrentes de um

superaquecimento de suas economias – expansão da procura agregada – ao mesmo tempo em

que os países produtores de petróleo passam a impor restrições que levam à redução da oferta

agregada com impactos nos setores que sobrevivem dos derivados do petróleo. As

consequências inevitáveis, como o desemprego, a fuga de capitais, a depreciação das moedas

fortes, etc., foram, como dissemos, estendidas a todos os países, configurando o caráter global

da crise. Requisita-se, assim, imediatamente, nova arquitetura para o capitalismo mundial, e,

para tal, medidas de ajuste são tomadas.

414 Esse movimento, sempre crescente, impulsionara as transações de crédito financeiro que anos mais

tarde estariam permanentemente no epicentro de novas crises cíclicas, a exemplo daquela motivada pela

falência do sistema de crédito bancário imobiliário em 2008. É importante que não se perca de vista nosso

entendimento de que tais crises cíclicas são apenas manifestações conjunturais das chamadas crises

sistêmicas, como dissemos antes. (In: BELLUZZO, Luiz Gonzaga de M. O regime do capital e o

desenvolvimento capitalista. Revista Princípios, n. 79, São Paulo, jun./jul. 2005. p. 12-17. 415

TAVARES, Laura Soares. Os custos sociais do ajuste neoliberal na América Latina. São Paulo:

Cortez, 2000. (Coleção Questões de Nossa Época).

Page 248: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

248

Trata-se de uma crise global de um modelo social de acumulação, cujas tentativas de

resolução tem produzido transformações estruturais que dão lugar a um modelo

diferente – denominado de neoliberal – que inclui (por definição) a informalidade no

trabalho, o desemprego, o subemprego, a desproteção trabalhista e consequentemente,

uma “nova pobreza”. (TAVARES, 2000, p.12)416.

Para a autora, essa alternativa não se limita a transformações no caráter técnico do

gerenciamento do fluxo de capitais e nem apenas às transformações nas estruturas jurídico-

políticas dos Estados que o implantam, mas contém um refinado aparato ideopolítico que

reafirma que a

reprodução em condições críticas de grandes parcelas da população (...) passa a se

sustentar por uma lógica coerente com o individualismo que dá sustentação ideológica

a esse modelo de acumulação: no domínio do mercado existem, “naturalmente”

ganhadores e perdedores, fortes e fracos, os que pertencem e os que ficam de fora” o

que não impede de modo algum a reprodução do capital. (Id. ibid., p.12-13)417.

Afirma ainda que os impactos e consequências da crise, bem como possíveis “soluções”,

além das determinações mais gerais dadas pela própria etapa de desenvolvimento do

capitalismo, diferenciam-se entre os países pela inserção internacional de suas economias e

pelos particulares desenvolvimentos históricos, que determinam respostas sociais e políticas

específicas (ib., p. 11). Este processo não só está na base que configura a gênese do

neoliberalismo no Brasil como se mantém presente no País do século XXI.

Com isso, não se pode negar que um novo arranjo nos padrões de desenvolvimento

capitalista emerge, sobretudo, a partir da intervenção do Estado norte-americano no mercado

financeiro, em 2008, que se pauta pela objetivação de relações recíprocas entre o Estado e os

grandes conglomerados financeiros, ainda que os sinais dessa reciprocidade já possam ser

percebidos em fases precedentes, como demonstrado no item 2.1.3 Protoformas do ajuste

neoliberal.

Sem que haja um novo Consenso de Washington, tanto os países do centro quanto os da

periferia capitalista são levados a imbricar-se nessa teia das inter-relações onde participam

também empresas transnacionais e empresas nacionais fagocitadas pelo capital

desterritorializado.

É importante ressaltar que os ciclos de expansão capitalista não existem sem a admissão de

períodos de crise, portanto, a manifestação contemporânea depressiva pode ser incluída no

contexto da quarta grande crise sistêmica do capital418

. Suas características fundamentais não

416

Id., ibid. 417

Id., ibid. 418

Tomamos por referência o seguinte arranjo “evolucionista” das crises sistêmicas do capital. A primeira

grande crise teria ocorrido entre os anos de 1873 a 1895 e esteve relacionada com a concorrência

Page 249: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

249

são novas, pois se sustentam, como sempre, nas dificuldades no processo de acumulação de

capital decorrentes do declínio nas taxas de lucro. O que pode ser considerado novo é o

deslocamento, ainda que sutil, dos padrões produtivos que ancoraram as mudanças nos rumos

do capital anteriormente, como, por exemplo, as inovações fordistas/tayloristas, a acumulação

flexível, etc., para a esfera das tecnologias de informação, que sem subsumir a centralidade do

trabalho se tornam os verdadeiros auxiliares no aumento da produtividade do capital financista.

Este, por seu turno, vai cada vez mais se aglutinando, em torno de uma comunidade financeira

global, cujas fronteiras não obedecem em nada à lógica de soberania e constituição dos Estados

Nacionais; sem pátria ou território, suplantando histórias, culturas e sonhos dos povos no mundo

todo em defesa de sua autorreprodução.

O capital portador de juros e sua forma manifesta em capital fictício, como demonstrara

Marx, nessa conjuntura recente, tem seu núcleo irradiador nos bancos não comerciais (os de

investimentos), em especial sob o signo dos fundos de pensão. A estruturação da prevalência do

capital financeiro se deu, ainda, com a implantação dos ajustes contrarreformistas nas estruturas

jurídico-políticas dos Estados centrais (menos) e periféricos (mais).

A participação ativa, mas nem sempre explícita, do Estado, nesse processo, mesmo ao

admitir mudanças em seu interior, motivou o advento da escola regulacionista, que passa a

conferir centralidade às diversificadas estratégias de regulação — que obedecem à nova

repartição do mundo, como demonstra Lênin — nos regimes monetário-financeiros e nas

formas de expropriação do trabalho (relação salarial)419

. Autores como Arrighi (2008)420

,

Harvey (2005421

, mas principalmente Chesnais (2003)422

, com colorações diferentes,

argumentam que a nova fase do capitalismo, caracterizada pelos elementos que arrolamos,

decorre da crise pelo endividamento dos países da periferia capitalista, nos anos 1980.

Os projetos políticos desenvolvimentistas desse período (na periferia) nunca abriram mão

do suporte monetário e financeiro do capital estrangeiro. A entrada desses capitais nesses países,

industrial que se estabeleceu entre Inglaterra, França, Alemanha, Itália e outros países da Europa. A

segunda seria aquela que antecederia a I Guerra Mundial (1914-19148) e ainda pautada pela concorrência

industrial expansiva entre alemães e italianos contra ingleses e franceses, principalmente. A terceira, a

mais conhecida de todas, se inicia com o crack da Bolsa de Nova York, em 1929, e se estende também até

um período que culmina em guerra, a II Guerra Mundial (1939-1945) cujo restabelecimento se ancora em

um novo ciclo expansivo. A quarta se inicia por volta dos anos 1970, quando já sobressai de maneira

mais explícita as implicações decorrentes da financeirização da economia em escala mundial motivadas

pelas propostas da Conferência de Bretton Woods e as inflexões nos preços e na produção petrolífera. De

lá para cá, é essa mesma crise que vêm apresentando espantosa alternância entre períodos expansivos e

depressivos, liderando modernizações conservadoras na geografia socioeconômica e política em escala

global e, ao mesmo tempo, exponenciando os níveis de acumulação sincronizados à superexploração e

expropriação do trabalho sob a dominância do capital financeiro. 419

A referência à escola regulacionista, em nosso texto, se limita a extrair suas contribuições no tocante à

identificação dos processos fundantes dessa nova fase de acumulação de capital. Deste modo, entendemos

não nos desviar da análise fundada na tradição marxista que utilizamos. 420

ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. São Paulo:

Boitempo, 2008. 421

HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo: Edições Loyola, 2005. 422

CHESNAIS, François (et al). Uma nova fase do capitalismo? São Paulo: Xamã, 2003.

Page 250: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

250

em especial na América Latina e em particular no Brasil, se associa à elevação da taxa de juros

internacionais, ampliando a dívida, o que ocorre em ciclos desenvolvimentistas anteriores aos

dos anos 80, pois já fora, deste modo, evidenciado pelos autores da teoria da dependência nos

anos 70 (Marini, 1977)423

.

A máxima popular descobrir um santo para cobrir outro se encaixa perfeitamente naquilo

que intelectuais como Chesnais têm considerado como a dinâmica fundante dessa nova fase. A

contração de novos empréstimos, a abertura da porta de entrada de modo largo para o capital

estrangeiro, dando como principal garantia promessas de ajuste com austeridade, redundando

nas políticas de superávit primário, se alastra como um mantra na periferia capitalista, que

vislumbra o mito do desenvolvimento424

. (Gráficos 4, 5 e 6).

Gráfico 4 - Estoques da dívida externa (em % do RNB) – América Latina e Caribe, e Brasil - 1980 a

2010

Fonte: Banco Mundial – Última atualização em 31 de outubro de 2012425. Elaboração própria.

423

MARINI, Ruy Mauro. Dialéctica de la dependência. 3. ed., Cidade do México: ERA, 1977. (Série

popular). 424

Baseada ainda na ideia de que o desenvolvimento é apenas o resultado de medidas adequadas de ajuste

na economia e em políticas correlatas. 425

Estoques da dívida externa (em % do RNB). Total de ações da dívida externa para o rendimento

nacional bruto. A dívida externa total é para com não residentes reembolsáveis em moeda estrangeira,

bens ou serviços. A dívida externa total é a soma da dívida pública, com garantia pública, dívida privada

de longo prazo não garantida, o uso de crédito do FMI e dívida de curto prazo. A dívida de curto prazo

inclui toda a dívida, com um prazo original de um ano ou menos e juros de mora sobre a dívida de longo

prazo. RNB (anteriormente PIB) é a soma do valor adicionado por todos os produtores residentes mais os

impostos de produtos (menos subsídios) não incluídos na valoração da produção, além de receitas líquidas

dos rendimentos primários (remunerações dos funcionários e rendimentos de propriedade) do exterior.

Page 251: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

251

Gráfico 5 - Serviço da dívida (capital + pagamento de juros) – Brics – 1995 a 2010 (em bilhões de

dólares).

Fonte: Banco Mundial – Última atualização em 31 de outubro de 2012426. (Elaboração própria).

Gráfico 6 - Serviço da dívida total (% das exportações de bens, serviços e renda) – Brics – 1995 a 2010.

Fonte: Banco Mundial – Última atualização em 31 de outubro de 2012. Elaboração própria.

Mas a entrada de capital estrangeiro não se dá apenas como medida de saneamento das

contas dos países endividados e em crise. Ela pode ocorrer como oferta para ampliar um ciclo

de desenvolvimento já em curso, movimento preferencial do grande capital já que a estabilidade

monetária minimiza os riscos de um calote. Ademais, o Investimento Estrangeiro Direto (IED)

vindo fundamentalmente dos países de capitalismo central (ditos desenvolvidos) obedece aos

426

Serviço da dívida total é contrastada com a capacidade do País de obter divisas por meio da exportação

de bens, serviços, rendimentos e remessas dos trabalhadores. Serviço da dívida total é a soma dos

reembolsos principal e juros efetivamente pagos em moeda estrangeira, bens ou serviços da dívida de

longo prazo, juros pagos na dívida de curto prazo e reembolsos (recompras e encargos) para o FMI.

Page 252: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

252

apelos morais da tradicional teoria cepalina do desenvolvimento. Segundo tal teoria, o

desenvolvimento trata da plena realização da economia — cartesianamente tipificada pelos

setores primário, secundário e terciário — alcançada a partir da evolução decorrente de uma

soma de fatores que vão desde a estabilidade até o investimento, ou, de modo mais simples:

com a diversificação da atividade industrial (PREBISCH, 1949 e 1952)427

. O

subdesenvolvimento é, então, uma etapa anterior a essa fase, mas constituinte do mesmo

processo. Em outros termos

A teoria do desenvolvimento assevera que o subdesenvolvimento constitui uma etapa

anterior ao desenvolvimento pleno. Este representaria, porém, algo acessível a todos

os países que se empenhassem em criar as condições necessárias para tal. (MARINI

apud CASTELO, 2010)428.

Desta forma, fica fácil perceber que o fluxo do IED mantém intima relação com a

situação de dependência dos países da periferia capitalista, em relação aos centrais, sendo dela

parte constituinte. Nos anos 90, o IED cresce em todo mundo, destacando-se a Ásia e a América

Latina e Caribe como os maiores receptores. De 1990 a 2005, só os países emergentes da Ásia

receberam 55% do total do IED (a China sozinha representa 23% desse total) e a América

Latina e Caribe em segundo lugar, com 33% como demonstra o Gráfico 7.

Gráfico 7 - O investimento estrangeiro direto nas regiões emergentes - 1990-2005 (em %)

Fonte: Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), 2008.

Outrossim, a dinâmica ascendente do IED se retrai nos períodos de crise. O Gráfico 8

mostra essa retração nos países em desenvolvimento, nas crises de 1998 e 2002, contudo, a

427

PREBISCH, Raúl. Estudo econômico da América Latina, 1949; e Problemas teóricos e práticos do

crescimento econômico, 1952. In: BIELSCHOWSKY (Org.). Cinquenta anos, v. 1, p. 166-167 e 204,

respectivamente. 428

MARINI, Ruy Mauro. A crise do desenvolvimentismo. In: CASTELO, Rodrigo (Org.).

Encruzilhadas da América Latina no século XXI. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2010.

Page 253: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

253

relação de dependência e a expropriação da periferia dela inerente se evidenciam quando

verifica-se uma migração direta desses investimentos para os países desenvolvidos, no período

de 1998 a 2001 e de 2004 em diante. Isto é, a crise na periferia condiciona o crescimento no

centro. Portanto, adquirimos, assim, condições de entender a dependência como epifenômeno

do processo de acumulação de capital, que condiciona o desenvolvimento de uma economia

pelo subdesenvolvimento/dependente de outra. Ou, como afirma Marini (1977, p. 18):

[és una]429 relación de subordinación entre naciones formalmente independientes, em

cuyo marco las relaciones de producción de las naciones subordinadas son

modificadas o recreadas para assegurar la reproducción ampliada de la

dependência430.

Gráfico 8 - Ingressos líquidos de investimento estrangeiro direto (em bilhões de dólares)

Fonte: Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad)

As políticas de ajuste, nessa nova fase, contemplam ainda a redução dos gastos públicos

com privatizações e recomposições acionárias em larga escala; o afastamento gradual do Estado

de suas funções sociais intervencionistas, reduzidas ao controle da estabilidade monetária

(metas de inflação baseadas em juros altos, remuneratórias do capital especulativo); a

aniquilação gradual da indústria nacional — pois suas condições de concorrência global são

ínfimas e a substituição das importações, neste caso, não surte os efeitos de outrora — além de

serem arrastadas pelo processo de reestruturação produtiva que redunda na superespecialização

429

Grifo nosso. 430

MARINI, Ruy Mauro. Dialéctica de la dependência. 3. ed., Cidade do México: ERA, 1977. (Série

popular).

Page 254: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

254

(e fragmentação) do trabalho (ANTUNES, 2005)431

e na reprimarização da economia432

além

dos fatores combinados que Gonçalves (2011)433

utiliza como referência para construir seus

argumentos comprobatórios do processo de desindustrialização recentes: a redução do valor

adicionado da indústria de transformação, a desubstituição de importações, a reprimarização das

exportações, a dependência tecnológica, a desnacionalização, a perda da competitividade

internacional, etc.

É, pois, no Consenso de Washington, responsável tanto pela idealização quanto pela

propagação dessa agenda (neoliberal) que princípios estruturais do ajuste são encontrados:

liberalização do mercado e do sistema financeiro, fixação dos preços pelo mercado (ajuste de

preços), fim da inflação (estabilidade macroeconômica) e privatização (CHOMSKY, 2004, p.

22)434

, sem que se tenha que refundá-lo nos tempos atuais.

No Brasil não foi diferente. As respostas às crises desde os anos 90 estão no contexto da

implantação desse ajuste e podem ser divididas em duas fases: a primeira fase é a de

contrarreforma, que carrega consigo a fidelidade às diretrizes do Consenso de Washington, sob

a primazia do projeto de estabilização monetária, o Plano Real. Essa fase se inicia, ainda que de

modo tímido, já nas primeiras experimentações (re)democráticas, em fins dos anos 80 e

atravessa toda a década de 1990. A segunda etapa é caracterizada por experimentalismos

relativamente mais bem-sucedidos do que a primeira, pois o remédio amargo do ajuste já fora

tomado, tendo início no novo século e nos atingindo até os dias atuais.

Ambas as fases se dão no contexto de uma agenda que mantém forte a ortodoxia neoliberal,

contudo, flexibilizada aos diferentes estágios de desenvolvimento das democracias liberais de

massa, o que pode levar à falsa impressão de que se trata de programáticas distintas, caso

examinadas apenas suas manifestações mais evidentes. A supremacia do processo de

financeirização pode nos levar a essa falsa identificação da realidade, se não nos dermos conta

da permanência dos níveis crescentes de expropriação do trabalho, da terra, dos direitos, etc.

As alterações institucionais a que nos referimos, mostram os sutis deslocamentos no interior

do bloco no poder, cujos comandos passam à emergente oligarquia financeira. Refundam o mais

puro Adam Smith, quando o Estado reduz suas funções à garantia dos contratos de propriedade,

à segurança nacional e à administração jurídico-normativa de todo corpo social435

. Deste modo,

podemos concordar com a tese que assevera a supremacia dos ganhos financeiros sobre os

431

ANTUNES, Ricardo. O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São

Paulo: Boitempo, 2005. 432

De modo bastante distinto dos momentos de síntese do desenvolvimentismo na história brasileira. 433 GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o nacional-desenvolvimentismo às avessas. Rio de

Janeiro: UFRJ, 2011. 434

CHOMSKY, Noam. O lucro ou as pessoas? Neoliberalismo e ordem global. Rio de Janeiro: Bertrand

Brasil, 2004. 435

Mas sempre mantém ativa sua função econômica.

Page 255: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

255

ganhos da produção, numa relação de interdependência entre ambos sob o signo dos princípios

fundamentais do neoliberalismo que vem aos poucos se repaginando.

3.3.1 Continuidade e ruptura: novo-desenvolvimentismo ou neoliberalismo à brasileira?

A estrutura dos Estados “ajustáveis” latino-americanos, o que inclui o país que nos

interessa: o Brasil, apresentará particularidades que os diferirão dos modelos de

desenvolvimento implementados nos países emergentes, como a Rússia, a Índia ou a China, por

exemplo. Somadas as particularidades conjunturais — com suas fortes implicações políticas e

culturais — e as inflexões que condicionam novos padrões nas relações sociais e na morfologia

do trabalho, teremos como resultantes a emergência de novo ciclo expansivo com características

próprias.

Essa assertiva não reafirma as teses sobre a aquisição de uma autonomia ainda que relativa

desses países com relação às diretrizes socioeconômicas do centro, ao contrário, as adaptações

que realizam são compatíveis com os postulados descritos nos manuais das agências e

organismos multilaterais. Apenas na fase posterior, denominada por alguns como pós-neoliberal

e, mais recentemente, como neodesenvolvimentista, é que será possível notar iniciativas

peculiares que, embasadas em complexos aparatos ideológicos, ilusoriamente, parecem

redimensionar a autonomia de alguns Estados nacionais, dão a falsa impressão de um novo ciclo

de desenvolvimento orientado para a independência ou autonomia econômico-financeira e

colhem como um de seus resultados a participação relativamente proativa desses países nos

espaços decisórios da economia global. O Brasil é um caso emblemático.

Esse processo nos leva a afirmar que no Brasil estaríamos diante de uma nova roupagem do

neoliberalismo, pois seus acessórios o particularizam, o que também nos permite falar em um

neoliberalismo à brasileira, desafinando o coro dos contentes apologetas do novo

desenvolvimentismo436

.

436 A tese que coloca em xeque os argumentos que defendem a existência de um novo

desenvolvimentismo no Brasil pode ser encontrada em autores distintos, com formulações distintas,

dentre eles: Gonçalves (2011, 2012), Castelo (2010, 2012a, 2012b), Filgueiras (2006), Filgueiras &

Gonçalves (2007), Boito Jr. (2006), de modo mais contundente, e desses autores nos apropriamos da

quase totalidade dos componentes factuais que levantam, para formular nossos argumentos sobre as

continuidades e rupturas do neoliberalismo brasileiro nessa nova fase de acumulação. Deste modo,

corroboramos com a linha mestra produzida nos estudos de tais autores. Todavia, a heterogeneidade do

debate sobre o novo-desenvolvimentismo nos leva a dialogar com autores como Arcary (2011), que trata

do mito reformista na era Lula, ou Singer (2012) que, de modo diferente de Arcary, situa as “reformas

lulistas” no campo da modernização conservadora. Tais diálogos situam nossa produção no campo da

esquerda anticapitalista, contudo, sem considerar como terra arrasada as reflexões de Pochmann (2012) o

qual, ainda que demonstre ser entusiasta desse “novo ciclo de desenvolvimento”, se distingue pelo veio

crítico que apresenta, das de Mercadante Oliva (2010) ou as de Bresser-Pereira (2008).

Page 256: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

256

3.3.1.1 Primeira fase do novo ciclo: fase contrarreformista

Os indicadores macroeconômicos da fase contrarreformista no Brasil demonstram que a

frenética busca pela estabilidade redunda em estagnação e na utilização de medidas

emergenciais não previstas no projeto de ajuste motivadas pelas crises de 1998 e 1999, como,

por exemplo, as recorrentes renegociações da dívida pública brasileira com o FMI e o Banco

Mundial. Utilizando o crescimento do PIB como um indicador, verifica-se sua evolução e

involução no período estendido do contrarreformismo de 1995 a 2002, mas com mudanças

significativas (para o projeto em curso) apenas a partir de 2005.

Os gráficos 9 e 10 demonstram que o PIB brasileiro sofre diretamente os impactos da crise

de 1998/1999 apresentando uma queda considerável de 30,5%, tomando fôlego em 2000,

voltando a cair e só se recupera a partir de 2003. Na comparação com os Brics, a China é o

único país que cresce na conjuntura recessiva de 1998/1999437

.

Gráfico 9 - PIB per capita (US$ atualizados) – Brasil, 1995 a 2011

Fonte: Banco Mundial – Última atualização em 31 de outubro de 2012438. Elaboração própria.

437

Coincide com o momento em que o governo chinês define medidas trabalhistas ainda mais regressivas. 438

PIB per capita (US$ atualizados). É o produto dividido pela população no meio do ano. PIB é a soma

do valor bruto agregado por todos os produtores residentes na economia mais todos os impostos de

produtos e menos quaisquer subsídios não incluídos no valor dos produtos. Calcula-se sem fazer deduções

de depreciação de bens fabricados ou da exaustão e degradação dos recursos naturais. Os dados estão em

dólares americanos atualizados

Page 257: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

257

Gráfico 10 - PIB na cotação atual do dólar – Brics – 1995 a 2011 (em bilhões e trilhões de dólares).

Fonte: Banco Mundial – Última atualização em 31 de outubro de 2012. Não ajustado pela inflação. Elaboração própria.

Os esforços pela estabilização monetária não impediram que o ataque especulativo

associado à fuga de capitais levasse o País a instituir novos acordos com o FMI e outros

organismos multilaterais, como já dito. Os recursos utilizados para sanar o desequilíbrio de

nossas contas não implicaram investimento, o que fez o PIB do período (1995 a 2002) seguir

modesto, com ciclos tímidos de ascensão.

O baixo crescimento, porém, não chegou a incomodar as equipes econômicas da vez,

afinal, todo sacrifício era válido, em nome da estabilidade pautada pelo cumprimento das metas

de inflação. Compromisso este anunciado reiteradas vezes, pelo Presidente Cardoso, desde sua

posse, em 1995, até a entrega da faixa presidencial em janeiro de 2003.

Ao escolher a mim para sucedê-lo [o presidente Itamar Franco]439, a maioria absoluta

dos brasileiros fez uma opção pela continuidade do Plano Real e pelas reformas

estruturais necessárias para afastar de uma vez por todas o fantasma da inflação. A

isso me dedicarei com toda energia, como Presidente, contando com o apoio do

Congresso, dos estados e de todas as forças vivas da Nação. Temos de volta a

liberdade, portanto. E teremos desenvolvimento. Falta a justiça social. É esse o grande

desafio do Brasil neste fim de século. Será o objetivo número um do meu Governo.

(CARDOSO, 1995)440.

439

Grifo nosso 440

Discurso de posse do presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1o de janeiro de 1995.

Page 258: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

258

66,01

15,76

6,933,2

7,04 8,45

14,72

6,6 6,874,18 5,66 5,046,64

0

10

20

30

40

50

60

70

Brasil

Começamos por colocar a inflação sob controle, com o Plano Real. Não foi uma

tarefa fácil, nem era ela um fim em si mesmo. Porque isso era tão importante? Por

uma razão muito simples. Porque, nas décadas anteriores, a espiral inflacionária tinha

sido o mais importante fator de perturbação do desempenho da economia brasileira.

Também, e isso é o cerne da questão, porque a inflação não era meramente um

problema de macroeconomia. Era, acima de tudo, uma questão de justiça social” (Id.,

2002)441.

A inflação brasileira que já fora de quase 3.000% (2.947,73%, IPC/Fipe), em 1990, cai para

66,01%, em 1995, já como resultado da estabilização do Plano Real recente. Justamente na crise

de 1998/99, atinge o índice mais baixo da série 1995-2011, de 3,20%, tendo o IPC como base

referencial. Não é por coincidência que os juros praticados no mesmo período foram da ordem

de 17,4% (Gráfico 13) e o Decreto presidencial 2.773, de 1998, determinou como meta para

esse ano a obtenção de um superávit de R$ 5 bilhões. Além disso, a desvalorização do Real

perante o dólar norte-americano funcionou como fator de contenção inflacionária. (Gráfico 11).

Gráfico 11 - Inflação (%) – Preço para o consumidor – Brasil - 1995 a 2011

Fonte: Banco Mundial – Última atualização em 31 de outubro de 2012442. Elaboração própria.

Os indicadores da inflação brasileiros são melhores que os da Rússia — seguindo a

linha comparativa com os países em desenvolvimento — porém, piores que os da Índia, China,

441

Discurso do presidente Fernando Henrique Cardoso, em 9 de dezembro de 2002, ao receber do

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) o prêmio Mahbub Ul Haq, por contribuição

destacada ao desenvolvimento humano. 442

A inflação, conforme medida pelo índice de preços ao consumidor, reflete a variação percentual anual

no custo, para o consumidor médio, de aquisição de uma cesta de bens e serviços que pode ser fixo ou

alterado em intervalos específicos; por exemplo, anualmente.

Page 259: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

259

-50

0

50

100

150

200

250

1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011

I n f

l a

ç ã

o

Brasil

Rússia

Índia

China

África doSul

África do Sul e da média latino-americana, o que demonstra que a economia brasileira

permanece apresentando um grau de vulnerabilidade cuja resolutividade não se encontra nas

medidas de privatização e liberalização econômica ao gosto do que as mensagens presidenciais

propalaram e o que se pode verificar no Gráfico 12.

Gráfico 12 - Inflação (%) – Preço para o consumidor – Brics, América Latina e Caribe - 1995 a 2011

Fonte: Banco Mundial – Última atualização em 31 de outubro de 2012443. Elaboração própria.

Não fui eleito para ser o gerente da crise. Fui escolhido pelo povo para superá-la e

para cumprir minhas promessas de campanha. Para continuar a construir uma

economia estável, moderna, aberta e competitiva. Para prosseguir com firmeza na

privatização. Para apoiar os que produzem e geram empregos. E assim recolocar o

País na trajetória de um crescimento sustentado, sustentável e com melhor

distribuição de riquezas entre os brasileiros [...] O Brasil continuará a desempenhar

papel ativo na revisão da arquitetura do sistema financeiro internacional. Não

podemos aceitar que aplicações especulativas, por não estarem submetidas a qualquer

tipo de supervisão ou ordenamento, desarticulem o processo produtivo e constituam

ameaça recorrente às economias nacionais. (CARDOSO, 1999)444.

443

A inflação conforme medida pelo índice de preços ao consumidor reflete a variação percentual anual

no custo para o consumidor médio de aquisição de uma cesta de bens e serviços que podem ser fixos ou

alterados em intervalos específicos, por exemplo, anualmente. 444

CARDOSO, Fernando Henrique. Pronunciamento de posse em 1o de janeiro de 1999. Congresso

Nacional. Brasília/DF.

Page 260: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

260

Gráfico 13 - Taxa de juros Selic acumulada anual e média mensal – Brasil - 1995 a 2012

Fonte: Receita Federal do Brasil. Disponível em: <www.receita.fazenda.gov.br>. Formatação própria

Como todos os esforços estavam voltados para a estabilidade a qualquer preço, os

custos do ajuste, como a retração dos direitos sociais, que perdem identidade e a concepção de

cidadania que se restringe, com o aprofundamento da separação público-privado, onde a

reprodução é inteiramente devolvida para este último âmbito, com a legislação trabalhista

evoluindo para maior mercantilização (e, portanto, desproteção) da força de trabalho, com a

legitimação (do Estado) se reduzindo a uma mistura entre populismo e iniciativas sociais

focalizadas, com a seguridade social universal e pública se desmontando (sem mesmo ter

conseguido efetivar-se), dentre outros aspectos (SOARES, 2000, p.13)445

, foram corroborados

pelo Programa de Publicização446

, elemento estruturante do enxugamento da máquina do Estado

445

SOARES, Laura Tavares. Os custos sociais do ajuste neoliberal na América Latina. São Paulo:

Cortez, 2000. (Coleção Questões de Nossa Época, v. 78). 446

O Programa de Publicização fez parte estruturante do Plano Diretor de Reforma do Estado, da gestão

de FHC, e foi idealizado e implementado por sua equipe econômica, sob a liderança do então ministro da

Administração e Reforma do Estado, Bresser-Pereira. “No sentido amplo [o plano diretor] propõe uma

redefinição do papel do Estado. Parte-se do pressuposto de que ele continua sendo um realocador de

recursos, que garante a ordem interna e a segurança externa, tem os objetivos sociais de maior justiça e

equidade, e os objetivos econômicos de estabilização e desenvolvimento. Contudo, para assumir os dois

últimos papéis, cresceu de forma distorcida. Hoje, então, a “reforma” passaria por transferir para o setor

privado atividades que podem ser controladas pelo mercado, a exemplo das empresas estatais. Outra

forma é a descentralização, para o ‘setor público não-estatal’, de serviços que não envolvem o exercício

do poder do Estado, mas devem, para os autores [do plano], ser subsidiados por ele, como: educação,

saúde, cultura e pesquisa científica. Este processo é caracterizado como publicização e é uma novidade da

reforma que atinge diretamente as políticas sociais. Trata-se da produção de serviços competitivos ou

não-exclusivos do Estado, estabelecendo-se parcerias com a sociedade para o financiamento e controle

social de sua execução. O Estado reduz a prestação direta de serviços, mantendo-se como regulador e

provedor. Reforça-se a governance por meio da transição de um tipo rígido e ineficiente de administração

pública para a administração gerencial, flexível e eficiente. Para os autores do Plano, o governo brasileiro

não carece de governabilidade, mas de governance” (BEHRING, 2003, p. 178-179). Esse extenso excerto

da obra de Behring mostra que as bases para uma nova relação público-privada foram reconfiguradas, e

se justifica justamente por que nota-se que, no período Lula, mas especialmente sob a gestão da

presidenta Dilma. permanece contraditoriamente parte dessas relações sob a forma das parcerias público-

privadas em áreas estratégicas, como aeroportos, portos e rodovias e, do mesmo modo, uma “espécie de

Page 261: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

261

no que tange a suas obrigações sociais. Com ele, se pôde ampliar a arrecadação a serviço da

dívida pela via da refuncionalização do Estado. (Gráficos 14 e 15).

Gráfico 14 – Dívida interna (R$) - Brasil - 1994 a 2010 (em trilhões de real)

Fonte: Auditoria Cidadã da Dívida

Gráfico 15 – Credores da dívida ativa interna (%) - Brasil, abril de 2010

Fonte: Banco Central (abr./2010) (Quadros 11 e 31) e Secretaria de Previdência Complementar (Estatística Mensal– dez./2009) – p.

3447.

estatização” em áreas como as de assistência social, cultura, segurança alimentar, dentre outras. (In:

BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em contrarreforma: desestruturação do Estado e perda de direitos.

São Paulo: Cortez, 2003.) 447

A rubrica Fundos de Pensão inclui recursos que se encontram aplicados em Fundos de Investimento de

Renda Fixa. Consequentemente, a rubrica Fundos de Investimento aparece descontada desses recursos.

Nota 2: A rubrica Bancos Nacionais e Estrangeiros inclui os Títulos Vinculados (que representam

principalmente o depósito, no Banco Central, pelas instituições financeiras, de títulos públicos como

garantia de operações em Bolsa de Valores) e as Operações de Mercado Aberto (que significam a retirada

de moeda de circulação mediante entrega às instituições financeiras dos títulos públicos em poder do

Banco Central).

Page 262: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

262

Se no início do Governo FHC ele herda um razoável equilíbrio do ponto de vista das

contas públicas, sua marca dos primeiros quatro anos (1994-1998) é o forte

desequilíbrio fiscal, menos pelo resultado primário — que não leva em consideração

os gastos financeiros — e mais por estes últimos. A componente financeira faz com

que os primeiros quatro anos do Governo FHC sejam de forte déficit das contas

públicas no resultado operacional. A partir dos acordos com o FMI, entretanto,

mudam os parâmetros da política fiscal. Mantém-se o desequilíbrio das contas do

ponto de vista do resultado operacional, mas de forma reduzida pela geração de um

superávit em torno de 3,5% do PIB ao longo dos três anos entre 1999-2001 — ou seja,

o déficit operacional é reduzido por um significativo superávit no resultado primário,

obtido de um lado pela ampliação da carga tributária, e de outro, pelo corte de gastos.

(LESBAUPIN; MINEIRO, 2002, p. 17)448.

Tabela 4 - Despesas do governo central (% do total) - Brasil - 1994 a 2010

Fonte: Banco Mundial – Última atualização em 31 de outubro de 2012449. Elaboração própria.

Essa conjuntura macroeconômica, cuja fidelidade aos marcos do neoliberalismo assombra

os crédulos mais fiéis, evidencia uma proposta de desenvolvimento distinta daquelas registradas

nos momentos de síntese desenvolvimentistas. A industrialização e o intervencionismo estatal

448

LESBAUPIN, Ivo; MINEIRO, Adhemar. O desmonte da nação em dados. Petrópolis/RJ: Vozes,

2002. 449

As estatísticas financeiras governamentais proporcionam uma visão geral do tamanho e do papel dos

governos centrais em relação às economias nacionais. A receita é o recebimento de impostos,

contribuições sociais e outras receitas, tais como multas, tarifas, aluguel e renda de propriedades ou

vendas. As despesas são pagamentos em dinheiro para as atividades operacionais do governo no

fornecimento de bens e serviços. Elas incluem a remuneração dos funcionários, juros e subsídios,

subvenções, benefícios sociais e outras despesas, como aluguel e dividendos. Superávit ou déficit de caixa

é a receita (incluindo subsídios) menos despesas, menos a aquisição líquida de ativos não financeiros.

Aumento líquido de passivos é o financiamento interno (obtido de residentes) e financiamento externo

(obtido a partir de não residentes) ou o meio pelo qual o governo disponibiliza recursos financeiros para

cobrir um déficit orçamentário ou aloca recursos financeiros decorrentes de um excedente orçamental. A

dívida total é composta por todas as obrigações contratuais diretas do governo a prazo fixo com outros em

determinada data.

1994 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010

Despesas do

governo

federal - bens

e serviços 5,32 9,05 19,05 16,86 17,53 18,01 18,55 11,46 13,17 12,11 6,72 7,34 6,65 7,15 7,02

Remuneração

de

funcionários 8,30 11,60 20,35 20,18 21,02 21,03 21,10 17,88 18,82 16,75 16,36 16,33 16,10 17,82 16,59

Pagamento de

juros 45,18 14,34 19,90 20,24 16,86 16,66 14,72 26,65 19,28 23,64 26,24 24,63 24,38 22,12 21,29

Subsídios e

outras

transferências 44,78 66,05 40,70 42,72 44,63 44,29 45,63 43,89 48,59 47,18 50,34 51,56 50,92 52,70 50,73

Outras

despesas - - - - - - - 0,12 0,14 0,32 0,34 0,14 1,96 0,20 4,45

Page 263: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

263

orientados para o mercado, de tão tímidos são quase inexistentes, muito menos o fomento do

Estado ao desenvolvimento pela via dos bancos e empresas públicas com intervenção direta,

antes, tal fomento se deu como pilar de sustentação para as privatizações.

Em termos de política macroeconômica, os indicadores demonstram a permanência de

resultados similares entre as duas fases de implantação do neoliberalismo no Brasil (o período

contrarreformista e o seguinte) ainda que os governos iniciados após 2003 se valham de outras

estratégias. É aí e na ausência de reformas de base estruturante como as reformas política, fiscal

e agrária, contudo, que se encontram parte dos traços de continuidade estrutural da programática

neoliberal. As rupturas se darão nas dimensões afetas a institucionalidade, a morfologia do

trabalho, a mobilidade social, a política social e a sensíveis deslocamentos no interior do bloco

no poder, se tratando assim apenas de mudanças conjunturais, na contramão do que afirmara

Mercadante Oliva (2010, p.3 ):

O programa de governo procurava articular três eixos: o social, o democrático e o

nacional. Orientado para promover a inserção internacional soberana do Brasil,

propugnava por uma ruptura com as políticas neoliberais, que já mostravam desgaste

profundo em toda a América Latina. Essa ruptura envolvia mudanças estruturais do

país. Uma parte dessas mudanças visava desmontar as armadilhas deixadas pela

agenda neoliberal. Outra parte das mudanças estruturais visava constituir um novo

padrão de desenvolvimento, tornando, como já dissemos, o social o eixo estruturante

do crescimento econômico450.

Assim, o período contrarreformista parece poder ser caracterizado “por um conjunto de

mudanças estruturais regressivas” (BEHRING, 2003)451

sem precedentes que abriram caminho

para que se consolidasse na fase seguinte o imobilismo no que tange à necessidade de reformas

reais, ainda que o discurso dominante se refira a reversão de estruturas.

3.3.1.2. Segunda fase do novo ciclo: fase de consolidação do neoliberalismo à brasileira.

Se há autores que afirmam o fracasso da ofensiva neoliberal no Brasil por não ter logrado

êxito no cumprimento de suas promessas de bem-estar, os indícios de seu sucesso (ou vitória

nos dizeres de Filgueiras)452

se fazem notar pela incorporação e enraizamento, tanto na

450 OLIVA, Aloizio Mercadante. As bases do novo desenvolvimentismo no Brasil. Análise do governo

Lula (2003-2010). Tese (Doutorado)- Instituto de Economia da Unicamp, dez. 2010. 451

BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em contrarreforma: desestruturação do Estado e perda de

direitos. São Paulo: Cortez, 2003. 452 FILGUEIRAS, Luiz. O neoliberalismo no Brasil: estrutura, dinâmica e ajuste do modelo econômico.

In Neoliberalismo y sectores dominantes. Tendencias globales y experiências nacionales. Basualdo

Eduardo M.; Arceo Enrique. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Buenos Aires,

Agosto, 2006.

Page 264: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

264

população em geral quanto na “classe política” dos seus marcos fundamentais. Esta foi a tônica

que balizou as campanhas presidenciais de 2002 levando o principal candidato da oposição

valer-se da estratégia de se comprometer com tais marcos tanto para atrair setores médios e altos

da sociedade quanto para sinalizar “tranquilidade” ao grande capital internacional e seus

“mercados em constante tensão”. Neste sentido, Lula declarou:

Será necessária uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a

sociedade reivindica (...) [A transição] Será fruto de uma ampla negociação nacional,

que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a um novo contrato social, capaz

de assegurar crescimento com estabilidade (...) Premissa dessa transição será

naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país. (...) À parte manobras

puramente especulativas, que sem dúvida existem, o que há é uma forte preocupação

do mercado financeiro com o mau desempenho da economia e com sua fragilidade

atual, gerando temores relativos à capacidade de o país administrar sua dívida interna

e externa. É o enorme endividamento público acumulado no governo de Fernando

Henrique Cardoso que preocupa os investidores. Trata-se de uma crise de confiança

na situação econômica do país, cuja responsabilidade primeira é do atual governo. Por

mais que o governo insista, o nervosismo dos mercados e a especulação dos últimos

dias não nascem das eleições (Lula da Silva, 2002)453.

Superando a nossa vulnerabilidade externa, poderemos reduzir de forma sustentada a

taxa de juros. Poderemos recuperar a capacidade de investimento público tão

importante para alavancar o crescimento econômico. Esse é o melhor caminho para

que os contratos sejam honrados e o país recupere a liberdade de sua política

econômica orientada para o desenvolvimento sustentável. Ninguém precisa me

ensinar a importância do controle da inflação. Iniciei minha vida sindical

indignado com o processo de corrosão do poder de compra dos salários dos

trabalhadores. Quero agora reafirmar esse compromisso histórico com o combate

à inflação, mas acompanhado do crescimento, da geração de empregos e da

distribuição de renda, construindo um Brasil mais solidário e fraterno, um Brasil de

todos (idem)454.

Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que

a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de

honrar os seus compromissos (...) A estabilidade, o controle das contas públicas e a

inflação são hoje um patrimônio de todos os brasileiros. Não são um bem exclusivo

do atual governo, pois foram obtidos com uma grande carga de sacrifícios,

especialmente dos mais necessitados (...) As mudanças que forem necessárias serão

feitas democraticamente, dentro dos marcos institucionais. Vamos ordenar as contas

públicas e mantê-las sob controle (ibidem)455.

453

Lula da Silva, Luiz Inácio. Carta ao povo brasileiro. São Paulo, 22 de junho de 2002. 454

Idem. 455

ibidem.

Page 265: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

265

A Carta ao Povo Brasileiro foi assim alvo de polêmicas de todas as ordens. Dividindo

opiniões, polariza um debate que vai para além dela. A polêmica se instaura entre um grupo que

entende os enunciados da Carta e as dinâmicas de campanha, bem como as medidas iniciais do

governo do presidente Lula como uma reversão programática e de princípios que não apenas

marcariam a posição do Partido dos Trabalhadores (PT) no campo de uma centro-esquerda cada

vez mais a direita como também impediriam a realização das mudanças na ordem econômico-

social do país. Iasi, cuja produção intelectual simboliza este grupo afirma:

Hoje assistimos ao processo de morte do PT, ou pelo menos a acentuação marcada de

sua agonia. Isto não implica que a forma que nasceu um dia e que hoje se encontra em

franco processo de deterioração não possa ainda caminhar pelo mundo por muito

tempo, uma vez que é comum este tipo de zumbi na história dos partidos políticos

(Iasi, 2006, p. 358)456.

De modo oposto, o debate contou com um grupo que viu na “Carta” não apenas os sinais

evidentes de um amadurecimento institucional e político do PT como também o anúncio da

reversão gradual do projeto neoliberal. Mercadante Oliva tem sido um de seus principais

defensores:

a “Carta ao Povo Brasileiro”, concebida em um momento em que a economia

brasileira sofria forte ataque especulativo, representou um compromisso de

responsabilidade política com uma transição gradual dos programas neoliberais

fracassados para as novas diretrizes políticas que estavam assinaladas no documento

“Um Outro Brasil é Possível”. Tal compromisso tinha um caráter fundamentalmente

tático. Tratava-se de preservar a estabilidade monetária, seriamente ameaçada pela

fragilidade estrutural de nossa economia na época, agravada por uma conjuntura

política de transição que gerava incertezas e desconfianças (Oliva, 2010, p.18)457.

Cumpridos os dois mandatos de Lula, podemos constatar pertinência na totalidade da

primeira e parcialmente na segunda458

. A tese da “cooptação ideológica” que transforma o PT

num “partido da ordem” encontra ressonância em muitas das medidas que o governo Lula

tomou e se prosseguem no governo Dilma, o que em nossos argumentos sobre o

desenvolvimento capitalista nesta nova fase se evidencia, entendendo-se, bem claro, que tal

adesão a ordem não é orgânica, muito menos ontogenética, o que faz deste processo um

456

IASI, Mauro Luis. As metamorfoses da consciência de classe. O PT entre a negação e o

consentimento. São Paulo: Expressão Popular, 2006. 457

MERCADANTE, Aloísio. As bases do “novo desenvolvimentismo” Análise do governo Lula. Tese de

Doutorado. Departamento de Economia UNICAMP. Campinas, 2010. 458

O debate, embora polarizado da forma que mostramos, contou ainda com outras vertentes, como por

exemplo, correntes críticas dentro do próprio PT que denunciaram o neoconservadorismo do discurso e

das práticas que se seguiram.

Page 266: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

266

processo particular no contexto interno das próprias instituições partidárias burguesas. Sendo

assim, o segundo grupo também tem certa pertinência quando se refere a relativo

amadurecimento do partido, desde que este amadurecimento seja entendido como uma maior

capacidade de apreender as dinâmicas contemporâneas do capitalismo financeirizado e assim

adaptá-las a uma programática que inova na concertação entre capital-trabalho, ainda que com

cariz conservador. De fato, se trata de uma dinâmica distinta daquela que seria praticada pelo

binômio politico partidário PSDB-DEM459

.

O fato é que as inflexões políticas, institucionais, partidárias, ideológicas, culturais e

econômicas ocorridas no governo Lula, ao manter o essencial — e por isso mesmo, estruturante

e estrutural — do neoliberalismo acaba por transformar qualquer mudança que queira em

acessório institucional e político. Sem mexer no núcleo, as mudanças na membrana tendem a

reforçar este núcleo ainda que possa rearranjar o lugar e o espaço de algumas células em seu

interior. E, isto no Brasil tem sido feito de um modo engenhosamente peculiar.

Em outros termos, por mais que os momentos de síntese histórica do

desenvolvimentismo brasileiro possam distinguir-se entre si por particularidades conjunturais ou

mesmo por medidas sui generis que possa torná-los único no trajeto histórico a estrutura

essencial das medidas permanecem, e, assim, favorecem a perenização da lógica do

desenvolvimento capitalista e do conceito conservador de desenvolvimentismo460

.

Do ponto de vista da (ir)racionalidade dos primados deste desenvolvimento

permanecem inalteradas as regras da lei geral da acumulação que assentada sob a exploração da

força de trabalho e da geração da mais-valia aumenta a riqueza da classe proprietária ao mesmo

passo em que diversifica de modo crescente o pauperismo da classe trabalhadora461

.

Sincronizado a isto, o conceito de desenvolvimento encontra na crítica marxista o seu

desvelamento quando desmascara o mito que circunscreve o desenvolvimento ao fenômeno

econômico do crescimento das taxas produtivas de um país associada a dinâmica progressiva

dos fatores de produção e, de modo marginal, a distribuição da renda. Todavia, diferente de um

conceito que sustenta o desenvolvimento em instâncias associadas a economia, este se encontra

cristalizado na história do pensamento econômico, de modo a influenciar nas análises com

fulcro marxista, levando-as a utilizar-se destes itens como a melhor proxy para mensurar a

evolução socioeconômica dos países mesmo os de tipo não capitalista462

.

459

Nos programas de governo da coligação liderada por estes dois partidos são frágeis ou inexistentes

menções a direitos, políticas trabalhistas e sociais ou mesmo a “participação popular”. Não se observa

uma tendência deste grupo a promover esta concertação (ainda que como base do transformismo) entre

capital e trabalho como tem sido feita no grupo liderado pelo PT. 460

Não se rompe com o capital financeiro, não se realizam as reformas de base estrutural. Ver ARCARY,

Valério. Um Reformismo Quase Sem Reformas: uma crítica marxista do governo Lula em defesa da

revolução brasileira. São Paulo: Editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2011. 461

Cf. O Capital, de Karl Marx, Capítulo XXIII – A Lei geral da acumulação. 462

Uma clara aproximação dos neoschumpterianos ao marxismo.

Page 267: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

267

Essa arriscada referenciação na economia só pode manter-se no campo da ortodoxia

marxista463

se levar em conta tanto os conflitos e relações que ocorrem entre as classes

fundamentais, quanto seus similares, internamente, entre as frações de classe. Ademais, ao

primar-se pela totalidade, as implicações políticas, ideológicas, culturais, dentre outras não

podem ser tratadas como apêndice, mas como partícipes do conjunto de determinações que

formam e conformam a realidade social. Assim, e somente assim, é possível considerar que o

conceito de desenvolvimentismo para análises de base marxiana e marxista pode sem equívocos

envolver como fatores decorrentes e determinantes a industrialização, o intervencionismo estatal

e o nacionalismo emoldurados pela história e pela dinâmica de diferentes atores e fatores, pois

afetos estão a evolução das forcas produtivas e das relações de produção e reprodução social no

contexto mesmo da luta de classes.

Por isso, uma análise do governo Lula com foco naquilo que diz respeito aos modos

como empreendeu políticas e medidas alcunhadas de desenvolvimentistas nos levam a seguinte

elaboração: permaneceu (e permanecem) em curso a lei geral da acumulação capitalista

enfeixada em novas determinações conjunturais, contudo, desta vez não se fizeram acompanhar

do tradicional corolário desenvolvimentista. Como temos dito, se trata de um neoliberalismo à

brasileira, pois além dos determinantes empíricos que utilizaremos – apoiados em Gonçalves

(2011), Filgueiras & Oliveira (2012) e de certo modo em Lazzarini (2011) – demonstrarem a

permanência dos postulados neoliberais e a ausência do trinômio clássico industrialização,

intervencionismo e nacionalismo, mostram também que o que foi feito aqui, só foi possível pela

liderança singular do presidente Lula, isto é, sem comparações possíveis em vários aspectos

com seus companheiros latino-americanos de Cristina Kirchner ou Fernando Lugo a Hugo

Chávez a Evo Morales ou mesmo de um Barack Obama, Nicolau Sarkozy ou Angela Merkel e

que apenas a nossa formação social vista pela constituição de nossas classes e do sistema

político nacional podem lhe conferir lógica-gnosiológica464

.

É deste modo, que a industrialização brasileira esteve sempre vinculada, como no

mundo todo, mas com diferenciações substantivas no momento atual, a generalização do

trabalho assalariado e ao aumento exponencial da fragmentação e divisão do trabalho, ao

aumento do consumo, a concentração da riqueza que se financeiriza, a urbanização, ao

crescimento de atividades satélites como os serviços e comércio locais, ao aumento da

produtividade tanto industrial quanto agrícola, particularizados numa formação social cuja força

de trabalho se forma a partir da exploração escravocrata de índios e negros num primeiro

463

Fidelidade ao método cf. LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe estudos sobre a

dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003 (p. 63-64). 464

A particularidade e a singularidade da formação social brasileira contribuem para particularizar e

singularizar os fenômenos que nela ocorrem. Deste modo, o “lulismo” embora possa ter características

comuns com outros “governos” que articulam “populismo” e “austeridade” seus traços singulares e

particulares lhe permitem compor o todo de modo único. O que faz do “lulismo” um fenômeno brasileiro,

cf. Singer 2010.

Page 268: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

268

momento, depois incorporando a exploração pela discriminação territorial (Norte e Nordeste

alimentando com trabalho o Sul e o Sudeste) possibilitada por fluxos migratórios (Pochmann,

2010, p.33-40)465

, e por fim, generalizando-se nas classes subalternas sem abandonar as

características fundantes elencadas, irá evidenciar que a luta de classes intrínseca a todo esse

processo é submersa na “revolução passiva”. Isto explica em parte, porque é tão fácil confundir

os postulados neoliberais de novo tipo – desta nova fase – com os caracteres do

desenvolvimentismo tradicional, “clássico”466

.

O fato é que a industrialização, ao se tornar a locomotiva do desenvolvimento

capitalista desde que foi base de “Revoluções” nos modos de produção e consequentemente em

toda organização societal desde meados do século XVIII467

carrega consigo a propriedade

ambígua de transformar as forças produtivas no leit motiv daquilo que há de civilizatório neste

processo ao mesmo tempo em que cria e aprofunda a chamada “questão social”. Sendo deste

modo base fulcral do desenvolvimento capitalista de padrões monopolistas.

A indústria pesada ou de transformação como é conhecida a fração do setor industrial

que tradicionalmente alavanca os projetos desenvolvimentistas468

tem, deste modo, os

indicadores do seu desenvolvimento utilizados quase sempre como indicadores essenciais para

informar os graus de desenvolvimento da sociedade como um todo. Recorre-se tradicionalmente

a participação deste tipo de indústria na formação do Produto Interno Bruto (PIB) e da

participação do nível de emprego que abarca.

465

POCHMANN, Marcio. Desenvolvimento e Perspectivas Novas para o Brasil. São Paulo: Cortez,

2010. 466

Em outros termos, o que estamos insinuando é que a incorporação das classes e/ou de frações da classe

subalterna, no projeto “desenvolvimentista” em curso faz sucumbir, do modo ideológico e político, as

características mais fundamentais da formação com expropriação desta classe e suas frações, ao mesmo

passo em que subtrai de seu escopo esta mesma expropriação nos seus modos contemporâneos de

acontecer, tanto pela internalização coletiva das promessas socializadoras míticas do desenvolvimento

quanto pelos ganhos – ainda que marginais – que esta classe e suas frações obtém com o novo modelo.

Esta argumentação está no cerne das análises de Armando Boito Junior em O governo Lula e a reforma

do neoliberalismo. In Revista ADUSP, maio de 2005. 467

O fenômeno da industrialização, muito maior do que simplesmente criação ou ampliação de

“fábricas”, passou a ser o epicentro motivador do desenvolvimento capitalista por apresentar novas

possibilidades de acumulação desde que importantes transformações técnicas e tecnológicas alteraram as

bases do processo produtivo com o surgimento, por exemplo, da máquina a vapor, configurando a

chamada Revolução Industrial iniciada na Inglaterra de século XVIII e se alastrando rapidamente para

outros países. Do mesmo modo, a utilização do petróleo como fonte de energia acarretou novas e

significativas transformações na indústria, sobretudo, a química, a elétrica e a siderúrgica, de modo

modesto em meados do século XIX e de forma mais contundente no século XX, caracterizando a

chamada Segunda Revolução Industrial. Na contemporaneidade ainda estamos sob o impacto de

mudanças iniciadas por volta dos anos 1980 do século XX marcadas por uma reestruturação produtiva

sustentada pelo incrível desenvolvimento das tecnologias microeletrônicas, pela robótica, pela telemática,

etc. Esta terceira Revolução Industrial é chamada por alguns de Revolução Digital e por outros de

Revolução Informacional ou Informática. O fato é que todas essas mudanças, mudanças nas relações de

produção implicaram e implicam necessariamente inflexões nos padrões de reprodução social, afinal

produção e reprodução social são duas faces de uma mesma moeda, como demonstrara Marx, o que atesta

a centralidade do momento de síntese que ocorre sob o signo da industrialização para a sociedade humana

nos desígnios capitalistas. 468

No Brasil tradicionalmente os ramos metalúrgico e petroquímico tem se destacado.

Page 269: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

269

Segundo o levantamento realizado por Arend (2009)469

(...) em 1955 a participação da indústria de transformação no PIB brasileiro era de

21% e, ao final do Plano de Metas, em 1961, acercava-se de 28%. Ao final do período

do milagre, em 1973, era de 33% e, após a concretude do II PND, atingiu seu pico,

próximo dos 36% do PIB em 1985. Ao longo desse período, a indústria de

transformação aumentou sua participação relativa em 71% no PIB.

Essa evolução crescente identificada nos momentos de síntese desenvolvimentista pode

ser facilmente associada a estratégia de substituição de importação presente em todos estes

momentos por suas implicações na demanda por produtos manufaturados e o crescimento

tímido do setor de serviços, contudo, é importante que duas observações se apresentem: 1) esse

processo apresenta uma tendência a inverter-se na medida em que a elasticidade renda da

demanda de serviços tende a crescer com o desenvolvimento econômico, tornando-se maior que

a elasticidade renda da demanda por manufaturados (OREIRO & FEIJÓ, 2010), e, 2) a dinâmica

da economia internacional associada as “políticas” que lhe dão sustentação converteu-se a partir

da mundialização da economia capitalista em um modo peculiar das “vantagens comparativas”

de Ricardo levando a uma “difusa polarização” entre os países especializados na produção dos

manufaturados, como por exemplo, a China e Alemanha e países especializados na produção de

serviços, como os Estados Unidos e o Reino Unido, afetando o grau de integração comercial e

produtiva em todo o mundo (idem)470

.

Este novo contexto coincide com o momento da reversão neoliberal que levara às

políticas de ajuste e de contrarreforma. Portanto, a reversão da industrialização além de ser um

fenômeno já previsto na dinâmica de desenvolvimento capitalista tem suas bases estruturais

aceleradas a partir dos anos 1990 “banindo” da história do pensamento econômico o pilar

industrializante dos projetos desenvolvimentistas.

469

AREND, Marcelo. 50 anos de industrialização do Brasil (1955-2005) uma análise evolucionária.

Tese de doutorado em Economia defendida no Programa de Pós-Graduação em Economia, Faculdade de

Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2009. 470

Os autores ainda lembram que “alguns países podem se especializar na produção de manufaturados

intensivos em trabalho qualificado, ao passo que outros podem se especializar na produção de

manufaturados intensivos em trabalho não qualificado. Esse padrão de desenvolvimento gera uma

redução do emprego industrial (em termos relativos) no primeiro grupo e um aumento industrial no

segundo grupo”. O caso da China é exemplar. OREIRO & FEIJÓ, José Luis & Carmem A.

Desindustrialização: conceituação, causas, efeitos e o caso brasileiro. In Revista de Economia Política,

volume 30, nº 2 (118), pp. 219-232, abril-junho/2010.

Page 270: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

270

[No Brasil, a participação da indústria de transformação no PIB], em 1990 era de

26,5% registrando um decréscimo de praticamente dez pontos percentuais em apenas

cinco anos. Em 1998, a participação da indústria de transformação atingiu o valor de

15,7% do PIB, encontrando-se um pouco acima desse patamar nos dias atuais. Assim,

nas duas últimas décadas, a indústria de transformação perdeu mais de 50% de

participação relativa no PIB. Em 1955, mesmo antes do Plano de Metas, ela detinha

uma participação relativa 25% superior a do ano 2000! (Arend, 2009, p. 204-205)471.

Portanto, a “desindustrialização” se afigura como uma tendência semi-estrutural do

novo ciclo de acumulação capitalista, de modo mais agudo em economias como a brasileira. A

queda que o peso da indústria tem tido no desenvolvimento econômico desde o último período

mais significativo de desenvolvimentismo nivelou “por baixo” sua importância como proxy e

seus patamares de crescimento:

No entanto, nos últimos 27 anos, a indústria de transformação perdeu 19,5% na sua

participação relativa na ocupação total (de 17,4% em 1980 para 14% em 2007). Sua

participação no PIB foi reduzida a menos da metade entre 1985 e 2007: de 35,9% para

17,6% do valor adicionado. O resultado só não foi pior porque, desde a última

mudança importante do regime cambial, em 1999, a indústria de transformação

recuperou 13% de sua participação relativa no valor agregado nacional. E o emprego

da mão-de-obra na indústria de transformação também aumentou em 20,6% a sua

participação relativa no total da ocupação do Brasil (POCHMANN, 2008)472.

Na comparação com outras economias, o autor argumenta que embora a renda per

capita das economias desenvolvidas seja sete vezes superior à brasileira nossos percentuais se

aproximam delas, portanto “essa seria uma forte evidência de que a estrutura industrial

brasileira possa estar em desacordo com o seu estágio de desenvolvimento econômico. Ou seja,

o movimento em direção a desindustrialização foi mais agudo do que o apresentado até mesmo

pelas economias avançadas” (idem).

471

AREND, Marcelo. 50 anos de industrialização do Brasil (1955-2005) uma análise evolucionária.

Tese de doutorado em Economia defendida no Programa de Pós-Graduação em Economia, Faculdade de

Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2009. 472

POCHMANN & WOHLERS, Marcio & Marcio. Principais características da inovação na indústria

de transformação no Brasil. IPEA, Comunicado da Presidência nº 5. Brasília, 29 de maio de 2008.

Page 271: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

271

Gráfico 16

Participação da Indústria de Transformação no PIB, Brasil, Economias Desenvolvidas e

Economias em Desenvolvimento no ano 2000 (%).

Fonte: Elaborado por Arend (2009) com base em Feijó & Carvalho (2008) e Carneiro (2008)473

A elevação recente para 1,9% do primeiro trimestre de 2012 em comparação aos 1,5%

do trimestre anterior, segundo o IBGE, nos atesta a irrisoridade dos percentuais de crescimento

deste setor da indústria e o modo como os padrões de desenvolvimento industrial passam a ser

“nivelados por baixo” (Gráfico 17)474

.

473

AREND, Marcelo. 50 anos de industrialização do Brasil (1955-2005) uma análise evolucionária.

