Seu Cachorro é o seu Espelho - Kevin Behan

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Transcript of Seu Cachorro é o seu Espelho - Kevin Behan

  • Em Seu cachorro seu espelho, o famoso treinador de ces Kevin Behan prope um radical e indito modelo para a compreenso do comportamento canino. Com ideias originais e uma escrita cativante, o livro est destinado a mudar completamente a maneira de se ver o melhor amigo do homem. O autor usa toda a sua experincia para forar-nos a uma reflexo de quem realmente somos, o que os ces representam em nossa vida, e por que estamos sempre to atrados um pelo outro.Fugindo das teorias tradicionais, que h anos tentam explicar as aes dos cachorros, Behan traz tona a ideia de que as atitudes caninas so movidas por nossas emoes. O co no responde ao seu dono com base no que ele pensa, diz ou faz. O co responde quilo que o dono sente. Este livro abre a porta para uma compreenso entre as espcies e, talvez, para uma nova compreenso de ns mesmos.

  • Prefcio

    Oproblemanocomoco

    RRosy acocker spaniel de Linda, uma psicoterapeuta, e sua histria

    ilustra bem o tema deste livro. Linda apareceu em minha fazenda comRosy debruada no banco do passageiro de um carro de luxo recm-lavado, encerado e, no sei como, ainda brilhante, j que acabara depercorrerumaestradalamacentaatseudestino.Pordentro,ocarrotinhaestofamentode couro claro, imaculado.QuandoLindaabriuaporta,Rosysaltou sobre seu colo e correu para mim, com mostras de exuberantecordialidade.Emseguida,nocho,noparoudesemovimentar,puxandoaguiaatondepodiae tentando fuarnasujeiraao ladodaestrada.Lindamedeuumoi rpido,e icouquaseo tempotodosvoltascomRosy,quefarejava os milhares de aromas locais, erguendo a cabea de vez emquando para examinar o horizonte longnquo e novo sua frente.Estremeci com a ideia de suas patas imundas emporcalhando o carroirrepreensivelmentelimpo.Mas,dealgummodo,eusabiaqueLindanoseimportavacomisso.

    Por im, conseguimos impor a ordem e comeamos nossa consultapercorrendoumatrilhadaminhapropriedade.Essa trilhaoquerestoudaumaantigaestradadecarruagensqueatravessavaVermontacaminhodeAlbany.Namaiorpartedeseutrajeto,serpenteiaporentreosbosques,atterminaremumcampoquerodeiaumlagoabandonado.Cesedonosaparecem por l de vez em quando, a im de espairecer. Alguns ceschapinham na gua, alguns vagueiam por ali cata de pedaos de pau,

  • algunscomemgrama,algunsentramnamata.Apscontemplarapaisagemporalgunsminutos,voltamos.

    No caminho, vou anotando tudo o que Linda diz. Vez ou outra,respondossuasperguntas,omaissucintamentepossvel.Noquerofalarnada do que tenho a lhe dizer antes que ela me conte tudo o que veiocontar.

    Quando trabalhava com meu pai, John Behan, na Canine College(Universidade Canina), em West Redding, Connecticut, passava horasperguntando ao cliente como ele tratava e treinava o seu co. semelhana de meu pai e outros treinadores da equipe, eu queriadescobrir o momento exato em que o cachorro fazia esta ou aquelaassociao, desenvolvia este ou aquele mau hbito, ou quando e como odono comeava a perder as qualidades de lder aos olhos do co. Aconsultacomeavano instanteemqueodono tiravaocachorrodocarro.Papaimeensinouaobservarbemquemestavanocomandoospais,osfilhosouoco?

    Hoje,faoaosclientesasmesmasperguntasquefaziahtrintaecincoanos: Que idade tinha seu co quando voc o pegou?, Que tipo dedisciplina voc adota comele?, Quandonotouoproblemapelaprimeiravez?. Mas, embora faa as mesmas perguntas e converse tanto quantoantes,noprocuromaisinformaessobreohistricodoconemsobreamaneira como adquiriu este ou aquele comportamento. No tento maishierarquiz-lonamatilha.Nohmaisnadaqueeuqueira saber sobreRosy; ela se revelou completamente durante os primeiros minutos denosso encontro. Ao contrrio, fao perguntas e anoto as observaes deLinda para encoraj-la a reletir, evocar e indagar, pois, quando ela falasobreRosy, seus sentimentosmais profundos vm tona na escolha daspalavras,notomdavozenostermosqueenfatizaemumafrase.Oquemeimporta comoLinda v seu co, como interpreta seu comportamento e,maisimportanteainda,comofazRosysesentir.

    O problema de Rosy a agressividade com crianas; porm, seucomportamento se caracterizaporumestadoparticularmente frentico econlitante.Elaabanaorabomesmoquandoameaaerosna,nohavendo

  • dvidas de que morder embora, at hoje, Linda tenha conseguidoimpedirquemachucassealgumacriana.AchointeressanteouvirdeLindaque,nomeiodeseusarrebatamentos,pode-seouvirumasriede latidosaltosqueculminamemumsomrouco,estrangulado,comoseRosytivessealgumacoisaentaladanagarganta.

    Linda j tentou resolveroproblema.Adotouomodelopredominantepara mudana de comportamento: seguiu o regime do nada de graa,pelo qual um cachorro temde ganhar com seu esforo cada prazer ouseja, aquilo que chamo de ineicincia subsidiada. Tentou o cabresto,maisoumenoscomoodoscavalos,masqueapertamuitoo focinho,paraimitaramaneiracomqueamedisciplinaseusilhotes.Ateoriaquesetrata de um meio natural com o qual os ces aprendem a respeitar asordens de uma igura autoritria. At agora, nada disso funcionou pormuitotempo.Hpouco,Lindacomeouasaircomumhomemquetemumilhopequeno,demodoqueaestratgiadeevitarcrianasparasolucionaroproblemanomaisvivel.Agora,Rosytemdeaprenderaconvivercomcrianas.

    Depois da caminhada, sentamo-nos mesa de minha cozinha.EnquantoLinda tomach, seguroRosypelacoleira,a imde impedi-ladese arremessar para todos os cantos do recinto. Linda, notando nossobebedourodecespertodageladeira, sugerequeRosy talvezestejacomsede.Achoessasugestocuriosa,poisacabamosdepassarporumriacho,um lago e vrias poas de gua. Deixo que Rosy se aproxime dobebedouro; ela o fareja, mas logo se sente atrada por outra novidade.Nossocorgi,Barley,apareceparaveroqueestacontecendo.Osdoiscesesfregam os focinhos e ento, surpreendentemente, Barley se afasta emdireoportadafrente.Linda,erguendo-seumpoucodacadeira,dizquetalvez Barley queira sair. No sabe que Barley evita Rosy por causadaquiloqueestcaptandonomomento.

    Durante a caminhada, Lindame contouqueRosy fora comprada emumpetshopdeManhattanporumaamiga,masqueacabara icandocomela. Segundo suasprpriaspalavras, Linda resgataraRosydeumavidade casa em casa, ao longo da qual, pelo que sabia, jamais tivera uma

  • experinciaruimcomcrianas.Defato,nocomeo,sedavabemcomelas.Lindaparececonfusa.NosabeseRosytemalgumdefeito;talvezsejaumacadelamouquesetornoum.

    Comojpercebitudo,horadeexplicarRosy.Seiquenohnadadeerradocomela;oquetemosdeesclareceropapeldeLinda.Emtornodesse papel, Linda cristalizou uma hierarquia de sentimentos qual seucopassouaresponder.Oscessecurvamaopapeldosdonos:issoqueosmotiva. Uma vez que o papel afeta Linda, ela no consegue resistir aoapelo de um co e, por isso, se sentiu imediatamente responsvel porBarley.Emoutraspalavras,oqueLindaatribuiaumco,acimaealmdoqueumcoprecisaouquer,diretamenteproporcionalaoqueatribuiasimesma.

