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ECONOMIA GLOBAL, MERCADORIZAÇÃO E INTERESSES COLECTIVOS CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUC DOC TAGV / FEUC 2008 - 2009 SESSÃO 8 PARAÍSOS FISCAIS: MERCADORIZAÇÃO ONSHORE E OFFSHORE

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ECONOMIA GLOBAL,

MERCADORIZAÇÃO

E INTERESSES COLECTIVOS

CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUCDOC TAGV / FEUC2008 - 2009

SESSÃO 8

PARAÍSOS FISCAIS:MERCADORIZAÇÃOONSHOREE OFFSHORE

ECONOMIA GLOBAL,

MERCADORIZAÇÃO

E INTERESSES COLECTIVOS

CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUCDOC TAGV / FEUC2008 - 2009

http://www4.fe.uc.pt/ciclo_int/

SESSÃO 8

ECONOMIA MUNDIAL, AUTONOMIA DAS POLÍTICAS NACIONAIS

E PARAÍSOS FISCAIS

25 DE MARÇO DE 2009

25 DE MARÇO DE 2009

AUDITÓRIO DA FACULDADE DE ECONOMIA 15:00 HORAS

CONFERÊNCIA DE

JEAN DE MAILLARD (SCIENCES PO, PARIS)

BERNARD BOUZON (ATTAC, FRANÇA)

JOHN CHRISTENSEN (DIRECTOR DA TAX JUSTICE NETWORK)

COMENTÁRIOS DE

JOSÉ SILVA LOPES (EX-MINISTRO DAS FINANÇAS)

FRANCISCO LOUÇÃ (ISEG)

ANTÓNIO MARTINS (FEUC)

TEATRO ACADÉMICO DE GIL VICENTE 21:15 HORAS

FILME/DOCUMENTÁRIO

PARAÍSOS FISCAIS, A GRANDE EVASÃO (2008)

DE FRÉDÉRIC BRUNNQUELL

DEBATE COM

FRÉDÉRIC BRUNNQUELL

JEAN DE MAILLARD

BERNARD BOUZON

JOHN CHRISTENSEN

JOSÉ SILVA LOPES

FRANCISCO LOUÇÃ

ANTÓNIO MARTINS

ÍNDICE

PARAÍSOS FISCAIS:

MERCADORIZAÇÃO ONSHORE E OFFSHORE

1. PARAÍSOS FISCAIS E JUDICIÁRIOS

2. NO MUNDO DOS TRUSTS, DOS TRUSTEES

3. A CRISE ACTUAL E OS PARAÍSOS FISCAIS: NOTAS DE LEITURA

4. NA LINHA DE UM CERTO OBAMA

5. PARAÍSOS FISCAIS, PILARES DO CAPITALISMO

© Paradis Fiscaux, 2008.

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PARAÍSOS FISCAIS:

MERCADORIZAÇÃO ONSHORE E OFFSHORE

1. PARAÍSOS FISCAIS E JUDICIÁRIOS

Introdução

A expressão “paraíso fiscal” evoca uma ilha encantadora, com muito sol e palmeiras, situada no fim do mundo e onde alguns multimilionários se enriquecem enquanto dormem: numa palavra, nada que tenha a ver connosco. Mas esta primeira ideia é ao mesmo tempo enganadora e nociva porque os capitais que se encaminham para os paraísos fiscais são cada vez mais importantes. Cerca de metade dos fluxos financeiros internacionais transitam actualmente por estes lugares, enquanto as suas origens são cada vez mais variadas e as consequências desta situação são, de muitos pontos de vista, bem dramáticas.

Capitais múltiplos e de origem diversa

– As somas que se depositam nos paraísos fiscais e judiciários (PFJ) provêm nomeadamente de dinheiro resultante da fuga aos impostos e daqueles que se aproveitam das falhas regulamentares e jurídicas dos sistemas financeiros ocidentais. Os centros financeiros offshore, outra denominação dos PFJ, tornaram-se desde há alguns anos os segundos detentores de obrigações do Estado americano, e as Ilhas Caimão tornaram-se a quinta praça financeira do mundo pelos activos que aí são geridos.

– As somas consideráveis que afluem dia após dia aos PFJ são, em parte,

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igualmente o espólio amontoado graças à corrupção, tanto a Norte como a Sul. O mecanismo é geralmente o seguinte: o agente de corrupção activa, que pode ser um vendedor de armas, ou uma companhia petrolífera à procura de licenças de exploração, vai abrir a favor do sujeito que se deixa corromper, que é quem decide a assinatura do seu contrato, uma conta bancária num paraíso fiscal. Desta maneira, o país do agente corrompido vai ser espoliado de somas que podem ser consideráveis, graças à cumplicidade activa da multinacional do Norte e às vezes com a própria aprovação do governo do Norte.

Efeitos catastróficos

Independentemente das origens destes capitais, os resultados da sua presença nos paraísos fiscais são as mesmas:

– Os PFJ conduzem à redução drástica das receitas fiscais dos países do Norte assim como do Sul. Devido à sua menor superfície e à sua fraca população, os PFJ podem praticar o mínimo fiscal enquanto os outros países, os do Norte assim como os do Sul, serão obrigados a multiplicar as isenções de impostos para as empresas e para os particulares ricos!

– Os PFJ são uma caixa preta para a criminalidade transnacional, propondo instrumentos jurídicos capazes de ocultar a origem e o proprietário dos fundos e recusando cooperar com a comunidade internacional em matéria de investigações fiscais e criminosas. Apresentam-se assim como uma plataforma privilegiada entre o mundo das transacções financeiras legítimas e o dinheiro de origem criminosa. Contribuem, pela sua própria existência, para a corrupção internacional e para o financiamento das redes criminosas, terroristas e mafiosas.

– Os PFJ aumentam o risco de crise financeira, porque enviesam a aplicação da poupança mundial. Favorecem a circulação descontrolada dos capitais especulativos. Permitem igualmente falsear a qualidade

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dos balanços e das contas de resultados das sociedades multinacionais, contribuindo assim para algumas falências de grande monta e para práticas de concorrência desleal.

A urgente necessidade de agir

É necessário saber que os actores destes gigantescos movimentos de fundos que escapam às finanças e às nossas leis quase nunca viajam de malas secretas… A pessoa física ou moral que quer colocar activos vai muito naturalmente dirigir-se ao seu banco que o porá em contacto com os especialistas das grandes praças financeiras de Londres, de Nova Iorque, Zurique, ou do Luxemburgo. E é o banco de negócios, a empresa de contabilistas ou de advogados, ou ainda o conselheiro financeiro de sua escolha, que vai entregar-lhe “chave na mão” a conta num banco situado num PFJ que esteja melhor adaptado às suas necessidades bem como a fileira das sociedades-ecrã graças às quais poderá gozar dos seus activos com toda a segurança e no anonimato mais perfeito!

Muitos consideram um pouco apressadamente que o combate contra os PFJ é um combate de antemão perdido. Com efeito, os actores que fazem viver os PFJ estão bem identificados: as empresas multinacionais ou tendo uma actividade internacional, os indivíduos ricos, os Estados eles próprios quando agem na sombra (financiamento das operações secretas da CIA, por exemplo) e todos os intermediários que asseguram as conexões com os PFJ. É sobre este mundo que é necessário agir. Em conjunto, temos os meios.

1.º Definição e características dos paraísos fiscais e judiciários

Definição

Os paraísos fiscais são territórios que podem ser Estados soberanos ou dependências mais ou menos autónomas de outros países (Ilhas Jersey, Ilhas

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Caimão, etc.). Estes territórios respondem a uma combinação de vários critérios:

– segredo bancário rigoroso (oponível nomeadamente ao juiz estrangeiro);

– pouco ou mesmo nada de taxas de impostos, quer sejam sobre os rendimentos, os lucros ou sobre os patrimónios, particularmente para os não residentes;

– grande facilidade de instalação e de criação de sociedades, com pouco formalismo, frequentemente com leis sobre trusts (ou dando efeito aos trusts estrangeiros) muito liberais;

– cooperação judicial internacional limitada.

Esta definição mais larga que a retida habitualmente pelos fiscalistas internacionais tem em conta um conjunto de critérios que vão para além do simples aspecto fiscal.

Características

Os actores implicados, empresas ou pessoas ricas singulares, vão colocar uma boa parte dos seus rendimentos nestes territórios na condição de “o clima dos negócios lhes ser favorável”.

A - Rigoroso sigilo bancário

O sigilo bancário existe em todos os países, sendo um dos aspectos do segredo profissional aplicado a um certo número de actividades; mas aplica-se de acordo com condições mesmo muito diferentes, de acordo com o lugar onde é colocado o cursor, o ponto de demarcação, entre “o segredo” devido

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aos clientes e o respeito dos regulamentos e das normas sociais.

– O segredo bancário “à francesa”: o banqueiro tem acesso a muitas informações financeiras que se relacionam com cada cliente, por exemplo, o montante dos seus rendimentos e as operações que realiza. Nada que não seja muito normal. Em França, é-lhe proibido divulgá-las a terceiros em virtude da lei bancária. Este segredo bancário não é no entanto ilimitado. Pode ser levantado em casos muito precisos previstos pela lei: a um pedido do juiz correccional ou a um pedido da Alfândega, em caso de prisão ou de pareceres a um terceiro detentor, em caso de sobrendividamento, de requisição fiscal, ou em caso de suspeita de branqueamento. Para simplificar, o segredo bancário encontra ou tem os seus próprios limites que existem quando as autoridades fiscais e jurídicas intervêm.

– O segredo bancário “à Suíça”: num paraíso fiscal e judiciário, como a Suíça, o segredo bancário é também uma obrigação estabelecida pela lei. Em contrapartida, ao contrário de França, a evasão fiscal cometida no estrangeiro não é na Suíça considerada como um crime. Também o juiz suíço recusará o acesso a uma informação sobre uma conta bancária suíça se esta se referir a uma evasão fiscal contra o fisco de um país terceiro. Contudo, se a infracção cometida for “uma fraude fiscal” de acordo com o direito suíço (produção de falsos documentos, fraude) ou um outro delito de direito comum, o juiz suíço dará razão ao pedido do juiz de um país terceiro na base da Convenção de entreajuda judicial que vincula os dois países.

– O segredo bancário em Andorra e nalguns outros PFJ: o segredo é aí absoluto, ou seja, face a um pedido de entreajuda judicial de um Estado estrangeiro requerente, a apreensão provisória dos fundos às vezes possível, em teoria, não o é, porém, na prática, uma vez que os procedimentos de entreajuda judicial não funcionam e a transmissão das informações

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pedidas não existe. Assim, na maior parte dos outros paraísos fiscais, a contribuição do juiz local será ou recusada explicitamente ou deixada para as calendas, mesmo se se tratar de direito comum.

B - O nível reduzido da carga fiscal

É a principal vantagem que aí procuram as pessoas ricas particulares e as sociedades que desejam a optimização fiscal num paraíso fiscal e judiciário. Revelando distorções fiscais importantes ao nível internacional, a mundialização e a integração europeia geram já uma pressão à baixa da fiscalidade nacional dos diferentes países sobre os factores mais móveis da economia que são as pessoas de altos rendimentos e o capital, em detrimento das famílias e do trabalho. Os Estados-Membros da União Europeia são tentados a pôr em prática regimes preferenciais de imposição fiscal a fim de atrair as empresas e as famílias mais ricas para o seu território, pondo assim em causa a equidade do imposto.

É evidente que as características dos PFJ inspiram as políticas fiscais de numerosos Estados que têm uma lamentável tendência para se alinharem pelo mínimo fiscal em vez de se empenharem na via da harmonização e da cooperação. A existência dos paraísos fiscais tende para um modelo fundado no Estado “mínimo” onde as receitas fiscais são assim limitadas. Na Europa, não é por acaso que a taxa média de imposto sobre as sociedades passou de cerca de 50% nos anos 70 para 32,42% em 1999 e 29,8% em 2003.

C - Condições de instalação de sociedades ecrãs para os particulares assim como para as empresas fictícias

No direito dos PFJ, a existência de uma legislação que facilita a criação de fidúcias ou de trusts (ver anexo C) e das sociedades que disso dependem permite dissimular a identidade dos dadores de ordem reais e dos beneficiários dos activos colocados em abrigo. Trata-se de sociedades-ecrã sob todas as formas que podem criadas e utilizadas por particulares ou pelas empresas.

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Para as empresas, os esquemas que integram a utilização de PFJ usam quase sempre estruturas opacas. O Fórum sobre a Estabilidade Financeira, num relatório de Abril de 2000 publicado pelo grupo de trabalho sobre os centros financeiros offshore, citava nomeadamente a optimização fiscal pela via da criação de sucursais offshore opacas e por outros meios através da escolha de preços de transferência favoráveis1.

Último exemplo: os Estados Unidos autorizam as sociedades de venda à exportação (FSC ou Foreign Sales Corporations) a domiciliarem-se nas suas sucursais situadas em centros offshore,tais como as Ilhas Virgens ou Barbados. Para as sociedades em questão, trata-se de escapar a todo e qualquer imposto ao nível dos contratos internacionais: vendem os produtos a preços de custo à sua sucursal offshore que os revende – com lucros – ao estrangeiro. Os lucros escapam assim ao imposto americano. Para o Estado americano, trata-se de favorecer as suas empresas na obtenção de grandes contratos através de uma subvenção indirecta. Este tipo de montagem, que facilita também o pagamento de subornos aos responsáveis dos países compradores, é frequente em sectores como a aviação comercial, o armamento ou a construção e as obras públicas. A sua utilização sistemática pelos Estados Unidos já lhes valeu, contudo, na sequência de uma queixa da Comissão Europeia, ser condenado pela Organização Mundial de Comércio por concorrência desleal.

D - Ausência de cooperação judicial efectiva

1 As multinacionais podem, de facto, reduzir os seus impostos por este meio. O mecanismo é simples no seu princípio. A expressão “preço de transferência” visa as relações entre as sociedades do mesmo grupo multinacional situadas em Estados diferentes, tratando-se de bens, de serviços e de activos que se podem trocar ou vender segundo um certo preço e sob certas condições particulares. Estes preços podem diferir dos preços de mercado por razões de estratégia comercial mas também para reduzir os impostos devidos num dado Estado. Na prática, as empresas são consideradas estarem a respeitar os Princípios Directores da OCDE, mas é tudo uma questão de interpretação. Exemplo de emprego deste tipo de técnica: o World Tax Planner, sistema informático desenvolvido pelo gabinete de auditoria e conselho Delotte & Touche.

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É um princípio fundamental do direito internacional o facto de um juiz não poder exercer os seus poderes fora do território nacional. Para qualquer intervenção no estrangeiro, dirige-se, pelo canal diplomático ou directamente (conforme há convenção ou não entre a França e o país interessado), ao seu homólogo no país interessado.

Para atenuar o formalismo destas comunicações e para reduzir os prazos de resposta, convenções internacionais vinculam os países da Europa, em especial os 40 países que formam o Conselho da Europa. As convenções prevêem comunicações directas entre os juízes, e o compromisso assumido de cooperarem juntas e com a rapidez pretendida.

Mas estas boas intenções nem sempre se traduziram em factos: há diferenças sensíveis entre os países signatários, há os que cooperam de boa vontade, actualmente são a Alemanha, a Suíça, a Itália, e outros como o Luxemburgo e a Inglaterra que opõem uma inércia ou uma preocupação extrema nas questões de forma, o que é equivalente, às vezes, a uma recusa. Além disso, a Convenção do Conselho da Europa que organiza esta cooperação autoriza uma excepção, largamente utilizada pela Suíça2, para as infracções fiscais. Por outras palavras, o enviesamento fiscal através do qual um juiz aborda frequentemente uma actividade criminosa e contra a qual ainda não tem reunido as provas não é permitido pela Suíça.

Mede-se a dificuldade, constantemente evocada pelos juízes de instrução, para identificar o percurso do dinheiro da fraude quando apreendem extractos de conta com transferências em proveniência, ou com destino, de sociedades desconhecidas cuja conta bancária está no estrangeiro. Esta situação está a melhorar progressivamente sob a influência de vários factores: a criação de lugares para juízes especializados nestas matérias, que

2 O artigo 2.º da Convenção do Conselho da Europa, 1959.

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corrigem os equívocos e os prejuízos de um lado e de outro; por outro lado, uma cooperação mais informal entre juízes de países diferentes preocupados em combater esta forma de criminalidade; igualmente, a cooperação mais espontânea que se instaura entre os corpos de polícia especializados dos diferentes países de maneira contínua e não mais pontual.

Um exemplo recente em Itália, relatado por The Economist, ilustra os progressos que podem ser feitos na matéria. Pela primeira vez, as autoridades monegascas deram sequência a um pedido de um procurador italiano de Palermo. Somas detidas pelas sucursais no Mónaco de dois bancos suíços por conta de três trusts estabelecidos em Vaduz (Liechtenstein) foram descobertas na sequência de operações complexas começadas dez anos antes a partir do Banco de Sicília, em Palermo. O beneficiário de dois destes trusts é um certo Francesco Zummo, homem de negócio siciliano, julgado em Palermo por ter ajudado e ter pertencido à “Cosa Nostra”, à Máfia. Entre as acusações retidas contra ele: uma operação de branqueamento feita por este homem de negócios para Vito Ciancimino, antigo presidente da câmara municipal de Palermo, bandido notório filiado no clã Corleone.

O procurador de Palermo encarregado deste assunto vem assim mostrar o êxito que teve em proceder a uma apreensão no Mónaco de uma destas contas bancárias num montante de 21 milhões de euros suspeitos de pertencerem a um membro da “Cosa Nostra”. De maneira mais geral, é muito difícil descobrir estas operações complexas de transferências de fundos depositados; neste caso, o dinheiro depositado no Mónaco foi encontrado graças a uma denúncia, e constitui certamente uma pequena parte das somas ilícitas roubadas pelo arguido.

E - Nível de estabilidade económico e político dos PFJ

A estabilidade política é, obviamente, um factor essencial tido em conta na escolha do PFJ. De uma maneira mais geral, a estabilidade económica

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e jurídica é uma condição necessária para o bom desenvolvimento dos negócios. Os bancos não se enganam. Para as suas próprias necessidades, mas também para as dos seus clientes, estabelecem listas de países classificando-os em diferentes categorias em função dos riscos que representam. Estas listas são actualizadas regularmente. Do mesmo modo, as agências de notação internacionais classificam os países de acordo com estes mesmos critérios. Não é suficiente, portanto, para um país que este suprima toda e qualquer imposição, como o veio agora a fazer a Coreia do Norte, para ser reconhecido “pelo mundo dos negócios” como um paraíso fiscal.

Os PFJ não escapam a esta regra não escrita: “a reputação” de um paraíso fiscal e judiciário é fortemente ligada à sua estabilidade económica e jurídica: para ganhar reputação, será necessário, por conseguinte, muitos anos. Muito conservadores, os meios financeiros privilegiam a prudência, considerada como a qualidade essencial do banqueiro. O caso da Suíça é exemplar. Na nossa classificação este país obtém, em resumo, apenas uma nota média. No entanto, o segredo bancário é de tal forma reconhecido desde há mais de um século que ele é o melhor argumento para atrair os capitais, ainda que as despesas e as comissões bancárias sejam objectivamente mais elevadas que na maior parte dos outros PFJ.

2.º Pequena história dos PFJ

É difícil saber quando começaram verdadeiramente a existir os PFJ! Alguns autores afirmam que no século II a. C. apareceram as primeiras zonas francas oficiais, no Mediterrâneo oriental. A partir de 166 a. C., e durante perto de um século, a ilha de Delos pratica um comércio isento de taxas, de impostos e direitos alfandegários. Pela sua posição geográfica privilegiada, a ilha torna-se um centro de comércio e de trocas muito importante por onde transitam o marfim, os tecidos, o vinho, o trigo e as especiarias.

O mesmo princípio é retomado na Idade Média em diferentes cidades (“vilas francas”), mas também nos portos e nas feiras, que beneficiam de um

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princípio de extra territorialidade comercial e fiscal. A franquia conhece, no caso das cidades, um limite geográfico, e, no caso das feiras, um limite temporal (que vai de alguns dias a algumas semanas). A primeira feira franca aparece assim no século VII com a feira dita do Lendit, em Saint-Denis, instituída pelo rei Dagobert, instituída em nome das relíquias da Paixão. Entre os séculos XII e XIV, as grandes feiras de Lyon, de Brie, de Beaucaire ou ainda de Champagne beneficiaram do mesmo tratamento de favor.

O caso da cidade de Marselha é interessante: desde o início da era cristã, Marselha é uma república independente que dispõe de um porto franco que atrai navios e produtos de todo o Mar Mediterrâneo. Foi somente a partir de 1481, quando o Rei de França ocupou a cidade, que o estatuto do porto é posto em causa. Manterá contudo uma parte dos seus privilégios até… 1817!