Tese de doutorado em Economia defendida no Programa de Pós-Graduação em Economia, Faculdade de

Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2009. FEIJÓ, C. A.;

CARVALHO, P.G.M. A evolução da estrutura industrial. São Paulo: IEDI, set. 2008. 27p. Disponível

em http://www.iedi.org.br/admin_ori/pdf/20060804_ide.pdf. Acesso em 15 nov. 2008. CARNEIRO, R.

Impasses do desenvolvimento brasileiro: a questão produtiva. Campinas: IE/UNICAMP, 2008. 56p.

(Texto para discussão, nº 153). 474

Filgueiras & Oliveira (2013) afirmam: “Apesar da melhora em todos os indicadores conjunturais no

governo Lula, não se identifica uma mudança estrutural pró-indústria de maior valor agregado, nem uma

inserção externa mais sólida com superávits provenientes de manufaturas de alta tecnologia. Pelo

contrário, o BNDES está atuando a favor da produção de produtos primários e da indústria intensiva em

recursos naturais e em energia. Seu programa de estímulo à internacionalização das “campeãs brasileiras”

não faz parte de um planejamento estatal de desenvolvimento econômico, mas, sim, atende à demanda da

burguesia interna por financiamentos para sua expansão devido às oportunidades de lucros surgidas no

exterior. O que se percebe é um processo de desindustrialização que no médio ou longo prazo possa se

tornar extremamente complexo e custoso de se reverter”

Page 272: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

272

Gráfico 17

PIB e subsetores (com ajuste sazonal) Taxa (%) do primeiro trimestre de 2012 em relação ao

trimestre imediatamente anterior.

Fonte: Comentário IBGE: A Economia Brasileira no Primeiro Trimestre de 2012 Visão Geral (www.ibge.gov.br)

Mas, é importante ressaltar que o conceito de “desindustrialização” não se restringe a

retração das atividades industriais medida pelo seu peso no PIB, embora esta seja uma proxy

relevante. Podemos perceber o fenômeno ainda pela redução da participação do emprego

industrial no emprego total do país (Tabela 5)475

e pelo

processo secular de terceirização das economias ao longo do processo de

desenvolvimento decorrente dos diferenciais de elasticidade renda da demanda. Isto é,

há tendência de redução das participações dos setores primário e secundário no PIB e

a elevação da participação do setor terciário no longo prazo. A discussão sobre

mudanças na estrutura produtiva deve levar em conta esta tendência secular. Ademais,

desenvolvimento econômico implica upgrade da estrutura produtiva via aumento da

produção de serviços com alto valor agregado (GONÇALVES, 2001)476.

475

O que demonstra que as economias centrais sofrem esse processo já a partir da década de 1970, ao

passo que a América Latina apenas tardiamente nos anos 1990 em sincronismo as políticas liberalizantes

do ajuste neoliberal, do consenso de Washington. OREIRO & FEIJÓ, José Luis & Carmem A.

Desindustrialização: conceituação, causas, efeitos e o caso brasileiro. In Revista de Economia Política,

volume 30, nº 2 (118), pp. 219-232, abril-junho/2010. 476

GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o nacional-desenvolvimentismo às avessas. Rio de

Janeiro: UFRJ, 2011.

Page 273: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

273

Tabela 5

Participação da Indústria no Emprego (% do total)477

Região 1960 1970 1980 1990 1998

África Subsaariana 4,4 4,8 6,2 5,5 5,5

América Latina e Caribe 15,4 16,3 16,5 16,8 14,2

Cone Sul e Brasil 17,4 17,2 16,2 16,6 11,8

Ásia Ocidental e Norte da

África

7,9 10,7 12,9 15,1 15,3

Sul da Ásia 8,7 9,2 10,7 13,0 13,9

Leste da Ásia (exceto China

e Japão)

10,0 10,4 15,8 16,6 14,9

NIEs 10,5 12,0 8,5 21,0 16,1

China 10,9 11,5 10,3 13,5 12,3

Terceiro Mundo 10,2 10,8 11,5 13,6 12,5

Primeiro Mundo 26,5 26,8 24,1 20,1 17,3

Fonte: Elaboração própria com dados de 1. Palma (2005, p.5) apud OREIRO & FEIJÓ (2010); 2. IBGE, anuário estatístico; 3.

IPEA, ipeadata e 4. Fonte: Banco Mundial – Última atualização em 31 de outubro de 2012.

477

Economias incluídas sob o título “Terceiro Mundo”: África Subsaariana: Benin, Botsuana, Burkina

Faso, Camarões, República Central Africana, Chade, República Democrática do Congo, Costa do

Marfim, Gabão, Gana, Quênia, Lesotho, Malawi, Mali, Mauritânia, Maurício, Nigéria, República do

Congo, Ruanda, Senegal, África do Sul, Togo, Zâmbia e Zimbábue.

América Latina e Caribe: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana,

Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru e

Uruguai (dentro dessa categoria, a subcategoria “Cone Sul” inclui Argentina, Chile e Uruguai).

Ásia Ocidental e Norte da África: Argélia, Egito, Marrocos, Oman, Arábia Saudita, Tunísia e Turquia.

Sul da Ásia: Bangladesh, Índia, Paquistão e Sri Lanka.

Leste Asiático: Hong Kong SAR, Indonésia, Malásia, Filipinas, República da Coreia, Cingapura,

Tailândia e Taiwan Província da China (dentro dessa categoria, a subcategoria NIEs 1 inclui: Hong Kong

SAR, República da Coreia, Cingapura e Taiwan (Província da China).

Economias incluídas sob o título “Primeiro Mundo”: Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Dinamarca,

Finlândia, França, Grécia, Itália, Japão, Luxemburgo, Holanda, Nova Zelândia, Noruega, Portugal,

Espanha, Suécia, Reino Unido e Estados Unidos.

Page 274: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

274

Gráfico 18

Brasil

Fonte: GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o nacional-desenvolvimentismo às avessas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011.

(elaboração do autor com dados do IBGE).

Ademais, Gonçalves afirma que no governo Lula o processo de desindustrialização “é

acompanhado pela dessubstituição de importações”.

Gráfico 19

Brasil

Fonte: GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o nacional-desenvolvimentismo às avessas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011.

(elaboração do autor com dados do IPeadata).

A tarifa média aplicada cai de 10,9% em 2002 para 9,2 em 2010. E, há tendência de

contribuição cada vez mais negativa das importações (vazamento de renda) para o

crescimento do PIB (idem).

Page 275: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

275

A instigante tese de um “nacional-desenvolvimentismo” às avessas de Gonçalves

também aponta para uma reversão da tendência de desenvolvimento tradicional baseada na

ascendência de exportação de produtos manufaturados. A exportação de commodities parece

alavancar o tipo de desenvolvimento que se deseja, em que pese toda a fragilidade que as

relações de comércio nela sustentadas possa apresentar ou mesmo a sua predominância nas

estratégias de substituição de importações. Neste caso, se verifica uma “reprimarização” da

economia brasileira.

A participação dos produtos manufaturados no valor das exportações (média móvel 4

anos) mostra clara e forte tendência de queda (56,8% em 2002 para 45,6% em 2010).

Por outro lado, há tendência igualmente clara e forte de aumento da participação dos

produtos básicos (25,5% em 2002 para 38,5% em 2010) (ibidem).

Gráfico 20

Brasil

Fonte: GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o nacional-desenvolvimentismo às avessas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011.

(elaboração do autor com dados do MDIC).

Além disto, verifica-se um déficit tecnológico478

caracterizado pelo alto volume de bens

e serviços intensivos em tecnologia importados em detrimento dos gastos com ciência e

tecnologia no país.

478

Déficit Tecnológico é a diferença entre o valor das importações de bens altamente intensivos em

tecnologia e maior valor agregado e dos serviços tecnológicos (computação, royalties e aluguel de

equipamentos) e o valor das exportações destes bens e serviços. GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o

nacional-desenvolvimentismo às avessas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011.

Page 276: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

276

Gráfico 21

Brasil

Fonte: GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o nacional-desenvolvimentismo às avessas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011.

(elaboração do autor com dados do PROTEC).

Do ponto de vista de uma macro-estrutura econômica a “desindustrialização”, a

“dessubstituição de importações”, a “reprimarização” da economia e a “dependência

tecnológica” foram implantadas no Brasil na direção de um padrão de desenvolvimento sui

generis que combinou tais medidas com outras do tipo: o “acúmulo recorde de reservas

internacionais, o aumento de investimentos públicos, a drástica expansão do mercado de crédito,

o aumento real do salário mínimo” (Filgueiras & Oliveira, 2012)479

e a massificação de políticas

de transferência monetária, o que redundou num desempenho econômico positivo a curto prazo,

ainda que tais medidas de primeira ordem antagonizem com as medidas típicas do nacional-

desenvolvimentismo480

.

479

FILGUEIRAS & OLIVEIRA, Luiz & Elizabeth. A natureza do atual padrão de desenvolvimento

brasileiro. Artigo submetido ao XVIII Encontro Nacional de Economia Política (Belo Horizonte, 28 a 31

de maio de 2013) – Sessões Ordinárias – Área 2 – História Econômica e Economia Brasileira – Economia

Brasileira Contemporânea. 480

Ao final de seu ensaio Gonçalves apresenta um quadro comparativo entre as características

determinantes do nacional-desenvolvimentismo e as características apresentadas no governo Lula sendo

que no primeiro há industrialização, no segundo desindustrialização; no primeiro substituição de

importações no segundo dessubstituição de importações; no primeiro melhora do padrão de comércio, no

segundo uma reprimarização da economia; no primeiro um avanço do sistema nacional de inovações e no

segundo maior dependência tecnológica, etc. O que Gonçalves não investiga é o processo interno de

“acumulação” que tem nas estratégias de “concentração” sua maior expressão. Neste sentido, seus

argumentos relativos a “desnacionalização” carecem da incorporação dos condicionantes internos para

que se alcance a complexidade do fenômeno. GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o nacional-

desenvolvimentismo às avessas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011.

Page 277: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

277

Na vertente política deste processo, o nacionalismo se coloca tanto como medida

econômica quando se traduz em “redução da vulnerabilidade externa estrutural do país na esfera

produtivo real” (GONÇALVES, 2011)481

quanto quando se reveste em amalgama ideológica

quando a preferência pelo capital nacional se emoldura em tons ufanistas ou xenofóbicos de

várias proporções482

, sendo assim um elemento fundamental do nacional-desenvolvimentismo.

No Brasil de nossos dias, o que assistimos é uma complexa mistura entre o que Gonçalves

(2011) 483

denomina de “desnacionalização”, isto é, uma “tendência da elevação da relação entre

as remessas de juros, lucros e dividendos ao exterior e o PIB” com uma engenhosa reforma no

mercado corporativo nacional (LAZZARINI, 2011) 484

com fulcro na revitalização de empresas

brasileiras, sem, contudo, reverter a situação de capitalismo dependente, e o reposicionamento

dos fundos de pensão como agentes econômicos centrais (OLIVEIRA, 2009)485

, o que nos

demonstra um tipo peculiar de nacionalismo econômico. Um nacionalismo, que como veremos

não se advoga propulsor de uma comunidade nacional na prática, embora mantenha no discurso

oficial, mas sim de uma requalificação do capital nacional posto em condições de

imbricamento interdependente com a comunidade global do grande capital. Ou como afirmou

Nogueira:

O “capitalismo dependente” de que se falava na década de 1960 parece

ressurgir, com o crescimento econômico se apoiando sempre mais em uma

articulação do Estado com grandes empresas multinacionais e algumas

poderosas empresas nacionais. Respirando ares globalizados, nossa soberania

estatal se afirma de modo compartilhado. A dependência virou

interdependência estrutural (NOGUEIRA, 2012)486.

481

GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o nacional-desenvolvimentismo às avessas. Rio de Janeiro:

UFRJ, 2011. 482

Utilizamos a definição de nacionalismo apresentada por Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida que

enfatiza a necessidade de se distinguir ideologia nacional de nacionalismo. Segundo o autor: “a primeira

(ideologia nacional) é uma dimensão estrutural do capitalismo; a segunda expressa uma crise da própria

ideologia nacional, por meio do clamor pela constituição de uma comunidade nacional ou pela sua

revitalização, quando esta comunidade é percebida como ameaça interna e/ou externamente. Em ambos

os casos – pré-nação ou nação existente, mas considerada em crise – se produzem nacionalismos. A

ideologia nacional e o nacionalismo, na medida em que centram o foco na constituição/reprodução da

dimensão comunitária e soberana de uma sociedade de classes claramente territorializada, se volta para a

celebração do Estado, visto justamente como a expressão desta soberania” ALMEIDA, Lúcio Flávio

Rodrigues de. Não comprar gato por lebre – por um reexame da relação entre nacionalismo e

antiimperialismo nos anos JK e Uma ilusão de desenvolvimento: nacionalismo e dominação

burguesa nos anos JK. Florianópolis: Editora da UFSC, 2006. 483

GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o nacional-desenvolvimentismo às avessas. Rio de

Janeiro: UFRJ, 2011 484

LAZZARINI, Sérgio Giovanetti. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. Rio de

Janeiro: Elsevier, 2011. 485

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica da razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial,

2009. 486

NOGUEIRA, Marco Aurélio. Desenvolvimento e Democracia. Jornal Folha de S. Paulo, 28 de abril

de 2012.

Page 278: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

278

É importante notar que a interdependência referida por Nogueira está muito mais

vinculada ao sistema de relações recíprocas entre o Estado e as empresas capitalistas — que

assumem uma forma híbrida de composição local / global — do que uma alteração estrutural na

relação/dominação centro-periferia. E, se é assim, nos cabe asseverar que tal relação não é nova

no contexto da dinâmica expansiva do capital. O que há de contemporâneo nesta relação é que

ela sofre um movimento ascendente ininterrupto de desterritorialização legitimando cada vez

mais a mundialização do capital. Mandel havia analisado este movimento desde os anos 1970 e

de lá para cá agudizaram-se as prescrições de sua análise

Não é de surpreender, portanto, que as sociedades anônimas multinacionais

precisassem formar com urgência um mercado monetário organizado a nível

internacional. E também não é de admirar que procurem proteger-se contra perdas

repentinas no câmbio, contra ameaças de reintrodução de controles de moeda ou de

capital ou contra aumentos dos impostos aduaneiros. Sua conduta corresponde

simplesmente à lógica de um modo de produção baseado na propriedade privada e na

concorrência, e não numa ‘soberania nacional’ que em última instância deve

subordinar-se aos interesses globais do capital. Essa mesma lógica não leva apenas a

evitar perdas, mas também a maximizar os lucros – em outras palavras, leva à

especulação monetária que tem por finalidade conseguir ganhos financeiros rápidos e,

consequentemente, a constantes transferências internacionais de somas enormes de

capital-dinheiro (MANDEL, 1982, p. 330-331)487.

Neste Sistema de Reciprocidades, cuja finalidade é financeirizar (por meio da

especulação) para acumular, o Estado assume um papel fundamental ao tomar como “seus” os

interesses dos capitalistas e do mercado488

. Por isso que as contrarreformas mantém o núcleo

duro do “liberalismo” sob o disfarce das inovações conjunturais e com forte apoio legal,

tecnológico e midiático489

. Deste modo, o neoliberalismo à brasileira arremata o seu

desenvolvimento com a aplicação de um processo pouco estudado pelos analistas críticos de sua

gênese e evolução: os arranjos internos promovidos por empresas capitalistas de base

487

MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982. 488

O que é da própria natureza do Estado burguês. Neste sentido, Mandel também alertava: “O que é

válido em relação às tentativas privadas dos monopólios de regular a economia aplica-se igualmente à

regulamentação do Estado. (...) Já tentamos mostrar, no capítulo 15, que o Estado no capitalismo tardio

continua sendo o que era no século XIX – um Estado burguês que em última instância só pode representar

os interesses da classe burguesa (o capital como um todo), sobretudo de seu estrato socioeconômico

dominante”. Mandel, op. cit., p. 385. 489

A essência do liberalismo mantida no neoliberalismo reside no fato de que a economia tenta manter-se

autônoma a qualquer “dogma” externo a ela mesma, segundo a tradição inaugurada por Adam Smith: os

agentes econômicos são movidos por impulsos naturais de crescimento e desenvolvimento, e, ao busca-

los, individualmente, contribuem com o desenvolvimento de toda sociedade. Hayek atualiza muito bem

os postulados desta essência ao defender que o liberalismo econômico é a melhor forma de garantir a

coesão social, no que é “desmascarado” por Mészáros quando o autor de Para além do Capital identifica a

irracionalidade da argumentação hayekiana. Neste sentido consultar o item 4 da edição brasileira de Para

além do Capital: Causalidade, Tempo e Formas de Mediação (São Paulo: Boitempo Editorial, 2002).

Page 279: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

279

acumulativa local (ou a burguesia interna conforme a categoria poulantziana) como forma de

promover sua ascensão ao mundo globalizado.

Lazzarini (2011) 490

mostra como o capitalismo brasileiro conseguiu se diferenciar do

capitalismo de países em condições socioeconômicas similares durante a aplicação do ajuste

neoliberal notadamente pela intensidade das conexões socioeconômicas e políticas entre o

Estado e o mercado, ou em seus dizeres entre “o poder público e o setor privado”

potencializando o que temos denominado de Sistema de Reciprocidades. Ou seja, o modo como

tais conexões aconteceram encontra similaridade em outros lugares do mundo, no entanto, a

intensidade e o volume das transações os superam, novamente particularizando o processo

brasileiro de acumulação em sua dimensão “concentracionista”:

O Brasil apresenta um índice de cruzamentos societários maior do que outras

economias, tanto em países desenvolvidos como em países emergentes [...]. A

aglomeração de grupos societários no Brasil – que poderíamos chamar de

“panelinhas” de proprietários –, ao final do período de reestruturação econômica da

década de 90, mostrou-se similar à do México, mas muito superior em relação a

outros países: 2,8 vezes a aglomeração na Coréia do Sul, 5,1 vezes a da Itália, 7,8

vezes a do Chile e 12,2 vezes a dos EUA (LAZZARINI, 2011)491.

Isto significa que sob a forte inspiração do que pensaram nos anos 1970 Cardoso &

Faletto492

o ajuste neoliberal no Brasil levou a cabo a recomendação dos autores de

Dependência e Desenvolvimento na América Latina que consistiu em admitir a dependência

como um processo inevitável e natural que não obsta o desenvolvimento das nações periféricas

desde que o país promova uma ideal associação entre o capital nacional, o capital internacional

e o “fundo público”493

. Neste sentido, as conexões políticas entre o “poder público” e as

empresas ativaram este Sistema que conferiu “benefícios” econômicos para as empresas e estas

por sua vez passaram a favorecer os projetos governamentais, incluindo doações de campanha:

490

LAZZARINI, Sérgio Giovanetti. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. Rio de

Janeiro: Elsevier, 2011. 491

Entrevista concedida por Sergio Lazzarini ao Portal Inpser:

(http://conhecimento.insper.edu.br/destaque/2011/01/21/leia-entrevista-com-prof-sergio-lazzarini-sobre-

seu-novo-livro-capitalismo-de-lacos/) Acesso em 22 de fevereiro de 2013 19:19h. 492

CARDOSO & FALETTO, Fernando Henrique & Enzo. Dependência e Desenvolvimento na

América Latina: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011 (10ª

edição revista). 493

Deste modo os autores afirmam a positividade da dependência: “Salientamos que a situação atual de

desenvolvimento dependente não só supera a oposição tradicional entre os termos desenvolvimento e

dependência, permitindo incrementar o desenvolvimento e manter, redefinindo-os, os laços de

dependência, como se apoia políticamente em um sistema de alianças distinto daquele que no passado

assegurava a hegemonia externa” (idem, p. 182).

Page 280: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

280

Na década de 1990, o país tornou-se mais aberto ao comércio externo e receptivo ao

capital estrangeiro. Além disso, ocorreu um imenso movimento de privatização,

associado a inúmeras reorganizações societárias nas empresas brasileiras. De 1990 a

2002, 165 empresas estatais passaram, total ou parcialmente, para o controle privado.

Especialmente a partir de 2004, surgiu uma nova onda: diversas empresas abriram

capital na bolsa, atraindo novos investidores e projetando novos empresários. De 2004

a 2009, foram lançadas na bolsa 115 empresas, movimentando cerca de 99 bilhões de

reais (LAZZARINI, 2011, p. 10)494.

Embora o autor não se detenha a tratar as variáveis deste processo como características

essenciais da implantação neoliberal, pois transita no campo da defesa desta implantação495

— o

que nos levaria a confirmar o “entreguismo” do Brasil aos interesses do grande capital

estrangeiro —, procura evidenciar, antes, as inflexões do processo de abertura aos mercados

externos na classe proprietária local e o modo como o “governo” participara ativamente de toda

dinâmica. Sob o nome de “capitalismo de laços”, o autor refere que esta particularidade

brasileira se deu pela combinação de dois aspectos:

Primeiro, as aglomerações se intensificaram bastante, com mais proprietários

participando conjuntamente do capital acionário de firmas e mais firmas atreladas a

grupos controladores comuns. Nos leilões de privatização, disputando o controle das

estatais, surgiram inúmeros consórcios mistos envolvendo investidores privados em

associação com expressivo volume de capital provido por entidades públicas [...]

Segundo, (...) emergiram atores de ligação com elevada centralidade, isto é, atuando

como ‘conectores’ de aglomerações diversas. Os proprietários que mais exibiram

papéis de conexão foram, justamente, atores ligados direta ou indiretamente ao

governo — notadamente, fundos de pensão de estatais e o BNDES [...]. No governo

Lula, esse processo se intensificou ainda mais, com papel bastante ativo do BNDES e

dos fundos de pensão como sócios de várias empresas e grupos de grande

envergadura. Assim, ao contrário do que normalmente se pensa, o governo não só

preservou como também aumentou a sua centralidade na economia (LAZZARINI,

2011, p. 10-11)496.

Para chegar a tais conclusões Lazzarini partiu da premissa de que “um contato entre

dois atores é revelado quando eles aparecem como sócios de uma mesma empresa. O objetivo é

menos discutir o quanto cada proprietário tem de cada empresa e mais desvendar as conexões

que diversos atores na economia tem entre si” (...), localizando o dono último das firmas, isto é,

o proprietário que, direta ou indiretamente, está no final da cadeia acionária levando à

participação no capital de determinada empresa” (id., p. 20-21). Neste processo, o autor

494

Ob. Cit. 495

Estas características seriam: “menos participação do governo na economia, mais capital estrangeiro,

mais empresas usando a bolsa como instrumento de capitalização” (id., p. 10). 496

Id. Ob. Cit.

Page 281: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

281

conseguiu identificar, por exemplo, o aumento da centralidade direta ou indireta de atores

ligados ao poder público:

[...] enquanto em 1996 a centralidade média dos fundos de pensão de estatais era

224% superior à média dos atores na rede, em 2009 esses donos tornaram-se quase

936% mais centrais que a média. Analisando os dados dentro do grupo497, esse efeito

é devido a três principais fundos: Previ, Petros e Funcef. As entidades

governamentais, em grande parte devido ao BNDES, também tiveram notável ganho

de centralidade: de 131%, em 1996, passaram a ser 553% mais centrais que a média

dos donos 13 anos depois. Todos os outros donos apresentam centralidade gravitando

em torno da média. Apesar de atores estrangeiros exibirem leve aumento de

conectividade, a sua posição é largamente ofuscada pela presença e trajetória dos

atores públicos (LAZZARINI, 2011, p. 28)498.

Tabela 6

Donos últimos que exibiram maiores ganhos de centralidade na reconfiguração das teias

societárias entre 1996 e 2009.

Proprietário

1 Previ (fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil)

2 União Federal (inclui BNDES)

3 Petros (fundo de pensão dos funcionários da Petrobras)

4 Funcef (fundo de pensão dos funcionários na Caixa Econômica)

5 Participações Morro Vermelho (Grupo Camargo Corrêa)

6 Banco Opportunity (banco nacional)

7 Família Moreira Sales (grupo Unibanco)

8 JP Morgan Chase (banco internacional)

9 Família Villela/Setúbal (grupo Itaú)

10 Família Ermírio de Moraes (grupo Votorantim)

Fonte: LAZZARINI, Sergio. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. São Paulo: Campus/Elsevier, 2011.

Com seu levantamento, Lazzarini evidencia uma série de fatores que chama de positivos

e negativos do “capitalismo de laços”499

, com o intuito de propalar sua continuidade, uma vez

497

O grupo a que se refere é a divisão da chamada classe de proprietários feita da seguinte forma:

entidades governamentais (incluindo o BNDES); investidores institucionais e fundos privados;

indivíduos, famílias e firmas locais; fundos de pensão de estatais e firmas e investidores estrangeiros. 498

LAZZARINI, Sergio. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. São Paulo:

Campus/Elsevier, 2011. 499

Dentre os quais se destacam: positivos — a participação ativa de “agentes e órgãos” públicos nas

transações induzem a uma maior transparência no processo expondo em escala ascendente os

proprietários privados escondidos sob as estruturas piramidais de propriedade; a presença “volumosa” dos

fundos de pensão no cenário corporativo induz a um maior isolamento político onde a determinação e o

cumprimento de metas se sobrepõe as motivações “políticas” (partidárias, inclusive) que redundaram na

indicação de membros dos conselhos administrativos de tais fundos, além disto, as doações de campanha

tornam-se mais vigiadas quanto as possibilidades de privilégios das empresas doadoras junto ao poder

público 499

; os custos das transações se reduzem na medida em que “os círculos de confiança” entre os

investidores os levam a compartilhar os custos. O autor afirma que no Brasil isto é particularmente

interessante na medida em que no Brasil se registra “escassez de crédito, custos burocráticos, incerteza de

Page 282: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

282

que assume uma postura de pseudo-neutralidade. Isto é, o autor afirma que as conexões

interdependentes que verificou em sua pesquisa nascem com o processo de reestruturação da

economia brasileira nos anos 1990 com FHC e permanecem em Lula, deste modo, não estaria

nem a favor ou contra um ou outro governo, apenas evidenciando os traços evolutivos do

capitalismo brasileiro.

Embora a análise de Lazzarini se pretenda “despolitizada”, o que realmente é, e

acrescentaríamos ainda: acrítica, ela sugere duas características importantes do ciclo de

desenvolvimento enaltecido pelo governo como novo desenvolvimentista, na contra-mão de

seus próprios argumentos: a desnacionalização e o intervencionismo estatal. Isto é, embora o

intuito arguto não assumido de sua pesquisa seja o de “desconstruir” as teses que se referem a

entrada “indiscriminada” do capital estrangeiro como capital proprietário no país a partir dos

anos 1990 e deixar evidente a tendência estrutural do Estado brasileiro em intervir/participar dos

processos econômicos mercantis e financistas, a fragilidade dos seus argumentos mostram que

seus dados podem indicar exatamente o contrário.

No caso da prevalência do capital nacional sobre o estrangeiro tanto no processo de

privatizações (FHC) quanto na aplicação de políticas de “desenvolvimento” (Lula) e no que

tange a intervenção governamental na economia o autor afirma que

No conjunto das 10 maiores [grupos econômicos do Brasil]500, encontramos apenas

uma estrangeira (Telefônica). Esse retrato, embora limitado aos maiores grupos,

reforça a nossa conclusão anterior sobre a persistente importância do governo e de

alguns grupos locais, a despeito dos eventos de abertura e privatização ocorridos na

década de 1990. Com tantos grupos estatais e domésticos de destaque, fica novamente

difícil aceitar o argumento de que a economia brasileira teria se ‘desnacionalizado’ e

que o Estado teria se enfraquecido após esses eventos de reestruturação. A marcante

presença de grupos familiares também confirma análises anteriores ressaltando a

importância de famílias locais nas redes corporativas brasileiras (LAZZARINI, 2011,

p. 62)501.

processos jurídicos, etc.”; o governo atua também como um árbitro na definição de práticas

anticompetitivas originadas no alto grau de aglomeração das empresas e seu entrelaçamento com

conselhos instituidores e gestores. Negativos — as relações de “apadrinhamento” permanecem presentes

nas transações, momento em que o autor cita este traço como componente histórico de nossa formação

social recorrendo a obra clássica de Raymundo Faoro Os Donos do Poder e também uma reposição de

relações clientelistas entre o poder público e o empresariado. 500

Grifo nosso. 501

LAZZARINI, Sergio. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. São Paulo:

Campus/Elsevier, 2011.

Page 283: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

283

Quadro 2

Os 20 maiores grupos econômicos no Brasil, em receitas totais e as áreas de atuação de suas

controladas (2009).

Grupo

Tipo R

ecei

tas

(bil

es

de R

$)

Min

éri

o,

sid

eru

rgia

, m

eta

is

Petr

óle

o, co

mb

ust

ível,

s

Qu

ímic

a,

petr

oq

uím

ica

Cim

en

to

En

erg

ia E

létr

ica

Celu

lose

e p

ap

el

Ag

roin

stri

a,a

lim

en

tos

e b

eb

ida

s

Açú

car e

álc

oo

l

Ma

teri

ais

e E

qu

ipa

men

tos

Au

tom

óv

eis

e A

uto

peça

s

Co

nst

ru

ção

Log

ísti

ca

Fin

an

cei

ro,

Seg

uro

s

Tele

fon

ia

Petrobras Estatal 248,58 ¤ ¤ x x

Bradesco Privado

amplo

98,06 ¤

Itaú Privado familiar

92,06 x x ¤

Banco do

Brasil

Estatal 82,10 ¤

Vale Privado amplo

72,77 ¤ x x

Telefônica Estrangeiro 47,23 ¤

Caixa Estatal 43,48 ¤

Gerdau Privado familiar

41,91 ¤

Odebrecht Privado

familiar

40,95 x ¤ x x ¤

Votorantim Privado familiar

40,82 ¤ ¤ x x x x

Fiat Estrangeiro 40,65 ¤

AMBEV Privado/Estra

ngeiro

39,70 ¤

Santander Estrangeiro 37,40 ¤

Bunge Estrangeiro 35,67 x ¤

Volkswagen Estrangeiro 32,46 ¤

Eletrobras Estatal 32,24 ¤

JBS-Friboi Privado

familiar

31,11 ¤

Ultra Privado

familiar

29,54 ¤ x x

Oi Privado amplo

27,20 ¤

Shel Brasil Estrangeiro 25,16 ¤ x

Fonte: LAZZARINI, Sergio. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. São Paulo: Campus/Elsevier, 2011. Dados

financeiros no Valor Grandes Grupos. Os círculos com pontas referem-se aos setores “carro-chefe” de cada grupo (isto é, os segmentos com maior participação nas receitas).

Ora, o autor que se colocou como “neutro” acaba por posicionar-se contra a maior parte

das teses que dão ênfase a liberalização econômica dos anos 1990 como fenômeno que entregou

o “patrimônio material e simbólico” brasileiro aos donos do capital estrangeiro. A virtude de seu

trabalho está em mostrar uma dinâmica marginalizada nas análises sobre o desenvolvimento

Page 284: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

284

capitalista contemporâneo que é o processo de concentração de capital intraempresas502

. Mas,

apresenta, por outro lado, limites enquanto defesa contrária a “desnacionalização”. Em

Gonçalves vimos que a desnacionalização pode ser fundamentalmente medida pela “tendência

da elevação da relação entre as remessas de juros, lucros e dividendos ao exterior e o PIB” e

Lazzarini insinua que a intensidade das recomposições acionárias com participação do governo

teria “impedido” este processo. Ora, aí se colocam duas condições que o autor ignora: 1) a

tendência crescente das empresas nacionais se transnacionalizarem (e este é o intuito da

participação do “governo”) e 2) o papel do governo como indutor do desenvolvimento (e da

acumulação) inclui sua atuação como agente financeiro “global”, operando até mesmo no

âmbito das iniciativas especulativas.

Deste modo, não estamos falando nem de um “entreguismo” unilateral como as análises

de Gonçalves podem sugerir, nem de uma “nacionalização” de fundo estatizante como nos leva

a compreender o raciocínio de Lazzarini. Estamos mesmo diante de um Sistema de

Reciprocidades “estrutural” do neoliberalismo à brasileira que articula um intenso metabolismo

entre capitais. Isto é, mantêm-se as bases de acumulação referenciadas territorialmente, mas, e,

ao mesmo tempo, “depende” da sua desterritorialização para sua reprodução.

Estas características contribuem para a definição de um momento peculiar do

desenvolvimento capitalista no Brasil que não apresenta as características essenciais do

desenvolvimentismo para ser caracterizado como neodesenvolvimentista, nem ao menos parece

romper com aquilo que há de estruturante nas diretrizes do neoliberalismo. Esta fase peculiar

conta ainda com uma “renovação” da dinâmica entre e intra-classes que, de um lado classe

promove a emergência de “estratos” da classe trabalhadora nas estruturas do poder político via

Estado, e, por suas medidas induzem a ampliação do mercado consumidor alcunhando estes

novos “consumidores” de nova classe média.

502

Uma investigação “de esquerda” e ainda mais densa que a de Lazzarini foi feita depois que havíamos

construído nossos argumentos para a tese pelo Instituto Mais Democracia que consistiu em mostrar por

meio mesmo da concentração de capital a “identidade” da classe proprietária brasileira e suas imbricações

na teia acionária de suas empresas. A pesquisa levou o nome de “Quem são os donos do Brasil” e pode

ser acessada pela página eletrônica do Instituto: www.proprietariosdobrasil.org.br

Page 285: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

285

A estrutura de classes também foi truncada ou modificada: as capas mais altas do

antigo proletariado converteram-se, em parte, no que Robert Reich chamou de

‘analistas simbólicos’: são administradores de fundos de previdência complementar,

oriundos das antigas empresas estatais, dos quais o mais poderoso é o Previ, dos

funcionários do Banco do Brasil (...); fazem parte de conselhos de administração,

como o do BNDES, a título de representantes dos trabalhadores. A última floração do

Welfare brasileiro, que se organizou basicamente nas estatais, produziu tais fundos, e

a Constituição de 1988 instituiu o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) que é o

maior financiador de capital de longo prazo no país, justamente operando no BNDES.

Tal simulacro produziu o que Robert Kurz chamou de ‘sujeitos monetários’:

trabalhadores que ascendem a essas funções estão preocupados com a rentabilidade de

tais fundos, que ao mesmo tempo financiam a reestruturação produtiva que produz

desemprego. Sindicatos de trabalhadores do setor privado também já estão

organizando seus próprios fundos de previdência complementar, na esteira daqueles

das estatais (Oliveira, 2009)503.

Este movimento se vincula diretamente a outros dois aspectos do neoliberalismo à

brasileira que merecem consideração: 1) as novas formas que o Estado e a classe dominante

encontram de se relacionar com as classes subalternas pressupõem estratégias de enfrentamento

às refrações da “questão social” diferentes daquelas praticadas na fase contrarreformista e 2) o

invólucro ideológico do processo conta com novos atores que, nas estratégias de tentar eliminar

“as contradições da base material da sociedade” garantindo legitimidade ao “governo”,

promovem uma falsa ideia de “politização” das massas quando estas passam a optar pelo

governo que é sensível as demandas das classes populares. Estas duas dimensões incidem

diretamente sobre a profissão na medida em que esta possui nas refrações da “questão social”

sua base material legitimadora.

A articulação destes aspectos implica ainda em uma nova morfologia do mundo do

trabalho e na revisão sistemática do papel das políticas sociais bem como o lugar que ocupam na

ossatura do Estado. Sobre isto passamos, então, a discorrer.

3.4. A Política Social do neoliberalismo à brasileira: fugindo às injunções lineares.

A legitimação do neoliberalismo à brasileira sob o epíteto neodesenvolvimentista tem

apresentado como uma de suas características essenciais o deslocamento das políticas sociais de

um campo acessório e complementar para um campo fundante e estrutural de seu

desenvolvimento.

A ideia de que a pobreza em especial no seu estrato “extremo” e os níveis

estratosféricos de desigualdade constituem-se em entraves ao desenvolvimento já faz parte do

503

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica da razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial,

2009.

Page 286: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

286

pensamento consolidado hegemonicamente nos organismos multilaterais — do FMI ao PNUD.

Portanto, recomendações ao enfrentamento destes dois fenômenos combinados partem destes

organismos desde que o ajuste neoliberal veio demonstrando os sinais de sua fragilidade

estrutural já na passagem do século XX para o XXI.

Esse deslocamento tem como base o reforço às estruturas econômicas que nucleiam a

política social. Sendo assim, o postulado mais caro ao liberalismo clássico: a liberdade plena do

mercado sem interferência estatal, sofre uma modernização de moldes conservadores que passa

não apenas a admitir, também do ponto de vista conceitual, a regulação estatal sobre os

mercados, como a requisitá-la como aspecto estruturante desta nova fase de acumulação.

As funções econômicas e políticas do Estado burguês se misturam desaguando na

função maior que é conferir legitimidade à sociabilidade e à ordem do capital.

Mudar para manter a ordem faz com que a manutenção dos interesses rentistas

hegemonizados no Estado admitam sua intervenção nas esferas não-rentáveis da vida social,

entendidas como parte componente e de “suporte” a instância econômica, mediadas pela política

(e também pela ideologia).

Poulantzas (2000, p. 183)504

problematizou este processo tentando responder ao

seguinte dilema: “Porque tais ou quais medidas econômicas são tomadas exatamente pelo

Estado e não diretamente pelo capital próprio?

Primeiro, o autor de O Estado, O Poder, O Socialismo argumenta que este processo e

fenômeno é um “fato histórico”. Isto é, não encontramos na história das diversas formações

sociais um momento onde as funções econômicas não foram preenchidas senão pelo Estado.

“Com exceção de funções tais como a fiscalização, por exemplo, elas foram ou são preenchidas

segundo as diversas formações sociais e segundo os diversos períodos históricos, quer pelo

Estado, quer diretamente pelo próprio capital, ou ainda pelos dois” (idem, p. 183).

O autor refuta o tratamento unilateral da história do intervencionismo estatal que o

justifica pela mão única da instância econômica e retira a natureza política e tensionada nele

contida. Deste modo, a análise de medidas que vão desde o “estabelecimento das ‘condições’

materiais gerais da produção (estradas de ferro, transportes, comunicações, etc.) à gestão

monetária, moradia, saúde, ensino, os equipamentos coletivos, a qualificação da força de

trabalho, até as modalidades concretas personificadas pela concentração-centralização do

capital” (p. 183), se são tidas como não rentáveis505

só podem ser entendidas fora do escopo

simbiótico entre funções econômicas/políticas naquelas situações históricas onde o “Estado não

criou ainda, na perspectiva de suas intervenções, as condições de rentabilidade do capital”

(ibidem, p. 184).

504

POULANTZAS, Nicos. O Estado, O Poder, O Socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000. 505

“Quando a taxa de lucro do capital investido nesses domínios é inferior ao lucro médio” (idem, p.

184).

Page 287: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

287

A história do intervencionismo estatal não é nem uma história homogênea nas

diversas formações sociais, nem uma história linear de um Estado acumulando e

adjudicando, progressivamente, tais ou quais atividades ou domínios econômicos

intrínsecos: é uma história de desenvolvimento desigual segundo as diversas

formações, com avanços e recuos. Isso não pode ser inteiramente explicável por

razões econômicas (POULANTZAS, 2000, p. 184-185)506.

Ou seja, a razão econômica, utilizada para explicar a “totalidade do intervencionismo

estatal” deve ser historicizada. O autor chama a atenção que o desenvolvimento desigual — por

ser histórico — do intervencionismo estatal, deve ser entendido no contexto da dinâmica de

acumulação capitalista, materialmente condensada no Estado a partir da luta de classes, e, que

tem na razão econômica uma base fundante, mas que não encerra em si mesma todas as

capacidades cognoscíveis deste intervencionismo507

.

Para tomar apenas o contexto da internacionalização do capital, que marca a atual fase

do imperialismo e as coordenadas de estabelecimento da taxa de lucro médio no plano

internacional (ou pelo menos no seio da zona dos países dominantes), esta razão

econômica não basta para explicar as variações consideráveis do intervencionismo de

diversos Estados capitalistas dominantes. Não se pode concluir ao mesmo tempo que

a construção de auto-estradas ou as telecomunicações sejam altamente rentáveis aí

onde está a cargo do capital privado, na Itália ou nos Estados Unidos, e não rentáveis

na França, onde ela é essencialmente, e até o momento, responsabilidade do Estado. O

Estado, aliás, está presente nos domínios eminentes rentáveis para o capital: isso vale

tanto para as nacionalizações (o Estado não nacionaliza apenas setores do capital não

rentáveis ou empresas à beira da falência) quanto para toda uma série de intervenções

do Estado (pesquisa, energia, etc.) (Id. Ob. Cit., p., 184)508.

E arremata:

Assim, mesmo quando o Estado atua em setores não rentáveis para o capital, suas

intervenções se situam sempre, e, de toda maneira, num contexto político, e, são

também aí, marcadas, em suas modalidades ou extensões, pela política do Estado

(ibid., p. 185)509.

506

POULANTZAS, Nicos. O Estado, O Poder, O Socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000. 507

O autor sempre se refere ao aspecto relacional do Estado. Deste modo, seu pensamento, nesta fase, é

carregado de dialética quando admite a movimentação dos sujeitos nas estruturas, quando não confere um

tratamento episódico à esta mesma estrutura e, quando busca não relacionar fenomenicamente estrutura e

conjuntura. 508

Id. 509

Ibid.

Page 288: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

288

Poulantzas está tomando por base referencial o capitalismo ocidental das últimas

décadas do século XX que presenciou a emergência e o início do ocaso dos Estados Sociais e a

implantação keynesiana. Contudo, seus argumentos atestam um aspecto estrutural do Estado

burguês que não se elimina nem no processo de correlação de forças e nem na sua fase

neoliberal seguinte510

: o intervencionismo estatal é sempre orientado para manter as condições

gerais da reprodução do capital, o que leva esta ação a referir-se, de um modo ou outro, a

produção e reprodução social da vida no seu todo, portanto, “o cumprimento dessas funções

pelo Estado de interesse geral para a burguesia em seu conjunto é assim uma necessidade

política” (p. 185-186).

Certamente, nesse caso, também, essas disposições são tomadas pelo Estado em

benefício predominantemente da fração hegemônica do capital, atualmente o capital

monopolista; o caráter mesmo desse capital, e sua predominância maçica na

economia, tem efeitos próprios num estatismo centrado na superacumulação

monopolista. Mas isso acontece sempre no interior da elaboração política complexa

de uma estratégia de compromisso, no seio do bloco no poder, pela perspectiva do

Estado, para não falar do fato de que o capital monopolista não é em si uma entidade

fusionada mas é atravessada por importantes contradições, o que torna necessária a

aplicação política, exatamente pelo Estado, dessas medidas com proveito

predominante do conjunto do capital monopolista511.

No Brasil, desde a redemocratização a institucionalidade conferida à política que dá

acesso ao Estado pelo governo prevê que esta instância (a do intervencionismo estatal) referida

por Poulantzas esteja prevista como um substrato essencial aos grupos sociais, que por meio de

partidos, disputam o aparelho do Estado. Ou seja, nosso processo democrático burguês — mas

também de outros países — dispõe que os grupos sociais organizados partidariamente

expressem suas aspirações e intenções quanto ao uso do aparelho do Estado em todas as suas

dimensões quando o desejam controlar. Conforme demonstramos nos itens anteriores, tanto os

planos de governo quanto os discursos de FHC, Lula e Dilma contaram com a explicitação das

diretrizes políticas gerais: da macro-economia até suas áreas funcionais componentes e

acessórias. Nem sempre as mensagens eram claras, todavia, um exame consequente destes dois

instrumentos é capaz de apontar com clareza sua macro-direção.

No caso de Lula e Dilma, os modos como se daria a concertação entre capital-trabalho

que acabam por se constituir como uma marca singular dos governos federais petistas não foram

510

O autor, em outra passagem que retomaremos no Capítulo 4, mostra que as disputas classistas na

esfera superestrutural não acontecem de modo equivalente. Ao contrário, o domínio dos “aparelhos” e

“instituições” do Estado, além de sua própria forma burguesa, impõe limites estruturais à luta da classe

trabalhadora nesta esfera. Apenas com uma reversão drástica deste “tipo” e “modelo” de Estado que se

poderia repolarizar as manifestações da luta de classes que ali acontecem. 511

POULANTZAS, Nicos. O Estado, O Poder, O Socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

Page 289: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

289

suficientemente tematizadas nos planos de governo, contudo, seu anúncio se fez presente como

marca em todos eles, criando expectativas e apreensões de todos os lados.

Como referira Oliva512

, quase toda a programática petista fora construída a partir das

experimentações reais da gestão pública, o que exigiu dos seus quadros mais proeminentes uma

imensa habilidade para realizar as costuras políticas necessárias e justificar as formas de

intervencionismo que seriam implantadas. Embora Oliva se refira ao período Lula como o

momento de reversão neoliberal pelo neodesenvolvimentismo, mesmo as diretrizes macro-

políticas apresentadas nos planos e nos discursos não foi convincente quanto a uma possível

ruptura com a função global do Estado em servir ao processo de reprodução ampliada do

capital. Ao contrário, os programas e discursos evidenciavam muito mais a habilidade do grupo

postulante ao governo e, posteriormente nele, em “harmonizar” as fissuras do bloco no poder ao

mesmo tempo em que ampliá-lo internamente (com novas frações da classe dominante) e

externamente (trazendo novos atores para se relacionar com ele, como por exemplo, os gestores

dos fundos de pensão e lideranças sindicais).

Esta direção política só encontra condições de expressar-se do modo como se manifesta

porque o processo de reestruturação do capital incide em alterações diretas na base material da

vida social: das relações de produção — do mundo do trabalho — até as esferas de reprodução

espiritual. Como extensão inevitável, metamorfoses na “questão social” acontecem fazendo

emergir novas manifestações, reiterações das refrações tradicionais e deslocamentos espaciais

de alguns de seus determinantes. Não se trata, pois de uma “nova questão social”, mas sim da

reposição contemporânea da “velha”. Assim, ela acompanha o movimento das mudanças

voltadas para a permanência do status quo societal. Deste modo, o intervencionismo estatal irá

se amparar numa revisão regressiva dos sistemas de proteção social com fulcro no deslocamento

das responsabilidades estatais para o mercado (que também opera ações não-diretamente

rentáveis), reposicionando o lugar dos fatores de produção como as famílias, as empresas, o uso

e a posse da terra, etc.

Aqui se faz necessária uma observação: a minimização do Estado, sobretudo, no que

tange a suas “responsabilidades” quanto às condições de reprodução da classe trabalhadora é

uma característica da primeira fase do neoliberalismo à brasileira. Na segunda fase, irão ser

aproveitadas as “estruturas” criadas para o tratamento mercantilizado de enfrentamento às

sequelas da “questão social” no âmbito da sociedade civil e associadas ao reordenamento das

estruturas da política social na esfera estatal. Um novo modelo de proteção social emerge com

ênfase na extensão de programas de transferência monetária e a qualificação, também extensiva,

de acesso a bens e serviços públicos (com menos intensidade) e políticas de ativação (com

512

Citado no início do terceiro capítulo desta tese a partir de um excerto retirado de OLIVA, Aloizio

Mercadante. As bases do novo desenvolvimentismo no Brasil. Análise do governo Lula (2003-2010).

Tese de doutorado apresentada ao Instituto de Economia da UNICAMP, dezembro de 2010.

Page 290: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

290

maior intensidade). Esta nova estratégia não se sustenta em uma máquina estatal “reduzida” as

funções de estado smithianas: administração geral, da segurança e da justiça; muito pelo

contrário, elas requisitam uma máquina forte que possa ampliar o seu braço regulacionista de

um lado, e, a prestação direta de serviços (e outras atividades como obras, etc.) de outro.

No plano social, a inclusão só será plenamente alcançada com a universalização e a

qualificação dos serviços essenciais. Este é um passo, decisivo e irrevogável, para

consolidar e ampliar as grandes conquistas obtidas pela nossa população (...). Outro

fator importante da qualidade da despesa é o aumento dos níveis de investimento em

relação aos gastos de custeio. O investimento público é essencial como indutor do

investimento privado e como instrumento de desenvolvimento regional (...). Vamos

estabelecer parcerias com o setor privado na área da saúde, assegurando a

reciprocidade quando da utilização dos serviços do SUS (ROUSSEFF, 2011)513.

(...) o nosso sistema de concessões vai reforçar o poder regulador do Estado para

garantir qualidade, acabar com os monopólios, e assegurar o mais baixo custo de frete

possível (id., p. 2)514.

Ou seja, continuidades e rupturas marcam a segunda fase do neoliberalismo à brasileira

também no que diz respeito à política social. Uma parcela das continuidades e outras das

rupturas estão referidas ao mesmo processo, portanto, a uma relação orgânica de atração e

repulsa: o gasto social federal aumenta (ruptura) e intensifica sua função econômica quando

funciona como vetor anticíclico (continuidade), exatamente como referiu a presidenta Dilma

Rousseff nos execertos acima.

513

Discurso proferido pela presidenta Dilma Rousseff em 01/01/2011 por ocasião de sua posse como

presidenta da República. 514

Discurso proferido pela presidenta Dilma Rousseff em 06/07/2012 por ocasião do feriado de

Independência do Brasil.

Page 291: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

291

Gráfico 22

Trajetória do Gasto Social Federal, 1995-2010515

.

Fonte: Nota Técnica. Gasto Social Federal: prioridade macroeconômica no período 1995-2010. Elaborado por DISOC/IPEA com

dados do SIAF/SIDOR, set/2012.

Um aspecto importante que tem que ser considerado quando se analisa o gasto social

público é que ele reflete as disputas pelo fundo público.

515

Os valores apresentados estão deflacionados mês a mês para R$ constantes de dezembro de 2001, pelo

IPCA, e também em percentuais do PIB, como indicador de prioridade macroeconômica aplicada ao GSF

no período. O Gráfico demonstra a elevação permanente dos GSF. Partiu de R$ 234,0 bilhões em 1995

para alcançar os R$ 638,5 bilhões em 2010. Um crescimento real de 172% em 16 anos. Essa trajetória de

crescimento, embora permanente não foi homogênea. Há momentos mais lentos — como 2002/2003 — e

outros mais velozes — como 1996/1997 e 2006/2007. É perceptível também, a partir do gráfico, que a

elevação do GSF ocorrida de 1995 a 2003 sofre uma considerável inflexão a partir de 2004, acelerando

bastante a trajetória. Na primeira metade da série (1995-2002). Na primeira metade da série o GSF cresce

1,7% do PIB e na segunda (2003-2010) 2,3%. CASTRO, Jorge Abrahão de. Nota Técnica. Gasto Social

Federal: prioridade macroeconômica no período 1995-2010. Diretor da Diretoria de Estudos e Políticas

Sociais (DISOC) do IPEA.

Page 292: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

292

O fundo público tornou-se componente estrutural e insubstituível à medida que se

tornou condição tanto para a formação da taxa de lucro, como para a reprodução da

força de trabalho mediante o aumento do gasto social das despesas públicas. Este

último implica a redução dos custos dessa reprodução para o capital, bem como

contribui para a ampliação da parcela do salário disponível ao consumo. Tal inflexão

do fundo público, durante o eclipse liberal, possibilitou a transferência do capital para

o Estado de parcela dos custos da reprodução da força de trabalho, sob pesados

déficits orçamentários e a liberação de salário direto para o consumo de massa

(TEIXEIRA, 2012, p. 184)516.

O aumento do gasto social federal é explicado e comemorado pelo governo como parte

da estratégia exitosa que conjugara “estabilidade econômica, crescimento, distribuição de renda

e inclusão social” (FAGNANI, 2011)517

.

Ao contrário de outros países, o Brasil criou, nos últimos anos, um modelo de

desenvolvimento inédito, baseado no crescimento com estabilidade, no equilíbrio

fiscal e na distribuição de renda (...). O nosso bem-sucedido modelo de

desenvolvimento tem se apoiado em três palavrinhas mágicas: estabilidade,

crescimento e inclusão. (...). Para tornar nosso modelo mais vigoroso e abrir este novo

ciclo de desenvolvimento, vamos, a partir de agora, incorporar uma nova palavra a

este tripé. A palavra é competitividade. Na verdade, é mais que uma nova palavra: é

um novo conceito, uma nova atitude. Uma forma simples de definir competitividade é

dizer que ela significa baixar custos de produção e baixar preços de produtos para

gerar emprego e gerar renda (ROUSSEFF, 2012)518.

Os resultados destas medidas, confirmadas pelo discurso da presidenta Dilma como

medidas exponenciadoras das funções econômicas e reguladoras do Estado se apoiam na

dinamização do setor produtivo e nas políticas de ativação. O caráter anticíclico do GSF

(Gráficos 22 e 23) tem chamado a atenção de todo o mundo para o que alguns mais

entusiasmados chamam de “o novo milagre brasileiro”.

516

TEIXEIRA, Sandra Oliveira. Por trás do fundo menos público, o que está em jogo é a democracia.

In SALVADOR, BEHRING, BOSCHETTI & GRANEMANN, Evilásio, Elaine, Ivanete & Sara (orgs).

Financeirização, Fundo Público e Política Social. São Paulo: Cortez, 2012. 517

FAGNANI, Eduardo. As lições do desenvolvimento social recente no Brasil. In Le Monde

Diplomatique Brasil, dezembro de 2011. 518

Discurso proferido pela presidenta Dilma Rousseff em 06/07/2012 por ocasião do feriado de

Independência do Brasil.

Page 293: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

293

Gráfico 23

Taxas de Crescimento Real do Gasto Social Federal e do PIB, 1995 a 2010.

Fonte: Nota Técnica. Gasto Social Federal: prioridade macroeconômica no período 1995-2010. Elaborado por DISOC/IPEA com

dados do SIAF/SIDOR/Ipeadata, set/2012.

Gráfico 24

Taxas de Crescimento Real do Gasto Social Federal e do PIB, 1995 a 2009.

Fonte: Nota Técnica. Gasto Social Federal: prioridade macroeconômica no período 1995-2010. Elaborado por DISOC/IPEA com

dados do SIAF/SIDOR/Ipeadata, set/2012.

Page 294: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

294

Observa-se que em toda a série (Gráfico 23) o movimento do GSF é pró-cíclico, isto é,

acelera ou desacelera junto ao crescimento do PIB. Na crise de 1998/1999, o GSF desacelera

junto com o PIB, o mesmo ocorre na crise 2002/2003. Já na crise 2008/2009 o GSF acelera

quando o PIB freia, isto é, verifica-se um comportamento anticíclico (Gráfico 24).

É importante ressaltar que a estabilidade do GSF em termos do PIB vinha ocorrendo

apesar de um ritmo acelerado de crescimento em termos per capita. Ou seja, os gastos

sociais cresceram entre 2006 e 2008, mas não ao ponto de exigir uma parcela maior

do PIB para tal. Este aparente paradoxo explica-se pelo ritmo mais pujante de

crescimento da economia brasileira que ocorria então. Com o PIB crescendo

rapidamente, foi possível absorver um GSF maior sem que isso acarretasse um

esforço maior para a economia em seu conjunto. Inclusive, a parcela do PIB destinada

às políticas sociais do governo federal reduziu-se levemente em 2008 (CASTRO,

2012)519.

Entre 2009 e 2010, retorna-se ao ritmo anterior à crise — forte crescimento do GSF

em simultâneo ao forte crescimento do PIB (Gráfico 24) —, o que permite ao

percentual do PIB manter-se quase inalterado (Gráfico 23) apesar de o crescimento do

GSF continuar intenso, seja em valores reais agregados (Gráfico 22), seja em valores

reais per capita (Gráfico 23). Porém, essa estabilidade observada em 2010 encontra-se

em um patamar bastante superior em relação ao vigente no período 2006/2008

(Gráfico 22) — o que parece indicar que, além das respostas à crise internacional,

também mudanças estruturais foram engendradas nas políticas sociais em 2009, com

impactos no GSF (CASTRO, 2012)520.

A equação: aumentar o GSF sem que isso signifique o aumento relativo do PIB em sua

proporção é a principal virtude do modelo que se implanta, associada ao que Castro (2012)

chama de “mudanças estruturais nas políticas sociais”521

. É importante notar que embora a

experiência brasileira seja singular no contexto das respostas que se deram aos últimos

rompantes cíclicos da crise estrutural do capital (1998/1999; 2002/2003; 2008/2009) ela não é

uma experiência insular. Desde antes da conjuntura iniciada no Brasil em 2003 os organismos

multilaterais já vinham construindo estratégias de postergação dos movimentos de agudização

da crise estrutural e tentado, de algum modo, evitar novas crises cíclicas.

A experiência brasileira serve assim, para confirmar as especulações que já se vinham

fazendo sobre os possíveis efeitos da reorientação do intervencionismo estatal sob o signo de

519

CASTRO, Jorge Abrahão de. Nota Técnica. Gasto Social Federal: prioridade macroeconômica no

período 1995-2010. Diretor da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (DISOC) do IPEA. 520

Id. Ob Cit. 521

O autor não é preciso na definição destas mudanças, mas por razões óbvias acreditamos que está se

referindo a centralidade das transferências monetárias que passam a ser massificadas, ao tratamento

gerencial da focalização que reduz a índices baixos os “desvios” de público alvo dos programas sociais, e

a organização sistêmica das políticas que tem permitido ampliar o braço social do Estado sem ampliar os

recursos destinados a área social.

Page 295: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

295

uma “nova proteção social” sobre os impactos das crises em curso e das que se avizinhavam.

Deste modo, nenhuma experiência particular, de nenhum país, na idade dos monopólios pode

ser pensada a não ser em relação a aldeia global. Marx, ao criticar a tendência ostracista dos

alemães com relação a situação da classe operária inglesa, advertiu sobre essa relação de

imbricamento do capital em escala mundial que se reverte diretamente também na generalização

das formas de reprodução social da classe trabalhadora522

.

Se o leitor alemão, farisaicamente, encolher os ombros diante da situação dos

trabalhadores ingleses, na indústria e na agricultura, ou se, com otimismo,

tranquilizar-se com a ideia de não serem tão ruins as coisas na Alemanha, — sinto-me

forçado a adverti-lo: “De te fabula narratur!” [A história é a teu respeito].

Intrinsecamente, a questão que se debate aqui não é o maior ou menor grau de

desenvolvimento dos antagonismos sociais oriundos das leis naturais da produção

capitalista, mas estas leis naturais, estas tendências que operam e se impõem com

férrea necessidade. O país mais desenvolvido não faz mais do que representar a

imagem futura do menos desenvolvido. Mas, ponha-se isto de lado. É muito pior que

a da Inglaterra a situação nos lugares da Alemanha onde se implantou a produção

capitalista, por exemplo, nas fábricas propriamente ditas, e isto por faltar o contrapeso

das leis fabris. Nos demais setores, a Alemanha, como o resto da parte ocidental do

Continente Europeu, é atormentada não apenas pelo desenvolvimento da produção

capitalista, mas também pela carência desse desenvolvimento [...] Uma nação pode e

deve aprender de outra. (MARX, 1971, p. 4-5-6)523

Deste modo, a relação de extra-dependência estabelecida entre os países vincadas pelo

desenvolvimento capitalista mundializado, fez com que o Brasil a um só tempo fosse

influenciado e influenciasse as diretivas que se dariam a nível global. Prova disto é que em 2004

“uma das principais conclusões da Comissão Mundial Sobre a Dimensão Social da

Globalização, constituída pela OIT, foi de que um nível mínimo de proteção social precisa ser

aceito de forma incontestável como parte de um piso socioeconômico da economia mundial”

(OIT, 2001, p. xi).

522

Nesta passagem fica claro a crítica de Marx ao desenvolvimento capitalista. 523

MARX, Karl. O Capital. Livro I. Volume I. Prefácio da 1ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Civilização

Brasileira, 1971.

Page 296: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

296

(...) a Comissão alertou para o fato de que o modelo vigente de globalização era

moralmente inaceitável, política e economicamente insustentável, enfatizando os

diversos desequilíbrios do processo. A Comissão afirmou ser crucial um compromisso

global para abordar eficazmente as crescentes desigualdades regionais e a

inseguridade humana, como condição fundamental para conferir legitimidade à

globalização. A recente crise mundial financeira, econômica e do emprego veio

confirmar muitos aspectos desta avaliação (OIT, 2001, p. xi)524.

Deste modo, em 2009 “os chefes dos organismos internacionais das Nações Unidas

lançaram a Iniciativa Piso de Proteção Social (I-PPS), coordenada pela OIT e pela OMS, como

uma das nove iniciativas conjuntas das Nações Unidas para enfrentar os efeitos da crise

econômica” (idem, p. xii). A ideia central desta iniciativa é generalizar em escala global um

patamar mínimo de proteção social composto por acessos aos cuidados de saúde, segurança de

renda para os idosos e pessoas com deficiência, benefícios para crianças (abono de família) e

segurança de renda combinada com regimes de garantia de emprego público para os

desempregados e os trabalhadores pobres (ibidem, p. 10).

A proposta refere combinar iniciativas do chamado eixo vertical com o eixo horizontal,

sendo que o eixo horizontal se refere “a quem está coberto”: empregados públicos, empregados

do setor privado, empregados informais, empregados por conta própria e trabalhadores

domésticos, e o eixo vertical se refere “ao nível de prestação e serviços e ramos cobertos”:

cobertura básica, intermediária e plena (Figura 1).