    A interpretao convencional do que se passa entre Linda e Rosy esta: Linda no est tratando seu co como um co,mas como um beb,tentando fazer com que Rosy compense alguma carncia emocional delaprpria.Com isso,Linda ignora seus instintoseno lhedoqueos ces,segundosepresume,desejamde seusdonos: liderana irme,orientao,consistncia, motivao positiva e todo o resto do catecismo canino. Eu,porm,novejooscessobesseprismaporquesemelhanteanlisesfazsentidoemumnvelmuitosupericial.Averdadequeocomportamentodo co sempre muito atraente para seus donos, no importa quecomportamento seja esse, porque o elemento subconsciente da mentehumana (que escapa nossa percepo) uma conscincia animal, amesmaqueexistenoco.Elanofazideiadotemponemdaconsequnciadosatosenoconsegueteroutropontodevistaanoserodomomentopresente.Nossamenteemocionalumamenteanimalenosabeque,secravar os dentes na carne tenra de uma criana, a criana sofrer. Omesmosedcomacrianaquegrita Queroquevocmorra, ignorandototalmenteosigniicadorealdessaspalavras.Assim,oqueimportantenadinmica emocional entre um co e seu dono no o humano vendo umhumanonoanimal,masoanimalvendoumanimalnohumano.

    A imdeajudarLindaavisualizaroquepretendoexplicar, pegoumblocodenotas e, comasdevidasdesculpaspela formacanina,desenhoa

  • iguradeumco.EstouprestesalevarLindaparaalmdospensamentoshumanos, para as profundezas da esfera dos instintos, para dentro damentedoseuco.

    Antes de apresentarminha teoria, peo a Linda que esquea tudo oquepensa saber sobre ces eno encareRosy comoum ser dedireitoprprio,comoumagenteintencionaldotadodeintelignciaemoldadoporuma personalidade oriunda de genes ou experincias de vida. Queroexplicar a Linda que Rosy no uma conscincia individual, provida devontade prpria e motivada por ambio pessoal, alm de um sensoperfeitamentedelimitadodo eu.A conscincia deum coderivade suaparticipao em uma vontade mais ampla, suscitada pela emoo eforjada pelos sentimentos. A emoo no algo que acontece dentro dens,separadaediferentedoqueaconteceforadens.Emoo,naturezaesensibilidadecompemumaintelignciaemrede inteiria.Umavezqueinterpretoaemoocomoumaconscinciaemredeecomoaenergiaquetanto anima quantomolda os ces, quando observo umdeles sei que, narealidade, estou observando a rede emocional qual o co se encontraligado. Seu comportamento e personalidade so uma manifestao eexpresso de emoes e sentimentos que ele recebe daqueles aos quaisestligado.Combaseemmeuconvviocomces,euagoraosvejocomoumrelexo(quevive,andaerespira)dadinmicaemocionaldodono.Oquesepassa dentro de Rosy uma imagem especular do que a prpria Lindasente.QuandoLindafaladeRosy,nofaladeRosycomodeumco,deumseremocionalligadoaumarede;fala,naverdade,deseuprpriocorao.

    Peo a Linda que ignore a noo de que o crebro a fonte daintelignciadeRosy:amentedeRosynoestemseucrebroeo corpodeRosynoalgoqueapenascarregasuacabeapora.Peo-lhe,antes,quepensenocorpodeRosycomoumcanalcondutordeenergiaeessaenergiaaemoo.Na iguradocachorro,desenheiuma largasetaparaindicar o corpo como um canal para a transmisso de energia. A seguir,escreviemoodentrodocorpo-canalaimdemostrarqueaemooaenergiatransmitida.Sexisteumaemoo,umaforadeatraopositiva.Expliquei a Linda que, quando um cachorro tenta exprimir emoo por

  • meio de aes, encontra resistncia, o custo inevitvel da vida aqui noplaneta Terra, e, para indicar onde essa resistncia internalizada earmazenada,rabisqueiumabolavermelhanaregiodointestino/quadris,na extremidade posterior do cachorro. Essa regio constitui o ncleo dosenso do eu de um co; com a bola, localizei seu centro de gravidadeemocional.Assimcomoo centrodegravidade sicodocorpo, elepode sedeslocarpelocorpo,dependendodasforasexternasqueestejamatuandosobre ele. O cachorro ento projeta esse sentimento de resistnciacomposto naquilo que o atrai, e por isso desenhei uma bola vermelhadentrodeoutrocachorro,queporsuavezdevolveessesentimento,emumprocesso contnuo como duas pessoas jogando pingue-pongue ou doisdanarinosintercambiandoseuscentrosdegravidadefsicosmedidaquegiramerodopiam.

    Esse processo de relexo, pelo qual a emoo se desdobra emsentimento, mantido pelo impulso sempre presente, intrnseco emonolticodaatrao.Lembraavontadedeentrarnocarroeviajarparaalgumlugar,talvezdecostaacosta,vontadequenodouvidosanlisecusto-benecio inicial. o At que ponto quero estar na Califrnia?contra a resistncia do At queponto dicil ir Califrnia?. Se, nessemomentoeduranteocaminho todo, conseguirmossentiraindaavontadede viajar, ento viajaremos da costa leste costa oeste sem nenhumconflito.

    No entanto, sempre que esse processo de relexo de energia quevai e vem entre as partes, gerando uma interao interrompido, aemoo se acumula como gua por trs de umdique. Quando a fora deatraoatingeumpatamarcrticodeintensidade,ouseja,umpontoacimadacapacidadedetolernciadocorpocomocanal,odiquecedeeoinstintoultrapassa a capacidadede sentir.Deixa de haver sincronizaona trocadeenergia.

    Linda pensa queRosy odeia crianas.Mas a palavra dio (ou cime,rancor,rebeldia,despotismoousubmisso)noseaplicaaumconemaanimal algum. Digo isso porque acredito que a origem de todocomportamentoanimalsempreumimpulsodeatraoenodeinteno.

  • Essa atrao visceral e est sempre presente; por causa dela, mesmoduranteumepisdioagressivo,Lindapodeobservar(eicaconfusa)Rosyagitando a cauda com uma expresso momentnea, passageira, deafetividade,queaparecedevezemquandocomoosolsemostrandoentrenuvenstempestuosas.AverdadequeRosysesenteatradaporcrianas,mas entra em pnico porque h mais energia tentando percorrer seucorpo, como canal de emoo, do que seu corpo pode suportar. Emconsequnciadessasaturao,Rosynoconseguesentirseucorpo.Assim,associaessacondioaterradorascrianasesedescontrolatodavezquev uma. No fundo, quer desesperadamente se relacionar com crianas,mascadacontatoapenasaumentaacarga.Cadacontatoapenasintensiicaseu senso de bloqueio. Quando h sobrecarga, o objeto de todocomportamento expelir do corpo essa sensao insuportvel o queocorreporqueelaestrelacionadaaoterrormximodetodoorganismo,odefracassar.

    Linda se esforou por mudar o comportamento de Rosy tentandoformarnovasassociaesemseucrebro.OqueeladiziaaRosyera: Sevoc se comportar bem com as crianas, ser recompensada; se secomportar mal, ser castigada. Procurava despertar instintos diferentesnocrebrodeRosycomunicando-lhe:Soualderdesuamatilha;obedea-mequandoestiverpertodecrianas.Prescreveu-lheinmerosexercciospara esgotar sua energia e, nos momentos de calma, deu-lhe ateno eafeto,esperandocom issoseramada.No imdascontas,Linda trataRosycomo se Rosy pensasse, fornecendo-lhe uma srie de boas razes paraRosyconcordaremfazeraquiloqueelapensaqueRosydeveriafazer.Masoproblema: cachorrosnopensam.No raciocinam,no fazem ideia domotivo pelo qual as coisas acontecem. Na realidade, s o que Linda estconseguindoalimentarumsistemadeenergiaqueoscilaemseueixo,equantomaisenergiaelacolocanessesistema,independentementedesuasboas intenes, maior se torna a oscilao. Trata-se de um princpio dafsica.

    Linda fezde tudopara convencerRosy a pensar sobre as crianasde umamaneira diferente,mas o paradoxo que Rosy no pensa nada.

  • RosynosenteenosenteporcausadoquevaipelacabeaeocoraodeLindaquandoestpertodecrianas.