A partir do século XVI, é em torno dos entrepostos coloniais que se vão desenvolver actividades bancárias offshore ligadas às operações comerciais. Em 1910, com uma proibição americana, é que aparece no vocabulário o termo de branqueamento ou lavagem de dinheiro: para reintroduzir as liquidezes ilegais que provêm do tráfego do álcool, os bandidos investiram “em casas de lavagem ”, as lavandarias com máquinas de moedas, que lhes permitiam branquear o dinheiro no sentido preciso da palavra! Mais tarde, em 1920, aparece uma nova geração de paraísos fiscais: zonas como as Bahamas, a Suíça ou o Luxemburgo começam a desenvolver legislações que permitem nomeadamente aos estrangeiros virem depositar os seus capitais para escapar aos impostos.

Muitos destes territórios, após a Segunda Guerra Mundial, pertencem “aos esquecidos do Plano Marshall”. Para financiarem o seu desenvolvimento, alguns deles especializaram-se nos pavilhões de conveniência enquanto outros adoptaram uma estratégia de integração na ordem mundial pela desregulação e pelo segredo bancário.

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O número de paraísos fiscais desde então não deixou de crescer, graças à liberalização financeira e ao desenvolvimento dos meios de comunicação telemáticos e informáticos que facilitam os movimentos rápidos de capitais,o que parece paradoxal numa primeira análise. Poder-se-ia imaginar que a atracção dos PFJ poderia perder importância durante os anos 80-90 devido à desregulamentação financeira. Contudo, as práticas de atracção fiscal articuladas com ofertas de opacidade e de competência asseguraram o seu desenvolvimento e a sua especialização. Os PFJ oferecem além dos privilégios fiscais uma série completa de serviços, muitos de elevado nível, na banca (em especial a gestão privada no Luxemburgo), nos seguros e puseram em marcha produtos financeiros mais sofisticados (Hedge Funds). As Ilhas Caimão constituem o exemplo de uma oferta offshore completa e integrada à finança mundial. Em alguns anos, este território britânico de 40 000 habitantes tornou-se um actor incontornável dos mercados financeiros internacionais com cerca de 600 bancos, 500 companhias de seguros, 50 000 IBC (Internacional Business Company), 25 000 trusts e quase 5 000 fundos de investimento.

3.º Paraísos que nos levam para o inferno

Crime, pilhagem, corrupção, instabilidade financeira, desestruturação social e ambiental

Os paraísos fiscais só são paradisíacos para uma minoria de pessoas. O que estes organizam, são espaços onde é suposto que as regras que a maioria aplica, e aplica certamente, deixam de ter sentido, deixam de se aplicar: não roubarás nada, não matarás ninguém, pagarás os teus impostos, ganharás o teu salário com o suor do teu rosto, utilizarás as regras da concorrência, respeitarás as legislações sociais e ambientais… Os paraísos fiscais e judiciários organizam, de acordo com as palavras do magistrado Jean de Maillard, “um mundo sem lei”. Ora, um mundo sem lei, é um mundo onde reina a lei do mais forte. As consequências são temíveis.

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A - Santuários para o dinheiro do crime

Os paraísos fiscais oferecem o segredo bancário, a confidencialidade e a opacidade de estruturas jurídicas que permitem esconder a identidade real dos dadores de ordem, dos proprietários ou dos beneficiários. O número das suas sociedades-ecrã, das suas contas anónimas, a ausência de cooperação com os sistemas judiciários dos outros Estados constroem as fronteiras que protegem os criminosos das justiças e das polícias dos Estados onde vivem as vítimas das suas acções.

Todos os traficantes utilizam estes tipos de serviços, e os fundos que transitam pelos paraísos fiscais podem ter as origens mais criminosas: tráfico de armas e financiamento de guerras privadas, dinheiro da prostituição e do tráfego de seres humanos, de somas acumuladas resultantes de operações de extorsão, de emissão e de colocação em circulação de notas falsas, tráfego de droga, etc.

Os relatórios são agora numerosos e mostram como certas redes terroristas utilizam os serviços dos paraísos fiscais para centralizar os fundos que amontoam e que posteriormente servem para financiar as suas acções. As máfias e as redes criminosas são também utilizadoras dos serviços e das prestações dos paraísos fiscais.

Estas organizações verdadeiramente criminosas, encarnadas por alguns barões do crime, tais como Al Capone ou Pablo Escobar, suscitam às vezes a fascinação, quase sempre a aversão. Mais discreta, porque protegida por uma fachada legal, a criminalidade de colarinho branco tem um custo económico, social, político e humano bem superior ao da delinquência de proximidade, mas aquela tem menos eco dos jornais e parece interessar pouco aos responsáveis políticos.

No centro da pilhagem dos países do Sul

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Quando um ditador vacila ou é destronado do poder, os olhares viram-se, ainda e sempre, para Genebra, Zurique ou para o Luxemburgo.

Já, nos anos 70, as autoridades suíças não deram qualquer sequência aos pedidos de entreajuda apresentados pelos Estados etíopes e iranianos vítimas dos desvios, sem dúvida consideráveis, de Haïlié Sélassié, “o rei etíope” e do Xá do Irão.

Na década de 80, muito foi dito e escrito sobre os espólios de Nicolae Ceausescu (Roménia), Manuel Noriega (Panamá), Jean Claude Duvalier (Haiti) e de Siad Barre (Somália) mas, na ausência de uma lei contra a reciclagem do dinheiro sujo, o montante dos fundos duvidosos identificado permaneceu bem pequeno: cerca de dezenas de milhões de dólares apenas. A única excepção notável refere-se ao pé-de-meia de Ferdinand Marcos (Filipinas), em relação ao qual o governo suíço ordenou o congelamento dos activos. A decisão fazia então figura de grande notícia.

De facto, a partir dos anos 90, a corrupção internacional geralmente ligada ao poder dos potentados aparece à luz do dia, sem se estar a esquecer, a partir de 1995, os activos restantes das vítimas de Shoah depositados nos bancos suíços e nunca restituídos aos seus beneficiários.

Sani Abacha, ex-ditador da Nigéria, implicado na pilhagem do banco central do seu país, viu os seus fundos no montante de 700 milhões de dólares colocados na Suíça – em sete bancos, de Genebra e Zurique, entre os quais o Credit Suisse e a União dos Bancos Suíços – apreendidos em 1999: 200 milhões de dólares foram restituídos, via Banco de Pagamentos Internacionais em 2003, para o pagamento da dívida nigeriana, e 458 milhões, em Fevereiro de 2005, através do Banco Mundial, para fazer face a projectos de desenvolvimento. José Eduardo dos Santos, o actual Presidente de Angola, acusado de corrupção e de branqueamento no âmbito do mercado de armas e do reembolso da dívida russa-angolana, viu as suas contas confiscadas num

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valor de 100 milhões de dólares. O inquérito de Genebra concluído em 2004 foi seguido por um acordo que no mínimo prevê a restituição de 21 milhões de dólares a Angola para desminagem do país sob a vigilância da Suíça.

Os portos de abrigo de tranquilidade para a corrupção e uma ameaça para a democracia

A corrupção supõe a intervenção de duas pessoas, uma, a pessoa que solicita ou aceita as vantagens como contrapartida do cumprimento ou do não cumprimento de um acto que depende da sua função ou da sua actividade profissional, e a outra, a pessoa que, pelos seus pagamentos financeiros, procura desviar a primeira dos seus deveres para disso tirar vantagem. A corrupção pode referir-se a pessoas que exercem uma função pública e dispondo, a esse respeito, de um certo poder (ministros, deputados, presidentes da câmara municipal e outros eleitos políticos, funcionários e agentes públicos sobretudo situadas a um nível elevado de decisão, etc.) ou a dirigentes, quadros, empregados de empresas privadas ou públicas.

Os paraísos fiscais e judiciários são instrumentos muito frequentemente utilizados para facilitar a grande corrupção. Os bancos devem fazer transitar da maneira menos arriscada possível, baralhando as pistas, os fundos importantes de agentes corruptos activos destinados aos agentes corrompidos.

Ora, a corrupção compromete muito fortemente o funcionamento democrático dos Estados, quer a Norte quer a Sul. Por exemplo, o negócio Elf evidenciou as práticas da política africana de França geradas pelo dinheiro oculto do petróleo. Aquando do processo, o antigo patrão da companhia petrolífera Loïc Le Floch Prigent assim o admitiu quando afirmou “ter sabido da existência de uma caixa preta e... ter tolerado esta prática”. “Sei que intervenções tiveram lugar junto de homens políticos franceses, e afirmo-o” (Extracto de Nicolas Lambert, Elf, la pompe de Afrique: Lecture d’un process, ED.Tribord, 2005, p. 38).

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Uma confusão entre a economia legal e a economia ilegal

Ao favorecer a imbricação da economia legal e da economia criminosa, os paraísos fiscais corrompem em profundidade o sistema económico (por exemplo, na atribuição de mercados públicos). Vários estudos mostram que cerca de 50% dos fluxos de capitais internacionais passam ou residem nos paraísos fiscais. Nestes capitais, há finança “lícita” à procura de mais discrição e há finança “ilícita”, a qual intervém além disso na economia real através de investimentos feitos em empresas bem referenciadas, bem conhecidas. Os paraísos fiscais são efectivamente um lugar onde se cruzam, misturam e se interligam a economia legal e a economia criminosa. É assim que grupos russos, dos quais se sabe que branqueiam dinheiro em grande escala, adquirem grandes clubes de futebol (o Chelsea, em Inglaterra), agências imobiliárias ou galerias de arte sobre a Côte d’Azur – ou partes significativas de sociedades cotadas na Bolsa pertencentes ao CAC 40, como a EADS. Mesmo a Comissão Europeia coloca as contribuições para a reforma dos seus funcionários nas ilhas anglo-normandas!

B - Um factor de instabilidade financeira

Os paraísos fiscais e judiciários facilitam uma circulação rápida dos capitais, sem nenhum controlo. Favorecem assim a especulação, nomeadamente sobre as taxas de câmbio, e a fuga de capitais das economias emergentes, fenómenos estes que contribuíram amplamente para a ocorrência de crises financeiras como aquelas que ocorreram no Sueste Asiático, na Rússia ou na América Latina. É de resto na sequência das crises de 1997-98 que o G-8 pôs em marcha, em 1999, o Fórum sobre a Estabilidade Financeira. Os países do Sul não deixaram de continuar a ser confrontados com a fuga de capitais que tende a aumentar o custo do crédito. Enquanto o Brasil, por exemplo, vê fugir 4 mil milhões de dólares em 2001 só para as Bahamas e para as Ilhas Caimão, os pequenos empresários agrícolas brasileiros enfrentam taxas de juro exorbitantes nos seus empréstimos, atingindo frequentemente 70% ao ano.

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Além disso, nos países ocidentais, são numerosos os escândalos financeiros que implicam grandes sociedades multinacionais, dos quais a imprensa fez eco nestes últimos anos, mostrando estes uma estranha semelhança com a espoliação dos países do Sul na organização das manipulações. Desde 2000, os Estados Unidos e os países europeus reforçaram consideravelmente os seus controlos sobre as operações das multinacionais e passaram a aplicar sanções em casos de infracção bolsista ou contabilística. Mas devemos constatar que verdadeiramente nada foi feito para suprimir, até mesmo apenas para controlar os paraísos fiscais e judiciários mesmo quando o seu papel nas fraudes constatadas é provado.

Aquando de um dos maiores escândalos financeiros americanos destes últimos anos, a falência fraudulenta do grupo Enron, os PFJ voltaram à superfície. Em Dezembro de 2001, o Grupo Enron, sétima empresa americana pelo seu volume de negócios (101 mil milhões de dólares), desaparecia crivada de dívidas, falia. Para esconder as suas perdas e ocultar uma parte das suas dívidas, a Enron tinha utilizado de maneira quase sistemática os paraísos fiscais – tinha só 600 sucursais (que utilizam uma só caixa postal!) criadas nas Ilhas Caimão, 160 nas Ilhas Turcas e Caicos (Relatório do Senado americano de Julho de 2002). Estas “montagens” efectivamente desempenharam o seu papel dissimulador dado que os maiores bancos internacionais continuaram até ao fim a apoiar a direcção de Enron, sem jamais manifestarem qualquer dúvida quanto às contas examinadas pela Arthur Andersen. Resultado: um buraco financeiro de 40 mil milhões de dólares, 21 000 empregados no desemprego, muitos reformados que perderam a sua reforma e várias centenas de milhares de accionistas enganados.

Os escândalos financeiros como os da Enron e Worldcom fizeram reagir o Congresso e o Presidente dos Estados Unidos. Num prazo recorde, uma lei veio reforçar os controlos contabilísticos, incentivar a denúncia das irregularidades, multiplicar as avaliações dos seus dirigentes. Em

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contrapartida, esta lei não atacou os instrumentos que permitem estes comportamentos fraudulentos e ninguém pôs sequer em causa a própria existência dos paraísos fiscais e judiciários.

Um outro negócio encheu as crónicas, desta vez em Itália: a falência fraudulenta da Parmalat, no fim de Junho de 2003. De uma empresa local de distribuição de leite pasteurizado nos anos 60, esta tinha-se tornado em 1974 numa empresa mundial, multiplicando então as sucursais e criando sociedades como correias de transmissão nos paraísos fiscais, nas Ilhas Caimão, nas Ilhas Virgens britânicas, nas Antilhas holandesas. Em 1990, entrava em Bolsa e conquistava o primeiro lugar mundial no mercado do leite de longa duração e empregava até 37 000 pessoas em mais de trinta países, com um volume de negócios, em 2002, de 7,6 mil milhões de euros. A partir de Novembro de 2003, as dúvidas, depois as interrogações emitidas pelos comissários de contas da empresa, pela agência Standard & Poors e pela Comissão das Operações da Bolsa italiana provocam a apreensão geral. Com o objectivo de tranquilizar, a direcção da Parmalat invoca então a existência de um fundo comum de 3,95 mil milhões de euros depositado numa agência do Bank of America, nas Ilhas Caimão. O Bank of America afirma que o documento produzido pela Parmalat para provar a existência deste fundo comum é falso! O valor das acções cai a pique. Em cerca de poucos dias, quase não valerá mais nada. Mais de 115 000 investidores e pequenos aforradores sentem-se enganados, alguns arruinados e dezenas de milhares de assalariados, na rua, desempregados. A dívida de Parmalat cifra-se em 11 mil milhões de euros! E, tal como os escândalos precedentes, Enron, Tyco, Worldcom, Ahold, etc., ninguém chamou a atenção para o facto, na época, mais que provado que “as contas auditadas” estavam largamente falseadas por uma utilização abusiva e quase sistemática dos PFJ. Os paraísos fiscais e judiciários, sem ser a causa destes escândalos, foram o instrumento privilegiado!

C - Os PFJ ou como minar os mecanismos de redistribuição e de regulação

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A fraude fiscal

Os paraísos são essencialmente “fiscais”. Acolhem de braços abertos somas consideráveis fugidas dos fiscos nacionais, nomeadamente de fortunas pessoais e de empresas multinacionais. A estas últimas, basta-lhes, por exemplo, que aí localizem sociedades fictícias que farão facturas falsas (um nome, um endereço, um papel, uma rubrica, referências, etc.) para diminuir os lucros visíveis (e taxados) em França. Ainda que o fenómeno exista fora dos PFJ, estes últimos multiplicam as oportunidades para as empresas transnacionais efectuarem transferências de lucros entre as suas sucursais, transferências feitas através da manipulação de preços (sobre-facturação das trocas entre sucursais de modo que o lucro apareça apenas em lugar “certo”) ou de dívida (sub-capitalização das sucursais situadas nos países pesadamente taxados). Foi a pretender funcionar com perda que Exxon, por exemplo, pôde evitar, durante 23 anos, pagar o mais pequeno montante em impostos ao Estado chileno pela sua exploração do cobre da mina “Disputada de los Condes”3.

As consequências da fraude fiscal são, naturalmente, uma redução das receitas orçamentais, representam dificuldades suplementares para os orçamentos públicos e uma redução de certas despesas públicas indispensáveis para responder às necessidades sociais e de solidariedade colectivas (serviços públicos e serviços sociais por exemplo).

A exacerbação da concorrência fiscal

No contexto de uma concorrência mundializada, a redução da fiscalidade tornou-se, para os Estados, um argumento para atrair o investimento ou a poupança. Podendo quase praticar uma fiscalidade nula

3 François Gobbe, Stop à l’évasion fiscale et à compétition fiscale, Kairos Europe, Novembro de 2004, p. 40.

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ou quase, os paraísos fiscais exacerbam esta corrida mundial para o mínimo fiscal. Como é que a República da África do Sul, que já diminuiu os impostos sobre as sociedades de 48% para 30% desde 1994, pode ela resistir face ao desenvolvimento na região de diversos centros offshore como as Maurícias, que oferece um nível de imposição fiscal de 1,5%4? A corrida para o zero de imposto está lançada – Jersey oferece já essa possibilidade. Certos países praticam mesmo o que se pode considerar como um imposto negativo para atrair os investidores estrangeiros: não somente se garante uma isenção fiscal como também lhes são oferecidas despesas públicas para convencer os investidores a aí fazerem os seus investimentos (desenvolvimento de infra-estruturas ad hoc, subsídios atribuídos para a criação de empregos, etc.). Privando os Estados de receitas fiscais que lhes fazem muita falta, este fenómeno enfraquece a capacidade de intervenção estatal nos países do Sul. Os governos dos países mais pobres vêem mesmo a sua dependência aumentar em relação aos fluxos financeiros de origem estrangeira (ajuda, investimento, dívida), o que limita seriamente a sua autonomia política e económica. Os países do Norte também não podem ficar descansados: nos Estados Unidos, as autoridades fiscais consideram que deixam de receber como receitas mais de 300 mil milhões de dólares5.

A deslocação da carga fiscal para os mais pobres

A diminuição da pressão fiscal é a nível mundial bastante selectiva. Beneficia sobretudo as grandes empresas e as pessoas ricas: entre 1983 e 1996, a imposição média das empresas americanas nos países em desenvolvimento caiu de 56% para 28%. Para um grande investimento mineiro na Zâmbia, a Anglo American Company obteve uma imposição de 25%, em vez dos

4 François Gobbe, op. cit., p. 42, e Friedrich Ebert Stiftung, “Money Laundering and Tax Havens: the Hidden Billions for Development”, Occasional Paper N.°3, Março de 2003, p. 8.

5 Friedrich Ebert Stiftung, op. cit., p. 12.

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35% habituais. No Peru, quase nenhuma empresa estrangeira paga imposto6. Para os muito ricos, não pagar impostos parece ter-se tornado uma situação normal: “Only poor people pay taxes”, exclamava assim um multimilionário americano em frente de um tribunal7. De facto, a carga de impostos sobre os mais pobres tem estado a aumentar. No Brasil, entre 1996 e 2001, o imposto sobre os rendimentos do trabalho aumentou de 27%, a contribuição para a segurança social de 66%, enquanto o imposto sobre as sociedades diminuía de 16% e o imposto sobre o património rural, descia para metade8. Do mesmo modo, a fraude fiscal de uns tantos acaba por ser paga ou suportada por outros (por um aumento da pressão fiscal sobre os que não podem ou não querem cometer fraudes e por uma redução das despesas públicas). Há por conseguinte aqui um elemento decisivo de aceleração das desigualdades sociais.

A complacência marítima

Certos paraísos fiscais adaptaram de modo bem particular a sua legislação e as suas regulamentações para poder matricular facilmente navios estrangeiros. Esta complacência também chamada de conveniência marítima, actualmente maioritária no comércio marítimo, conduz o conjunto do sector para o mínimo de regulação: ausência ou muito pouca fiscalidade, poucas ou nenhumas regras de segurança ou de protecção do ambiente, poucos controlos, agravamento das condições de trabalho e de emprego dos assalariados e do seu enquadramento, degradação das condições de exploração e de manutenção dos navios.

Este contornar das regulações nacionais, nomeadamente em matéria social, de segurança e ambiente, permite reduzir fortemente “o custo” do

6 François Gobbe, op. cit., p. 42.

7 “Só os pequenos é que pagam impostos”, segundo Leona Helmsley, aquando do seu processo por fraude fiscal, em 1989.

8 GRESEA, La Justice fiscale pour le développement social : Etudes de cas: Brésil et Algérie, 2003, pp. 17-18.

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transporte marítimo e participa assim, e muito, na aceleração da concorrência brutal dos mercados e da mão-de-obra. A sucessão “das marés negras” e “os navios caixotes de lixo” mostram o lugar dos paraísos fiscais neste sector económico quando as vítimas sentem as maiores dificuldades para fazer reconhecer as responsabilidades dos verdadeiros dadores de ordens.