524

Relatório Bachelet. Relatório do Grupo Consultivo Sobre o Piso de Proteção Social: Piso de Proteção

Social para uma globalização equitativa e inclusiva. Genebra: OIT, 2011.

Page 297: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

297

Figura 1

Dupla estratégia da campanha OIT para estender a cobertura de Seguridade Social – Cobertura

de Benefícios.

Fonte: Relatório Bachelet. Relatório do Grupo Consultivo Sobre o Piso de Proteção Social: Piso de Proteção Social para uma

globalização equitativa e inclusiva. Genebra: OIT, 2011

No Relatório Bachelet, documento que apresenta as conclusões do Grupo Consultivo

presidido pela ex-presidenta do Chile Michele Bachelet, o Brasil é citado como “case” a ser

seguido por outros países por apresentar um piso de proteção social que contempla os

componentes propostos pelo piso da OIT/ONU, mas os extrapola. Referem que o nosso piso

articula a previdência rural, o Programa Bolsa Família, o Sistema Único de Saúde (SUS) e o

Benefício de Prestação Continuada (BPC)525

. O relatório também cita a continuidade deste

modelo de proteção social através do Programa Brasil Sem Miséria que estabelece como meta

retirar 16 milhões de pessoas da condição de indigência monetária (U$ 2/dia) combinando a

ampliação do escopo do Bolsa Família com o aprimoramento do acesso a serviços públicos,

particularmente educação, cuidados básicos de saúde, água e saneamento, eletricidade e rede de

esgotos. Inclui igualmente medidas para facilitar a inclusão produtiva, tais como serviços de

apoio à busca de emprego, formação profissional e microcrédito (ibibid., p. 14).

É evidente que a experiência brasileira chama a atenção pelos impactos que teve na

amortização dos custos sociais da crise estrutural e seus rompantes cíclicos recentes onde o

crescimento econômico mesmo tímido, mas com promessas estratégicas de indução por parte do

525

No relatório o BPC é citado como “pensão não-contributiva da assistência social para idosos e pessoas

portadoras de deficiência”.

Page 298: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

298

governo como o PAC e as novas concessões526

, a geração de emprego e renda, o aumento do

GSF, a valorização do salário mínimo, a focalização de várias políticas sociais na extrema

pobreza, funcionam como uma espécie de “antídoto” episódico para a crise.

O que o discurso oficial não inclui nesta conta — pelo menos não na grande divulgação

— é a permanência (e por vezes intensificação) da austeridade econômica que combina a

política de superávit primário as altas taxas de juros. Sem falar na Desvinculação das Receitas

da União (DRU) que autoriza a transferência de recursos do orçamento fiscal para os mercados

financeiros. Os maiores prejudicados são sem dúvida a Seguridade Social e a Educação527

.

Fagnani (2011) que tem se colocado neste debate no campo do novo-

desenvolvimentismo, ao mesmo tempo em que é um entusiasta deste modelo é também um

crítico da proposta do PPS, alertando para seus riscos:

A lógica aparente é impor a focalização como um teto para todos os países

subdesenvolvidos, cujos sistemas de proteção social foram destruídos pelo tsunami

neoliberal. Mas também pretendem utilizá-la como moeda de troca para a iminente

reforma dos regimes de Welfare State europeus — medida de austeridade para fazer

frente à crise fiscal. O objetivo pode não ser garantir padrões mínimos de seguridade,

mas assegurar padrões máximos de gasto social. Programas dessa natureza são

relativamente baratos como porcentagem do PIB. Estão trocando a embalagem, mas

preservando o conteúdo. De forma sub-reptícia, ressuscitam a famigerada proposta

dos três pilares elaborada pelo Banco Mundial nos anos 1990. O Banco

Interamericano (BID) passou a denominar propostas dessa natureza de

“universalização básica”. Não seria melhor chamar de “focalização para todos”? (...)

A despeito de ser um retrocesso em relação à Convenção 102 da OIT, datada de 1953

(FAGNANI, 2011)528.

Este quadro nos mostra que a política social do neoliberalismo à brasileira é uma

política globalizada e como tal necessita ser analisada a partir de seus determinantes universais,

particulares e singulares. Por isso mesmo do ponto de vista local, se projeta uma “engenharia”

metodológica que não encontra similares em escala mundial, justamente por apoiar-se num

sincretismo que agrega a estrutura mercantilizada e privatista do período anterior com os

ensaios técnicos (e também políticos) trazidos pelas bases populares que acessam o Estado a

partir da ampliação das forças em relação promovida pelo PT, onde uma das principais

526

Uma forma de expressão de um “sentimento” nacional difundido neste momento se deu pela

convocação à união de todo o povo brasileiro para o sucesso dos eventos internacionais que pela primeira

vez se aportariam por aqui como a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016, legitimando as

grandes obras e investimentos. 527

Salvador (2010) refere que apenas na educação estima-se uma retirada da ordem de R$ 72 bilhões de

reais em doze anos (1994 a 2006). Em 2007, o MEC deixou de contar com R$ 7,1 bilhões. SALVADOR,

Evilásio. Fundo Público e Seguridade Social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010, p. 370. 528

FAGNANI, Eduardo. As lições do desenvolvimento social recente no Brasil. In Le Monde

Diplomatique Brasil, dezembro de 2011.

Page 299: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

299

características, pouco tratada por analistas de políticas públicas é a opção gerencial por sistemas

públicos unificados529

, mais uma característica da dinâmica de continuidades e rupturas.

Evidente que esta base sincrética acaba por se hegemonizar com sustentação a partir das

teorias que valorizam a “igualdade de oportunidades” e as “capacidades individuais” — ao

gosto de um Amartya Sen ou de um Anthony Giddens —, contudo, as condições históricas que

nunca permitiram que o Brasil tivesse uma política social “de ponta” (tratada como bem público

e na esfera dos direitos) ou minimamente próxima daquelas dos Estados de capitalismo

avançado (que alcançaram o Wefare State) se vê obrigada a aceitar como “novo” e

“civilizatório” o arranjo que se faz, permitindo que o jargão publicitário e ideológico “nunca

antes na história deste país” se eivasse de conteúdos objetivos e materiais.

Em outros termos: O Brasil acessa a vanguarda mundial em termos de política social530

no mundo pós-neoliberal, contudo, assenta esta modernização em bases estruturais com

características coloniais. A nova arquitetura, que não abandona por completo o apelo ao

solidarismo/voluntariado531

, mas o minimiza, supera as expectativas no campo do

intervencionismo estatal, conferindo ao Estado tons modernos e até aparentemente

“progressistas”, todavia, a coloca sem a proliferação de uma cultura de direitos, sem a

politização das massas (que as levaria a apreender o significado das “responsabilidades estatais

neste campo” para além da ótica liberal). O desenvolvimento desigual e combinado atinge pois,

todas as esferas da vida social. O que se abre daí é um enorme fosse entre o tecnicismo-

burocrático praticado pelo governo que invoca o recurso a legalidade — até os limites do seu

comprometimento com as diversas frações da classe dominante — e uma cultura popular que

tarda a apreender as potencialidades que o novo momento lhe confere.

Vários analistas desta conjuntura histórica concluem que este processo foi e tem sido

deliberadamente arquitetado pelo governo com vistas a manter o controle da população e ao

mesmo tempo alavancar sua legitimidade refletida até mesmo eleitoralmente (MOTA, 2008;

NETTO, 2004 e 2008; BRAZ, 2004)532

. Sem discordar da essência destas análises, o que se

529

Esta parece ser uma das características que demonstram partes significativas “da reforma de Estado”

petista. A opção pelo gerenciamento das políticas públicas em forma de sistemas unificados, a luz da

experiência referencial do SUS extrapolam a área social. Deste modo emergem: O Sistema Único de

Assistência Social (SUAS), o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), o

Sistema Nacional de Habitação de Interesse Público (SNHIS), o Sistema Nacional de Segurança Pública,

o Sistema Nacional de Cultura, o de Esportes, etc., experiência que não pode ser lateralizada no processo

do intervencionismo estatal recente. 530

Nesta direção a presidenta Dilma declarou: “Já somos o país que tem a melhor tecnologia social do

mundo e nossos instrumentos de política social são copiados em dezenas de países”. Discurso proferido

pela presidenta Dilma Rousseff em 06/07/2012 por ocasião do feriado de Independência do Brasil. 531

Ou nos termos de Yazbek: a refilantropização. 532

MOTA, Ana Elizabete. O Fetiche da Assistência Social e Questão Social e Serviço Social: um debate

necessário. In MOTA, Ana Elizabete. O Mito da Assistência Social: ensaios sobre Estado, Política e

Sociedade. São Paulo: Cortez, 2008; NETTO, José Paulo. Prefácio. In MOTA, Ana Elizabete. O Mito da

Assistência Social: ensaios sobre Estado, Política e Sociedade. São Paulo: Cortez, 2008 e A conjuntura

brasileira: O Serviço Social posto à prova. In Revista Serviço Social e Sociedade nº 79, ano XXV. São

Page 300: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

300

observa é que, ainda que a programática social possa ser construída racionalmente pelo governo

ela não se dá sem tensões, antagonismos, contradições e ambiguidades (diferindo das apologias

conspirativas). Mesmo que a abertura do espaço do poder político tenha propiciado a entrada de

novos atores como representantes de movimentos sociais e sindicatos533

com vistas a

“controlar” o potencial transgressor da classe trabalhadora e a política social destinada a

aumentar os dependentes da “assistência pública” como defende Mota (2008)534

, a “cooptação”

dominante destes quadros e grupos sociais nunca é absoluta, embora hegemônica na lógica

burguesa.

Os impactos sociais e políticos do aumento gradual e acelerado do gasto social federal

não podem ser analisados apenas pela ótica de moeda de troca em jogo clientelista. As

implicações deste processo na base material, que atinge os sujeitos históricos, ou como disse

Gramsci “os de baixo”, embora representem relações de dominação provocam em maior ou

menor escala alterações simbólicas em suas dinâmicas cotidianas. Estes sujeitos estão imersos

na realidade que lhes configura enquanto sujeitos históricos

Neste sentido, entendemos que a subalternidade só pode ser abordada como produção

histórica, cujo enfrentamento supõe a unificação das classes subalternas na superação

do caráter episódico e desagregado de suas lutas a partir de um processo de produção

de significados comuns para suas experiências. É a consciência de que o processo

espoliativo que vivenciam é comum, tanto do ponto de vista de perdas materiais como

culturais, que dá legitimidade e impulsiona as lutas coletivas onde emergem novos

sujeitos sociais (YAZBEK, 1999, p. 169)535.

A autora ainda lembra que o processo histórico que “cria” sujeitos conscientes é um

processo desorganizado, heterogêneo, plural, todavia, não exclui as possibilidades das

experiências coletivas que podem ser impulsionadas pela política social

Paulo: Cortez, 2004; BRAZ, Marcelo. O governo Lula e o projeto ético-político do Serviço Social. In

Revista Serviço Social e Sociedade nº 78, ano XXV. São Paulo: Cortez, 2004. 533

A criação do Conselho de Desenvolvimento Econômica Social (CDES) em maio de 2003 como

instância consultiva e assessora à Presidência da República, as mudanças nos Conselhos Curados do FAT

e do FGTS, a reestruturação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), dentre outras

medidas atestam este novo arranjo no cenário do poder político. 534

Nas obras citadas anteriormente. Embora a autora se refira a “assistência social” procuramos aqui

tratar por “assistência pública”, pois o fenômeno referido por Mota diz respeito ao espraiamento das

ações de “assistência” genericamente identificas e referidas à quase todas as áreas da ação estatal, em

especial as de Seguridade. A assistência social, por seu turno, é uma política pública de caráter setorial,

portanto, não poderia ela mesma se plasmar deste modo, a não ser dentro dos limites da intersetorialidade.

Concordamos com a identificação do fenômeno, porém os termos-síntese que revestem a tese não

conseguem alcançar a complexidade dos fatos históricos que querem denunciar, gerando um descompasso

entre a análise e o fenômeno mesmo. Por isto, nossas referências a “assistência social” são sempre à

politica pública setorial e constitucionalmente cravada, diferindo assim de “ajuda humanitária”,

“assistencialismo”, “assistência pública” e outros termos afins utilizados erroneamente quase sempre

como sinônimos. 535

YAZBEK, Maria Carmelita. Classes subalternas e assistência social. São Paulo: Cortez, 1999 (3ª

edição).

Page 301: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

301

É na percepção comum de que há legitimidade na reivindicação por um benefício e

que sua negação constitui injustiça, indignidade, carecimento ou imoralidade que

avança o processo dinâmico de extensão da cidadania dos subalternos. Não a

cidadania outorgada no plano jurídico-formal pelos que detêm o poder de dominação

na sociedade, mas os direitos conquistados nas lutas sociais onde não se obscurecem

os reais interesses em confronto (YAZBEK, 1999, p. 170)536.

A sutil melhora das condições de vida, mesmo sob os padrões minimalistas em que se

assentam as políticas sociais dessa geração, ao ser mediada por inúmeros sujeitos — desde o

técnico do CRAS até o caixa da CEF ou da casa lotérica537

— induz ao contato com estes novos

sujeitos e abre as possibilidades das interações coletivas538

que analisadas a luz das

especificidades da nossa formação social/cultural podem se constituir em protoformas de um

processo de politização dessas massas

(...) é neste protesto contra a vida desumanizada de homens reais que questões

situadas no plano do dia-a-dia dos subalternos ganham visibilidade e dimensões

políticas. O estatuto político conferido às práticas de resistência das classes

subalternas à sua dominação nos revela mais uma vez a diversidade e a riqueza dos

espaços onde se constrói a classe539. Ampliam-se assim as dimensões politizáveis da

vida social, modificando-se a própria noção de política, o que vai conferir novas

possibilidades às ações dos subalternos e de seus aliados no enfrentamento de sua

pobreza (YAZBEK, 1999, p. 170)540.

Antes que nos entendam por “românticos” ou “possibilistas” como referiu Netto

(2004)541

cabe considerar que esse processo é um campo de possibilidades e não de garantias, e

536

YAZBEK, Maria Carmelita. Classes subalternas e assistência social. São Paulo: Cortez, 1999 (3ª

edição). 537

CRAS: Centro de Referência de Assistência Social, CEF: Caixa Econômica Federal. Estes contatos

são apenas uma das inúmeras possibilidades que se abrem no espectro das interações coletivas que os

“subalternos” podem ter. Qualquer tentativa nossa de enumerá-las seria provisória e limitada. 538

Já passa de 5, no Brasil, o número de associações de mães do programa bolsa família que se reúnem

em torno de reivindicações afetas a melhoria das condições de vida tematizadas pelo seu cotidiano como

mais e melhores creches e escolas, atividades públicas alternativas a escola como enfrentamento ao

aliciamento das crianças e adolescentes pelo tráfico de drogas, e assim por diante. Este dado foi

levantado por nós quando realizamos grupos focais em duas regiões do país para pesquisar junto aos

assistentes sociais suas apreensões sobre as mudanças recentes nas estruturas jurídico-política do Estado,

entre agosto e outubro de 2011. Estes dados serão sistematizados e comporão o material que irá contribuir

na formulação de orientações para implementação de CRAS em especial no que tange aos seus aspectos

de mobilização e luta das massas populares. 539

E a resistência neste caso, não pode ser entendida apenas como a negação da ação estatal no campo da

política social, mas combinada a luta pela reversão dos patamares e estatutos dados pelo Estado à elas

(como o minimalismo, a focalização, a seletividade, etc.). A negação unilateral da política se justifica

quando apenas seus aspectos negativos/de dominação são levantados, o que é uma visão burguesa —

ainda que crítica — do fenômeno. 540

Ob. Cit. 541

NETTO, José Paulo. A conjuntura brasileira: O Serviço Social posto à prova. In Revista Serviço

Social e Sociedade nº 79, ano XXV, especial, 2004.

Page 302: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

302

que o simples fato da “possibilidade” ser colocada como “possibilidade” faz emergir também

estratégias obstaculizantes à sua concretização. É um aspecto inalienável da luta entre as classes

e suas frações, e, um efeito — no caso da politização das massas — que nem o tecnicismo

governamental e nem o fatalismo das análises unilaterais conseguem prever.

O reordenamento das políticas sociais no Brasil de neoliberalismo à brasileira, portanto,

não pode ser entendido apenas como estratégia de reposicionamento do processo de acumulação

em novas bases. Ele diz respeito também a recomposição do bloco no poder, a partir das

fissuras que se criam pelas próprias contradições internas do capital plasmado no Estado.

A preferência dada ao capital nacional, e, por consequência a burguesia interna, a partir

da metade do primeiro governo Lula, foi uma estratégia política das mais ousadas, pois permitiu

recompor a unidade do bloco no poder, ao mesmo tempo que aprimorar as interfaces deste bloco

com seu bloco antagonista, revelando à sociedade brasileira a existência destas contradições e

fissuras no âmbito do Estado, antes vistas apenas por um grupo seleto de “políticos”,

“empresários”, “intelectuais”, etc.

De início se pode constatar sem dúvida alguma que essas intervenções obedecem

frequentemente a coordenadas gerais da reprodução do capital, e são necessárias para

a reprodução do conjunto do capital social. Se, na expressão de Engels, o Estado

intervém para instaurar e manter as condições gerais da produção, o termo

“condições” está caduco doravante, pois o Estado atinge o cerne do processo de

reprodução, o termo “gerais” mantém toda sua pertinência, no sentido em que são

indispensáveis (da pesquisa à energia, as comunicações e a reprodução ampliada da

força de trabalho) para o conjunto da burguesia542. O encargo dessas funções por tal

ou qual capital individual, ou mesmo fração do capital, comporta riscos consideráveis:

essas funções podem ser derivadas, de maneira selvagem, para seu benefício único a

curto prazo (caso bem evidente com as companhias petrolíferas por exemplo e as

reações por elas provocadas no conjunto do capital, o que obriga o Estado — o

próprio Carter nos Estados Unidos — a se encarregar do domínio da energia). Elas

podem até infletir muito brutalmente para uma reestruturação do conjunto do aparelho

produtivo em benefício exclusivo desses tais individuais: o que aumenta

consideravelmente as contradições internas do bloco no poder (POULANTZAS,

2000, p. 185-186)543.

542

O que também pode levar a fissuras no seu interior, pois um setor da burguesia pode partir para a

defesa de que o Estado invista em estradas como forma de melhorar o escoamento de sua produção pela

via terrestre, outro, pode pressionar pelo investimento em infra-estrutura aeroviária. Mas nos aspectos

gerais, concordando com Engels e Poulantzas, os interesses convergem, e, mesmo tais fissuras não

tendem a ser duradouras. O caso mais problemático, contudo, que também se acomoda ao final, é entre o

capital produtivo e o financista. Os capitalistas da base produtiva vociferam contra a política tributária

(não se esquivam de propalar que no Brasil se paga mais impostos que no mundo “desenvolvido”) e os

juros altos praticados pela austeridade econômica do governo, já a classe-que-vive-da-especulação se

beneficia diretamente deste modelo tributário e dos juros em níveis astronômicos. 543

POULANTZAS, Nicos. O Estado, O Poder, O Socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

Page 303: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

303

Portanto, somos interpelados como sujeitos históricos a atuar neste campo minado de

contradições cujas possibilidades de enfrentamento passam pela ultrapassagem das aparências

que escamoteiam o fato de que entre as políticas sociais e seu “objeto” há um enorme fosso, que

é o próprio caráter estrutural da geração da pobreza e subalternidade de seus usuários. As

mediações se requisitam, assim, como um desafio a ser inadiavelmente enfrentado porque supõe

um movimento de passagem de nossas concepções ontológicas (de nossos fundamentos teórico-

metodológicos para esse tempo miúdo, para situações concretas). Essas mediações são

teóricas, éticas, políticas, ideológicas, culturais e técnicas. Passam, por exemplo, desde a

estruturação de um serviço social qualquer à mobilização política das massas na direção da

reivindicação de seus direitos (Yazbek, 1999 e 2013)544

.

544

YAZBEK, Maria Carmelita. Classes subalternas e assistência social. São Paulo: Cortez, 1999 (3ª

edição); e, palestra proferida no XIII Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social

(ENPESS), em Juiz de Fora – MG, de 05 a 09 de novembro de 2013.

Page 304: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

304

Capítulo IV

SERVIÇO SOCIAL NAS TRAMAS DO NEOLIBERALISMO À

BRASILEIRA: PASSADO, PRESENTE E FUTURO

Também nos é dito que: “em termos simples, a igualdade de

oportunidades é um conceito capitalista, enquanto a igualdade

de resultados é o princípio básico do socialismo”. Entretanto,

embora a “igualdade de oportunidades” seja efetivamente um

dos princípios mais frequente e ruidosamente difundidos da

ideologia burguesa, a preocupação socialista com a igualdade

é muito mais real e sutil do que sugere a imagem grosseira da

“igualdade de resultados”.

István Mészáros

Partindo do pressuposto de que a gênese e o desenvolvimento ulterior da profissão dos

Assistentes Sociais brasileiros só podem ser compreendidos no contexto das determinações

sócio-históricas do desenvolvimento capitalista em sua fase monopólica, podemos seguramente

afirmar que esta dinâmica se coloca como o próprio fundamento sócio-histórico da profissão.

Reside nela os elementos que fornecem tanto a inteligibilidade quanto a legitimidade

profissionais e, a depender do modo como as condições históricas posicionam a luta entre as

classes, fulcro da história sustentada nos modos de produção e reprodução social da vida,

construir projetos profissionais que representem sua auto-imagem sob o signo da dialética

universalidade-particularidade-singularidade545

. Portanto, não se faz possível indiferenciar o

Serviço Social da sociedade em que se insere, pois como referiu Iamamoto (2003, p.203) ele é

dela parte e expressão546

.

Embora estas considerações modelares não sejam inéditas, ao contrário, comparecem de

modo recalcitrante na produção acadêmica dos últimos trinta anos547

, o sutil caminho

metodológico contido nelas faz com que análises da profissão referidas a história tenham

sempre um caráter de novidade. Isto é, ao indissociar o Serviço Social do desenvolvimento da

sociedade burguesa — de capitalismo monopolista — cria-se uma tendência inequívoca de que

a saturação da realidade deve se interpor como um recurso à análise dos fenômenos endógenos e

exógenos da profissão. Novas e permanentes determinações estão presentes na realidade e com

545

O que impede que os projetos profissionais sejam tratados como epifenômenos endógenos do

desenvolvimento particular da profissão. Sua relação com a exterioridade não pode ser ignorada. 546

IAMAMOTO, Marilda Villela. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação

profissional. São Paulo: Cortez, 2003. 547

Ou de modo mais contundente desde a difusão pública de Relações Sociais e Serviço Social no

Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica, de Marilda Vilella Iamamoto e Raul de

Carvalho, em 1982. (São Paulo: Cortez).

Page 305: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

305

elas um espectro de mediações se coloca no âmbito das relações que se estabelecem entre o

Estado e as classes, entre o Estado e os profissionais, entre os profissionais e os “usuários” e

assim por diante.

Deste modo, temos sido acometidos pela necessidade que nos leva a empreender “leituras”

da realidade histórica que, na maior parte das vezes, condensam uma revisitação do passado, o

desvendamento do presente e a prospecção de futuro. O mais difícil desta tríade, justamente por

nos interpelar nas sínteses momentâneas processuais da história é a inquisição do tempo

presente. Esta dimensão reveste de provisoriedade ou de “datação” histórica as produções, seus

protagonistas e interlocutores não apenas por se sustentar em um processo em curso, mas

também porque o agente da análise também é um Ser em construção, em processo, em

dinamismo histórico.

Logo, ao tratarmos daquilo que denominamos o Serviço Social nas tramas do

neoliberalismo à brasileira estamos anunciando não apenas o adensamento pré-conclusivo das

pretensões que motivaram a presente tese como também afirmando que há características

“novas” na relação da profissão com seus interlocutores históricos que merecem ser observadas.

Presente, passado e futuro não se rendem, a partir de agora a cronologia narrativa. Se misturam,

se entrelaçam como componentes distintos de um mesmo movimento, negando pois, a

fragmentação do real. Afinal, estamos diante de um dos momentos mais emblemáticos da

história do país cujos traços fundamentais mostramos nos itens anteriores, e, assim, as inflexões

que causam à profissão podem ser também sentidas pela animação do debate teórico e pela

intensificação da disputa de projetos profissionais548

.

As polêmicas em torno do suposto neodesenvolvimentismo são apenas um indicativo deste

debate dinâmico assim como o foram e seguem sendo as controvérsias em torno da tese do

sincretismo e da prática indiferenciada, a tese da identidade alienada, a tese da correlação de

forças, a tese da assistência social, a tese da proteção social e a tese da função pedagógica do

assistente social549

. Isto mostra que a profissão vem ocupando um lugar adjetivo na vida social

brasileira e que seus agentes se inserem no mundo não como espectadores, mas como sujeitos

das mais amplas práticas sociais cônscios das transformações que querem imprimir à realidade.

Neste capítulo iremos, assim, apresentar argumentos que contribuam para que todo esse

processo avance, passando em exame, mais um conjunto articulado de categorias que caminham

para a “síntese” da proposta da tese que veio se delineando desde as primeiras linhas que

anunciavam a busca de nexos entre Serviço Social, Estado, Desenvolvimento Capitalista (e nele

548

Neste caso se observa uma dinâmica muito mais complexa na medida em que não se trata de disputa

de projetos profissionais apenas sob perspectivas tradicionais e historicamente antagônicas:

“progressistas” versus “conservadores” / “críticos” versus “pós-modernos” / “marxistas” versus

“funcionalistas”, etc. Consideramos também as disputas programáticas dentro de um mesmo grupo social

o que faz dos projetos profissionais elementos de per si tensionados e contraditórios. 549

Todas problematizadas com maestria por Marilda Villela Iamamoto no terceiro capítulo de Serviço

Social em Tempo de Capital Fetiche. (São Paulo: Cortez, 2007).

Page 306: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

306

o neodesenvolvimentismo) e o projeto profissional, para com isso evidenciarmos as formas

construídas historicamente de tratamento dispensado pelo Serviço Social à problemática teórico-

prática do Estado como pano de fundo para a compreensão da movimentação recente da

profissão com destaque aos seus avanços, recuos e contradições. A inevitabilidade da relação da

profissão com a sociedade em que se insere, é deste modo, explicitada a partir da conjuntura de

uma fase específica do desenvolvimento capitalista brasileiro de condução neoliberal que tem

sido propalada pelo discurso oficial como neodesenvolvimentista.

4.1. Das origens às tentativas de ressignificação

Muito se tem falado acerca das origens do Serviço Social no Brasil, na América Latina e

no mundo. As investigações sobre este tema ocupam a produção intelectual desde os primeiros

momentos onde o estatuto profissional foi pretendido ao Serviço Social. E esta recalcitrância

não se dá por acaso. Recorrer à história como base e fundamento da vida social é imprescindível

para entender seus fenômenos particulares e singulares e os nexos consigo mesma. Se referidos

ao materialismo histórico, torna-se ainda mais vital o uso da história, pois nos leva a incorporar

deste modo, um potencial transgressor de uma ordem que subordina e avilta os sujeitos que

fazem a própria história acontecer550

. Assim, a incorporação da tradição marxista como

mediação teórica fundamental para o Serviço Social (brasileiro, essencialmente) não foi uma

escolha inocente lá pelos idos dos anos 1960, ainda que tal aproximação tenha sido eivada de

equívocos metodológicos e políticos551

. Mesmo parte das análises sobre a gênese da profissão

que tiveram como fulcro conferir centralidade a personagens e fenômenos peculiares

descontextualizados da realidade social não puderam se furtar totalmente da história mesmo que

lhe conferissem um papel coadjuvante em seus contextos552

.

Por isso, os nexos para o entendimento da profissão se encontram somente “na

intercorrência do conjunto de processos econômicos, sócio-políticos e teórico-culturais (...) que

550

Ou como afirmou Lukács: “A vitória conquistada pelo proletariado impõe-lhe como tarefa evidente

aperfeiçoar ao máximo possível as armas espirituais, com as quais sustentou até então a sua luta de classe.

Entre essas armas encontra-se, naturalmente, o materialismo histórico em primeiro lugar. O materialismo

histórico serviu ao proletariado, na época de sua opressão, como um dos seus instrumentos mais

poderosos de luta, e é natural que agora o leve consigo para uma época em que se prepara para reconstruir

a sociedade e nela a cultura (...)”. LUKÀCS, Georg. História e Consciência de Classe. Estudos sobre a

dialectica marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003 (p. 413). 551

Iamamoto e Netto apresentam os estudos mais relevantes no sentido de evidenciar o percurso de

aproximação do Serviço Social a tradição marxista. Ver as obras citadas na próxima nota. 552

Sobre esta aproximação o item 1.7. “o legado da ditadura e a tradição marxista” e 2.5. “a intenção de

ruptura” da obra Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64, de José

Paulo Netto (São Paulo: Cortez, 2002 – 6ª edição) e o Capítulo II da segunda parte de O Serviço Social

na contemporaneidade trabalho e formação profissional, de Marilda Vilella Iamamoto (São Paulo:

Cortez, 2003 – 6ª edição) sob o título “o debate contemporâneo da “reconceituação”: ampliação e

aprofundamento do marxismo” são esclarecedores. Mas uma síntese sistemática deste processo pode ser

encontrada no Capítulo I do livro de Carlos Montaño: A natureza do Serviço Social (São Paulo: Cortez,

2011 – 2ª edição), sob o título “a natureza do Serviço social na sua gênese”.

Page 307: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

307

instauram o espaço histórico-social que possibilita a emergência do Serviço Social como

profissão” (NETTO, 2001, p. 69)553

no contexto da transição do capitalismo concorrencial para

o monopolista.

Estes processos apresentam algumas marcas específicas que costumam ser evidenciadas

nas análises sobre a profissão. A maior delas é, sem dúvida, a movimentação histórica em torno

das formas de enfrentamento às manifestações da “questão social” que encontram na

“sistematização” e “racionalização” das práticas de “assistência” pública uma expressão de

grande monta no quadrante de 1930 em diante. Contudo, esta marca é apenas um dos muitos

processos históricos presentes na fase de constituição e consolidação de um capitalismo

monopolista no Brasil. É uma marca que não explica a complexidade das injunções

determinativas da gênese e desenvolvimento da profissão, ainda que não possa ser ignorada. Os

fatores decisivos presentes nas formas econômicas, políticas, ideológicas, culturais, etc., desta

fase são encontrados nas particularidades do desenvolvimento capitalista da época que fez

emergir como forma necessária à sua própria manutenção e reprodução um “projeto

desenvolvimentista”, ou como temos dito “um dos momentos de síntese do desenvolvimento

capitalista moderno”.

Em outros termos podemos dizer que a relação da gênese da profissão com as práticas

sistemáticas de “assistência” pública é apenas uma das manifestações sociohistoricas concretas

que o capitalismo monopolista encontra quando da sua consolidação no Brasil. Tais práticas

antecedem a emergência da profissão e a ultrapassam, sendo, deste modo, equivocado pensar

que a instituição do estatuto profissional ao Serviço Social as teria superado.

Por outro lado, não basta referenciar o Serviço Social ao capitalismo monopolista para

que se supere o endogenismo da interpretação da profissão como extensão natural da

“assistência”554

. A contextualização histórica deve interpelar as manifestações concretas, vindas

da base material da vida social onde se assentam as relações sociais em reciprocidade imanente

às relações que se estabelecem entre as classes sociais, entre estas e o Estado, entre este último e

a profissão, com a mediação privilegiada de políticas de caráter público. E, neste processo se

percebem as intenções da classe dominante hegemonizadas na ossatura do Estado expressas

também pelo modo como o enfrentamento às refrações da “questão social” se coloca como

recurso e estratégia de poder.

Na conjuntura que se segue a partir dos anos 1930 no Brasil, se registra um amplo fluxo

migratório do campo às cidades e uma movimentação imigratória de trabalhadores europeus

fugidos dos regimes fascistas e nazistas que passam a dominar a cena no velho continente. Estes

553

NETTO, José Paulo. Capitalismo Monopolista e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2001. (3ª

edição). 554

Que nem se trata de “assistência social” tal qual concebemos atualmente. As práticas tidas como de

“assistência” no contexto da gênese da profissão estão referidas a escolha político-racional do grupo

pioneiro pela “ação social”, braço operativo da doutrina social católica.

Page 308: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

308

fatores — relacionados ao processo de crise internacional do capital — associam-se a outros de

natureza interna (inflexionados também pelo processo internacional) como a crise do modelo

agroexportador e contribuem para o crescimento em número e em qualidade do contingente de

trabalhadores cujas possibilidades de reprodução social passam a se concentrar no trabalho

fabril ascendente incentivado pelas políticas “desenvolvimentistas” do governo, como uma das

formas de minimizar a crise e enfrentar a agudização da “questão social”. A industrialização

como base do projeto desenvolvimentista não aparece isolada. Antes, requisita a urbanização

(desordenada e sem planejamento), a regulação do mercado de trabalho que ao se complexificar

intensifica a luta de classes, a consolidação de políticas públicas, em especial as de corte social e

uma ideologia que difunda não apenas os valores e a moral burguesa, mas também incuta nos

corações e mentes da classe trabalhadora falsas esperanças quanto a um futuro de prosperidade

que “o progresso social com ordem” deveria trazer.

Este quadro possibilita tanto o surgimento do Serviço Social como profissão

reconhecida formal e institucionalmente pelo Estado como promove parcerias estratégicas entre

este e aqueles que já vinham trabalhando no processo de “neutralização” das tendências

consideradas “subversivas” da classe trabalhadora por meio de estratégias de coerção por

consenso como é o caso da Igreja Católica e a formação de seus quadros leigos. Esta parceria se

sustenta em um complexo “arranjo teórico-doutrinário”555

, e “em uma ótica psicologizante e de

individualização dos problemas sociais, que tendia a buscar as especificidades da 'questão

social' na esfera ético-moral, reforçando o substrato liberal de que o destino pessoal é de

responsabilidade do próprio indivíduo” (RAICHELIS, 2006)556

.

Avançando para o contexto do segundo pós-Guerra as características já arroladas do

desenvolvimento capitalista se intensificam e exigem do Estado respostas tanto para explicar os

limites das políticas de desenvolvimento que empreende quanto para “solucionar” o caos social

que se instala decorrente do aumento expressivo da pobreza e da desigualdade. Induzidos pela

regulação estatal e pela influência do positivismo político o empresariado inicia sua participação

555

Termo utilizado por Iamamoto para definir a articulação que se promoveu entre a doutrina social

católica e as teorias sociais de cariz positivista e funcionalista. Ver: IAMAMOTO, Marilda Villela. O

Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São Paulo: Cortez, 2003, p.

201-249. 556

Netto também aborda esta questão quando refere: “os componentes que sinalizam (...) os processos de

legitimação da ordem monopólica arrancam, quase todos, de algum modo, do substrato do ethos

individualista. Mas a incidência deste, agora, com a ressituação que sofre na idade do monopólio, surge

sob uma forma inédita: aparece não mais como a reiterada proclamação das possibilidades da vontade

individual, tão adequada ao perfil de uma ordem econômica e social dinamizada por iniciativas de

sujeitos empreendedores, mas especialmente como o privilégio das instâncias psicológicas na existência

social. A tendência a psicologizar a vida social, própria da ordem monopólica, é tão compatível com os

processos econômico-sociais que o imperialismo detona quanto se manifesta adequada à sua reprodução

— mas sobretudo se revela como um importante lastro legitimador do existente” (NETTO, José Paulo.

Capitalismo monopolista e serviço social. São Paulo: Cortez, 2001, p. 41. 3ª edição) e a citação de

Raichelis encontra-se em RAICHELIS, Raquel. Breve História do Serviço Social no Brasil. Agenda do

Conselho Federal de Serviço Social do ano de 2006.

Page 309: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

309

contundente nas estratégias de enfrentamento às refrações da “questão social” criando grandes

instituições de prestação de serviço sociais. O chamado sistema “S” é por eles criado com a

intenção de “civilizar” os trabalhadores por meio da qualificação profissional associada ao

acesso a serviços sociais básicos que vão desde os de cultura e lazer aos de apoio à assistência

médica e dentária. Os SESCs, SENACs, SESIs, etc. repõem, sob bases modernas, as antigas

relações de promiscuidade entre o Estado e as organizações da sociedade civil presentes no

Brasil desde a época Colonial, justificada sob o discurso da relevância pública de seus serviços,

contudo, sem deixar de atender necessidades básicas de reprodução social da classe

trabalhadora557

. O Estado participa do processo fundando a primeira grande instituição

assistencial, destinada num primeiro momento a amparar às famílias dos combatentes egressos

da Guerra e posteriormente passa a se concentrar na gestão e operação de todas as estratégias do

assistencialismo estatal. A Legião Brasileira de Assistência, a LBA, embora inaugure um novo

marco no processo de enfrentamento às refrações da “questão social” por imprimir a “ação

social” na ossatura do Estado, podendo assim laiciza-la, não significou um avanço na direção da

configuração dos estatutos do direito social. Ao contrário, confirmou a centralização de poder

do governo federal; consolidou o primeiro-damismo como iniciativa “comum” na esfera

pública; contribuiu para caracterizar a “assistência” como o conjunto de ações pontuais e

emergenciais voltadas à população em estado de pauperização, sem especificidade setorial;

dentre outros aspectos.

A diversidade de serviços sociais e educacionais prestados por estas instituições,

relacionados às demandas de qualificação da força de trabalho e de sua reprodução

física e espiritual, leva à incorporação institucional de contingentes de assistentes

sociais, que passam a desenvolver ações educativas e normativas de ajustamento

psicossocial dos trabalhadores, voltadas ao atendimento das novas necessidades

relacionadas à integração de massas populacionais ao mercado de trabalho e à vida

urbana. A criação das instituições assistenciais, com grande capilaridade no território

nacional, amplia significativamente o mercado de trabalho do assistente social, agora

investido de um mandato oficial, a partir do seu reconhecimento e legitimação pelo

Estado e empresariado (RAICHELIS, 2006)558.

557

Um dos tratamentos políticos mais tensionados no campo da proteção social brasileira é sem dúvida o

modo como o Estado tem estabelecido suas relações com as entidades assistenciais através dos tempos.

No caso específico do sistema “S” até hoje o Brasil não consegue atualizar a legislação que o regulamenta

nos aspectos essenciais como a transparência no processo de financiamento público e privado, bem como

sua inserção em uma rede socioassistencial que opera sob a primazia do Estado. A atualização da

legislação sobre o terceiro setor feita nos anos 1990 não os alcançou e nem mesmo a atualização recente

da legislação relativa a renúncias fiscais para entidades socioassistenciais. A “caixa preta” do sistema “S”

permanece intacta. Para compreender um pouco melhor esse contexto consultar o livro que organizamos

em 2010: Assistência Social e Filantropia: cenários contemporâneos. São Paulo: Editora Veras, 2012. 558

RAICHELIS, Raquel. Breve História do Serviço Social no Brasil. Agenda do Conselho Federal de

Serviço Social do ano de 2006.

Page 310: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

310

A Igreja contribuiu aprimorando a formação de seus quadros que se voltam a intervir

junto ao operariado por meio da “ação social” ao mesmo tempo em que diversifica o apoio

institucional às necessidades de reprodução social deste público desde assistência médica – as

Santas Casas de Misericórdia em 1930 passavam de 112, no final da década de 1980 já eram

mais de 400559

-, creches, asilos até as campanhas de solidariedade, arrecadação de insumos e

bens materiais (roupas, alimentos, remédios, mobiliário, etc.).

Estes traços são apenas traços particulares que incidem no processo de evolução da

profissão no Brasil e que demonstram uma parte do seu envolvimento com as estratégias amplas

da jornada capitalista em curso à época.

As características mais gerais estão mesmo relacionadas aquilo que podemos conceber

como o início de “uma difusão global” do modo de pensar o desenvolvimento capitalista em um

mundo que buscava se recompor após a Guerra, e, esta recomposição contou com uma ampla

redefinição do processos de trabalho e acumulação pautados em padrões fordistas e

keynesianos, sobretudo nos países de capitalismo avançado e em formas de superexploração do

trabalho sob a pecha de políticas desenvolvimentistas nos países da periferia capitalista560

.

Este processo conta ainda com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) em

1945 como uma iniciativa ideopolítica e metodológica para conferir “unidade” sociocultural ao

mundo ligado ao “eixo capitalista”. A formatação de um projeto profissional para os assistentes

sociais bem como a concepção de Estado que ampara este projeto estão diretamente

relacionadas às diretivas emanadas das agências sociais deste órgão mundial.

Na década de 1950, a ONU cria vários organismos que irão assumir com clareza a

questão do desenvolvimento. Entre eles, temos a criação da “Divisão de Assuntos

Sociais” e a “Unidade de Desenvolvimento de Comunidade”, já em 1950, data em que

a “Comissão de Assuntos Sociais do Conselho Econômico Social” incluiu em seu

programa de trabalho temas como “A Organização de centros rurais para motivar a

própria comunidade” e “As contribuições oferecidas pelas Organizações de

comunidade locais para ajudar a seus habitantes na solução de seus problemas”. Além

de estudos, a ONU deu assistência técnica aos governos que a solicitaram, no sentido

de como incentivar a participação nos programas, nas áreas de educação fundamental,

informação agrícola, saúde e organização de cooperativas por parte da população a ser

atingida (AGUIAR, 2011)561.

559

FERNANDES, Liliane Alves. As Santas Casas de Misericórdia na República Brasileira.

Dissertação de Mestrado em Políticas de Bem-Estar em perspectiva: evolução, conceitos e actores.

Universidade de Evora, Lisboa, 2009. 560

Tudo isto pensado como forma de hegemonizar o domínio das nações de capitalismo avançado,

sobretudo os EUA em sua área de influência, por decorrência da polarização política, ideológica e militar

que dividiu o mundo em dois blocos: o capitalista e o socialista. 561

AGUIAR, Antônio Geraldo de. Serviço Social e filosofia: das origens a Araxá. São Paulo: Cortez,

2011, 6ª edição.

Page 311: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

311

As implicações destas orientações para o desenvolvimento da profissão no Brasil

redundam em “metodologias” de intervenção dos profissionais junto a população que

privilegiam o “desenvolvimento de comunidades”, a abordagem individual dos “casos” e

coletiva dos “grupos”, como práticas isoladas ou combinadas562

. Neste ínterim Serviço Social e

o desenvolvimentismo como ideologia e prática econômica se compatibilizam convergindo

interesses e perspectivas ideopolíticas e culturais. No plano interno, a profissão busca

aprimorar-se no sentido de obter maior legitimidade e autojustificativa por meio da qualificação

de suas práticas “metodológicas” e também acomodar-se melhor no movimento dinâmico do

desenvolvimento capitalista em curso. Os encontros e outros eventos profissionais atestam esta

intenção e iniciativa. Araxá é um momento alto deste movimento, pois consegue traduzir em

seu documento/relatório final o pensamento hegemônico da categoria na conjuntura

seiscentista563

. Nesta conjuntura a “explosão” de diferentes e antagônicas posições políticas

presentes no seio da sociedade animadas pela dinâmica de adesão/resistência ao golpe de 1964

também invade e influencia os meios profissionais, levando aos seus encontros/eventos os

inerentes embates de ideias e perspectivas:

562

A relação da profissão com o “desenvolvimentismo” nos momentos iniciais de sua criação está

descrita no livro de Aguiar e nos mostra o modo específico como foram introduzidos no Brasil o Serviço

Social de Casos, o Serviço Social de Grupos e as estratégias de Desenvolvimento de Comunidade e

Desenvolvimento e Organização de Comunidade. Não nos compete resgatar os detalhes deste processo,

pois esta seria uma digressão desnecessária, todavia, cabe-nos considerar que esta é uma das primeiras

obras de fôlego que se dedica de modo exclusivo ao debate sobre a relação Serviço

Social/Desenvolvimento Capitalista sob a égide do “desenvolvimentismo” amparada por uma grande

editora, o que contribuiu para sua maior difusão. Os limites objetivos que nos interpelaram durante a

elaboração da tese não nos permitiu buscar outras produções do gênero. O texto de Aguiar aborda a

relação da profissão com o “desenvolvimentismo” até a realização do Encontro de Araxá (1967) o que

implica a necessidade de estudos que deem prosseguimento a este foco. AGUIAR, Antônio Geraldo de.

Serviço Social e filosofia: das origens a Araxá. São Paulo: Cortez, 2011, 6ª edição. 563

O encontro e o documento de Araxá marcam um momento emblemático no desenvolvimento da

profissão no Brasil. Embora as posturas “neopositivistas” se consagrem hegemônicas neste momento, o

encontro ocorre em meio às inflexões da luta de classes acirradas pelo movimento de adesão/resistência

ao golpe de Estado de 1964 que não se furtam de influenciar o meio profissional. Buscando uma

“teorização” para a profissão este e outros eventos que se seguiram priorizam os aspectos técnicos da

prática profissional redundando “no fetiche de uma teoria metodológica” de cunho estrutural-

funcionalista. Contudo, desde Araxá a pluralidade de acepções tanto afetas as “metodologias” e

“teorizações” para a profissão quanto as concepções de homem/mundo não se extirpam mais do meio

profissional, assim, o acirramento desta pluralidade redundará no chamando Movimento de

Reconceituação, que embora tenha proposto a revisão das bases institucionais/políticas/ideológicas do

Serviço Social em toda América Latina, apresentará no Brasil características muito particulares. Ver a

segunda parte do livro de Iamamoto: O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação

profissional. São Paulo: Cortez.

Page 312: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

312

Temos diferentes posturas dos assistentes sociais nesses períodos. A primeira postura,

que sempre esteve presente, é a que tem uma visão acrítica da realidade, que vê a

comunidade como uma unidade consensual, onde não há lugar para contradições. Esta

posição está alinhada com o grupo dominante da sociedade. Historicamente aconteceu

desde o início do Desenvolvimento de Comunidade no Serviço Social. A segunda

postura é marcada por uma visão mais ampla das questões do desenvolvimento por

mudanças estruturais da sociedade. Mas as mudanças são no sentido de melhorar o

próprio sistema capitalista. Essa postura aconteceu a partir de 1960. A terceira postura

é assumida por alguns profissionais que se comprometeram com as classes subalternas

e se colocaram a seu serviço. Percebem os antagonismos dentro da sociedade e

assumem a luta de transformação das estruturas. Esta postura basicamente aconteceu

de 1960 a 1964. E hoje, com o processo de mobilização popular, os assistentes sociais

têm condições de novamente rever suas posições (AGUIAR, 2011, p. 93-94)564.

O debate conceitual sobre o Estado — por nós entendido como vital neste momento

devido a deflagração de um golpe militar e a consequente tarefa de combatê-lo contando

também com aportes conceituais — é muito peculiar e quase inexistente no interior da categoria

e nos organismos políticos (ou nos aparelhos privados de hegemonia da sociedade civil) como

sindicatos, partidos e movimentos sociais de orientação esquerdista da época. O conjunto da

sociedade e com ela a profissão se voltam para as questões objetivas e imediatas do processo de

produção e reprodução social enfatizando tanto as estratégias de desenvolvimento quanto a

“função” repressora do Estado — esta última no âmbito dos grupos que resistiram ao golpe.

No Capítulo II desta tese vimos que a conjuntura do pós-1930 foi atravessada pelos

efeitos da crise mundial de 1929 e da crise do café no plano interno. Os projetos

desenvolvimentistas que se desenvolvem na sequencia deste processo tiveram por intento

combater os efeitos da crise com a articulação entre a revisão da política econômica com a

implantação de políticas sociais, ambas voltadas à estancar os índices decrescentes da

acumulação capitalista, como dissemos alhures565

.

564

AGUIAR, Antônio Geraldo de. Serviço Social e filosofia: das origens a Araxá. São Paulo: Cortez,

2011, 6ª edição. 565

Tanto o desenvolvimentismo de Vargas quanto o de Kubitschek, ainda que se trate de conjunturas

distintas.

Page 313: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

313

O Estado assume paulatinamente uma organização corporativa, canalizando para sua

órbita os interesses divergentes que emergem das contradições entre as diferentes

frações dominantes e as reivindicações dos setores populares, para em nome da

harmonia social e desenvolvimento, da colaboração entre as classes, repolitizá-las e

discipliná-las, no sentido de se transformar num poderoso instrumento de expansão e

acumulação capitalista. A política social formulada pelo novo regime — que tomará

forma através de legislação sindical e trabalhista — será sem dúvida um elemento

central do processo (IAMAMOTO & CARVALHO, 1996, p. 154)566.

Ou seja, novas evidências de que o Serviço Social, como profissão destinada a atuar no

âmbito das mediações que se estabelecem entre o Estado e as classes, apresenta uma dimensão

vinculada às ações planejadas pelo Estado e pela classe dominante para o desenvolvimento

capitalista voltadas à expansão da acumulação. Contudo, se observa um ambíguo movimento no

interior da profissão: de um lado se reconhece a centralidade do Estado como agente indutor

deste desenvolvimento e por extensão como sujeito político que confere legitimidade

institucional à profissão, por outro, não se observa como preocupação “entender

conceitualmente” o Estado, nem para aprimorá-lo enquanto mecanismo de generalização da

“opressão” pelo consentimento, nem para criticá-lo por exercer o papel da violência legítima567

.

Uma espécie de indiferença reina no ambiente profissional568

. Ainda que as políticas sociais,

“objeto” que permite a materialização das práticas profissionais, tenham no Estado sua razão,

sentido e manutenção, estas são vistas como um complexo de exterioridade, pois os grupos

sociais delas destinatários são compreendidos como “autônomos” nas relações classistas. Os

grupos sociais teriam, assim, a função natural de conter os excessos do Estado, pois,

devidamente ajustados, representam corporações que moralmente zelam pelo bem-estar

coletivo, não sendo, assim, necessário se debruçar sobre questões teóricas e práticas relativas a

natureza e concepção do Estado, pois seu papel já está dado.

566

IAMAMOTO & CARVALHO, Marilda Villela e Raul de. Relações sociais e serviço social no

Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez, 1996 (11ª edição). 567

Como já demonstramos antes as preocupações com o Estado, do ponto de vista do projeto profissional

hegemônico em curso, se limitaram ao campo prático do exercício de aprimoramento das técnicas de

intervenção profissional junto a classe subalterna. 568

Esta lateralização do debate sobre o “Estado” vai do nascimento da profissão nos anos 1930 até

praticamente toda a fase onde o tradicionalismo se faz hegemônico na profissão, alternando,

evidentemente períodos particulares que repõem o debate, mas sempre de modo marginal. Poucas, mas

consideráveis mudanças começam a surgir apenas após a “virada” política que se assiste no final da

década de 1970, sobretudo, após o Congresso da Virada em 1979.

Page 314: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

314

O elemento novo em que se constituirá a política social desenvolvida a partir do

Estado pós-30 não estará apenas em sua intensidade e generalização, mas também em

sua vinculação a uma estrutura corporativista. Ainda nos primeiros anos do Governo

Provisório, a legislação social anterior é revista e ampliada — jornada de 8 horas,

menores, mulheres, férias, juntas de conciliação e julgamento, contrato coletivo de

trabalho, etc. — projetando-se sua aplicação generalizada nos meios urbanos.

Paralelamente e, inclusive antecedendo o cumprimento efetivo das medidas de

“proteção ao trabalho”, é baixada uma legislação sindical tendente a vincular

estreitamente ao controle estatal a organização da classe operária (IAMAMOTO &

CARVALHO, 1996, p. 154-155)569.

Embora não assumida na imediaticidade ou de modo conscientemente declarado, a

concepção hegemônica de Estado presente no interior da categoria profissional é uma

concepção que se ampara nas definições ambíguas dadas pela doutrina social Católica em

franco e aberto flerte com as concepções do positivismo político (que se expressaram, sobretudo

no direito e como mostra o excerto acima de Iamamoto & Carvalho, no direito trabalhista) e do

funcionalismo durkheimiano. De modo indireto a dinâmica relacional entre Estado e Sociedade

Civil aparece sutilmente, quando a doutrina social católica se orienta para a intervenção junto ao

operariado, pois grande parte de seu aparato de ação é de origem estatal570

. Portanto, a

sociedade civil de que trata a concepção hegemônica, se volta para organizar a pregação sobre o

seu próprio ajustamento moral às normas e dogmas católicos ao mesmo tempo em que critica a

classe dominante pela generalização da “usura” que é tida como a base da exploração dos

trabalhadores e causadora do agravamento da “questão social”571

.

A sociedade é vista pela Igreja como um todo unificado através de conexões orgânicas

existentes entre seus elementos, que se sedimentam através das tradições, dogmas e

princípios morais de que ela é depositária. Família, corporação, nação, etc., os grupos

sociais naturais, são organismos autônomos e não apenas mera soma dos indivíduos

que os constituem, pois possuem uma unidade independente. Indivíduos e fenômenos

sociais coexistem, em coesão orgânica com a sociedade em sua totalidade

(IAMAMOTO & CARVALHO, 1996, p. 161)572.

O Serviço Social do período não incorpora a noção de sociedade civil como expressão

de uma dinâmica classista. O uso corrente do termo “comunidade” reforça a visão estrutural-

funcional que associada aos postulados da doutrina social católica naturaliza a luta de classes e

569

IAMAMOTO & CARVALHO, Marilda Villela e Raul de. Relações sociais e serviço social no

Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez, 1996 (11ª edição). 570

Desde a regulação que o Estado exerce sobre as políticas até os instrumentos e meios disponibilizados

para a ação profissional. 571

Vide as encíclicas papais Rerum Novarum e Quadragesimo Anno. 572

Id. Ob. Cit.

Page 315: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

315

as condições de sobrevivência aviltantes das classes subalternas, ainda que a Igreja faça críticas

a expropriação do trabalho pelo capital. Nesta ótica, a sociedade civil não é tida como a

totalidade da esfera infraestrutural, mas como um conjunto de organismos isolados que se

articulam a partir de “funções” definidas no corpo social, ao gosto durkheimiano:

Entre o Estado e o indivíduo há, portanto, uma série de grupos naturais que limitam a

ação dominadora do primeiro, pois o poder político deve ser compatível com a

legítima existência dos grupos sociais. O governo tem uma esfera de ação

organicamente delimitada, pois, ao lado de sua soberania, os costumes, leis, tradições

e a normatividade transcendente da Igreja lhe servem de freio e orientam sua ação.

Nesse sentido, a intervenção do Estado na “questão social” é legitimada, pois em

função mesmo de suas características deve servir ao bem comum (IAMAMOTO &

CARVALHO, 1996, p. 161)573.

Então, a concepção de Estado que se pode inferir deste contexto nos parece ser mesmo

inspirada na concepção de Estado corporativo enunciado em Durkheim, sem, contudo

incorporá-la integralmente574

. Tal concepção apresenta uma arquitetura teórica racional que lhe

permite articular-se sem grandes problemas aos ambíguos nexos categoriais da doutrina social

católica, sobretudo, no que tange as perspectivas de generalização de uma “moral

integradora”575

.

O Estado corporativo brasileiro tal qual expresso no pensamento de intelectuais como

Oliveira Vianna576

se concretiza a partir da criação da “indústria nacional” que confere um tom

573

IAMAMOTO & CARVALHO, Marilda Villela e Raul de. Relações sociais e serviço social no

Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez, 1996 (11ª edição). 574

As referências que encontramos na literatura do Serviço Social sobre a aproximação e incorporação do

funcionalismo durkheimiano neste período inicial de nossa história não são muito precisas. Isto pode se

dever ao fato de que a adesão a tal corpo teórico não foi total, pois isto pressuporia medidas de laicização

no tratamento as refrações da “questão social”, pois em Durkheim a Igreja pode funcionar como um

aparelho propagador da moral integradora, contudo, não se sobrepõe as demais “corporações”, ficando

assim, seu poder político, prejudicado. O arranjo metodológico e ideopolítico que permitiu tal

aproximação é tão ambíguo quanto a própria doutrina social católica que legitima e combate ao mesmo

tempo as diretrizes fundantes do modo capitalista de produção e reprodução social da vida. Isto é, se

unem pelo essencial e genérico e não pelo particular e específico. Isto também é possível, pois em

Durkheim a enunciação do Estado corporativo é descritiva, não contendo, de modo claro,

encaminhamentos acerca da instituição deste tipo de Estado, deixando a Igreja (e o Serviço Social) mais

livres para se relacionar com o Estado a partir do poder político que conquistam com suas instituições,

sobretudo, as educacionais e as de serviços sociais. 575

Iamamoto refere: “A intelectualidade católica procurará a adaptação à realidade nacional do espírito

das Encíclicas Sociais Rerum Novarum e Quadragesimo Anno, munindo a hierarquia e o movimento laico

de um arsenal de posições, programas e respostas aos problemas sociais, ao formular uma via cristã

corporativa para a harmonia e progresso da sociedade: Deus é a fonte de toda justiça, e apenas uma

sociedade baseada nos princípios da cristandade pode realizar a justiça social”. IAMAMOTO &

CARVALHO, Marilda Villela e Raul de. Relações sociais e serviço social no Brasil: esboço de uma

interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez, 1996, p. 161 (11ª edição). 576

Oliveira Vianna é um dos expoentes do Estado corporativo e autoritário que teve em governos como o

de Vargas sua expressão mais acabada. Ver: VIEIRA, Evaldo. Autoritarismo e corporativismo no Brasil:

Oliveira Vianna & Companhia. São Paulo: Cortez, 1981.

Page 316: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

316

modernizador a noção de Estado-nação. Sendo este (a industrialização) um dos fatores presentes

inequivocamente nos projetos desenvolvimentistas, a emergência do Estado corporativo reforça

o raciocínio durkheiminano de que a corporação deveria também tomar a amplitude da indústria

nacional “convertendo-se em instituição pública” genérica. O autor de Da divisão social do

trabalho se ocupa em esclarecer a função do Estado resgatando a “história das corporações” —

da Roma antiga as estruturas políticas do século XVI e XVII — e, critica os economistas

liberais por não verem a função de “solidariedade” presente nas corporações, função esta

responsável por garantir a “coesão” social. Para estes, segundo o autor, a função das

corporações na divisão social crescente do trabalho é apenas produzir mais e acirrar a livre

concorrência e não a solidariedade. Durkheim então passa a anunciar suas aspirações de que a

sociedade se constituísse como um grande conglomerado de corporações plasmadas no Estado:

Agora que a comuna, de organismo autônomo que foi antigamente, tem vindo a

dissolver-se no Estado como o mercado municipal no mercado nacional, não é

legítimo pensar que a corporação deveria, também ela, sofrer uma transformação

correspondente e tornar-se a divisão elementar do Estado, a unidade política

fundamental? A sociedade, em vez de permanecer o que é ainda hoje, um agregado de

distritos territoriais justapostos, poderia tornar-se um vasto sistema de corporações

nacionais (DURKHEIM, 1977)577.

Sob a ótica da “função social”, isto é, cada “organismo” presente na sociedade possui

uma função específica cujo cumprimento adequado lhe vincula ao “todo” que o transcende: o

Estado tem sua “função” e as “corporações” também, é justamente na relação entre as

corporações e o Estado que Durkheim busca justificativa para as “funções sociais” de ambos. A

busca inequívoca do cumprimento destas “funções” é que garante a devida coesão social: o

funcionamento adequado da sociedade tal qual um organismo (biológico) vivo. Contudo, a

busca pelo cumprimento das funções de cada grupo social se dá por meio de uma disciplina

moral, moral que regula também a vida econômica:

O direito e a moral são o conjunto dos laços que nos prendem uns aos outros e à

sociedade, que fazem da massa dos indivíduos um agregado e um todo coerente. É

moral, pode dizer-se, tudo o que é fonte de solidariedade, tudo o que força o homem a

contar com outrem, a pautar os seus movimentos por outra coisa diferente dos

impulsos do seu egoísmo e a moralidade é tanto mais sólida quanto estes laços são

mais numerosos e mais fortes (DURKHEIM, 1977)578.

577

DURKHEIM, Emile. Da divisão do trabalho social. Lisboa: Editora Presença, 1977 (vol. 1, p.37). 578

Id.

Page 317: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

317

Portanto, a regulamentação da vida econômica pelas corporações sob a moral que as

revestem demonstra o valor do estado de equilíbrio alcançado quando se legitimam as

corporações para frear os impulsos egoístas de industriais e operários, de comerciantes e de

empregados, e assim por diante.

Durkheim está impressionado com a “questão social”, tentando uma solução para ela.

Raciocinando neste sentido, a corporação tem sua função: formado o grupo

profissional, este estabelece uma disciplina profissional, pois o poder coletivo é o

poder moral. Reveste-se desta maneira a corporação de uma função de controle da

instabilidade social. (...) Durkheim aproxima a corporação ao Estado, pois ela “está

destinada a tornar-se a base ou uma das bases essenciais de nossa organização

política”, cedendo-lhe o feitio de colégio eleitoral, com a finalidade de tornar as

assembleias políticas mais representativas da diversidade dos interesses sociais e de

suas relações (VIEIRA, 1981, p. 18)579.