    (Nota:comohabitualconsiderarospensamentosearazohumanasinnimos de inteligncia, quero deixar claro que, quando airmo que oscesnopensam,noestoudizendoquenosointeligentes.Naverdade,eles so inteligentes,masnopela razo e, sim, pelo sentimento. Sentir oque outro ser est sentindo no pensar, mas exercitar a mais elevadaformadeintelignciacomquesepodeserabenoado.)

    Ataqui,emnossadiscusso,concentramo-nosinteiramenteemRosy.AideiadeumcocomorelexoemocionaldeseudonotemsidoparaLindaum conceito totalmente abstrato. Ela o examina e avalia, tentando comtodas as suas foras entend-lo, mas ele vai contra a interpretaocostumeiradocomportamentoanimal,sobretudoodosces.Paraajud-laaentender,passoadiscutirLindaeRosyjuntas.Digo-lhequeelaeseuco na verdade, todos os donos e seus ces formam uma mente grupalparticularequeabsolutamentetodoatodeumcoconstituiumareaodinmicageraldogrupo.Oscesnoencaramnadasporelesmesmos.

    Os ces se alinham emvolta do sentimentomais forte de seu grupo,comoumaagulhadebssolaemumcampomagnticopoderoso.Issoquerdizerqueumconoprecisaterumaexperinciadiretaparaabsorv-la.Ainal, no importa qual lobodo grupo v a coranamoita oupercebe oboi-almiscarado mais fraco no crculo defensivo do rebanho, o grupointeiro ica instantaneamente energizado e pronto a alinhar-se em voltadaquele que estmais disposto e eletriicado.s vezes, o loboque chegaporltimopelejaoqueabateapresa,poisacargapodepassardeumindivduoaoutronogrupo.Conformedesenhei emmeucaderno, a cargavaievem.

    J que os humanos tm maior capacidade emocional que qualqueranimal e experimentam e adquirem mais resistncia emocional com apassagemdotempo(poisvivemmais),pordeiniopossuemmaiorcargaemocional que qualquer grupo de ces. isso que um co ser levado aexprimiremseucomportamentoemesmoemsuapersonalidade,talcomoumabarradeaosempreafetadasimplesmenteporestarnocampode

  • ummpoderoso.Eu disse a Linda que bastante singular o fato de, quando Rosy se

    ressentedavisooudosomdeumacriana,essacargaicarentaladaemsuagarganta,parecendoqueelaestsufocando.E,pelopontodevistadeRosy, est mesmo: os ces no conseguem distinguir seus corposemocionalefsico,assimcomoascrianaspequenasnosabemdiferenciararealidadedaquiloqueimaginamvividamente.Ocorpoemocionalabsorveocoetudoaquiloqueoatrai.Quantomaiorforaforadaatraoentreocoeoobjetoexterno,maisprofundamenteesseobjetoseimplantarnosprocessossicosinternosdoco.Assim,umanimalexperimentaumobjetoexterno de atrao internamente, por meio de seus processosinvoluntrios,ossistemasisiolgicoeneurolgicoresponsveispelafomee o equilbrio. O animal experimenta a realidade externa como se estamovimentasseforasdentrodeseucorpo,comoseseucorpofosseafetadoporalgoqueestivesseforadele.

    Como o corpo emocional apreendido visceralmente, os objetosexternos so experimentados internamente de fato, foi isso que Pavlovdescobriu: o somde uma campainha pode afetar o processo digestivo deum co quando este se sente fortemente atrado por alguma coisa.Oanimalsconheceomundoexteriorgraasaoquesentedentrodeseucorpo.

    Uma vez que o corpo emocional o meio pelo qual Rosy temconscinciadeseucorpo sico, considerando-sequepode ter conscinciadealgumacoisa,umacrianaliteralmenteapegapelagarganta.Comumacanetavermelha, traoumabolanagargantadeRosypara indicarqueacargaquesemovimentapelocanalsedetmnaqueleponto.

    Depois de explicar isso a Linda, ergo os olhos do desenho e vejolgrimas escorrendo por suas faces. H um longo silncio, at que elaenxuga os olhos e se recompe. No sei o que dizer, pois mal nosconhecemos, mas sem dvida palavras so desnecessrias no momento.Linda comea a entender que o que acontece com Rosy no culpa deRosy.

    Lembra-se entodeque, hdez anos, teveparalisia total das cordasvocaisenoconseguiufalarporsemanas.Omdicoatribuiuoproblema

  • inlamaodeumnervovocal,masLindasempresuspeitouqueessanoera a causa. Sentiaquehavia algo ldentroqueprecisavaprpara fora,masnosabiaoqu.Ento, coisaestranhaparauma terapeuta, comoelaprpria agora reconhece, to logo o problema desapareceu, ela o tiroucompletamentedacabea.

    Enquanto enxuga as lgrimas e relete, Lindadescobre por que estchorando.NoporcausadeRosy,noporcausadesuagarganta.porcausa de suas ilhas. Conta-me que uma alcolatra em recuperao e,quando suas ilhas eram pequenas, no tinha tempo para elas. Seucasamento terminou, e ela acha que traiu as ilhas, fracassandointeiramentecomome.IssooqueLindamaislamentanavida.Portanto,aest:suamentedizaverdadedeseucorao.

    Felizmente, Linda reconstruiu a vida com as ilhas, mas a dor e oimpactodaperdacontinuamalojadosprofundamenteemseucorpo.Rosyafetada por crianas porque, nesta questo, h em Linda muita emoono resolvida.Me jovem,Lindano admitia, nempara simesma, que sesentiaacuada, comoseas ilhasapegassempelagargantaea irritassem.Admitir issosigniicariaparaelaquenoconseguiaamare,portanto,nomerecia ser amada. Nunca conseguiu se livrar desse fardo e, quando vumame com seu ilho, no importa o que faa ou pense, o fardo s setornamaispesado.Rosysenteisso.

    Comoos ces so sociveispornatureza,Rosy levadaa exprimiroqueLindanoexprime,independentementedomotivodessaincapacidade.RosytemmedodecrianasporqueLindareceiaoqueascrianasafazemsentir:culpa.

    Asseguro-lhe que podemos curar Rosy, mas o primeiro passo serLindaaceitarocomportamentodeRosycomoumrelexodoquesepassanocoraodadona.Lindaprecisaridentiicar,umporum,osjulgamentosque aloraro daqui por diante. Quando reconhecemos o fardo de nossococomonosso,ocoraocomeaacuraroqueprecisasercuradodentrode ns; nossos julgamentos vm tona, mesmo que os tenhamosreprimindoparanossentirseguros.Depoisquecontarmosansmesmosa verdade sobre o que realmente sentimos, nosso co no mais

  • reproduzir esse comportamento de maneira dramtica, para chamarnossaateno.Recuperaremosnossavontade.OimdahistriaqueRosyviveu feliz sua vida com Linda. Anos depois, quando Rosymorreu, Lindame contou que, graas a esse trabalho, ela se tornara suamaiormestra.Issorealmentemecomoveu.

    Ataquelediaemminhacozinha,LindapensavaquehaviaresgatadoRosy. Mas nosso co o canrio no poo damina das emoes. Omodocomo respondemos aos sentimentos que as emoes no resolvidasprovocam em ns determina a maneira como tecemos nossa rede nosrelacionamentos, no trabalho e na sociedade em geral. Acreditosinceramente que a histria de uma pessoa pode ser deduzida dacompreenso de seu co. Quando percebemos um problema decomportamentoemumco,antesdeanalisaromensageiro,devemosouviramensagem. O que faremos depois com amensagem depende de nossocorao. Ningum sabemelhor o que sentimos do que nsmesmos.Massempredevemosnoslembrardeumacoisa:oquequerqueumcofaa,aresponsabilidade nunca dele, sempre nossa. Rosy apareceu parareconduzir Linda a seu corao, para p-la novamente em contato comumafatianimadeumaintelignciaininita,averdadedaquiloqueeladefatosente.