No sinistra questão dos desperdícios tóxicos derramados na Costa de Marfim (uma dezena de mortes e 42 000 consultas médicas), durante o verão 2006, o Probo Koala, embarcação a navegar sob o pavilhão do Panamá estava sob as ordens de uma sociedade-ecrã, Puma Energy, domiciliada nas Bahamas. O accionista único da Puma Energy é a empresa Trafigura, fundada por dois homens de negócios franceses, cujos escritórios estão situados em Londres e cuja sucursal em causa (Trafigura Beheer BV) tem morada fiscal em Amsterdão, a sede social em Luzerna, na Suíça, a holding que detém as acções em Malta e parte do pessoal colocada num trust sediado em Jersey! A Trafigura parece ter comprado a sua impunidade através de um acordo com o governo da Costa do Marfim, em Fevereiro de 2007, mas as vítimas estão muito longe de estarem satisfeitas e os processos jurídicos contra a companhia de corretagem continuam.

4.º Paraísos fiscais e judiciários: as práticas dos actores

Partamos do caso muito simples de um empresário que deseja minimizar, ou mesmo anular, a imposição fiscal sobre a sua actividade. Para o efeito, vai estabelecer a sede da sua actividade num país de fiscalidade mais ligeira que a do seu país de residência. Certos territórios têm como especialidade “própria” oferecer a hospitalidade a estas sedes deslocalizadas, na condição das actividades permanecerem fora das suas fronteiras, ou seja, offshore. Uma sociedade offshore é por conseguinte uma sociedade localizada num território externo, um PFJ, e gerida à distância e a partir do país onde residem os profissionais que tomam as decisões inerentes à sua gestão, seja o país de residência do empresário, seja o lugar financeiro onde residem os seus conselheiros financeiros.

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As práticas legais

Nos grandes bancos internacionais, nos especialistas em fiscalidade internacional, ou mesmo em sítios web especializados, as vantagens que decorrem da criação de uma empresa offshore num PFJ são largamente explicadas. Em França, a criação de uma sociedade offshore (num PFJ, por exemplo) é autorizada com a salvaguarda de quatro condições:

– a actividade é desmaterializada (venda por Internet, por exemplo);

– a actividade não é do sector terciário, ou seja, não necessita de salas, lojas, escritórios e ateliers;

– a actividade não é regulamentada pela lei (que exclui por exemplo as agências de turismo, actividade regulamentada);

– a actividade não é artesanal.

Estes territórios têm as suas vantagens pela flexibilidade que permitem introduzir nos mecanismos de financiamento do mercado internacional: formalidades aligeiradas, prazos mais curtos, menor protecção dos investidores (diminuindo assim na mesma proporção a massa das informações a produzir), flexibilidade dos mecanismos jurídicos.

Eles desempenham, de facto, por esta razão, um papel “de válvula” atenuando a rigidez dos constrangimentos impostos nos grandes países industriais, constrangimentos que são mesmo assim garantias dadas ao conjunto dos accionistas, aos assalariados, aos clientes e aos poderes públicos. É a razão pela qual os grandes países toleram a sua existência e utilizam às vezes eles mesmos as suas facilidades.

As práticas ilegais

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Como lutar contra os abusos, a fraude, e a lavagem de dinheiro?

– os abusos: não é sequer necessário que a domiciliação num PFJ seja exclusivamente ditada pelo objectivo de evitar o pagamento de impostos.

– a fraude: acontece quando o fisco do país de residência prova ou presume uma dissimulação. Por exemplo, o pagamento efectuado a uma sociedade situada num PFJ por serviços mal definidos ou suspeitos. É também o caso dos iates ancorados em Saint Tropez ou em Antibes que estão na sua maior parte matriculados em Georgetown (Ilhas Caimão), mas cujo inquilino habitual é um francês rico. O fisco francês deveria recusar fiar-se na simples aparência.

– a lavagem de dinheiro: em numerosos países, a lei impõe aos profissionais do dinheiro, aos banqueiros, aos notários, que conheçam a identidade precisa dos seus clientes e das pessoas a quem os seus clientes pagam fundos. Devem também eles não se fiarem nas aparências e procurar, por detrás do ecrã da sociedade fictícia ou dos nomes falsos, o verdadeiro beneficiário. E se a resposta às suas questões for vaga ou suspeita, devem dirigir à administração uma declaração de desconfiança9.

“A fronteira” que separa o uso lícito das vantagens oferecidas pelos PFJ da fraude é frequentemente bastante fina:

9 Os agentes de fraude imaginaram protecções contra este dispositivo: uma delas, utilizada pelas sociedades, é a “desconsolidação” fraudulenta. A regra contabilística quase universal é que um grupo de sociedades deve anualmente estabelecer um balanço consolidado de todas as sociedades que controla como se todas elas formassem apenas uma só empresa. Para escapar a esta obrigação, os profissionais aconselham por vezes que constituam uma sociedade num PFJ dando-lhe a aparência de uma sociedade independente, para não terem que fazer uma contabilidade consolidada. É necessário, aliás, organizar de maneira clandestina a ligação que permitirá, contudo, controlar esta sociedade. Outro mecanismo de protecção: acumula-se num PFJ “um capital” a partir de rendimentos não declarados contabilisticamente e constitui-se, a partir daí, uma sociedade que se controla por de baixo da mesa. A escolha do PFJ impõe-se então por razões de menor fiscalidade, de flexibilidade administrativa e de opacidade.

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– o que é lícito: a lei francesa permite escolher o país onde se quer trabalhar, incluindo um PFJ. Pode, mantendo ao mesmo tempo a sede da sua actividade em França, igualmente localizar-se uma parte dos seus ganhos no estrangeiro e nomeadamente num PFJ, mas somente se respeitar as quatro condições mencionadas acima.

– o que é fraudulento: são todos os meios pelos quais se vai dissimular a relação que une a sociedade offshore à actividade tributável num país industrial (ou num país de fiscalidade normal). As práticas de lavagem de dinheiro podem assumir várias formas (ver anexo A).

5.º A introdução dos paraísos fiscais no próprio centro do sistema financeiro internacional

O peso dos PFJ no sistema financeiro internacional

Os paraísos fiscais pululam. Enquanto nos anos 70 o FMI recenseava 25 paraísos fiscais e judiciários, calcula-se que o seu número hoje seja mais de 60 pelos quais transitaria metade do comércio mundial e onde os activos domiciliados se elevariam a 11 000 mil milhões de dólares enquanto estes territórios representam apenas 3% do PIB mundial. De acordo com as estimativas mais baixas, não levando em conta a fuga dos capitais, o custo desta calamidade para os países do Sul elevar-se-á a valores entre 50 e 70 mil milhões de dólares de acordo com as estimativas da OXFAM (no seu estudo de Junho de 2000, “The hidden billions for development”).

Ainda que estes números estejam sujeitos a caução na medida em que o segredo bancário impede conhecer de maneira precisa o montante dos activos detidos nestes territórios, eles mostram que estes territórios estão actualmente no centro dos sistemas financeiros internacionais.

Sabe-se de forma segura que mais de 4 000 bancos offshore estão aí

instalados, e que se contam mais de 2,4 milhões de sociedades-ecrã. A parte das operações ilegais é impossível de considerar. A maioria dos fundos depositados é, com efeito, legal, procedente de empresas como os fundos de reforma ou de investimento, mas “à procura de optimização fiscal”. Um elevado número de grandes empresas multinacionais, além disso, tem deslocado as suas sedes sociais nesta óptica, quando a administração fiscal do país de residência é conciliadora. Não é o caso em França onde a grande maioria das sociedades participantes no CAC 40 tem tido sempre a sua sede social em Paris.

A Europa, ela própria, não dá o exemplo pois dentro do continente operam uma dúzia de territórios que apresentam todas as características de paraísos fiscais e judiciários. A geografia actual dos centros offshore e dos paraísos fiscais é interessante no sentido em que estes acompanham largamente os principais centros económicos. A França utiliza Andorra e o Mónaco, ou mesmo a Suíça, os britânicos as ilhas Anglo-Normandas e os territórios (ou ex) da Coroa repartidos pelo mundo, os italianos, o principado de São Marinho, etc. A maioria dos paraísos fiscais permaneceu dependente das antigas potências tutelares. Isto explica a oposição constantemente renovada do Reino Unido, mas também do Luxemburgo e dos Países Baixos, a qualquer tentativa de política europeia de tributação e de controlo dos movimentos de capitais.

Existe, pois, uma grande variedade de situações:

– A maior parte não tem uma autonomia política real e, de facto, é controlada pelas principais praças financeiras mundiais e pelos governos destas. Estes PFJ dependem dos negócios trazidos pelos bancos internacionais, pelos conselhos fiscais e pelos contabilistas estabelecidos nestas praças financeiras.

– Outros PFJ têm uma influência preponderante e são politicamente autónomos, mesmo estando inseridos no tecido da economia mundial.

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– Por último, praças que se especializam em certos mercados favorecendo a concentração de intermediários financeiros que poderão chegar a fazer e a desfazer as leis do seu PFJ de adopção:

– as Bermudas no seguro e no re-seguro,

– as Bahamas com os seus 4300 bancos são líder do e-comércio,

– as Ilhas Caimão que protegem 80% dos fundos de investimento do mundo gerem mais de 1000 mil milhões de dólares de activos,

– as Ilhas Virgens abrigam 50% das sociedades não residentes do mundo,

– os Barbados que desfiscalizam as exportações americanas,

– a Irlanda, especialista na desfiscalização dos direitos de propriedade intelectual,

– as ilhas anglo-normandas com os seus 225 bancos e os seus 820 fundos de investimento.

– a Suíça, primeiro país gestor de fortunas no mundo.

– a Libéria, país campeão dos pavilhões de conveniência.

– Tuvalu, líder do mercado do sexo em linha.

Assim, tentamos classificar os PFJ de acordo com o seu grau de nocividade

6.º Mas que faz a comunidade internacional? Esforços insuficientes e dispersos

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As veleidades internacionais em agir contra os paraísos fiscais procuraram combater certos prejuízos em particular (a fraude fiscal, a lavagem de dinheiro sujo ou a instabilidade financeira), mas nenhum acordo internacional visa os paraísos fiscais e judiciários no conjunto das suas actividades, nem põe sequer em questão a sua própria existência.

O Grupo de Acção Financeiro

Em 1989, o G-7 criou o Grupo de Acção Financeiro (GAFI), a fim de elaborar estratégias de luta contra a lavagem de capitais e assegurar a sua aplicação por toda a parte no mundo. Em 1990, o GAFI adoptou 40 recomendações sobre a prevenção e a repressão da lavagem de dinheiro. Anualmente faz um relatório sobre a aplicação destas recomendações pelos seus 33 Estados-Membros, mas não têm força jurídica vinculativa… O GAFI publica igualmente “uma lista negra” dos países e territórios não cooperativos. Esta lista tem sido esvaziada e de modo bem evidente, passando de 19 países em 2001 para zero desde que a Birmânia saiu em Outubro de 2006; poder-se-ia ser levado a crer que esta diligência se revelou particularmente eficaz. Realmente, para se sair da lista é suficiente adoptar os textos recomendados: o GAFI não tem outro meio que não seja “a pressão pelos pares” para impor a aplicação efectiva.

Site: http://www.fatf-gafi.org

A OCDE

É a OCDE que tenta controlar a evasão e a concorrência fiscais. Seguindo oo trabalho da Sociedade das Nações (SDN) relativamente à dupla tributação, iniciado nos anos 20, a OCDE elabora recomendações nos anos 70 destinadas a favorecer a troca de informações entre as administrações fiscais. Em meados dos anos 90, abandona esta abordagem normativa, que colide com o segredo bancário e a soberania dos Estados, para pôr em prática “um Fórum sobre as práticas fiscais prejudiciais”. Assim

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são estigmatizados os países e os territórios que praticam uma imposição fraca ou nula, autorizando a existência de sociedades-ecrã e recusando de maneira crónica a troca de informações. Nesta óptica, 35 “paraísos fiscais” são assim colocados no índex em Junho de 2000. Para sair da lista, devem levantar o segredo relativo aos beneficiários reais das sociedades, trusts… e praticar efectivamente a troca de informações. A dinâmica é travada consideravelmente em 2001 pela contra-ofensiva efectuada por um grupo de praças offshore que apontaram o dedo às próprias responsabilidades dos países da OCDE e sobretudo pela chegada ao poder dos Republicanos nos Estados Unidos, para quem os lobbies do petróleo e do armamento fazem valer os seus interesses pela evasão fiscal. O Fórum limita-se, depois, a promover normas não vinculativas de transparência e troca de informações em matéria fiscal. Em 2006, somente permanecem rotulados como “paraísos fiscais não cooperativos”, de acordo com estes critérios, Andorra, Libéria, Liechtenstein, as Ilhas Marshall e o Mónaco. Destes cinco, dois estão sob tutela da França…

Site: http://www.oecd.org

O Fórum de Estabilidade Financeira

Foi na sequência das crises financeiras russa e asiática que o G-8 decide em 1999 colocar em prática uma nova instituição encarregada de melhorar a cooperação no domínio da vigilância e da regulação dos mercados financeiros. Com sede em Basileia na Suíça, o Fórum de Estabilidade Financeira (FSF) reúne em conjunto as grandes instituições encarregadas da arquitectura financeira internacional e os ministérios das Finanças dos países ricos. A partir do seu primeiro relatório em Março de 2000, o trabalho do FSF incide sobre os Centros Financeiros Offshore (CFO), sobre o seu papel nas crises e sobre a sua conformidade com as normas de vigilância financeira. É em função destes critérios que o FSF publica por sua vez uma lista de 42 centros financeiros offshore, classificados em três categorias em função da sua conformidade aos padrões internacionais de vigilância e ao

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seu grau de cooperação. Posteriormente, o FSF abandonou esta estratégia de estigmatização para preferir a pressão pelos seus pares.

Site: http://www.fsforum.org

Entre as outras instituições internacionais, é necessário sublinhar o papel do Fundo Monetário Internacional, que elabora, também ele, uma lista de centros financeiros offshore (em 2000, contabilizava 62) e viu-se confiado pelo FSF de um papel de avaliação das normas e do sector financeiro. Nada de muito conclusivo, dado que este exercício, em parte fundado na auto-avaliação, revela uma conformidade total dos centros avaliados pelos padrões internacionais…

A ONU, quanto a ela, desempenha hoje apenas um papel marginal na luta contra os paraísos fiscais e judiciários: foi criado, na sequência da Conferência de Monterrey sobre o financiamento do desenvolvimento em 2002, “um Comité de peritos da cooperação internacional em matéria fiscal”. Teve a sua primeira sessão apenas em Dezembro de 2005, formulando uma série de recomendações para melhorar a cooperação fiscal destinada ao Conselho Económico e Social (ECOSOC) das Nações Unidas, uma instância que é ela própria dotada de fracos poderes. A ONU teria naturalmente vocação para desempenhar um papel preponderante sobre esta questão global, porque goza de uma legitimidade que não tem o clube de países ricos que constitui a OCDE. Infelizmente, são sobretudo os PFJ eles mesmos que procuram reforçar o papel das Nações Unidas em detrimento da OCDE, porque sabem que têm na ONU, onde as decisões se tomam por consenso, o poder de neutralizar medidas que os prejudicariam.

Em suma, a maior parte dos impulsos políticos contra os paraísos fiscais e judiciários é dada pelo G-8, isto no estrito limite dos seus interesses. Em contrapartida, os países em desenvolvimento não têm nenhuma instância onde possam exigir a reparação pelos danos que lhes causa a existência dos PFJ. Conhece-se o resultado: exceptuando alguns progressos

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limitados quanto à troca de informações entre administrações fiscais e judiciários dos países ricos, os principais centros offshore tiveram apenas que se colocar em conformidade com um conjunto de normas para comprarem a sua respeitabilidade; ninguém ou quase ninguém está lá nem para verificar nem para sancionar a sua aplicação efectiva.

Enfim, é talvez a crédito da União Europeia (UE), embora travada pelo Reino Unido e pelo Luxemburgo, demasiado laxista no controlo das sociedades de compensação (Clearstream, Euroclear), que se devem colocar os progressos mais convincentes:

– Desde Julho de 2005, a directiva “poupança” impõe aos governos da UE que forneçam aos outros informações sobre as colocações dos particulares não residentes. Os PFJ que gravitam em redor da UE (Mónaco, Jersey, Suíça, etc.) aceitaram igualmente as regras da directiva. Contudo, como o Luxemburgo, a Bélgica e a Áustria, “compraram” o direito de manter o segredo bancário, ao preço de uma retenção na fonte sobre os juros da poupança significativa (35% a partir de 2011). Esta directiva deixa também numerosas escapatórias, não incidindo sobre as pessoas morais nem sobre os trusts, que podem disfarçar a poupança de particulares.

– Aliás, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias estabeleceu, na base do processo Halifax (Abril de 2005) e depois do Cadbury Schweppes (Maio de 2006), a proibição de realizar uma transacção ou implantar uma sociedade num território com o único objectivo de obter uma vantagem fiscal…

– Por último, a UE promoveu mais a harmonização fiscal entre os seus membros. A ideia progride com dificuldade, nomeadamente no que se refere à imposição fiscal sobre as sociedades, mas a Comissão não hesita em invocar o código de boa conduta europeia instaurado em

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matéria fiscal para fazer evoluir as práticas, nomeadamente contra as discriminações fiscais praticadas num mesmo país entre residentes e não residentes.

7.º Acabar com o escândalo, é possível

O falhanço dos esforços internacionais poderia inquietar quanto à capacidade dos grandes Estados em pôr fim aos disfuncionamentos ligados aos paraísos fiscais e judiciários. Certos autores resignam-se, de resto, a uma visão fatalista das coisas, considerando o fenómeno imparável. Trata-se contudo de um erro de diagnóstico: os países ricos têm o poder, se quiserem, de pôr fim ao escândalo. Estes não ignoram que 80% da finança mundial passa apenas por cerca de trinta bancos, perfeitamente identificados; sabem perfeitamente que a utilização das brechas regulamentares, fiscais ou judiciárias dos centros offshore se faz desde as grandes praças financeiras – será uma coincidência que metade dos PFJ tenha a mesma bandeira que a segunda praça financeiro mundial, Londres?

Não é por conseguinte da sua capacidade, mas sim da sua vontade política que teremos que duvidar. O governo inglês defenderá o interesse geral contra o da City? A Casa Branca quer realmente alienar-se de Wall Street e das majors do petróleo? A França está pronta para colocar na ordem Andorra e o Mónaco? Todas as dúvidas são permitidas.

Promover medidas directas contra os PFJ poderia parecer mais realista mas é na prática muito mais difícil de pôr em prática porque, viu-se, não deixam de se criar novos paraísos fiscais e judiciários. Para se ser mais eficaz, um conjunto de medidas poderia ser tomado a nível internacional pelos grandes Estados e, inicialmente, pela Comissão e pelo Conselho Europeu, em torno de três eixos:

Desencorajar a utilização dos PFJ

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Uma série de medidas são possíveis para incitar ou obrigar os actores económicos a deixarem de utilizar os PFJ, em especial os menos cooperativos (os que recusam ou aplicam de maneira meramente virtual a cooperação judicial e fiscal internacional).

– Proibir a certificação de contas consolidadas10 das sociedades que não tenham sido sujeitas a um controle contabilístico no conjunto dos territórios onde elas exercem as suas actividades. Deve obrigar-se as sociedades cotadas a declararem, nas suas contas consolidadas, as operações tratados com os PFJ e a sua justificação.

– Reforçar a directiva europeia sobre a poupança (que taxa os rendimentos da poupança dos não residentes) a fim de que se incida não somente nas pessoas físicas mas também em todas as entidades capazes de deter um património e de alargar a sua aplicação para além das fronteiras europeias através de acordo com países terceiros.

– Criar uma nova taxa para as operações financeiras incidindo sobre os territórios que não estejam dispostos a pôr em prática uma verdadeira cooperação fiscal e judicial.

– Para as empresas que têm relações com os territórios não cooperativos, uma bateria de medidas poderia ser aplicada, gradualmente, em função da nocividade dos territórios offshore em questão:

– Proibir o acesso aos mercados públicos.

10 Para uma sociedade, se está cotada na bolsa a certificação é um exercício extremamente importante: esta garante aos accionistas e a terceiros que um profissional qualificado, o revisor de contas, tem a convicção que as contas estão em ordem e são sinceras e que dão uma imagem fiel dos resultados, da situação financeira e do património da entidade empresarial. Diz-se que as contas anuais estão consolidadas quando incluem o conjunto das actividades do grupo e nestas estão incluídas as das suas filiais.

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– Proibir o acesso aos créditos públicos à exportação (por exemplo, em França, pela COFACE).

– Proibir o acesso à poupança pública (cotação em bolsa).

– Proibir, por via de uma directiva comunitária, a qualquer banco europeu que aí se instale, se mantenha ou conserve relações financeiras.