A integração da corporação ao tecido estatal para Durkheim é inevitável. O direito (tão

importante quanto a moral) se aplica em suas diferentes áreas como uma espécie de aplicação

particular da legislação geral, como o direito do trabalho, por exemplo580

. A restauração da

corporação na sociedade moderna funcionaria como uma espécie de “poder legislativo”

incumbido de regular, por exemplo, os contratos de trabalho e administrar “as organizações de

seguro social” e as contendas trabalhistas.

Durkheim concebe uma sociedade pluralista de “grupos secundários” protetores dos

interesses individuais, enquanto o Estado se afigura como “individualista”, sem estar

confinado à “administração de uma justiça totalmente negativa”, reconhecendo-se o

“direito e o dever de desempenhar um papel mais amplo em todas as esferas da vida

coletiva, sem ser mística”. Considerando o Estado como “órgão especial” destinado a

gerar “representações” de valor coletivo, o pensamento durkheimiano dirige-se ao

intervencionismo estatal na sociedade, sem recorrer à integral homogeneidade

(VIEIRA, 1981, p. 19)581

Esta concepção se adequa ao projeto profissional hegemônico do Serviço Social no

contexto pré-reconceituação (e o ultrapassa) embora não se constitua como objeto de interesse

científico da categoria profissional582

. No âmbito da formação profissional um aspecto curioso:

579

VIEIRA, Evaldo. Autoritarismo e corporativismo no Brasil: Oliveira Vianna & Companhia. São

Paulo: Cortez, 1981. 580

Por este motivo que a legislação trabalhista é sempre central no escopo desenvolvimentista. Ela

funciona como um poderoso elo de ligação para o pacto entre classes. 581

Id. Ob. Cit. 582

Iamamoto & Carvalho lembram que os temas recorrentes nos eventos profissionais eram vinculados à

“prática”, isto é, refletiam diretamente as demandas postas no mercado de trabalho aos assistentes sociais.

Temas como Serviço Social no meio Rural, Serviço Social Industrial, Serviço Social em instituições

Page 318: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

318

desde os cursos organizados pelo Centro de Estudos e Ação Social (CEAS) em 1936 podemos

perceber na formação curricular “disciplinas” afetas ao campo da ciência e filosofia políticas

cuja natureza de seus campos de conhecimento constitutivos requisita o recurso ao estudo da

problemática teórico-prática do Estado, todavia, o tratamento dispensado a elas durante a

aplicação dos cursos subtraiu qualquer tratamento crítico à problemática colocando em seu lugar

o reforço as funções repressoras e moralizadoras do Estado. Portanto, neste âmbito não há que

se falar na ausência do “Estado” como conceito, mas sim num tratamento específico dele que

reforça o substrato liberal de Estado asséptico e acima das classes. O curso ministrado no

âmbito do CEAS em 1936, por exemplo, continha as disciplinas “teóricas” de: Economia

Política, Psicologia, Sociologia, Higiene, Direito, Anatomia, Prática de Enfermagem,

Estatística, Religião, Pedagogia, Direito e Serviço Social. No campo “prático” destacavam-se:

relatórios, inquéritos, visitas e estágios (LIMA, 1987)583

. Ou seja, a Economia Política, o

Direito e a Sociologia serviam sobremaneira para contribuir na formação de quadros que

justificassem a lógica dominante do Estado burguês em conformidade a concepção que se tinha

da própria profissão: uma atuação, assim como o Estado, asséptica e acima das classes:

(...) o profissional de serviço social atuava nos diversos grupos que constituem a

sociedade: família, escola e outros, “procurando adaptar o indivíduo às condições de

existência, procurando modificar essas condições quando possível e necessário, e

também procurando concorrer para a criação de novas condições de bem-estar social”.

O trabalho exigia um conhecimento claro e exato dos fenômenos sociais, para uma

atuação eficiente face aos problemas a serem enfrentados (LIMA, 1987)584.

Percebe-se que desde a gênese a justificativa do “conhecimento dos fenômenos sociais”

permanece como um requisito fundamental à formação profissional. É, pois o debate sobre as

formas de buscar e tratar este conhecimento que tencionou e ainda tenciona os projetos

profissionais e de formação em constante disputa, afinal desde o nascimento da profissão até os

dias atuais a “teoria” social nunca deixou de ser convocada como estatuto mediativo entre a

profissão e a realidade, o que decorre desta convocação é uma pluralidade de referências que

acabam por sustentar as disputas ideopolíticas em seu interior.

Esta condução conservadora não tarda a incomodar. A insatisfação em relação ao

tradicionalismo e o conservadorismo do Serviço Social é animada em atos recíprocos aos

movimentos de resistência as ditaduras existentes no Brasil e na América Latina, levando a

médicas, Serviço Social da infância e adolescência, Serviço Social e Família, Educação Popular, dentre

outros eram os temas. IAMAMOTO & CARVALHO, Marilda Villela e Raul de. Relações sociais e

serviço social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez,

1996, p. 161 (11ª edição). 583

LIMA, Arlete Alves. Serviço Social no Brasil: a ideologia de uma década. São Paulo: Cortez, 1987. 584

Id.

Page 319: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

319

instalação de um movimento heterogêneo e plural na direção de uma “reconceituação” do

Serviço Social orientada para “ruptura” com os padrões conservadores585

:

Nas suas expressões diferenciadas, ela [a intenção de ruptura] confronta-se com a

autocracia burguesa: colidia com a ordem autocrática no plano teórico-cultural (os

referenciais de que se ocorria negavam as legitimações da autocracia), no plano

profissional (os objetivos que se propunha chocavam-se com o perfil do assistente

social requisitado pela “modernização conservadora”) e no plano político (suas

concepções de participação social e cidadania, bem como suas projeções societárias,

batiam contra a institucionalidade da ditadura). O fato central é que a perspectiva da

intenção de ruptura, em qualquer das suas formulações, possui sempre um

ineliminável caráter de oposição em face da autocracia burguesa, e este tanto a

distinguiu — enquanto vertente do processo de renovação do Serviço Social no Brasil

— das outras correntes profissionais quanto respondeu pela referida trajetória

(NETTO, 2002, p. 248)586.

Este movimento, como já se enfatizou: heterogêneo e plural, se gesta no bojo das

contradições que regem a dinâmica mais ampla do movimento societário, sobretudo na

conjuntura de 1965 a 1975. Em outros termos, o Movimento de Reconceituação apresentou

como vimos sumariamente, uma unidade oposicionista conduzida pela convergência de

“olhares” ao “inimigo comum”: a autocracia burguesa. Suas distinções internas se expressavam

nas divergências sobre a forma de encaminhar e finalizar o combate ao “inimigo”, e, subjacente

ao debate das táticas e estratégias emergiam discordâncias sobre a natureza e o escopo

constitutivo deste inimigo (ainda que de modo marginal), e, por fim, se travavam embates

acerca da natureza e o papel da profissão no contexto da sociedade de classes em disputa.

Estas distinções se amparavam em referências teóricas diversas mediadas pela prática

partidária que era entendida como a forma privilegiada dos assistentes sociais demonstrarem seu

compromisso político. A opção de distintos grupos de “reconceituadores” pela tradição marxista

como suporte teórico-metodológico não significou unidade conceitual a totalidade do grupo, ao

contrário, permitiu-se render a um ecletismo que em última análise redundara no tratamento

positivista deste mesmo marxismo.

585

Raichelis (2006) complementa: “Na América Latina, esse processo se cruza com as expectativas de

mudança desencadeadas com a Revolução Cubana, que alimentou a possibilidade histórica de construção

de uma nova ordem societária no continente. Esse quadro penetra mais diretamente no Serviço Social a

partir da revisão crítica que se processa nas ciências sociais, com o debate sobre a dependência e as

teorias do desenvolvimento; com a emergência da chamada Igreja Popular e a teologia da libertação; com

a presença ativa do movimento estudantil e a contestação nas universidades; com o movimento de

contracultura que rompe valores tradicionais e dissemina, especialmente na juventude, novos

comportamentos e expressões culturais comprometidos com a transformação social”. 586

NETTO, José Paulo. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64.

São Paulo: Cortez, 2002 (6ª edição).

Page 320: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

320

O encontro do Serviço Social com a tradição marxista (...) não foi orientado para as

fontes clássicas e contemporâneas, abordadas com uma explicita preocupação teórico-

crítica. Deu-se predominantemente por manuais de divulgação do “marxismo oficial”.

Aliou-se a isso a contribuição de autores “descobertos” pela militância política, como

Lênin, Trotsky, Mao, Guevara — cujas produções foram seletivamente apropriadas,

numa óptica utilitária, em função de exigências prático-imediatas, prescindindo-se de

qualquer avaliação crítica. A esse universo teórico eclético, soma-se, ainda, pela via

predominantemente acadêmica, rudimentos do estruturalismo marxista de Althusser,

em especial suas análises dos “aparelhos ideológicos do Estado” e seu debate sobre a

“prática teórica” (...) Em outras palavras: foi a aproximação a um marxismo sem

Marx (IAMAMOTO, 2003, p. 211)587.

Por outro lado, na esteira do debate oposicionista da “reconceituação” — oposição tanto

a autocracia burguesa quanto ao tradicionalismo na profissão — surge a possibilidade dos

amplos setores políticos de esquerda e com eles o serviço social agregarem à discussão a

problemática teórico-prática do Estado como componente teórico e material às estratégias de

luta. Neste sentido, destacaram-se as preocupações dos “reconceituadores” com a situação de

dependência socioeconômica dos países latino-americanos588

em relação aos países de

capitalismo avançado, considerando, principalmente, a influência do pensamento cepalino que

indicava a aplicação de medidas desenvolvimentistas como forma de “superar” o

subdesenvolvimento mesmo em regimes autocráticos burgueses. Deste modo, o debate sobre

“dependência” e a dialética “subdesenvolvimento-desenvolvimento” que redundou na teoria da

dependência589

e na ascensão política de intelectuais que se dedicaram ao tema (como

mostramos nos capítulos II e III) se agrega ao escopo das categorias que darão sustentação as

estratégias de ruptura com o tradicionalismo profissional. Verifica-se aí uma aproximação do

Serviço Social “com o vasto campo das ciências econômicas, sociais e políticas”

(IAMAMOTO, 2003, p. 209).

Esta aproximação, ao mesmo tempo em que qualifica e propicia a construção dos

caminhos que levam ao amadurecimento da profissão por forçá-la a dialogar com outros

587

IAMAMOTO, Marilda Villela. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação

profissional. São Paulo: Cortez, 2003 (6ª edição). 588

Estamos tratando das particularidades do Movimento de Reconceituação no Brasil, contudo, como se

trata de um movimento latino-americano, vez ou outra, faremos referência a aspectos que aparecem em

comum no modo como os diferentes países encaminharam o debate “reconceituador”. 589

Embora já tenhamos tratado, é importante que se retome que a Teoria da Dependência emerge no

final dos anos 1960 e início dos anos 1970 sob as tintas de intelectuais como Ruy Mauro Marini, André

Gunder Frank, Theotonio dos Santos, Vania Bambirra, dentre outros e preconiza que o

“desenvolvimento” não é a etapa posterior ao “subdesenvolvimento” depois de alcançadas um conjunto

de condições econômicas e materiais adequadas à este fim, como propalava a Cepal e mesmo alguns

partidos comunistas da época. Neste corpo teórico o “subdesenvolvimento” atrela-se a situação de

dependência dos países da “periferia” capitalista em relação aos países de “capitalismo” central. A

superação da “dependência” se coloca deste modo, como condição para a superação do desenvolvimento

desigual e combinado dos países periféricos.

Page 321: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

321

sujeitos, sem a admissão do estatuto ontológico no trato do conhecimento sobre o complexo

social, tende a fragmentar-se, levando, novamente ao utilitarismo no trato do referencial teórico-

analítico. Ou seja, os grupos a esquerda do Movimento de Reconceituação que puderam

dialogar com teorias como a Teoria da Dependência, por exemplo, foram buscar nelas nexos

lógicos que pudessem explicar a estrutura e o movimento das políticas de Estado, já

compreendidas como mecanismo de coesão social e “instrumento” fundante das “práticas

profissionais” e não o conjunto dos determinantes sócio-históricos que inscrevem tais políticas

no dinamismo contraditório das relações entre as classes. Além disto, estes grupos, dentre os

“reconceituadores” não eram significativos em quantidade e nem mesmo detinham a hegemonia

no debate e nas orientações que emanavam diretrizes ao projeto profissional da época. Como já

dissemos em nota, a “virada” de hegemonia se inicia com os acontecimentos dados a partir do

Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais em 1979. Ainda assim, efeitos positivos se notam

nesta tímida aproximação. O processo redundara na ruptura com os modos anteriores do serviço

social criticar o tradicionalismo, qualificando estes modos por agregar valor ao universo teórico

e político da profissão; trazendo possibilidades de politização efetiva de seus quadros com a

incorporação de referencias marxistas menos primárias; e, abrindo as bases para a construção de

projetos profissionais mais abrangentes590

. Por outro lado, não incidiu na ruptura com o ativismo

político confundido com “exercício profissional crítico”; com a adesão pragmática a

metodologismos591

; e, com o ecletismo. Sendo este último, um elemento destacado por vários

autores como significativo neste processo:

Esse ecletismo, expressando-se como conciliação no plano das ideias, aliava-se a um

tipo de chamamento à militância que diluía as bases propriamente profissionais,

típicas da inscrição do Serviço Social na divisão sociotécnica do trabalho (...)

Destarte, as formas específicas pelas quais se deu o referido encontro fizeram com

que se estabelecesse uma tensão entre os propósitos políticos anunciados e os

recursos teórico-metodológicos acionados para iluminá-los; entre pretensões

político-profissionais progressistas e os resultados efetivamente obtidos. Com isso o

discurso que se pretendia marxista passou a conviver com uma bagagem teórica

eclética, que não era capaz de operar a efetivação das intenções declaradas, fazendo

com que a ruptura anunciada não fosse integralmente realizada (IAMAMOTO,

2003, p. 212)592.

590

Além de Iamamoto (2003, p 205-218) ver também SILVA, Maria Ozanira Silva e. (coord.). O Serviço

Social e o Popular resgate teórico-metodológico do projeto profissional de ruptura. São Paulo:

Cortez, 1995; e, a sempre presente referência a Netto (2002). 591

Que Iamamoto classifica como “redução do método a pautas e procedimentos de intervenção” (2003,

p. 213). 592

IAMAMOTO, Marilda Villela. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação

profissional. São Paulo: Cortez, 2003 (6ª edição).

Page 322: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

322

Portanto, a categoria se vê diante de um dilema que mesmo hoje se repõe em essência,

embora se apresente de outras formas: a opção por um referencial teórico crítico de cariz

marxiano e marxista teria condições de se constituir em substrato teórico que fizesse o cravejar

da profissão à realidade?

A tentativa originada na Escola de Serviço Social da Universidade Católica de Minas

Gerais, na primeira metade dos anos 1970, conhecida como “método B.H.” é reconhecida pela

nossa literatura corrente como a primeira tentativa contundente nesta direção. Netto (2002) a

classifica, inclusive, como a primeira alternativa global ao tradicionalismo:

(...) o método que ali se elaborou foi além da crítica ideológica, da denúncia

epistemológica e metodológica e da recusa das práticas próprias do tradicionalismo;

envolvendo todos estes passos, ele coroou a sua ultrapassagem no desenho de um

inteiro projeto profissional, abrangente, oferecendo uma pauta paradigmática dedicada

a dar conta inclusive do conjunto de suportes acadêmicos para a formação dos quadros

técnicos e para a intervenção do Serviço Social (p. 276-277)593.

Embora a elaboração belo-horizontina tenha os méritos que Netto e outros autores

(SANTOS, 1999; SILVA & SILVA, 1995)594

arrolam, ela apresenta limites relacionados a

própria condição histórica em que emerge, que tem como característica principal a frágil

interpretação dos postulados da tradição marxista. Ou seja:

(...) suas fragilidades intrínsecas creditam-se aos limites e problemas inerentes ao viés

elementar com que se apropriou do substrato teórico-metodológico com que fundou

esta arquitetura – a vertente da tradição marxista em que se inspirou – e que a

comprometeu tanto mais intensivas foram aquelas preocupação de rigor e congruência

(NETTO, 2002, p. 289).

Logo, se verifica que a “inflexão na modalidade mesma de apropriação do referencial

próprio ao legado marxiano” creditada ao método B.H. “haveria de emergir uma década mais

tarde – e estaria configurado na reflexão de Iamamoto, pedra angular para erradicar da intenção

de ruptura as contrafrações empiristas, formalistas e (neo)positivistas” (id., p. 289).

Tanto neste contexto, quanto no contexto atual (quando se verificam os distanciamentos

entre a formação e o exercício profissional) o “problema” central não está na opção ideopolítica

pelo referencial teórico, mas sim no modo como este referencial ao ser “interpretado” se soma

ao repertório que o sujeito cognoscente já possui e as injunções e inferências que dele

593

NETTO, José Paulo. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64.

São Paulo: Cortez, 2002 (6ª edição). 594

SANTOS, Leila Lima. Textos de Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1999. Maria Ozanira Silva e.

(coord.). O Serviço Social e o Popular resgate teórico-metodológico do projeto profissional de

ruptura. São Paulo: Cortez, 1995.

Page 323: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

323

decorrem595

, mesmo que este processo esteja afeto ao âmbito da formação da consciência, ele

não prescinde da sua base material originária. Deste modo, a dinâmica social ampla e nela as

práticas sociais dos agentes particulares e singulares é que possibilitam a “ação real” ou aquilo

que a aproximação primitiva (e vulgar) da teoria identifica por “aplicação da teoria na

realidade”.

Em síntese, a análise das tendências histórico-metodológicas da profissão, de sua gênese

à conjuntura “reconceituadora” de 1965 a 1975, nos mostra que o debate sobre a problemática

teórico-prática do Estado não se impôs como uma necessidade na direção de agregar valor ao

conjunto de aportes teórico-metodológicos manipulados pelo corpo profissional.

Da gênese à “reconceituação” há um avanço significativo no que tange a incorporação

de categorias que se invocam como recurso subsidiário tanto às análises que se fazem quanto as

práticas que empreendem (um não sobrevive sem o outro), contudo, as escolhas destas

categorias – feitas a partir da confluência histórica – acabam por ter prevalência nas requisições

de autoconhecimento, autojustificativa e acomodação da profissão na divisão social do trabalho,

entendida como um grupo social específico com funções determinadas e relacionadas ao

“funcionamento” da sociedade em seu conjunto, encerrando como centrais categorias que lidam

diretamente com as manifestações evidentes da realidade social com as quais a profissão se

relaciona. O que faz da profissão uma corporação num Estado corporativo.

Neste sentido, o Estado não é tido como “categoria” ou como “objeto de interesse

científico”, mas sim como um ente social materialmente incorporado à dinâmica societal cuja

relação com a categoria se dá ora pelo reforço e legitimação a sua entificação como “ser”

responsável por organizar a coesão social em macro-escala, ora pela necessidade de combater os

excessos de autoridade que pratica quando exerce seu poder regulacionista mais pela força que

por consenso.

Em ambos os casos o domínio do aparato legal da violência aparece como uma

característica permanente do Estado, mas não serve para alça-lo ao universo da investigação.

Os avanços que se tem com a ampliação de fileiras críticas marxianas e marxistas e o

amadurecimento do Movimento de Reconceituação levam a preocupações com a dinâmica do

desenvolvimento das sociedades capitalistas dependentes, contudo, ao invés de significarem a

invocação destas categorias como substrato centralmente esclarecedor sobre o processo de

produção e reprodução material das iniquidades e contradições sociais e com isso aprimorar o

entendimento da natureza da profissão e seus projetos profissionais, levam antes a um ambíguo

caminho que se faz sentir até atualmente.

De um lado, permaneceram vivas as tendências tradicionalistas que tiveram no Estado

corporativo-burguês sua principal fonte de legitimação, o que conferiu fôlego ao projeto

595

Ainda que as exegeses tenham a propriedade de engendrar o pluralismo das ideias.

Page 324: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

324

profissional conservador para que se perpetuasse em conformidade a própria perpetuação deste

tipo de Estado. Portanto, para estes é necessário “pensar” o Estado a partir das capacidades de

suas funções de administração genérica da sociedade. Esta vertente, pela capilaridade que

encontra na sociedade, dada, sobretudo pelo pragmatismo alienante e alienador da

cotidianidade, influenciará significativos segmentos do campo crítico da profissão quando estes

incorporam a agenda “reformista” emanada do movimento comunista mundial596

. O debate

sobre as essencialidades constitutivas do Estado permanecerá lateralizado sobrepujado que será

à discussão sobre “os reparos necessários” em sua ossatura para aprimorar suas funções de

promoção do bem-estar e em última análise de agente “central” a superação da sociabilidade

burguesa. Esta tendência internacionalmente difundida no âmbito das esquerdas respeitou as

características próprias da conjuntura, da estrutura e das relações sociais de cada país,

transformando-a em algo cada vez mais difuso, afastando-se em alguns casos de seus propósitos

inaugurais597

.

Por outro lado, os segmentos profissionais que foram aos poucos incorporando e

mantendo a ortodoxia da agenda social revolucionária no interior da profissão pouco se dispõem

a “pensar” o Estado. Suas atenções se voltam ao combate que leve à sua destruição. As

referências de um marxismo-leninista lido às pressas permanecem fortes neste grupo que se vê

diante da quase inalcançável tarefa de conciliar a “prática profissional cotidiana” mediada

centralmente pelas políticas de Estado com um projeto societário que supere estas mesmas

“práticas” por superar antes o próprio Estado burguês.

A vertente mais ortodoxa deste grupo mantém viva, por seu turno, o ativismo político (e

partidário) como componente do projeto profissional, modernizando as diretivas da fase “mais

radical” do Movimento de Reconceituação que negara a ocupação por Assistentes Sociais de

alguns campos e “práticas profissionais” tidas como reprodutoras da dominação classista, onde

se destaca, por exemplo, a assistência social.

O tradicionalismo atualizado, o reformismo adaptado e o revolucionarismo598

com suas

crescentes diferenciações internas referendam o ecletismo que marcou este Movimento ao

596

A partir da II Internacional. 597

É o que veremos acontecer no Brasil na conjuntura dos anos 1990 quando o discurso reformista das

esquerdas é apropriado e submetido a um “reformismo de direita” legitimador do neoliberalismo, o que

Behring (2003) denominou de “contrarreforma”. BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em Contrarreforma

desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003. 598

O “revolucionarismo” no Serviço Social, reposto sob bases modernas na contemporaneidade, tende a

desconsiderar o complexo de mediações contraditórias que se colocam na relação entre o Estado e as

classes pela prevalência que atribui as macro-determinacoes econômicas. Trata por conservador qualquer

discurso ou ação que não sobreponha as determinações macro-estruturais às dinâmicas contraditórias das

lutas populares imediatas por melhores condições de sua reprodução social. Não se confunde, pois, com o

economicismo, pois é uma tendência ambígua que em última instância tende a negar a natureza

polarizada da profissão pelo conjunto de valores idealistas que imprime ao projeto profissional quando

esta se aproxima da dinâmica alienante e alienadora do cotidiano das massas e das políticas de Estado,

sem todavia, negar explicitamente a tensão e as disputas políticas reproduzidas no e pelo Estado. De certa

forma, é uma vertente coerente e racional no que tange a disseminação de valores antisistemicos que

Page 325: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

325

mesmo tempo em que repõe, de modo explícito, as crescentes dificuldades entre a articulação

das exegeses dos referenciais teórico-metodológicos críticos com o mercado de trabalho do

assistente social, levando a permanência de uma contradição que Iamamoto (2003) se referiu

como sendo uma contradição presente no Movimento de Reconceituação, mas que não se

esgotou nele:

(...) a coexistência de: “uma ética de esquerda e uma epistemologia de direita”, nos

termos de Lukács. (...) Origina-se daí [do Movimento de Reconceituação] um duplo

dilema até hoje presente na prática profissional: o fatalismo e o messianismo, ambos

cativos de uma análise da prática social esvaziada de historicidade (IAMAMOTO,

2003, p. 213)599.

4.2. Construções pós-intenção de ruptura

A incorporação de considerações sobre a problemática teórico-prática do Estado até quase

os fins dos anos 1970 foi restrita aos grupos que apresentavam maior resistência ao regime

autocrático burguês, mesmo com as ambiguidades que já demonstramos.

As crises epicentradas nas contradições internas do regime e impactadas pela crise do

capital em escala mundial600

promoveram um rearranjo no bloco no poder levando à

liberalização gradativa da autocracia burguesa.

O esgotamento do “milagre brasileiro” associou-se a revitalização de mais e maiores

movimentos populares contra o regime com destaque para o movimento popular pela moradia, o

movimento sindical saído da clandestinidade, os setores progressistas da Igreja Católica

(liderados pela Teologia da Libertação com capilaridade nas CEBs), o movimento estudantil,

setores da imprensa, etc.

As estratégias de “liberalização controlada” contavam com um novo plano de

desenvolvimento que admitia práticas redistributivistas como parte de sua política econômica. O

II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), sob o período Geisel (1975-1979) buscou

investir

articulam projeto profissional e projeto societário, mas se torna idealista e com isso apresenta seus limites

quando trata por “possibilismo” (Netto, 2004) as tendências que apontam para a construção de estratégias

profissionais críticas que contribuam para a politização das massas mediadas pelo exercício profissional

nos diferentes espaços socioocupacionais, como forma de trânsito à ordem socialista. Em síntese,

prospecta a viabilidade da revolução sem a mediação dos instrumentos que conferem o estatuto

professional ao Serviço Social pois estes não tem outra natureza a não ser reforçar os domínios

imperativos burgueses. Uma variação do fatalismo. O debate, por exemplo, sobre a natureza, condições e

possibilidades dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) é emblemático neste sentido. 599

IAMAMOTO, Marilda Villela. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação

profissional. São Paulo: Cortez, 2003 (6ª edição). 600

Crise do petróleo em 1977.

Page 326: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

326

(...) na conjugação da política de emprego com a política de salários; pela política de

valorização de recursos humanos, através de programas nas áreas de educação,

treinamento profissional, saúde e assistência médica, saneamento e nutrição; pela

política de integração social, através do PIS-PASEP, enquanto mecanismos destinados

a suplementar a renda, a poupança e o patrimônio do trabalhador; pela política de

habitação; pela ampliação da Previdência Social para atendimento de novas categorias

da população, principalmente os mais pobres; pela progressiva universalização da

legislação do trabalho e pela política de defesa ao consumidor para assegurar preços

mais baixos aos produtos de consumo básico (SILVA & SILVA, 1995, p. 36-37)601.

No governo seguinte (João Batista Figueiredo 1979-1985) a pressão social não diminui,

ainda que o controle social do Estado sobre a sociedade civil permanecesse forte. O movimento

por Anistia consegue algumas conquistas de sua pauta e aliado a outros movimentos sociais

imprimem a “luta por direitos” no cotidiano do debate político/cultural do país.

Esta efervescência, rudimentarmente sumarizada, repôs o debate sobre o “Estado” em novas

bases. Não pela construção de propostas consistentes sobre “modos” e “modelos” de Estado,

mas porque a sociedade civil ressurgia no cenário brasileiro como Sociedade Civil e não como

um agregado de grupos distintos unidos por “solidariedade” no cumprimento de suas funções

sociais. Isto é, as possibilidades que se avizinhavam do ocaso do regime autocrático burguês

animavam os diferentes grupos sociais que se identificavam por uma — tímida para os padrões

históricos universais, porém ousada para os padrões particulares brasileiros — solidariedade de

classes. Sendo assim, se passa a pensar de modo mais direto em um Estado voltado para a

Sociedade Civil, autoreconhecida agora como espaço político de classes em disputa. Este

processo permite, por exemplo, a criação de centrais sindicais e do Partido dos Trabalhadores

(PT) que aglutinará em seu interior vários segmentos representativos dos trabalhadores num

campo de centro-esquerda e a disseminação de correntes profissionais que denunciam o

ideologismo da “neutralidade” profissional, traço que ainda permanecia do tradicionalismo.

Como dissemos, a autoidentificação dos grupos sociais pela democracia como Sociedade Civil

levam ao reconhecimento do Estado como um espaço de tensões e conflitos, capaz de assimilar

os interesses dos segmentos populares fazendo valer suas aspirações em forma de direitos e

políticas públicas. A difusão da obra do marxista italiano Antonio Gramsci contribui para a

incorporação de sua noção de Estado Ampliado e das disputas por hegemonia. As inflexões na

categoria se fazem notar a partir

601

SILVA & SILVA, Maria Ozanira da. O Serviço Social e o popular: resgate teórico-metodológico

do projeto profissional de ruptura. São Paulo: Cortez, 1995.

Page 327: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

327

(...) da tentativa de avanço na organização política dos Assistentes Sociais a partr de

1979, o que repercute no processo de preparação e realização do III Congresso

Brasileiro de Assistentes Sociais, nesse mesmo ano, quando a direção conservadora é

questionada e os convidados especiais, representados pelas autoridades do regime

militar são substituídos por dirigentes de organizações populares. O “ano da virada”,

como ficou conhecido 1979, é marcado por um movimento de oposição à direção

conservadora do Conselho Regional de Assistentes Sociais de São Paulo, dando-se a

rearticulação da Associação Profissional de Assistentes Sociais, também de São

Paulo, com vitória da chapa de oposição, na busca do fortalecimento do movimento

sindical no interior da categoria (SILVA & SILVA, 1995, p. 40)602.

Essa iniciativa repercute em nível nacional, resgistrando-se o esforço de articulação

do movimento sindical dos assistentes sociais, com reativação de alguns sindicatos,

algumas associações e criação de novas associações profissionais, que,

posteriormente, se transformam em sindicatos estaduais, permitindo, em 1983, a

criação da Associação Nacional de Assistentes Sociais (ANAS). Ao ser transformada

numa federação sindical, a ANAS, juntamente com os sindicatos estaduais, o então

Conselho Federal de Assistentes Sociais (CFAS), também pressionado a incorporar as

novas demandas que os setores populares colocam para a profissão, e a Associação

Nacional de Ensino de Serviço Social (ABESS) representam o quadro organizativo,

através do qual a categoria dos assistentes sociais não só força mudanças no quadro da

formação profissional e na prática do exercício profissional, como também se articula

com as lutas políticas mais amplas dos trabalhadores e dos movimentos populares

(Silva & Silva, 1995, p. 40-41)603.

Deste modo, é a própria realidade que impõe à categoria a necessidade de se repensar a

partir das contradições imanentes da sociedade burguesa que não apresenta na (re)

democratização possibilidades de superá-las604

sem a ruptura radical do capitalismo como modo

de produção dominante, todavia, altera o quadro de corelações de forças que servirá de base

para emoldurar o chão histórico na perspectiva da transição605

.

602

SILVA & SILVA, Maria Ozanira da. O Serviço Social e o popular: resgate teórico-metodológico

do projeto profissional de ruptura. São Paulo: Cortez, 1995. 603

Id. 604

Ao contrário, o modo democrático burguês só repõe em bases ainda mais consistentes as diretivas do

modo de produção capitalista, pois aprofunda sua base de sustentação ideológica tanto pelo

estranhamento do trabalho quanto pela socialização da cultura burguesa. Potyara Pereira esclarece de

modo bastante acessível as motivações históricas que levam o capitalismo a escolher a “democracia

liberal de massas” como a melhor forma política de alcançar seus intentos reprodutivos. Nesse sentido,

ver PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. Estado, sociedade e esfera pública. In Serviço Social:

direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009 (p. 285-300). 605

Nesse momento as esquerdas anticapitalistas já protagonizavam o debate sobre a democracia burguesa

como fase necessária ou não para a transição socialista. Em meio a efervescência da retomada das

“liberdades políticas” a perspectiva da ruptura radical com a ordem sem a mediação dos valores

democráticos burgueses fora diluída em meio a retomada do movimento sindical (que, embora possa

incorporar um projeto anticapitalista como horizonte, busca em primeira instância melhorar as condições

dos trabalhadores na desigual relação capital-trabalho) e de partidos de esquerda fora do espectro das

organizações da esquerda mundial como o próprio PT. É neste momento que se cria um relativo consenso

Page 328: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

328

Este talvez seja o maior salto qualitativo na história da profissão até hoje606

. Unindo a ação

concreta de ruptura com a direção conservadora da profissão à incorporação de substratos

teóricos que tiveram como fulcro analisar a emergência e desenvolvimento de sociedades

capitalistas complexas do ocidente607

, conseguem buscar fôlego para iniciar o caminho de

superação das análises unilaterais desprovidas do “contraditório” e das “mediações” que se lhes

articula.

Como referiu Netto (2002)608

os estudos de Iamamoto se colocam para a categoria como

chaves heurísticas que se somam ao esforço de distinguir a profissão do partido, o Estado do

governo, os interesses profissionais dos interesses institucionais, as possibilidades de ação

interventiva dos limites postos pela realidade objetiva, a exegese empiricista da teoria do

tratamento dialético da mesma, as funções coercitivas do Estado das funções de preservação das

“liberdades individuais e coletivas” e assim por diante609

.

As “coisas começam a ser acomodadas em seu lugar”, pois o recurso a tradição marxista

(que começa a se tornar mais marxiano que marxista) se faz por um itinerário de busca tal qual

se apresenta na matriz, em Marx. As categorias que se invocam são aquelas que se constituem

como “determinantes” a configuração do “ser” significando formas deste “ser”. Assim, a

produção e a reprodução das relações sociais, possíveis apenas pela ação transformadora do

homem sobre a natureza se conforma como a base de todo o conhecimento que a partir dali se

produz no campo profissional que se entende signatário desta tradição.

Mesmo esta apropriação, por mais consensual que fosse ao grupo que conquista hegemonia

no pós-1979, não se dá sem conflitos, contestações e distinções em seu próprio âmago, todavia,

há que se considerar o seu papel no fortalecimento da vertente crítica que se espraia

rapidamente na academia, porém ainda como reflexos tímidos na reversão da “ação

profissional” que insistia em reproduzir rotinas previamente estabelecidas alheias à vontade dos

profissionais610

, na maior parte das vezes reforçando a subalternidade dos usuários das políticas

manipuladas pelos Assistentes Sociais.

no interior da profissão sobre a sua aliança estratégica com a classe subalterna na perspectiva da defesa

dos direitos e das políticas públicas, sobretudo, as políticas de trabalho, previdência e saúde, o que leva,

inevitavelmente, ao amadurecimento sobre a natureza polarizada da profissão como mostrará mais tarde a

produção de Iamamoto. 606

Esta afirmação é relativizada, pois entendemos que se faz necessário outros e novos estudos que

explicitem com maior profundidade os movimentos de continuidade e rupturas no interior da profissão

em articulação orgânica com a dinâmica societária. Fazer este estudo não é nossa intenção nesta tese e

abordá-lo em outros aspectos, além dos que aqui arrolamos desviaria o foco central de nossos

argumentos. Fica deste modo sugestionado uma motivação para outras pesquisas. 607

É o que faz Gramsci. 608

NETTO, José Paulo. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64.

São Paulo: Cortez, 2002 (6ª edição). 609

Além do significado destes elementos distintivos na ordem burguesa evidenciando seus limites. 610

Sendo esta uma das características estruturais da profissão na ordem burguesa. Netto, em Capitalismo

Monopolista e Serviço Social (2003) e Iamamoto em toda sua produção referida à profissão, esclarecem

que o Serviço Social se constitui também por uma dimensão que extrapola a vontade dos agentes

Page 329: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

329

Os caminhos encontrados por este grupo, que assume a vanguarda profissional (e passa a se

autodenominar com este título), para articular os postulados teóricos dialéticos ao exercício

profissional cravejado de conservadorismo consistiram em situar o Assistente Social como um

profissional que se vincula as aspirações populares (mediada pela própria profissão e não pelo

partido) através do fortalecimento das lutas pelo atendimento às demandas do povo por meio

dos direitos e da política pública611

.

Mais uma vez a atenção dispensada ao Estado se volta para sua função de atendimento a

estas demandas, cada vez mais democratizadas pelo aumento da permeabilidade do Estado à

elas612

.

A promulgação da Constituição Federal em 5 de outubro de 1988 consolida esta perspectiva

pois não só registra na Lei Maior a obrigação estatal em prover o acesso à direitos por meio de

bens e serviços públicos como também aponta diretrizes para a democratização do Estado.

A profissão se vê em novo dilema que divide a “vanguarda” em várias posições das quais se

destacam duas. De um lado, um grupo entende a luta por direitos como uma expressão da luta

de classes e como ação intermediária entre a sociedade burguesa do presente, a sociedade de

transição (que estipula novos padrões ao desenho e funções do Estado) e a sociedade

emancipada, onde o Estado não se fará mais necessário.

Esta corrente, também com distinções internas, no geral admite o Estado como ente de

natureza relacional, portanto, sem autossuficiência ante a sociedade e o principal, abdicando da

interpretação unilateral do Estado como instrumento exclusivo da classe dominante (PEREIRA,

2009, p. 292)613

:

profissionais, pois sua legitimidade e razão histórica no mercado particular de trabalho que lhe confere,

associado a outros aspectos, estatuto profissional, são também determinadas pelas instituições

empregadoras, pelos modos como a sociedade “pactua” o enfrentamento às refrações da “questão social”

pela via estatal e pelas representações materiais e simbólicas que a classe demandante prioritária dos

serviços sociais faz da profissão e do modo de atendimento às suas demandas. 611

Mais tarde, sobretudo, na conjuntura dos anos 1990 em diante, esta perspectiva acirrará suas tensões

internas, pois os limites e as possibilidades da luta por direitos na ordem burguesa tendem a ser

amalgamados por projetos que incluem a disputa pelo poder político na sociedade (o que implica para

alguns a disputa pelo aparelho do Estado) e tais perspectivas tendem a acelerar a cisão entre o

“reformismo” e o “revolucionarismo”. Sobre este processo retornaremos mais adiante. 612

Sempre com muita luta popular, que aos poucos vai possibilitando um duplo e contraditório

movimento: as classes subalternas reconhecem de modo crescente as possibilidades de disputarem

hegemonia ao mesmo tempo em que as disputas se voltam à busca de interesses cada vez mais cindidos,

isto é, se de um lado há a identificação classista do conjunto dos trabalhadores, por outro, se vê a

fragmentação da luta geral causada pelas reivindicações de pautas imediatas e circunscritas a frações de

classe identificadas por características particulares, emergem: o movimento pelos direitos da criança e do

adolescente, o movimento pelos direitos da pessoa idosa, o movimento pelo direito das pessoas com

deficiência, o movimento em defesa da população em situação de rua, o movimento de mulheres, o

movimento da igualdade racial, o movimento de juventude, o movimento LGBTT pela diversidade de

gênero, dentre muitos outros. (em 1995, no governo Cardoso é lançado o I Programa Nacional de Direitos

Humanos, que de modo muito superficial começa por tratar as demandas destes segmentos). 613

PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. Estado, sociedade e esfera pública. In Serviço Social:

direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009.

Page 330: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

330

Na verdade, ele [O Estado] é uma instituição constituída e dividida por interesses

diversos, tendo como principal tarefa administrar esses interesses, mas sem

neutralidade. É por isso que Poulantzas o define como uma condensação de relações

de forças, isto é, uma condensação de forças materializada num bloco no poder ou

num pacto de dominação que exerce o seu domínio por meio de um aparato

institucional (burocrático, jurídico, policial, ideológico) sobre a sociedade, embora

seja influenciado por esta. Assim, o poder do Estado representa a força concentrada e

organizada da sociedade (o bloco no poder) com vista a regular a sociedade em seu

conjunto (PEREIRA, 2009, p. 292)614.

Nesta direção se registra um avanço conceitual que incorpora “instrumentos” próprios da

sociedade burguesa (o direito e a política social) como “instrumentos” que ao se plasmarem na

dinâmica das contendas sociais permitem que a classe subalterna se aproprie deles quando

fissuras emergem desta luta.

Esta esquemática, embora coerente com os limites impostos à profissão pela sua própria

natureza histórica é também uma arriscada operação. Pois, ao valorizar “os direitos” e a

“política pública” como “mediação” substantiva das relações entre o Estado e as classes, precisa

para permanecer num campo antisistêmico, invocar uma concepção de direito e de política

pública que negue a ideia de “jusnaturalismo” (de pacto social visando harmonização e de onde

o Estado emerge da elevação social da sociedade civil) onde o exercício “democrático” e

“republicano” dos direitos suplantaria as formas estratégicas de dominação615

de classes. Esta

concepção está no cerne da escolha da democracia liberal pelo capitalismo como forma mais

acabada para levar a cabo seus intentos reprodutivos.

A ambiguidade revestida na máxima “todos são iguais perante a lei”616

permite em um só

tempo o amparo (marginal) legal das massas populares aviltadas pelos padrões de pobreza e

desigualdade de sua reprodução social e a manutenção dos níveis de dominação e exploração

cometidas pela burguesia por mascarar esta mesma dominação e exploração pelo discurso das

“liberdades individuais” e da “igualdade de oportunidades”.

Este grupo profissional ao se deparar com tal dilema é pressionado pela própria dinâmica do

desenvolvimento societal capitalista quando este amplia as estratégias de acumulação fazendo

uso de “políticas desenvolvimentistas” que contam com a ampliação de ações redistributivistas

e ampliação das políticas sociais, redundando inevitavelmente na diversificação do mercado e

das atividades profissionais dos e para os Assistentes Sociais.

614

PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. Estado, sociedade e esfera pública. In Serviço Social:

direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009. 615

Sendo esta a aproximação primeira que se costuma fazer quando se fala em defesa de direitos,

sobretudo, quando o agente profissional não se apropriou “adequadamente” do repertório crítico histórico

e dialético. 616

Que aparece na maior parte das Constituições nacionais dos países de democracia liberal. No Brasil

figura no artigo 5º, capítulo I de nossa Constituição Federal de 1988.

Page 331: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

331

Denunciar o caráter contraditório e a hegemonia classista que reveste esse processo é

entendido como insuficiente para prospectar “a materialização de um projeto profissional” que

articula a ação profissional a um projeto societário alternativo a ordem do capital. É preciso ir

além. Neste sentido, o aprofundamento da problemática teórico-prática do Estado se coloca

como um substrato fundante à superação ou no mínimo maior esclarecimento sobre tais

dilemas.

Neste sentido, poucas são as produções no âmbito do Serviço Social que trazem tal

problemática em profundidade a ponto de agregar um debate sobre a estrutura real do Estado

que queremos ter. Falamos, outrossim, do Estado que temos e não daquele que precisaríamos ter

para prospectar a transição socialista617

.

Mesmo sob o risco de sermos reducionistas, ousaríamos afirmar que dentre as produções

destacadas no campo da vanguarda profissional as que mais se aproximam ao preenchimento

destas lacunas neste grupo que destacamos são mesmo as produções de Iamamoto (1996, 2002,

2003, 2007, 2008, 2009) e de Pereira (1996, 2002, 2008, 2009, 20012)618

. A primeira por operar

a perspectiva de que “as demandas e requisições sociais se apresentam à profissão [como]

expressão das forças sociais que nelas incidem: tanto o movimento do capital quanto os direitos,

valores e princípios que fazem parte das conquistas e do ideário dos trabalhadores” (2009, p.

24)619

.

617

Entendemos que o papel em apresentar ao corpo social um modelo de Estado concebido idealmente

em bases materiais que se volte hegemonicamente (ou no seu todo) aos interesses da população tem em

uma profissão apenas uma dimensão marginal. Este papel cabe ao agente da revolução: as massas

proletárias organizadas em seus partidos e movimentos sociais populares. A categoria profissional é parte

deste processo e não a totalidade dele. Ademais, os vínculos que podem ser estabelecidos entre a

profissão e o projeto revolucionário esbarram nos limites impostos pela institucionalidade de uma

profissão regulada pelo direito positivo e por instituições que se constituem em aparelhos de disputa por

hegemonia. Isto tudo, sem prejuízo de que seus quadros, sobretudo, os acadêmicos, possam se debruçar

sobre a questão contribuindo com o debate mais amplo, para além de seus muros. Este, inclusive, é o

caminho que queremos apontar nesta tese: a necessidade do Serviço Social abandonar a omissão sobre a

problemática teórico-prática do Estado de modo a ampliar sua contribuição a luta antisistemica ao mesmo

tempo em que aprimorar as diretrizes táticas de seu projeto profissional. 618

Da lavra de Iamamoto: Relações Sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de interpretação

histórico-metodológica. São P3aulo: Cortez, 1996 (11ªed.); Renovação e Conservadorismo no Serviço

Social: ensaios críticos São Paulo: Cortez, 2002 (6ª ed.); O Serviço Social na contemporaneidade:

trabalho e formação profissional. São Paulo: Cortez, 2003 (6ª ed.); Serviço Social em tempo de capital

fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. São Paulo: Cortez, 2007; Estado, classes

trabalhadoras e política social no Brasil. In BOSCHETTI, Ivanete (et ali). Política Social no capitalismo:

tendências contemporâneas. São Paulo Cortez, 2008; O Serviço Social na cena contemporânea. In

Serviço Social Direitos Sociais e Competências Profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009. Das tintas

de Pereira: A Assistência Social na perspectiva dos direitos: crítica aos padrões dominantes de proteção

social aos pobres no Brasil. Brasília: Thesaurus, 1996; Estado, Regulação Social e Controle

Democrático. In BRAVO & PEREIRA, Maria Inês Souza & Potyara A.P. Política Social e Democracia.

São Paulo: Cortez, 2002 (2ª ed.); Necessidades Humanas subsídios a crítica dos mínimos sociais. São

Paulo: Cortez, 2002 (2ª ed.); Política Social temas & questões. São Paulo: Cortez, 2008. Utopias

desenvolvimentistas e política social no Brasil. In Revista Serviço Social e Sociedade nº 112. São Paulo:

Cortez, 2012. 619

IAMAMOTO, Marilda Villela. O Serviço Social na cena contemporânea. In Serviço Social Direitos

Sociais e Competências Profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009

Page 332: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

332

São essas forças contraditórias inscritas na própria dinâmica dos processos sociais,

que criam as bases reais para a renovação do estatuto da profissão conjugadas à

intencionalidade dos seus agentes. O projeto profissional beneficia-se tanto da

socialização da política conquistada pelas classes trabalhadoras quanto dos avanços de

ordem teórico-metodológica, ética e política acumulados no universo do Serviço

Social a partir dos anos de 1980 (IAMAMOTO, 2009, p. 24)620.

(...) Assim as condições que circunscrevem o trabalho do Assistente Social expressam

a dinâmica das relações sociais vigentes na sociedade. O exercício profissional é

necessariamente polarizado pela trama de suas relações e interesses sociais. Participa

tanto dos mecanismos de exploração e dominação, quanto, ao mesmo tempo e pela

mesma atividade, da resposta às necessidades de sobrevivência das classes

trabalhadoras e da reprodução do antagonismo dos interesses sociais. Isso significa

que o exercício profissional participa de um processo que tanto permite a

continuidade da sociedade de classes quanto cria possibilidades de sua transformação.

Como a sociedade é atravessada por projetos sociais distintos — projetos de classes

para a sociedade — tem-se um terreno sócio-histórico aberto à construção de projetos

profissionais também diversos, indissociáveis dos projetos mais amplos para a

sociedade. É essa presença de forças sociais e políticas reais — e não mera ilusão —

que permite à categoria profissional estabelecer estratégias político-profissionais no

sentido de reforçar interesses das classes subalternas, alvo prioritário das ações

profissionais (id., p. 24)621.

Assim, ao apresentar a dimensão polarizada e contraditória da profissão, a autora a

inscreve no campo relacional entre o conjunto de agentes políticos individuais e coletivos da

sociedade e as ações que materializam a luta e as perspectivas antisistemicas.

Não há em Iamamoto uma “teoria geral do Estado” como análise particular, contudo, a

presença do Estado em suas reflexões é inequívoca, na medida em que o processo de produção e

reprodução das relações sociais não prescinde do Estado, e, sobretudo, pelo destaque que

confere em toda sua obra a “questão social”. O caminho da autora, por inferência, nos parece ser

o caminho da “ortodoxia” marxista, isto é, sua fidelidade ao método sob o crivo da crítica da

620

A autora lembra ainda, citando o documento da ABESS/CEDEPSS de 1996: “o significado sócio-

histórico e ideopolítico do Serviço Social inscreve-se no conjunto das práticas sociais acionado pelas

classes e mediadas pelo Estado em face das ‘sequelas’ da questão social”. Segundo essa proposta, a

particularidade do Serviço Social no âmbito da divisão social e técnica do trabalho coletivo se encontra

“organicamente vinculada às configurações estruturais e conjunturais da ‘questão social’ e às formas

históricas de seu enfrentamento, que são permeadas pela ação dos trabalhadores, do capital e do Estado”.

ABESS/CEDEPSS. Proposta básica para o projeto de formação profissional. Serviço Social e

Sociedade: O Serviço Social no século XXI, São Paulo, ano XVII, nº 50, p. 143-171, abr. 1996. 621

A autora lembra ainda, citando o documento da ABESS/CEDEPSS de 1996: “o significado sócio-

histórico e ideopolítico do Serviço Social inscreve-se no conjunto das práticas sociais acionado pelas

classes e mediadas pelo Estado em face das ‘sequelas’ da questão social”. Segundo essa proposta, a

particularidade do Serviço Social no âmbito da divisão social e técnica do trabalho coletivo se encontra

“organicamente vinculada às configurações estruturais e conjunturais da ‘questão social’ e às formas

históricas de seu enfrentamento, que são permeadas pela ação dos trabalhadores, do capital e do Estado”.

ABESS/CEDEPSS. Proposta básica para o projeto de formação profissional. Serviço Social e Sociedade:

O Serviço Social no século XXI, São Paulo, ano XVII, nº 50, p. 143-171, abr. 1996.

Page 333: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

333

economia política, a leva a optar pelo recurso a categorias essenciais da obra marxiana partindo

do trabalho como categoria fundante do ser social, passando pela produção e reprodução social

da vida, alcançando a luta de classes como motor da história.

Assim, tal qual Marx, as reflexões de Iamamoto, não se centralizam no Estado, mas sim

na sociedade historicamente determinada, ou seja, a sociedade burguesa e seus fenômenos

particulares e singulares — o complexo social.

Pereira, por seu turno, tem se dedicado, dentre outros estudos, a investigar e

compartilhar reflexões sobre o Estado mesmo. Constituindo-se como uma das maiores

referências do Serviço Social brasileiro nos domínios da Política Social, a autora desviou

atenções a um tipo de Estado onde as políticas sociais se incorporam à sua ossatura (de modo

central no Welfare State e de modo marginal no neoliberalismo) e de um modo ou outro se

fazem presentes no processo de atendimento às necessidades humanas e as de acumulação de

capital.

A autora, assim como Iamamoto, expõe a dimensão coercitiva, repressora e de

dominação do Estado burguês, tanto pela força quanto pelo consenso, contudo, consegue

vislumbrar os aspectos civilizatórios (ainda que transitórios) 622

no exercício democrático de

acesso a bens e serviços públicos (de direitos, sobretudo, sociais) por parte das massas

populares garantidos pelo Estado, único ente social capaz de universalizar tais acessos.

A autora ainda chama a atenção para o desinteresse dos intelectuais em estudar um tipo

de Estado cujas “obrigações positivas (...) o impele a exercer regulações sociais por meio de

políticas” (PEREIRA, 2008, p. 99-100). Nesta direção afirma:

622

O próprio Marx ao empreender a crítica ao Capital como forma sócio-histórica de metabolismo social

o classificou como “a contradição viva”. Ele queria se referir ao processo civilizatório humano genérico

que o Capital engendra no modo capitalista de produção que tende a um só tempo provocar um

extraordinário desenvolvimento das forças produtivas, elevando a níveis ascendentes o controle das

relações metabólicas entre homem e natureza e com isso esgotar-se, no mesmo processo civilizatório,

recriando os sujeitos — homens e mulheres — como agentes sócio-históricos de transformação (e utopia)

social. Ver em conjunto para melhor entendimento da assertiva: O Capital: crítica da economia política e

A ideologia alemã.

Page 334: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

334

Tal fato [o interesse teórico tardio pelo Estado] não deixa de ser intrigante, pois, se do

ponto de vista da liberdade essa ingerência pode ser indesejável, do ponto de vista da

aquisição de condições básicas para o exercício dessa liberdade, ela é necessária.

Ademais, ao se privilegiar a igualdade substantiva (e não meramente formal), a

ingerência do Estado faz-se imprescindível. Afinal, não se persegue a igualdade sem o

protagonismo estatal na aplicação de medidas sociais que reponham perdas

moralmente injustificadas. Da mesma forma, não se consubstanciam direitos sociais

sem políticas públicas que os concretizem e liberem os indivíduos e grupos tanto da

condição de necessidade quanto do estigma produzido por atendimentos sociais

descomprometidos com a cidadania. É o Estado, além disso, que, ao mesmo tempo em

que limita a desimpedida ação individual pode garantir direitos sociais, visto que a

sociedade lhe confere poderes exclusivos para o exercício dessa garantia. Na prática, a

ingerência do Estado na realidade social é tão antiga, que só quem não esteja disposto

a reconhecê-la, não a percebe623.

A primeira vista, o excerto de Pereira (2008) poderia demonstrar uma adesão acrítica ao

Estado burguês por justificar sua legitimidade coercitiva. Contudo, se trata exatamente do

contrário. O enunciado reflete a urgência de nos libertarmos dos pré-conceitos que revestem a

admissão de estudos sobre o Estado burguês (e sua forma democrática) e constituí-lo como

objeto de interesse científico real, pois somente assim a dialética se repõe como uma dimensão

constitutiva deste campo, capaz de alça-lo à totalidade (e superando as impostações unilaterais e

injunções lineares). Em outros termos: admitir as condições objetivas para tratar do Estado em

sua forma e conteúdo estrutural, não implica necessariamente em aprisioná-lo nestas estruturas

negando sua dimensão histórico-categorial intrínseca à ordem monopólica e sua vinculação

ontológica com a dinâmica das classes sociais. Para se dar o salto ontológico do chamado

“estruturalismo marxista624

” é necessário superar a mera descrição e considerar nestas estruturas

as práticas culturais, as sociabilidades, as experiências e lutas vividas pelos agentes sociais no

mundo do trabalho, os processos históricos e todas as dimensões apreensíveis do processo de

produção e reprodução material e espiritual da vida social.

A autora utiliza em seus argumentos referencias da tradição marxista pouco utilizadas

(ou mesmo negadas como aportes deste campo) no Serviço Social como Poulantzas: para tratar

623

PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. Política Social: temas & questões. São Paulo: Cortez, 2008. 624

Embora o sentido radicado do estruturalismo marxista seja mesmo o de “relação”, nos referimos a uma

corrente da tradição marxista que confere às estruturas um caráter de prevalência diante do conjunto das

múltiplas determinações que formam e conformam a totalidade da vida social. Nesta corrente,

representada, por exemplo, por Althusser, sobretudo, nos escritos de sua juventude, todo o movimento

societário é determinado pelos lugares que sujeitos e instituições (ou aparelhos ideológicos) ocupam na

estrutura social, inclusive, as classes, redundando numa leitura descritiva e fatorialista da sociedade. Nem

nós e nem as autoras que estamos citando trabalham sob esta ótica. O que está em questão é, pois, é a

centralidade da explicação crítico-ontológica da práxis humano-social na sociedade burguesa que confere

sentido às classes que condensam interesses no Estado.

Page 335: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

335

do Estado como condensação material de relação de forças classistas625

, e, resgata o brasileiro

Octávio Ianni: para confirmar a indissociável relação entre Estado e Sociedade Civil, agregando

assim as devidas articulações entre teleologia e causalidade, liberdade e necessidade,

objetividade e subjetividade emoldurados à práxis humana626

, capazes de conferir sentido à

classe e consequentemente ao modo como o Estado se objetiva na formação social sob o julgo

do capital.

Estamos inferindo com consequência que sua grande contribuição neste campo é

mesmo nos dar aporte para compreender o Estado no contexto da luta de classes (ainda que os

estratos dominantes detenham a permanente hegemonia, alternando apenas os interesses entre

suas frações). Conclui, pois a autora

Isso expõe uma outra contradição que permeia o Estado, qual seja: a mesma

exacerbação do poder estatal, que debilita e fragmenta a sociedade, propicia também o

aparecimento de contra poderes no seio desta627. Fica claro, assim, que estudar o

Estado é desnudar uma arena tensa e contraditória, na qual interesses e objetivos

diversos se confrontam permanentemente. No contexto capitalista, fazem parte dessa

arena tanto interesses dos representantes do capital, com vista a reproduzir e ampliar a

rentabilidade econômica privada, quanto dos trabalhadores, com vista a compartilhar

da riqueza acumulada e influir no bloco no poder. Nesse sentido, o Estado representa

mais do que um conjunto de instituições com autoridade para tomar decisões e exercer

poder coercitivo, pois se revela também uma relação de dominação. Da mesma

forma, ele é muito mais do que Governo, pois se, por um lado, seus sistemas

administrativos, legais e coercitivos (policiais) o diferenciam da sociedade e

estabelecem formas particulares de relações entre a autoridade estatal e a sociedade

civil, por outro lado esses mesmos sistemas penetram na sociedade e influenciam a

formação de relações no interior desta. É por isso que se diz que o Estado é ao mesmo

tempo uma relação de dominação, ou a expressão política da dominação do bloco no

poder, em uma sociedade territorialmente definida, e um conjunto de instituições

mediadoras e reguladoras dessa dominação, com atribuições que também extrapolam

a coerção (PEREIRA, 2008, p. 148)628.

O que demonstra a inteira viabilidade da profissão expressar sua dimensão ético-política na

direção das disputas entre as esferas que lhe conferem legitimidade profissional e no sentido de

interesses que convirjam aos das classes subalternas com as quais se alia, superando os muros

do “denuncismo” sobre as dimensões e práticas deletérias da classe dominante plasmada no

625

O que significa no entendimento da autora e em nosso que a admissão do pressuposto relacional em

um ente plasmado na contradição não lhe retira a efetividade ontológica. 626

Sendo estes elementos em relação definidores da classe social que empreende seus movimentos de

luta, constituindo-se como um sujeito histórico ontológico, capaz de “negação da negação”: em

momentos de síntese dialética. 627

Afirmação inspirada Octávio Ianni, segundo a própria autora. 628

PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. Política Social: temas & questões. São Paulo: Cortez, 2008.

Page 336: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

336

Estado629

, alcançando a construção de estratégias internas e exógenas que fortaleçam as lutas

sociais de caráter antisistemico. Para isso, o reconhecimento do “direito” e da “politica pública”

como passo mediativo é fundamental, e, isso não se faz sem o estabelecimento de relações com

o Estado em todas as suas formas.

Em síntese, estas construções se fazem no bojo de um grupo que tem buscado amadurecer e

ampliar o legado da “Reconceituação” acompanhando de perto as evoluções e involuções da

dinâmica societária, buscando dar respostas compatíveis ao movimento histórico e suas bases

materiais reais, fugindo das ideologizações fáceis e da crítica pela crítica, pois como referiu

Marx “a sociedade atual não é um ser petrificado, mas um organismo capaz de mudar,

constantemente submetido a processo de transformação” (MARX, 1971, p. 7)630

. Ainda em

reforço ao constante compromisso e vínculo à categoria profissional que no seu cotidiano se vê

no fio da navalha das contradições que a permeiam.

O outro grupo, neste mesmo campo, também com distinções internas consideráveis, embora

mantenha um diálogo constante e fraterno com o primeiro e até incorpore parte significativa de

suas elaborações e argumentos (e vice-versa), procura se mostrar mais “ortodoxo”631

com

relação ao eixo gravitacional da tradição marxista, e, acaba — não sabemos dizer se de modo

consciente — por diferenciar a posição do intelectual: aquele que produz e domina o

conhecimento, daqueles que se submetem ao exercício profissional: os agentes da “prática” que

devem recorrer ao conhecimento produzido como aporte à sua ação cotidiana. Dissemos que

não sabemos se é consciente ou não porque tal cisão é produto muito mais de um ideologismo

positivista do que das impostações dialéticas e históricas, contudo, é uma tendência que se

verifica crescente.

As premissas de que partem para pensar o Estado remetem aos originais de Marx, e, desta

forma vinculam a exegese marxiana aos marxistas que, segundo suas leituras se aproximam

mais fielmente delas, com destaque para nomes como Lênin, Trotski, Mandel e Mészáros.

Não havendo em Marx uma “teoria geral do Estado” (como mostramos no Capítulo I) não

haverá também, neste grupo de intelectuais, uma teorização deste tipo. O que aparece são

considerações conceituais sobre o Estado como forma de subsidiar as críticas que pretendem

fazer. Deste modo, a análise do complexo social composto por processo histórico plurissecular,

que nada mais é do que a sociedade burguesa, amparada na crítica da economia política tende a

considerar como um eixo lógico central os processos históricos que conformam mudanças

dialéticas entre as forças produtivas e as relações de produção configuradoras do modo

específico de sociedade que se assiste.

629

O termo superação aqui não implica abdicar desta dimensão, mas sim não se limitar a ela. 630

MARX, Karl. O Capital. Livro I. Volume I. Prefácio da 1ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Civilização

Brasileira, 1971. 631

Agora não no sentido do método, mas das referencias diretas a matriz marxiana.