  • Introduo

    E mThe Botany of Desire [A Botnica do Desejo], Michael Pollanobserva que, na Amrica do Norte, existem dez milhes de cachorros eapenas dezmil lobos. Ele pergunta, ento: O que o cachorro sabe sobresobrevivncia neste mundo que seu ancestral selvagem ignora?. (E euacrescentaria:todososoutrosanimaisigualmente.)Umavezqueproponhoapresentarnadamenosqueumnovoparadigmaparaomodocomocoeser humano, especialmente co e dono, devem interagir, vou desde jresumirminhapremissa:

    Coedonoformamumamentegrupal.A melhor explicao para tudo o que diz respeito aos ces, da

    evoluo do lobo domesticao do cachorro e ao incrvelrelacionamentoemocionalexistenteentreoanimaldeestimaomodernoe seu dono , que os ces sentemo que sentimos. assimque um coconhece seu lugar e aprende a subsistir, um processo que foigrosseiramente identiicado (e totalmente mal interpretado) comohierarquiadepodereaprendizadosegundoateoriadoreforo.

    Porquealgotofundamentalnobvio?Porqueointelectohumanono passa de uma mquina de relatividade. Ele compara uma coisarelativaoutra,ummomentorelativoaooutro.Nsnosixamosnaformadeumobjetoousituaoeosvemosligadosemumsentidolinear,racional.

    Osces,porm,noveemomundoemtermosdeobjetooumomentorelacionadoaoutros.Amentedo co umcircuitode energia.Oque elesente no se distingue do lugar onde est: sua conscincia funo doambiente,noimportaquemouoquaesteja,nemseelesesenteligado

  • aistoouquilo.Oconoencaraseueucomoalgoseparadooudistintodaquiloqueoatrai.

    Nossos atuais modelos cienticos intelectualizam o mundo natural epersoniicam os ces de um modo que impede o dono de enxergar averdadeira natureza deles. Tudo o que um cachorro faz, e mesmo suapersonalidade, so uma traduo direta do sentimento do dono. Dono ecachorro passam a formar uma mente grupal, um contrabalanandoemocionalmente o outro,mas ambos empenhados na busca e alcance deumobjetivocomum,queoprincipaltemadestelivro.

    Vocjnoviuumcachorrofazeralgotoestranhoedespropositadoque nem soube como reagir? Talvez ele se mostrasse inesperadamenteagressivo ou se comportasse demaneira bizarra apenas empresena deum determinado parente. Seu cachorro j fez alguma coisa como que depropsito, s para deix-lo maluco? Ele adquiriu maus hbitos, quenenhumtreinamentofoicapazdeeliminar?Omotivopodesurpreend-loeamaneira de encarar esses problemas pode surpreend-lo aindamais.Filho de um famoso treinador e, hoje, tambm exercendo esse trabalho,querocontarminhahistriaeapresentarminha teoria,mostrandoavoccomoentenderseucodeumanovamaneira.

    Comoexemplo,eisumcontatoquetivecomVicky,donadeumpastor-alemochamadoEddie.Vickymeprocurouporintermdiodacriadoradeseuco,Ellen.QueriasaberoqueeudiriadareaodeEddieaosenfeitesdesuarvoredeNatal.AvaioqueelaescreveuinicialmenteaEllen:

    Montamos uma rvore de mais de trs metros na sala, toda decorada... mas,obviamente, Eddie no concorda com o lugar onde coloco os enfeites... Cuidadosamente,ele os tira umpor um e vai formando uma pilha (pode alcanar cerca de ummetro dealturasemseesticarmuito).Nofazissodisfaradamente,masbemdiantedenossonariz!Madeline olha para ele como se dissesse: L vai voc, garoto!. S podemos rir... erecolocarosenfeitesnarvore.Acoisavirouumjogo...

    MinharespostaaVicky:Aparentemente, quando Vicky colocava os enfeites na rvore, experimentava fortes

    emoes relativas ao Natal, como lembranas vvidas, reminiscncias alegres ou tristes,sem dvida de um tempo em que era jovem ou seus ilhos eram pequenos, algo assim.Eddie captou esses sentimentos e encarou os enfeites como essa carga emocionalespecica.Psosenfeitesdevoltanocentrodogrupoou,emoutraspalavras,noninho.Os enfeites eram, para Eddie, uma projeo dos sentimentos afetivos de Vicky, que,

  • emocionalmenteenergizados,transformaram-se,aseusolhos,emilhotes.Oqueelefezfoilevarosfilhotesdevoltaaseuninho.

    VickyrespondeuassimaEllen:SeuamigoKevinparecesaberdascoisas!Muitointeressante!NopassooNatalcom

    minhafamliadesdequememudeiparaacostaleste,htrezeanos.Sempretrabalhando,nuncaconseguivoltarparacasa.Apocanatalinasemprefoimuitoespecialparamim...etentei transmitir isso sminhas duas ilhas. Nunca decorei uma rvore sem sentir umadorzinha no corao.Muitos dos enfeites foram feitos porminhas prprias ilhas. Pensomuitonasmeninas.Opaidelaseeunosdivorciamosquandoamaisnovatinhaumanoemeio de idade... Criei-as sozinha... Achamesmo que Eddie, muito sensvel, percebe tudoisso?

    Sim,Eddiemesmomuitosensvel.EleconheceVickydecor.Este livro difere de outros exames da conexo entre caninos e

    humanos porque enfatiza o que eles tm em comum, a capacidadeemocional, em vez do que tm de diferente, a capacidade sensorial eintelectual. No consideraremos at onde o sentido do olfato, nos ces, maisaguadodoqueemns,quefrequnciadoespectroeletromagnticopodemverensno,quealturadesomafetaseusouvidosenoosnossos por mais interessantes e valiosas que sejam essas discusses. Aocontrrio,examinaremos,dessavez,a ideiadequeemooenergiaedeque sentimentos so prprios a todos os animais, ao passo quepensamentos,instintosegenes,bemcomotodasasadaptaesespecicasque surgem da, so o que diferencia nossas duas espcies e, em ltimaanlise, nos mantm separados. Assim, para conhecer de fato um co,sobretudo o nosso co, precisamos remontar nossa prpria naturezaemocional a im de conhecer melhor a natureza daquilo que estamossentindo,poisexatamenteassimquefuncionaamentedenossoco.

    Estudareiessas ideiasabordandotrstemas:1)Nosabemosoqueestamossentindo,2)Ocomportamentodos cespodenosensinarmuitacoisaarespeitodeemooesentimentos,3)Omotivorealdetermosumcoemnossavidaemocional.

    Oprimeirotemaquenossocosenteoquesentimosmesmoquandono podemos sentir. O intelecto humano to poderoso que nossospensamentosacompanhamdepertonossossentimentos,podendoanularo

  • quesentimoselevar-nosaconfundiroquesentimoscomoquepensamos.O enorme poder de nosso crebro pode mesmo negar por completo aemoo subjacente a um sentimento. Isso nos impede de reconhecer omodo como a emoo funciona. Por exemplo, as emoes, como energiapura,sosempreumaforadeatraopositiva.Almdisso,ossentimentosverdadeiros so sempre uma contrapartida emocional agradvel. Noexistemmaussentimentos.

    Em segundo lugar, uma vez que cachorros no pensam nem podempensar, no respondem ao que seus donos pensam, dizem ou mesmofazem; bem ao contrrio, reagem de acordo com as emoes dos donos,quechamamosdeenergia.Noestoudizendo,claro,quesetratadeumaenergia concreta, mas que, quando a adrenalina nos estimula, agimosexatamente como se estivssemos eletricamente carregados. Quando asensualidade nos domina, comportamo-nos como uma partculamagneticamente carregada. E quando encontramos pessoas que amamosou estimamos, respondemos como se estivssemos energizados porinduo eletromagntica. Nossos ces sentem esses estados emotivos deenergia bsica mesmo quando nossos pensamentos obscurecem osubstratodenossapercepoconsciente.