– Assegurar a repressão efectiva dos intermediários que contribuem, com conhecimento de causa, para a realização de operações com objectivos fraudulentos através de montagens jurídicas nos PFJ.

Garantir a transparência

Somente a imposição de normas de transparência e a eliminação dos mecanismos que interferem com a transparência permitirão garantir a rastreabilidade dos movimentos de fundos e dos patrimónios pelas autoridades competentes:

– Criar normas internacionais de transparência para o registo dos trusts, fidúcias, anstalt e outros mecanismos similares. Poder-se-ia obrigar o conjunto destas entidades jurídicas, dado que são capazes de possuir bens, às mesmas formalidades de transparência e de publicidade que as sociedades, o que permitiria às autoridades fiscais e judiciários conhecerem a sua existência e colocar questões bem precisas aos que as constituíram.

– Pôr em prática um tratado internacional que imponha o levantamento do segredo bancário a pedido de autoridades competentes. Daqui até lá, a França e a UE devem fazer pressão, ou mesmo sancionar os Estados que fazem prevalecer o anonimato do segredo bancário sobre a informação da identidade dos dadores de ordens e dos seus beneficiários aos magistrados, às polícias judiciárias, às alfândegas e às administrações fiscais.

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– Reforçar o controlo do sistema dos pagamentos internacionais Swift e das sociedades de compensação (Clearstream et Euroclear) e generalizar ao nível europeu um ficheiro das contas bancárias como existe em França.

“Mundializar” a justiça

À mundialização dos capitais, que já não conhecem fronteiras, deve corresponder a possibilidade para as autoridades judiciais de concluírem as suas investigações ao nível internacional, o que pressupõe ao nível europeu:

– Generalizar o reconhecimento do carácter delituoso de certas infracções, em especial a fraude e a evasão fiscal, no conjunto da UE e na Suíça, ou mesmo ao nível internacional.

– Reforçar de maneira decisiva a cooperação judicial e fiscal entre Estados, incluindo no próprio seio da UE. A criação de um ministério público europeu dotado de um pólo financeiro poderia constituir uma resposta audaciosa a este desafio. Estas medidas deveriam acompanhar-se de outras medidas no plano mundial, por parte dos países ricos, tais como, por um lado, programas de ajuda adaptados à reconversão económica dos centros offshore que se encontrariam em dificuldade e, por outro, o reforço das capacidades das administrações fiscais nacionais dos países em desenvolvimento.

8.º E eu, que posso eu fazer?

Acabar com o escândalo dos paraísos fiscais é um programa bem bonito, mas como simples cidadão, o que se pode fazer face a territórios que vêem transitar cerca de metade da finança mundial?

Individualmente, não se pode evidentemente fazer grande coisa face a este fenómeno. Felizmente, não estamos sós. Mas não somos ainda

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suficientemente numerosos para termos um verdadeiro impacte. É por isso que a prioridade passa por suscitar uma tomada de consciência e amplificar a mobilização. E aí, há um papel decisivo a desempenhar.

Não estamos sozinhos

A mobilização contra os paraísos fiscais e judiciários está ao mesmo nível que o movimento ecologista nos anos 70: a tomada de consciência progride, mas o mais importante está para fazer.

Em França, a mobilização contra os paraísos fiscais e judiciários nasceu no fim dos anos 90, sob o impulso de movimentos como a ATTAC. Começa hoje a estruturar-se com o nascimento, em 2006, da plataforma contra os paraísos fiscais e judiciários, que agrupa associações e sindicatos diversos.

Ao nível internacional, a Tax Justice Network (rede para a justiça fiscal) surgiu por ocasião do Fórum Social Mundial de Porto Alegre em 2002. Conta já com organizações locais em numerosos países, nomeadamente no Reino Unido, na Alemanha, na Suíça e nos Estados Unidos. Dispõe já de um eco mediático e político importante, tendo mesmo sido convidada a pronunciar-se nas Nações Unidas. O Fórum Social Mundial de Nairobi em Janeiro de 2007 permitiu lançar uma antena em África.

Informar-se, formar-se

As questões financeiras, judiciais e fiscais frequentemente são entendidas como complicadas: é preferível deixar trabalhar os especialistas. Julgadas não prioritárias para os eleitores, aparecem apenas raramente no debate político. É precisamente aí que está o erro: estas questões aparentemente complexas, escondem escolhas simples e decisivas para a sociedade e para o mundo. De modo que estas escolhas sejam democráticas, é a cada cidadão que pertence

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procurar delimitar os desafios, formando-se, informando-se junto de meios de comunicação social independentes.

Para ajudar a compreender a problemática dos paraísos fiscais e judiciários aqui se apresentam algumas obras chave:

– Christian Chavagneux, Les Paradis fiscaux, Coll. Repères, La Découverte, 2006

– Thierry Godefroy e Pierre Lascounes, Le Capitalisme clandestin: L’illusoire régulation des places offshore, Ed. La Découverte, 2004, 264 p.

– Tax Justice Network, Taxez-nous si vous pouvez!, 2005 (descarregável no seu site)

– ATTAC, Les paradis fiscaux ou la finance sans lois, Ed. Mille et une nuits, 2000

– Jean de Maillard, Un Monde sans loi, la criminalité financière en images, Ed. Stock, 1998

– O website da Tax Justice Network (em inglês e francês): www.taxjustice.net.

Poucas pessoas têm consciência da amplitude do problema. Pode falar sobre o assunto no nosso meio social, profissional, associativo, na nossa comunidade religiosa, nas nossas escolas ou na nossa Universidade. Não hesite em organizar conferências e debates sobre o assunto e em convidar os meios de comunicação social. Pode também interrogar o seu banco ou a empresa de que se é assalariado, cliente ou accionista, sobre as suas relações com os paraísos fiscais e judiciários, sobretudo se for posta em causa num negócio: esta simples diligência não será suficiente sem dúvida para fazer evoluir os

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comportamentos, mas contribuirá para aumentar a sua vigilância, porque as empresas e os bancos estão extremamente preocupados com a sua reputação.

Apoiar as associações e os sindicatos empenhados na luta contra os PFJ

Pode dar-se um donativo às organizações empenhadas na luta contra os paraísos fiscais e judiciários e/ou aderir a uma delas para pôr as vossas competências e as vossas convicções ao serviço deste combate.

Interpelar as instâncias de decisão

Pode interpelar-se os nossos eleitos, nomeadamente os deputados, os senadores e os deputados europeus, quanto às políticas que efectuam contra os paraísos fiscais e judiciários. Os períodos de campanha eleitoral são uma boa ocasião de solicitar compromissos fortes e concretos dos candidatos, nomeadamente à volta das propostas formuladas pela plataforma PFJ. Após as eleições, é sempre tempo de pedir aos eleitos que mantenham os seus compromissos. Para um resumo da mobilização sobre o assunto e os compromissos dos principais partidos por ocasião das eleições presidenciais e legislativas de 2007, em França, ver a campanha “Estado urgentemente planetário, votemos por uma França solidária”:

Site: http://www.etatdurgenceplanetaire.fr

Anexo ASobre as técnicas de lavagem ou branqueamento do dinheiro sujo

A lavagem do dinheiro sujo é a acção que consiste em esconder ou disfarçar a verdadeira natureza de rendimentos obtidos ilegalmente a fim de os fazer aparecer como que provindo de fontes legítimas. A motivação dos que se empenham em tais acções está muito simplesmente no facto de que estes ladrões tentam sempre, mais cedo ou mais tarde, gozar, à vista de todos, dos fundos ou dos bens ilegalmente adquiridos. Para o conseguirem é

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necessário proceder a uma sucessão de operações, que são ainda tanto mais numerosas e rodeadas de opacidade quanto mais os fundos criminosos a branquear são importantes.

O branqueamento de capitais está ligado, a montante, a uma actividade ilícita, e este branqueamento visa ao mesmo tempo poder “consumir” estes capitais (para o conforto da vida pessoal e diária e para investir na economia visível e beneficiar seguidamente de rendimentos regulares e “mostráveis”) e também permitir a continuação ao longo do tempo da actividade ilícita ela mesma. É, por conseguinte, pelo seu branqueamento que todos os capitais adquiridos de maneira criminosa e ilegal podem finalmente ser utilizados “à luz do dia”; pode assim dizer-se que o branqueamento torna “mais rentáveis” as operações criminosas que disponibilizam fundos importantes.

No início de uma operação de branqueamento, há fundos ilícitos cujas origens podem ser múltiplas: jogo proibido, extorsões, tráfegos de narcótico, proxenetismo, assaltos à mão armada, fraudes, corrupção, abusos de bens sociais, etc.

Desde a publicação do primeiro relatório do GAFI, em 1990, é tradicional dividir as operações de branqueamento em três fases distintas que embora não tenham nenhum valor jurídico facilitam a compreensão do fenómeno: a colocação, a acumulação, a integração.

A colocação. Os rendimentos ganhos com as actividades criminosas geralmente são constituídos por dinheiro líquido (os traficantes, os proxenetas, os corrompidos, etc., não aceitam cheques ou cartões de crédito!). A colocação tem por objectivo escoar estes importantes valores líquidos, o que é um primeiro e sério problema: os funcionários dos bancos não guardam tão facilmente malas cheias de notas de banco! Uma dos métodos mais frequentes consiste em integrar estas notas em actividades que, naturalmente, envolvem muita liquidez como os restaurantes, os cinemas,

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as lavandarias, as actividades turísticas, etc. O dinheiro sujo é diariamente misturado, de maneira “cautelosa”, com as receitas comerciais destas empresas e enviado também regularmente para o banco. Estas somas além disso serão declaradas como receitas ao fisco, e a empresa será levada a pagar impostos sobre estes lucros ilegais, que é a melhor maneira “de os branquear”).

A acumulação consiste em multiplicar as operações financeiras para esconder a origem criminosa dos fundos e a identidade do seu proprietário real: compra e revenda fictícia de bens, transferências electrónicas de fundos, falsas facturas, etc. Para estas operações recorre-se quase sempre aos paraísos fiscais e judiciários, dado o seu segredo bancário e dada a vasta panóplia de instrumentos jurídicos que permitem a opacidade oferecida (sociedades-ecrã, trusts, etc.).

A integração é a fase final do branqueamento: os fundos “retornam” sob a forma de dinheiro “limpo” (é a acumulação que permite baralhar as pistas) para ser gasto ou investido na economia formal. Estas despesas respondem a três lógicas, que podem variar de acordo com a natureza da actividade criminosa de partida:

– a aquisição de bens para uso pessoal e para melhorar o seu nível de vida.

– a compra de novos meios para facilitar ulteriormente o desenvolvimento das actividades criminosas, nomeadamente a compra de instrumentos que servem para o branqueamento: compra de actividades comerciais lícitas cujas receitas são principalmente de dinheiro líquido. A presença de organizações criminosas, por exemplo, nas cadeias de restaurantes ou nas boites nocturnas não é fortuita, mas permite-lhes servir de cobertura aos rendimentos das actividades criminosas.

– o investimento “de pai de família” para procurar rendimentos perfeitamente lícitos e estáveis, o que permitirá branquear não só os fundos mal adquiridos mas também o próprio criminoso.

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Os exemplos de integração de dinheiro, sujo à partida, são muito numerosos e dependem da imaginação dos criminosos e dos seus conselheiros. Em cada operação de branqueamento trata-se de fazer regressar o dinheiro ao seu país para o poder utilizar “à luz do dia”: uma sociedade francesa desencadeia um processo contra uma sociedade (realmente fictícia e domiciliada num paraíso fiscal) e ganha oportunamente este processo, o que lhe permitirá receber “em toda a legalidade” dinheiro (cuja origem é outra); um criador de cavalos em França declara ter vendido um cavalo no estrangeiro e apresenta por outro lado um volumoso cheque enviado por um banco suíço (com efeito é um meio para fazer entrar em França fundos à partida criminosos); uma empresa francesa declara alugar patentes das quais é proprietária a outras sociedades estabelecidas em paraísos fiscais e vai receber em contrapartida somas de dinheiro que são com efeito fundos ganhos por tráficos.

Anexo BSobre a classificação dos paraísos fiscais e judiciários segundo o grau

de nocividade

Para classificar os paraísos fiscais e judiciários segundo o grau de nocividade, escolheu-se uma análise multicritério que permite ter em conta a diversidade de situações. Os seis critérios escolhidos foram os seguintes: segredo bancário, pouco ou nenhuma imposição fiscal, grande facilidade na instalação de sociedades, prática bastante desenvolvida de trusts/fundações, etc., cooperação judicial limitada e fraco risco de instabilidade económica e política… O resultado global por país é a média ponderada das notas obtidas em cada um dos critérios.

A nota atribuída a cada critério resulta de uma apreciação subjectiva da legislação do país considerado e em comparação com os outros. A ponderação é feita de maneira a reflectir a apreciação que poderá fazer um utilizador-tipo. No entanto, o peso respectivo atribuído a cada critério pode variar em função dos objectivos do “utilizador” do paraíso fiscal.

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A ordenação dos paraísos fiscais e judiciários, por continente e por grau de nocividade (o primeiro é o pior) resultante é então:

– Europa: Gibraltar, Chipre, Jersey, Guernsey, Liechtenstein– África: Libéria, Seychelles, Ilhas Maurícias – Américas e Caraíbas: Ilhas Caimão, Bahamas, Panamá– Médio Oriente e Ásia: Hong Kong, Beirute– Oceano Índico e Pacífico: Ilhas Cook

Os paraísos fiscais

Os paraísos fiscais representados são fundamentalmente obtidos a partir das três seguintes listas negras de países ou territórios:1. da OCDE ( 47 países identificados em 1999 e finalmente 35 publicados em 2000);2. do Fórum de Estabilidade Financeira ( 42 classificados em 3 grupos segundo a hierarquia dos riscos)3. do GAFI ( 29 identificados e finalmente 15 publicados).

Estas três listas foram publicadas em 2000 e depois actualizadas no sentido da sua redução até serem esvaziadas de conteúdo em 2005-2006.

Fontes: Christian Chavagneux e Ronen Palan, Les produits fiscaux, Paris, La Découverte, 2006 e Plateforme paradis fiscaux et judiciaires.

Estado ou lugar financeiro

Território dependente de um Estado

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Globalmente, constata-se assim que os pequenos países menos preocupados com a sua imagem são os mais nocivos qualquer que seja o critério de análise. Os grandes países sensíveis à sua “respeitabilidade” são menos nocivos se bem que segundo alguns critérios sejam particularmente nocivos como, por exemplo, o segredo bancário para a Suíça.

Anexo CSobre os trusts ou fidúcias

Definição

Os trusts (ou fidúcias) são mecanismos de direito anglo-saxónico que favorecem a opacidade. Com efeito, uma pessoa ou uma sociedade (que é o fiduciante) transfere irrevogavelmente a propriedade de activos para uma outra pessoa (a fiduciária ou o trustee) que os gere a favor do beneficiário. Nesta montagem jurídica e nesta primeira fase, não há nada condenável se for possível conhecer a identidade dos três receptores: o fiduciante, a fiduciária e o beneficiário. Para o fiduciante, a principal vantagem do trust é que este é irrevogável, contrariamente ao mandato de direito francês.

Vantagens e práticas ilícitas

Na maior parte dos PFJ, o anonimato dos doadores e dos beneficiários é garantidamente assegurado. Esta situação permite todas as derrapagens possíveis. Por exemplo, quando o beneficiário não é outro que o fiduciante ele próprio! O beneficiário protege então os seus activos ainda com tanto mais eficácia quanto as fidúcias não são entidades de personalidade moral. Não podem ser processadas quaisquer que sejam os actos cometidos em seu nome. As fiduciárias aparecem como sendo proprietários legais e substituem-se aos beneficiários económicos.

A criação de novos conceitos jurídicos permite tornar ainda mais

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perfeita a protecção da identidade do beneficiário: o trust com uma cláusula dita “de migração” que permite a mudança automática de direito aplicável no caso de ameaças judiciárias, “o trust alternativo” onde o trustee é vinculado por um colégio de sub trustees que é suposto tomar as decisões estratégicas em seu lugar. Por último, existe “o trust com protecção”, em que o fiduciante cria a montante uma sociedade offshore que o representa aquando da criação da fidúcia e impede que se chegue até ao fiduciante. A imaginação dos conselhos jurídicos e dos gabinetes internacionais de advogados financeiros não tem limites, e os seus poderes de persuasão em relação aos legisladores dos paraísos fiscais e judiciários são manifestamente muito eficazes.

Apresentação dos membros da plataforma paraísos fiscais e judiciários

ATTAC France: a associação Attac (Association pour une Taxation des Transactions Financières et pour l’Aide aux Citoyens) quer considerar-se uma associação de educação popular virada para a acção. Agrupa, desde a sua criação em 1998, indivíduos e estruturas que desejam reflectir e agir contra a dominação da finança, ao nível francês, europeu e mundial.

Site: http://www.france.attac.org

CADTM (Comité pour l’Annulation de la Dette du Tiers-Monde): presente em França desde 2001, este Comité é uma rede internacional de sensibilização e de mobilização presente em 22 países. Defende a anulação total e incondicional da dívida externa pública do Terceiro Mundo e o abandono das políticas de ajustamento estrutural, e defende também a expropriação dos bens mal adquiridos, uma justa redistribuição das riquezas à escala planetária e uma nova arquitectura financeira internacional. O CADTM aprofunda igualmente as investigações feitas sobre tipos de desenvolvimento que respeitem o humano e o ambiente, o oposto da lógica neoliberal actual.

Site: http://www.cadtm.org

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CCFD (Comité catholique contre la faim et pour le Développement): o Comité é a primeira ONG de desenvolvimento em França. Composto por 28 movimentos e serviços de Igreja, o CCFD apoia as iniciativas de actores de mudança em 70 países do Sul e de Leste. Efectua também, com uma rede de 15 000 voluntários, um trabalho de sensibilização e educação da opinião sobre as realidades internacionais e a necessidade de solidariedade. Por último, o CCFD interpela regularmente os poderes públicos sobre relações Norte-Sul mais equitativas, nomeadamente sobre a dívida e o comércio agrícola.

Site: http://www.ccfd.asso.fr

CRID (Centre de Recherche et d’Information sur le Développement): o Centro é um colectivo de associações que reúne hoje 54 associações de Solidariedade Internacional. Efectua uma reflexão e acções nos domínios do desenvolvimento, das parcerias, da educação para o desenvolvimento e solidariedade internacional e participa na construção de um movimento de solidariedade internacional. O CRID é sobretudo um espaço e um lugar de concertação e de reflexão para os seus membros através da criação de grupos de trabalho de reflexão e/ou de elaboração de posições sobre os grandes desafios globais relativos ao desenvolvimento.

Site: http://www.crid.asso.fr

Droit pour la Justice: para que “o nunca mais isto seja possível” (como o recordou Simone Veil, em Auschwitz) não seja apenas um desejo, mas uma verdadeira vontade, para que o “Viver em conjunto” europeu seja fundado no Respeito, por conseguinte “num estado de direito” autêntico servido por um espírito, uma vontade e uma ética de Justiça, universitários, estudantes e personalidades diversas criaram actualmente em Estrasburgo uma associação “Droit pour la Justice” que se pretende ao mesmo tempo ser um centro de reflexões e de acções.

Site: http://ledroitpourlajustice.blogspirit.com

Eau Vive: é uma associação de solidariedade internacional criada em

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1978. Intervém em vários países de África, junto das populações fortemente carenciadas que se batem no dia-a-dia contra a pobreza e desejam trabalhar para a ultrapassar. A Norte assim como a Sul, a Eau Vive participa no reforço da sociedade civil, com acções de sensibilização, de formação e de troca de ideias. Colabora igualmente em trabalhos de investigação sobre métodos e estratégias de desenvolvimento económico e social.

Site: http://www.eau-vive.org

FEP (La Fédération de l’Entraide Protestante): reúne 360 associações e fundações, representando cerca de 800 estabelecimentos do sector social e sanitário em França. Considerando que “a pobreza não é uma fatalidade” (extracto do seu programa), o FEP tem missões para mutualizar as experiências dos seus membros e desenvolver análises dirigidas aos poderes públicos, através de encontros regionais temáticos e vigílias sobre seis sectores: sanitário, protecção à infância, pessoas idosas, deficientes, pedidos de asilo e exclusões.

Site: http://www.fep.asso.fr

Oxfam France-Agir ici: é uma associação de solidariedade internacional criada em 1988 para lutar contra as injustiças mundiais efectuando campanhas de mobilização de cidadania e de análises junto dos decisores. Oxfam France - Agir ici é o membro francês da Oxfam Internacional.

Site: http://www.oxfamfrance.org

Réseau Foi et Justice Afrique-Europe: é uma rede de institutos religiosos missionários católicos, fundada na fé. É composto de um escritório situado em Bruxelas para a coordenação, a animação e o lobbying na Europa e em diversos países africanos. O seu objecto é a justiça, sobretudo económica, nas relações entre a Europa e a África. A sua acção exerce-se pela sensibilização dos seus membros e da opinião pública a propósito das injustiças e defendendo políticas que tenham África em conta.