Page 337: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

337

As atenções se voltam, pois para um tipo de Estado emoldurado na transição do capitalismo

concorrencial para o capitalismo monopolista, ou seja, o último quartel do século XIX, que

tenderá a se amparar na forma política da democracia liberal.

A invocação da referência marxiana para se pensar o Estado burguês admite, neste grupo, a

transposição ipsis litteris do mesmo escopo referencial de Marx — seu Estado prussiano de

origem e a Europa Ocidental do século XIX — para os Estados contemporâneos de capitalismo

sob bases financistas. Isto permite, por exemplo, que Netto (2001, p. 26) possa afirmar apoiado

nos excertos do Manifesto do Partido Comunista que o Estado contemporâneo é:

(...) funcional ao capitalismo monopolista (...) no nível das suas finalidades

econômicas, o “comitê executivo” da burguesia monopolista — opera para propiciar o

conjunto das condições necessárias à acumulação e à valorização do capital

monopolista632.

Sendo o “nível das finalidades econômicas do Estado” o nível em reciprocidade daquilo que

funda as relações sociais em última instância — as relações econômicas — todas as demais

funções (políticas, ideológicas, culturais, etc.) estarão à ela subordinadas. Deste modo, a função

do Estado em “maximizar os lucros pelo controle dos mercados” (id., p. 24) se sobrepõe a todas

as outras, anulando-as como instâncias capazes de propiciar uma autonomia ainda que relativa

ao Estado.

O autor refere que na fase dos monopólios, a intervenção indesejada do Estado na economia

que incomodara os burgueses liberais é superada quando as crises imanentes do capital

“demandam mecanismos de intervenção extra econômicos”, levando a “refuncionalização e o

redimensionamento da instância por excelência do poder extra econômico, o Estado” (idem).

Reporta-se assim a transição:

Até então, o Estado, na certeira caracterização marxiana o representante do capitalista

coletivo, atuara como o cioso guardião das condições externas da produção

capitalista. Ultrapassava a fronteira de garantidor da propriedade privada dos meios

de produção burgueses somente em situações precisas — donde um intervencionismo

emergencial, episódico, pontual. Na idade do monopólio, ademais da preservação das

condições externas da produção capitalista, a intervenção estatal incide na

organização e na dinâmica econômicas desde dentro, e de forma contínua e

sistemática. Mais exatamente, no capitalismo monopolista, as funções políticas do

Estado imbricam-se organicamente com as suas funções econômicas (NETTO, 2001,

p. 26)633.

632

NETTO, José Paulo. Capitalismo monopolista e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2001. (3ª

edição). 633

Id.

Page 338: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

338

A polêmica sobre esta questão é ampla no interior da tradição marxista como o próprio

autor refere em nota de pé de página, contudo, lhe compete apenas evidenciar que:

O eixo da intervenção estatal na idade do monopólio é direcionado para garantir os

superlucros dos monopólios — e, para tanto, como poder político e econômico, o

Estado desempenha uma multiplicidade de funções (Ibid., p. 25)634.

Mas esta multiplicidade de funções é subordinada a função econômica e é o que acaba por

definir o Estado na acepção do autor635

.

Este é um dos maiores traços distintivos desta noção das que elencamos no primeiro grupo.

A aproximação se dá quando o autor admite que a gênese e desenvolvimento do capitalismo

monopolista se fez acompanhar de um desenrolar de iniciativas populares voltadas à luta por

direitos e cidadania, que antes de ameaçar o sistema o obriga a aperfeiçoar-se sob uma nova

morfologia que inclui a ação ideopolíticas como estratégia do processo de

dominação/acumulação.

(...) a transição ao capitalismo dos monopólios realizou-se paralelamente a um salto

organizativo nas lutas do proletariado e do conjunto dos trabalhadores — é, inclusive,

em quase todas as latitudes, simétrico ao aparecimento de partidos operários de

massas; o coroamento da conquista da cidadania, sobre a qual doutrinou linearmente

Marshall (1967), acompanha, nos seus lances decisivos, o surgimento da idade do

monopólio: as demandas econômico-sociais e políticas imediatas postas por todo este

processo reivindicativo e organizativo macroscópico não vulnerabilizaram a

modelagem da ordem econômica do monopólio, ainda que a tenham condicionado em

medida considerável. Antes, ao absorvê-las, o poder político que o expressa adquiriu

um cariz de coesionador da sociedade que, não casualmente, desempenhou funções

diversionistas e ilusionistas sobre inúmeros protagonistas políticos desvinculados dos

interesses monopolistas (ibid., p. 27)636.

Este raciocínio admite a correlação de forças como uma expressão do movimento das

classes prevalecente na infra-estrutura, ou seja, nos espaços onde as relações econômicas se

produzem e se reproduzem. Ao campo superestrutural, por ser inteiramente dominado pelo

bloco no poder compete adequar-se aos resultados da disputa classista pondo a serviço dos

dominadores os seus mecanismos de legitimação. Assim:

634

NETTO, José Paulo. Capitalismo monopolista e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2001. (3ª

edição). 635

E de marxistas como Lênin e Mandel. 636

Ob. Cit.

Page 339: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

339

Assinalar, portanto, a compatibilidade da captura do Estado pela burguesia

monopolista com o processo de democratização da vida sócio-política não é eludir o

fenômeno real de que o núcleo dos sistemas de poder opera em favor dos monopólios

—e, menos ainda, que jogue no sentido de reduzir os conteúdos de direitos e garantias

de participação política. Ao contrário, equivale a indicar que um componente mesmo

amplo, de legitimação é plenamente suportável pelo Estado burguês no capitalismo

monopolista; e não só é suportável, como necessário, em muitas circunstâncias

históricas, para que ele possa continuar desempenhando a sua funcionalidade

econômica (NETTO, 2001, p. 28)637.

Por outro lado, e nunca em último lugar, esta indicação desobstrui a via para a

compreensão do rebatimento, no sistema estatal, das efetivas contradições que se

desenvolvem na ordem social: a partir do momento em que procura legitimar-se

mediante os instrumentos da democracia política, uma dinâmica contraditória emerge

no interior do sistema estatal. A lógica dominante do monopólio não exclui o

tensionamento e a colisão nas instituições a seu serviço, exceto quando o grau de

esgarçamento deles derivado põe em risco a sua reprodução. Igualmente, apontar que

demandas econômico-sociais e políticas imediatas de largas categorias de

trabalhadores e da população podem ser contempladas pelo Estado burguês no

capitalismo monopolista não significa que esta seja a sua inclinação “natural”, nem

que ocorra “normalmente” — o objetivo dos superlucros é a pedra-de-toque dos

monopólios e do sistema de poder político de que eles se valem. Entretanto, respostas

positivas a demandas das classes subalternas podem ser oferecidas na medida exata

em que elas mesmas podem ser refuncionalizadas para o interesse direto e/ou indireto

da maximização dos lucros (id., p. 28-29)638.

Deste modo, o autor admite que a classe trabalhadora é capaz de imprimir parte de seus

interesses à dinâmica do Estado, desde que este atendimento não ponha em risco a reprodução

ampliada do capital.

O Estado como ente em movimento que acompanha a dinâmica societária em que se insere

pode assumir formas diferenciadas de externalizar a legitimação da burguesia, determinados

pelo movimento das classes, sobretudo, pela capacidade apresentada pelo proletariado de lutar e

resistir a superexploração da sua força de trabalho. Assim, “as alternativas sócio-políticas do

capitalismo monopolista, sem configurar um leque infinito, comportam matizes que vão de um

limite a outro — do Welfare State ao fascismo” (id., p. 28).

637

NETTO, José Paulo. Capitalismo monopolista e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2001. (3ª

edição). 638

Ob. Cit.

Page 340: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

340

É somente nestas condições que as sequelas da “questão social” tornam-se — mais

exatamente: podem tornar-se — objeto de uma intervenção contínua e sistemática por

parte do Estado. É só a partir da concretização de possibilidades econômico-sociais e

políticas segregadas na ordem monopólica (concretização variável do jogo das forças

políticas) que a “questão social” se põe como alvo de políticas sociais (NETTO, 2001,

p. 29)639.

As políticas sociais são concebidas então como um canal controlado de mediação entre o

Estado e as classes, fazendo com que as refrações da “questão social” ao se materializarem

como parte do processo do desenvolvimento capitalista — lembremos da máxima cepalina de

que para alcançar o desenvolvimento deve-se antes passar pelo subdesenvolvimento —

requisitará a incorporação de mecanismos permanentes para o seu enfrentamento na esfera

estatal. Incorporada desta forma, ela passa também a exercer uma função econômica

É a política social do Estado burguês no capitalismo monopolista (...), configurando a

sua intervenção contínua, sistemática, estratégica sobre as sequelas da “questão

social”, que oferece o mais canônico paradigma dessa indissociabilidade de funções

econômicas e políticas que é própria dos sistema estatal da sociedade burguesa

madura e consolidada. Através da política social, o Estado burguês no capitalismo

monopolista procura administrar as expressões da “questão social” de forma a atender

às demandas da ordem monopólica conformando, pela adesão que recebe de

categorias e setores cujas demandas incorpora, sistemas de consenso variáveis, mas

operantes (id., p. 29)640.

Como só se pode falar em política social, tal qual a concebemos, no contexto do capitalismo

monopolista, do mesmo modo, só se deve relacionar a gênese e o desenvolvimento da profissão

a esse mesmo contexto. Para Netto (2001) é a implementação destas políticas, como parte do

projeto legitimador da ordem burguesa que provocará alterações complexificadoras da divisão

social e técnica do trabalho que fazem emergir novas profissões, dentre elas o Serviço Social.

Essa síntese de uma parte do ensaio de Netto (2001) nos mostra que o autor admite, se

aproximando de Iamamoto, que o Assistente Social ocupa um lugar na divisão do trabalho

eivado de ambiguidades, principalmente quando o classifica como “executor terminal de

políticas públicas” (idem). A partir desta consideração, podemos perceber que o ensaio de Netto

(representante notório do grupo que estamos examinando) apresenta aproximações e

distanciamentos de Iamamoto. As aproximações se dão, principalmente, no que tange a natureza

e a especificidade da profissão. Também se aproxima quando o tema é a política social. As

distâncias partem quando a necessidade de conceituar o Estado se impõe e com ela — sendo o

639

Id. 640

Ibid.

Page 341: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

341

substrato fundamental — o imperativo de prospectar estratégias e táticas ao projeto profissional

com incidência direta no escopo técnico-operativo do Serviço Social641

.

As distinções também se tornam ainda mais evidentes quando as concepções têm de ser

amparadas por análises conjunturais. O tratamento convencional de análise de conjuntura indica

que devem ser observadas: a estrutura, a conjuntura e as relações sociais e nelas os

acontecimentos, os cenários, os atores e a relação de forças642

. Nesse sentido, o substrato teórico

comum pode levar a conclusões similares desde que a exegese das categorias estruturais seja as

mesmas. Se isto ocorre, as análises tendem a manter um eixo central comum, inovando apenas

quando se agregam categorias que incidem sobre o desvendamento de fenômenos particulares e

singulares da conjuntura analisada.

De outro modo, se as categorias estruturais se distinguem, ainda que as macro-

determinações da realidade social possam evidenciar o movimento geral inequívoco, não se

chegará a um consenso quanto “as intenções” ou “deslocamentos” dos atores no cenário e nem

mesmo sobre suas capacidades de enfrentar as disputas. Todo o aspecto prospectivo da análise

tende a ser distinto. Corre-se ainda o risco da análise ser sobrepujada pelo desejo do analista de

que as cenas aconteçam conforme sua vontade, sobrepondo suas “idealizações” ao “real”

material e objetivamente dado.

Deste modo, longe de personalizações, estamos considerando que a categoria profissional

dos Assistentes Sociais tem semeado um fecundo movimento intelectivo que tem redundado na

profusão de interpretações e incorporações variadas sobre/da teoria social e de teses sobre a

realidade em que se inscreve.

Os autores arrolados não se colocam, eles mesmos, como porta-vozes de nenhuma

tendência, contudo, suas produções além de serem as mais visitadas são também as mais densas

e “conclusivas”, por isso o recurso à eles nos permite inferir em parte de seu “pensamento”

tendências que impactam todo o corpo profissional. Ademais, a qualidade rigorosa de suas

reflexões tem credenciado o Serviço Social ao diálogo com vastos campos do conhecimento

sejam científicos ou não. O esquema apresentado no Quadro 1, desta forma, é apenas um

exercício primário de identificação das tendências dominantes no debate profissional, no campo

dos segmentos signatários da tradição marxista e do PEP. Não se trata de tendências antagônicas

nem mesmo cumulativas. Como é um primeiro exercício — a tese se presta a levantar a questão

problemática anunciada e não resolvê-la —, se trata apenas de aproximações que contribuem

para melhor compreender os modos como a problemática teórico-prática do Estado tem sido

tratada no âmbito da produção intelectual da profissão.

641

Que não se separa da dimensão teórico-metodológica e ético-política, contudo, a dimensão técnico-

operativo se destaca, pois é a instância mais “problemática” na direção da consolidação e

“materialização” do PEP. 642

SOUZA, Hebert José de. Como se faz análise de conjuntura. Petrópolis: Vozes, 2003 (24ª edição).

Page 342: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

342

Quadro 3

Tendências predominantes no debate profissional sobre “Estado” e temas afins

TENDÊNCIA A TENDÊNCIA B

Estado Estado Ampliado / Condensação de

Relação de Forças

Comitê Executivo da Burguesia /

Capitalista Coletivo

Função do Estado

Econômica com autonomia relativa Econômica sem autonomia relativa

Profissão

Trabalho especializado com dimensão

polarizada e contraditória / autonomia

relativa do profissional

Trabalho na divisão social operando

terminalmente políticas públicas.

Autonomia relativa retirada pela

agudização do poder de classe burguês

Política Social

Dimensão contraditória. No limite

consegue viabilizar a reprodução da

classe trabalhadora

Unilateralmente entendida como

estratégia de legitimação do poder

burguês ainda que atenda a reprodução

da classe trabalhadora

Projeto Profissional

Construído no cotidiano das lutas

populares aproveitando as fissuras do

movimento contraditório das classes.

Admite disputas dentro e fora do Estado

Deve reconhecer os limites dos direitos e

da política na ordem burguesa. Nega a

luta dentro do Estado

Fonte: Elaboração própria com uso de autores diversos (Iamamoto, Pereira, Netto, Mota, Behring, Yazbek, Bráz).

Além destes elementos temos ainda a destacar que, como já dissemos, a categoria também

tem sustentado tanto a produção intelectual quanto a direção social da profissão em leituras da

realidade aceitando o desafio posto por Iamamoto (2003, p. 20)

Um dos maiores desafios que o Assistente Social vive no presente é desenvolver sua

capacidade de decifrar a realidade e construir propostas de trabalho criativas e

capazes de preservar e efetivar direitos, a partir de demandas emergentes no

cotidiano643.

Estas leituras obedecem a caracterização que dissemos antes quando da realização de

análises de conjuntura. Estas análises podem ser dedicadas ora aos aspectos gerais da

movimentação sistêmica, ora a aspectos particulares referenciados em seu contexto global.

O fato é que, sobretudo, a partir dos anos 1990, onde assistimos uma maior envergadura da

ofensiva neoliberal, o diálogo do Serviço Social com a economia e com a economia política,

com as ciências sociais e políticas e muitas outras áreas do saber se tornou mais fecundo

originando em densas e singulares produções referidas a conjuntura.

643

IAMAMOTO, Marilda Villela. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação

profissional. São Paulo: Cortez, 2003 (6ª edição).

Page 343: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

343

Destacaram-se temas afetos ao fenômeno da reestruturação produtiva, a contrarreforma do

Estado, ao terceiro setor, a assistencialização do atendimento às necessidades humanas até o

debate corrente sobre o (neo)desenvolvimentismo brasileiro.

Estes temas não são de domínio exclusivo do Serviço Social e nem tem no Serviço Social

suas relações de maior expressão — a maior aproximação apenas do “terceiro setor” e da

“assistencialização” —, todavia, o tratamento deles em nosso âmbito reafirma um dos achados

mais significativos no que tange a natureza profissional, qual seja: o Serviço Social só pode ser

entendido no contexto da sociedade em que se insere, a partir, sobretudo, do modo como o

Estado estabelece suas relações com as classes, se valendo da mediação fundamental das

políticas públicas.

Estas tentativas demonstram e arrematam ainda as nossas intenções iniciais: verificar o

tratamento dispensado pelo Serviço Social à problemática teórico prática do Estado. E, com eles

isso é inevitável. São todos temas relacionados diretamente ao Estado e sua índole relacional.

São ainda, temas que amparam tanto o PEP quanto o exercício profissional. Assim, nos

dedicamos a sumariamente explorá-los.

4.2.1. Análises críticas sobre a reestruturação produtiva e a recomposição do

pensamento liberal

A reestruturação produtiva é um dos fenômenos mais significativos, por ser estrutural, da

passagem do século XX para o século XXI. É um processo que incide em transformações

substanciais na esfera das relações de produção e por extensão consequente na reprodução

destas mesmas relações em seus aspectos materiais e espirituais.

É comum que os estudiosos deste complexo fenômeno se dediquem a analisar as

transformações no mundo do trabalho como o movimento dinâmico que confere sentido à esta

reestruturação, contudo, ela não se limita a mudanças nas formas de gerenciamento dos

processos de trabalho e de controle da produção. Ela incide, como já acusamos, em mudanças

nos padrões de sociabilidade, na morfologia do Estado e das políticas de desenvolvimento que

pratica, no pensamento econômico e político que reveste a dinâmica entre as classes e, por fim,

na manutenção dos padrões de acumulação sustentados na expropriação do trabalho.

Sendo assim, embora seja um fenômeno que se arrasta desde fins dos anos 1970 até os dias

atuais, sua base estrutural é mesmo clássica. Isto é, remete à contradição mais fundamental do

capitalismo referida a emergência do trabalho livre assalariado. Ou seja, para que haja

possibilidade de reestruturação no mundo dos homens é necessário que haja força de trabalho

livre para a espoliação pelo capital. Esse trabalhador livre, diferentemente do escravo ou do

servo, já está submetido a um primeiro modo de expropriação que é da terra e em seguida é

expropriado dos recursos necessários ao seu trabalho – os meios de produção. Não encontra

Page 344: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

344

alternativa a não ser vender sua força de trabalho compulsoriamente, embora sua adjetivação em

“livre” escamoteie o caráter compulsório dessa venda.

A utilização da força de trabalho é o próprio trabalho. O comprador da força de

trabalho consome-a, fazendo o vendedor dela trabalhar. Este, ao trabalhar, torna-se

realmente no que antes era apenas potencialmente: força de trabalho em ação,

trabalhador. Para o trabalho reaparecer em mercadorias, tem de ser empregado em

valores-de-uso, em coisas que sirvam para satisfazer necessidades de qualquer

natureza. O que o capitalista determina ao trabalhador produzir é, portanto um valor-

de-uso particular, um artigo especificado. A produção de valores-de-uso não muda sua

natureza geral por ser levada a cabo em benefício do capitalista ou estar sob seu

controle. Por isso, temos inicialmente de considerar o processo de trabalho à parte de

qualquer estrutura social determinada (MARX, 1971, p. 201-202)644

Kohachiro Takahashi (2004, p. 88) ao tomar lugar no debate protagonizado por Dobb e

Sweezy645

alega que o trabalho assalariado livre é uma forma (tipo) básico de trabalho que

emerge tanto pela transformação das formas das instituições econômicas e sociais quanto pela

mudança na forma de existência social da força de trabalho646

. O processo de transformação da

força de trabalho em mercadoria pressupõe que a concorrência entre os próprios trabalhadores

seja, por estes, internalizada, como um princípio moral, o que leva dentre outros aspectos a

suplantação de seu reconhecimento enquanto classe para si, dificultando a emergência de

formas de solidariedade classista.

Na realidade, o trabalhador pertence ao capital antes mesmo de vender-se ao

capitalista. Sua servidão econômica se concretiza e se dissimula, ao mesmo tempo,

pela venda periódica de si mesmo, pela sua troca de patrões e pelas oscilações do

preço do trabalho no mercado. A produção capitalista, encarada em seu conjunto, ou

como processo de reprodução, produz não só a mercadoria, não só mais valia; produz

e reproduz a relação capitalista: de um lado, o capitalista e do outro, o assalariado

(MARX, 1971, p. 672-673)647

644

MARX, Karl. O Capital. Livro I, volume I, Capítulo V: Processo de trabalho e processo de produzir

mais valia . Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1971. 645

Fazemos referência ao conhecido debate travado entre Maurice Dobb e Paul Sweezy sobre a transição

do feudalismo para o capitalismo. A Editora Paz e Terra (Rio de Janeiro, 1977) possui uma tradução em

língua portuguesa da reunião dos principais textos deste debate sob o título A Transição do Feudalismo

para o Capitalismo, onde além dos dois protagonistas encontramos Rodney Hilton, Georges Lefebvre,

Christopher Hill, Giuliano Procacci, Eric Hobsbawn, John Merrington, além do já citado em nosso texto

Kohachiro Takahashi. 646

TAKAHASHI, Kohachiro. Uma contribuição para o debate. In A Transição do Feudalismo para o

Capitalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004 (5ª edição). 647

Id. (Livro I, volume II, Capítulo XXI: Reprodução Simples).

Page 345: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

345

Contraditoriamente o processo produtivo se torna cada vez mais coletivo ao mesmo

passo em que a individualização dos sujeitos históricos se torna a forma de socialização

dominante.

Ao lado dessa centralização ou expropriação de muitos capitalistas por poucos

desenvolve-se, cada vez mais, a forma cooperativa do processo de trabalho, a

aplicação consciente da ciência ao progresso tecnológico, a exploração planejada do

solo, a transformação dos meios de trabalho em meios que só podem ser utilizados em

comum, o emprego econômico de todos os meios de produção manejados pelo

trabalho combinado, social, o envolvimento de todos os povos na rede do mercado

mundial e, com isso, o caráter internacional do regime capitalista (MARX, 1971,

p.881)648

É deste modo que a sociabilidade do capital se pauta pelo estranhamento do trabalho,

justificado pela liberdade ressignificada em liberdade de mercado. Os modos contemporâneos

de exercer tal liberdade implicam, antes de qualquer coisa, na difusão da ideia de que as

“benesses” trazidas com a revolução tecnológica, ao alterarem os processos de trabalho,

beneficiam diretamente os trabalhadores, pois os libera para o exercício de outras atividades não

laborais, mas sim de convivência social649

. Associa-se a isso alterações ora significativas ora

sutis no processo de gerenciamento da força de trabalho que passa a incluir o trabalhador “na

divisão dos lucros” na medida em que estes deixam a condição de “empregado” e passam a ser

“colaboradores”, no contexto do trabalho contemporâneo. Registre-se: divisão dos lucros

(daquilo que divulgam como sendo lucro em suas manobras contábeis) e não da mais valia, pois

esta depende do sobretrabalho (trabalho não pago) para existir. Também, legitima-se a

desproteção ao trabalho na medida em que os contratos estabelecidos entre patrões e

empregados são feitos com base em medidas de flexibilização da legislação de proteção ao

trabalho conquistada a partir de amplas mobilizações da classe trabalhadora.

A sociabilidade do capital, alienada, alienante e alienadora, também transfunde a ideia

de que a liberdade que lhe é inerente permite que um dia todos se tornem proprietários. O

requisito básico para tal conquista é apenas a vontade individual e particular de cada sujeito

histórico. O empreendedorismo se configura assim, mais do que uma categoria, um modo de ser

da divisão social e técnica do trabalho. O empreendedorismo é um valor moralmente justificado.

Empreendedor é aquele que utiliza corretamente sua liberdade em nome da inovação das formas

de aprimoramento do mercado, e, descobre nele novos nichos de consumo e de acumulação,

bem ao estilo schumpeteriano.

648

Ibid., (Livro I, volume II, Capítulo XXIV: A chamada acumulação primitiva). 649

Ver, por exemplo, as teses do sociólogo italiano Domenico De Mais sobre o ócio produtivo.

Page 346: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

346

Certo dia, ao verificar as mensagens recebidas no correio eletrônico nos deparamos com

a seguinte nota publicitária:

EMPREENDEDOR INDIVIDUAL

Preocupados com a questão do produtor informal estar se transformando em EI (Empreendedor Individual),

sem ter a real noção dos benefícios na gestão do seu negócio, O Instituto Cape desenvolveu o treinamento O

NEGÓCIO É TER NEGÓCIO.

Para tal, estaremos em março realizando um repasse metodológico para consultores que trabalham com esta

clientela.

O curso para o público alvo, tem a duração de 4 horas e o repasse metodológico será de 16 horas para

consultores que já tenham a prática de trabalhar com jogos de empresa e conhecer o ciclo de aprendizagem

vivencial.

O conteúdo do curso para o público alvo é a vivencia de uma família onde uma pessoa tem uma produção

informal, um trabalha e tem dois filhos, todos menores. No desenrolar da atividade, eles vivenciam os

benefícios no negócio de ser formalizado, não vendo no Empreendedor Individual apenas a vantagem de

minimizar os impostos.

O material desenvolvido é do mesmo formato do Best Game, onde o kit de treinamento, contém todo o

necessário para a atuação do facilitador

Como o repasse será somente para 25 consultores, caso seja do seu interesse reserve já sua vaga, através do

site www.centrocape.org.br

O empreendedor pode ser um pequeno capitalista do mundo da produção de

mercadorias diretas, desde que tenha vocação para converter seu dinheiro em capital ou pode ser

um investidor, aquele que vislumbra, na ponta do processo, o capital portador de juros. A lógica

que preside tal intento pressupõe que o trabalhador deixe o universo da competição entre seus

iguais – trabalhador que concorre no mercado com outro trabalhador – e passe a competir, por

ascender de classe social, com outros proprietários, sejam eles grandes ou pequenos burgueses.

O que se tem em jogo, novamente? A expropriação diversificada, que como vimos, atinge

também os próprios capitalistas que competem entre si, independente de serem de um mesmo

ramo de atividade, afinal quando o são, lutam para adquirir as condições necessárias para

incorporar os “pequenos” – base do processo de concentração. Como tal processo é

constantemente ampliado, notamos a disponibilidade de força de trabalho a ser expropriada.

Expropriação, a essa altura, já naturalizada como parte do processo socializador do capital.

A escalada dessa aventura a níveis mundiais tende a aumentar a produção de

mercadorias (bens e riquezas) ao mesmo passo em que amplia a expropriação. O acesso a esses

bens e riquezas fica cada vez mais distante do ser social que está na base do processo de

produção, o que nos leva a corroborar duas assertivas aqui já citadas: 1) a afirmação de

Mészáros sobre a tendência potencialmente destrutiva do capital e 2) que o capital não é uma

Page 347: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

347

“coisa”, mas uma relação social, como demonstrado em Marx. Portanto, permanece válida a

afirmação de que a força de trabalho é a mercadoria que persiste instransponível para o processo

de acumulação, capaz de valorizar potencialmente o capital, ao passo em que permanece,

também, sendo a forma dominante de reprodução social da classe trabalhadora.

Não é, pois por acaso, que formas de reposição da força de trabalho estão sempre

presentes nos projetos de desenvolvimento do capitalismo em seus ciclos desenvolvimentistas.

Uma das estratégias deste processo consiste em deslocar a centralidade do trabalho como

elemento fundante da sociabilidade para outras instâncias da vida social como forma de enraizar

ainda mais seu estranhamento e alienação.

Mesmo com tais características, não estão dadas possibilidades de eliminação da classe-que-

vive-do-trabalho ou do próprio trabalho como componente fundante da sociabilidade. Pois, o

trabalho, entendido como ato criativo do ser humano genérico não está apenas na base de toda

atividade econômica – atividade regulada pelo Estado na sua forma burguesa – mas é também

aquilo que nos constitui enquanto seres sociais singulares.

Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza,

processo em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla

seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de

suas forças (...) Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo

tempo modifica sua própria natureza (MARX, 1971, p. 202)650.

O trabalho humano vai se apresentar de diferentes formas a depender do tipo de formação

social em que se assenta. No historicismo, podemos considerar que o trabalho (sempre de

natureza coletiva e nunca isolada) apresenta características de expropriação desde que o nível de

desenvolvimento das forças produtivas possibilitou a criação de excedentes de produção e tais

excedentes passaram a ser apropriados por grupos distintos dentro das diferentes comunidades

humanas. A dominação do homem pelo homem vai desde o escravismo primitivo aos dias

atuais.

A transformação essencial que se deu no trabalho diz respeito tanto a evolução das formas

que procede a expropriação, variando nas diversas formações sociais, de modo de produção para

modo de produção, quanto nas formas de sua organização – a maneira como se produz as

mercadorias -, e por fim, no jeito como essa produção de mercadorias gera valores – valor-de-

uso e valor-de-troca651

, no modo de produção capitalista em sua formação social burguesa, ao

passo em que a própria força de trabalho se mercantiliza.

650

MARX, Karl. O Capital. Livro I, v. I, Capítulo V A Produção da mais valia absoluta – O processo de

trabalho e processo de produzir valores-de-uso. 651

Sobre valor de uso e valor de troca ver o livro I d´O Capital.

Page 348: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

348

Esse processo não tem como abdicar do trabalho vivo, ainda que as novas morfologias do

trabalho pareçam indicar este caminho. Por este motivo que os estudos sobre reestruturação

produtiva não podem prescindir dos componentes históricos que a envolve, mas deve também,

para se primar pela totalidade, colocar em exame desde as implicações econômicas, culturais,

ideológicas, políticas, dentre outras, até os modos como as várias perspectivas sobre ela se

traduzem em formas de pensamento materializadas no posicionamento e nas “falas” de sujeitos

políticos que representam, em última instância, o pensamento de grupos sociais que se formam

sob o simulacro das classes e suas frações652

.

É deste modo que a gestão da força de trabalho pelo capital encontra na administração

científica de Taylor e na sistemática gerencial de Ford solos férteis que possibilitam o aumento

exponencial da expropriação do trabalho repondo sob novas bases os postulados centrais do

liberalismo, sendo o principal: o mercado como autorregulador das relações sociais, como

vimos no Capítulo I quando tratamos da gênese e desenvolvimento do pensamento liberal.

Contudo, a reciclagem da essência da supremacia mercadológica ou das justificativas para o

desenvolvimento capitalista, atribuindo ao Estado o papel de agente ora protagônico ora

marginal da acumulação, é presente nas elaborações intelectuais não apenas dos clássicos de

Tocqueville à Schumpeter, passando por Adam Smith, Malthus ou Ricardo. Essa produção

prossegue em vários outros intelectuais, economistas, estadistas ou mesmo empresários. Muitos

deles seguem renovando a defesa da ausência do Estado na regulação do mercado e da vida

social ao mesmo tempo em que se ocupam da regulação dos processos de (expropriação) do

trabalho. Desde Ludwig von Mises (1881-1973) até Friedrich von Hayek (1899-1992) lidos

com atenção pela dama de ferro britânica Margareth Tatcher e pelo ex-presidente norte-

americano Ronald Reagan653

, mãe e pai do neoliberalismo, até Milton Friedman654

(1912-

2006), a simples existência do estatal enchera de cólera os defensores mais ferrenhos do laissez-

652 Tumolo (2001) ao investigar a profusão de pensamento sobre o fenômeno considera a existência de

três grandes grupos ideopolíticos que se ocupam teórica e politicamente da reestruturação produtiva.

Afirma: “(...) um grupo que simplesmente descreve os processos [da reestruturação produtiva] e não

manifesta nenhuma posição; outro, de pequeno porte, que se declara favorável e geralmente, tem uma

visão entusiasta; e, finalmente um conjunto de pesquisadores que tece críticas — nem sempre

concordantes entre si — sobre vários aspectos da reestruturação produtiva em curso no Brasil e, por

conseguinte, manifesta desejo de que ela seja diferente, beneficiando a todos, sentimento este que em

geral, vem expresso nos últimos parágrafos de seus textos. Dessa forma, tendo uma postura crítica, boa

parte dos autores deste último grupo considera que, no Brasil, configura-se um processo de

“modernização conservadora”. TUMOLO, Paulo Sérgio. Reestruturação Produtiva no Brasil: um

balanço crítico introdutório da produção bibliográfica. Educação e Sociedade [on line]. Dez. 2001,

vol.22, no. 77 [citado 02 Maio 2004], p.71-99. 653

Margareth Tatcher foi primeira-ministra britânica de 1979 a 1990 e Ronald Reagan foi o 40ª presidente

dos Estados Unidos, governando de 1981 a 1989. 654

Salvo suas incursões pelo intervencionismo keynesiano nos momentos mais graves de crise.

Page 349: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

349

faire655

, embora sempre contem com o Estado quando o tema é a contenção do proletariado:

suas formas de organização e pensamento.

Mises, por exemplo, um dos fundadores da escola de Viena se dedicou a pensar a

economia monetária e a inflação, mas, sobretudo a comparar as economias planificadas

(comunistas) com as economias de mercado numa tentativa de mostrar a inviabilidade histórica

da primeira ante a infalibilidade da segunda. Segundo Feijó (2007, p. 27), um de seus

argumentos era:

O comunismo não desenvolve um mecanismo consistente de identificar as

necessidades humanas mais urgentes a fim de priorizar o atendimento delas. Isto só

seria possível com a introdução de mercados na economia. A ênfase recai

especialmente na importância do mercado como um mecanismo para avaliar os custos

de produção. Isto só seria possível com a propriedade privada dos meios de produção

e a existência de mercados entre as empresas. A alocação ótima dos fatores é

indissociável da existência de competição entre produtores que visam o lucro. É

necessário conhecer os preços dos fatores, e isso, para Mises, só seria possível com o

processo de competição: a informação que produz o preço é gerada e processada na

dinâmica da competição que converge o mercado para o equilíbrio, que faz o mercado

adaptar-se, a todo instante, a mudanças contínuas e que processa as estratégias dos

agentes diante da incerteza do futuro. O cálculo racional da produção requer então as

instituições do capitalismo que o comunismo pretende abandonar: mercados, moeda,

preços, propriedade privada, mercado financeiro, juros, etc.656.

Mises foi respondido por comunistas como Otto Neurath, Otto Bauer ou Otto Leichter.

Para os dois primeiros “o cálculo dos valores dos bens (...) era estimado pela relação técnica

entre os fatores de produção e a relação destes com os produtos finais” (id. p. 27). Para o último,

“a racionalidade do comunismo estaria na escolha do tempo de trabalho como unidade de valor”

(ibid.). Mesmo com argumentos de fôlego e a experiência soviética avançando no pós-1917, os

apologistas do liberalismo seguem nas tentativas de impor a supremacia mercadológica como

um sistema perfeito. O fato é que não sendo a economia capitalista e nem o mercado perfeitos

como ensejavam este seleto grupo de intelectuais e estadistas, o ciclo da história econômica dos

países nos mostra que as saídas para as recorrentes crises estruturais se concentram, quase que

de maneira absoluta, na intervenção estatal sobre os mercados e sobre o trabalho.

655

Em maio de 2000, Grover Norquist, líder do Americans for Tax Reform, principal lobista antiimpostos

nos EUA, anunciou que sua meta, “ambiciosa, mas razoável”, era cortar o governo pela metade até 2025.

“Não quero abolir o governo”, esclareceu mais tarde, “só quero reduzi-lo até um tamanho tal que eu possa

arrastá-lo para o banheiro e afogá-lo na banheira”. Em 2004, ao se pronunciar sobre a ajuda do Estado

aos necessitados, disparou que para isso (prestar auxilio aos necessitados) “é preciso roubar dinheiro das

pessoas que o mereceram e dá-lo a quem não mereceu e isso faz do Estado um ladrão”, e, completou

comparando os impostos sobre propriedade ao Holocausto. (Revista Carta Capital, Ano XIV, nº 492, 23

de abril de 2008, p.22-33). 656

FEIJÓ, Ricardo. Desenvolvimento econômico: modelos, evidências, opções políticas e o caso

brasileiro. São Paulo: Atlas, 2007.

Page 350: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

350

Com as experiências liberais de outrora e a polarização do mundo com a Revolução de

1917, variações e experimentos econômico-sociais de toda ordem encontraram solo fértil para

se reproduzir. À esquerda ou à direita as “ortodoxias” estariam “contaminadas” por novas

formas de pensar o mundo, o Estado, as relações sociais e econômicas. Tudo isto amparado pela

instabilidade dos mercados mundiais, que com suas crises recorrentes, exigiam mesmo respostas

criativas e inovadoras de muitos matizes.

É com a crise mundial de 1929 que uma brecha histórica se abre e permite que uma das

“variações” das correntes de pensamento ortodoxas sobre a economia e a política ocupe espaço.

É, pois assim que o inglês John Maynard Keynes (1883-1946) se consagra como um dos mais

influentes economistas do século XX. Com a oportunidade de responder postergando a crise de

1929 que, para Keynes era motivada pela baixa demanda agregada657

, defende o uso de políticas

monetárias e fiscais para regular o nível desta demanda (id. p. 28).

Sem alternar para a solução socialista (o que significaria planificar a economia), Keynes

propõe a intervenção estatal na economia. Defendeu a liberdade individual e a economia de

mercado, mas dentro de uma lógica que rompia com a dogmática liberal – conservadora da

época (BOSCHETTI & BEHRING, 2006, p. 84).

Keynes questionou alguns pressupostos clássicos e neoclássicos da economia política,

dentre eles: considerava insuficiente a lei de Say (Lei dos Mercados), segundo a qual

a oferta cria sua própria demanda, impossibilitando uma crise geral da superprodução,

e, nesse sentido, colocava em questão o conceito de equilíbrio econômico, pelo qual a

economia capitalista é auto-regulável. O liberal insurreto dizia que a economia é uma

ciência moral, posto que a intermediação da moeda possibilita escolhas e opções,

rompendo com a naturalização da economia, um dogma da economia tradicional. Esse

talvez seja um dos (poucos) pontos de aproximação entre Keynes e Marx. Só que este

último via a economia como a mais moral das ciências, propondo uma crítica da

economia política e da sociedade burguesa.

As autoras lembram que para Keynes

657

“A demanda agregada estaria muito baixa em razão da inadequada demanda por investimentos”

(SECURATO, 2007, p. 40).

Page 351: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

351

a operação da mão invisível do mercado não necessariamente produziria a harmonia

entre o interesse egoísta dos agentes econômicos e o bem-estar global, como o

demonstraram a grande depressão e a guerra. As escolhas individuais entre investir ou

entesourar, por parte do empresariado, ou entre comprar ou poupar, por parte dos

consumidores e assalariados poderiam gerar situações de crise, em que haveria

insuficiência de demanda efetiva e ociosidade de homens e máquinas (desemprego)658

(id., p. 84).

Também lembram o forte caráter intervencionista das decisões econômicas advindas da

classe empresarial, pois os impactos dos volumosos recursos de seus investimentos, ao visar um

retorno imediato do capital investido, gerariam inquietações sobre o futuro e o risco da

recessão e do desemprego, decorrendo disto o caráter instável da economia capitalista (id.).

À fórmula keynesiana de revitalização do sistema de acumulação monopolista

somaram-se os princípios fordistas, ditando, assim, as regras de organização da produção que

implicaram em novas formas de sociabilidade, interferindo nos padrões de reprodução social e

nos desenhos dos Estados e das políticas públicas, sobretudo, as de corte social dali em diante.

O fato é que a economia keynesiana se mostrou viável como uma alternativa para postergar os

constrangimentos causados pela crise durante as décadas de 40, 50 e 60 do século XX.

Alternativa no escopo do próprio capitalismo, não obstante ter se desdobrado em variações —

neokeynesianas — que deixariam até mesmo Keynes preocupado. Essas variações vão desde as

bases do keynesianismo aplicada à estruturação dos Estados de Bem-Estar (Welfare State)

quanto da Economia Social de Mercado implantada na Alemanha após a Segunda Guerra

Mundial.

Essas variações, embora distintas em conteúdo nunca foram bem vistas aos olhos dos

defensores do laissez-faire que mesmo com a pretensa hegemonia keynesiana nunca desistiram

de buscar formas de recompor a “ortodoxia” liberal num mundo que se inclinava, mesmo

timidamente, aos apelos morais de atendimento a necessidades sociais como responsabilidade

coletiva e pública, o que apontava mudanças sistemáticas e de fundo aos desenhos e

configuração dos Estados Nacionais.

O mais significativo núcleo irradiador destas tentativas — que mais tarde logra êxito

redundado no neoliberalismo — foi sem dúvida a Escola de Viena ou Escola Austríaca. Ludwig

von Mises, como já vimos, é um ícone desta escola a ponto de incentivar seus alunos e

seguidores a prosseguirem buscando soluções liberais para os problemas ciclicamente

econômicos, com largas inflexões na “questão social”, que o capitalismo apresentava. É deste

658

A demanda efetiva, segundo Keynes, é aquela que reúne bens e serviços para os quais há capacidade

de pagamento. Quando há insuficiência de demanda efetiva, isso significa que não existem meios de

pagamentos suficientes em circulação, o que pode levar à crise. Nesse sentido, o Estado deve intervir,

evitando tal insuficiência. Vale lembrar que, na economia de mercado, a demanda efetiva é o que importa,

embora seja inferiror à demanda decorrente das necessidades do conjunto da população (SANDRONI,

1992: 87 e 178 apud BOSCHETTO & BEHRING, 2006: 85).

Page 352: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

352

modo que o também austríaco Friedrich August Von Hayek (1899 – 1992) se consagra como

um dos idealizadores de soluções (neo) liberais para a crise dos “Estados Sociais” sendo

inclusive premiado com um prêmio Nobel de Economia em 1974, justificado por suas teorias

sobre o capital e a interdependência dos fenômenos econômicos, sociais e institucionais.

Um dos eixos centrais do pensamento de Hayek é sua proposta de prioridade radical

das liberdades. Tanto em The Constitution of Liberty, de 1960 quanto em Law, Legislation and

Liberty, de 1973 Hayek retoma com vigor apaixonado os princípios fundamentais do

liberalismo em um extraordinário arranjo psico-econômico. Preocupa-se em resgatar a lógica

do atendimento às necessidades humano-sociais referenciada no campo individual e privado.

Para isso critica duramente as políticas (re)distributivas entendendo que qualquer iniciativa

deste tipo fere de modo capital as liberdades individuais, sendo autoritárias.

Hayek é seguramente um funcionalista de tipo às avessas, pois para ele a sociedade, tal

como a conhece (capitalista e liberal), além de autoregulavel é uma ordem espontânea cujas

características abstratas garantem a estabilidade e a coesão social. Qualquer forma de

planejamento de normas com vistas à obtenção de resultados seja em comportamentos

individuais ou coletivos, além de ferir as liberdades, é improvável, pois os homens são

improváveis. Logo, não são os resultados que devem definir os moldes de uma sociedade, mas

as propabilidades de ocorrência de determinadas situações individuais. Numa organização,

como uma fazenda ou uma fábrica é possivel conduzir as ações de modo orientado e planejado e

antever resultados, aliás, é o que se espera de um empreendedor consciente, contudo, o mesmo

não se aplica a um corpo societário maior e heterogêneo. Qualquer iniciativa deste tipo leva ao

autoritarismo, insiste ele, ilustrando a afirmação com o exemplo do nazismo de Hitler e seu

Partido Nacional Socialista.

O grande mecanismo em que se referencia a coesão social hayekiana é o mercado. Nele,

os indivíduos encontram as referências necessárias para usar seu conhecimento de modo

empreendedor na busca de satisfação de suas necessidades. Este processo difere radicalmente de

qualquer atividade comunal, pois em sociedades complexas não é possível que um indivíduo

tenha ciência do conhecimento alheio e da forma como ele o utilizará para desenvolver suas

atividades de sobrevivência, até mesmo porque o processo de aquisição deste conhecimento e as

estratégias que ele sugere já não são, de gênese, comunais. Por isso, para Hayek um termo como

“injustiça social” que carrega consigo implicitamente uma necessidade de “correção” pública de

algo injustificado é inconcebível. O sentido da justiça ou injustiça social só pode ser atribuído a

situações individualmente determinadas ou no máximo ao grupo de pessoas próximas ao

indivíduo. O todo social está isento deste sentido, pois como não há condições de previsão dos

resultados provenientes do conjunto das ações humanas – galvanizadas na sociedade – não há

como classificá-los de antemão como justas ou injustas ainda que determinados eventos possam

ser considerados bons ou maus. No limite, o direito deve ser utilizado para sanar conflitos

Page 353: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

353

pontuais e privados que possam surgir por interesses que se confrontam, aproximando Hayek da

crítica schumpeteriana da vontade geral.

Mészáros (2002, p. 190) nos mostra que a paixão com que Hayek defendia a ordem do

mercado — se recusava a chamar de “capitalismo” — o levou a dedicar muitos esforços e

fôlego ao combate da planificação da economia. Como que cortejando a insanidade na busca de

um equilíbrio, Hayek lidera uma verdadeira cruzada contra todas as formas econômicas que

admitem um Estado de inclinação social, mas é contra o Socialismo que se deleita em críticas

mais contudentes.

A disputa entre a ordem do mercado e o socialismo é nada menos que uma questão de

sobrevivência. Seguir a moral socialista destruiria boa parte da humanidade do

presente e empobreceria boa parte do restante (...) somos forçados a preservar o

capitalismo por causa de sua capacidade superior de utilização do conhecimento

disperso. [O capitalismo] é uma ordem econômica insubstituivel (HAYEK apud

MÉZSÁROS, 2002, p. 190)659.

Se, para Hayek, mesmo o Estado burguês que admite passivamente os postulados

liberais clássicos e neoclássicos já seria um Estado reduzido ao mínimo, um Estado socialista

então sequer deveria existir. O desejo real de Hayek era igual ao de Norquist, afogar o Estado na

banheira, porém, sendo um pouco mais instruído que o lobista americano, Hayek sabia que isto

não seria adequado para o mercado. Por isso, se mostrava mais tolerante com o Estado desde

que este fosse completamente inclinado a fomentar o mercado. Em momentos de prosperidade e

estabilidade econômica Hayek admitia que pudesse haver uma intervenção mínima, pontual,

focalizada, emergencial do Estado nas questões afetas a reprodução social como alimentação,

habitação e saúde, mas não nos momentos de crise. Nas crises, mesmo as ações sociais mais

pontuais deveriam ser extirpadas da esfera pública e remetidas todas para o campo da

solidariedade privada.

Assim, Hayek se sagra o inspirador do advento do neoliberalismo como forma de

superar a crise dos Estados Sociais alimentando as cartilhas propositoras desse ajuste e de

contrarreforma produzidas pelos organismos multilaterais como o FMI, o Banco Mundial, entre

outros.

No campo das construções que buscam “modernizar-conservando” a acumulação, não

encontramos somente economistas. Ao contrário, estes são apenas um dos segmentos

encontrados dentre os vários que articulam alianças em torno de seus interesses estratégicos no

status quo. Os “donos” do capital não são apenas receptores passivos das doutrinas emanadas

por seus mestres. Muitos deles, banqueiros, industriais, grandes comerciários, dentre outros,

produziram, com a particularidade de implementá-los, modelos de organização econômica

659

ISTVÁN, Mészáros. Para Além do Capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.

Page 354: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

354

articulados as diretrizes gerais de reprodução do capitalismo. Modelos quase sempre

referenciados no suporte fundamental desta reprodução que é a esfera da produção. Influenciam

no trabalho e nos processos de trabalho dando materialidade as “inovações” dinâmicas do

capital, a própria reestruturação produtiva, fazendo dessa um fenômeno político e ideológico.

Henry Ford (1863-1947), por exemplo, com sua fórmula de produzir carros em série

influencia todo o conjunto das relações de produção de sua época. Controlando mecanicamente

os processos de trabalho produzem-se os grandes estoques, massifica-se o consumo e expropria-

se ainda mais a força de trabalho. O modelo de gerenciamento fordista extrapola evidentemente

o mercado e atinge os Estados não apenas pelo seu dever de regulação relativa dos mercados,

mas também pela incorporação osmótica desse modelo no gerenciamento da coisa pública.

O fordismo contou com o apoio da criação de instrumentos modernos de gerenciamento

da força de trabalho sustentado em parâmetros científicos. Sendo assim, Frederick Winslow

Taylor (1856 – 1915) – o pai da matéria – apresenta em 1911 The principle of scientific

management660

. Nesse livro são expostos os princípios que deveriam nortear os padrões de

eficiência e a busca de resultados no processo produtivo. Com o tempo, ao taylorismo vieram

associar-se as ideias de Jules Henri Fayol (1841 – 1925) e mais recentemente Peter Drucker

(1909 – 2005). Nesses administradores (resguardadas diferenciações substantivas e adjetivas

em seus pensamentos) é clara a distinção entre a execução do trabalho feito pelos operários, o

controle feito pelo gerente e o planejamento feito pelos donos da fábrica. Para Taylor, em

especial, o mais importante não é o dispêndio de força humana, mas sim o controle de tal

dispêndio. Assim, torna-se nula qualquer sugestão ou contribuição do trabalhador ao “sistema

produtivo”. Antunes (1998)661

lembra que o cronômetro é o símbolo máximo deste modelo.

Avançando nos princípios tayloristas, Ford acrescenta a eles, como já mencionamos, o conceito

de “produção em massa ou em série” aumentando a lucratividade da produção como resposta as

demandas postas pelos trabalhadores como as convenções coletivas e demais legislações de

proteção ao trabalho. Fayol, por sua vez, reforçando a tendência racional da divisão de tarefas

produtivas na época da Escola Clássica, propunha o agrupamento de tarefas, a centralização

de decisões e o controle sobre os subordinados, e as considerações de problemas pessoais dos

operários para obtenção da melhor eficiência da empresa (CARDOSO, 2008:29)662

.

Esse conjunto de evidências científicas funcionais, ainda que viesse sofrer mutações

transladando para a acumulação flexível, consegue influenciar a estrutura dos Estados

transpondo para a administração estatal, atingindo também a gestão de serviços sociais, uma

660

Os princípios da administração científica (tradução livre) 661

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do

mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, Campinas: Editora da Unicamp, 2002 (8ª edição). 662

CARDOSO, Marco Antonio Fernandes. Do taylorismo ao globalismo: evolução e perspectivas. In

MARRAS, Jean Pierre. Capital-Trabalho o desafio da gestão estratégica de pessoas no século XXI.

São Paulo: Futura, 2008.

Page 355: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

355

drástica cisão entre “executores” e “planejadores” dos serviços públicos663

. As atenções da

administração pública se voltam para a normatização e controle dos processos de trabalho

lateralizando as questões dos trabalhadores e hierarquizando a prestação das atenções públicas,

priorizando as atividades afetas a disseminação de capital e reordenando aquelas não rentáveis

(políticas sociais, por exemplo).

Muito tardiamente, assim como nas empresas, é que as questões afetas aos trabalhadores

irão ganhar espaço orgânico nas estruturas organizacionais após terem passado um longo

período sendo tratadas apenas pelo viés do controle da carga horária de trabalho e a

contabilização salarial dela decorrente. Contudo, a instituição de departamentos de pessoal ou

departamentos de recursos humanos ou de gestão de pessoas nas organizações públicas e

privadas não significou a ruptura com a segmentação subordinadora técnica e ideológica das

funções. Ao contrário, as funções afetas ao campo do planejamento e gestão consolidaram seu

lugar de superioridade frente as demais conquistando aquisições trabalhistas importantes como

planos de carreiras estruturados e estáveis, espaços próprios para negociações entre patrões e

empregados, políticas de benefícios, entre outros. No âmbito da prestação de serviços sociais, a

diferenciação entre os processos de trabalho estatais e privados oscila para maior ou menor

democracia e caráter publico conforme penetram no Estado as propostas para sua

automodernização, ora com cariz liberal, ora com cariz social-democrata, sendo o mais comum

o mix entre as duas doutrinas, como verificaremos as ocorrências no contexto dos governos

Lula-Dilma, mais adiante.

Deste modo, verificamos que a reestruturação produtiva apresenta uma ampla base de

legitimação que reforça a modernização conservadora dos clássicos do liberalismo convergindo

ao neoliberalismo e interpelando frontalmente toda a classe trabalhadora. Por isso mesmo, é o

fênomemo estrutural mais importante do desenvolvimento capitalista desde as últimas décadas

do século XX até os dias atuais.

O Serviço Social não é alheio a esse processo, tanto que as teses sobre a reestruturação

produtiva e o pensamento liberal (ideológico) que a reveste se constituem a base material das

análises conjunturais que a profissão tem empreendido desde que a teoria social crítica foi

admitida como nosso principal substrato teórico. Examinamos rotineiramente tanto seus

aspectos macro-estruturais quanto seus particularismos (e a gama incontável de mediações neles

contidas) para explicitar e entender a dinâmica metamórfica das relações sociais. Isso explica,

porque, dentre as principais teses desenvolvidas no âmbito do Serviço Social brasileiro nos

últimos trinta anos que ilustram o tratamento por nós dispensado à problemática teórico-prática

663

Tradicionalmente, os assistentes sociais ocupam lugar no mundo do trabalho no âmbito da execução

finalística de serviços sociais, contudo é crescente a requisição recente para que exerçam funções de

gerenciamento, planejamento e pesquisa na esfera pública e privada.

Page 356: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

356

do Estado, as teses da reestruturação produtiva são as que mais nos submeteram a esforços

analíticos, tornando-a sua sumarização mais extensa que as demais.

O amadurecimento teórico e político do Serviço Social brasileiro caminhou a passos largos

desde que a “ruptura com fontes secundárias” da tradição marxista e sua identificação

estrutural-funcional cederam gradativamente lugar as impostações ontológicas e com elas a

admissão das categorias centrais da obra marxiana que passaram a mediar a relação da profissão

com seus referenciais analíticos. A maior parte de nossos autores atribui a difusão de Relações

Sociais e Serviço Social no Brasil, de Marilda Iamamoto e Raul de Carvalho como o momento

inicial dessa inflexão664

. Ali, se inicia o caminho para a superação das análises endogenistas,

pois procura situar o Serviço Social no contexto da produção e reprodução das relações sociais

tendo como recurso a exploração da categoria “trabalho” em Marx sob o substrato da crítica da

economia política. Desde então a obra destes autores, em particular a primeira, se acomete de

uma articulação entre a reiteração e o aprofundamento das bases ensaísticas que lançaram na

década de 1980. Nesta perspectiva, uma formulação mais acabada sobre a concepção do Serviço

Social, sua definição e natureza é assim sumarizada:

A profissão é aqui compreendida como um produto histórico, e, como tal, adquire

sentido e inteligibilidade na história da sociedade da qual é parte e expressão. O

Serviço Social afirma-se como uma especialização do trabalho coletivo, inscrito na

divisão sociotécnica de trabalho, ao se constituir em expressão de necessidades

históricas, derivadas da prática das classes sociais no ato de produzir seus meios de

vida e de trabalho de forma socialmente determinada. Assim seu significado social

depende da dinâmica das relações entre as classes e dessas com o Estado nas

sociedades nacionais em quadros conjunturais específicos, no enfrentamento da

“questão social”. É na implementação de políticas sociais, e, em menor medida, na

sua formulação e planejamento, que ingressa o Serviço Social (IAMAMOTO, 2003,

p. 203)665

O desenvolvimento da sociedade global do capital em fins de século XX e início de XXI

reafirma a assertiva conceitual de Iamamoto quando caminha para a reestruturação dos seus

padrões produtivos assentados na lógica fordista/taylorista alternando para um modelo de

“acumulação flexível” que reconfigura a morfologia do trabalho com implicações de dupla

dimensão para o Serviço Social: de um lado causa constrangimentos ao lugar que a profissão

ocupa na divisão social e técnica do trabalho devido ao redimensionamento das formas de

enfrentamento às refrações da “questão social”, e, por outro, amplia as demandas profissionais

664

Vide o prefácio de Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão

social, de Marilda Villela Iamamoto, redigido por José Paulo Netto. (São Paulo: Cortez, 2007). 665

Iamamoto, Marilda Villela. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação

profissional. São Paulo: Cortez, 2003 (6ª edição).

Page 357: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

357

por exponenciar os níveis de pauperização e desigualdade que vilipendiam direitos e condições

de vida de toda a classe trabalhadora, incluída nela os próprios Assistentes Sociais.

Colocam-se assim desafios e impasses para a categoria profissional tanto no âmbito da

formação quanto do exercício profissional cujo enfrentamento e ultrapassagem se relacionam a

necessidade de se avançar na articulação orgânico-dialética entre as três dimensões que marcam

a essencialidade da profissão (na esfera da formação e do exercício): dimensão ético-política,

dimensão técnico-operativa e dimensão teórico-metodológica. Neste sentido Iamamoto afirma

que um dos impasses modelares a ser superado é:

(...) o famoso distanciamento entre o trabalho intelectual, de cunho teórico-

metodológico, e o exercício da prática profissional cotidiana. Esse é um desafio

colocado por estudantes e profissionais ao salientarem a defasagem entre as bases de

fundamentação teórica da profissão e o trabalho de campo. Um outro aspecto a ser

enfrentado é a construção de estratégias técnico-operativas para o exercício da

profissão, ou seja, preencher o campo de mediações entre as bases teóricas já

acumuladas e a operatividade do trabalho profissional (IAMAMOTO, 2003, p. 52).

Este desafio — tanto a sua afirmação quanto o seu enfrentamento — se coloca na

perspectiva de um momento conjuntural onde a centralidade do trabalho como elemento

fundante da sociabilidade humana é questionada. Este questionamento parte tanto do debate

epistemológico da “crise dos paradigmas” legitimador da invasão pós-moderna na academia

(SANTOS, 1987, 2000a, 2000b)666

quanto da “crise do emprego” (identificada

fenomenicamente como crise da sociedade salarial) motivada pela reversão estrutural dos

padrões de produção e acumulação (CASTELLS, 1999)667

.

Embora a produção intelectual que se ocupou em analisar tal reversão no Serviço Social

(mas não só nele) seja heterogênea, há um relativo consenso quanto às bases sociohistóricas em

que emerge e os elementos que a compõe. Esta reversão configurada na reestruturação

produtiva tem buscado legitimidade política junto aos amplos mecanismos de regulação social

— dos estatais aos de mercado — refletida e inserida também no campo de disputa entre as

classes e suas frações.

Ainda assim, como dissemos; as bases históricas em que o fenômeno se assenta se repetem

nas várias perspectivas que convergem no entendimento de que a reestruturação produtiva é um

fenômeno contemporâneo e próprio das respostas que o capital oferta como resolução

epidérmica de sua própria crise estrutural desde os anos 1970 — uns veêm a resposta como

666

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Porto: Edições Afrontamento, 1987;

Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2000a; e, A crítica da

razão indolente contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000b. 667

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede Volume 1. Prefácio de Fernando Henrique Cardoso. São

Paulo: Paz e Terra, 1999.

Page 358: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

358

alternativa positiva e outros identificam nela a agudização das relações de espoliação do

trabalho e da “questão social”.

O fato é que as estratégias do capital na perspectiva de controlar os processos e a força de

trabalho como modo ineliminável de garantir sua reprodução ampliada datam do século XIX

quando o conflito classista se acentua em consequência do aumento do proletariado urbano dado

não apenas pelas novas condições técnicas e tecnológicas (com o avanço da ciência), mas

também pelas necessidades de generalização do próprio sistema produtor de mercadorias

voltado à subsunção do valor-de-uso pelo valor-de-troca, cujo primeiro aspecto é apenas um de

seus componentes.

Com todo o exposto, fica também entendido que a reestruturação produtiva incide na

diversificação das formas de enfrentamento às refrações da “questão social” e com isso na

morfologia da política social, por, em última análise, propor alterações nos desenhos de Estado

com vistas a aprimorar suas funções como agente indutor do desenvolvimento e da acumulação

capitalista.

4.2.2. Análises críticas sobre a contrarreforma

A coloração verde e amarela que a implantação do neoliberalismo adquiriu por aqui

também foi alvo de inúmeras análises, inclusive pela categoria dos assistentes sociais. As

abordagens de fulcro marxiano e marxista não se furtaram a conferir centralidade a categoria da

totalidade e com isso evidenciar as nuanças ideológicas, políticas, culturais, dentre outras, que

as temáticas postas em exame convocam no seu intento único de manter de modo

“modernizado” os processos fundantes da acumulação e do desenvolvimento capitalista.

Assim, as produções nos mostram que a guinada histórica de consolidação do regime

democrático burguês brasileiro, após o período de autocracia, se fez acompanhar da implantação

do desmonte neoliberal que sob o comando de um grupo de “intelectuais” liberais travestidos de

sociais-democratas impôs ao país um conjunto de medidas regressivas que redundaram tanto na

“desestruturação do Estado quanto na perda de direitos” para o conjunto da classe trabalhadora,

utilizando os termos de Behring (2003) 668

.

A mesma autora, de modo racional e competente, nos informa que este grupo se

apropriara indevidamente do termo e categoria “reforma” para designar o seu conjunto de ações

de remodelamento regressivo do Estado, e, justamente, por ser regressivo é inadequado,

considerando que as “reformas” implicam ajustes civilizatórios na estrutura socioestatal e não o

contrário. Refere:

668

BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em Contrarreforma desestruturação do Estado e perda de

direitos. São Paulo: Cortez, 2003.