    Porim,oterceirotemapropequeomotivorealdehaverumcoemnossa vida no ter um companheiro, um ajudante, ou poupar umanimalzinhoindefesodeumavidadecircunstnciasinfelizes.Noimportaquovlidasebenvolassejamessasrazes,omotivorealtrazertonaosinstintos,pensamentosejulgamentosquenosimpedemdesentiroqueest no fundo do nosso corao. Esses julgamentos, pensamentos einstintos so a causa da emoo no resolvida que alimentamos e aemoo no resolvida o que verdadeiramente nosmotiva. Ela constitui,porassimdizer,amemriasica,registradanocorpo,detodaexperinciaemocional havida. Nossos ces entram em sintonia com esse registroemocional por meio de um processo que chamo de sonar emocional,trazendo-o supercie; ento, vemos o que eles fazem objetivamente. Apremissadestelivroseucoseuespelhoemocionalsigniicaquevocpode saber o que se passa namente dele porque experimenta amesma

  • emooeosmesmossentimentos,energeticamenteenomentalmente.Quandoaemoo,comoenergia,transitalivrementeentredoisseres,

    reconhecemo-lacomoamor;quandoamamosalgum, tudoemnossavidaica energizado de repente: as cores so mais brilhantes, os encargos jno so to pesados, podemos atmesmo nos surpreender cantando nachuva.No se tratade romance; trata-seda alegriaque todosos animaisexperimentam quando se sentem ligados a outros. E uma vez que aemoo nos transforma na contrapartida emocional do outro a quemamamos, cada qual se torna o espelho daquele com quem deseja seconectar. O semelhante atrai o semelhante, mas s os opostos podem seligar. , portanto, impossvel, para dois seres, no importa que tenhamexatamente os mesmos genes e a mesma formao, responderemocionalmentedamesmaformaaumevento,emborasuasrespostasnovariem de maneira aleatria. Eles respondero a fatos signiicativos emtermos de imagem especular. Ou seja, dois seres que se aproximam e seprendem emocionalmente formam um s corao. E onde quer queestejam,juntosouseparados,sentemqueelebateemumritmonico.

  • ParteI

    Nossorelacionamentoespecialcomosces

  • Captulo1

    Elesnosconhecemdecor

    Tragovocsobminhapele.Tragovocbemnofundodomeucorao.Tofundoquevocrealmentefazpartedemim.Tragovocsobminhapele.

    ColePorterOquesignificaconhecerdecor?Antigamente, os alunos tinham de decorar passagens importantes daliteratura.Halgunsanos,naseoCartasRedaodo jornalTheNewYorkTimes ,umamulher lamentavaoimdessaprtica.Diziaque,quandoconiava um poema ou um trecho em prosa memria, as palavras dosmestres icavam disponveis para ela pelo resto da vida, exatamente nomomentoemqueprecisavaemitirumaopiniooucompletarumraciocnio.Era como se essas palavras houvessem se tornado dela, brotandoespontaneamentedeseuslbiosnahoracertaeveiculandoumasabedoriatranscendental.Elaassabiadecor.

    Quando sabemos alguma coisa de cor, porque essa coisa passou afazer parte de nosso corpo, como um brao ou uma perna. Estliteralmente e isso ser demonstrado com maior clareza nas pginasseguintessobnossapele, integradasnossasvsceras.Podemossenti-lae saberoque verdadeiropelomodo comobrota ldedentro.De certaforma,ingerimosaessnciadessacoisaoumesmodeumapessoaatqueela se torne parte de nosso ser. Saber que algo absolutamente

  • verdadeironoumpensamento,umsentimento.Imagine se pudssemos, ao encontrar uma pessoa, saber o que ela

    estsentindospeloolharoupelotoque.Nomereiroatentarimaginaroqueelasenteouperguntaransmesmos:Oqueeusentiriaseestivesseem seu lugar?. Reiro-me a sentir realmente a emoo da pessoa, sem aintromisso de nenhum pensamento, em uma empatia comunicativa feitade energia pura, numa transferncia direta, em todos os detalhes esutilezas,dossentimentosdeumaparteoutra.

    Seessacomunicaofossepossvel,aspalavrasemesmoasaesdaoutrapessoanoteriamgrande importnciaparans(naverdade, talvezfossematirrelevantes)snosinteressariaoqueelaestivessesentindo.No julgaramos negativamente o que essa pessoa sentisse porque nssentiramos exatamente a mesma coisa. Fato curioso: se ela desejassealguma coisa, ns gostaramos que a obtivesse. Seria timodar-lhe o queela quisesse para que se sentisse bem sabendo que ns tambmestvamoscontentes. Seos sentimentosdelamudassem,perceberamosamudana eno tentaramosexplic-la.Nohaveriaparansnecessidadedejustiicaroupreservarumsentimentoquejnoestariaali.Saberamoso que ela faria antes mesmo de faz-lo. Seria fcil ter coniana nessapessoa. O que quer que ela izesse teria sentido para ns, poisvivenciaramos a mesma coisa. No haveria dois pontos de vista areconciliar;haveriaapenasumpontodevistaemocional.Mais importanteainda,seessapessoasesentisseatribulada,nsperceberamosefaramosdetudoparaalivi-la.

    Emsuma,responderamosaosoutrosenoscomportaramoscomoosces:decoraoparacorao.

    Em certas ocasies, na natureza, temos um vislumbre desse tipo detransferncia alimentada pela empatia. Periodicamente, essas histriasganham a mdia internacional, como quando uma leoa adotou, nutriu edefendeu uma jovem gazela dos outros lees, um golinho resgatou umnadador de um ataque de tubares, o gorila de um zoolgico de Chicagosalvouumameninaquecaiudentrodesuajaulae,apsotsunamide2004na Indonsia, um hipoptamo e uma tartaruga revelaram um profundo

  • vnculo emocional. Certa vez, vi um cervo tentando brincar com umcachorroportrsdeumacerca.

    Aomesmo tempo, porm, j que as expresses dessa empatia entreespcies so muito raras (praticamente todo comportamento animal habitual ou instintivo), tais eventos nos impressionam como verdadeirosmilagres, como se o animal transcendesse magicamente sua naturezabsica.Devidoscircunstnciasespeciaisdomomento,oqueocorreufoiocontrrio:oanimalicouaqumdesuaprogramaogenticaedasrazesemocionaisquecompartilhacomtodososoutros.Emoutraspalavras,cadaanimaltemacessoaomesmocdigouniversaldeemoes,umaforadeatrao monoltica, como a gravidade, que estabelece laos signiicativosresponsveis pelo altrusmo e o impulso de cooperao. No entanto, namaioria das espcies, quando uma situao se torna demasiadamenteintensa,seusinstintosouvelhoshbitosassumemocontroleeanulamsuacapacidadedeagirconformeossentimentos.

    Chamoessatendnciaaagirconformeossentimentosdecapacidadeemocional do indivduo, pela qual ele percebe em toda sua pureza ocontextoemocionaldeumasituaoouaessnciaemocionaldeoutroser.Quando dois animais se ligam, reagem aos efeitos organizadores daemoo pura; esto no gozo de sua capacidade emocional (que variasegundo a espcie e o indivduo) e abrem-se um para o outro. Quandoanimais conseguem trabalhar juntos e obter mais do que obteriamsozinhos, isso o resultado de um sentimento verdadeiro. Quando aemooarrefeceeos instintosbarramos sentimentos,o resultado soosconflitosquevemosnanaturezae,nohesitoemdizer,nasociedade.

    De fato, todos os dias testemunhamos aquele que talvez omelhorexemplo de conscincia em rede em um animal que, dotado deimpressionante capacidade emocional, consegue se associar e secomunicarplenamentecomsereshumanos:ocodafamlia.

    No coincidncia que os traos comumente associados ao conceitode corao amizade inabalvel, determinao a qualquer custo,lealdadeedevooincondicionais,sociabilidade,coragemcegaedisposioinesgotvel a subordinar o interesse prprio ao bem coletivo sejam

  • traosqueassociamostambmaosces. Intuitivamente,reconhecemososcescomoenergiadocorao,eporissoqueosdonosreagemaelesdemaneira to peculiar e desconcertante. por isso tambm que todo cosempreseencaixaemocionalmenteaodonocomoamonaluva.