Site: http://Réseau Foi et Justice Afrique-Europe

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Secours Catholique-Caritas France: “esta instituição é membro da Caritas Internationalis, uma federação presente em 162 países, lutando contra todas as formas de pobreza e de exclusão e procurando promover a justiça social. A Associação conta hoje com 106 delegações, 4 200 equipas locais e 67 000 voluntários. Em França como em termos internacionais, o Secours Catholique - Caritas desenvolve numerosas acções em prol de públicos vulneráveis e participa pela sua acção junto dos poderes públicos na evolução dos regulamentos e das políticas praticadas.”

Site: http://www.secours-catholique.asso.fr

Transparence-International France: é a secção francesa da Transparency Internacional (TI), principal organização da sociedade civil que se consagra à luta contra a corrupção. Esta compreende quase 100 secções nacionais pelo mundo, tem o seu secretariado internacional baseado em Berlim, na Alemanha. Sensibiliza a opinião pública contra os efeitos nefastos da corrupção e trabalha em concerto com os governos, com o sector privado e com a sociedade civil a fim de desenvolver e pôr em marcha medidas destinadas a parar a corrupção.”

Site: http://www.transparence-france.org

SHERPA (Contre l’impunité des firmes multinationales): a associação SHERPA tem por objecto essencial mobilizar competências e know how a fim de que possam ser lançados, após ter efectuado diagnósticos pertinentes, procedimentos (civis ou penais) contra empresas responsáveis por infracções nos países do Sul (quer se trate das sociedades-mãe ou das suas sucursais locais) e assim que possível manter legitimamente a competência do órgão jurisdicional do local em que está situada a sede ou o principal estabelecimento da empresa.

Site: http://association.sherpa.free.fr

Survie: é uma associação cívica que fixou como objectivo o acesso de todos aos bens fundamentais que correspondem à declaração universal

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dos direitos do Homem, o saneamento das relações franco-africanas e a luta contra a banalização do genocídio. A luta contra os paraísos fiscais e judiciários, instrumentos da impunidade e dos desvios de fundos públicos, está no meio dos seus combates desde há numerosos anos.

Site: http://www.survie-france.org

Plate-forme Paradis Fiscaux et Judiciaires (Attac France-CADTM France-CCFD-CRID;

Droit pour la justice-Eau Vive-Fédération de l’Entraide Protestante,

Oxfam France Agir ici-Réseau Foi et Justice Afrique Europe, Secours catholique Caritas France-Sherpa,

Survie-Transparence International France), Paradis fiscaux et judiciaires : cessons le scandale !,

Abril de 2007, disponível em http://survie.org/Paradis-fiscaux-et-judiciaires.html.

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2. NO MUNDO DOS TRUSTS, DOS TRUSTEES

2.1. OS TRUSTS DE DELAWERE, VEÍCULOS PREFERIDOS PARA ESCAPAR

AO IMPOSTO SOBRE O RENDIMENTO

A campanha iniciada pelos países ocidentais e, nomeadamente, pelos Estados Unidos, contra a evasão fiscal nestes centros offshore parece estar a dar uma mãozinha providencial à indústria local, que vê crescer anualmente a parte da sua clientela estrangeira.

Se se está a sonhar em capital mundial das sociedades, o Estado de Delaware também não se poupa a esforços para atrair a fortuna das pessoas ricas, americanos ou estrangeiros. Sob vários aspectos, este Estado merece a reputação "de paraíso dos trusts". Dotou-se de quadros jurídicos e fiscais quase sem equivalente nos Estados Unidos e desenvolveu uma competência incontestável nesta matéria.

E não sem uma razão: a actividade dos trusts é um negócio antigo "no Diamond State". Se a verdadeira arrancada no sector data apenas de há uns vinte anos, pode precisamente situar-se a sua origem em 1903, época em que foi criado Wilmington Trust para administrar a fortuna dos industriais da química DuPont, a família mais rica do Estado. Um século depois, a sede da Wilmington Trust, o edifício mais elegante de Wilmington, continua sempre a dominar a Rodney Square, no meio do bairro dos negócios. A sociedade, que conta no total com cerca de 2 400 empregados, permanece a mais importante do Estado no seu sector. Um dos seus directores executivos, Richard Nenno, conhecido na região como "o guru" dos trusts, actualiza e publica anualmente

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uma brochura (mesmo assim, 229 páginas na sua última edição) em que descreve de modo organizado todas as vantagens dos trusts locais.

Estes últimos classificam-se de acordo com cinco grandes eixos:

Os trusts perpétuos. Em 1995, o Estado do Delaware distinguiu-se revogando integralmente a lei contra "a perpetuidade" ("rule against perpetuities") que limita no tempo a validade das disposições previstas por um trust. Desde esta data, que se podem estabelecer pois trusts perpétuos ou "dinásticos", que podem existir indefinidamente e virtualmente permitir a transmissão da fortuna de uma geração para outra sem que seja minorada por direitos de mutação (imposto federal), sob certas condições limite.

Nada de imposto sobre o rendimento. Enquanto são poucos os Estados que autorizam “os dynasty trusts”, o Delaware concede uma segunda vantagem de grande importância: a acumulação de rendimentos de aplicação e os lucros em capitais de um trust estabelecido a favor de um não residente do Estado (esteja instalado num outro Estado americano, ou originário do estrangeiro) não são tributáveis. A título de exemplo, com um rendimento anual de 7% e na ausência de distribuição dos rendimentos, um trust perpétuo dotado de 1,1 milhão de dólares no ano um, veria a sua fortuna atingir 32,4 milhões cinquenta anos depois, 954,5 milhões ao fim de um século, calcula Naticity Trust, um pequeno escritório instalado há cinco anos em Wilmington pelo banco National City. “Permitindo escapar ao imposto sobre o rendimento americano, o Delaware pode ser considerado como um paraíso fiscal", afirma Donald Sparks, advogado em Richards Layton & Finger. "Qualquer que seja a sua dimensão, um trust instalado por um não residente é totalmente isento de impostos nos Estados Unidos”, precisa este especialista em trusts. E cabe ao trustee tomar ele mesmo a iniciativa de se recordar das boas lembranças das autoridades fiscais do seu país de residência.

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Flexibilidade. Terceira vantagem, o Delaware autoriza a divisão das responsabilidades. O detentor do trust pode com toda a liberdade designar um terceiro que será responsável pelas decisões de investimento (todos os tipos de activos e de veículos de investimento são possíveis), o seu conselheiro financeiro habitual por exemplo, e será inteiramente independente do administrador do trust.

Protecção contra os credores. Vantagem número quatro advém do facto de se poder estabelecer no Delaware trusts cuja fortuna fica protegida dos credores. “A cultura do procedimento é tal nos Estados Unidos que as pessoas devem poder proteger-se de qualquer tipo de credor”, explica Kalimah White, de Naticity Trust, filial do banco National City. Incluído o seu (sua) cônjuge no caso de divórcio: “the asset protection trusts” (APT) são consequentemente instrumentos vivamente recomendados pelos conselheiros financeiros antes de se envolver num bom casamento. “Certamente, afirma o especialista, não é uma questão de se estar a subtrair aos seus credores correntes elaborando um trust fraudulento (“fraudulent convenience”). Tenho tendência a recomendar aos meus clientes que o façam o mais depressa possível para proteger o melhor possível os seus activos”. Para este especialista, é economicamente relevante pensar em estabelecer o seu trust logo que tiver a capacidade de nele colocar um milhão de dólares.

Confidencialidade. Por último, se fosse necessário citar ainda uma quinta vantagem (os profissionais locais convencê-los-ão que a lista é ainda longa), esta residiria na confidencialidade: “Um acordo de trust no Delaware não é arquivado em nenhuma parte, contrariamente aos testamentos”, sublinha Donald Sparks.

Estas circunstâncias explicam que a indústria do trust seja um sector em plena expansão no Delaware. “As gerações do baby-boom, que se aproximam da reforma, acumularam muitas riquezas”, sublinha Dick Nenno. Certas fórmulas de trusts são de resto um instrumento preferido

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para a planificação das reformas. Como consequência deste entusiasmo, todos os grandes bancos abriram lojas especializadas em Wilmington nestes últimos anos. Assim, a UBS montou um escritório de quatro pessoas em Janeiro de 2007, sob a responsabilidade de Michael Roberts. “Prevemos novos recrutamentos, mas a concorrência em matéria de talentos é intensa”, indica o especialista. “Outros Estados, como Nevada e Alasca, oferecem vantagens comparáveis ao Delaware. Mas a experiência que aqui se adquiriu, o seu sistema judicial e a avaliação dos seus juízes em matéria de direito dos trusts asseguram-lhe uma inegável superioridade”, prossegue. Com estas vantagens, os promotores de trusts locais jogam bem na concorrência com “os paraísos offshore”. “É bem mais dispendioso montar um trust no estrangeiro e a clientela está menos à vontade quando se trata de colocar o seu dinheiro, sobretudo nos Estados Unidos”, considera Kalimah White. A partir de agora muitos países da América Latina endossaram uma postura “agressiva” no que diz respeito aos paraísos offshore. Começaram a inscrevê-los na lista negra. Os seus cidadãos ricos passaram a colocar as suas fortunas no Delaware”, afirma Michael Roberts.

Quanto a ser considerado suspeito de acolher ele mesmo o dinheiro de indivíduos de pedigree duvidoso, o Estado de Delaware defende-se: “A lei americana de luta contra o branqueamento e o financiamento do terrorismo impõe-nos, como a qualquer instituição financeira, que verifiquemos os antecedentes dos nossos clientes. Estamos sujeitos a multas se não o fizermos”, sublinhamos Dick Nenno. “A questão da confidencialidade é um factor sensível, mas os indivíduos mal intencionados não são assim tão numerosos. Embora estejamos numa situação de concorrência, não assumimos excessos de zelo para promover os nossos negócios em detrimento da honestidade”, precisa um profissional concorrente.

Angélique Mounier-Kuhn, “Les trusts du Delaware,

véhicules prisés pour échapper à l’impôt sur le revenu”, Le Temps, 19 de Setembro de 2007,

disponível em https://www2.letemps.ch/horsseries/dossiersarticle.asp?ID=215017.

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2.2. O TRUST DISCRICIONÁRIO E IRREVOGÁVEL ANGLO-SAXÓNICO

PERMANECE INULTRAPASSÁVEL

A melhor abordagem, para os órgãos jurisdicionais de direito civil, é reconhecer os trusts estrangeiros.

Estes 50 últimos anos viram a emergência da indústria do trust offshore, a planificação (“tax avoidance”) e a evasão fiscal tornarem-se as primeiras motivações de suporte para a criação de tais veículos.

A indústria aproveitou bem o crescimento das fortunas líquidas de famílias ricas mas também o aumento, até mais de 50%, da taxa efectiva de imposição sobre o rendimento e sobre a fortuna no caso de sucessões em muitos países ricos. Os trusts, que não têm personalidade legal, aparecem neste contexto como instrumentos muito flexíveis e ideais para as estruturas de planificação fiscal. Isto não quer dizer contudo que os Anstalten (estabelecimentos), Stiftungen (fundações), “usufrutos” e outros veículos não têm o seu lugar nas estratégias de planificação fiscal eficientes das famílias: permanecem atractivos quando estes se utilizam nas circunstâncias adequadas. A superioridade do trust em termos de flexibilidade explica que numerosos órgãos jurisdicionais desenvolveram serviços de trustees.

Numerosos entre estas jurisdições são os territórios (antigas colónias) britânicos, que têm como a sua principal fonte de rendimento a oferta de serviços de sociedades e de trusts. É por isso que o trust (discricionário, tipicamente) tem suplantado gradualmente os instrumentos tradicionais de jurisdições de direito civil, em especial quando se trata de planificação ou mesmo de evasão fiscal.

Mesmo as sociedades, que se provam serem pragmáticas em deter activos, não podem rivalizar com os trusts em matéria de possibilidades no

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âmbito da planificação de sucessões a longo prazo. Os trusts continuam a ser utilizados abundantemente para a planificação de sucessões e para a planificação fiscal no Reino Unido e nos Estados Unidos, duas jurisdições onde o uso interno dos trusts é muito vasto.

Famílias de fortunas médias utilizam os trusts, e os membros da família agem frequentemente na situação de trustees. No Reino Unido, o governo introduziu recentemente novas disposições destinadas a endurecer a fiscalidade sobre os trusts. Apesar disso, as famílias continuam a utilizá-los porque a fiscalidade não é a única motivação que os incita a recorrer aos trusts. Por exemplo, pode acontecer que alguém tenha que pagar impostos suplementares para conservar activos num trust depois de uma criança ter atingido a idade de 18 anos. Mas se esta tiver problemas de saúde mental ou física, aquelas despesas suplementares terão valido a pena, pois asseguram a retenção dos activos no trust. Neste caso, o governo britânico fez assim um cálculo correcto.

Hoje, são mais numerosas as jurisdições de direito civil a adoptar o trust. O Liechtenstein é o que foi mais longe possível entre as jurisdições de direito civil para introduzir uma forma de trust no seu sistema legal pela via legislativa.

Contudo, estes trusts mostraram ser muito inflexíveis de vários pontos de vista e nunca puderam realmente fazer concorrência às fundações familiares do Liechtenstein, que permanecem as grandes favoritas das famílias que procuram uma planificação de sucessão simples. Em circunstâncias específicas, estas fundações podem, da mesma maneira que o Anstalt, ser incluídas utilmente em estruturas de planificação fiscal.

O Luxemburgo continua pela sua parte a ser utilizado para estruturas mas a sua força reside na sua rede de tratados de dupla imposição, e nas sociedades e fundos que oferece o Grão-Ducado para uma estruturação fiscal eficiente.

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As famílias italianas adoptaram os trusts desde que a Itália assinou a Convenção de Haia sobre os trusts. Estas estruturas permitem-lhes colocar os seus activos em abrigo, evitar um reporting bem como evitar os impostos italianos. Convém aqui sublinhar a natureza confidencial de um trust “inter vivos”, estrutura criada para assegurar que, no momento do falecimento do settlor, o trustee, nada da herança possa transparecer para o domínio público. A segurança física individual é, na Itália como noutras jurisdições, uma consideração muito importante para as famílias.

Em geral, o modelo anglo-saxónico do trust arbitrário e irrevogável continua a ser o melhor instrumento de planificação para as famílias que têm ligações internacionais. Não foi até agora ultrapassado. Oferece uma protecção dos activos, dos interesses dos herdeiros com problemas de saúde, uma planificação de sucessão para a empresa e para os interesses pessoais e, se for utilizado de maneira adequada, permite minimizar os impostos. As jurisdições de direito civil, até agora, desenvolveram pálidas cópias que não satisfazem as expectativas dos clientes que têm a experiência do original.

A Suíça, sabiamente, não tentou imitar este último, criando uma versão suíça de trust, mas reconheceu simplesmente a validade dos trusts offshore. Com a ratificação da Convenção de Haia e a adaptação do seu direito internacional privado, a Suíça poderá estender a sua indústria de serviços de trustee, essencial para o seu sector do private banking. Esta é a melhor abordagem para uma jurisdição de direito civil. Esta estratégia permitirá à Suíça fazer concorrência com sucesso a Singapura, nomeadamente, uma jurisdição que tem a vantagem de ser de direito comum.

Stéphanie Jarrett (advogada no Reino Unido e no País de Gales),

“Le trust discrétionnaire et irrévocable anglo-saxon reste insurpassable”,

Le Temps, 19 de Setembro de 2007,

disponível em http://www.paradisfj.info/spip.php?article960.

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3. A CRISE ACTUAL E OS PARAÍSOS FISCAIS: NOTAS DE LEITURA

3.1. O MURO DE BERLIM DO CAPITALISMO

Esta crise é, desde o desmoronamento do muro de Berlim, a mais grave derrota que conheceu uma ideologia, com o seu cortejo de passos às cegas, de mentiras e de propaganda. O quase desaparecimento de Wall Street é, em certa medida, a queda do muro de Berlim do capitalismo liberal e mundializado. A ideologia do mercado livre, o comércio livre, a finança livre e a recusa obsessiva da intervenção da política na economia é um dogma que atinge a estupidez e conduz ao inferno. O nosso governo empenha-se profundamente na arte de compor e encher de radares e de polícias as nossas estradas; no entanto, a única estrada sobre a qual recusou obstinadamente desde há anos que aí se instalassem linhas brancas, radares e guardas é a da finança, onde a liberdade não conhece nem moral nem virtude. A questão da ordem pública para assegurar a segurança da economia está, pois, em cima da mesa, como há, de resto, uma ordem pública em matéria sanitária, ambiental ou anti-terrorista, a fim de assegurar a segurança das pessoas e dos bens. Lutar contra as zonas de não direito, é o dever de um Estado. Hoje, a finança tornou-se uma zona de não direito à escala mundial. E é ela que assusta os cidadãos, aforradores, assalariados, empresários. É dela que os Estados nos devem proteger, mesmo se eles próprios organizaram a sua própria impotência política. Os líderes mais liberais, entre os quais está Nicolas Sarkozy, não têm nenhuma credibilidade nas suas declarações, evocando não se sabe que refundação do capitalismo, uma vez que a responsabilidade que lhes cabe, ao terem recusado com toda a violência do seu dogmatismo qualquer medida de regulamentação ou de limitação, é pois esmagadora. Este presidente faz, em

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conjunto com o patronato reunido em torno da sua associação, o Medef, a apologia da sacrossanta auto-regulação: é tão pouco eficaz e credível para lutar contra uma fraude como a dos títulos subprimes da mesma forma que o é a autodisciplina num grupo de pré-delinquentes.

O mesmo podemos dizer quanto à fascinação que exerceu sobre este homem a louca criatividade da finança americana, ao ponto de ter influenciado as suas próprias propostas, uma vez que ele defendia ultimamente a ideia de aumentar o acesso ao crédito hipotecário para as famílias de fracos rendimentos, o que significava transplantar os créditos em créditos subprimes em França. E o mesmo podemos igualmente dizer quanto à sua recusa em acabar com os paraísos fiscais, bancários e judiciários, como o Luxemburgo ou a City de Londres que, no seio da União Europeia, organizam um verdadeiro dumping regulamentar e desregulador.

Este pobre Jean-Claude Juncker, primeiro-ministro do Luxemburgo e presidente do Eurogrupo, vê o Dexia desmoronar-se por ter agido de modo inconsciente com a sua bênção de liberal obsessivo. E ele é o mesmo que nos tratava, a Vincent Peillon e a mim próprio, durante os nossos inquéritos parlamentares sobre os paraísos fiscais europeus “de sheriff-inquisidores”; é o mesmo que protegeu a manutenção no sector privado da câmara de compensação Clearstream, de práticas e métodos bem contestáveis! São estes mesmos europeus ultraliberais que deixaram as Bolsas tornarem-se empresas privadas desde a fusão de NYSE com a Euronext sob a alçada do direito americano ultra-leve! Quem acreditará nestes responsáveis capazes de impor o contrário que proclamaram? Cabe, por conseguinte, à esquerda rearmar a política para lutar contra a finança louca. Deve fazê-lo tendo sempre presente que também não está isenta de críticas nesta matéria. Também se deixou atordoar com as miragens e as promessas de crescimento que prometiam os liberais; também sucumbiu à crença que a liberalização dos movimentos de capitais iria facilitar o financiamento das empresas e, por conseguinte, beneficiar os assalariados.

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Repor a ordem na economia passa pela luta contra a insegurança financeira: primeiro, desarmar os delinquentes potenciais que são os banqueiros; seguidamente, reforçar o arsenal legislativo de repressão, para criar uma verdadeira ordem pública económica que disponha de sanções à medida, apropriadas. É imperativo restringir os instrumentos que permitem especular. É necessário pôr um termo – e por conseguinte proibir – a titularização dos créditos pelos bancos, que é um meio para estes se descartarem do risco. Os bancos que emprestam dinheiro a uma família ou a uma empresa devem manter-se como credores e manter o crédito nas suas contas, até ao reembolso completo. A crise actual impõe também que se retorne a uma divisão clara e nítida das actividades da economia real e da finança. A mistura dos dois tipos de actividades que foi autorizada entre os bancos de investimento, de depósito e de seguro estão na origem da queda do banco franco-belga Dexia, assim como do segurador americano AIG, porque os seus dirigentes quiseram desenvolver-se também na actividade de assegurar os investidores contra as perdas especulativas. A crise actual impõe também proibir aos actores financeiros como os hedge funds (fundos especulativos) que andem a especular nos mercados. A loucura da especulação não poderia ser detida sem um enquadramento rigoroso das formas de remuneração dos operadores na alta finança, que só conhecem – quer ganhem quer percam – apenas as suas comissões, os seus bónus! Mas o que é mais importante será fazer com que estas interdições sejam respeitadas. Onde é que estavam os poderes públicos e as famosas autoridades reguladoras supostamente independentes? As autoridades de supervisão do sector financeiro (Autoridade dos Mercados Financeiros, Comissão Bancária, Banco de França) são dirigidas por personalidades procedentes do mundo financeiro. E o seu interesse está ligado ao das pessoas que supervisionam. O resultado é que não controlam nada. É por conseguinte necessário alterar o modo de nomeação destes responsáveis. É necessária uma presença dos deputados, de representantes de assalariados, de pequenos accionistas, dos clientes dos bancos nestas instâncias, verdadeiros braços armados das políticas.