Page 359: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

359

Na verdade, a auto-referência dos apologistas, os quais insistem em apontar o projeto

da era FHC como reforma, é uma espúria e ideológica ressemantificação. Cabe

lembrar que este é um termo que ganha sentido no debate do movimento operário

socialista, melhor dizendo, de suas estratégias revolucionárias, sempre tendo em

perspectiva a equidade. Portanto, o reformismo, ainda que se possa e deva critica-lo,

como o fez Rosa Luxemburgo, dentre outros, é um patrimônio da esquerda

(NOGUEIRA, 1998 apud BEHRING, 2003, p.22-23)669.

E tal afirmação a autora não a faz sem a consideração dos devidos determinantes

históricos que a consubstanciam. Isto é, refere que os “contrarreformismos” dos Estados, como

estratégia essencial do ajuste neoliberal ditado pelos organismos internacionais como o FMI,

etc., encontram inteligibilidade nas transformações ocorridas no mundo capitalista após a crise

da década de 1970; tem toda a “década perdida”670

de 1980 para se acomodar e, no Brasil, de

modo tardio, toma folego e cria raízes nos anos 1990 a partir do Plano Real e dos governos de

F.H.C. Mas este caminho analítico informa as determinações gerais do fenômeno que precisa

também ser entendido a partir do modo peculiar de constituição do capitalismo brasileiro e isto

é buscado pela autora em nossos clássicos do pensamento social, com destaque para três autores

em especial: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior (p. 85)671

.

No diálogo competente com esses e outros clássicos, nos vai ficando evidente como as

transformações, que foram gradualmente levando o país ao rumo do seu desenvolvimento

capitalista, se deram sempre a partir de “decisões pelo alto”, isto é, em conformidade aos

interesses do bloco no poder que no limite admitem pequenos arranjos em seu interior sem que

isso signifique perda de hegemonia. Neste sentido, a autora vê uma aproximação, ainda que não

linear nas narrativas que explicam as formas não clássicas para o desenvolvimento capitalista

como a “revolução passiva”, de inspiração gramsciana; a modernização conservadora de

Florestan Fernandes e a via prussiana de inspiração leninista.

O arranjo burguês/dominante que nos levou à contrarreforma abdica das formas de

desenvolvimento modernizante que se fizeram presentes nos ciclos desenvolvimentistas da

quadra de 1930 a partir de Getúlio Vargas, 1950-1960 em J.K. ou a partir de 1964 com a

ditadura civil-militar.

669

Id. 670

Termo utilizado pela Cepal. 671

As referências utilizadas pela autora para o estudo e resgate do pensamento social brasileiro não se

resumem a estes três autores, ao contrário, recorre ainda as formulações de um Florestan Fernandes, de

um Octávio Ianni ou mesmo de seu mestre mais próximo Carlos Nelson Coutinho, passando ainda por

Roberto Schwarz, Marco Aurélio Nogueira e Marilena Chauí, contudo, identifica em torno dos três

autores citados “uma espécie de consenso mínimo como sendo verdadeiras matrizes, cuja contribuição

gerou polemicas e discípulos e orientou políticas e ações das classes sociais” (p. 85).

Page 360: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

360

4.2.3. Análises críticas sobre o terceiro setor

No contexto da fase contrarreformista do neoliberalismo à brasileira 672

ou de

contrarreforma nos dizeres de Behring (2003)673

, o reordenamento institucional impulsionado

pelo governo no âmbito das estratégias de enfrentamento às refrações da “questão social” se

colocou como um imperativo fundante à realização do projeto de “desestruturação do Estado e

perda de direitos” (idem). Tal reordenamento, previsto com centralidade nas orientações

emanadas por organismos internacionais tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o

Banco Mundial, agências das Nações Unidas como a Cepal, PNUD, UNESCO e OIT, pressupôs

tanto o enfrentamento das formas locais e particulares da pobreza quanto alterações substantivas

nos níveis de desigualdade registrados, sobretudo nos países da “periferia” capitalista ou nos

países em desenvolvimento. Para as primeiras formas recomendaram (e permanecem

recomendando) um retorno “sistematicamente renovado” das estratégias de associativismo civil

expresso principalmente por “organizações não governamentais” e para as segundas,

mecanismos de redistribuição monetária com elevado grau de focalização e seletividade.

Combinadas, tais estratégias teriam como finalidade superar os graus de “risco” e de

“vulnerabilidade social e pessoal” de indivíduos e famílias e a depender do seu alcance

participar das estratégias de promoção de um desenvolvimento socioeconômico pela liberação

do contingente de pobres e extremamente pobres da situação de não-consumidores674

.

Este processo é definido por Yazbek (1995) como fenômeno de refilantropização da

“questão social”675

e se caracteriza sobretudo pelo deslocamento das responsabilidades públicas

(e de primazia estatal) e coletivas para o mundo privado e das responsabilidades individuais, e,

que se associa a mercantilização crescente da prestação de serviços sociais, o que contribui para

a formatação de um Estado “máximo para o capital e mínimo para o social”.676

Neste sentido, uma proliferação de análises técnicas e acadêmicas surge, na sua maioria,

para conferir legitimidade ao “padrão emergente de intervenção social” que sustentado pelo

crivo ideológico da solidariedade reordena e adequa a chamada “área social” para a empreitada

contrarreformista.

672

Como apontamos no item 3.3.1. da presente tese. 673

BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em Contrarreforma desestruturação do Estado e perda de

direitos. São Paulo: Cortez, 2003. 674

Esta questão é muito bem tratada em SOARES, Laura Tavares. O desastre social. Rio de Janeiro:

Record, 2003. (Coleção Os porquês da desordem mundial: mestres explicam a globalização, organização

Emir Sader). 675

YAZBEK, Maria Carmelita. A política social brasileira dos anos 90: a refilantropização da

“questão social”. Cadernos Abong, nº 3. São Paulo, ABONG, 1995. 676 Consultar: SADER, Emir. Estado e Hegemonia. In: Sader, Emir et al. O Brasil do Real. Rio de

Janeiro: UERJ, 1996. p. 11-21, e OLIVEIRA, Francisco de. O surgimento do Antivalor. Capital, força de

trabalho e fundo público. In: Os direitos do antivalor: a economia política da hegemonia imperfeita.

Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. p. 19-48;

Page 361: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

361

O apelo a “participação da sociedade civil” na vida pública por meio de organizações

para fins públicos, porém juridicamente não estatais, amalgama uma espécie de consenso entre

forças sociais distintas onde a centralidade do “sujeito civil” é subtraída de questionamentos:

Resulta consensual a afirmação de que no debate sobre o “terceiro setor” participa

uma ampla gama de autores com perspectivas diversas, desde empresários,

acadêmicos, membros de organizações populares, políticos, representantes do capital

e do trabalho, de concepções conservadoras e regressivas e de perspectivas

progressistas, de ideologias neoliberal e “trabalhistas”, de direita e esquerda.

Efetivamente, este debate é processado, com significativas diferenças, por distintos

setores ideopolíticos, por vezes até antagônicos, que, mesmo em campos políticos

diferentes, chegam nesta questão ao mesmo porto. Cada um partindo de análises

sociais diferentes, valendo-se de um marco referêncial teórico distinto e procurando

objetivos diversos, concordam em aspectos substantivos nas suas considerações sobre

o chamado “terceiro setor” (MONTAÑO, 2003, p. 59)677.

Deste modo, a presença destas organizações nas diferentes estratégias de enfrentamento

às refrações da “questão social” se firma como algo inequívoco, insuperável, reordenando de

modo concreto as estratégias neste campo dali para frente. Em outros termos: se a cada fase

particular do desenvolvimento capitalista corresponde uma forma específica e também

particular de enfrentamento às refrações da “questão social”, o “terceiro setor” se firma como

uma estratégia fundamental no Brasil de contrarreforma e de neoliberalismo que só aparecerá

com novas roupagens a cada conjuntura e correlação de forças, mas não será mais, a partir de

então, extirpada do organismo estatal-civil em seu braço de “ação social”.

As ambiguidades em torno do tema e do conceito de “terceiro setor” identificadas por

Montaño (2003, p. 55-58) como debilidades teóricas e conceituais tem servido, assim, muito

mais para legitimar esse amplo campo de “ações sociais” junto ao Estado e a sociedade civil

mesma do que para provocar uma corrida a aproximações definitivas e precisas de suas

categorias fundantes678

.

677

MONTAÑO, Carlos Eduardo. Terceiro Setor e “questão social” crítica ao padrão emergente de

intervenção social. São Paulo: Cortez, 2003 (2ª edição). 678

O autor identifica quatro grandes debilidades teóricas/conceituais relativas ao caráter ético-politico e

técnico do “terceiro setor”: a primeira é a própria definição de “terceiro” e de “setor”, definição esta que o

enquadra como um terceiro campo de formação da sociedade após o Estado (primeiro setor) e o mercado

(segundo setor). O autor afirma que a dicotomia histórica público/privado não se elimina na definição

deste “terceiro campo” na medida em que suas características fundantes estão diretamente imbricadas ao

primeiro (sobretudo quando se pensa nos recursos do fundo público que lhes são destinados) e ao segundo

quando toda sua lógica e mobilização se remetem aos princípios mais fundamentais e estruturantes do

mercado. Esta distinção seria, portanto, uma distinção tipicamente liberal. A segunda debilidade diz

respeito a definição dos tipos e natureza de entidades que comporiam este chamado “terceiro setor”. O

autor demonstra que não há um consenso sobre isto, considerando que a definição ambígua de “entidades

privadas, não governamentais, sem fins lucrativos, autogovernadas, de associação voluntária” expressa no

IV Encontro Ibero-Americano do Terceiro Setor pode abarcar desde fundações empresariais até

movimentos sociais de caráter anti-sistêmico, o que de fato, impossibilita um consenso aglutinador para

Page 362: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

362

As teses e problematizações que emergiram no âmbito do Serviço Social brasileiro

sobre o “terceiro setor”, mesmo antes da reflexão densa e rigorosamente sistematizada de

Montaño (idem)679

já apontavam a essência de seus problemas críticos.

Contudo, o raciocínio e os argumentos do autor nos levam a considerar que,

ocasionando inflexões diretas no Serviço Social, tanto pela reconfiguração que causa no

mercado profissional de trabalho, quanto pela retração que implica no âmbito do acúmulo

teórico-crítico e do projeto profissional que coloca em xeque as causas estruturais da pobreza e

desigualdade o “terceiro setor” se constitui muito mais como uma “função social” destinada a

“findar o pacto keynesiano e os fundamentos do Welfare State” (ibidem) do que se estruturar

para superar “pobrezas” e “desigualdades”680

. Mas não é só isto. Para o autor, o terceiro setor

consolida uma nova modalidade de trato a “questão social” que implica no reordenamento das

políticas sociais potencializando a já presente tendência de focalização, privatização e

descentralização.

Neste sentido, chama a atenção para a necessidade da retomada cuidadosa do termo

“sociedade civil” na acepção marxiana de modo a diferenciá-la do uso corrente empregado

pelos ideólogos do terceiro setor que lhe subtraem a dinâmica conflitiva da luta de classes e por

consequência suas possibilidades “emancipatórias” de um projeto alternativo ao projeto do

capital.

O debate e a crítica empreendidos por Montaño atravessaram todo o período da

contrarreforma, em especial a metade dos anos 1990 até o início dos anos 2000, sendo

complementados e amadurecidos por outros autores, além do próprio. Este processo de análise e

acompanhamento teórico-crítico de um fenômeno parcial de uma realidade eivada de

determinações permitiu que o Serviço Social decifrasse os caminhos que a Política Social

seguiria a partir de então de modo a participar da “nova fase do ciclo de desenvolvimento

capitalista brasileiro” superdimensionando suas feições econômicas a serviço da acumulação.

definição precisa deste campo. A terceira debilidade é que o conceito de terceiro setor mais confunde do

que esclarece na medida em que suas definições conduzem muito mais para a identificação de formas

variadas de ativismo, dispersas e difusas, do que a delimitação de um “setor” específico na formatação da

sociedade. A quarta debilidade, enfim, está afeta aos termos “não governamental”, “autogovernada” e

“não-lucrativo”. Nenhuma destas características é plenamente realizável quando se verifica a existência

destas organizações vinculada diretamente ao “governo” quando este financia boa parte de suas ações e

com isso influencia e interfere em seu “governo” (portanto não se pode falar em não governamental e

nem em auto governável) e ainda o conceito de não lucrativo cai por terra na medida em que várias destas

organizações, em especial as de filantropia empresarial, ampliam as margens de lucro das empresas que

as mantem tanto pela via da renuncia fiscal a que tem direito quanto pela melhoria na imagem de sua

empresa que redunda num aumento das vendas de seus produtos. 679

Algumas críticas ao advento do terceiro setor como epifenômeno da contrarreforma do Estado já se

fizeram notar no âmbito do Serviço Social antes da difusão da tese de Carlos Montaño, contudo, é a partir

dela que o tema adquire maior densidade teórica, política e conceitual em nosso meio, passando a figurar

como uma importante referência neste debate. 680

Ou interferir na melhoria dos padrões de relações sociais na medida em que o conceito abarca

organizações defensoras do meio-ambiente, de animais maltratados, de manutenção da paz mundial, etc.

Page 363: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

363

4.2.4. Análises críticas sobre assistência e proteção social

De todos os elementos que nucleiam a realidade formando e conformando a sociedade

em que vivemos e que tem sido “objeto” de estudo para os que buscam compreender esta

mesma realidade, as dinâmicas constitutivas da organização da proteção social e nela a

“assistência social” são sem dúvida componentes que tem se tornado cada vez mais presentes ao

escopo das análises. No âmbito do Serviço Social tal presença não é apenas permanente como

central aos raciocínios que se estabelecem no intuito de entender e falar sobre a profissão tanto

quanto quando as intenções são de compreender e dissertar sobre a dinâmica social mais

ampla681

.

A produção teórica e técnica de nossa área nunca lateralizou o tema, ainda que em

algumas conjunturas históricas tenha negado o “campo assistencial” como campo de

intervenções possíveis a um Serviço Social comprometido com as classes subalternas.

A assistência foi um tema “maldito” no movimento de reconceituação do Serviço

Social latino-americano em sua busca de ruptura com as ações de cunho paternalista e

assistencialista que proliferaram no passado e denegriam a imagem social e acadêmica

da profissão. Preconizavam-se, à época, em nome da educação e politização do povo,

princípios e saídas políticas globais, frequentemente relegando a um segundo plano a

atenção às reivindicações imediatas da “população” e refutando as tarefas

assistenciais, identificadas unilateralmente com ações a serviço dos interesses

dominantes (...) sem nenhuma validade em si mesma (...) Essa era uma contraposição

à versão ingênua do passado em que as ações assistenciais eram lidas — também

unilateralmente, mas com sinal trocado — como um benefício ou um bem para os

segmentos subalternos (...) (IAMAMOTO, 2007, p. 302)682

Estas concepções unilaterais não estão superadas por completo no seio profissional,

sendo signatárias de um movimento de continuidades e rupturas na esfera da análise, sendo que

o mesmo ocorre no mundo material onde se baseia a assistência, pois seus traços inaugurais —

que vão do clientelismo à subalternização dos sujeitos — permanecem em constante tensão com

componentes configurativos renovados que buscam barrá-los na contemporaneidade, dando

origem ao mesmo movimento de continuidades e rupturas que reveste as análises que antes

citamos. Isto evidencia que se constitui em erro crasso ou mesmo uma irresponsabilidade

681

Quando o foco é a profissão, a assistência comparece como um componente presente no processo de

sua gênese e desenvolvimento, quando o foco é a sociedade em geral, ela também se faz presente, pois

não se ignora as mediações dadas ao processo reprodutivo da vida social que tem nas formas genéricas de

proteção social a assistência como um de seus componentes. Basta observar que grande parte das

referencias que eram feitas pelo Serviço Social à assistência social estão ocupando as “tintas” de

intelectuais, analistas políticos, técnicos, etc. de várias outras áreas do conhecimento e da prática social

ampla. 682

IAMAMOTO, Marilda Villela. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro,

trabalho e questão social. São Paulo: Cortez, 2007.

Page 364: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

364

teórica e política submeter uma política social como a assistência à análise apenas a partir de

seus determinantes gerais e suas manifestações prático-concretas evidentes, a não ser que se

pretenda uma análise meramente fenomênica. Deste modo, como parte das mediações que se

estabelecem na relação entre o Estado e as classes, a assistência é eivada de contradições, assim

como os inesgotáveis elementos que constituem a realidade social em sociedades classistas.

Toda politica social nos Estados capitalistas apresentam limites estruturais quanto a sua

capacidade de fornecer melhores condições de reprodução social às classes subalternas. Com a

assistência social não é diferente683

. As disputas que fazem destas políticas — e nelas, a

assistência, insistimos — campos permanentemente tensionados nas democracias liberais, ainda

que reflitam interesses classistas não possuem a propriedade em si mesma de superar tais

limites. Em última análise, os interesses que a classe subalterna consegue imprimir no escopo

das políticas sociais quando a tensiona pode elevar os patamares civilizatórios de sua

reprodução, mas não são suficientes para impulsionar uma reversão substantiva nas relações de

poder e dominação.

Nas últimas décadas, os debates em torno da assistência enquanto conceito e

intervenção se acirraram provocando não apenas uma profusão difusa e heterogênea de

abordagens quanto disputas conceituais e de prática político-profissional que aos poucos foram

caracterizando frações aparentemente inconciliáveis no interior da profissão, ora representadas

por projetos profissionais distintos, ora afetas a diferenças conceituais e programáticas dentro de

um grupo signatário do mesmo projeto684

. Este dinamismo encontra razão histórica no processo

em que se gestaram diferentes projetos políticos de enfrentamento às refrações da “questão

social” ao longo da história articulados em suas especificidades com o movimento geral do

capital em escala global.

As particularidades da constituição do Estado brasileiro, que já demonstramos

recorrendo aos clássicos indo de um Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda a um Caio

Prado Júnior, dentre muitos outros, contribuem à explicitação do modo como a “proteção

social” ingressou de modo tardio e específico na ossatura do Estado685

como bem público. Ao

683

A concepção de política social que desvenda sua natureza e limites nas sociedades de mercado foi

trabalhada por nós no Capítulo II desta tese quando recorremos às formulações de Evaldo Vieira, devido a

sua penetração no Serviço Social brasileiro desde fins dos anos 1970, contudo, esta referência pode ser

ampliada com a inclusão de autores que, no campo da teoria social crítica, se detiveram a estudar um tipo

específico de Estado onde “o social” assume centralidade em suas funções de coesão: o Estado Social.

Assim, podemos encontrar em alguns de trabalhos de Claus Offe, Goran Therborn, Ramesh Mishra, Ian

Gough, dentre outros, tal perspectiva. 684

Estas cisões não tem na assistência social sua única motivação, contudo, o modo “visceral” com que se

travaram os debates, sobretudo, nas últimas décadas onde a “assistência” adquire centralidade perante o

conjunto das estratégias públicas voltadas “as novas formas de acumulação” do capital via Estado, faz

dela um inequívoco esteio. 685

Tardio porque estamos falando de uma sociedade de capitalismo tardio tal qual anunciou Mandel, e

específico porque, diferentemente do modo como emergem os sistemas de proteção social europeus, no

Brasil eles se constituem como parte das estratégias repressivas e repressoras de ditaduras e não como

componentes de sustentação de regimes democráticos.

Page 365: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

365

não termos alcançado padrões de desenvolvimento que levassem a instituição de um Estado de

Bem-Estar Social — e esses padrões não se relacionam apenas ao campo econômico — as

políticas sociais por aqui sempre foram componentes estratégicos das revoluções burguesas e

do transformismo, conduzidas pela classe dominante. Não que não o sejam também em países

de capitalismo avançado, contudo, a capacidade organizativa e o potencial contestatório das

classes subalternas em alguns desses países se coloca como elemento “decisivo” nos rumos de

sua política social.

O registro Constitucional da Assistência como política alçada ao campo dos direitos

sociais686

embora apresente um potencial que fortalece o enfrentamento de seus estatutos

genéticos clientelistas e patrimonialistas ao apresentar incongruências nessa definição abre um

campo para interpretações variadas sobre sua concretização. Soma-se a isso a conjuntura

adversa com que a Constituição se gestou: isto é, ela é promulgada anunciando a articulação

entre “trabalho”, “direitos” e “proteção social”, tríade que sustentara os padrões de regulação

sócio-estatal do Welfare State na contra-mão das tendências mundiais que direcionavam o

mundo para o desmonte dos Estados Sociais pela reversão neoliberal “que expressou

transformações do capitalismo contemporâneo e atingiu duramente o trabalho assalariado e as

relações de trabalho (YAZBEK, 2008, p. 88)687

.

Esse contexto de mudanças nas relações entre capital e trabalho, de avanço do

neoliberalismo enquanto paradigma político e econômico globalizado vai trazer para o

iniciante e incipiente campo da Seguridade Social brasileira profundos paradoxos.

Pois, se de um lado o Estado brasileiro aponta constitucionalmente para o

reconhecimento de direitos, por outro se insere num contexto de ajustamento a essa

nova ordem capitalista internacional onde o social subordina-se às políticas de

estabilização da economia com suas restrições aos gastos públicos e sua perspectiva

privatizadora (YAZBEK, 2008)688.

Vale assim notar que, superadas as falsas dicotomias sobre os significados potenciais do

campo assistencial presentes no Movimento de Reconceituação, o Serviço Social brasileiro, de

modo coletivo, constrói, a partir dos anos 1980, uma espécie de consenso que converge para o

entendimento e a defesa da Assistência Social como política pública, no campo dos direitos

sociais, cuja inscrição na Constituição Federal de 1988 como política de seguridade social lhe

confere todas as possibilidades (mesmo ambíguas) de satisfazer necessidades de reprodução

686

a própria Constituição é ambígua neste sentido, pois não nomina a Assistência em seu artigo 6º que

trata da definição dos direitos sociais, mas inclui ali atenções – como direito social – ao público que se

dedica prioritariamente. 687

YAZBEK, Maria Carmelita. Estado, Políticas Sociais e Implementação do SUAS. In SUAS:

Configurando os eixos de mudança. Coleção CapacitaSUAS, volume 1. Brasília/São Paulo: MDS/IEE-

PUC-SP, agosto de 2008. 688

Id.

Page 366: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

366

social da classe trabalhadora como direito e não mais como doação benevolente do Estado ou de

entidades assistenciais privadas. SPOSATI (1988)689

e PEREIRA (1996)690

simbolizam com

suas produções, divergentes quanto a natureza objetiva da Assistência, o referido consenso

quando a pensam sob a ótica dos direitos e da cidadania ampliada. Do ponto de vista político, as

vanguardas da profissão seguiram esse pacto tácito conduzindo a categoria à lutas pelo

reconhecimento efetivo da seguridade como base estruturante da proteção social e nela a

Assistência como seu componente não-contributivo extensor. Tal unidade prosseguiu “imune” a

contratempos até que os acontecimentos conjunturais da segunda fase do neoliberalismo à

brasileira repuseram os padrões unilaterais de análise, típicos da fase mais ortodoxa do

Movimento de Reconceituação, e, amparada pela visão do Estado como bloco monolítico a

serviço da burguesia, emerge um pensamento social que rompe com a unidade diversa

construída antes. A motivação para tal virada é eminentemente política, ideológica e de certo

modo, particularista: se constatando a dimensão prevalecente neoliberal dos governos Lula, se

fez necessário imprimir uma direção política-analítica à profissão que afastasse quaisquer

indícios de vinculação das vanguardas profissionais com o bloco emergente no poder político do

país. Assim, passado o período de apreensão e de euforia pela vitória do PT em 2003, o que se

seguiu foi uma intensa produção de críticas à sua política social, puxada pela transferência de

renda e pelo reposicionamento da área social como campo estratégico de governo. A ruptura

passou, então, a lateralizar as conquistas históricas nesse campo, consubstanciadas com a

criação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) ao privilegiar a extensão de ações

assistenciais em todas as áreas consideradas estratégicas pelo governo, alcunhando o fenômeno

de “assistencialização das políticas sociais”.

E, porque afirmamos que esse pensamento social rompe com o pacto em torno da

Assistência reconhecida como direito social? Ora, ao se afirmar que a Assistência Social se

estende para todas as áreas estratégicas de interesse do governo, de modo a impossibilitar a

progressividade destas áreas como campos públicos e de fomento à sociabilidade pelo trabalho,

considera-se não a Assistência como política pública – como defendido durante todos os anos

1980 e 1990 -, mas sim como um conjunto de “ações assistenciais” que tendem a ampararar a

população à margem do processo produtivo formal tradicional (população em situação de rua,

egressos do sistema prisional, moradores em áreas de risco geográfico-ambiental, etc.,

conhecidos na literatura marxiana como lumpem proletariado) e dos novos “assistidos”: a classe

trabalhadora vilipendiada em direitos pelo processo crescente de apartação social dado pelo

689

SPOSATI, Aldaíza. et al. Assistência Social na trajetória das políticas sociais brasileiras. São

Paulo: Cortez, 1988. 690

PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. A Assistência Social na perspectiva dos direitos: crítica

aos padrões dominantes de proteção social aos pobres no Brasil. Brasília: Thesaurus, 1996

Page 367: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

367

neoliberalismo (MOTA, 2012, p. 37)691

. Sendo assim, o termo-síntese: assistencialização se

justifica na medida em que ações assistenciais genéricas (resgatadoras do assistencialismo de

Estado e do clientelismo político) passam a compor o escopo das estratégias governamentais.

Esta concepção – ou pelo menos a infelicidade da escolha do termo-síntese – nega a Assistência

como política pública de direitos, pois se assim o fizesse, reconheceria seus estatutos possíveis

de sociabilidade (complementares a sociabilidade pelo trabalho, como é o que se atribui aos

direitos de cidadania) e ao ver sua regressão em formas pontuais, clientelistas e assistencialistas

se espraiando pela ossatura do Estado se refereria a um processo de desassistencialização e não

de assistencialização como utilizado pelas vanguardas.

Ademais, embora a base material da análise esteja correta, pois não se opõe a tudo que

já expomos sobre os modos como a política social se concretiza na primeira e segunda fases do

neoliberalismo à brasileira, o termo-síntese, que contou com uma extraordinária adesão acrítica

na profissão, sobretudo, em amplas parcelas da academia, tem sido utilizado de formas bastante

heterogêneas, culimando, inclusive em variações de sentido, embora todas convergentes a

crítica da Assistência Social e a reposição do seu reconhecimento como campo de atendimento

unilateral aos interesses do capital: assistencialização da política social (MONTAÑO, 2012, p.

286)692

, assistencialização da seguridade social (RODRIGUES, 2007, p. 120)693

,

assistêncialização da proteção social (MOTA, 2008, p. 135)694

, assistencialização da pobreza e

da desigualdade (NETTO, 2008, p. 11)695

, etc., são apenas algumas de suas variações696

.

De fato, não nos opomos a identificação da extensão de ações assistenciais no Brasil

recente e atual, e, nem mesmo das suas intenções afetas a implantação de um modelo social e

econômico que pensa as políticas de ativação como estruturais, todavia, esse processo é bem

691

MOTA, Ana Elizabete. Redução da pobreza e aumento da desigualdade: um desafio teórico-político ao

Serviço Social brasileiro (p. 37). In MOTA, Ana Elizabete (org.). Desenvolvimentismo e Construção de

Hegemonia: crescimento econômico e reprodução da desigualdade. São Paulo: Cortez, 2012. 692

MONTAÑO, Carlos. Pobreza, “questão social” e seu enfrentamento. In Revista Serviço Social e

Sociedade n. 110. São Paulo: Cortez, abril/junho 2012. 693

RODRIGUES, Mavi. Assistencialização da seguridade e do Serviço Social no Rio de Janeiro: notas

críticas de um retrocesso. In Revista Serviço Social e Sociedade n. 91. São Paulo: Cortez, 2007. 694

MOTA, Ana Elizabete. A centralidade da assistência social na Seguridade Social brasileira nos anos

2000. In O mito da assistência social: ensaios sobre Estado, Política e Sociedade. São Paulo: Cortez,

2008. 695

NETTO, José Paulo. Prefácio. In O mito da assistência social: ensaios sobre Estado, Política e

Sociedade. São Paulo: Cortez, 2008. 696

Além das nominatas heteróclitas, os sentidos do termo também são diversos. Montaño e Rodrigues,

por exemplo, se referem a “assistencialização” como os deslocamentos no âmbito da gestão do trabalho

na esfera pública (municipal como exemplo dominante) que alocam a maior parte das categorias

profissionais que tem por “objeto” de intervenção refrações imediatas da “questão social” nos órgãos

setoriais de gestão da assistência, onde os assistentes sociais se destacam. Mota, por seu turno, se refere a

“assistencialização” como a expansão de ações assistenciais no escopo das diversas políticas públicas em

detrimento da sociabilidade do trabalho. Netto, arremata, entendendo por “assistencialização”, alem da

expansão referida por Mota, o aumento significativo da atuação de assistentes sociais no âmbito do

planejamento, na execução e na avaliação de políticas de assistência. Muitos outros autores também

tratam do termo-síntese com outras conotações, citamos aqui, alguns dos que têm sido utilizados como

referência à direção social que se imprime à formação e ao exercício profissional.

Page 368: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

368

mais complexo e mais perverso, do ponto de vista da concertação entre capital-trabalho que se

assiste do que o termo-síntese “assistencialização” é capaz de demonstrar. É o que acontece

quando se procura de modo apressado enquadrar o movimento contraditório e dinâmico de uma

realidade em curso em interesses políticos de grupos que se advogam detentores do monopólio

da crítica e dos postulados revolucionários. A tese da assistêncialização apresenta inúmeras

outras impropriedades que não nos competer arrolar nesse subcapítulo, contudo, nos vale o

registro da sua importância no debate atual sobre o Estado brasileiro e sobre os rumos

conferidos ao projeto profissional.

4.3 Neodesenvolvimentismo (?) e o projeto profissional: ameaça ou possibilidade?

Até aqui, temos visto como o desenvolvimento do capitalismo brasileiro dos últimos tempos

tem apresentado características que repõem na programática do Estado nuanças significativas

das escolas de pensamento econômico neoliberal vinculadas ao grande capital internacional, ao

mesmo tempo em que as moderniza, mudando suas formas tradicionais, incorporando o

atendimento de interesses da fração da classe dominante que, embora não se vincule

organicamente a esse pensamento não se opõe frontalmente a ele. Em outros termos, podemos

dizer que a fração da classe burguesa vinculada ao capital estrangeiro, privilegiada no período

FHC, encontra no Estado que opera simbolicamente sob a égide neodesenvolvimentista uma

relativização do atendimento direto de seus interesses na medida em que a burguesia interna —

outra fração da classe dominante — é alçada à disputa do poder político devido ao modo como

este mesmo Estado concebeu e vem praticando suas ações de indução ao desenvolvimento. Por

se tratar de uma concertação peculiar no conjunto das estratégias neoliberais e

contrarreformistas no contexto do capitalismo mundial de fins de século XX e início de XXI,

atendendo e respeitando aos determinantes sociohistóricos e ideoculturais locais, denominamos

esse processo de neoliberalismo à brasileira.

Na categorização que fazemos o que fica evidente são os conflitos classistas que se

reconfiguram na lógica de uma disputa que em um só tempo acirra as tensões entre as frações de

classe que se locomovem no bloco no poder e reposiciona os segmentos da classe trabalhadora,

seja pelos ganhos laterais vindos das políticas públicas, seja pela inserção de alguns de seus

estratos na dinâmica estrutural do desenvolvimento capitalista, a exemplo dos gestores dos

fundos de pensão, como mencionamos no capítulo anterior. O fato é que a conjuntura recente

expõe a dinâmica estruturalmente cindida da relação entre as classes, obrigando os analistas

políticos deste período a ampliar suas observações antes restritas ao movimento das classes

Page 369: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

369

fundamentais para o espectro de suas frações e das classes intermédias697

e, também, o papel e

ação do Estado como uma “máquina que serve amplamente aos interesses da classe dominante,

mas a sua própria universalização exige que ele dê atenção à sociedade como um todo”

(PEREIRA, 2008, p. 123), lhe retirando assim qualquer possibilidade unívoca de constituir-se

como bloco homogêneo e monolítico.

As divisões internas do Estado, o funcionamento concreto de sua autonomia e o

estabelecimento de sua política através das fissuras que caracterizam-no, não se

reduzem às contradições entre as classes e frações do bloco no poder: dependem da

mesma maneira, e mesmo principalmente, do papel do Estado frente às classes

dominadas. Os aparelhos de Estado consagram e reproduzem a hegemonia ao

estabelecer um jogo (variável) de compromissos provisórios entre o bloco no poder e

determinadas classes dominadas. Os aparelhos de Estado organizam-unificam o bloco

no poder ao desorganizar-dividir continuamente as classes dominadas, polarizando-as

para o bloco no poder e ao curto-circuitar suas organizações políticas específicas

(POULANTZAS, 2000, p. 142-143)698.

Portanto, se é certo que a função de dominação atravessa a essência do Estado em suas

várias formações sociais e se consolida em sua moldura capitalista monopólica, tal qual

apontaram Marx, Engels e Lênin, também é certo o papel das forças vivas que atuam no choque

entre as forças produtivas e as relações de produção na perspectiva da indução do processo de

superação da ordem do capital. E, estas forças ao se forjarem na dinâmica entre as classes

imprimem no Estado suas contradições, fazendo-o condensar as correlações entre elas no tempo

presente.

697

Poulantzas (2000, p. 194-204) sistematiza esta dinâmica a categorizando em dois níveis de

contradições: as contradições principais epicentradas na disputa entre as classes fundamentais —

burguesia e proletariado —, e, as contradições secundárias resultantes das relações contraditórias entre

classes e frações de classes no próprio seio do Estado. Ver: PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira.

Poítica Social: temas & questões. São Paulo: Cortez, 2008, p. 123. 698

POULANTZAS, Nicos. O Estado, O Poder, O Socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

Page 370: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

370

A autonomia relativa do Estado diante de tal ou qual fração do bloco no poder é

necessária igualmente para a organização da hegemonia, a longo termo e de conjunto,

do bloco no poder em relação às classes dominadas, sendo imposto muitas vezes ao

bloco no poder, ou a uma outra de suas frações, os compromissos materiais

indispensáveis a essa hegemonia. Mas esse papel do Estado diante das classes

dominadas, tanto como seu papel frente ao bloco no poder, não deriva de sua

racionalidade intrínseca como entidade “exterior” às classes dominadas. Ele está

igualmente inscrito na ossatura organizacional do Estado como condensação material

de uma relação de forças entre classes. O Estado concentra não apenas a relação de

forças entre frações do bloco no poder, mas também a relação de forças entre estas e

as classes dominadas (Id., p. 143)699.

E é exatamente este movimento que a conjuntura recente do país tem explicitado com

tal vigor, que, somente os que não se interessam pela vida real da história podem negá-lo.

Mesmo as análises sustentadas na concepção unilateral do Estado reconhecem a desacomodação

que a era Lula provocou na dinâmica entre as classes no Brasil. Deste modo, é a própria

realidade factualmente dada que vai aos poucos tornando insustentável o tratamento do Estado

como comitê gestor dos interesses da burguesia sem inflexionar-se, também por dentro, pelo

movimento dinâmico das relações classistas. Já exploramos de modo suficiente, em outros

momentos dessa tese, a contextualização histórica que provoca tais mudanças nas relações de

poder político no país. O que falta considerar é que essas relações — de continuidades e

rupturas — deixaram ainda mais expostas as fissuras no bloco no poder entre, justamente, a

fração da classe dominante que sustenta a permanência da ortodoxia neoliberal dos anos 1990 e

os grupos que propalam as mudanças neodesenvolvimentistas como alternativas ao

neoliberalismo, mas que em última análise mudam a membrana para permanecer com o núcleo

intocável, ainda que tais mudanças gerem insatisfação no primeiro grupo, exatamente por

ampliarem as relações entre segmentos diversos das classes dominadas ascendentes ao poder

político.

Boito Jr (2013, p. 01)700

refere que o primeiro grupo, signatário de um programa

monetarista mantém fortes seus vínculos com o grande capital financeiro internacional, com as

empresas produtivas sediadas no exterior e com a fração da burguesia brasileira integrada a tais

interesses. O desenvolvimento que consta em seu pensamento econômico pressupõe:

699

Ob. Cit. 700

BOITO Jr., Armando. Pensamento Econômico e conflito de classe. In Brasil de Fato, edição

eletrônica de 02/04/2013. Acessado em 03 de abril de 2013.

Page 371: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

371

(...) rigidez no controle da inflação, juro alto, câmbio com certa estabilidade e

preferencialmente apreciado, redução dos gastos públicos com investimentos

produtivos e sociais, abertura comercial e desregulamentação financeira, retomada do

programa de privatizações e da reforma trabalhista (id., p.01).

O que este grupo pretende com tais medidas é retomar o desenvolvimento regressivo

baseado na especulação financeira e potencialmente voltado a um tipo de acumulação que

exponencia o volume de exportação de capitais brasileiros. Deste modo, a estrutura de

concentração da propriedade sob a forma monetária é refletida no pensamento econômico deste

grupo pela defesa do seguinte ciclo:

(..) a inflação desvaloriza a mercadoria (dinheiro) do capital financeiro, o juro alto

remunera-o melhor, o câmbio estável e apreciado permite a entrada e saída sem

sobressaltos e de maneira lucrativa — isto é, comprando dólar barato — do capital

estrangeiro investido em ações, em títulos da dívida pública e em serviços diversos no

país, a abertura comercial coloca o mercado interno ao alcance das mercadorias

produzidas nos países centrais e colabora no combate à inflação, a redução dos gastos

com investimento produtivo — mas não com a rolagem da dívida — lhes dá

segurança de que o Estado poderá honrar seus compromissos com todo tipo de papel

que se encontra nas mãos dos rentistas e assim por diante. Os monetaristas martelam,

sem cansar e sem medo de serem repetitivos, nas teclas do “centro da meta da

inflação”, do superávit primário, da crítica à intervenção do mercado de câmbio e

outras (ibid., p.01).

O segmento do neoliberalismo à brasileira — autodenominado de

neodesenvolvimentista — tem recebido por nós essa nominação justamente por não romper

completamente com o programa monetarista, contudo, sua vinculação orgânica é com a grande

burguesia interna701

. Mesmo em um contexto de desindustrialização e desnacionalização, este

segmento representa o que há de consolidado no ciclo final de nossa história de industrialização,

atestado, sobretudo, pela ofensiva industrializante no campo702

, nos setores da indústria de

transformação, mineração, prospecção e refino de petróleo, construção civil pesada,

agronegócio, alimentos e bebidas (vide quadro 2, p. 282) (id. Ob. Cit.). Representam a massa

concentrada de capitais de origem brasileira que tende a iniciar seu processo de valorização em

solo nacional, começando, evidentemente, pela expropriação do trabalho. A cartilha deste grupo

social, embora heterogêneo, é defensora das seguintes medidas:

701

E, que, como também já demonstramos só pode ser entendida em seus aspectos relacionais ao grande

capital internacional. 702

Que pode ser verificada pela constante introdução de tecnologias materiais e biológicas seja na cadeia

produtiva de animais ou de alimentos, onde a tecnologia de transgênicos e os insumos químicos que

“engordam” gado e aves são apenas uma de suas expressões. Este processo passa pela expropriação da

terra até a expropriação dos meios produtivos fundamentais, que na lógica neoliberal-brasileira se

compensa com políticas de distribuição de sementes, de assistência técnica, etc.

Page 372: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

372

(...) maior tolerância com a inflação para que o Estado possa lançar mão de políticas

anticíclicas, juro baixo para baratear os investimentos produtivos, câmbio depreciado

e restrições à abertura comercial para proteger a produção local e ganhar mercado e

lucratividade para as exportações brasileiras e aumento dos gastos públicos para

investimentos em infraestrutura, para que o BNDES possa continuar emprestando a

juro subsidiado e para que o Estado possa realizar suas compras de produtores locais

mesmo quando tal compra exija um pagamento até 25% superior ao preço

estabelecido por empresas sediadas em outros países (ibibid., p.01).

Esta agenda tem sido contemplada de modo politicamente melhor no governo Dilma.

Esse governo tem tido as condições necessárias para gerenciar os interesses da burguesia

interna, sem perder a participação do capital internacional no capitalismo brasileiro, devido ao

duplo legado que recebe. De um lado, se depara com a consolidação de uma das principais

características da segunda fase do neoliberalismo à brasileira que é o movimento das

recomposições acionárias associado às privatizações que levaram ao aumento da massa

concentrada de capital nacional (ver item 3.3.1.2. p. 263-284), e, por outro, conta com o

enraizamento estrutural dos conteúdos ideoculturais do padrão de desenvolvimento que se

encampam nas massas trabalhadoras decorrentes da concertação entre capital-trabalho

promovida no governo Lula703

. A “política” pareceu estar resolvida, abrindo campo para o

gerenciamento técnico da programática anterior704

. Os índices de aprovação do governo

Rousseff se explicam fundamentalmente por conta deste desempenho gerencial705

. Esta, aliás, é

uma das mudanças epidérmicas também presentes no contexto das continuidades e rupturas com

o programa neoliberal dos anos 1990. Isto é, o gerencialismo, embora seja uma prática própria

da administração privada, se torna uma característica fundante do neoliberalismo quando

703

Dois trabalhos distintos, porém combinados, podem ajudar no entendimento do processo recente de

reordenamento ideocultural e político das massas brasileiras na direção da legitimidade que essas massas

conferem ao governo central petista e as políticas econômicas e sociais que empreende. ALVES,

Giovanni. Trabalho e Subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório.

São Paulo: Boitempo, 2011 e BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia

lulista. São Paulo: Boitempo, 2012. 704 Em janeiro de 2012, uma matéria no Jornal O Estado de S. Paulo trazia uma entrevista com o

presidente do maior banco privado do país Roberto Setubal, que na chamada de capa trazia: “Roberto

Setubal, principal executivo do Itaú, maior banco privado brasileiro, gosta de tudo o que tem visto do

governo da Dilma Rousseff, e considera que a maior vantagem da gestão da presidente é a de "tornar o

governo mais técnico e despolitizar as áreas que exigem discussão mais técnica". Participando pela

primeira vez do Fórum Econômico Mundial, em Davos, Setubal ficou surpreso com o assédio do qual

está sendo alvo por parte de investidores e empresários interessados no Brasil - em busca de informações

sobre o País e sobre como o Itaú pode ajudar a viabilizar aqueles interesses. Os participantes do Fórum

Mundial têm em Setubal um interlocutor que vai lhes transmitir uma visão fundamentalmente positiva do

País e do governo da presidente Dilma Rousseff”. Jornal O Estado de S. Paulo, edição de 28 de janeiro de

2012. Caderno de Economia e Negócios. 705

Em março de 2013 o índice de aprovação do governo Rousseff era de 63%, segundo pesquisa Ibope,

encomendada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), superando os índices registrados em tempo

de governo similares de FHC e Lula.

Page 373: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

373

transfundido à esfera pública (NOGUEIRA & DI GIOVANNI, 2013, p. 396-398)706

, deste

modo, se legitima a partir de uma crítica a ineficiência da burocracia estatal. O gerencialismo

atual mantém como matéria-prima de suas ações as funções econômicas do Estado sob um

simulacro político já consolidado. O discurso oficial dissemina a prática das ações de indução

ao desenvolvimento com medidas de um nacionalismo genérico, que agrada a burguesia interna,

não encerra as possibilidades da participação estrangeira e ainda conta com ampla aceitação

popular

Mas para chegar aí [competitividade] é preciso melhorar a infraestrutura, avançar na

produção de tecnologia e aprimorar os vários níveis de educação, saber e

conhecimento. (...). Por isso, estamos lançando um conjunto de medidas que irão

baixar o custo da nossa energia e do nosso transporte, e reforçar, com vigor, a

capacidade de investimento do nosso país. De forma simultânea, criamos – e estamos

a ampliar – as condições para baixar juros, diminuir impostos e equilibrar o câmbio.

(...) Estamos, agora, lançando as bases concretas para sermos, no médio e no longo

prazo, um dos países com melhor infraestrutura, com melhor tecnologia industrial,

melhor eficiência produtiva e menor custo de produção. (ROUSSEFF, 2011)707.

(...) Vou ter o prazer de anunciar a mais forte redução de que se tem notícia, neste

país, nas tarifas de energia elétrica das indústrias e dos consumidores domésticos. A

medida vai entrar em vigor no início de 2013. (...) Esta queda no custo da energia

elétrica tornará o setor produtivo ainda mais competitivo. Os ganhos, sem dúvida,

serão usados tanto para redução de preços para o consumidor brasileiro, como para os

produtos de exportação, o que vai abrir mais mercados, dentro e fora do país. (...)

Também acabamos de assinar um conjunto de medidas que vai provocar, no médio e

no longo prazo, uma verdadeira revolução no setor de transportes no nosso país.

Criamos a Empresa de Planejamento e Logística que, em parceria com a iniciativa

privada, vai promover uma completa reformulação no setor de rodovias, ferrovias,

portos e aeroportos. Além de restabelecer a capacidade de planejamento do sistema de

transporte, o novo modelo vai promover a integração e acelerar a construção e

modernização de ferrovias, rodovias, portos e aeroportos. (...) Ao contrário do antigo

e questionável modelo de privatização de ferrovias, que torrou patrimônio público

para pagar dívida, e ainda terminou por gerar monopólios, privilégios, frete elevado e

baixa eficiência, o nosso sistema de concessão vai reforçar o poder regulador do

Estado para garantir qualidade, acabar com os monopólios, e assegurar o mais baixo

custo de frete possível. (...) Revigoramos os fundamentos da nossa política econômica

exitosa, mas, ao mesmo tempo, iniciamos uma mudança estrutural que tem, como

sustentação, uma taxa de juros baixa, o câmbio competitivo e a redução da carga

tributária. (id.)708.

706

NOGUEIRA, Marco Aurélio & DI GIOVANNI, Geraldo (orgs). Dicionário de Políticas Públicas.

São Paulo: Fundap, 2013. Verbete Gerencialismo. 707

Discurso proferido pela presidenta Dilma Rousseff em 06/07/2012 por ocasião das comemorações do

feriado de 7 de setembro. 708

Id.

Page 374: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

374

(...) Sei que não é uma luta fácil. Mas garanto a vocês que não descansarei enquanto

não vir isso se tornar realidade. Como também não descansarei na busca de novas

formas para diminuir impostos e tarifas sem causar desequilíbrio às contas públicas, e,

notadamente, sem trazer prejuízos a nossa política social. E quero ressaltar que estou

disposta a abrir um amplo diálogo com todas as forças políticas e produtivas para

aprimorarmos o nosso sistema tributário. (...) Entre outras medidas, estamos

incentivando o emprego por meio da diminuição dos impostos sobre a folha de

pagamento das empresas. (ibid.)709.

Fica possibilitado ao discurso e a prática econômica do governo da presidenta Rousseff

demarcar diferenças entre seu programa e o do governo FHC pelos motivos que expomos antes:

o duplo legado que recebe, e, ainda um terceiro elemento se convoca agora: suas intenções

políticas de desvincular sua imagem (e de seu governo) da sombra do ex-presidente Lula. Mas o

tecnocracismo característico do período Rousseff não é capaz de se sobrepor totalmente à

instância política plasmada no Estado e fora dele. O gerencialismo em questão também se

estende à gestão das forças políticas na medida em que o estatismo praticado tende a incomodar

o bloco no poder, mesmo os que defendem o intervencionismo como forma de corrigir as

distorções do modelo de acumulação. Como já referido por Poulantzas (2000, p. 194) a

intervenção do Estado na esfera econômica apresenta limites estruturais que nem mesmo o

gerencialismo de centro-esquerda é capaz de superar. Contudo, uma análise apressada pode

levar à ideia de que se coloca na agenda pública social a perspectiva da transição societária

impulsionada pelo novo estatismo

(...) Aqui também cumpre suspeitar da contumaz imagem de um Estado onipotente

que se encaminha progressivamente, de maneira inelutável, para o que Henri Lefebvre

designa então pelo termo de “modo de produção estatal”. Não se deve confiar

principalmente na aplicação dessa imagem ás relações entre o Estado e a economia

quando ela se une com frequência a um tecnocratismo de esquerda (o que não é

certamente o caso de Lefebvre): a crença nas capacidades intrínsecas de um Estado

racionalizador-administrador para efetuar, luminosamente orientado por experts de

esquerda, uma transição para o socialismo (POULANTZAS, 2000, p. 194)710

Se Poulantzas (2000, p. 194) alerta para os limites dessa forma de Estado-

administração, o próprio Marx (1982) já o fizera quando denunciara no New-York Daily Tribune

a senilidade do governo inglês conduzido pelo Lorde Alberdeen anunciado como novidade pelo

jornal britânico Times. Na ocasião — dezembro de 1852 — o governo inglês resolve promover

uma separação radical entre política e economia nomeando um governo de técnicos. A novidade

709

Discurso proferido pela presidenta Dilma Rousseff em 06/07/2012 por ocasião das comemorações do

feriado de 7 de setembro. 710

POULANTZAS, Nicos. O Estado, O Poder, O Socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

Page 375: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

375

da despolitização do governo é saudada pela imprensa burguesa, e, na chamada do Times é

assim anunciada:

Stiamo per entrare nel millennio politico, in un'epoca in cui lo spirito di partito è

destinato a sparire dalla terra e in cui soltanto genio, esperienza, industriosità e

patriottismo daranno diritto ai pubblici uffici. Abbiamo un ministero che sembra

dover esigere l'approvazione e l'appoggio degli uomini di ogni tendenza. I suoi

principi esigono il consenso e l'appoggio universali 711

Ao que Marx responde:

Con queste parole il «Times» nella prima ebbrezza del suo entusiasmo ha salutato il

governo Aberdeen. Dal tenore di queste parole si potrebbe esser indotti a immaginare

che, a partire da oggi, l'Inghilterra sarà privilegiata dallo spettacolo di un ministero

composto unicamente da uomini nuovi, giovani e promettenti, e il mondo sarà

certamente non poco stupito quando avrà appreso che la nuova èra nella storia della

Gran Bretagna sta per esser inaugurata nientedimeno che da logori e decrepiti

ottuagenari: Aberdeen, d'ottantanni; Lansdowne, con un piede ormai nella tomba;

Palmerston e Russell, che vi si avvicinano a gran passi; Graham, il burocrate che ha

partecipato quasi a ogni governo a partire dalla fine del secolo scorso; altri membri

del gabinetto, doppiamente morti per età e usura e solo richiamati in vita

artificialmente; in complesso, una mezza dozzina di centenari (MARX, 1982)712

A ironia de Marx com relação ao gabinete Aberdeen (dezembro de 1852 à janeiro de

1855) procurava evidenciar a falácia da tentativa de tornar o governo asséptico e acima das

classes, ou melhor, proclamando a extinção das classes pela tecnocracia. Indaga diretamente as

intenções do diário inglês:

711

“Estamos prestes a entrar em um novo milênio político, numa época em que o espírito de partido está

destinado a desaparecer da terra e que só a genialidade, a indústria, a experiência e o patriotismo darão

acesso aos cargos públicos. Nós temos um governo que exige a aprovação e apoio de homens de todas as

tendências. Seus princípios exigem o consentimento e apoio universais” (tradução livre). MARX, Karl.

Un governo decrepito – Prospettive del ministero di coalizione, ecc. In New-York Daily Tribune, n.

3677, 28 gennaio 1853. Disponível em italiano em:

http://www.resistenze.org/sito/ma/di/cm/mdcmbm19-010004.htm. Acesso em 03 de dezembro de 2012. 712

“Com estas palavras, o jornal "Times" no primeiro ímpeto de seu entusiasmo cumprimentou o governo

de Aberdeen. A partir do teor destas palavras pode-se imaginar que, a partir de hoje, a Inglaterra será

privilegiada pelo espetáculo de um governo composto exclusivamente de homens e mulheres novos,

jovens e promissores, e o mundo ficará certamente, um pouco surpreso, quando souber que a nova era na

história da Grã-Bretanha será inaugurada por ninguém menos que decrépitos octogenários: Aberdeen, de

80; Lansdowne, com um pé já na sepultura, Palmerston e Russell, que se aproximam dela a passos largos,

Graham, burocrata que participou de quase todos os governos desde a virada do século, frequentadores

assíduos de gabinetes, duplamente mortos, por idade e por usura, e só mantidos vivos por artifício”

(tradução livre). MARX, Karl. Un governo decrepito – Prospettive del ministero di coalizione, ecc. In

New-York Daily Tribune, n. 3677, 28 gennaio 1853. Disponível em italiano em:

http://www.resistenze.org/sito/ma/di/cm/mdcmbm19-010004.htm. Acesso em 03 de dezembro de 2012.

Page 376: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

376

Ci viene promesso, in questo millennio, la scomparsa totale delle lotte tra i partiti,

anzi, la scomparsa degli stessi partiti. Che cosa vuoi dire il «Times»? (id.)713

Esse primeiro governo técnico da história do capitalismo monopólico, assim como o

segundo governo de Lula, mas principalmente o da presidenta Dilma, também se ampararam

sob o signo da coalizão. Esta estratégia de manutenção do poder político, típica das democracias

liberais de massa, impensável aos precursores do pensamento sobre o Estado moderno como

Maquiavel, se viabiliza a partir do invólucro ideológico da governabilidade e da neutralidade do

Estado ante as disputas classistas, em alguns casos, como fora pensado na Inglaterra de

Aberdeen, atribuem ao Estado o papel de induzir, pela generalização de supostos interesses

comuns, o fim das classes714

.

O que estamos assistindo no Brasil não se conclui deste modo, contudo, a concertação

política do lulismo associada ao gerencialismo da presidenta Rousseff deslocou as disputas

classistas, representadas na esfera pública pelos partidos, do campo das disputas por projetos

societários para contendas eleitoreiras, anulando a configuração de partidos programáticos e

pendentes, no máximo, ao reformismo, ou seja, sem possibilidades reais da agenda socialista ser

posta em evidência (ARCARY, 2011)715

e disputada para além dos embates nos aparelhos

privados de hegemonia.

Com este quadro, a natureza de dominação do Estado se mostra presente, como

inevitável que é; modifica a forma em que ocorrem as lutas de classes: esse movimento dos

partidos — onde os grandes partidos mais se parecem do que se distinguem — é consoante ao

novo desenho do bloco no poder716

, mas não elimina as contradições típicas do Sistema. Assim,

retomar o tratamento analítico do Estado é mais que uma requisição do campo do

conhecimento: é um imperativo a qualquer luta política contemporânea, sobretudo, as que se

colocam no campo antisistêmico.

De modo sumário, se não podemos, por um lado, caracterizar a conjuntura iniciada a

partir da metade do segundo governo Lula como neodesenvolvimentista por subverter as

características essenciais do desenvolvimentismo clássico, por outro, admitimos a existência de

713

“Temos a promessa da desaparição total das lutas entre os partidos, inclusive o desaparecimento dos

próprios partidos, o que o “Times” quer dizer? (tradução livre). Ob cit. 714

Mas não da desigualdade entre elas, o que não inviabiliza um governo de coalizão supra e

policlassista. 715

Desde o início da redemocratização é a primeira vez que estamos assistindo a um terceiro mandato de

um mesmo partido no governo federal com chances de se conduzir ao quarto. ARCARY, Valério. Um

reformismo quase sem reformas: uma crítica marxista do governo Lula em defesa da revolução

brasileira. São Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2011. 716

Desde o primeiro governo Lula, a participação de quadros políticos simpáticos aos partidos opositores

ao PT, no governo, atestam as aproximações do ponto de vista técnico, como por exemplo, o ex-Ministro

do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Luiz Fernando Furlan, empresário, presidente da

Sadia e o atual Ministro da Secretaria da Micro e Pequena Empresa, Guilherme Afif Domingos, vice-

governador de São Paulo, notadamente um dos quadros anti-petista mais conhecidos do país.

Page 377: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

377

mudanças significativas nas relações entre as classes e o Estado que incidem em transformações

no modo como se pensa e se propala o desenvolvimento capitalista nesta quadra histórica. A

dinâmica de continuidades e rupturas que arrolamos no capítulo III diz respeito a continuidades

e rupturas do modelo neoliberal iniciado em fins de 1980 e consagrado nos anos 1990 com FHC

e não às dinâmicas próprias dos momentos de síntese do desenvolvimento capitalista chamados

de desenvolvimentistas findadas por aqui nos anos 1970. Essa afirmação, em si mesma uma

tese, encontra ressonância no processo em curso de ressignificação de um conjunto de

parâmetros e prerrogativas que balizaram a ofensiva neoliberal e o contrarreformismo dos

Estados. Os componentes relacionais — econômicos, políticos, sociais, culturais, ideológicos,

etc. —, ressignificados neste contexto, dizem respeito basicamente a quatro movimentos

dinâmicos conhecidos a exaustão, pois foram (e tem sido) explorados desde o início do período

neoliberal e contrarreformista pela análise e prática política de nossa categoria (mas também de

outras). São eles: 1) a relação do país com os organismos multilaterais; 2) o debate sobre

universalização e focalização das políticas públicas sociais; 3) a relação entre política

econômica e política social e 4) a concepção unilateral de Estado como bloco monolítico a

serviço do capital.

Desde o Consenso de Washington tem sido atribuído, pelos críticos do sistema, aos

organismos multilaterais, o protagonismo das intenções e comandos dos ajustes reestruturadores

dos aparelhos estatais voltados às novas formas de desenvolvimento e acumulação. Nos

documentos oficiais emanados por estes órgãos tais qual o FMI ou o Banco Mundial, se

encontram os postulados fundamentais das ações que devem ser tomadas pelos países,

sobretudo, os periféricos, para que alcancem desenvolvimento. Deste modo, emerge uma

relação de interdependência entre eles, onde, em alguns casos, a inteira administração nacional

acaba de modo indireto sendo feita por tais organizações. A centralidade estrutural conferida por

uma diversidade de analistas críticos a essa relação acabou por expor algumas análises a um

risco previsível: considerar os comandos emanados pelos órgãos exteriores como determinantes

isolados do padrão e do conjunto das ações que os países tomam na intenção dos ajustes. Os

argumentos de OLIVEIRA (2008) se situam exatamente nesse campo, e, expressam uma das

muitas tendências analíticas no Serviço Social brasileiro:

Page 378: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

378

Percebe-se, dessa maneira, que as orientações dos organismos internacionais, como o

Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, para as políticas sociais vêm

sendo seguidas no sentido de focalizar as ações, estimulando os fundos sociais de

emergência 717 , mobilizando os setores da sociedade civil por meio do apelo à

“solidariedade” e ao “voluntariado”, assim como às organizações filantrópicas e não-

governamentais. As agências multilaterais preveem, inclusive em cláusulas sociais

dos acordos de empréstimos aos países periféricos, redes emergenciais de segurança e

de proteção social para as vítimas do “ajuste” (OLIVEIRA, 2008, p. 116)718.

Essa perspectiva, embora assertiva na descrição tanto das intenções quanto das formas

de concretizar as diretrizes desses organismos, tende a subestimar o movimento interno das

classes, as construções sociohistóricas da cultura política local e as capacidades de resistência

das massas expropriadas. Tal simplificação analítica é sobremaneira minimizada na conjuntura

dos anos 1990, pois por mais que se considerem as particularidades e as singularidades

nacionais no processo, a maioria absoluta das ações do Estado (e dos mercados) convergem para

a aplicação rigorosa das medidas previstas nos acordos bi ou multilaterais em escala mundial,

sendo a liberalização econômica uma das medidas essenciais, pois permite e facilita a presença

do capital estrangeiro em solos nacionais, facilitando a implantação da reversão neoliberal.

Ainda assim, não é razoável a admissão de generalizações rasteiras que incluem no campo da

programática dominante conquistas das lutas das classes e grupos subalternos e, por extensão

lógica, excluem as possibilidades de politização das massas e de suas demandas. É o que fica

evidente na continuidade dos argumentos de Oliveira:

717

Os fundos paralelos que pulverizam os recursos destinados às políticas sociais, em especial a

Assistência Social, fazem parte das disputas que se travam também no país entre os diferentes atores

políticos pelos modos de gerenciamento da coisa pública, enfeixados em ideologias emolduradas pelos

partidos políticos. Os fundos sociais de solidariedade, por exemplo, têm sido privilegiados, no geral,

pelas administrações públicas vinculadas ao PSDB/DEM e partidos afins. Já o comando único das

unidades orçamentárias é uma diretriz disputada (no sentido da sua implementação) em prefeituras e

governos estaduais do PT ou próximos a ele, ainda que de modo hetergêneo. As orientações emanadas

pelos organismos internacionais parametrizam os fins (o modo da aplicação do recurso) e não os meios

(se por fundos ou pela administração direta). Como não é possível desvincular fins de meios, a disputa

partidária e ideológica refletida na gestão dos recursos é uma particularidade que não pode ser ignorada

na conformação e análise da política social sob pena de esvaziar o particular como um inteiro campo de

mediações. Poucas são as análises, em nossa categoria, que observam tais mediações. 718

OLIVEIRA, Luciana Vargas Netto. Estado e políticas públicas no Brasil: desafios ante a conjuntura

neoliberal. In Revista Serviço Social e Sociedade n. 93, ano XXIX, março de 2008. São Paulo: Cortez,

2008.