    Hcercadedezanos,trabalheicomumapsiquiatraeseualegre,masviolento,pastor-de-brie.Comosouumpoucoalto,andandocomamulhereseucopelasruasdeManhattan,podiabaixarosolhoseobservarqueosdoisnostinhamamesmacordecabelocomdelicadasmadeixasclarasentrelaadas em uma massa louro-alaranjada mais escura, umacombinao pouco usual , como os ios tambm apresentavam amesmatextura ina. Emais: as camadas estavamdispostasde talmaneiraque, acadapasso,o impactoas faziabalanardomesmomodo.Osdoisestavamemperfeitasintoniasica.Eraclaroqueapsiquiatraprofessoradeumagrande universidade, com casa e consultrio nos Hamptons de modoalgumnotavaquesepareciafisicamentecomseucachorro.

    Isso me preparou para outra revelao. Ela exps os gostos eaverses, os hbitos e predilees de seu cachorro por exemplo, quaiscestoleravaenotolerava,bemcomoosmotivospelosquais,aseuver,ele desenvolvera costumes to bizarros, que nada tm a ver com anaturezados ces.Maspercebi que ela, na verdade, estava falandode simesma. Isso o queeu sinto em relao aos outros donos. Essas so ascoisasqueeunogostoquemefaam.assimqueeuquerosertratada.

    Amulhernoprojetavanem lianadano comportamentode seu co;este, de fato, praticava os atos que ela descrevia. Mulher e co sesincronizaram isicamente em um nvel bastante sutil e ele, do mesmomodo,moldaraseucomportamentosocialeemocionalparaacompanharapersonalidadeeasdisposiesdadona.Agiaexatamentecomodeviaagir.

    Passeiavidaestudandoetentandoentenderanaturezadosces,masfoi durante aquela caminhada com um co e sua dona em umamovimentada rua deManhattan que cheguei concluso plena do que umcachorro.Elesnosconhecemdecor.Nsestamossobsuapele.

    Certavez,duranteumalmoo,aconversasevoltouparameutrabalhocomotreinadordeces,oqueanimouumamulherameperguntarsobre

  • seu pequeninoschnauzer, Ranger. Por que, ela queria saber, Rangeratacava todososcesquevia,mas,poralgumarazomisteriosa, adoravaumdelesquedevezemquandoencontravamnarua?Oenormecachorro,um mestio de labrador, atirava Ranger ao cho; Ranger, em vez derevidar,rolavapelacaladacomacaudavibrandoamilporhora.Suadonaicavachocadatodavezqueissoaconteciaporque,seoutrocoqualqueroencarasseporumafraodesegundo,Rangerlhesaltavaaopescoo.

    No estimulomuito tais conversas, quepodem facilmente entrar porum terreno emocional melindroso. Mas a pergunta era irresistvel e nome iz de rogado. Como treinador, sei que quando um co se vira debarriga para cima, esse no um sinal de cordialidade, mas desobrecarga emocional: ele ento reage graas ao mesmo mecanismoinstintivo que est por trs da condio humana de culpa. Perguntei mulheroqueelasentiacomrespeitodonadaquelecachorro.Oh,noasuporto, ela me trata mal. Diz que sou uma pssima dona de cachorroporque acha o meu muito rebelde. Garanti-lhe que j tentei todas asformasdetreinamento,maselasreplicaquegentecomoeunodeviaterces.

    Agora tudo se encaixava. Expliquei mulher que, emocionalmentefalando,adonadaquelecachorroeraamedadonadeRangere,portanto,energeticamente,ocachorrograndeeraopaidocachorropequeno.

    Minhaexplicaocaiu sobreela comoumaavalanchedepedras: seuqueixocaiu,seusolhossearregalaram,seucorposeinteiriounacadeira,suas palmas se irmaram na mesa, como se a pobre mulher tentassecontinuarsentadaoulevantar-sedeumsalto.Espereiqueelarecuperasseo flego, sem saber qual seria sua reao. Talvez eu houvesse ido longedemais; talvez elame atirasse um prato no rosto.Mas, parameu grandealvio,eladesabafou:Sim,vocestabsolutamentecerto.Sintomesmoqueelaminhame.

    Exatamente,continuei.Aquelamulherafazsentir-seculpadaevoctemdeengolirisso,damesmaformaqueRangerdeixaocachorrograndeatir-loaocho.Nodecorrerdaconversa,veiotonaque,quandoelaeramenina,suamelevouocodafamliaumschnauzerpequenino,claro

  • aoabrigoporcausadealgumatravessurae,porim,mandousacriic-lo.Essafoi,dapartedame,umatraioqueamulherpensavateresquecidohmuitotempo,masqueseucorevelounotersidoaindaresolvida.

    Os humanos podem se projetar em um co de quatro ou cincomaneiras: considerando-o seu melhor amigo ou conidente; tratando-ocomo um parente adotivo, por exemplo, um irmo ou irm que nuncativeram;vendo-ocomoumaigurapaterna,queosprotegeecuidadeles;epossvelatencar-locomoumparceiroamoroso.Noentanto,essalistalimitada demais para dar conta da ininidade demaneiras pelas quais oscesreletemseusdonos.Emsuma,aquestocentralnooqueodonoprojetaemseuco;oquemeinteressaeconstituiadiferenabsicaentreeste livro e as muitas outras investigaes do vnculo entre humanos ecaninosoqueococaptaemseudono.Pormaishistriasqueeu leiasobreocomportamentodoscachorros,onveldarelaoentreeleseseusdonosnuncadeixademeimpressionar.

    Por exemplo, Cruiser um pastor-alemo grande, forte e de peloslongos, pertencente a Lynette. Quando ela e o marido viajam, deixam-nocomigo.MuitacoisainteressantesepodedizersobreCruiser.Umadelasque, no importa quo faminto esteja, saltitante de alegria quando meaproximo com sua comida, ele sempredeixa algunsbocadosno fundodatigela.Nuncacometudo.

    Umdia,quandoLynetteveiobusc-lo,perguntei-lhesehaviaalgoemseu comportamento que lembrava esse estranho hbito do co. Ela e omarido sorrirammaliciosamente: havia, sim, uma correlao no apenasanloga,masdireta.Lynettemecontoueisso,aparentemente,deixavaomaridomalucoe intrigavaosamigosquesempredeixavaumapequenaporo de comida, por mais deliciosa que fosse, no prato. Nunca comiatudo.

    svezes,ajustaposiodedoisitensnamesmapginadeumjornalmaisesclarecedoradoqueseusrespectivoscontedos.Naseocienticad oThe New York Times de 9 de novembro de 2003, o artigo principalrevelava que chimpanzs, bugios e humanos tm a mesma iaocerebral especializada que talvez seja responsvel por elevadas virtudes

  • sociais.Ottulodepginainteiradizia:Humanidade:UmCasodeFiao?.Nocanto inferiordireitodamesmapgina,via-seuma fotodealdes

    africanas chorandouma criana enfermaoupossivelmentemorta.O que,porm,atraiuminhaatenonafotofoiocodaaldeiaaofundo,decabeainclinada para trs como se ladrasse para a lua em um bvio estado detristezaesaudade.Enquantoo jornalcolocavaoprimatamaisprximodohomem no centro do palco, enfatizando o grande crebro que ambospossuememcomum,lestavaocoinferior,comcadacluladeseucorposintonizada com os sentimentos daquelas mulheres. Como muita coisareferenteaosces,averdadepassavadespercebida.Senossahumanidadeeasaltasqualidadessociaisdoaltrusmo,compaixoecooperaoresidemem iaes cerebrais, ento por que os macacos, os chimpanzs ou osorangotangosnoevoluramparasetransformarnosmelhoresamigosdohomem?Porqueissoaconteceucomosces?

    Minhateoriaquecesehomenstm,naorigem,amesmaestruturaemocional.Bemnofundodecadaanimal,aloja-seessafaculdadeprimitivaque, infalivelmente, nos conecta com a natureza como se fosse umprovedor de internet, dirigindo a emoo pelos muitos canais eramiicaes que alimentam a evoluo. Tanto homens quanto cesrecorrem no mesmo grau elevado a essa faculdade e evoluemconjuntamente a partir dela. Penso que s h uma maneira de evoluir:permanecerielaodesejo.Afontedaemoooncleooriginaldocdigoqueconcatenasentimentosecomportamentoscomoexpressesdaemooaimdeconsumarodesejoamesmanoshomensenosces.Oquehdemaisimpetuosoemunseoutrosocoraooquenosliga.