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Uma vez este sector posto sob controlo, é necessário imaginar um outro meio para financiar a economia. Não é anormal que, numa economia de mercado, certos sectores estejam sujeitos a um monopólio público, quando o sector privado mostrou que era incapaz de cumprir a sua tarefa. A finança é este sector. E vê-se o risco que existe por se confiar a instituições privadas o cuidado de financiar toda a actividade económica de um país. As fontes de crédito secam-se e a economia corre o risco de parar. Como nos mostram as práticas do micro-crédito, seria por conseguinte saudável confiar a instituições sem fins lucrativos a distribuição do crédito. A criação de um serviço público de crédito, que seja gerido pela Caísse des Dépôts et Consignations, uma instituição sólida que soube permanecer afastada da especulação, poderia responder às necessidades de financiamento da economia.

A crise mostra também que o dogma liberal subjacente à construção europeia não protege nem o cidadão nem a economia. Que sentido tem hoje os termos de livre concorrência ou a proibição dos auxílios estatais quando tudo está a desabar? Para que serve um Banco Central Europeu obcecado por uma inflação que não sabe jugular, e um crescimento em que se empenhou em abafar?

Os cidadãos aceitarão uma Europa reforçada se sabem que as instituições os beneficiam e não apenas ao mundo da finança. A hora não é mais para medidas tímidas, do laisser-faire, para a fatalidade do mundo da finança como este vai. A política deve rearmar-se e aproveitar o desmoronamento da finança para impor as suas regras do jogo e sem medo. E não deve contentar-se em passar para a caixa registadora como sempre o fez, em virtude do bom e velho provérbio que quer que se privatize os lucros e que se socializem os prejuízos.

Arnaud Montebourg, “Le mur de Berlin du capitalisme”,

Le Monde, 21 de Outubro de 2008,

disponível em http://www.arnaudmontebourg.fr/web/nav/article.php?id=411.

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3.2. KRACH E PARAÍSOS FISCAIS

É com estupefacção e raiva que ouvi hoje alguns fazer acusações contra os socialistas, acusando-os de terem negligenciado as desordens do sistema financeiro internacional e de não terem nada a dizer sobre as consequências da crise financeira, e estes críticos são os mesmos que se opuseram à luta que nós queríamos levar por diante. O sigilo bancário como também os créditos podres têm-se alegremente alimentado do silêncio mediático.

Os factos em primeiro lugar, para aqueles que têm a memória curta! Da Primavera de 1999 até Março de 2002, presidi àquela que foi a maior missão parlamentar da Quinta República, dedicada precisamente – através da luta contra o branqueamento de capitais, a criminalidade financeira e os paraísos fiscais, bancários e judiciários – a esta questão da desregulamentação. Com o relator da missão, Arnaud Montebourg, com os deputados que nos quiseram acompanhar nas nossas voltas, apoiados constantemente pelo governo de Jospin apesar das dificuldades diplomáticas que os nossos inquéritos podiam criar, consagrámos várias monografias ao Luxemburgo, ao Liechtenstein, à Suíça, ao Mónaco, ao Reino Unido e à própria França. Em 2002, pouco antes do desastre do 21 de Abril, organizámos em Paris uma conferência dos Parlamentos Nacionais da Europa onde, após longas negociações, foram adoptadas 53 medidas sobre a transparência dos movimentos de capitais, sobre as sanções contra os países não cooperativos e sobre a cooperação judicial, policial e administrativa. Acrescentava-se o princípio de um encontro periódico anual ou semestral para considerar os progressos deste combate. A Europa podia então assumir a liderança de uma abordagem reguladora do mercado e trabalhar para construir um embrião de ordem pública internacional.

Do mesmo modo tínhamos conseguido adoptar o princípio de que a missão parlamentar se tornasse uma estrutura permanente da Assembleia Nacional. Em 2004, publiquei uma obra, Les milliards noirs du blanchiment

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(Hachette), onde, confirmando que o governo de direita eleito em 2002 não continuou, de modo algum, o trabalho desenvolvido na Assembleia, apesar das suas promessas, elaborei o balanço seguinte: o de uma mundialização criminosa que se alimenta da hipocrisia dos Estados, do desinteresse das opiniões públicas, da cumplicidade das autoridades financeiras e do silêncio suspeito das meios mediáticos. Os que nos estão hoje a censurar de não termos investido neste campo estão abertamente desinteressados nele e, assim sendo, condenaram esta luta privando-a de todo e qualquer relançamento de opinião.

A mundialização que construímos é agradável para os oligarcas, os grandes traficantes de droga, de armas ou de órgãos, é igualmente agradável para as grandes empresas, para os especuladores; a mundialização é dura para com os mais fracos, os trabalhadores, os pobres, as pessoas honestas que não têm como primeira obsessão defraudar o fisco. Como nos recordaram os juízes do Apelo de Genebra em 1996, enquanto o crime é transnacional, o dinheiro atravessa as fronteiras à velocidade electrónica, os juízes e os homens de lei, estes são delimitados, parados, nas fronteiras. Mecanismos múltiplos e cumulativos, baixa pressão fiscal, segredo bancário absoluto, ausência de cooperação judicial, sociedades-ecrã, ausência de regras prudenciais e de supervisão bancária permitem à finança criminosa prosperar com toda a impunidade.

Infelizmente, não nos podemos ficar por esta primeira análise. Porque nenhum de entre nós pode seriamente acreditar que se se tratasse apenas de proteger os terroristas, os traficantes de drogas, os grandes criminosos, os Estados autorizariam a existência de tais mecanismos e a proliferação de tais territórios? Os números falam por si mesmos. A finança criminosa é avaliada em 5% do PIB mundial, as transacções que passam por estas caixas negras representam cerca de metade dos fluxos financeiros. Se estes mecanismos e estes territórios durarem e prosperarem, é porque servem outros interesses: os dos Estados, das grandes empresas, dos grandes bancos e das grandes e poderosas fortunas. Os

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paraísos fiscais, bancários e judiciários alimentam e protegem o crime. Mas é o preço que os grandes agentes do sistema financeiro internacional estão prontos a pagar para gerarem os seus lucros como o entenderem.

A diferença entre o direito e o facto, os discursos e os actos, atinge aqui o seu máximo. Dispomos de múltiplas convenções, declarações, organismos, no âmbito da ONU, da OCDE, da Europa etc. Ora a hipocrisia dos Estados e o interesse compreendido bem assumido das grandes empresas permitem que estes organismos não disponham nunca dos meios para se fazerem respeitar e que as declarações não passam sequer de papel amarrotado. O silêncio mediático, quebrado apenas quando se trata de mobilizar em urgência o dinheiro público para salvar o sistema, participa nesta vasta hipocrisia.

Vários anos a percorrer a Europa, a encontrar banqueiros, autoridades de regulação, juízes, criminosos, polícias, advogados, diplomatas, ministros, conduziram-nos a esta conclusão que enunciei já em 2004: a ordem internacional é uma grande desordem que ninguém domina mas da qual alguns se aproveitam, e a mundialização tal como construída desde há mais de vinte anos à força de liberalizações é primeiro favorável aos que querem escapar às regras do direito (para não falar da virtude), às exigências do interesse geral e à investigação do bem comum.

Como traçar em tudo isto um caminho? Não volto a falar das medidas de regulação necessárias. Mas a experiência conduz-me a apoiar que estas só serão postas em prática se a isso forem obrigadas pelas opiniões públicas com força e persistentemente. Não se voltará para trás. O que construímos, a partir do século XIX e depois da revolução industrial, as regulações democráticas, sociais e mesmo económicas no âmbito do Estado-nação, vai ter que ser reconstruído no plano europeu e no plano internacional. Esta tarefa é a do século que se inicia. Será longa, difícil, chocar-se-á com interesses potentes.

Hoje sabemos, e desde há vários anos, o que será necessário fazer. A

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questão não reside nos problemas, pois estes estão identificados, nem nas soluções, pois estas existem e estão bem referenciadas. Como o escrevi já em 2004: “A questão é a de construir uma vontade comum”. Peça-se aos que parecem descobrir hoje os disfuncionamentos do sistema financeiro internacional, depois de os terem protegido durante tanto tempo com um manto de silêncio, se eles manterão esta vontade para além de alguns dias e de algumas declarações puramente comerciais para vender o medo às opiniões públicas desorientadas. Se for como o afirmamos, o grande ruído mediático ao qual assistimos hoje mostrará a sua verdadeira estratégia: permitir que se coloque o sistema em andamento e o mais rapidamente possível, com a boa vontade das e dos que são, no entanto, as suas vítimas, as vítimas de um sistema vantajoso apenas para alguns; fazer de modo que os belos dias retornem o mais rapidamente possível para todos os que se alimentam desta mundialização criminosa.

Vincent Peillon (deputado europeu), “Krach et paradis fiscaux”, Libération, 16 de Outubro de 2008,

disponível em http://www.liberation.fr/tribune/0101148721-krach-et-paradis-fiscaux.

3.3. ENTREVISTA DE ARNAUD MONTEBOURG

Arnaud Montebourg pede à Suíça que abandone o sigilo bancário.

P. As pressões americanas sobre a Suíça e o seu sigilo bancário anima-o. Será que parte em guerra contra os banqueiros helvéticos?

R. Efectivamente, faço parte dos pioneiros que combatem a pilhagem económica. A pressão actual sobre a Suíça está ligada à crise económica. Os Estados que fecharam os olhos aos predadores que são os paraísos fiscais estão confrontados com uma grave crise de endividamento. Estes Estados têm necessidade de milhares de milhões para salvarem o seu sistema financeiro e a sua economia real. Já não podem deixar o dinheiro fugir.

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P. E vão à procura dele onde ele se encontra?

R. Exactamente. Para mim, o sigilo bancário está condenado. Só as autoridades suíças é que parecem não o compreender. O desaparecimento do sigilo bancário vai aliás no sentido da história e no sentido, também, da grande justiça. Não há nenhuma razão para aceitar que os mais ricos e os actores económicos mais prósperos possam escapar ao fisco quando o mais simples trabalhador é obrigado a pagar os seus impostos. Esta injustiça é um factor de explosão social

P. Em suma, pensa que a Suíça não tem nenhuma hipótese de se escapar desta vez?

R. A Confederação Helvética está condenada, sob a pressão internacional, a ter que mudar. Ela deve abandonar o sigilo bancário se não quer ser alvo da condenação total por todas as nações.

P. De acordo, mas a este preço, a União Europeia deverá também varrer bem à sua porta e abrir o dossier do Luxemburgo e dos paraísos fiscais ingleses!

R. Tem toda a razão. Mas lembro-lhe que a pressão da União Europeia sobre o Luxemburgo foi tão forte que o seu primeiro-ministro aceitou falar do levantamento do sigilo bancário. Londres também está na mira. Quanto aos bancos franceses que têm sucursais nos paraísos fiscais, estão a ser alvo de debate. Não se inquiete: esta questão não tem só a ver com a Suíça.

P. Mas tranquilize-nos, os europeus não nos acusam, a nós os suíços, de sermos os responsáveis do brutal falhanço económico mundial?

R. De modo nenhum, e eu nunca disse isso. No actual contexto, a estratégia americana de criminalização da evasão fiscal e da fraude fiscal que foram encorajadas pelos bancos suíços, e mais particularmente pela UBS,

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é perfeitamente razoável e justificada. Pessoalmente irei propor uma via semelhante para ser aplicada em França. O fisco deverá poder utilizar os instrumentos dos processos penais contra a criminalidade organizada para lutar contra a evasão fiscal nos paraísos fiscais.

P. Pensa que isso chegará para meter medo aos irredutíveis banqueiros de Genebra e de Zurique?

R. Sejamos claros: os banqueiros suíços são culpados de agravar os défices públicos de muitos Estados, de ajudar e de proteger os delinquentes, pessoas que não respeitam o civismo. Eu lembro-lhe que a fraude fiscal é uma infracção em numerosos países. A este nível, os bancos suíços tornam-se culpados de cumplicidade e de encobrimento.

P. Que pede ao Conselho Federal.

R. Lancei-lhe um apelo: chegou a hora de abandonar o sigilo bancário. Não se pode estar a ganhar dinheiro assente na violação da solidariedade internacional.

P. Isto soa como uma ameaça?

R. As medidas de sanção são inelutáveis como o são, principalmente, os embargos financeiros. In fine, a Europa acabará por revogar os seus acordos bilaterais que tem com a Suíça.

P. Mas isto é uma declaração de guerra?

R. A Suíça está infelizmente cercada e sob forte pressão internacional. Se a Suíça quer voltar a ter relações normais com a União Europeia, ela será então obrigada a organizar o fim da protecção desta delinquência internacional de que ela constituía o seu santuário. A Suíça tem à sua frente alguns meses para se auto-reformar antes que o tenha que fazer, mas a doer.

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P. Francamente, parece que tem qualquer coisa contra a Suiça?

R. A Suíça é um grande país assente no respeito pelos valores universais e humanistas, desde a sua criação. E incomoda-me ver que ela está em vias de destruir a sua reputação internacional ao organizar a solidariedade em torno dos seus banqueiros. Os banqueiros e os defensores do sistema bancário suíço simbolizam hoje o que há de mais repugnante e imoral no capitalismo actual e que está em falência.

Entrevista concedida ao jornal suíço Le Matin, a 24 de Fevereiro de 2009, disponível em

http://www.lematin.ch/actu/monde/arnaud-montebourg-abandonnez-secret-bancaire-89139.

3.4. AS EMPRESAS DE CAC 40 E OS PARAÍSOS FISCAIS

A revista Alternatives Economiques revela que todas as empresas cotadas em bolsa possuem sucursais nos paraísos fiscais. A leitura deste facto feita por Christian Chavagneux, editor chefe associado da revista, em entrevista concedida ao Le Fígaro.

“Com praticamente 1 500 sucursais offshore, repartidas por cerca de trinta territórios, das Bermudas à Suíça passando por Malta, Panamá e Reino Unido, todas as empresas francesas do CAC 40 estão presentes nos países que oferecem serviços financeiros de tipo paraísos fiscais”, afirma um inquérito da revista Alternatives Economiques.

Enquanto os paraísos fiscais são cada vez mais apontados a dedo, façamos o ponto da situação com o responsável do inquérito e editor chefe associado da revista mensal, Christian Chavagneux.

P. Como realizaram o vosso inquérito sobre as empresas do CAC 40?

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R. Muito simplesmente comparámos os dados sobre os sítios da internet de cada empresa. Todas as informações que utilizámos são do domínio público. Somente quatro sociedades do CAC 40 (Air France-KLM, STMicroelectronics, Total e Vinci) não dizem quantas sucursais têm nos paraísos fiscais, mas não procurámos obter esta informação perguntando-lhes. Na verdade, procurámos agrupar dados aos quais todos tinham acesso.

P. É inédito?

R. Que saibamos é, sim. Até aqui houve somente um inquérito do Tribunal de Contas americano, no qual, de resto, nos inspirámos. E este levou a um resultado similar: todas as grandes multinacionais possuem sucursais nos paraísos fiscais. Além disso, na Grã-Bretanha, está a realizar-se um estudo sobre o mesmo tema.

P. O fenómeno é recente?

R. Relativamente, sim. Data do fim dos anos 60, mas explodiu no fim dos anos 90. É nesta altura que dá para perceber que o fenómeno não era de forma algum marginal, mas intenso. O problema é que, embora sendo legal, com este fenómeno alimenta-se a instabilidade financeira assim como as fugas fiscais (que são extremamente elevadas em França, dado que representam 50 mil milhões de euros, ou seja, 3% do PIB).

P. Concretamente, qual é o interesse para as grandes empresas em ter sucursais em paraísos fiscais?

R. Em matéria fiscal, em primeiro lugar, utilizam o facto de estes países oferecerem serviços offshore. No domínio da finança, seguidamente, assumem riscos na maior opacidade, como se viu no momento da crise.

P. Na vossa classificação, nota-se uma sobre representação dos bancos

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nos paraísos fiscais. Como o explica?

R. É uma constatação normal, a partir do momento em que são os próprios bancos a utilizar estes serviços não só para si mesmos, mas também para os seus clientes. Servem primeiro os actores financeiros. O que é interessante, é ver as diferenças entre os estabelecimentos bancários: BNP-Paribas, por exemplo, tem necessidade de uma presença nestes territórios duvidosos mais de três vezes superior à da Societé Générale. Mas não se saberá porquê, uma vez que o banco recusou responder-nos.

P. Como se situam as empresas francesas em relação às dos outros países?

R. Se o sector bancário francês está muito presente, é necessário saber que permanece bem abaixo dos bancos anglo-saxónicos. Por exemplo, não tomando em conta o Reino Unido (nota: a praça financeira de Londres é considerada como o primeiro paraíso fiscal mundial) e os Países Baixos, o HSBC tem 529 implantações em paraísos fiscais, o Citigroup 427 e o Barclays 315. Com os mesmos critérios, o BNP tem 93, por conseguinte está-se bem distante ainda do sistema anglo-saxónico.

P. Sob a pressão, certos países anunciaram a sua intenção de alterar as suas práticas para escapar eventualmente a fazerem parte de uma lista negra dos paraísos fiscais. Acha que isto pode fazer evoluir a situação?

R. Como o está a dizer, o objectivo é de facto escapar a ser colocado numa lista negra. De momento, “as cedências” consentidas por estes países são as mais pequenas possíveis. A Suíça nomeadamente diz que não põe em causa o sigilo bancário. A Bélgica e o Liechtenstein mexem um pouco mais. Penso que vai ser necessário esperar para ver e descortinar, de maneira muito bem precisa, estas evoluções que se fazem num quadro muito jurídico. O G-20 vai ser um indicador para ver até onde se pode verdadeiramente ir.

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P. Qual é a posição do governo francês a esse respeito?

R. Há verdadeiramente uma vontade política de fazer mexer as coisas. A crise foi reveladora neste domínio. Não é necessário fechar os paraísos fiscais já amanhã, porque tudo isto destabilizaria o mercado, mas os dirigentes pensam que é necessário deixarem de actuar já ou então terão que infligir sanções às empresas rebeldes. O nosso inquérito vai no sentido do governo francês, ferro de lança apontado à luta contra os paraísos fiscais.

Entrevista concedida ao Le Fígaro, 13 de Março de 2009, disponível em

www.lefigaro.fr/impots/2009/03/13/05003-20090313ARTFIG00476-le-cac-40-au-paradis-fiscal-.php.

3.5. A GRÃ-BRETANHA EMBARAÇADA PELOS SEUS OFFSHORES

Apesar das suas declarações oficiais, Gordon Brown protege o destino de Jersey e de outras dependências britânicas.

Até onde é que Gordon Brown está pronto para ir de modo a conseguir levar a bem o seu recente compromisso de lutar contra os paraísos fiscais? É claramente o processo mais embaraçador do G-20 para o primeiro-ministro britânico, preocupado em obter resultados concretos para a cimeira de Londres, em 2 de Abril, e não um simples comunicado assinado pelos participantes.

De um lado, Gordon Brown deve responder às exigências de Nicolas Sarkozy, de Angela Merkel e de Barack Obama, que desejam sancionar os centros offshore; do outro, deve preservar os interesses financeiros da City. Ontem, o editorial de Financial Times, reflexo da opinião dos meios financeiros, exortava o governo a não se enganar no alvo para o G-20: trata-se “de resolver a crise e não de se deixar distrair por iniciativas que dão azo a grandes títulos dos jornais como o dos paraísos fiscais e o dos bónus dos banqueiros”.

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Neste processo, a boa vontade de Gordon Brown é primordial, uma vez que nada menos de 11 dos 37 países classificados como tendo “órgãos jurisdicionais suspeitos” pela Administração americana têm relações inextricáveis com a coroa britânica, entre as quais se contam as praças como Jersey, Guernsey, as Ilhas Caimão e as Bermudas.

De acordo com as últimas informações, as ilhas Anglo-Normandas, que alojam nomeadamente mesmo muitos numerosos trusts, as fundações criadas com o objectivo de evitar pagar impostos, teriam conseguido não ser inscritas na lista negra dos países que serão submetidos a sanções pelo G-20.