Page 379: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

379

Alguns programas desenvolvidos na década de 1990 e ainda existentes hoje, apesar de

remodelados, como o Programa Comunidade Solidária, o Programa de Erradicação do

Trabalho Infantil (Peti), Programa Bolsa Escola, atualmente integrado ao Programa

Bolsa Família, por exemplo, são tentativas de abordagem da pobreza de forma

localizada e pontual, configurando-se uma forma de gestão do social e das populações

pobres que esvazia as noções de democracia, de justiça social e de equidade

(OLIVEIRA, 2008, p. 116)719.

Em um único parágrafo a autora concedeu tratamento linear e igualitário a uma

estratégia de governo (Comunidade Solidária), única a sofrer mais rupturas que continuidades

na conjuntura recente720

e, programas centrados na transferência monetária como definidores de

todo conteúdo das políticas sociais. Isto é, o fato do governo priorirzar as transferências

monetárias em sua política social leva analistas como Oliveira (2008) a definirem-na por essa

única dimensão, assim, o que a autora esvazia, em realidade, é a luta pelos serviços. Ademais,

quando afirma que há um esvaziamento das noções de “democracia, justiça social e equidade”,

ao não explicitar a que “democracia, justiça social e equidade” se refere (se está se tratando de

consígnias burguesas?), ignora que instâncias de disputas democráticas como os Conselhos, as

CIBs e a CIT, esvaziadas pelo contrarreformismo dos anos 1990, são revigoradas tanto com o

SUAS721

, como também pela unificação das transferências monetárias com o Bolsa Família,

quando a Lei que o institui dispõe sobre a criação das instâncias de controle social do programa,

que mais tarde são completamente incorporadas às instâncias análogas da Assistência Social

(conquista histórica da sociedade brasileira que contou com protagonismo da categoria). E, que

fique registrado: não se trata, pois, do “modismo da sacralização da sociedade civil” como

referiu NETTO (2008, p. 11)722

, mas sim das possibilidades de luta para que as políticas

públicas (nesse caso específico a assistência social) sejam reconhidas como “políticas” e

tratadas como “públicas” como apontou RAICHELIS (1998)723

ou ainda: para que os assistentes

sociais possam desenvolver “um trabalho pautado (...) na atualização dos compromissos ético-

719

Id. 720

Ver: STUCHI, Carolina Gabas; PAULA, Renato Francisco dos Santos & PAZ, Rosangela Dias de

Oliveira da. Assistência Social e Filantropia: cenários contemporâneos. São Paulo: Veras, 2012, onde

os autores discutem as mudanças e as tensões em torno da aprovação e das tentativas de implementação

da Lei 12.101/2009, que ao lado de outras normatizações como a NOB/RH-SUAS, o artigo 6º E da Loas

(incluído com a Lei 12.435/2011) e outras resoluções do CNAS demonstram as investidas na direção da

reversão do paradigma voluntarista da estratégia Comunidade Solidária em prol da profissionalização e da

regulação pública e estatal do terceiro setor. 721

Basta observar tanto as regras de expansão dos serviços socioassistenciais quanto os indicadores do

Censo SUAS para constatar a indução, pelo SUAS, do cumprimento do papel participativos dessas

instâncias do Sistema. 722

NETTO, José Paulo. Prefácio. In MOTA, Ana Elizabete. O Mito da Assistência Social: ensaios

sobre Estado, Política e Sociedade. São Paulo: Cortez, 2008. 723

RAICHELIS, Raquel. Esfera pública e conselhos de assistência social: caminhos da construção

democrática. São Paulo: Cortez, 1998.

Page 380: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

380

políticos com os interesses da população usuária”, como frisa IAMAMOTO (2003, p. 20)724

, ou

se preferirmos, para que se ampliem as possibilidades de politização das classes e grupos

subalternos, como disse YAZBEK (1999)725

, tratando, de modo definitivo, da política como um

complexo também racional, ético e cívico, como arremata PEREIRA (2002, p. 220)726

.

O corpo argumentativo de Oliveira segue um modelo analítico, utilizado em larga escala

no Serviço Social brasileiro (BRAZ, 2004 e 2007; NETTO, 2004; ABRAMIDES, 2007;

MONTAÑO, 2012; MOTA, 2008ª e b e 2012; SITCOVSKY, 2008 e 2012)727

que tende a se

enfraquecer enquanto “modelo”, pois a observação criteriosa do Brasil pós-2003 revela

mudanças, ainda que sutis, nas relações entre o país e os organismos multilaterais. Evidente que

tais mudanças não implicam a superação da subalternidade brasileira ante o grupo de países

capitalistas que lideram a ordem dos mercados, mas as pequenas rupturas particularizadas no

tipo de desenvolvimento desigual/combinado dos últimos anos acarretaram uma autonomia

relativa do país, possibilitando até mesmo defesas mais contundentes dos interesses nacionais

nos fóruns mundiais de gestão do capital globalizado728

.

É possível, ainda de outro modo, demonstrar essa assertiva cotejando os conteúdos dos

guias para o desenvolvimento econômico dos organismos multilaterais com as medidas tomadas

pelo governo brasileiro na conjuntura recente. Em 2008, por exemplo, o FMI pregava cortes nas

724

IAMAMOTO, Marilda Vilella. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação

profissional. São Paulo: Cortez, 2003. 725

YAZBEK, Maria Carmelita. Classes subalternas e assistência social. São Paulo: Cortez, 1999 (3ª

edição). 726

PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. Sobre a política de assistência social no Brasil. In BRAVO,

Maria Inês Souza & PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. (orgs). Política Social e Democracia. São

Paulo: Cortez, 2002. 727 Apenas alguns autores, mas a tendência se expressa em muitas outras produções. BRAZ, Marcelo. O

governo Lula e o projeto ético-político do Serviço Social. In Revista Serviço Social e Sociedade n. 78,

ano XXV. São Paulo: Cortez, julho de 2004; BRAZ, Marcelo. O PAC e o Serviço Social: crescimento

para quê e para quem? Os setenta anos da profissão e os seus desafios conjunturais. In Revista Serviço

Social e Sociedade n. 91, ano XXVIII. São Paulo: Cortez, 2007; NETTO, José Paulo. A conjuntura

brasileira: O Serviço Social posto à prova. In Revista Serviço Social e Sociedade n. 79, ano XXV. São

Paulo: Cortez, 2004; ABRAMIDES, Maria Beatriz Costa. Desafios do projeto profissional de ruptura

com o conservadorismo. In Revista Serviço Social e Sociedade n. 91, ano XXVIII. São Paulo: Cortez,

2007; MONTAÑO, Carlos. Pobreza, “questão social” e seu enfrentamento. In Revista Serviço Social e

Sociedade n. 110, São Paulo: Cortez, 2012; MOTA, Ana Elizabete. Questão Social e Serviço Social: um

debate necessário. In MOTA, Ana Elizabete (org). O Mito da Assistência Social: ensaios sobre Estado,

política e sociedade. São Paulo: Cortez, 2008ª; MOTA, Ana Elizabete. A centralidade da Assistência

Social na Seguridade Social brasileira nos anos 2000. In MOTA, Ana Elizabete (org). O Mito da

Assistência Social: ensaios sobre Estado, política e sociedade. São Paulo: Cortez, 2008b; SITCOVSKY,

Marcelo. Particularidades da expansão da assistência social no Brasil. In MOTA, Ana Elizabete (org). O

Mito da Assistência Social: ensaios sobre Estado, política e sociedade. São Paulo: Cortez, 2008;

SITCOVSKY, Marcelo. A reconciliação entre assistência social e trabalho: o impacto do bolsa família. In

MOTA, Ana Elizabete (org). Desenvolvimentismo e Construção de Hegemonia: crescimento

econômico e reprodução da desigualdade. São Paulo: Cortez, 2012. 728

Portanto, desde a campanha pela entrada do Brasil como membro permanente no Conselho de

Segurança da ONU (Lula I) até as acusações do governo norte-americano do Brasil praticar

protecionismo comercial (Dilma), nota-se essa autonomia relativa a que nos referimos. E é natural que no

capitalismo-imperialismo possa ocorrer a entrada “controlada” e “subordinada” de novos países no grupo

das potências que lideram o mundo capitalista. Ver o trabalho de Viriginia Fontes. FONTES, Virginia.

Brasil e o capital-imperialismo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010.

Page 381: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

381

máquinas estatais como forma de conter a crise (2008/2009), cortes sempre orientados para a

área social na intenção clássica de transferir recursos do trabalho ao capital, e, o Brasil, mesmo

mantendo a austeridade econômica — portanto, não se opondo frontalmente ao Fundo —

amplia o gasto social federal (ver gráfico 23) em um momento onde já se lançara ao universo

dos países capitalistas credores e emergentes (o Brasil no G20 e no grupo dos BRICS são

apenas dois exemplos desse novo trânsito internacional). Ou seja, ainda que as medidas

anticíclicas também sejam do agrado de órgãos como o FMI, elas não eram, na conjuntura da

crise de 2008/2009 o primeiro remédio do receituário, sobretudo para países como o Brasil. A

austeridade econômico-fiscal que por aqui se instalou, favoreceu a aplicação do processo

anticíclico e liberou agências como o FMI para se preocupar com os riscos maiores nascentes na

zona do Euro. Após as investidas do governo norte-americano em Wall Street em 2008, para

salvar o mercado financeiro do colapso com a injeção de recursos públicos nos bancos de

investimentos, o FMI volta, como já pontuamos, suas atenções para a zona do Euro, pois

identifica que a cultura política ali enraizada não iria fazer emergir com a mesma naturalidade

as medidas liberal-ortodoxas praticadas pelo governo americano. Ampliando os seus programas

de apoio (Tabela 7) orienta a clássica medida de enxugamento da máquina estatal, o corte nos

custos de reprodução do trabalho — regressão nos direitos trabalhistas e desmonte dos sistemas

de proteção social — e o aumento de impostos. As orientações são extensivas ao conjunto dos

países afetados pela crise, para além da zona do Euro, porém, no Brasil as medidas voltadas

para ampliação do mercado consumidor interno, dentre outras, contrariam ao menos na

superfície tais orientações729

.

729

Outra orientação do Fundo para os PIGs (Portugal, Itália e Grécia, principalmente) no pós crise

2008/2009, era que esses países substituíssem seus governos “políticos” por governos “técnicos”,

reeditando a estratégia inglesa de 1852 do gabinete Aberdeen, criticada por Marx. A Itália foi o primeiro

país a seguir a orientação. Mais uma vez, não há preocupações substantivas com o Brasil, pois o “governo

técnico” já estava instalado por aqui, e, praticando um “choque de capitalismo”. Ver Boletim Informativo

do Fundo Monetário Internacional disponível em

<http://www.imf.org/external/lang/portuguese/np/exr/facts/europep.pdf> acessado em 05 de abril de 2013

e a edição de agosto de 2012 da Revista Veja onde se é relatada a reunião da presidenta Dilma com 28

“grandes empresários brasileiros” e se anuncia o “pacto de indução do crescimento” onde as principais

medidas são as “concessões” de portos, rodovias, ferrovias e aeroportos, além da redução do preço da

energia elétrica e a desoneração da folha de pagamento das empresas privadas. O termo “choque de

capitalismo” foi cunhado pelo editorial da Revista Veja como forma de enaltecer as medidas.

Page 382: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

382

Tabela 7

Programas apoiados pelo FMI na Europa

Até 15 de agosto de 2012, o FMI mantinha acordos com 10 países europeus, totalizando cerca de € 124,06 bilhões, ou

US$ 186,97 bilhões (1).

Montante acordado Saldo não utilizado

País (3)

Data de

aprovaçã

o

Data de

vencimen

to

Euros

(Bilhões)(

2)

Dólares

(Bilhõe

s)(2)

Como

% da

cota

Euros

(Bilhões

)(2)

Dólares

(Bilhõe

s)(2)

Como

% da

cota

Acordos Stand-By

Kosovo 27/4/12 26/12/13 0,11 0,17 154 0,06 0,09 81

Romênia 31/3/11 30/3/13 3,79 5,72 300 3,79 5,72 300

Rep. da Sérvia 29/9/11 2/3/13 1,15 1,73 200 1,15 1,73 200

Ucrânia 28/7/10 27/12/12 12,28 18,50 729 9,51 14,34 565

Programas de Financiamento Ampliado

Grécia 15/3/12 14/3/16 29,20 44,00 2,159 27,48 41,42 2,032

Irlanda 16/12/10 15/12/13 23,90 36,01 1,548 5,45 8,21 353

Moldávia (4) 29/1/10 28/1/13 0,23 0,34 150 0,09 0,13 58

Portugal 20/5/11 19/5/14 29,15 43,92 2,306 8,10 12,21 641

Linha de Crédito Flexível

Polônia 21/1/11 20/1/13 23,53 35,46 1,135 23,53 35,46 1,135

Linha de Precaução e Liquidez

Macedônia, ex Rep. Da

Iug.

19/1/11 18/1/13 0,51 0,76 600 0,27 0,40 314

Linha de Crédito Ampliada

Moldávia (4) 29/1/10 28/1/13 0,23 0,34 150 0,03 0,05 23

Total 124,06 186,97 79,46 119,75

Fonte: Cálculos do corpo técnico do FMI.

(1) Os totais podem não coincidir com a soma das parcelas devido a arredondamentos.

(2) Calculado multiplicando-se o valor do programa em DES pela taxa de câmbio respectiva em vigor em 15 de agosto de 2012.

(3) Os acordos com a República da Sérvia, Romênia, Polônia e a ex República Iuguslava da Macedônia são tratados como preventivos pelas

autoridades.

(4) Acordos que combinam elementos da Linha de Crédito Ampliada e do Programa de Financiamento Ampliado.

Fontes (2010) é uma das analistas que reconhece alterações significativas na relação do país

com os órgãos multilaterais analisando o que denomina de imperialismo brasileiro. Afirma que

o Brasil passa a fazer parte do grupo de países que protagonizam o capital-imperialismo, ainda

que de forma subalterna730

. E, por fim, outro componente factual da autonomia relativa do

730

FONTES, Virginia. Brasil e o capital-imperialismo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010.

Page 383: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

383

Brasil nessa relação é o modo como o país é citado nos documentos recentes de agências como

o PNUD, OIT, UNICEF ou UNESCO e o reordenamento dos acordos de cooperação entre o

país e esses órgãos731

. A Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento Internacional (Cobradi)

realizou levantamento da transferência de recursos bilaterais (com excessão do Banco Mundial e

do BID) por meio de transferências voluntárias para fundos que correspondem a integralização

de cotas do país e constatou que mais de 76% da cooperação oferecida pelo Brasil

correspondem a contribuições para organismos multilaterais, isto é, R$ 2,46 bilhões, em valores

de 2009 (Tabela 8). Quando se verifica as contribuições entre organizações internacionais

temáticas ou setoriais e os fundos multilaterais de desenvolvimento se observa que a

integralização destas cotas foi de quase R$ 930 milhões, de 2009, correspondendo a 37,8% do

total das contribuições aos organismos e a 29% da cooperação total do Brasil durante o

quinquênio (Tabela 9). (GONZALES & PEREIRA, 2012, p. 9)732

.

Tabela 8

Cooperação oferecida pelo Brasil 2005-2009

R$ de 2009 (1) US$ Constantes % do total

Cooperação técnica e ajuda

humanitária

755.813.720 377.906.860 23,5

Contribuição a organismos

multilaterais

2.460.976.515 1.230.488.257 76,5

Total 3.216.790.235 1.608.395.117 100

Fonte: Ipea, 2010.

(1) Valores atualizados pelo deflator implícito do produto interno bruto (PIB) calculado pelo IBGE.

(2) Valores em reais 2009 convertidos em dólares de 2009, usando a taxa média de câmbio PTAX-BCB de 2009.

731

Por exemplo, no Relatório Bachelete — documento síntese da proposta de implantação da Iniciativa

Piso de Proteção Social (I-PPS) pela OIT/OMS — ou nos relatórios periódicos de acompanhamento do

cumprimento das metas dos Objetivos do Milênio pelo PNUD, o Brasil é apontado como um exemplo a

ser seguido, como um caso de sucesso decorrente das inovações que promove a rivelia dos organismos

internacionais. A materialidade disto se verifica quando na renovação dos acordos de cooperação mútua,

o Brasil deixa de ser receptor de recursos dos fundos destes órgãos para ser emissor de cifras monetárias

para países em situação de desenvolvimento inferior a nossa. A cooperação Sul-Sul, apontada por vários

analistas como a materialização do imperialismo brasileiro na América Latina e na África é apenas um

componente desse processo. Para maior aprofundamento basta verificar na página eletrônica do

Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) as ações brasileiras da cooperação Sul-Sul e da Unasul. 732

GONZALES, Manuel Jose Forero & PEREIRA, Ricardo Mendes. Cooperação Brasileira para o

Desenvolvimento Internacional (COBRADI): O Brasil e os fundos multilaterais de

desenvolvimento. Texto para Discussão 1719. Brasília: IPEA, janeiro de 2012.

Page 384: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

384

Tabela 9

Contribuições para organismos multilaterais (2005-2009)

R$ de 2009 % do total

Organizações Internacionais 1.531.245.605 62,2

Fundos de Desenvolvimento 929.730.910 37,8

AID (Grupo Banco Mundial) 435.243.260 17,7

FOE (Banco Interamericano de

Desenvolvimento)

471.750.642 19,2

FAD (Banco Africano de

Desenvolvimento)

22.737.008 0,9

Total 2.460.976.515 100

Fonte: Ipea, 2010.

Assim, podemos verificar que a relação entre o país e tais organismos foi ressignificada,

alterando os termos da interlocução, ainda que isto não signifique alterações significativas no

comando do poder político destes fóruns733

. Logo, as análises que primam pelo substrato da

totalidade e das contradições não podem se furtar a essa nova atribuição de sentidos entre estes

agentes sob pena de redundar no mecanicismo fatalista e desprovido do movimento dinâmico,

dialético, das relações sociais (o estrutural-funcionalismo).

Do mesmo modo, observamos outra ressignificação nos termos do debate sobre a

universalização e a focalização das políticas sociais no neoliberalismo à brasileira.

A universalização das políticas sociais aos moldes do que foi alcançado por alguns

Estados Sociais europeus nos “trinta anos gloriosos” (1945-1975) nunca chegou a se aproximar

da nossa formação social, portanto, mesmo que as aspirações da generalização dos direitos

sociais possam constar em trechos da Constituição Federal de 1988, sempre foi uma expectativa

e nunca uma realização734

. As ambiguidades presentes na cena política brasileira dos anos

“Constituintes” da segunda metade da década de 1980 redundaram na prevalência do

conservadorismo neoliberal barrando qualquer aspiração social-democrata de política social

(FAGNANI, 2007)735

. Deste modo, para nós, a focalização se consolida como um componente

estrutural da política social e não espisódico como encontramos em alguns argumentos736

. Por

733

Reafirmamos: permitindo inclusive que o Brasil possa se impor com maior vigor na defesa de seus

interesses nos fóruns internacionais econômicos e sociais, como por exemplo, o discurso que a presidenta

Dilma fez na abertura da 67ª Assembléia Geral das Nações Unidas (ONU) em setembro de 2012 onde

rebateu as críticas de que o Brasil estaria adotando protecionismo em sua política comercial e criticou

duramente a guerra cambial. Além disso, a indicação do ex-Ministro da Segurança Alimentar e Combate

à Fome, José Graziano, para a direitoria geral da FAO, agência da ONU responsável pela agricultura e

alimentação, é também reflexo dessa inflexão. 734

Sem prejuízo das experiências universalistas no campo da saúde e da educação. 735

FAGNANI, Eduardo. Seguridade Social no Brasil (1996/2006): longo calvário e novos desafios. In

CESIT. Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 7, set/dez., 2007. 736

Aqui nos referimos a perspectivas que ao defenderem o estatuto da universalização das políticas

sociais acabam, pela lógica binária que estabelecem, propondo a completa extinção de iniciativas ou

programas focalizados. Como para nós a focalização é estrutural à política social no capitalismo, ela não

Page 385: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

385

isso mesmo, o debate sobre focalização versus universalização, no Brasil, deve levar em conta a

extensão e prevalência da focalização, aferindo o quanto esta é capaz de impor ou não

parâmetros à política social. Prospectar sua extinção, sem a ruptura radical das dimensões

econômicas funcionais da política social na ordem do capital é mera ilusão737

.

Na primeira fase do neoliberalismo à brasileira, não eram os programas sociais

existentes que eram focalizados, mas sim a própria política social. A sua residualidade dentro da

programática neoliberal de primeira ordem fora inteiramente compatibilizada com o estatuto

focalista dos programas sociais, e isso se deu por meio da reposição do credo liberal que orienta

a primazia do desenvolvimento econômico em detrimento do desenvolvimento social do tempo

presente (pois esse se alcança no futuro como decorrência do desenvolvimento econômico).

Ao privilegiar, políticas monetárias, cambiais e fiscais implícitas no seu Plano Real, em

detrimento de uma política econômica socialmente referenciada, cedo o Brasil voltou a

ostentar elevados índices de desemprego formal, de achatamento de salários, de

aumento da carga tributária, de privatização do patrimônio público, de

desfinanciamento das políticas sociais, de repúdio à política de assistência social, cujas

funções passaram a ser transferidas para o setor voluntário da sociedade, reeditando-se,

assim, o velho assistencialismo. E uma prática desse governo que mais penalizou as

políticas de Seguridade Social foi a transferência de receitas dessa área,

constitucionalmente garantidas, para o setor econômico, por meio da DRU

(Desvinculação de Receitas da União) associada ao intento de reduzir a Seguridade

Social a mero seguro (...). Enfim, “manipulando o fetiche da moeda estável, Fernando

Henrique Cardoso retirou do Estado brasileiro a capacidade de fazer política

econômica” e, vale dizer também social. (PEREIRA, 2012, p. 743)738.

Na fase seguinte, embora a manutenção da ortodoxia econômica se fizesse presente, a

política social é alçada ao seu máximo potencial econômico, como elemento partícipe-estrutural

se extingue com a implantação unilateral do universalismo. É necessário, pois uma reversão radical com

as estruturas que a vinculam ao modo de produção e ao processo de acumulação, bem como ruptura com

esse mesmo processo. Mesmo nos Estados onde o Welfare State se consagrou realidade, medidas de

política social focalizadas não foram completamente extirpadas. A diferença é que nesses Estados tais

medidas foram tratadas como residuais e complementares às universais, de modo a estender o alcance da

proteção social, fazendo parte, também estruturalmente, das garantias de acessos. No Brasil ocorreu e

ocorre o inverso. É a lógica da focalização que imprime as diretrizes para a constituição do universalismo,

ainda que o governo Dilma, com a implantação do Programa Brasil Sem Miséria, esteja estendendo as

garantias de acesso (rurais e urbanas) à populações específicas com vistas a elevação dos patamares de

acessos, o que abre possibilidades para universalização ampliada no futuro. (lembrando sempre que

possibilidade não é garantia). 737

Ou como referiu VIEIRA (2004, p. 136): “Qualquer exame da política econômica e da política social

deve fundamentar-se no desenvolvimento contraditório da história. Em nível lógico, tal exame mostra as

vinculações destas políticas com a acumulação capitalista. Em nível historico, verifica se consistem em

respostas às necessidades sociais, satisfazendo-as ou não. Fora daí, só resta ilusão”. VIEIRA, Evaldo. Os

Direitos e a Política Social. São Paulo: Cortez, 2004, p. 136. 738

PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. Utopias desenvolvimentistas e política social no Brasil. In

Revista Serviço Social e Sociedade n. 112. São Paulo: Cortez, outubro/dezembro , 2012.

Page 386: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

386

do “novo modelo” de desenvolvimento, alicerçada na ampliação dos mercados consumidores. A

transferência monetária é seu carro-chefe. Os resultados são observados, sobretudo, a partir do

segundo mandato do presidente Lula.

(...) Lula expandiu a cobertura do Bolsa Família abarcando mais de 12 milhões de

unidades familiares de baixa renda. Destarte, de acordo com documentos oficiais

(MDS, 2011), Lula retirou 28 milhões de pessoas da pobreza, levou 36 milhões à classe

média e reduziu para 8,5% (16,27 milhões) o número de brasileiros em estado de

pobreza absoluta ou de miséria. As estatísticas também mostram que no período

compreendido entre 2002 e 2010 o desemprego caiu de 12% para 5,7% e o rendimento

das pessoas ocupadas aumentou em 35% em termos reais. Além disso, a partir de 2004,

o volume de ocupações formais começou a crescer, atingindo, em 2009, um recorde

histórico – 59% dos trabalhadores com carteira assinada – (IBGE/PNAD, 2009); e o

salário mínimo teve pequena valorização em termos reais. (...) o governo Lula

incentivou a expansão de micro ou pequenas empresas e do trabalho autônomo

regulamentado (id., p. 745-746)739.

Deste modo, passa a prevalecer no discurso oficial uma crítica à focalização

residualista-estrutural do período anterior (FHC), pois o que se projeta é a implantação em

massa de políticas “de indução ao desenvolvimento socioeconômico” que se associam a

programas pontuais focalizados e à própria transferência monetária.

Mesmo com estes resultados, a tensão entre focalização versus universalização é mais

presente no governo Lula que em seus antecessores, e, isso se deve ao fato do governo ter

permitido a criação, em seu interior, de modelos sistêmicos de gestão unificada de diversas

políticas sociais. Assim, a continuidade das lutas em defesa do SUS, a instituição do SUAS, do

SISAN, do SNHIS, do SUSP, dentre outros sistemas740

, acirrou as disputas internas entre as

intenções do campo majoritário do governo em privilegiar a transferência monetária e as defesas

setorialistas pela expansão da rede pública de atenções sociais.

É somente com o gerencialismo tecnocrático do governo Dilma que essa tensão –

refletida inclusive nas disputas pelo orçamento público – é relativamente suplantada. A lógica

da instituição dos sistemas unificados741

, que parecia caminhar para a construção de um sistema

de proteção social amparado pelo estatuto dos direitos e da cidadania é subvertida pelo

imperativo das políticas de ativação a lá Workfare. Sob esta ótica, o mercado se renova como

739

Id. Ob. Cit. 740

SUS: Sistema Único de Saúde; SUAS: Sistema Único de Assistência Social; SISAN: Sistema

Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; SNHIS: Sistema Nacional de Habitação de Interesse

Social; SUSP: Sistema Único de Segurança Pública. 741

As disputas internas no âmbito do Estado, redundadas na lógica de instituição desses sistemas, foi

acompanhada de modo muito marginal pelas vanguardas do Serviço Social brasileiro que as viam com

desconfiança, e, em alguns casos mais como ameaça ao projeto profissional do que como possibilidade de

fortalecimento dos postulados desse projeto. Mais adiante retomamos os sentidos que encontramos para

tal afirmação.

Page 387: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

387

ente sociabilizador através das atividades laborais, sendo os “beneficiários” dos programas

sociais para ele conduzidos. A política social perde gradativamente sua autonomia relativa

sendo reduzida a um trampolim para o mercado, e, reduzindo o potencial generalizador dos

direitos sociais via sistemas unificados a meros instrumentos de gestão742

.

Sobre o governo Dilma, cumpre assinalar que o seu “Plano Brasil Sem Miséria”, já dá mostras de

que a ultrafocalização, ou o princípio da minimalissíma elegibilidade, associados à prevalência

do workfare sobre o welfare, serão as tendências privilegiadas. Isso porque a presidente Dilma

rebaixou, formalmente, os critérios preexistentes para a definição da pobreza e da miséria no

Brasil, conseguindo, desse modo, diminuir estatisticamente um bom número de pobres e

miseráveis. Para tanto, adotou como critério definidor de pobreza e indigência o utilizado pela

Organização das Nações Unidas (ONU) na definição de suas metas do milênio, o qual, por ser o

mais restrito entre outros disponíveis, considera pobre a família com renda mensal de até 120,00

reais e indigente a que ganha mensalmente até 70,00 reais (1,25 dólares/dia). E como os

indigentes serão o alvo prioritário do atual governo, este espera erradicar a miséria artificialmente

restringida no país (cerca de 16 milhões de pessoas), usando a assistência para ativar os

beneficiários dos programas dessa área, e seus familiares adultos, para o trabalho ou a geração de

renda precários (ibid., p. 747)743.

Portanto, o debate universalização versus focalização se repõe sob novas bases

conjunturais: a focalização é exponenciada nos programas que se estruturam focalizados e é ao

mesmo tempo associada a medidas que, ainda que elejam públicos específicos, preveem um

processo de trânsito “inclusivo” deste público (que sai da pobreza extrema para a pobreza e os

que saem da pobreza para a classe média, segundo os padrões econométricos do governo) via

mercado de trabalho e consumo744

.

742

Não sem embates. Vale ainda ressaltar que nos casos do SUS e do SUAS, os sistemas mais explorados

pelo Serviço Social, esta não foi sua intenção constituiva e nem a intenção que permeou as ações dos

grupos e atores politicos que lutaram pela suas implementações, o que deixa ainda mais evidente o

movimento contraditório que articula as macro-determinações às particularidades intrinsecas dos

fenomenos sociais. Ignorar esse movimento na análise das políticas consubstanciadas nesses sistemas tem

sido um erro estratégico constante na produção recente do Serviço Social brasileiro, na medida em que

superdimensiona os efeitos econômicos das intenções que se hegemonizam no processo de disputas. Este

é, por exemplo, um dentre vários outros, dos limites estruturais da tese da assitencialização das políticas

sociais. 743

Id. Ob. Cit. 744

O Plano Brasil Sem Miséria prevê um conjunto articulado de medidas que vão da qualificação

profissional, microcrédito, incentivo a economia popular e solidária, intermediação de mão de obra,

assistência técnica rural, fomente e sementes à produção agrícola, ampliação da construção de cisternas e

projetos de drenagem até o escoamento da produção da agricultura familiar, etc. Suas muitas frentes de

atuação o distinguem de todas as iniciativas anteriores dos grandes programas sociais brasileiros. Isso

deve ser considerado não apenas sob a ótica da ampliação do braço “assistencial” do Estado e da

exacerbação das funções econômicas da política social, mas também devem ser analisados os impactos

nos padrões de vida e nas formas emergentes de organização de sujeitos coletivos que passam a acessar as

políticas e serviços públicos, como dissemos no final do capítulo III. A consideração das diversas

dimensões desse fenômeno é capaz de conferir maior precisão à suas analises, não fugindo da luta que lhe

é intrinseca.

Page 388: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

388

No plano imediato, as medidas tendem a apresentar resultados positivos nos indicadores

sociais, contudo, essa dinâmica não está imune às instabilidades do processo acumulativo e

consequentemente tende a apresentar seus limites em breve. A boa notícia é que existem

possibilidades civilizatórias nesse processo caso ocorra a politização das massas e de suas

demandas745

. A notícia ruim é que o modelo pautado na sociabilidade pelo mercado pressupõe

a intervenção contínua do Estado sobre ele. Historicamente processos similares tem se mostrado

insustentáveis no longo prazo. Mesmo no Brasil, setores da classe dominante como a mídia

burgesa, por exemplo, não se inibem em demonstrar sua insatisfação com a dimensão estatista

do governo Dilma, expressa no aumento das funções regulatórias do Estado, logo, teremos que

aguardar o tempo histórico em curso nos dizer em que bases se sustentará um segundo mandato

da presidenta Rousseff ou até onde esse modelo conseguirá sobreviver.

As outras duas dimensões do conjunto de ressignificações do momento atual estão

intimamente vinculadas: as relações entre política econômica e política social, que de certo

modo, acabamos tratando nos argumentos antecedentes, e, o tratamento dispensado ao Estado

como bloco homogêneo e monolítico, que também já tratamos, porém, ainda nos cabe uma

derradeira consideração.

No âmbito da tradição marxista, principalmente no espectro marxiano, tratamos quase

que a exaustão da ausência de uma teoria geral do Estado nesse campo. Contudo, foi-nos

ficando evidente que as transformações societárias ininterruptas interpelaram e interpelam

intelectuais e demais sujeitos sociais a preencher tal lacuna, ainda que mantenham a

convergência de postulados básicos da matriz teórica. A realização de tal exercício pressupõe o

resgate da instância política da vida social como um elemento indispensável na definição e

formatação dos Estados modernos e contemporâneos. Tal resgate, pensado nas formulações

críticas consequentes e atentas ao dinamismo da realidade (e sempre com a vigilância de não se

render as armadilhas das idealizações, pautadas quase sempre pelas “vontades”), busca tanto

superar o entendimento da “mudança política como puro resultado da ação das classes sociais”

quanto a perspectiva que “vê o Estado como o condutor de todo o processo de mudança porque

as classes sociais são débeis” (PEREIRA, 2008, p. 126)746

. Nesse sentido, no âmbito da tradição

marxista, emergem teorizações que, não sem polêmicas, buscam superar o dualismo entre

Estado e Sociedade, quase sempre amparado nos limites do esquema das classes fundamentais,

o situando como

745

Sendo esse um dos eixos centrais das disputas que se travam no interior do governo pelos sentidos da

política de assistência social na conjuntura “neodesenvolvimentista”. Processo, esse, ignorado na

produção de parte significativa das vanguardas profissionais, relacionado inclusive com a concepção de

Estado que sustenta o pensamento político de tal grupo social. Exemplo disso pode ser verificado em

SILVA, Sheyla Suely de Souza. Contradições da Assistência Social no governo "neodesenvolvimentista"

e suas funcionalidades ao capital. In Revista Serviço Social e Sociedade n. 113. São Paulo: Cortez, 2013

e SANTOS, Josiane Soares. Particularidades da "questão social" no Brasil: mediações para seu debate na

"era" Lula da Silva In Revista Serviço Social e Sociedade n. 111. São Paulo: Cortez, 2012. 746

PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. Política Social temas & questões. São Paulo: Cortez 2008.

Page 389: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

389

o espaço ou as arenas dentro das quais ocorrem relações contraditórias de poder, ou

relações de forças decorrentes das contradições principais e secundárias, a guisa de

Poulantzas , bem como a maneira como se dão essas relações. Por essa visão, não

apenas deverá ser privilegiado o processo histórico da intervenção do Estado — como

já é usual nas análises mais recentes do desenvolvimento político, por parte daqueles

que começaram a negar a eficácia explicativa das teorias sistêmicas — mas analisar as

conexões entre os que têm poder (dentro do aparato do Estado) e os que se encontram

alijados dele. Ou seja, interessa saber quais são e como se dão os mecanismos

específicos de poder no contexto do capitalismo avançado (PEREIRA, 2008, p. 126-

127).

Essa consideração é extremamente relevante, pois é através do “interesse pelos

mecanismos específicos de poder” consubstanciados no desenvolvimento histórico do Estado

que a tradição marxista se concilia com a ciência política moderna.

A descoberta dos trabalhos de Gramsci foi, inegavelmente, o fator decisivo para a

adoção dessa postura analítica. Foi a partir dele que se começou a questionar a

validade de se pensar a esfera política como uma dedução quase automática da infra-

estrutura econômica. Com Gramsci foi possível conceber o Estado como uma esfera

passível de possuir autonomia, mesmo que relativa, colocando-se acima e além da

sociedade civil em situações de crise de hegemonia e, portanto, de instabilidade. Mas,

tal autonomia, ao mesmo tempo em que decorre da capacidade organizacional do

Estado frente às forças sociais conflitantes, resulta também do apoio que este recebe

dos estratos sociais mais importantes sediados no pacto de dominação. Sendo assim,

tal autonomia não pode ser vista dissociada da sociedade (PEREIRA, 2008, p. 127).

Deste modo, a tratativa unilateral do Estado: o bloco monolítico da burguesia — o

comitê gestor de seus interesses —, é certeira na prospecção da dimensão ineliminável da

dominação que o Estado exerce sobre a sociedade, até mesmo porque é a sociedade que lhe

confere tal poder de dominação, todavia, limitada como seu substrato definidor, expositor de

suas funções e explicativo dos seus próprios limites e fissuras basilares da sua extinção.

Page 390: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

390

Se as análises precedentes que se referem à relação do Estado e classes dominantes

parecem facilmente aceitáveis, existe em geral, e na esmagadora maioria dos casos, a

tendência de considerar que o Estado constitui, em relação às classes dominadas, um

bloco monolítico que lhes é imposto de fora, e sobre o qual elas só atuam cercando-o e

assediando-o de fora, como uma fortaleza impermeável e isolada delas. As contradições

entre classes dominantes e classes dominadas permaneceriam contradições entre o

Estado e as massas populares exteriores ao Estado. As contradições internas do Estado

não passariam de decorrências das contradições entre classes e frações dominantes, a

luta das classes dominadas não seria uma luta presente no Estado, consistindo

simplesmente em pressões sobre o Estado. Na realidade, as lutas populares atravessam

o Estado de lado a lado, e isso não acontece porque uma entidade intrínseca penetra-o

do exterior. Se as lutas políticas que ocorrem no Estado atravessam seus aparelhos, é

porque essas lutas estão desde já inscritas na trama do Estado do qual elas esboçam a

configuração estratégica. Certamente, as lutas populares, e mais geralmente os

poderes, ultrapassam de longo o Estado: mas por mais que elas sejam (e elas o são)

propriamente políticas, não lhe são realmente exteriores. Rigorosamente falando, se as

lutas populares estão inscritas no Estado, não é porque sejam absorvidas por uma

inclusão num Estado-Moloch totalizante, mas sim antes porque é o Estado que está

imerso nas lutas que o submergem constantemente (POULANTZAS, 2000, p. 143-

144)747.

Assim, além de tudo que já expomos sobre o Estado, a concepção do Estado como

espaço contraditório que condensa materialmente as correlações de forças da sociedade é a que

adotamos, não por diletantismo acadêmico, mas pelas evidências estruturais e conjunturais que

sustentaram nossos argumentos até aqui, que demonstraram o quão prejudicial à luta

antisistêmica podem ser análises que se furtem a tais tensões.

No Serviço Social, arrolamos a coexistência de tendências variadas sobre a concepção

de Estado, contudo, a que utilizamos não é recorrente, muito menos hegemônica no espectro das

vanguardas profissionais748

, todavia, a vinculação orgânica da profissão com o capitalismo

monopolista mostra a inevitabilidade do Estado como um componente definidor da legitimidade

e dos sentidos do Serviço Social na divisão social e técnica do trabalho. Portanto, se

consideramos o Serviço Social como profissão inserida de modo relacional nesta dinâmica —

de desenvolvimento do capitalismo monopolista — nos fica evidente que nos momentos de

síntese deste mesmo desenvolvimento, os períodos desenvolvimentistas, a profissão tende a ser

747

POULANTZAS, Nicos. O Estado, O Poder, O Socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000. 748

E em nosso entendimento, tal diversidade é extremamente salutar na medida em que revigora o debate

e amadurece pensamentos. Ainda que no campo da tradição marxista, se trave uma batalha de

interpretações teóricas, onde cada uma das correntes reivindica para si o legado da verdadeira

interpretação de Marx, a manutenção de seus postulados centrais reafirma a tradição que se permite ser

criticada, refutada, melhorada, aprimorada, descoberta e redescoberta, em conformidade ao movimento

dinâmico e contraditório da sua base material de sustentação que é o complexo social: a sociedade

burguesa, uma vez que a tradição marxista é uma grande tendência teórica da modernidade e não uma

religião.

Page 391: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

391

desacomodada, isto é, as ações estatais e do mercado voltadas a indução do desenvolvimento

tendem a reconfigurar o mercado particular de trabalho dos Assistentes Sociais por prever em

seu escopo modificações nas formas de enfrentamento às refrações da “questão social”. Mas

este é apenas um aspecto com certo grau de exterioridade. Outras dimensões desse processo

inflexionam a formação, a produção acadêmico-científica, o cabedal técnico-operativo e, é

claro, o projeto profissional. É neste sentido que a profissão se lança em arriscado fio de

navalha. Para responder as requisições do tempo presente precisa aprimorar sua capacidade de

leitura conjuntural — a análise como subsídio da ação —, contudo, a própria realidade em

movimento não é fácil de ser capturada na nebulosidade dos interesses de grupos sociais que

disputam poder político dentro e fora do Estado. Assim, por mais que tenhamos desenvolvido

um amadurecimento ético-político capaz de nos permitir acompanhar e inferir sobre o

movimento e a dinâmica da sociedade classista sempre corremos o risco de nos render a

conclusões apressadas e nucleadas não pela objetivação da vida social, mas pela consciência do

sujeito político, eivada de suas intenções e repertório ideoculturais, em última análise: o

idealismo.

A vitória eleitoral do PT no governo central do país em 2003 é uma significativa

ilustração deste processo. A ausência de uma programática administrativa clara e a ausência de

um comprimisso orgânico com alguma das classes fundamentais749

desalojou os cientistas

políticos do conforto de seus métodos de análise circunscritos a leis funcionais gerais. Os

críticos que recorrem ao substrato dialético também encontraram dificuldades para antecipar os

caminhos que se tomariam dali por diante.

No Serviço Social ocorre um processo peculiar. As análises conjunturais do período

contrarreformista (e mesmo as antecedentes, vide a tese de Netto sobre a autocracia burguesa no

Brasil) consideram com maestria os movimentos e disputas dos grupos sociais na/da Sociedade,

e, de certo modo, não tendem a ocupar suas tintas com as disputas entre frações da classe

dominante, muito menos com as correlações de forças elevadas à superestrutura. O motivo é

simples: está se tratando de uma fase do desenvolvimento capitalista onde as relações entre

Estado e Sociedade são frágeis e pouco desenvolvidas, liberando o Estado para exercer seu

poder de dominação sem ter que fazer uso de mecanismos ideopolíticos sofisticados. Além

disso, o movimento de resistência ao domínio burguês não sofrera, nesse tempo histórico, das

cooptações que o levariam ao transformismo750

. Todas as ações estatais conduzem ao

gerenciamento dos interesses da classe dominante. São conjunturas que permitem a

interpretação binária da realidade, pois quase tudo temos por conquistar.

749

A programática ambígua do PT rearfirmou o compromisso histórico com os trabalhadores, mas ao

mesmo tempo acenou para um comprometimento com as classes dominantes. Já tratamos disto quando,

no capítulo III discutimos o discurso oficial expresso na Carta Ao Povo Brasileiro. 750

Pelo menos não na escala em que hoje se observa.

Page 392: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

392

Com o movimento iniciado no pré e pós-2003, o pacto supraclassista realizado retira os

analistas de sua zona de conforto ao se observar um duplo movimento: de um lado, o governo

Lula “concilia” interesses até então inconciliáveis entre “patrões” e “empregados”, parecendo

subverter epidermicamente o confronto entre as classes fundamentais — esquema dominante de

grande contigente de marxistas — e, por outro, contém as fissuras do bloco no poder

reposicionando as frações da classe dominante que nele transitam. Embora, o governo Lula

tenha conseguido êxito nessa empreitada, ela não se deu sem embates, e, isso pôs em evidência

algo até então lateralizado por nós: a veracidade da condensação de forças que são

materialmente plasmadas no Estado. Essa é uma característica irrefutável do governo Lula:

expor de modo evidente as tensões e contradições do aparato estatal. Expondo-as, é possível

acomodá-las. Nesse sentido, vários aspectos desse processo foram arrolados e analisados com

vistas tanto a tentar explicar a conjutura quanto ofertar opções políticas à direção social do

projeto profissional, mas a constatação que fizemos não aparece de imediato. Uma quantidade

de especulações começam a ser feitas, com base nos modelos de análise anteriores, a guisa das

teses do continuísmo: se trata do mesmo que FHC. Nessa direção, BRAZ (2004, p. 53) informa

a “guinada direitista do PT no governo federal” analisando sua política econômica de primeira

hora e afirma:

O primeiro ano de mandato (2003) e o início do segundo ano (2004) do governo Lula

indicam (...) uma continuidade do governo anterior (...) A pretensa Era Lula

transformou-se em mais um capítulo da Era FHC (...) (BRAZ, 2004, p. 58-59). O

panorama descrito nos apresenta um Estado — sob o governo Lula — absolutamente

servil ao grande capital internacional. Esse mesmo Estado vem sendo

sistematicamente enfraquecido em seus instrumentos reguladores da economia.

Torna-se, com o governo petista, cada vez mais mínimo para os trabalhadores e

máximo para o capital, para lembrar as feliz caracterização de Nett. Por tal

característica, assume o papel de facilitador dos negócios do capital, procurando

desvencilhá-lo de qualquer mecanismo inibidor da acumulação, livrando-o de

quaisquer constrangimentos institucionais e políticos (BRAZ, 2004, p. 55-56).

Nesse excerto e na sequencia da análise, Braz prossegue confirmando a permanência

das características estruturais do contexto contrarreformista e neoliberal de FHC em Lula, o que

nos parece correto, afinal, a política econômica desse primeiro quarto de mandato não só

manteve as diretrizes como as agudizou. Todavia, as imprecisões se dão na investigação do

movimento conjuntural. Mesmo no primeiro ano do governo Lula já era possível observar parte

dos deslocamentos das classes e de suas frações. A emergência, por exemplo, do grupo que

Francisco de Oliveira, citando Robert Reich denominou por “analistas simbólicos”751

, já era

751

Os gestores dos fundos de pensão oriundos do movimento sindical.

Page 393: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

393

visível nesse momento. Contudo, admitir tal movimentação, assim, de início, levaria o analista a

incorporar categorias marxistas (e não marxianas) estranhas ao seu léxico, como a própria

concepção de Estado. Quando afirma: “por tal característica, assume o papel de facilitador dos

negócios do capital”, remete diretamente ao Manifesto do Partido Comunista: o Estado como

uma delegação que administra os negócios comuns de toda a classe burguesa.

Na sequencia, o autor, elenca aquilo que denomina como consequências das políticas

do governo Lula para o projeto ético-político. Em seu prognóstico, e admite de modo bastante

honesto que as inferências podem ou não se realizar, a maior parte dos riscos colocados ao PEP

são os riscos já previstos saturadamente na conjuntura anterior: a precarização das condições e

relações de trabalho, a redução dos recursos destinados às políticas sociais (incluindo a

educação, com incidência no fomento à pesquisa, etc.), a desregulamentação das profissões, a

mercantilização/privatização do aparato público estatal, a refilantropização, etc. Mas é quanto

ao futuro do projeto ético-político que as projeções são mais ousadas. O autor refere que a

conjuntura em questão pode fazer emergir três tendências que podem se desenvolver

simultâneamente: a identificação do fracasso do governo do PT com o fracasso do PEP, o

revisionismo teórico-político e o fortalecimento das tendências conservadoras no interior da

profissão. Até o momento, nenhuma das “previsões” de Braz se realizou integralmente, e isso

pode se dever ao fato de que sua base de análise do governo Lula não fora o governo Lula, mas

sim a Era FHC. Pautado pela lógica linear do continuísmo, desconsiderando as particularidades

e “a entrada de novos atores em cena”, o não alcança a gênese da estratégia fundante da Era

Lula: mudar para permanecer como está. A dialética das continuidades e rupturas ainda não se

teriam mostrado aos olhos das vanguardas profissionais. Por outro lado, o desfecho do artigo

parece indicar um caminho profícuo, consequente e atemporal, por isso mesmo, imprescindível

nas análises conjunturais que buscam dialogar com a categoria profissional. Afirma:

Para enfrentar tais desafios, precisa-se, mais do que nunca, apreender as situações

concretas do cotidiano profissional. Situações que condensam na vida dos indivíduos

as diferentes expressões da “questão social”, buscando- se sua compreensão no

contexto da totalidade onde são produzidas (BRAZ, 2004, p. 65).

Dois meses depois da publicação da Revista que contém o artigo de Braz, um número

especial da mesma Revista é inaugurado com uma nova análise de conjuntura, agora realizada

por NETTO (2004). O articulista, mais experiente, começa por um arranjo diferente do

antecessor. Parece resgatar o modo histórico do fenômeno cotejado a sua dimensão lógica.

Inicia por admitir a continuidade estrutural do governo, contudo, considera que “uma nova

conjuntura” se abre à vida brasileira.

Page 394: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

394

(...) a composição da equipe ministerial já apontava para a manutenção da mesma

orientação macroeconômica da era FHC, os primeiros meses de Luiz Inácio Lula da

Silva assinalaram que a vontade política expressa do novo governo era mais que a

continuidade, era o aprofundamento daquela orientação (p. 12) (...) Experimenta-se

uma nova conjuntura na exata medida em que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva

assume a prática “neoliberal” que combateu frontalmente durante a era FHC (p. 13).

Ou seja, a análise de Netto parte de um pressuposto que considera dois movimentos

articulados: a continuidade e aprofundamento das funções econômicas do Estado a serviço do

capital e alterações nas correlações de forças (na sociedade civil e não no Estado) políticas, na

medida em que o PT alçado ao poder central, deixa de ser o partido vocalizador do discurso

oposicionista das esquerdas. Esse processo, “ao que tudo indica, o 'espírito' ideológico que

inspirou o Consenso de Washington será rigorosamente desposado (id., p.13). O caminho de

Netto, além de apontar que as “coisas ficarão muito piores”, é mais preciso na medida em que

observa que não se trata dos mesmos atores e dos mesmos grupos sociais, embora as

determinações gerais/estruturais estejam mantidas. Sua análise é fiel ao enrijecimento do Estado

ante as demandas da sociedade civil, lembrando sempre que a classe dominante também é

Sociedade Civil. No campo dos rebatimentos dessa nova conjuntura na profissão, Netto vê com

ressalvas e riscos iminentes a ascensão ao governo federal de quadros profissionais

E quando o imediatamente possível é travestido de ideal opera-se, para além da

mistificação político-ideológica, uma conversão paradoxal: os sujeitos políticos e

político-profissionais, individuais e/ou coletivos, saindo da oposição para a

responsabilidade da execução governamental, transformam a bravatice voluntarista

(segundo a qual tudo depende da “vontade política” que, na oposição, não parece

implicar nenhum ônus) em militantismo conformista (segundo o qual há que apostar

tudo no ativismo propiciado pela ocupação de espaços governamentais (NETTO,

2004, p. 17-18).

ABRAMIDES (2007, p. 46) seguindo o mesmo raciocínio pergunta: “A autonomia do

projeto ético-político profissional como o construímos está ameaçada pela orientação governista

ou tem se constituído no sentido de fortalecer a sua autonomia consolidada no processo de

ruptura com o conservadorismo?” A indagação da autora se liga diretamente a continuidade dos

argumentos de Netto (2004), pois a direção governista a que se refere se expressa, na visão

desses autores, também na presença dos quadros políticos-profissionais que incorporados à

gestão pública federal do PT se renderam ao possibilismo. Segundo Netto (2004, p. 18) o

possibilismo se traduz pela máxima: “fazer o que é possível porque este é o nosso governo” e se

articula a uma impostação moral que refere a “traição” cometida pelo PT quando alcança o

governo. Na continuidade de seus argumentos, tanto a ampliação dos quadros-profissionais na

Page 395: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

395

esfera estatal federal, quanto a expansão (e revesão) das formas de enfrentamento às refrações

da questão social752

são tidos como ameaças ao avanço e consolidação do projeto profissional.

Na esteira desse raciocínio, emerge a tese que a assistência se coloca como a alternativa

unilateral de resolução da “questão social”: o mito da assistência social e a tese de que a

ampliação de ações assistenciais em todas as esferas relacionadas ao poder público teria a

intenção “maquiavélica” de desmontar a sociabilidade pelo trabalho, promovendo uma

regressão das políticas sociais verdadeiras: a assistencialização das políticas sociais.

Pois bem: nos anos 2000, a Assistência (insista-se: formalmente, como demanda de

direito, autonomizada do assistencialismo) está entronizada na “cultura profissional”

do Serviço Social brasileiro. E não creio que seria exagerado admitir que, atualmente,

o senso comum profissional tende a pensar a intervenção profissional no domínio

exclusivo das políticas de assistência (NETTO, 2008, p. 11). Tais riscos ainda não

foram devidamente reconhecidos e, menos ainda, analisados com rigor. Alguns

procedem de opções (ou não-opções) de natureza teórica — por exemplo, a recusa

objetiva de fundar a análise social na crítica da economia política; alguns procedem da

incorporação aligeirada de modismos em voga nas Ciências Sociais — por exemplo, a

sacralização da “sociedade civil”, a satanização do “Estado” e o culto aos

“movimentos sociais”; outros derivam de escolhas ídeo-políticas — por exemplo, a

assunção de um projeto social-democrata é (quando muito) a gestão do existente. O

essencial a afirmar aqui é que a centralização da profissão no planejamento, na gestão,

na execução e na avaliação de políticas de assistência tem contribuído para constituir,

presentemente, o mito da assistência: vale dizer, o trato efetivo da Assistência Social

como alternativa corretora da “questão social” (NETTO, 2008, p. 11).

Como tais inferências se sustentam na concepção unilateral de Estado, o autor incorre

no erro que critica: a incorporação aligeirada de modismos em voga no Serviço Social. Sendo a

tese da assistencialização e do mito da assistência social o modismo mais recente, afinal,

nenhuma das inferências que informa carregam legitimação dada pelo movimento material e

752

No governo Lula se criam referências estatais para esse enfrentamento, ao contrário do período

anterior, onde a refilantropização foi a tônica. Evidente que não se promove o desmonte absoluto das

“estruturas” do terceiro setor, mas uma nova relação entre o poder público e as organizações da sociedade

civil se estabelecem, desagradando, em muito, o conservadorismo e a promiscuidade política existente

nesse campo. Nesse sentido, cai por terra a crítica feita por SITCOVSKY (2008, p. 161) em sua

contribuição à tese do mito da assistência social quando afirma que “as novas bases para a relação entre

Estado e sociedade civil” divulgadas na PNAS não são novas, mas sim a reposição do gerencialismo

contrarreformista de FHC. Ademais, a batalha judicial que se tem travado desde a aprovação da Lei

12.101/2009 é a prova mais cabal de tal mudança. De um lado, o “terceiro setor” representado pela OAB,

que viu crescer na conjuntura dos anos 1990 um filão de mercado com a administração desse tipo de

organização, lutando para manter os privilégios adquirados historicamente pelas entidades assistenciais,

reforçados na contrarreforma, e, de outro lado, o Estado, representado pelo que ainda há se massa crítica

na estrutura de sua máquina, insistindo na necessidade regulatória e de precisão política e conceitual

nesse campo. Nesse sentido, o gerenciamento feito pelo Estado não tem a conotação negativa dada pelo

autor em seu texto apressado. É possível que no advento de uma forma específica de gerencialismo (no

governo Dilma) seus argumentos encontrem mais ressonância, mas não no contexto em que foram

firmados.

Page 396: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

396

real da história em curso. 1. O domínio exclusivo da intervenção profissional no campo da

assistência comparece na tese de Netto, mas também nas de MOTTA (no mesmo livro) e nas de

ABRAMIDES (2007) por meio de uma intuição e não da comprovação empírica. Isto é, a

assertividade da tese no que tange a ampliação de ações assistenciais em todos os domínios

estatais, reforçando a dimensão econômica da política social, não pode ser transposta

mecanicamente a um deslocamento das atividades profissionais, construídas e conquistadas

historicamente em diversos lócus da divisão do trabalho. O crescimento de iniciativas

assistenciais e da própria política pública de assistência social753

não retirou os assistentes

sociais da previdência social, da saúde, do sistema sócio-jurídico, etc. Ao contrário,

permaneceram as lutas em torno do reordenamento e reestruturação do Serviço Social na

previdência social (luta que contou com investidas significativas por dentro da máquina do

Estado de quadros políticos-profissionais atuantes na gestão da assistência consagradas na

realização de concursos públicos nessa área)754

, o avanço das lutas em torno do Serviço Social

na educação, a ampliação do debate sobre a atuação no campo sócio-jurídico, a retomada

qualitativa da área de habitação, etc755

. 2. A recusa objetiva de fundar a análise social na crítica

753

E é importante enfatizar que as ações assistenciais que se alargam pela ação estatal recente não estão

necessariamente parametrizadas pela especificidade setorial da assistência social emergente com o SUAS.

A assistência a que os signatários da tese da assistencialização e do mito da assistência se referem não é

“política social porque, além de não lhe serem exigidas sistematicidade, continuidade no tempo e

previsibilidade de recursos, ela não se organiza em torno de decisões informada por conhecimentos

científicos, mas em torno de uma anomalia social, qual seja: uma “clientela” negligenciada que, a rigor,

só existe porque as políticas sociais e econômicas (saúde, educação, previdência, habitação, trabalho,

renda, etc.), que deveriam impedi-la de existir, não funcionam a contento. Sendo assim, a assistência

social não passa de uma incômoda reserva estratégica ou uma 'tapeação' política das elites no poder, que a

acionam para encobir as falhas das demais políticas socioeconômicas” (PEREIRA, 2002, p. 218).

Somente essa concepção (não por acaso uma das concepções recorrentes no pensamento ideológico

conservador e político da direita) pode sustentar as teses que imprimem um sentido regressivo (a

ampliação da assistência nas áreas de domínio estatal é prejudicial ao desenvolvimento e a constituição

pública da saúde, da educação, da previdência social, do trabalho, etc.) a assistência. Ou seja, embora a

tese seja assertiva, como já dissemos, na identificação do fenômeno, ela se contradiz quando repõe a

concepção conservadora da assistência social, negligenciando as conquistas históricas que a consignaram

no campo dos direitos sociais, e pior: rompendo o pacto tácito prevalecente na categoria profissional

desde os anos 1970 até então relativo ao reconhecimento da assistência como direito de cidadania e

política pública (ressalvados todos os limites que tais categoriais implicam na ordem burguesa).

Lamentavelmente, é um idealismo fenomênico que conduz ao mito do mito e a subestimação da categoria

profissional não-acadêmica. 754

Lutas internas completamente ignoradas, e em alguns casos, até mesmo desconhecidas por parte

significativa das vanguardas profissionais, pois se a concepção de Estado que as ampara não prevê a

existência desse tipo de tensão, tais lutas são, para essa interpretação, sempre inócuas. Atribui-se, deste

modo, os resultados positivos, exclusivamente a ação externa da militância profissional, conduzida pela

vanguarda que ocupa a direção das entidades da categoria. Esse modelo analítico, é semelhante ao

praticado no contexto dos anos 1930-1950 que expomos na primeira parte desse Capítulo: uma profissão

corporativa num Estado corporativo à la Durkheim, só que agora travestida de um tom esquerdista. 755

Um dos fatos que pode ter contribuído para que essa parcela da vanguarda profissional tomasse essa

inferência como real, foi o encaminhamento dado pela gestão da política de assistência social no Rio de

Janeiro, quando o então secretário municipal de assistência social com o apoio do prefeito promove a

centralização/lotação de todos os assistentes sociais da prefeitura no órgão gestor da assistência. Alguns

autores como RODRIGUES (2007) e MONTAÑO (2012) denominam isso por assistencialização. E, ao

contrário do que afirmara Rodrigues, a realidade carioca não seguiu as orientações do SUAS (a partir das

Page 397: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

397

da economia política: ora, é preciso situar quem e a que grupos sociais o autor se refere, pois se

está se referindo a produção institucional é óbvio que tal aspiração não será nunca alcançada, ou

pelo menos enquanto perdurar a sociedade burguesa. Os documentos institucionais refletem a

confluência das forças que disputam poder e direção política nos “aparelhos” de Estado. A

hegemonia tende a expressar os interesses e a “visão” do grupo que é “proprietário” da “palavra

final” sobre o que se publiciza do governo, e, sem sombra de dúvida tal “propriedade” não está

no grupo social que disputa uma direção progressista nas estruturas do Estado. De outro modo,

se o autor se refere aos “estudiosos” da assistência social, peca por não considerar a

heterogeneidade de um grupo que considera a assistência como objeto de interesse científico e

procede, assim, suas pesquisas, onde há estratos consideráveis desses grupos que sustentam sim

suas análises sob o fulcro da crítica da economia política. Ademais, o ecletismo teórico-

metodológico existente no Serviço Social desde sempre não é monopólio e nem criação absoluta

da assistência social. Ele atravessa a assistência social porque é um componente da formação

sociopolítica da categoria em seu conjunto. 3) o horizonte social-democrata é a gestão do

existente: ora, se é fato consensual que nunca tivemos no Brasil um Estado de Bem-Estar

Social, é fato também que a social-democracia nunca aportou por aqui em seu sentido “puro” ou

“clássico”. Já demonstramos que as aspirações sociais-democratas contidas na Constituição

Federal de 1988 foram suplantadas pela ofensiva neoliberal que emergia com força no resto do

mundo capitalista em fins de anos 1970 e atravessando a década de 1980 e 1990, portanto, o que

se implantou por aqui foi mesmo o neoliberalismo, cujas brechas históricas dadas pelas suas

contradições permitiram que se plasmassem “tendências” sociais-democratas, em especial nas

políticas sociais, mas como “tendências” elas podem ou não se realizar. Mas a afirmação do

autor, mais uma vez, reflete sua concepção de Estado. Sendo o Estado o comitê gestor dos

interesses da burguesia, toda a política social, mas de modo primaz a assistência tende a se

reduzir da gestão da pobreza. 4) a centralização da profissão no planejamento, na gestão, na

execução e na avaliação das políticas de assistência têm contribuído para constituir o mito da

assistência social como alternativa corretora da “questão social”: a inferência que finaliza o

parágrafo acaba por demonstrar cabalmente o distanciamento da análise de Netto da realidade

objetiva e materialmente condensada pelas correlações forças. De onde surgem os elementos

empíricos que referem tal centralização? Se assim o fosse, teríamos um deslocamento em massa

das “atividades de execução finalística” da profissão, e não foi o que assitiu. Ao contrário, no

diretrizes federais) e nem mesmo se mostrou completamente generalizável como queria a analista. Basta

observar que todas as pesquisas rigorosas e consequentes sobre o SUAS apontam o caminho inverso

(embora heterogêneo): a proliferação da realização de concursos públicos e a retomada do debate da

intersetorialidade, esclarecendo a distinção entre Serviço Social e Assistência Social e reforçando a

dimensão social presente nas outras políticas sociais setoriais ou transversais. Ver tanto o nosso livro:

Assistência Social e Filantropia, já citado, quanto a pesquisa de YAZBEK, SILVA, RAICHELIS &

COUTO. Maria Carmelita, Maria Ozanira da Silva e., Raquel & Berenice Rojas Couto. Sistema Único de

Assistência Social: uma realidade em movimento. São Paulo: Cortez, 2011.