    Sepudssemosperguntaraumcooque,aseuver,constituiafontedenossahumanidade,eletalvezrespondesse,comasdevidasdesculpasaoTheNewYorkTimes,quenonossafiao,masnossoencanamento.

  • Captulo2

    Omaiordomdeumco

    HH alguns anos, o programa60Minutes, da rede de tev americana

    CBS,divulgouqueestavasendofeitaumapesquisasobreacapacidadedosces de farejar o cncer em seres humanos. Os testes clnicos ilmadoseram impressionantes,masmais impressionantes ainda foram os relatospessoaissobreumcoquefarejouumareadocorpododonoesepsalamentar, o que ocasionou uma corrida a tempo ao mdico. Em outroepisdio, ces treinados indicaram erroneamente cncer em umaamostra de tecido que o laboratrio declarara sadio. Os treinadoresicaram, em princpio, desapontados, mas, como os ces insistiam emindicarcncernaquelaamostra,umlaboratoristareexaminouopacientee,ento,constatouumcncernabexiga.Osmdicosficaramperplexos.

    Tendo treinado ces policiais para seguir pistas e distinguir odores,sempre ico fascinado por cada nova aplicao de suas habilidadesolfativas. No entanto, o queme intriga no o fato de um co conseguirfarejar a assinatura bioqumica de um composto qumico relacionado aocncer; isso apelamais para a imaginao e a dedicaodo treinador. Seum co rastreador diz ao policial que v para a esquerda em umaesquina,quandoastestemunhasocularesairmamqueo ladrodebancoviroudireita,ousesenteocheirodeumapegadaemumafaixapoeirentadeterreno,emumanoitegeladadenevasca,nuncadeixo,e issohmuitotempo,de respeitaro velho lugar-comumsobreos cespoliciais: onarizsabe.queadquiriumaposturairme,inquestionvel,quantoaoquum

  • copodefarejar.Euapostariaqueumavacaouumbodedeumhotel-fazendatambm

    poderiamrevelarquaispessoasestocomcncer, tomaramumaaspirinanaquele dia ou um contraceptivo naquelems, entre osmuitos produtosqumicosqueentramnocorpohumano.Adiferenaque,namaiorpartedo tempo, o bode ou a vaca no se importam com o que farejam em umcorpohumanoporqueocheironotemnenhumvalor emocionalparaeles.Oqueachonotvelnoquadrodoprograma 60Minutesofatodeocheirodocncernodonoinquietarumcodestreinado.

    Umdospesquisadoresqueapareceramnoprogramacomentouqueoco pensa haver algo de errado em seu dono.Mas a que, emminhaopinio,perdemosofoco.

    No creio que um cachorro compreenda o signiicado do cncer emtermos de tempo. Ou seja, ele no fareja o cncer e conclui que algo deruim acontecer ao dono no futuro, talvez morrer, deix-lo abandonadoetc. ces no pensam no futuro, isso coisa que s atormenta oshumanos. Ao contrrio, acho que o co ica emocionalmente carregadopelapresenadeumcheiroespecicodevidoaalgoprprioaessecheiro,em dado lugar e em dado momento. No se trata de uma compreensointelectualdeproblemasqueviroe,sim,darespostaaalgumacoisaque,naqueleinstante,estabalandoodonoetirando-lheoequilbrio.Odono,digamosassim, vazaenergia livreeoscesso fortementeatradosporenergiapotencialirradiadadequalquerser.

    poressemotivoqueocoicaexcitadoquandoumcriminosoatacaseudono,quandoosmembrosdafamliaingembrigarouquandoalgumsaltanapiscina:eleentocorrehistericamentevolta.Essesepisdiossoexemplosdeenergiasolta,similareletricidadenoaterradaquenosfazrecuar instintivamente, por julg-la perigosa nossa integridade sica.Ficamos naturalmente inquietos pelo cheiro de queimado de um io outomada invisveis.Pelomesmomotivo, coiotes j foramvistoscombatendoincndiosprovocadosporraiosnaspradarias;elesnotentavamapagarofogo, mas, sim, fazer contato ou aterrar a energia descontrolada daschamas.Pelamesmarazooscesterra-nova,famososporsalvarpessoas

  • que esto se afogando, se sentem impelidos a saltar na gua e traz-laspara a margem. Depositando-a em terra irme, o co est literalmenteaterrandoapessoaquesedebatedesesperadamentee, feito isso,nomais se inquieta. Domesmomodo, a assinatura eletroqumica do cncersigniicamuitoparaocodevidoaocomponenteemocionalquecontm:huma carga emocional no cncer em si. Apenas, nesse caso, ele no podefazernadaparadesviaraenergiae,consequentemente,continuainquieto.

    Quando um co treinado para detectar drogas, explosivos,contrabando ou outros itens, o treinador na verdade no o ensina afarejar;ocojsabedistinguirentreosvariadoscheiros.Ocotreinado,issosim,paraseexcitaremocionalmentecomumcheiroemvezdeoutro.No processo gradual de treinamento, o treinador associa uma cargaemocional a determinado cheiro para que o co se excite com ele maisquecomosoutrosefaaissoporsugesto,demodoqueotreinadorpossarefrear ou incentivar seu comportamento a im de procurar o itemdesejado.

    Por isso, brincar de cabo de guerra com um co uma recompensaemocional bem mais valiosa em um regime de treinamento do quegratiic-lo com comida, pois na brincadeira o treinador investe maisemoo.Dopontodevistadocachorro,ocabodeguerraatraenteporqueexcitaotreinador.Esteexibeumaintensidadeincrivelmenteconcentradano brinquedo como se a carga do brinquedo houvesse abalado oequilbrio emocional do treinador , que se evidencia pela quantidadedeenergia que projeta quando o brinquedo est em sua mo. Da mesmaforma, quando assiste a um espetculo de bonecos ou de palhaos, emesmo quando um objeto completamente incuo manuseado comdelicadeza ou carregado por um desempenho nervoso, a criana sentequeesseobjetoestcarregado.Casosejalevadaaopalco,evitartocaroobjeto porque a quantidade dessa carga normalmente excede suacapacidadeemocional.Acriana jovemdemaispara lidarcoma incrvelenergiapostanoobjetoenoseachacapazdeaterr-la.

    Quando eu era criana, meu pai costumava reunir todos ostreinadoresquetrabalhavamcomele,almdeminhameeminhasirms,

  • nasaladetreinamentoparaaplaudir,gritarecomemorarquandoumcoconseguia descobrir um objeto com cheiro em uma pilha de objetos semcheiro nenhum ou falsamente aromatizados. Diante de nossas palmas, acaudadocoinlavaaomximo,seusolhosbrilhavamedanavam,eelesepavoneavapelasalacomumportealtivo,comosequisessevoar.Noteiquesumcopodia serpositivamenteafetadoporessabarulhentaexcitaoem grupo. Se pulssemos de alegria ao ver um gato, um cavalo ou ummacacofazendoalgoquedesejvamosqueizesse,apenasassustaramosopobreanimal.Maspreciseideanosparaperceberqueestavaobservandouma distino comparativa em termos de capacidade emocional dosanimais e quanta energia emocional eles conseguem suportar semrecorreraummecanismodedefesacomoafuga.

    Oscesseligamquiloemquedepositamosnossaateno.Quandoodonoapontaumavaraedizaocopega,paraocoavaratorna-separtedo dono como um brao ou uma perna. O co sente a energia emocionalque o dono projeta na vara. Para o co, a vara est viva e constitui umaparterealdoseredocorpododono.Tornou-seumamanifestaofsicadaessnciaemocionaldodono, algoquenasceuoubrotoudo serdodonoeencerra, portanto, sua carga. Assim como sabem onde deixamos aschaves ou icam excitados quando ingimos brigar com outra pessoa,nossoscesnosesentemcompletosquandoestamosincompletos.

