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SETE DIAS (DIA SEIS) Não é possível guardar aqui dentro não sem muita angústia o cheiro de gás (a porta entreaberta) sem que caiam lágrimas Volúpia, meu bem, me deite em seus olhos e me cavalgue, como se fosse uma criança, como se em suas mãos coubessem meus sonhos, como se entre os dedos, Cariño, sentisse seus pêlos e, Bela Criatura, pudesse tocar-te para sempre. Mas nada é real – os vultos me tomam – e o silêncio do fundo no fundo do peito sem eco possível me mostra o caminho solitário e surdo por onde meus pés atravessa- rão. “Vem”, a voz poderia ter dito. “O alerta é uma peça de roupa suja na janela. Você entra. Te espero de qua- tro no Corredor Espartano” e eu teria dito que sim, mas nada aconteceu. “O Diabo tem em nós companheiros de viagem: Nada há para temer. As bandeiras no céu da cidade, todas ne- gras, inflamadas, parecem expressar nosso desejo por mudança, mas na verdade não é isso, posto que nada fizemos para que o futuro mudasse em nosso favor.

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SETE DIAS (DIA SEIS)

Não é possível guardar aqui dentronão sem muita angústiao cheiro de gás (a porta entreaberta)sem que caiam lágrimas

Volúpia, meu bem,me deite em seus olhos e me cavalgue, como se fosse uma criança, como se em suas mãos coubessem meus sonhos, como se entre os dedos, Cariño, sentisse seus pêlos e, Bela Criatura, pudesse tocar-te para sempre.

Mas nada é real – os vultos me tomam – e o silêncio do fundo no fundo do peito sem eco possível me mostra o caminho solitário e surdo por onde meus pés atravessa-rão. “Vem”, a voz poderia ter dito. “O alerta é uma peça de roupa suja na janela. Você entra. Te espero de qua-tro no Corredor Espartano” e eu teria dito que sim, mas nada aconteceu.“O Diabo tem em nós companheiros de viagem: Nada há para temer. As bandeiras no céu da cidade, todas ne-gras, inflamadas, parecem expressar nosso desejo por mudança, mas na verdade não é isso, posto que nada fizemos para que o futuro mudasse em nosso favor.

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Mas abre as cortinas mesmo assim e salta para dentro dos muros que te espero ávido, sedento” e eu teria dito que sim, mas nada aconteceu.Somos desimportantes, talvez. E isso me engasga, mi-nha Ave Daninha. Pensar que traremos nos ombros so-mente o sabor da falta é algo que me deixa tenso, que in-surge em combustão aqui dentro (o espelho se quebra) e a vontade de acertar no grito é maior agora, te digo, Criança Lunar, enquanto limpo-me a garganta, rasgan-do o céu da boca com as mãos sujas de mar e areia.

Dentro, bem dentro.Profundo (escuro lá dentro)estaremos a salvo, mas tambéminaudíveis – e de que valerá?

Peço que tome cuidado, e tomo emprestado das florestas a coragem necessária para abrigar no peito dos pés e das mãos nossos sonhos de amor e liberdade, e é por ti que os usarei como armas longilíneas

e por ti também correrei (veias abertas) o mundo (es-tradas e buracos-negros) e beijarei rapazes e moças, lamberei mamilos e chuparei paus, regurgitarei paixões, cantarei canções febris, arranharei peles insolentes e, insolente, rosnarei com toda a força que possa rosnar, entre a rua e a louça, aqui e ali, contra a lua, em direção ao infinito.

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Meu Anjo-Demônio,não sei viver sem ti.Tuas mãos me acenam como facas,mas eu permaneço.Permaneço na tua, meu Mena-Cunhã. Mantenho-me aqui, seguindo adiante (os nervos sobre a pele) o peito revolto como as águas de Novembro, pegando os rios como estradas, abandonando mares e filhos,deixando tudo para trás.

Decerto estou bem mais sozinho e tambémDecerto estou bem mais corajosoDecerto estou bem mais sujo e tambémDecerto estou bem mais furiosoDecerto estou bem mais pálido e tambémDecerto estou bem mais luminoso

Meu canto não é uma festa,minhas palavras não são acalanto,meus mitos não são invenção,minhas palmas não trazem linhas,minhas portas não estão abertas,meus pés não sabem o caminho:

Agora e só agoratomarei as rédeas por definitivosem mentiras nem grandeselucubrações.Tornarei a usar todas as palavras daquele período – ódio, sangue, vômito, vingança –e as transformarei todas em

AMOR.

Uirá dos Reis