Page 398: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

398

âmbito do SUAS (só para exemplificar, embora que fique claro que o autor não está se referindo

ao SUAS) as atividades terminais da política cresceram tanto pela expansão das unidades

estatais de referência do Sistema (CRAS e CREAS, principalmente) quanto pelo reordenamento

da rede socioassistencial privada. Ademais, a atuação do assistente social nos campos do

planejamento, da gestão e da avaliação das políticas sociais não reflete apenas as requisições do

capital para a profissão, refletem também os avanços e o amadurecimento interno do Serviço

Social na medida em que aprimora seus mecanismos de leitura da realidade, consequentemente

nas formas de propor suas intervenções nessa realidade mesma. Netto, como um dos mais

proeminentes analistas sociais e políticos da área é também um dos responsáveis pela ampliação

dos espaços profissionais na divisão do trabalho. Negar tais possibilidades significa reduzir e

circunscrever a profissão a sua dimensão clássica: a do atendimento direto da população. Nesse

sentido, o autor nega até mesmo a produção de conhecimento como pertencente ao escopo

profissional, acirrando o equívoco que separa “os que pensam” dos que “executam”.

Nessa direção, o projeto profissional, na conjuntura recente não tem outra alternativa a

não ser negar as mediações que se estabelecem entre os diversos componentes que formam e

conformam a profissão e prospectar os rumos diretos da revolução socialista756

.

Esta orientação não nos dá o estatuto de um partido político, nem de sermos os

arautos das necessidades das classes subalternas. Tampouco nos convida a traduzir

princípios revolucionários em procedimentos aplicáveis ao âmbito de um espaço

ocupacional. Em minha compreensão, em face da complexa conjuntura dos últimos

anos, este processo tem nutrido e fortalecido o núcleo duro e central do projeto ético-

político que consiste em não sucumbir ao apagamento da dimensão política da

profissão e de resistir a três aspectos essenciais: à redução do projeto profissional a

sua dimensão prático-operativa; ao cancelamento de qualquer ideário que não seja o

da ordem; à submissão da crítica teórica e política à prova da formulação de propostas

técnicas. (...) Sob outro prisma, é pertinente afirmar que o Serviço Social brasileiro,

sem negar ou recuar diante do atendimento às demandas do mercado de trabalho

profisisonal, avança em tempos de crise e construção de hegemonia, produzindo

referências teórico-metodológicas que abordam a complexa relação entre a luta pela

emancipação política e o horizonte da emancipação humana (MOTA, 2012, p. 39).

756

Mediação é por nós entendida no sentido lukácsiano: uma categoria ontológica, uma forma de ser do

Ser, da realidade social. Elas se localizam no particular, uma vez que o particular é um campo todo de

mediações. “As mediações fazem parte do real, entretecem a realidade. São os elementos que particulares

que fazem com que os processos e as práticas sociais e profissionais sejam eles mesmos. As mediações

são sistemas, campos ou dimensões, aspectos, totalidades parciais da realidade que se articulam entre si e

com outros. Ao percebê-las na sua articulação, podemos captar a natureza, o sentido, a direção, a

aparência e a essência dos processos sociais historicamente constituídos” (GUERRA, 2007, p. 6).

Page 399: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

399

A ponderação pertinente de Mota demonstra um amadurecimento ético-político no

discurso que nem sempre se reflete na prática política de seus emissores. A autora parece

apontar para a necessária articulação entre as dimensões ético-políticas, teórico-metodológicas e

técnico-operativas que conformam a profissão, todavia, a disputa entre as tendências que, vez ou

outra, conferem centralidade a um dos três aspectos em detrimento dos outros, não é vista como

um tratamento da “particularidade” que se complementa na articulação das mediações do real. O

que, lamentavelmente se observa, é que uma tendência atribui à outra um estatuto de fragilidade

teórica que a imputa como reducionista (isso quando não imprime rótulos: neos, funcionais,

estruturais, etc.), o que acaba por instalar um estado permanente de desconfiança entre os

grupos sociais profissionais, transformando a ação do outro em ameaça constante ao projeto

profissional. O clima beligerante e de persecutoriedade impede o avanço do debate profissional

por privar os grupos da auto-crítica. Vale dizer, estamos nos referindo aos grupos sociais

signatários do projeto profisional crítico de prospecção antisistêmica e não os grupos

conservadores. Hobbes se contentaria com essa “guerra de todos contra todos”.

A conjuntura de consolidação do neoliberalismo à brasileira, neodesenvolvimenta para

alguns, expôs tais fraturas no debate e prática profissionais por evidenciar com força um

movimento de tensões entre e intra-classes que gerou desconforto e constrangimentos no âmbito

do Estado e da profissão. Parte dessas fraturas dizem respeito a coexistência de projetos

profissionais antagônicos, admitidos como um princípio ético da profissão pelo pluralismo, ao

mesmo tempo, nos convocou ao debate inadiável com vistas a remediação de fraturas de outra

natureza, baseadas em falsas polêmicas, e, que para ser extirpadas do nosso meio, repondo a

unidade necessária em torno do essencial do projeto, precisa superar a mediação das relações de

poder na construção das análises e orientações que dão direção social ao projeto profissional. O

caráter coletivo do projeto tende a retomar sua natureza coletiva, isto é, os interesses de grupos

específicos tende a convergir com os interesses do grupo maior, e este está referido ao conjunto

da classe trabalhadora, que nas suas práticas cotidianas não tende a negar a estratégias

emergentes na própria ordem burguesa no sentido da sua própria superação, ou da emancipação

humana como apontou Mota.

Page 400: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

400

À GUISA DE CONCLUSÃO

A pesquisa científica livre, no domínio da economia política não

enfrenta apenas adversários da natureza daqueles que se encontram

também em outros domínios. A natureza peculiar da matéria que

versa levanta também contra ela as mais violentas, as mais

mesquinhas e mais odiosas paixões, as fúrias do interesse privado.

Karl Marx

O nosso estudo, como a maior parte dos estudos que se referenciam no materialismo

histórico e dialético, não pretende encerrar conclusões sobre seu objeto. Não é nelas — nas

conclusões — que reside seu mérito. A nosso entender, estamos diante mais de questionamentos

do que de respostas. Mas não se trata de questionamentos etéreos, divagações “metafísicas”

sobre objetos cognoscíveis inalcançados. São questionamentos no campo de uma racionalidade

que nos levam a elaborar hipóteses que se repõem constantemente devido ao dinamismo

dialético, contraditório, da realidade social. Essas hipóteses se constroem com o apelo ao

recurso de categorias fundamentais que além de evidenciarem “formas do ser” conforme a

acepção marxiana são tratadas também na sua particularidade e singularidade impostas pela

história feita no confronto entre sujeitos políticos na sociedade de classes sociais. Essa inclusive

— a categoria “classe social” — nos é indispensável quando buscamos o “molho de chaves

heurísticas” que nos leva a abertura de “portas” indicativas para a continuidade e crítica

(esperamos que venham muitas) das argumentações que aqui apresentamos.

Partindo do conceito clássico de classes sociais, noção que evidencia o confronto entre

proprietários e expropriados, o referenciamento de nossas análises à conjuntura recente não

abdica dessa construção clássica, contudo, não se restringe a ela. Isto é, ao pensar as classes

sociais na fase contemporânea de desenvolvimento capitalista consubstanciada por um tipo

específico de Estado que é o Estado burguês com seu regime de democracia liberal de massas,

identificamos mais presente a luta entre frações da classe dominante pelo poderio político e pela

apropriação de maiores parcelas da riqueza socialmente produzida ao mesmo tempo em que

uma reacomodação dos estratos da classe trabalhadora também se nota com o reposicionamento

de alguns de seus sujeitos políticos no cenário institucional, do que a luta por reversão do modo

de produção. A acepção clássica de classes é presente, mas determinante nesta conjuntura em

última instância, pois as perspectivas revolucionárias das quais a classe trabalhadora é signatária

Page 401: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

401

(e o que contribui para consolidar a noção clássica de classe social) não se encontram na ordem

do dia da sociedade brasileira757

.

A categoria classe social como substrato de análise de uma dada conjuntura, em nosso

caso específico, a conjuntura brasileira neoliberal das Eras FHC, Lula e Dilma se faz

fundamental para o entendimento desses “governos” na contramão da tendência contemporânea

dominante na ciência política que é submeter tal tipo de análise a perspectivas

“neoinstitucionalistas” que propõem, em geral, uma cisão entre a análise do processo das

instituições políticas da análise da sociedade em seu conjunto e das relações econômicas

(infraestruturais). Alguns analistas, mesmo experientes e que se colocam fora do campo

neoinstitucional, caem por vezes nesta armadilha quando supervalorizam o movimento das

instituições — na maior parte das vezes motivados pela ansiedade em destruí-las, sobrepondo a

vontade à razão (se distanciando da realidade) — sem considerar as manifestações classistas

nelas e na base societária material758

.

Essa tendência — à direita e à esquerda — não emerge ao acaso. É produto histórico de

“estruturas” que se desenvolveram na esteira de um capitalismo tardio peculiar, que migra de

um estatuto colonial para democracia liberal e Estado de direito, passando por períodos

autocráticos burgueses, sem ter bases culturais e ideopolíticas que coloquem as massas

populares em condições de participar do jogo politico com autonomia relativa. As revoluções

757

Não queremos dizer com isso que o pensamento de esquerda brasileiro abandonou por completo a

agenda revolucionária, mas sim que os traços contrarrevolucionários do momento presente são tão mais

fortes que parecem ter reduzido tal perspectiva a grupos sociais cada vez menores e isolados. Basta notar,

por exemplo, como a disputa eleitoral suplantou, mesmo no campo das esquerdas, o debate programático

dos partidos ou ainda, a invasão pós-moderna nos movimentos sociais. Um transformismo generalizado

(para além daquele que se obtém através do poder do Estado) parece invadir parcela significativa dos

aparelhos privados de hegemonia na sociedade civil, liberando assim o Estado e as instituições para levar

a cabo o projeto burguês sem maiores entraves. Os trabalhos de Arcary (2011) e Singer (2012), já muito

citados nesta tese ajudam a compreender tais implicações do momento presente. 758

No caso do Serviço Social este risco pode ser maior caso não se confira à autonomia da profissão ante

a de partidos políticos que mantém a pauta antisistemica em suas agendas. Os agentes profissionais

podem (e é adequado que o façam) militar nas fileiras partidárias e também compatibilizar agendas e

articular lutas e demandas comuns, contudo, a identificação simbiótica entre as duas instituições pode

acabar por, ao invés de potencializar, neutralizar as ações de ambas, pois os aparatos que dispõem para

levar a cabo suas agendas são dados, sobretudo, pelo lugar que ocupam na teia societária, sendo assim

aparatos distintos. O reconhecimento destas diferenças é, em nossa opinião, condição sine qua non para

que a profissão possa, de fato, articular-se a perspectivas que lutam pela superação da ordem do capital.

Isto remete diretamente a nossa opção por aderir a noção de Estado que privilegia “as relações” e as

disputas classistas tanto na esfera infraestrutural quanto na superestrutura, o que nos leva a necessidade de

aprofundar o estudo sobre o Estado burguês para “entende-lo” e utilizar este entendimento como

“instrumento” para superá-lo e não apenas “destruí-lo” sem compreender os percalços mediativos que se

colocam no corolário da luta antisistemica. A função econômica do Estado burguês que se condensa

como correlação de forças (sempre desiguais) não implica, insistimos, na renúncia ao programa

revolucionário, mas nos remete a perigosa utilização de alguns instrumentos limitados da sociabilidade

burguesa como instrumentos que podem, de modo parcial e transitório, orientar-se sob uma lógica

proletária, como é o caso dos direitos e de algumas diretrizes da democracia burguesa. Uso, inclusive,

previsto nas diretrizes do PEP expressas no Código de Ética Profissional, na Lei de Regulamentação da

Profissão e nas Diretrizes Curriculares.

Page 402: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

402

burguesas759

(e as “transformações pelo alto”) que marcam a história do Brasil prepararam

historicamente o terreno para que hoje a ciência política nacional fosse “dominada” por essa

tendência760

. Ademais, a conjuntura recente corrobora este processo, pois as grandes contendas

que se tem estão majoritariamente afetas a “disputa distributiva” que é mais consequência do

que causa da desigualdade estrutural, e, que desvia a atenção tanto de seus protagonistas quanto

dos analistas sobre as bases materiais que produzem e reproduzem o que se disputa: a riqueza

social do país. Referimos-nos ao conflito entre a burguesia, suas diferentes frações e os

trabalhadores pela apropriação da riqueza nacional, sendo esse conflito entrelaçado pelo

processo político. Isto é, diz respeito também às disputas por influência nas decisões

governamentais, pela influência política na esfera estatal. Em se tratando de um Estado burguês,

evidente que as condições e os lugares que ocupam as classes na contenda não são iguais e nem

ainda que o domínio hegemônico dos níveis de comando interno do Estado não tenham limites.

Ao contrário, a influência política desta ou aquela classe se limita as funções econômicas

finalísticas do Estado: a acumulação. Portanto, não se ultrapassam esses limites sem “ruptura”

institucional drástica deste tipo de Estado por outro761

.

Esses limites na intervenção do Estado repercutem assim na ação direta da luta de

classes. Lutas das massas populares, de tais ou quais massas populares (classe

operária, pequena burguesia, classes populares camponesas) contra medidas do Estado

em favor do capital, lutas também no próprio seio da burguesia e do bloco no poder

contra essas ou aquelas medidas, atuando em benefício predominante de tal ou qual

fração da burguesia e componente desse bloco. Limites que não são simplesmente

barreiras externas à ação do Estado: na medida em que estas lutas constituem o Estado

como condensação material de uma relação de forças entre as classes, trata-se de

limites pertencentes a própria estrutura do Estado, e à formação de sua política como

resultante de suas divisões internas na medida em que estas exprimem contradições de

classe (...) Limites estruturais que não se referem então apenas à luta e resistência das

classes dominadas, mas igualmente à de frações da burguesia (POULANTZAS, 2000,

p. 197)762.

A conjuntura que privilegiamos na tese — o momento de consolidação do

neoliberalismo à brasileira — tida pelo discurso oficial como período neodesenvolvimentista é

759

Tal qual expressas em FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil ensaio de

interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981 3ª edição. 760

Já argumentamos antes que o fato de estarmos no período mais longo de democracia liberal de nossa

história, conquistada não por lutas proletárias, mas por “arranjos políticos” da classe dominante,

acomodou na cultura de massas todo o corpo categorial da sociabilidade burguesa, dando a falsa

impressão de que “a história acabou”, de que as lutas terminaram (alguns apologistas desta perspectiva

referem que os últimos movimentos significativos da luta de classes brasileira foram as “Diretas Já” e o

impeachment de Collor). 761

Um Estado de transição. 762

POULANTZAS, Nicos. O Estado, O Poder, O Socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

Page 403: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

403

marcada por conflitos desta natureza. A disputa pela apropriação da riqueza, embora não reflita

diretamente a agenda antisistemica, é uma importante dimensão da luta de classes que não pode

ser secundarizada, porém, deve ser contextualizada e referida ao processo político geral, para

que não se torne apenas “fragmento” do real. Nesse sentido, as eleições, os “programas”

partidários, e os grupos sociais que com eles se relacionam são parte e expressão dessa

dimensão da luta de classes no contexto do conflito distributivo, isto é, ainda que não haja um

partido político de expressão que tensione pela revolução socialista, não há de ser marginalizado

o processo que leva os “programas” partidários atenderem em maior ou menor escala

determinadas frações da classe dominante ou em escala ainda menor interesses das massas

populares.

É nesse sentido que podemos situar o pretenso “projeto neodesenvolvimentista” que

emerge a partir da metade do primeiro governo Lula (2003 – 2007) e se consolida no segundo

(2007 – 2010) como parte de um processo que altera as bases (não-estruturais) das forças sociais

condensadas materialmente no Estado. A reversão, demonstradas nos capítulos II e III, se dá,

sobretudo, pela ascensão da burguesia interna. Há um deslocamento não traumático do capital

financeiro internacional e da burguesia brasileira a ele vinculada, do centro mais direto do poder

político. Contudo, a ascensão de um grupo não significou a supressão ou marginalização do

outro. Ao contrário, o que assistimos foi a promoção de um tipo “sincrético” de concertação que

levou a burguesia interna que ainda não havia “se “internacionalizado e pouco “se

financeirizado” a “se internacionalizar” e “a se financeirizar”. Ou seja, os membros da classe

proprietária que “sobraram” na era FHC, pelo privilégio que foi conferido ao capital

internacional, foram agora “incorporados” ao Sistema de Reciprocidades existente entre os

principais agentes da acumulação: O Estado, o capital produtivo nacional e internacional (em

escala menor), o capital financeiro internacional (em escala dominante) e as empresas com base

de acumulação “primitiva” em território nacional763

.

763

No capítulo III mostramos que a classe dominante ao deter a condução hegemônica do Estado não

elimina a disputa entre suas frações, contudo, acaba sempre por acomodá-las de algum modo, conferindo,

em última análise uma unidade relativa. Portanto, quando estamos demonstrando essa movimentação do

“bloco no poder” não estamos prospectando nele fissuras que coloquem em risco o dinamismo

sociometabólico do capital na esfera superestrutural, embora elas possam existir. Em FHC essas fissuras

não se tornaram ameaça, pois a unidade fora amalgamada em torno das proximidades ideopolíticas dos

agentes, e, em Lula, ainda que uma classe de “sujeitos monetários” (nos dizeres de Robert Kurz)

provinda, sobretudo do movimento sindical tenha ingressado ao locus onde se disputa poder político, a

imensa habilidade do PT e do presidente Lula em articular alianças entre e intraclasses impediu (em nome

da governabilidade segundo o discurso oficial) que as fissuras ameaçassem as bases constitutivas deste

bloco.

Page 404: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

404

O atual papel do Estado não elide o fato de que ele sempre comporta limites, que se

pode designar como limites estruturais da intervenção do Estado capitalista na

economia. Se esses limites são variáveis segundo as fases do capitalismo, as relações

entre as classes e as formas de Estado (democracia parlamentar, fascismo, etc.) isso

não impede que, ultrapassado um determinado grau, eles se tornem inteiramente

instransponíveis sob o capitalismo, da maneira que ele atua e se reproduz nas

sociedades ocidentais. Aqui também cumpre suspeitar da contumaz imagem de um

Estado onipotente que se encaminha progressivamente, de maneira inelutável, para o

que Henri Lefebvre designa então pelo termo de “modo de produção estatal”. Não se

deve confiar principalmente na aplicação dessa imagem ás relações entre o Estado e a

economia quando ela se une com frequência a um tecnocratismo de esquerda (o que

não é certamente o caso de Lefebvre): a crença nas capacidades intrínsecas de um

Estado racionalizador-administrador para efetuar, luminosamente orientado por

experts de esquerda, uma transição para o socialismo (POULANTZAS, 2000, p.

194)764

Essas novidades conjunturais expressam um momento peculiar no desenvolvimento do

capitalismo brasileiro que repõe para as esquerdas, antisistêmicas ou não, a necessidade

estratégica de pensar o Estado. Pensar o Estado do ponto de vista político e ideológico, material

e subjetivo, econômico e social, isto é, pensar o Estado com vistas a prospectar com maior

precisão seus rumos: seja para encaminhar a agenda revolucionária que tende a destruí-lo, seja

para disputar a agenda reformista de esquerda, que em última instância também tende a superá-

lo.

Evidente que nos posicionamos junto ao primeiro grupo e pensamento social, contudo,

não pensamos o encaminhamento da agenda revolucionária já e agora, na base do “quanto pior,

melhor”. Antes, entendemos a necessidade inadiável de qualificação dos sujeitos políticos que

compartilham dessas tendências e perspectivas, amparados por um projeto-político-societário

consequente, consistente e real (embora idealizado, mas com bases reais). Ou como respondeu

Rosa Luxemburgo ao ser questionada sobre sua escolha entre “reforma” ou “revolução”:

“Reforma e Revolução”765

A história, deste modo, se pôs para nosso itinerário de busca como um sábio mestre. O

recurso a ela nos possibilitou vislumbrar a processualidade das relações que os homens

estabelecem no mercado da vida e na vida dos mercados, nos mostrando a previsibilidade e o

inesperado na trama que ocorre no mundo dos homens sob a ordem do capital.

O atual debate sobre a existência ou não do neodesenvolvimentismo como agenda

política dos governos Lula e Dilma é apenas uma motivação lateral para o debate real e

constante sobre o desenvolvimento capitalista. A disputa pela paternidade dos termos-sínteses

que expressarão de modo mais eficiente as características determinantes desse período passará,

764

POULANTZAS, Nicos. O Estado, O Poder, O Socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000. 765

LUXEMBURG, Rosa. Social Reform or Revolution. Militant Publications, London, 1986

Page 405: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

405

assim como passam os modismos aos quais a academia se rende de tempos em tempos. O que

permanece é a base constituiva material e objetiva desses mesmos modismos: a realidade social

dada a partir da formação social onde as relações produtivas e reprodutivas da vida acontecem.

O Serviço Social, aceitando ou negando, está inevitavelmente imbricado nesse processo.

Já é suficientemente conhecido de todo nós a acepção que nos mostra a inviabilidade de

conceber a profissão fora do movimento empreendido de modo relacional entre o Estado e as

classes, pela mediação das políticas públicas766

, contudo, é nos momentos de síntese do

desenvolvimento capitalista – mola propulsora da hegemonia dessas relações – conhecidos por

desenvolvimentistas que a profissão sobre maiores inflexões.

Desde os anos 1930, podemos verificar que é nas conjunturas chamadas de

desenvolvimentistas que a profissão tende a apresentar picos de expansão em sua inserção no

mercado de trabalho, sempre com a criação de novas frentes laborais.

No momento atual o mesmo vem ocorrendo. E o fenômeno deve ser observado com

cautela e seriedade, sem aligeiramentos apressados que põem em risco o projeto profissional por

prognosticarem movimentos errados da realidade: o erro da análise redunda no erro da ação.

Com isso, a nossa tese que buscou evidenciar como tem sido, ao longo da história, o

tratamento dispensado pelo Serviço Social à problemática teórico-prática do Estado, acabou por

abarcar várias teses em uma: o objetivo inicial explicitou as tendências predominantes no debate

profissional sobre a referida problemática; situou o desenvolvimentismo e o possível

neodesenvolvimentismo como um momento peculiar de síntese do desenvolvimento capitalista,

recorrendo a história desses momentos no Brasil; resgatou uma análise conjuntural particular

tentando explicitar determinantes endógenos e exógenos em relação, articulando conjuntura e

estrutura, e, por fim, passando em exame as polêmicas profissionais afetas ao processo

dinâmico, heterogêneo, e porque não, contraditório, que vai da construção das análises sobre os

processos sociais em curso até a direção social impressa ao projeto profissional.

Com todos esses elementos, o objeto central que pareceu se perder em meio a extensos

argumentos, apresenta sua unidade conceitual na construção da problemática mesma do Estado.

Todos os argumentos estão referidos à ela. É a partir dela que se configura a construção do

pensamento social racional, configurando “ciências” que dela se ocupam; é em nome dela que a

ideologia e a sociabilidade do desenvolvimento capitalista ocorrem, possibilitando grande parte

da legitimidade que a sociedade lhe confere; é nela onde são encontrados os principais

elementos do movimento de continuidades e rupturas das transformações societárias mais

amplas que reconfiguram a luta de classes e suas frações, e, é por ela que passam as mediações

766

A inserção do Assistente Social no Mercado de trabalho, público ou privado, ampliou-se de tal forma,

que não é mais possível circunscrever sua atuação apenas pela mediação das políticas sociais. Por isso,

utiizamos o termo políticas públicas, pois já podemos observar profissionais se inserindo no campo das

políticas econômicas, de infra-estrutura, de relações exteriores,etc.

Page 406: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

406

de primeira ordem que conformam tanto o entendimento sobre a natureza e os sentidos da

profissão, bem como a direção social do projeto profissional.

As aproximações conclusivas que chegamos nos indicam que é inadiável que a

profissão reconheça um duplo movimento: de um lado, a admissão real do pluralismo como

diretriz ética central ao mesmo tempo em que reconheça no campo crítico do PEP os valores,

diretrizes e princípios que estruturam e conferem unidade conceitual ao Serviço Social e a sua

natureza específica, mesmo que para isso, tenham que coexistir tendências distintas no espectro

da tradição marxista, sob pena de acirrar o encateslamento da produção cientifica na academia,

se afstanso ainda mais da realide, conferindo uma direção idealizada ao PEP, distante das lutas

reais de classes nas quais a categoria deve participar, e a urgência de construir uma agenda

profissional que consiga encaminhar lutas gerais e específicas considerando todas as efesras da

vida social, tendo clareza dos limites da profissão.

Por fim, o tratamento dispensado pelo Serviço Social à problemático do Estado tem se

estruturado sob o fulcro de duas tendências predominantes no âmbito da tradição marxista: o

Estado instrumento da burguesia e o Estado ampliado, espaço de tensões e contradições. É

possível, conferir uma unidade entre as acepções na medida em que nenhuma delas subtrai a sua

essência de dominação, ao mesmo tempo que ambas, admitem a função econômica como

função determinada de primeira ordem no Estado burguês. O reconhecimento da autonomia

relativa do Estado, não nos parece uma questão de escolha metodológica, mas sim de fato

instado pela realidade que nos vincula (a profissão) a ele. A natureza da autonomia relativa do

Estado é a mesma natureza da autonomia relativa da profissão, isto é, seus sentidos e razão

histórica não são determinados unilateralmente pela vontade dos agentes que dão direção

ideopolítica a ambos, mas sim por um conjunto de aspectos, dimensões, agentes, situações,

estruturas, etc.

O horizonte da emancipação humana, tido como objetivo em última instância do PEP,

embora esbarre nos entraves dados pelo conflito classista, é a amalgama que confere unidade ao

projeto, e, deste modo, as divergências que se dão no interior da profissão, são da mesma

natureza que as divergências essenciais entre as esquerdas partidárias antisistemicas: qual a

melhor forma de encaminhar a luta e a transição revolucionária? Esse dilema, é de difícil

resolução, pelo menos a curto prazo, no âmbito das esquerdas partidárias, todavia, é passível de

ser equacionado no âmbito profissional. E isso porque a profissão apresenta limites decorrentes

do seu lugar na divisão do trabalho e por sua natureza polarizada. Isso não impede que a

profissão se articule à tais lutas, contudo, seu lugar no processo é de soma, de complemento, e

não de luta isolada.

Page 407: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

407

Referências

ABRAMIDES, Maria Beatriz Costa. Desafios do projeto profissional de ruptura com o

conservadorismo. In Revista Serviço Social e Sociedade n. 91. São Paulo: Cortez, 2007.

AGUIAR, Antônio Geraldo de. Serviço social e filosofia: das origens a Araxá. 6.ed., São

Paulo: Cortez, 2011.

ALMEIDA, Lúcio Flávio Rodrigues de. Entre o nacional e o neonacional-desenvolvimentismo:

poder político e classes sociais no Brasil contemporâneo. Revista Serviço Social e Sociedade,

n. 112, edição especial. São Paulo: Cortez, out./dez. 2012.

ALVES, Giovanni. Trabalho e subjetividade – o espírito do toyotismo na era do capitalismo

manipulatório. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010.

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado. Notas sobre os aparelhos ideológicos

de estado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.

ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental nas trilhas do

materialismo histórico. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.

ANTUNES, Ricardo. O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho.

São Paulo: Boitempo, 2005

______. A desertificação neoliberal no Brasil (Collor, FHC e Lula). Campinas/SP: Autores

Associados, 2004.

______. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do

trabalho. 8. ed., São Paulo: Cortez, Campinas: Unicamp, 2002.

______. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2. ed.,

São Paulo: Boitempo Editorial, 2000 (2ª edição).

______. Resenha. Para Além do Capital. Disponível em: <www.boitempoeditorial.com.br>.

ARCARY, Valério. Um reformismo quase sem reformas: uma crítica marxista do governo

Lula em defesa da revolução brasileira. São Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sundermann,

2011.

ALTHUSSER (1965). In: BOITO JR, Armando. Estado, política e classes sociais: ensaios

teóricos e históricos. São Paulo: Unesp, 2007.

AREND, Marcelo. 50 anos de industrialização do Brasil (1955-2005) uma análise

evolucionária. Tese (Doutorado em Economia)- Programa de Pós-graduação em Economia,

Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto

Alegre, 2009.

ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. São

Paulo: Boitempo, 2008.

BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em contrarreforma: desestruturação do Estado e perda de

direitos. São Paulo: Cortez, 2003(a).

Page 408: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

408

___________. Contrarreforma do Estado, seguridade social e o lugar da filantropia. Revista

Serviço Social e Sociedade, n. 73, ano XXIV, São Paulo: Cortez, mar.2003(b).

BIELCHEWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do

desenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.

BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 13., Brasília: UnB, 2007.

BOITO Jr., Armando. Pensamento Econômico e conflito de classe. In Brasil de Fato, edição

eletrônica de 02/04/2013. Acessado em 03 de abril de 2013.

______. Estado, política e classes sociais. Ensaios teóricos e históricos. São Paulo: Unesp,

2007.

______. O governo Lula e a reforma do neoliberalismo. Revista Adusp, maio 2005.

BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo:

Boitempo, 2012.

BRAZ, Marcelo. O PAC e o Serviço Social: crescimento para quê e para quem? Os setenta anos

da profissão e os seus desafios conjunturais. In Revista Serviço Social e Sociedade n. 91, ano

XXVIII. São Paulo: Cortez, 2007.

______________. O governo Lula e o projeto ético-político do Serviço Social. In Revista

Serviço Social e Sociedade n. 78, ano XXV. São Paulo: Cortez, julho de 2004.

BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Crise econômica e reforma do estado no Brasil: para uma

nova interpretação da América Latina. São Paulo: Editora 34, 1996.

______. A reforma do estado dos anos 90: Lógica e mecanismos de controle. Cadernos do

Mare, n. 1, Brasília, 1997.

______. Um novo estado para América Latina. Novos Estudos, n. 50. São Paulo: Cebrap, mar.

1998.

______. Reforma do estado e administração pública gerencial. 3. ed., Rio de Janeiro.

Fundação Getúlio Vargas, 1999.

CALDEIRA, Jorge. Mauá: empresário do império. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

CARDOSO, Fernando Henrique. Althusserianismo ou Marxismo? A propósito do conceito de

classes em Poulantzas. In: ZENTENO, Raúl Benítez (Org.). As classes sociais na América

Latina: problemas de conceituação. Tradução de Galeno de Freitas. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1977.

CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na

América Latina: ensaio de interpretação sociológica. 10. ed. rev., Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2011.

CARDOSO, Marco Antonio Fernandes. Do taylorismo ao globalismo: evolução e perspectivas.

In MARRAS, Jean Pierre. Capital-Trabalho o desafio da gestão estratégica de pessoas no

século XXI. São Paulo: Futura, 2008.

Page 409: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

409

CARNEIRO, Ricardo. Os clássicos da economia. v. 2, São Paulo: Ática, 2003.

CARNOY, Martin. Estado e teoria política. Campinas/SP: Papirus, 1988.

CARVALHO, Rodrigo. A era Collor: da eleição ao impeachment. São Paulo: Perseu Abramo,

2012.

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede Volume 1. Prefácio de Fernando Henrique

Cardoso. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

CASTELO, Rodrigo. O novo-desenvolvimentismo e a decadência ideológica do pensamento

econômico brasileiro. Revista Serviço Social e Sociedade, n. 112, out./dez. 2012.

CASTRO, Jorge Abrahão de. Nota Técnica. Gasto Social Federal: prioridade

macroeconômica no período 1995-2010. Diretor da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais

(DISOC) do IPEA.

CHASIN, José. A miséria brasileira: 1964 – 1994 – do golpe militar à crise social. Santo

André (SP): Estudos e Edições Ad Hominem, 2000.

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 14. ed., São Paulo: Ática, 2010.

______. Cultura e democracia o discurso competente e outras falas. 12 ed., São Paulo:

Cortez, 2007.

CHESNAIS, François et al. Uma nova fase do capitalismo? São Paulo: Xamã, 2003.

CHOCIAY, Henrique; NEVES, Lafaiete Santos. O conceito de juros em Marx e Keynes e sua

influência sobre os modelos de crises financeiras. Revista Contribuciones a la Economia.

Disponível em: <www.eumed.net/ce/2009a/csn.htm>. Acesso em: 8 jan. 2012.

CHOMSKY, Noam. O lucro ou as pessoas? Neoliberalismo e ordem global. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 2004.

CINTRA, Marcos Antonio Macedo. Tendências da globalização financeira: a extraordinária

liquidez global. Revista Princípios, n. 79, jun./jul. 2005, São Paulo.

CODATO, Adriano. Poulantzas, o estado e a revolução. Revista Crítica Marxista, n. 27, 2008,

p. 72.

COUTINHO, Carlos Nelson. Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo. São

Paulo: Cortez, 2008.

______. O conceito de sociedade civil em Gramsci e a luta ideológica no Brasil de hoje. In:

COUTINHO, Carlos Nelson. Intervenções: o marxismo na batalha de ideias. São Paulo:

Cortez, 2006(a).

______. Intervenções: o marxismo na batalha de ideias. São Paulo: Cortez, 2006 (b).

______. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 1999.

______. Hegel e a democracia. CONFERÊNCIA PROFERIDA PARA O INSTITUTO DE

ESTUDOS AVANÇADOS DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP) em 13 de julho de

1997. Disponível em: <www.iea.usp.br/artigos>. Acesso em: 15 fev. 2013.

Page 410: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

410

______. Marxismo e política a dualidade de poderes e outros ensaios. 2. ed., São Paulo:

Cortez, 1996.

______. Gramsci – um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

DURKHEIM, Emile. Da divisão do trabalho social. v. 1, p. 37, Lisboa: Presença, 1977.

ENGELS, Friedrich. Comentários sobre a contribuição à crítica da economia política de Karl

Marx. In: MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão

Popular, 2011.

______. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Centauro,

2002.

FAGNANI, Eduardo. Seguridade Social no Brasil (1996/2006): longo calvário e novos

desafios. In CESIT. Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 7, set/dez., 2007.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2003.

FEIJÓ, Ricardo. Desenvolvimento econômico, modelos, evidências, opções políticas e o caso

brasileiro. São Paulo: Atlas, 2007.

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil ensaio de interpretação

sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981 3ª edição.

FERNANDES, Liliane Alves. As Santas Casas de Misericórdia na república brasileira.

Dissertação (Mestrado em Políticas de Bem-Estar em perspectiva: evolução, conceitos e

actores)- Universidade de Evora, Lisboa, 2009.

FILGUEIRAS, Luiz. O neoliberalismo no Brasil: estrutura, dinâmica e ajuste do modelo

econômico. In: BASUALDO, Eduardo M.; ARCEO, Enrique. Neoliberalismo y sectores

dominantes. Tendencias globales y experiências nacionales. Buenos Aires: Clacso, Consejo

Latinoamericano de Ciencias Sociales, ago 2006.

FILGUEIRAS, Luiz; OLIVEIRA, Elizabeth. A natureza do atual padrão de desenvolvimento

brasileiro. XVIII ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA POLÍTICA. Artigo. Belo

Horizonte, 28 a 31 de maio de 2013. Sessões Ordinárias. Área 2 – História Econômica e

Economia Brasileira – Economia Brasileira Contemporânea.

FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Gênese e precursores do desenvolvimentismo no Brasil.

Revista Pesquisa & Debate, v. 15, n. 2 (26), pp. 225-256, Programa de Estudos Pós-Graduados

em Economia Política – Departamento de Economia da PUC-SP, São Paulo, 2004.

FONTES, Virginia. Brasil e o capital-imperialismo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010.

FREDERICO, Celso. A sociologia da literatura de Lucién Goldmann. Revista Estudos

Avançados, v. 19, n. 54, maio/ago. 2005, São Paulo.

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 2003.

______. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.

Page 411: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

411

GOLDMANN, Lucién. Espistemologia e filosofia política. Tradução de Conceição Jardim e

Eduardo Nogueira. Lisboa: Presença, 1984.

______. Sociologia do romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o nacional-desenvolvimentismo às avessas. Rio de

Janeiro: UFRJ, 2011.

GONZALES, Manuel Jose Forero & PEREIRA, Ricardo Mendes. Cooperação Brasileira para

o Desenvolvimento Internacional (COBRADI): O Brasil e os fundos multilaterais de

desenvolvimento. Texto para Discussão 1719. Brasília: IPEA, janeiro de 2012.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, v. 1, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

______. Cadernos do cárcere, v. 2, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

______. Cadernos do cárcere, v. 3, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

______. Cadernos do cárcere, v. 4, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel — as concepções de Estado em Marx,

Engels, Lênin e Gramsci. Porto Alegre: L&PM Editores, 1980.

GUERRA, Yolanda. O projeto profissional crítico: estratégia de enfrentamento das condições

contemporâneas da prática profissional. In Revista Serviço Social e Sociedade n. 91, São

Paulo: Cortez, 2007.

HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo: Edições Loyola, 2005.

HEGEL, George Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Prefácio do Autor.

Tradução de Norberto de Paula Lima e Márcio Pugliese. São Paulo: Ícone, 1997.

HELLER, Agnes. O homem do renascimento. Lisboa: Editorial Presença, 1982. (Coleção

Métodos).

HOBBES, Thomas. Leviatã, ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil.

Tradução de Rosina d’Angina. São Paulo: Martin Claret, 2009. (Coleção a Obra-Prima de cada

Autor. Série ouro, 1).

HOBSBAWN, Eric J. A era das revoluções 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.

______. História do Marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

______. Do feudalismo para o capitalismo. In: A transição do feudalismo para o capitalismo.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

IAMAMOTO, Marilda Villela. Serviço social em tempo de capital fetiche: capital financeiro,

trabalho e questão social. São Paulo: Cortez, 2007.

______. O Serviço Social na cena contemporânea. In Serviço Social Direitos Sociais e

Competências Profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009

______. O serviço social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. 6. ed., São

Paulo: Cortez, 2003.

IAMAMOTO, Marilda Villela. Trabalho e indivíduo social: um estudo sobre a condição

operária na agroindústria canavieira paulista. São Paulo: Cortez, 2001.

Page 412: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

412

______; CARVALHO, Raul de. Relações sociais e serviço social no Brasil: esboço de uma

interpretação histórico-metodológica. 11. ed., São Paulo: Cortez, 1996.

IANNI, Octavio. Estado e capitalismo. 2. ed. rev. ampl., São Paulo: Brasiliense, 1989.

_____________. Construção de categorias. Transcrição de aula dada no Curso de Pós-

Graduação em Ciências Sociais da PUC-SP no primeiro semestre de 1986.

IASI, Mauro Luis. As metamorfoses da consciência de classe o PT entre a negação e o

consentimento. São Paulo: Expressão Popular, 2006.

KANT, Imannuel. A paz perpétua e outros opúsculos. Tradução de A. Mourão. Lisboa: Eds., 1993.

LAZZARINI, Sérgio. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. São Paulo:

Campus/Elsevier, 2011.

______. Mudar tudo para não mudar nada: análise da dinâmica de redes de proprietários no

Brasil como “mundos pequenos”. RAE-eletrônica, v.6, n. 1, art. 6, jan./jul. 2007.

LEITE, Renato Lopes. Republicanos e libertários. Pensadores radicais no Rio de Janeiro

(1822). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000

LÊNIN, V. I. O estado e a revolução: o que ensina o marxismo sobre o estado e o papel do

proletariado na revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

______. Sobre a emancipação da mulher. São Paulo: Alfa-Ômega, 1980.

______. Esquerdismo: doença infantil do comunismo. Porto Alegre: Anita Garibaldi, s/d.

______. O imperialismo: fase superior do capitalismo. Rio de Janeiro: Globo, 1979.

LESBAUPIN, Ivo; MINEIRO, Adhemar. O desmonte da nação em dados. Petrópolis/RJ:

Vozes, 2002.

LIMA, Arlete Alves. Serviço social no Brasil: a ideologia de uma década. São Paulo: Cortez,

1987.

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos: ensaio sobre a

origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil. 4. ed., Tradução de Magda Lopes e

Marisa Lobo da Costa. Bragança Paulista: Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, 2006.

LOSURDO, Domenico. Hegel, Marx e a tradição liberal. Liberdade, igualdade, estado.

Tradução de Carlos Alberto Fernando Nicola Dastoli e Marco Aurélio Nogueira São Paulo:

Unesp, 1998. (Biblioteca Básica).

LOUREIRO, Maria Rita. 50 anos de ciência econômica no Brasil: pensamento, instituições e

depoimentos. Petrópolis: Vozes, 1997.

LÖWY, Michael. A evolução política de Lukács (1909-1929). Tradução de Heloísa Helena A.

Mello e Agostinho Ferreira Martins. Anexos traduzidos por Gildo Marçal Brandão. São Paulo:

Cortez, 1998.

LUKÁCS, Georg. Marx e o problema da decadência ideológica burguesa. In: Marxismo e

teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

Page 413: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

413

______. As tarefas da filosofia marxista na nova democracia. In: O jovem Marx e outros

escritos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: UFRJ,

2007(a).

______. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. In: O jovem Marx e outros

escritos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007

(b).

______. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo:

Martins Fontes, 2003.

______. Introdução à estética marxista. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Leandro

Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.

LUXEMBURG, Rosa. Social Reform or Revolution. Militant Publications, London, 1986

MACPHERSON, C. B. A teoria política do individualismo possessivo. De Hobbes a Locke.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

MANDEL, Ernest. A crise do capital: os fatos e sua interpretação marxista. São Paulo:

Ensaios, 1990.

______. O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982. (Coleção Os Pensadores).

______. Crítica do eurocomunismo. s/d, 1978. Fotocopiado.

MARANHÃO, Cézar Henrique. Desenvolvimento social como liberdade de mercado: Amartya

Sen e a renovação das promessas liberais. In: MOTA, Ana Elizabete. Desenvolvimentismo e

construção de hegemonia crescimento econômico e redução da desigualdade. São Paulo:

Cortez, 2012.

MARINI, Ruy Mauro. A crise do desenvolvimentismo. In: CASTELO, Rodrigo (Org.).

Encruzilhadas da América Latina no século XXI. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2010.

______. A dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil. In: SADER, Emir (Org.).

Dialética da dependência. Uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrópolis: Vozes/

Laboratório de Políticas Públicas (LPP), 2000.

______. América latina: dependência e integração. São Paulo: Página Aberta, 1992.

______. Dialéctica de la dependencia. México: Ediciones Era, 1973.

MARCUSE, Herbert. Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social. São Paulo: Paz e

Terra, 2004.

MARX, Karl. Grundisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da

economia política. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.

______. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.

______. Miséria da filosofia: resposta à filosofia da miséria do Sr. Proudhon. Tradução de José

Paulo Netto. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

Page 414: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

414

MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Tradução de Florestan Fernandes.

São Paulo: Expressão Popular, 2008.

______. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005.

______. Introdução à crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1978(a).

(Coleção Os Pensadores).

______. O 18 brumário de Luís Bonaparte. In: Manuscritos econômico-filosóficos e outros

textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1978(b). (Coleção Os Pensadores).

______. Teses contra Feuerbach. São Paulo: Abril Cultural, 1978(c). (Coleção Os

Pensadores).

______. O capital. Livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.

______. Un governo decrepito – Prospettive del ministero di coalizione, ecc. In New-York

Daily Tribune, n. 3677, 28 gennaio 1853. Disponível em italiano em:

http://www.resistenze.org/sito/ma/di/cm/mdcmbm19-010004.htm. Acesso em 03 de dezembro

de 2012.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Tradução de Maria Lúcia

Como. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Tradução direta do italiano por Ana Paula Pessoa.

São Paulo: Jardim dos Livros, 2007.

MÉSZÁROS, István. O poder da ideologial. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.

______. Para além do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.

______. Filosofia, ideologia e ciência social: ensaios de negação e afirmação. São Paulo:

Ensaio, 1993.

MONTALI, Lilia. Família e trabalho na conjuntura recessiva: crise econômica e mudança na

divisão sexual do trabalho. Tese (Doutorado)- Universidade de São Paulo, São Paulo: USP,

1995

MONTAÑO, Carlos. Pobreza, “questão social” e seu enfrentamento. In Revista Serviço Social

e Sociedade n. 110. São Paulo: Cortez, 2012.

_______________. A natureza do serviço social: um ensaio sobre sua gênese, a

“especificidade” e sua reprodução. 2. ed., São Paulo: Cortez, 2011.

_______________. Terceiro setor e “questão social” crítica ao padrão emergente de

intervenção social. 2. ed., São Paulo: Cortez, 2003.

MOREIRA, Cássio Silva; SOUZA, Nali de Jesus de. Capital de risco e desenvolvimento

econômico no Brasil: uma visão schumpeteriana. Disponível em:

<www.cassiomoreira.com.br>. Acesso em: 7 jan. 2012.

MOTA, Ana Elizabete. Redução da pobreza e aumento da desigualdade: um desafio teórico-

político ao Serviço Social brasileiro. In MOTA, Ana Elizabete (org.). Desenvolvimentismo e

Page 415: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

415

Construção de Hegemonia: crescimento econômico e reprodução da desigualdade. São Paulo:

Cortez, 2012.

__________________. Questão Social e Serviço Social: um debate necessário. In MOTA, Ana

Elizabete (org). O Mito da Assistência Social: ensaios sobre Estado, política e sociedade. São

Paulo: Cortez, 2008a.

__________________. A centralidade da Assistência Social na Seguridade Social brasileira nos

anos 2000. In MOTA, Ana Elizabete (org). O Mito da Assistência Social: ensaios sobre

Estado, política e sociedade. São Paulo: Cortez, 2008b.

MUNHOZ, Dércio. Introdução à economia. Brasília. 2007. Apostilado.

NASCIMENTO, Adriano. O estado capitalista na análise de Nicos Poulantzas. Revista

PalavraMundo, v. 1, n. 1, Campinas/SP, 2007.

NETO, Yttrio Corrêa da Costa. Bancos oficiais no Brasil: origem e aspectos de seu

desenvolvimento. Brasília: Banco Central do Brasil, 2004. Disponível em:

<www.bcb.gov.br/htms/public/BancosEstaduais/livros_bancos_oficiais.pdf>. Acesso em: 31 ago.

2012.

NETO, João Machado Borges. As várias dimensões da lei do valor. Revista Nova Economia.

Disponível em:

<www.face.ufmg.br/novaeconomia/sumarios/v14n3/140305.pdf>. Acesso em: 21 ago. 2012.

NETTO, José Paulo. Posfácio. In: COUTINHO, Carlos Nelson. O estruturalismo e a miséria

da razão. 2. ed., São Paulo: Expressão Popular, 2010.

______. Prefácio. In MOTA, Ana Elizabete. O Mito da Assistência Social: ensaios sobre

Estado, Política e Sociedade. São Paulo: Cortez, 2008.

______. G. Lukács: um exílio na pós-modernidade. In: NETTO, José Paulo. Marxismo

impenitente: contribuição à história das ideias marxistas. São Paulo: Cortez, 2004a.

______. A conjuntura brasileira: O Serviço Social posto à prova. In Revista Serviço Social e

Sociedade n. 79. São Paulo: Cortez, 2004b.

______. Ditadura e serviço social: uma análise do serviço social no Brasil pós-64. 6. ed., São

Paulo: Cortez, 2002.

______. Capitalismo monopolista e serviço social. 3. ed. ampl., São Paulo: Cortez, 2001(a).

______. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2001(b).

______. O que é marxismo. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Coleção Primeiros Passos).

NOGUEIRA, Marco Aurélio. Desenvolvimento e democracia. Jornal Folha de S. Paulo, 28 de

abril de 2012.

______. As três ideias de sociedade civil, o estado e a politização. In: COUTINHO, Carlos

Nelson; TEIXEIRA, Andréa de Paula Teixeira. Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

Page 416: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

416

NOGUEIRA, Marco Aurélio & DI GIOVANNI, Geraldo (orgs). Dicionário de Políticas

Públicas. São Paulo: Fundap, 2013. Verbete Gerencialismo.

OLIVA, Aloizio Mercadante. As bases do novo desenvolvimentismo no Brasil. Análise do

governo Lula (2003-2010). Tese (Doutorado)- Instituto de Economia da Univesidade de

Campinas (Unicamp), dez. 2010.

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica da razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo

Editorial, 2009.

______. Prefácio. In: BELLO, Carlos Alberto. Autonomia frustrada: o Cade e o poder

econômico. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.

___________. Viagem ao olho do furacão: Celso Furtado e o desafio do pensamento autoritário

brasileiro. In: A navegação venturosa: ensaios sobre Celso Furtado. São Paulo: Boitempo

Editorial, 2003.

___________. O surgimento do Antivalor. Capital, força de trabalho e fundo público. In: Os

direitos do antivalor: a economia política da hegemonia imperfeita. Petrópolis, RJ: Vozes,

1998.

OLIVEIRA, Luciana Vargas Netto. Estado e políticas públicas no Brasil: desafios ante a

conjuntura neoliberal. In Revista Serviço Social e Sociedade n. 93, ano XXIX, março de

2008. São Paulo: Cortez, 2008.

OREIRO, José Luís, FEIJÓ, Carmem A. Desindustrialização: conceituação, causas, efeitos e o

caso brasileiro. Revista de Economia Política, v. 30, n. 2 (118), pp. 219-232, abr.jun./2010.

PAÇO-CUNHA, Elcemir. (Auto)crítica do marxismo weberiano: de Lukács à Meszáros.

Revista Verinotio de Filosofia e Ciências Humanas, n. 13, ano VII, abr./2011. (Publicação

semestral – ISSN 1981-061X).

PAULA, Renato Francisco dos Santos. O instituído e o instituinte do controle social da

assistência social no Brasil pós-SUAS. XIII ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES

EM SERVIÇO SOCIAL – ENPESS. Anais... Juiz de Fora/MG, nov. 2012. (ISBN 978-85-

89252-11-9).

______. Revisitando o método em Marx sob a motivação da centralidade da família na política

de assistência social e no trabalho dos assistentes sociais. In: PAULA, Renato Francisco dos

Santos. As coisas e seu lugar: diálogos sobre serviço social, assistência social, direitos e outras

conversas. v. 1. São Paulo: Giz Editorial, 2008.

______. Trabalho, família e ser social: elos que unem a centralidade do trabalho às relações

familiares. Dissertação (Mestrado)- Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da

PUC-SP, 2005.

PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. Utopias desenvolvimentistas e política social no

Brasil. In Revista Serviço Social e Sociedade n. 112. São Paulo: Cortez, outubro/dezembro,

2012.

Page 417: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

417

______. Estado, sociedade e esfera pública. In: Serviço social: direitos sociais e competências

profissionais. Brasília: Cfess/Abepss, 2009.

______. Política social: temas & questões. São Paulo: Cortez, 2008.

______. Sobre a política de assistência social no Brasil. In BRAVO, Maria Inês Souza &

PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira (orgs). Política Social e Democracia. São Paulo:

Cortez, 2002

______. A Assistência Social na perspectiva dos direitos: crítica aos padrões dominantes de

proteção social aos pobres no Brasil. Brasília: Thesaurus, 1996

POCHMANN, Marcio. Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira.

São Paulo: Boitempo, 2012.

______. Desenvolvimento e perspectivas novas para o Brasil. São Paulo: Cortez, 2010.

POCHMANN, Marcio; WOHLERS, Marcio. Principais características da inovação na

indústria de transformação no Brasil. Ipea, Comunicado da Presidência n. 5. Brasília, 29 de

maio de 2008.

POULANTZAS, Nicos. O estado, o poder, o socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

______. Poder político e classes sociais. São Paulo: Martins Fontes, 1977.

PREBISCH, Raúl. Estudo econômico da América Latina – 1949. (Apostilado).

PREBISCH, Raúl. Problemas teóricos e práticos do crescimento econômico (1952). In:

BIELSCHOWSKY (Org.). Cinquenta anos, v. 1. 9. (Apostilado).

RAICHELIS, Raquel. Breve história do serviço social no Brasil. Agenda do Conselho Federal

de Serviço Social do ano de 2006.

____________. Esfera pública e conselhos de assistência social: caminhos da construção

democrática. São Paulo: Cortez, 1998.

RIBEIRO Jr., Amaury. A privataria tucana. São Paulo: Geração Editorial, 2011.

RODRIGUES, Mavi. Assistencialização da Seguridade e do Serviço Social no Rio de Janeiro:

notas críticas de um retrocesso. In Revista Serviço Social e Sociedade n. 91. São Paulo:

Cortez, 2007.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Martin Claret, 2009.

______. Origem e fundamentos da desigualdade entre os homens. Mem-Martins/Portugal.

Publicações Europa-América, 1976.

SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1988.

SADER, Emir. Estado e política em Marx. São Paulo: Cortez, 1993.

______. (Org.). Pós-Neoliberalismo as políticas sociais e o estado democrático. Rio de

Janeiro: Paz e Terra.

______. Estado e hegemonia. In: SADER, Emir et al. O Brasil do real. Rio de Janeiro: UERJ,

1996.

Page 418: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

418

SALVADOR, Evilásio. Fundo Público e Seguridade Social no Brasil. São Paulo: Cortez,

2010.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo:

Cortez, 2007.

______. Poderá o direito ser emancipatório? Vitória: Faculdade de Direito e Fundação

Boiteux, 2007.

______. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo: Boitempo

Editorial, 2007.

______. A gramática do tempo. Para uma nova cultura política. Porto: Afrontamento, 2006.

______. Fórum social mundial: manual de uso. São Paulo: Cortez Editora, s/d.

SANTOS, Leila Lima. Textos de serviço social. São Paulo: Cortez, 1999.

SANTOS, Josiane Soares. Particularidades da "questão social" no Brasil: mediações para seu

debate na "era" Lula da Silva In Revista Serviço Social e Sociedade n. 111. São Paulo: Cortez,

2012.

SCHUMPETER, Joseph Alois. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar

Editores, 1984.

SECURATO, José Cláudio. Economia: história, conceitos e atualidades. São Paulo: Saint Paul

Editora, 2007.

SILVA, Maria Ozanira Silva e. (Coord.). O serviço social e o popular resgate teórico-

metodológico do projeto profissional de ruptura. São Paulo: Cortez, 1995.

SILVA, Sheyla Suely de Souza. Contradições da Assistência Social no governo

"neodesenvolvimentista" e suas funcionalidades ao capital. In Revista Serviço Social e

Sociedade n. 113. São Paulo: Cortez, 2013.

SINGER, André. Os sentidos do lulismo – reforma gradual e pacto conservador. São Paulo:

Companhia das Letras, 2012.

SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. Livro I, v. I, São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Coleção

Os Economistas).

SODRÉ, Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 1966.

SOUZA, Hebert José de. Como se faz análise de conjuntura. 24. ed., Petrópolis: Vozes, 2003.

SITCOVSKY, Marcelo. A reconciliação entre assistência social e trabalho: o impacto do bolsa

família. In MOTA, Ana Elizabete (org). Desenvolvimentismo e Construção de Hegemonia:

crescimento econômico e reprodução da desigualdade. São Paulo: Cortez, 2012

SITCOVSKY, Marcelo. Particularidades da expansão da Assistência Social no Brasil. In

MOTA, Ana Elizabete (org.). O Mito da Assistência Social: ensaios sobre Estado, Política e

Sociedade. São Paulo: Cortez, 2008

Page 419: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

419

STUCHI, Carolina Gabas; PAULA, Renato Francisco dos Santos; PAZ, Rosangela Dias de

Oliveira da (Orgs.). Assistência social e filantropia: cenários contemporâneos. São Paulo:

Veras, 2012.

SZMRECZANYI, Tamás; COELHO, Francisco da Silva (Orgs.). Ensaios de história do

pensamento econômico no Brasil contemporâneo. São Paulo: Atlas, 2007.

SOUZA, Nelson Rosário de. Sociologia política. Curitiba: Iesde Brasil S.A., 2008.

SOUZA, Hebert José de. Como se faz análise de conjuntura. Petrópolis: Vozes, 2003 (24ª

edição).

SPOSATI, Aldaíza. et al. Assistência Social na trajetória das políticas sociais brasileiras.

São Paulo: Cortez, 1988.

TAKAHASHI, Kohachiro. Uma contribuição para o debate. In A Transição do Feudalismo

para o Capitalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004 (5ª edição).

TAVARES, Laura Soares. Os custos sociais do ajuste neoliberal na América Latina. São

Paulo: Cortez, 2000. (Coleção Questões de Nossa Época).

_________. O desastre social. Rio de Janeiro: Record, 2003. (Coleção Os porquês da desordem

mundial: mestres explicam a globalização, organização Emir Sader).

TEIXEIRA, Sandra Oliveira. Por trás do fundo menos público, o que está em jogo é a

democracia. In SALVADOR, BEHRING, BOSCHETTI & GRANEMANN, Evilásio, Elaine,

Ivanete & Sara (orgs). Financeirização, Fundo Público e Política Social. São Paulo: Cortez,

2012.

TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro. Introdução a um programa de

organização nacional. São Paulo, 1938.

TRAGTENBERG, Maurício. Burocracia e ideologia. São Paulo: Unesp, 2006.

TROTSKY, Leon. Revolução e contrarrevolução na Alemanha. São Paulo: Ciências

Humanas, 1979.

TUMOLO, Paulo Sérgio. Reestruturação Produtiva no Brasil: um balanço crítico

introdutório da produção bibliográfica. Educação e Sociedade [on line]. Dez. 2001, vol.22,

no. 77 [citado 02 Maio 2004], p.71-99.

VARGAS, José de Jesús Rodríguez. La nueva fase de desarrollo económico y social del

capitalismo mundial. Tese (Doutorado)- División de Estudios de Posgrado, Facultad de

Economía, Universidad Nacional Autónoma de México. (ISBN: 94-689-5228-1). Disponível

em: <www.eumed.net/tesis/jjrv/>.

VIANNA, Hélio. Contribuição à história da imprensa brasileira (1812-1869). Rio de

Janeiro: Imprensa Nacional, 1945.

VIANNA, Luiz Werneck. Esquerda brasileira e tradição republicana estudos de

conjuntura sobre a era FHC-Lula. Rio de Janeiro: Revan, 2006.

Page 420: Serviço Social, Estado e Desenvolvimento Capitalista · núcleo duro por onde circulam a legitimidade e a orientação social do Serviço Social como profissão partícipe da divisão

420

VIEIRA, Evaldo. Os Direitos e a Política Social. São Paulo: Cortez, 2004.

______. Poder político e resistência cultural. São Paulo: Autores Associados, 1998.

______. Estado e miséria no Brasil de Getúlio a Geisel 1951 a 1978. São Paulo: Cortez,

1983.

______. Autoritarismo e corporativismo no Brasil: Oliveira Vianna & Companhia. São Paulo:

Cortez, 1981.

YAZBEK, SILVA, RAICHELIS & COUTO. Maria Carmelita, Maria Ozanira da Silva e.,

Raquel & Berenice Rojas Couto. Sistema Único de Assistência Social: uma realidade em

movimento. São Paulo: Cortez, 2011.

YAZBEK, Maria Carmelita. Estado, Políticas Sociais e Implementação do SUAS. In SUAS:

Configurando os eixos de mudança. Coleção CapacitaSUAS, volume 1. Brasília/São Paulo:

MDS/IEE-PUC-SP, agosto de 2008.

___________. Classes subalternas e assistência social. São Paulo: Cortez, 1999 (3ª edição).

___________. A política social brasileira dos anos 90: a refilantropização da “questão

social”. Cadernos Abong, nº 3. São Paulo, ABONG, 1995.