Para Jersey, a salvação terá sido encontrada apenas esta semana, com o primeiro-ministro da ilha que veio a Londres para assinar em catástrofe um acordo de cooperação e de divulgação de informações sobre os cidadãos britânicos suspeitos de evasão fiscal em Jersey. Nestes últimos meses, acordos bilaterais semelhantes têm sido, finalmente, assinados pelas ilhas Virgens britânicas, Guernsey e pela Ilha de Man.

Jersey obtém garantias

De acordo com a imprensa de Jersey, a pequena ilha obteve de Gordon Brown a garantia de que após ter assinado este acordo é protegida pelo Reino Unido aquando das negociações do G-20. No entanto, para certos peritos, este acordo de cooperação bilateral levanta uma barreira ao segredo bancário, mas não altera em nada a atracção de Jersey para as empresas e para as pessoas ricas que procuram levar a cabo o que de modo polido se chama “optimização fiscal”. De acordo com uma estimativa, o Reino Unido perderia pelo menos 25 mil milhões de libras (27 mil milhões de euros) de receitas fiscais cada ano devido às numerosas praças financeiras offshore.

Em Dezembro passado, o ministro britânico das Finanças, Alistair Darling, lançou um inquérito aprofundado sobre a transparência financeira em numerosas

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dependências da coroa e nos territórios ultramarinos. Mas infelizmente, as conclusões do relatório só serão conhecidas depois da reunião do G-20.

Cyrille Vanlerberghe, “La Grande-Bretagne embarrassée par ses centres offshore”, Le Figaro,

13 de Março de 2009, disponível em http://www.lefigaro.fr/impots/2009/03/13/05003-

20090313ARTFIG00266-la-grande-bretagne-embarrassee-par-ses-centres-offshore-.php.

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4. NA LINHA DE UM CERTO OBAMA

4.1. G-20: QUE POLÍTICAS CONCRETAS DE LUTA

CONTRA OS PARAÍSOS FISCAIS?

A primeira semana de Março de 2009 poderá ser retrospectivamente vista como um momento histórico decisivo na luta contra os paraísos fiscais. Americanos e europeus parecem animados por uma mesma vontade no sentido de se ir bastante longe na luta contra os paraísos fiscais. Mas as modalidades precisas de acção continuam diferentes e deverão ser reconciliadas durante a reunião do G-20 Finanças em meados de Março ou a 2 de Abril na reunião dos chefes de Estado.

Os deputados americanos foram os primeiros a precisarem as linhas de trabalho contra os paraísos fiscais, quando a 2 de Março apresentaram uma proposta de lei simultaneamente na Câmara dos Representantes e no Senado, respectivamente por Lloyd Doggett e por Car Levin, dois democratas. Esta proposta de lei apoia-se num anterior projecto apresentado em 2007 por Car Levin e dois outros senadores – Norm Coleman e um certo Barack Obama – e que vai bastante longe porque toca em todas as componentes da cadeia dos comportamentos fiscais duvidosos.

Os contribuintes que mantêm laços com os paraísos fiscais poderão ser a priori considerados suspeitos e caber-lhes-á a eles fazer prova de boa conduta. Várias propostas técnicas visam atacar directamente as práticas de transferências de valores pela manipulação dos preços feita pelas multinacionais. A administração fiscal ver-se-ia dotada de poderes reforçados

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de inquérito e de aplicação de sanções. Os países que promoverem a evasão e a fraude fiscal serão inscritos numa lista negra (nela estão já são propostos 34 países). Os intermediários privados – advogados, gabinetes de auditoria, banqueiros – que participarem neste tipo de práticas são severamente vigiados e punidos. Um ataque a três níveis: agentes que realizam as fraudes/paraísos fiscais/especialistas em direito e gestores, o que poderá atingir fortemente esta indústria parasita.

Questionado sobre estas propostas pelos senadores, o novo ministro das Finanças americano, Tim Geithner, afirmou a 3 de Março: “deixem-me começar por vos dizer que apoiamos a legislação posta em discussão pelos colegas sobre os territórios offshore e que vamos trabalhar todos em conjunto no âmbito de um esforço mais vasto para atacarmos a questão da evasão fiscal internacional”. Isto é claro e directo: existe um consenso nos Estados Unidos entre o Congresso e o governo sobre este assunto, o que augura acções concretas.

O dia 3 de Março viu igualmente a França e a Alemanha fazerem propostas, atacando o papel dos bancos. Os dois países propõem que os bancos indiquem claramente nas suas contas o que é que tem a ver, e em que valores, com a sua presença nos paraísos fiscais. Isto pode ser o início de um levantamento da situação país por país, reclamado pelas ONG na luta contra os paraísos fiscais e que permitiria pôr em evidência os comportamentos anormais. Franceses e alemães reclamam então que aos bancos fortemente presentes nos paraísos fiscais sejam impostas restrições quanto a reservas em capital, mais elevadas, para fazer face ao risco suplementar de instabilidade financeira que acarreta este tipo de comportamentos. Os dois países são eles também favoráveis ao estabelecimento de uma lista negra internacional dos paraísos fiscais. Por último, no dia 4 de Março, por ocasião da sua viagem aos Estados Unidos, o primeiro-ministro Gordon Brown afirmou: “os americanos estão a reestruturar os seus bancos. Nós também. Mas a poupança de todos nós não passaria a estar mais segura se o mundo inteiro se puser de acordo para proibir os sistemas bancários paralelos e proibir os

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paraísos fiscais”? Quando proferiu as palavras “proibir os paraísos fiscais”, Brown recebeu uma grande salva de palmas.

Todos estes discursos vão levar qualquer coisa ao G-20? De acordo com os nossos confrades britânicos do Guardian, será certamente o caso. Os peritos preparariam uma lista negra de paraísos fiscais. Sobretudo, os pagamentos efectuados pelas multinacionais com destino ou provenientes dos países da lista não seriam dedutíveis fiscalmente, o que imporia um constrangimento radical nos comportamentos quanto às transferências via manipulação de preços orquestrados pelas multinacionais. Além do mais, é pedido aos bancos que saiam destes territórios offshore.

Tudo isto corresponde ao ataque político mais forte contra os paraísos fiscais de toda a sua história. As semanas que se vão seguir serão cruciais.

Christian Chavagneux, “Le G-20 de Londres: des idées pour lutter contre les paradis fiscaux”,

disponível em http://www.alternatives-economiques.fr/g20-de-londres---lutter-contre-les-paradis-

fiscaux_fr_art_633_42320.html.

4.2. SÍNTESE DA PROPOSTA DE LEI NO SENADO E CÂMARA DOS

REPRESENTANTES DOS ESTADOS UNIDOS

Carl LevinUnited States Senator Michigan

Summary of the Stop Tax Haven Abuse ActMarch 2, 2009

TITLE I Deterring the Use of Offshore Secrecy Jurisdictions for Tax Evasion

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Establish presumptions for entities and transactions in Offshore Secrecy Jurisdictions. (§101)

- Establishes rebuttable evidentiary presumptions in tax and securities legal proceedings for non publicly-traded entities located in Offshore Secrecy Jurisdictions. The presumptions are as follows:

- Control – In a tax proceeding, if a U.S. person (other than a publicly-traded corporation) directly or indirectly formed, transferred assets to, was a beneficiary of, had a beneficial interest in, or received assets from an Offshore Secrecy Jurisdiction entity (other than a publicly-traded corporation), it will be presumed that the person exercised control over the entity.

- Transfers of income – In a tax proceeding, any amount or thing of value.

- a) transferred to a U.S. person (other than a publicly-traded corporation) directly or indirectly from an account or entity in an Offshore Secrecy Jurisdiction, or

- b) transferred from such a U.S. person directly or indirectly to an account or entity in an Offshore Secrecy Jurisdiction, will be presumed to represent previously unreported income to the U.S. person in the year of transfer.

- Beneficial ownership – In a proceeding to enforce securities law, if a U.S. person (other than a publicly-traded corporation) formed, transferred assets to, was a beneficiary of, had a beneficiary interest in, or received assets from an Offshore Secrecy Jurisdiction entity (other than a publicly-traded corporation), it will be presumed that the person beneficially owned and exercised control over such entity, regardless of the nominal ownership.

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- Foreign financial accounts – Current law requires that U.S. taxpayers report to the IRS any foreign financial accounts containing at least $10,000 (known as an FBAR filing). Presumption is that any account in an Offshore Secrecy Jurisdiction contains funds sufficient to trigger this reporting requirement.

- These presumptions are needed in civil judicial and administrative proceedings, because the tax, corporate, or bank secrecy laws and practices of these jurisdictions make it nearly impossible for U.S. authorities to gain access to needed information. Presumptions may be rebutted by clear and convincing evidence. No evidence may be accepted from a non-U.S. person unless the person appears to testify in the proceedings.

- Treasury and SEC are authorized to issue regulations or guidance to implement this section, and exempt classes of transactions, such as corporate reorganizations, that do not present the potential for abuse.

Determine “Offshore Secrecy Jurisdictions.” (§101)

- Provides initial list of 34 Offshore Secrecy Jurisdictions, while giving Treasury Secretary discretion to add or subtract from the list using certain criteria. Initial list of jurisdictions was taken from IRS court filings identifying them as probable locations for U.S. tax evasion:

Anguilla Cook Islands Jersey St. Kitts and Nevis

Antigua and Barbuda Costa Rica Latvia St. Lucia

Aruba Cyprus Liechtenstein St. Vincent & the Grenadines

Bahamas Dominica Luxembourg Singapore

Barbados Gibraltar Malta Switzerland

Belize Grenada Nauru Turks and Caicos

Bermuda Guernsey/Sark/Alderney Netherlands Antilles Vanuatu

British Virgin Islands Hong Kong Panama

Cayman Islands Isle of Man Samoa

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- Directs Treasury Secretary to list jurisdictions with secrecy laws or practices that unreasonably restrict U.S. tax authorities from obtaining needed information, unless the jurisdiction has information exchange practices that effectively overcome those secrecy barriers.

Authorize special measures against foreign jurisdictions, financial institutions, and others that impede U.S. tax enforcement. (§102)

- Currently, Treasury has the authority under §311 of the Patriot Act (31 U.S.C. 5318(a)) to impose financial sanctions on foreign jurisdictions, financial institutions, or transactions found to be of “primary money laundering concern.” Bill would authorize Treasury to impose the same sanctions on the same types of entities if Treasury finds them to be “impeding U.S. tax enforcement.” In addition, the bill would add to the list of possible sanctions the ability to prohibit the use of credit cards issued by a foreign bank in the United States.

Treat foreign corporations managed and controlled in the United States as domestic corporations for income tax purposes. (§103)

- Treats a corporation that is publicly traded or has aggregate gross assets of $50 million or more during the tax year or the preceding tax year as a domestic corporation for income tax purposes if substantially all of the executive officers and senior management who exercise day-to-day responsibility for making decisions involving strategic, financial, and operational policies of the corporation are located primarily in the United States.

- Provides exceptions for foreign corporations that are subsidiaries of active U.S. parent corporations and for foreign corporations that are granted a waiver by the Treasury Secretary because the corporation no longer meets and no longer expects to meet the criteria established in this section.

Allow more time for investigations involving Offshore Secrecy

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Jurisdictions. (§104)

- Extends from three years to six years the amount of time IRS has after a return is filed to investigate and propose an assessment of additional tax if the case involves an Offshore Secrecy Jurisdiction.

Increase disclosure of offshore accounts, transactions, and entities. (§105)

- Requires any bank or securities firm that knows from its anti-money laundering due diligence that the beneficial owner of one of its foreign-owned financial accounts is a U.S. taxpayer, to file, in its role as withholding agent, a 1099 form reporting account income of that beneficial owner to the IRS.

- Requires any financial institution directly or indirectly opening a financial account or creating an entity in an Offshore Secrecy Jurisdiction for a U.S. client to report the transaction to the IRS.

- These filing requirements would be subject to the same penalties under Title 26 presently applicable to forms 1099 and W-2, and bank and securities regulators are given express authority to use their existing enforcement authority to address failures to report.

Prevent misuse of foreign trusts for tax evasion. (§106)

- Attributes all powers and interests held by a trust protector of a foreign trust to the U.S. trust grantor.

- Treats a U.S. person who receives or uses cash or other property from a foreign trust as a beneficiary of that trust, unless the exchange was for fair market value.

- Expands the list of taxable trust distributions to include loans of real

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estate, marketable securities, and personal property of any kind, including artwork, furnishings and jewelry.

- Amends tax code to treat foreign trusts with current or future U.S. beneficiaries, including contingent U.S. beneficiaries, as taxable “grantor” trusts, rather than limiting that treatment to trusts with current U.S. beneficiaries.

Limit legal opinion protection from penalties with respect to transactions involving Offshore Secrecy Jurisdictions. (§107)

- Denies the penalty protections afforded by a legal opinion if the transaction involves an Offshore Secrecy Jurisdiction. Treasury is also authorized to exempt opinions that express a high confidence level regarding the tax treatment of the transaction and opinions on certain classes of transactions that are determined not to present the potential for abuse.

Close the offshore dividend tax loophole. (§108)

- Ensures non-U.S. persons pay U.S. taxes on U.S. stock dividends by ending the practice of using complex financial transactions to recast taxable dividend payments as allegedly tax free dividend equivalent or substitute dividend payments.

- Ensures consistent tax treatment of dividend, dividend equivalent, and substitute dividend payments by defining «dividend» to include dividend equivalent and substitute dividend payments under Sections 871 and 881 of the tax code.

- Authorizes the Treasury Secretary to issue regulations to prevent possible over-withholding of taxes on dividend equivalent or substitute

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dividend payments, and to address other issues, including the netting of payments and other transactions involving options, forward contracts, or similar arrangements with similar economic results as covered transactions.

Expand reporting requirements for PFICs. (§109)

- Expands tax return reporting requirements for passive foreign investment corporation s (PFICs) to include not only U.S. persons who are shareholders in a PFIC, but also U.S. persons who directly or indirectly form, transfer assets to, are a beneficiary of, have a beneficiary interest in, or receive assets from a PFIC.

TITLE IIOther Measures to Combat Tax Haven and Tax Shelter Abuses

Increase penalty for failing to disclose offshore holdings. (§201)

- Imposes penalty of up to $1 million per violation of U.S. securities law on public companies or their officers, directors, or major shareholders who knowingly fail to disclose offshore holdings that should have been reported to the Securities and Exchange Commission.

Require anti-money laundering rule for hedge funds. (§202)

- Requires Treasury to issue a rule requiring unregistered investment companies, such as hedge funds and private equity funds, to establish anti-money laundering programs and submit suspicious activity reports. Rule must require such unregistered investment companies to use due diligence to evaluate investors supplying offshore funds and comply with same anti-money laundering rules as other financial institutions when asked for records by a federal regulator.

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Apply anti-money laundering obligations to company formation agents. (§203)

- Adds company formation agents to current list of those who must comply with anti-money laundering obligations.

- Requires Treasury to issue a rule applying anti-money laundering obligations to company formation agents.

Strengthen John Doe summons use in offshore tax cases. (§204)

- Strengthens John Doe summonses in cases involving Offshore Secrecy Jurisdictions by:

- allowing immediate summonses for U.S. correspondent account records of financial institutions located in an Offshore Secrecy Jurisdiction;

- authorizing courts to presume for any summons relating to transactions in Offshore Secrecy Jurisdictions that there is a reasonable basis for believing the case involves non-compliance with tax laws; and

- permitting a court to authorize John Doe summonses on an open-ended basis for three-year periods for project investigations, provided that the court exercises ongoing oversight of the IRS summonses.

- Requires GAO evaluation of this provision after five years.

Strengthen foreign financial account reporting requirements. (§205)

- Clarifies the authority of IRS agents investigating Foreign Bank Account Report (FBAR) violations to use tax information in those

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investigations; simplifies the calculation of FBAR penalties by tying the penalty to the highest balance in the account during the reporting period; and clarifies that Suspicious Activity Reports may be used for civil, and not just criminal, tax law enforcement.

TITLE III Preventing Abusive Tax Shelter Transactions

Strengthen tax shelter penalties. (§§301-302)

- Strengthens penalties for promoting abusive tax shelters (§301) and knowingly aiding or abetting a taxpayer in understating tax liability (§302).

1. Violation 1. Current Law 1. Bill

1. Promotion of abusive tax shelters.

2. IRC § 6700

1. 50% of the promoters’ gross income

from the activity. 

2. 

1. Not to exceed 150% of the promoters’ gross

income from the prohibited activity.  (§301)

1. Knowingly aiding and abetting

understatement of tax liability.

2. IRC § 6701

1. Maximum of $1,000 ($10,000 for a

corporation).

2. Penalty applies only to tax return preparers.

3. 

1. Not to exceed 150% of the aider-abettor’s

gross income from the prohibited activity.

2. 

3. Penalty applies to all aiders-abettors,

not just tax return preparers.  (§302)

Prohibit tax shelter patents. (§303)

- Prohibits the issuance of any patent on a strategy, process, or system designed to reduce, minimize, determine, avoid, or defer the liability for tax.

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Prohibit tax service fees contingent upon specific tax savings. (§304)

- Prohibits charging a fee for tax services in an amount that is calculated according to or dependant upon a projected or actual amount of tax savings or losses offsetting taxable income.

Deter financial institution participation in abusive tax shelter activities. (§305)

- Requires federal bank regulators and the SEC to develop and utilize examination techniques to detect violations by financial institutions of the prohibition against providing products or services that aid or abet tax evasion or that promote or implement abusive tax shelters, and report potential violations to the IRS.

Strengthen law enforcement through information sharing. (§§306-307)

- Authorizes Treasury to share certain tax return information with the SEC, federal bank regulators, or PCAOB, under certain circumstances, to enhance tax shelter enforcement or combat financial accounting fraud. Clarifies Congressional subpoena authority to obtain information (but not a taxpayer return) from tax return preparers. Clarifies Congressional authority to obtain certain tax information (but not a taxpayer return) from Treasury related to an IRS decision to grant, deny, revoke, or restore an organization’s tax exempt status.

Require tougher tax shelter opinion standards for tax practitioners. (§308)

- Codifies and expands Treasury’s authority to issue Circular 230 standards for tax practitioners providing “opinion letters” on specific tax shelter transactions.

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TITLE IVRequiring Economic Substance

Codify and strengthen the economic substance doctrine. (§§401-403)

- Codifies and strengthens the economic substance doctrine to invalidate transactions that have no meaningful economic substance or business purpose apart from tax avoidance or evasion. Also increases penalties for understatements attributable to a transaction lacking in economic substance.

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5. PARAÍSOS FISCAIS, PILARES DO CAPITALISMO

Os paraísos fiscais não facilitam somente os esquemas financeiros fraudulentos, eles estão no centro das estratégias das grandes empresas e dos fluxos bancários internacionais.

O ano de 2005 foi um ano excepcional para o grupo U2, com lucros avaliados no montante de 217 milhões de euros. Tudo ia pelo melhor para Bono e a sua banda, até que a sua pátria de origem, a Irlanda, que propunha aos artistas não pagarem impostos, decide recentemente impor um limite de isenção de tributação autorizado. Nem uma nem duas: Bono, até agora conhecido pelo seu combate em prol da anulação da dívida dos países mais pobres, transferiu a gestão dos lucros do grupo para uma sociedade holandesa, Promogroup. Esta já tem na sua lista de clientes os Rolling Stones que, graças aos seus bons conselhos sobre a melhor maneira de utilizar as leis fiscais das Antilhas holandesas, têm uma taxa de imposição nos vinte últimos anos de… 1,6% dos seus rendimentos.

Evasão e fraude fiscais dos ricos e das empresas, branqueamento de dinheiros mafiosos, corrupção, etc., são uma prática financeira internacional duvidosa onde há sempre um paraíso fiscal – estes “baixios da finança internacional”, como o escreveu já em 1968 o editorialista do Le Fígaro Alain Verney – a estar implicado. E, no entanto, as actividades opacas dos centros financeiros offshore11, como se diz diplomaticamente nas instâncias

11 Os centros offshore são centros financeiros em que as suas actividades são voluntariamente pouco reguladas pelos poderes públicos.

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internacionais, são por definição menos conhecidas. As estimativas do branqueamento de dinheiro ou da fraude fiscal internacional ou são fantasistas, ou são, quando têm a pretensão de explicar em detalhe o seu método, traídas pela multiplicação das aproximações às quais recorrem e pela fragilidade dos seus resultados.

Ora, o papel dos paraísos fiscais vai bem para além dos ecos de fraudes financeiras que nos chegam: representam pilares essenciais da mundialização económica. Pode-se mostrá-lo graças a informações, certamente parciais mas públicas, que permitem afastar para bem longe os fantasmas e compreender melhor para que servem os paraísos fiscais e quem é que beneficia com eles.

As multinacionais enredam-se nos preços

No último ano, as Ilhas Virgens britânicas investiram mais na China que o Japão ou os Estados Unidos. As Ilhas Maurícias eram, e de longe, o primeiro investidor na Índia. Estes pequenos territórios no entanto não apareceram de imediato, numa bonita manhã, à cabeça de multinacionais potentes prontas para conquistar o mundo! Com efeito, as empresas dos países industrializados e dos países emergentes servem-se dos paraísos fiscais para estabelecer sucursais que vão investir noutros lugares: pouco taxados por definição, são elas que registarão os lucros, enquanto as suas próprias sucursais nos países de destino final, mais taxadas, poucos lucros terão.

A prática utilizada para fazer passar os lucros de uma sucursal para outra é a “dos preços de transferência”. São os preços aos quais as diferentes empresas de um mesmo grupo vendem entre si os bens e os serviços. Estes preços são supostos obedecer a um regulamento estrito, estabelecido por cada país ou ao nível multilateral, a OCDE, por exemplo, e não serem diferentes entre duas empresas que pertencem a grupos distintos. No entanto são manipulados largamente pelas empresas.

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O economista americano Simon J. Pack é hoje uma especialista em detectar as incoerências nos preços das importações e das exportações americanas. Os seus últimos achados, apresentados no Verão último, revelam um verdadeiro florilégio de manipulações: a areia importada de Espanha a quase 2 000 dólares a tonelada (o preço mundial médio é apenas um pouco mais de 10 dólares), lâmpadas de lanterna eléctrica vindas de França a mais de 300 dólares (preço mundial cerca de 70 cêntimos), enquanto a França importava dos Estados Unidos metralhadoras a 364 dólares a unidade (que valem mais de 2 000 dólares cada) ou pneus a menos de 8 dólares (que valem quase 200 dólares)…

De acordo com uma sondagem realizada pelo gabinete de auditoria Ernst & Young no final de 2005, junto de uma larga amostra de 476 multinacionais repartidas por 22 países, as estratégias de preços de transferência estão no centro das suas políticas fiscais para 77% de entre elas; 68% (contra 43% em 2000) declaravam integrar a estratégia fiscal de preços de transferência a partir da fase inicial de concepção dos seus produtos. Doravante, os departamentos fiscais das grandes empresas são considerados, a exemplo dos departamentos de gestão da tesouraria, como centros de lucro que devem criar valor para a empresa. As políticas fiscais privadas estão agora entre as mãos de profissionais dos impostos12, de assalariados ou consultores externos procedentes dos grandes gabinetes de auditoria, cujas remunerações maioritariamente são indexadas aos resultados obtidos.

No centro do investimento internacional

Imagina-se frequentemente os paraísos fiscais como actores meramente financeiros: pensar assim é esquecer que desempenham

12 Segundo um relatório do centro de investigação Sustain Ability, o conselho de Administração Segundo um relatório do centro de investigação Sustain Ability, o conselho de Administração Segundo um relatório do centro de investigação Sustain Ability, o conselho de Administração não intervém, neste domínio, em mais de 38% das empresas.

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igualmente um papel essencial nas estratégias de investimento das empresas, ou seja, na divisão internacional do trabalho. De acordo com os dados da UNCTAD, a Conferência das Nações Unidas sobre o comércio e o desenvolvimento, pode dizer-se que os paraísos fiscais representavam, no fim de 2005, um terço das existências dos investimentos directos no estrangeiro das empresas multinacionais, com uma tendência a aumentar desde a segunda metade dos anos 90.

A utilização dos paraísos fiscais pelas grandes empresas está largamente difundida. Cerca de metade do valor dos investimentos directos no estrangeiro das multinacionais americanas encontra-se nos paraísos fiscais. Destinos privilegiados: o Reino Unido, os Países Baixos, as Bermudas e as ilhas britânicas das Caraíbas, à frente da Suíça, Luxemburgo e Irlanda. No fim de 2004, o presidente Bush atribuiu uma amnistia fiscal (uma taxa de imposição de 5,25% em vez de 35%), por um ano, às multinacionais que desejavam repatriar para os Estados Unidos uma parte dos seus lucros escondidos nos paraísos fiscais. Um olhar sobre os fluxos líquidos do último ano (investimentos no estrangeiro menos lucros repatriados) permite rapidamente localizar os países de onde o dinheiro retornou: largamente à frente, os Países Baixos, seguidos do Luxemburgo e da Suíça.

Do lado europeu, 37% do valor de investimentos das empresas francesas e europeias no estrangeiro encontram-se nos paraísos fiscais. E 47% das existências dos investimentos estrangeiros em França são detidos por investidores situados em paraísos fiscais, os Países Baixos, sempre eles, representando um terço do total, seguidos pelo Reino Unido, pelo Luxemburgo e pela Suíça. A União Europeia é ela mesma o seu próprio paraíso fiscal.

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Parte do montante dos investimentos no estrangeiro saindo com destino aos paraísos em % do total mundial

Os investimentos internacionais de carteira (*) estão à frente entre as estratégias de colocações financeiras dos investidores e as estratégias industriais das empresas não muito grandes. De acordo com os dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), os paraísos fiscais detinham no fim de 2004, por alto, um terço dos investimentos internacionais de carteira, contra um quarto em 1997, ou seja, uma clara progressão. À cabeça de lista, o Reino Unido, os Países Baixos, a Irlanda, a Suíça e as Ilhas Caimão.

(*) Investimentos internacionais de carteira: compra de acções que representam menos de 10% do

capital de uma empresa ou de obrigações.

Mas os paraísos fiscais não servem somente para pagar menos impostos sobre os lucros. As multinacionais utilizam-nos também para esconder as suas dívidas, a fim de mostrar aos investidores potenciais um balanço mais são do que é realmente, quando não é para mera e simplesmente falsificar as contas, como efectivamente o descreveu Nicolas Cori no caso dos negócios Vivendi Universal, Enron, Parmalat e Worldcom13. A falsa contabilidade de Enron utilizava para esse efeito 800 sociedades-ecrã dissimuladas por múltiplos paraísos fiscais.

13 “De la grandeur au gouffre. Comprendre les scandales financiers”, éd. Lignes de repères, 2005.

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Com a subida em importância da economia do conhecimento, as grandes empresas escondem igualmente os rendimentos provenientes das suas patentes. Assim, Bill Gates, o proprietário de Microsoft, viu a sua imagem de filantropo um tanto descorada no fim de 2005, devido a um inquérito do Wall Street Journal que revelava que, fora dos Estados Unidos, a quase totalidade dos rendimentos das patentes da empresa era gerida pela sua sucursal Round Island One Limited, a qual, situada na Irlanda, fazia perder cerca de 500 milhões de dólares por ano de receitas fiscais aos Estados Unidos. Soube-se no Verão passado que a Microsoft tinha reagido: alterou o estatuto jurídico da Round Island One a fim de não ser mais obrigada a fornecer documentos públicos sobre as contas da sociedade…

No centro da finança mundial

Quer se considere os activos (empréstimos e colocações) ou o passivo (depósitos e dívidas), os centros financeiros offshore representavam, no início de 2006, um pouco mais de metade da actividade internacional dos bancos, de acordo com os dados do Banco de Pagamentos Internacionais (BPI). Se nos concentramos unicamente nas actividades de mediação (empréstimos e depósitos), o seu peso aparece mais importante: no fim de Março de 2006, 58% dos empréstimos internacionais dos bancos partem de estabelecimentos instalados em paraísos fiscais e 54% dos depósitos internacionais dirigem-se para estabelecimentos situados em paraísos fiscais. Com uma nítida tendência à baixa desde metade dos anos 90 (ver gráfico).

Vamos um pouco mais longe, 42% dos empréstimos internacionais dos bancos (dos quais se diz que quase 60% vêm dos paraísos fiscais) dirigem-se para paraísos fiscais, e 46% dos depósitos internacionais (dos quais se diz que mais de metade vai para paraísos fiscais) têm como fonte actores económicos situados nos paraísos fiscais. E com uma clara tendência para aumentar conforme se mostra no gráfico abaixo.

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Como interpretar estas evoluções cruzadas? Estas significam que se os bancos situados nos paraísos fiscais pesarem cada vez menos na finança mundial, os paraísos fiscais, eles, pesam cada vez mais nas actividades internacionais dos grandes bancos situados em Londres, Nova Iorque, etc. Esta conclusão é somente verdadeira na condição dos dados do BRI que mostram a baixa relativa da importância dos estabelecimentos situados nos paraísos fiscais cobrirem efectivamente o conjunto das suas actividades: quando a instituição se decidiu integrar nas suas estatísticas vários territórios exóticos no fim de 1983, o peso dos bancos situados nos paraísos fiscais ganhou nove pontos de percentagem num trimestre! Hoje, enquanto os profissionais da finança consideram o número de paraísos fiscais em 70-80 territórios (1), o BRI cobre no total apenas uma quinzena de entre eles (2). Pode, por conseguinte, acontecer que a baixa indicada seja apenas o efeito de uma cobertura estatística insuficiente. Uma razão tanto mais provável quanto outros indicadores disponíveis mostram uma subida da importância dos paraísos fiscais na mundialização.

Parte dos paraísos fiscais na origem dos créditos e no destino dos depósitos em % do total mundial

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Parte dos paraísos fiscais no destino dos créditos e na origem dos depósitos em % do total mundial

NOTAS

(1) Ver www.taxjustice.net/cms/upload/pdf/mapamundi.pdf; Guide Chambost des paradis fiscaux, éd.

Favre, 2005.

(2) Os centros offshore são centros financeiros em que as suas actividades são voluntariamente pouco

reguladas pelos poderes públicos. O BRI classifica como centros financeiros offshore os territórios

cujas actividades não cresceram “de maneira orgânica” ou seja organizada, mas não é claro sobre o que

considera como organizada ou não. Ora, uma das características comuns a todos os paraísos fiscais é

comprometer políticas públicas voluntaristas destinadas a atrair os clientes.

Financeiros de mãos sujas

Os grandes bancos internacionais são fortes utilizadores dos paraísos fiscais. Propõem aos seus clientes ricos e às empresas os seus serviços a fim de recuperar uma parte das comissões ligadas à fábrica de opacidade. Assim, todos os escândalos financeiros de grandes empresas destes últimos anos implicaram os grandes bancos internacionais: o Citigroup com a Enron e a Parmalat, o Chase Manhattan com a Enron… O último banco a ser apanhado com a mão no saco foi o Deutsche Bank por ter participado numa rede complexa de fraude fiscal nos Estados Unidos: em Março passado,

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decidiu reduzir os seus lucros anunciados para 2005 em 7%, a fim de colocar de lado algum valor para quando fosse negociar com a justiça americana um acordo por conciliação.

Os paraísos fiscais são igualmente o lugar privilegiado do desenvolvimento das companhias de seguros ditas “prisioneiras”: são sucursais criadas pelas multinacionais para assegurar a totalidade ou parte das suas actividades. As grandes empresas compreenderam que eram financeiramente mais fortes que as suas companhias de seguro habituais e que estavam melhor colocadas quanto ao conhecimento dos seus próprios riscos. Duas razões para se auto-assegurarem com níveis fracos de prémio de seguro e a partir de territórios que contornam os constrangimentos regulamentares dispendiosos que incidem sobre as companhias de seguro. As três últimas décadas conheceram um crescimento excepcional do número de companhias de seguro prisioneiras, cujo número é considerado em cerca de 5 000 no mundo; atingem mais ou menos 20 mil milhões de dólares de prémios e gerem, no total, mais de 50 mil milhões de activos. As Bermudas são o primeiro centro mundial na matéria, à frente das Ilhas Caimão, do Estado americano do Vermont, das ilhas Virgens britânicas, Guernsey, Barbados, Luxemburgo, Dublin, Turcas e Caicos e da Ilha de Man.

A fortuna em “duty free”

“O número de grandes fortunas financeiras privadas [as pessoas que detêm mais de 1 milhão de dólares] quase duplicou nestes dez últimos anos, passando de 4,5 milhões de indivíduos em 1996 para 8,7 milhões em 2006", indicava em Junho passado o World Wealth Report publicado por Capgemini e Merrill Lynch. "O seu património financeiro foi multiplicado por dois durante este período, passando de 16 600 a 33 300 mil milhões de dólares, ou seja, um crescimento anual de 8% por ano". Um maná para todos os gestores de fortunas, grandes utilizadores dos paraísos fiscais, captando a Suíça, só por si, mais ou menos um terço do mercado.

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Um método para evitar pagar demasiado impostos sobre os rendimentos das suas fortunas é domiciliar-se num território de céus fiscais clementes. O Mónaco, São Marino, as Bahamas especializaram-se nomeadamente neste mercado, que lhes permite atrair alguns grandes proprietários e celebridades do desporto, do espectáculo show bizz, etc., com o risco de se ser qualificado de traidor à pátria: recorde-se os debates fortemente acalorados que suscitou o anúncio possível de uma mudança fiscal de Laetitia Casta em Londres em 2000…

Um outro método consiste em registar uma sociedade num paraíso fiscal que receberá os super-salários ou os royalties a proteger. Permite igualmente escapar aos direitos de sucessão ou às pensões alimentares, no caso de divórcio. É de resto por ocasião de um processo de separação que se soube que os jogadores de futebol da equipa do Arsenal, entre os quais Thierry Henry, faziam pagar os seus prémios de jogo em Jersey… Geralmente, os rendimentos são aplicados em vários territórios e em várias sociedades, geralmente graças a sociedades muito específicas, os trusts (*), que permitem um nível elevado de dissimulação de identidade. Este pode ser reforçado de diferentes maneiras: as acções do trust estão "ao portador" (a pessoa que detém a acção, facilmente revendável, é considerada como a proprietária, ainda que o verdadeiro proprietário esteja noutro lugar); ou o trust prevê um flee clause (cláusula de fuga) que permite, se necessário, transferir imediatamente o dinheiro escondido para um outro órgão jurisdicional. A literatura especializada qualificou "de turistas permanentes" estes ricos domiciliados um pouco por toda a parte no mundo. Turistas em residência prolongada nas zonas de duty free, em certa medida.

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Número de pessoas com um património financeiro (fora residência principal) superior a um milhão

de dólares e evolução do total do seu património financeiro, em milhões de milhões de dólares

(*) Trust : acordo contratual entre duas pessoas privadas que permite instaurar uma barreira entre o

detentor legal de um activo e o seu beneficiário real.

As Ilhas Caimão ultrapassaram as Bermudas como primeiro lugar mundial de registo dos fundos de investimentos especulativos (hedge funds). De acordo com a Associação dos Serviços Financeiros local, 80% dos fundos de investimentos mundiais são aí registados e a zona atrai de 45% a 65% dos novos fundos, gerindo um montante superior à 1 000 mil milhões de dólares. Aquando de uma conferência reservada aos profissionais do sector que ocorreu em Setembro de 2005, os intervenientes sublinharam a natureza da vantagem comparativa da qual dispõem as Caimão: uma soberania a vender, nomeadamente aos advogados que têm uma grande influência na legislação local e podem obter o que desejam em menos de uma semana! Um exemplo do papel essencial desempenhado pelos profissionais do direito no funcionamento dos paraísos fiscais.

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Os prós (do não) direito e (falsos) números

De acordo com a elegante fórmula dos especialistas Thierry Godefroy e Pierre Lascoumes, peritos legais, contabilísticos e fiscais internacionais são “os abre-portas” dos paraísos fiscais14. O seu papel consiste em apoiar-se no vago e nas incertezas morais e jurídicas das regras fiscais e financeiras, a fim de determinar estratégias eficazes para contornar as leis. Duas razões, pelo menos, explicam a sua importância: o crescimento e a diversificação dos centros offshore que permitiram alcançar um público mais numeroso e mais diversificado; o desenvolvimento dos produtos financeiros sofisticados, cujas manipulações são complexas e reclamam a experiência de especialistas.

Quem são eles? Os bancos de investimento e os especialistas fiscais independentes, mas sobretudo o famoso “Big Four”, os quatro grandes do conselho internacional: KPMG, Ernst&Young, PricewaterhouseCoopers e Deloitte Touche Tohmatsu. Exercendo ao mesmo tempo actividades de conselheiros e verificadores nestes dois domínios, controlam o mercado das 500 maiores empresas multinacionais nestes dois domínios. ontrolados por trusts situados nas Bermudas e na Suíça, cada um opera em cerca de 140 países.

Os paraísos fiscais representam a ferramenta de base destas grandes empresas. Como declarou em Setembro de 2005 Loughlin Hickeys, chefe do departamento de impostos da KPMG e nomeado em Dezembro de 2005 o homem mais influente do mundo em matéria de políticas fiscais pela revista The Business: “Eu estou orgulhoso que a KPMG esteja presente nestes territórios... Honestamente, se empresas como a nossa, que se guiam por princípios, não estão nestes territórios, é porque não se deseja ajudá-los. Esta ode ao desenvolvimento dos pequenos países não parecia ser partilhado pelo fisco americano que obrigou a KPMG a pagar, em Agosto de 2005,

14 Le capitalisme clandestin, éd. La Découverte, 2004.

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456 milhões de multa após uma investigação do Senado ter destacado o seu papel na fraude fiscal num sistema de larga escala15.

Estas práticas são regularmente condenadas, mas sem grande efeito dissuasivo,como o declarou à imprensa um tesoureiro do um dos grandes gabinetes britânicos: “Pouco importa a legislação que prevalece, os tesoureiros e os conselheiros jurídicos encontrarão sempre um meio para as contornar. As regras são as regras, mas qualquer regra é feita para ser posta em causa”.

O dinheiro criminoso reciclado

Não se tem certamente nenhuma ideia séria sobre os montantes de dinheiro do crime (ou do terrorismo) que passam pelos paraísos fiscais. Para a ter, e seria apenas uma estimativa aproximada, teríamos necessidade de conhecer o número de negócios do crime, a taxa de lucro, a taxa de poupança, a sua localização… Tantas estimativas totalmente impossíveis.

Os mafiosos utilizam de modo igual tanto os grandes centros financeiros offshore como os pequenos lugares exóticos, mais discretos. No fim de 2005, uma declaração de Callum McCarthy, patrão de Financial Serviços Authority (FSA), a agência de regulação financeira britânica, fez sensação: declarava dispor de informações que mostravam que grupos procedentes do crime organizado colocam homens seus nas instituições financeiras londrinas a fim de aumentar o seu conhecimento dos mecanismos de controlo interno e com a finalidade de os contornar.

Os criminosos passam o produto dos seus crimes pelos paraísos fiscais para poderem investir em seguida, e discretamente, na continuação das suas actividades ilegais, mas também para prepararem a sua reforma e o futuro

15 “Etats-Unis: la fraude fi scale devient une industrie”, “Etats-Unis: la fraude fi scale devient une industrie”, “Etats-Unis: la fraude fi scale devient une industrie”, Etats-Unis: la fraude fiscale devient une industrie”, ”, , Alternatives Economiques n.° 222, Fevereiro de 2004, disponível nos arquivos de Alternatives Economiques.

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dos seus filhos. Os centros offshore são assim os filtros mágicos que apagam das memórias a origem criminosa das fortunas para permitir, numa geração ou duas, as alianças com a boa sociedade…

Será que os paraísos fiscais se aproveitam do maná financeiro que atravessa o seu território? Certas pequenas economias insulares podem parecer ricas, mas as desigualdades aí são muito profundas. O sector offshore atrai profissionais expatriados que permanecem apenas alguns anos, concentrados em zonas privilegiadas que continuam a estar lado a lado de uma economia interna bastante pobre. Os locais não dispõem de um nível de qualificação suficiente para ocupar os empregos remuneradores, mas devem sofrer custos imobiliários crescentes estimulados pelas compras dos expatriados. E o futuro não é necessariamente cor-de-rosa para todos. A concorrência entre paraísos fiscais aumenta, e a sua extrema dependência deste tipo de actividade torna-os muito frágeis. A estratégia de paraíso fiscal só é hoje compensadora para as maiores praças financeiras que a põe em prática.

Christian Chavagneux, “Les paradis fiscaux, piliers du capitalisme”, Alternatives Economiques,

disponível em: www.alternatives-economiques.fr/

les-paradis-fiscaux--piliers-du-capitalisme-_fr_art_205_24148.html.

Ciclo organizado pelos docentes da disciplina de Economia Internacional

da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

Colaboração do Núcleo de Estudantes de Economia da Associação Académica de Coimbra

Apoio da Coordenação do Núcleo de Economia da FEUC

Com o apoio das instituições:

Reitoria da Universidade de Coimbra

Teatro Académico de Gil Vicente

Caixa Geral de Depósitos

Fundação para a Ciência e a Tecnologia

Ciclo Integrado de Cinema, Debates e Colóquios na FEUC

DOC TAGV / FEUC

2008 - 2009

Economia Global, Mercadorização e Interesses Colectivos

Textos seleccionados, traduzidos e organizados por:

Júlio Mota, Luís Peres Lopes e Margarida Antunes

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