    Curadoresintuitivosnosgarantemqueadoenasicaconsequnciado mal-estar espiritual. Embora eu ache que isso possa ser malinterpretado, levando-nos a crer que temos de ser perfeitos para sersaudveis,aideiacondizcomminhaleituradanatureza.Emsuma,umcocapazdedetectarocncernopensa.Ossubprodutosqumicosdocncerso efeitos isiolgicos de uma anomalia subjacente em um processoemocional;soumanotadissonanteemumasinfoniadefugasharmnicasque, idealmente, corresponderiamaumbomsentimento.Nossoscessoatradosparaqualquercoisaemquenossacargaemocionalseconcentraporque essa coisa se torna a seus olhos uma interrupo, um distrbio,uma paralisao de uma emoo poderosa. Se algo nos afeta, nosso cotambmserafetado.

  • Embora existam muitas razes para possuir um co, o motivo realpara um co entrar em nossa vida a oportunidade nica de nostornarmos cientes dos julgamentos, relexes e padres instintivosimpostos nossa viso de mundo, os iltros e interruptores adquiridosdurantenossadomesticaonosprimeirosmeseseanosdeexistncia,queacabam por penetrar na arquitetura invisvel de nosso subconsciente.Descobrindo a mensagem implcita no comportamento de nosso co,estamos,muitoprovavelmentepelaprimeiravez,alturadedeterminarseesses julgamentos ainda nos servem. Os ces existem para nos mostrarcomonossocoraofuncionaequaissoosjulgamentosnegativosquelheimputamos.

    A conscincia animal e a conscincia humana se entrecruzam nocachorro. Os cachorros so energia do corao: o lugar onde a energiasicaeaenergianervosasecombinam,ondeocrebroencontraocorpo,onde o humano se harmoniza com o natural. Isso transforma o co noespelhoemocionaldohomem.Ocoreleteperfeitamenteatransformaodenossasenergias sicasenervosasemsentimentos.Elenossomelhortrunfo para a autodescoberta. No creio que os sobreviventes de cncerque apareceram no programa 60Minutes achariam exagerado dizer queoscesexistemparasalvarnossasvidas.

  • Captulo3

    Afinal,oquesabemos?

    Umanoite,hcercadequinzeanos,euassistiaaoltimo telejornalepensavaemmelevantarbemcedonodiaseguinte.Lembrei-medeterlido,na faculdade, que o corpo possui um despertador interno: se osugestionarmososuiciente,elenosacorda.Defato,umavezacordeiassimquandoestavanafaculdadeetinhaumexame.Fecheiosolhos,aquieteiamente e concentrei toda minha ateno no corpo. Quando estava bemtranquilo,penseiomaissolenementepossvel:Queroacordarscincodamanh.Ento,abriosolhos,acabeideveronoticirioe fuiparaacama.Scomogarantia,pusorelgioparadespertarscincoecinco.

    No funcionou.De algummodo, errei na tcnica subliminar: as cincohoras chegaram, passaram e eu no acordei. Alm disso, o alarme notocou (devo t-lo ajustado para as cinco da tarde em vez de cinco damanh).Todavia,nochegueiatrasadoporqueIllo,meupastor-alemodetrs anos, aproximou-se de minha cama, algo que nunca izera na vida,esfregouo focinhoemmeuqueixoegentilmentedescobriuminhacabeaexatamentescincoedez.

    Ao sairde casa,naquelamanh, tentando imaginar como Illo salvarameu dia, ocorreu-me que ele de alguma forma captara meu desejointernalizado,emboranemestivessenasalacomigoquandoizasugestosubliminar.scincohoras,deve tersentidominhapresenanaportadosfundos, pois deix-lo sair era a primeira coisa que eu fazia todas asmanhs. Nome vendo l, dirigiu-se minha cama como se eu o tivesse

  • chamado pelo nome. Nunca me esqueci da maneira como ele medespertou,comseutoquesuave,e,sobretudo,daexpressointeligenteemseusolhos.O fatodeserpossvelpara Illo sentiruma vibraoemmeucorpo,daqualnemeumesmotinhaconscincia,masqueeleeracapazdeperceber como se ouvisse minha voz, impressionou-me naquela manh.Foraumadascoisasmaiscuriosasquejamaisexperimentaracomumco.

    Incidentes como esse, alm de meu trabalho com cesproblemticos, por im me levaram a compreender como e por que oscesnosconhecemmelhordoquensaeleseomotivodeoshumanosmanterem com esses animais um relacionamento emocionalverdadeiramente nico. O presente captulo, iniciado com a perguntasimplesOque,anossover,sabemossobreosces?,examinaessasideiasdeevoluoeemoo.

    Nos estudos sobre ces, talvez haja apenas um ou dois fatos com osquaistodososespecialistasnoassuntoconcordam.Umdelesqueolobo,direta ou indiretamente, por intermdio de um ancestral comum (o qual,semdvida, separeciamuito comele), responsvelpelo codomstico.Todapesquisacienticaconirmaisso,daantropologia,dosequenciamentogenticoedaanatomiacomparadaataanlisecomportamental.

    O outro fato em torno do qual h tambm unanimidade que aneotonia (persistncia de traos infantis na fase adulta) tambmdesempenhaumpapel importantenoprocessodedomesticao.Poressemotivo,diz-sequeoscessecomportamcomoilhotes,ladramcomolobosjovens (ao contrrio dos lobos adultos, praticamente silenciosos) eapresentam dentio menor que a dos lobos mais velhos. No entanto,quando vamos alm desses poucos pontos de consenso, o pensamentosobreoscessedivideemdoiscenriosbsicosquetentamexplicarcomoocorreuadomesticao.

    No cenrio romntico, o homem primitivo capturou um ilhote ouumaninhadade ilhotesde loboeselecionou-os levandoemcontao fatorbelezapoisamesmapropensoque levaoserhumanoacuidardeumbeb despertada pelo corpo rechonchudo, a cara adorvel e osmiadosou latidos de um bichinho. A partir dessa relao inicial de cuidados,

  • provvel que uma utilidade muito concreta tenha sido levada em conta:aqueles animais alertavam o acampamento para a aproximao deintrusos, rastreavam presas feridas, que de outro modo escapariam, oudenunciavam a presena de caa indetectvel pelos sentidos maislimitadosdoshumanos.

    Segundo uma variante do cenrio romntico, homens primitivos elobos, ou protoces, caavam a mesma presa e aos poucos foram seassociando por estarem em trilhas evolucionrias paralelas. Uma relaosimbiticasedesenvolveuporquehaviabeneciosparaambasasespcies(isso teria sido um acontecimento fortuito para os protoces, dado que ohomem muitssimo habilidoso na arte de matar). Como, em geral, seacreditaqueos lobosvivamemumahierarquiadepoder,acredibilidadedo cenrio romntico foi reforada pela hiptese de que esse arranjocolocaria os humanos na posio de lderes dematilha substitutos. Eis-nos aqui, milhares de anos mais tarde, com o co da famlia sujeito aadestramento para ser obediente e com programas de TV emilhares demanuaisdetreinamentoqueparecemcomprovaratese.

    O segundo cenrio foi montado pelos doutores Lorna e RaymondCoppinger, que identiicaramalgumas falhas gravesna verso romntica.Para incio de conversa, domar alguns lobos oumesmo algumas alcateiasno afetaria muito sua evoluo em longo prazo. Para verdadeiramentedomarumaespcie,umprocessodeprocriaoseletivatemdeocorrernombitodeumavastabasepopulacional,poisosindivduostendemavariarmuito pouco entre si. A mudana pela evoluo acontece graas aoacmulocrescentedeumtraofavorvelateleseixaremumgenomae isso exige a seleo de incontveis indivduos por um longo perodo detempo. A seleo por acmulo gradual e contnuo implica uma srie degeraes,emboraestasnoprecisemsertonumerosasquantosejulgavaa princpio. Do mero ponto de vista logstico, a faanha de alojar tantosanimais por tanto tempo simplesmente esgotaria recursos preciosos.Adestrar umas poucas espcies amistosas por algumas geraes notornaria,porsis,seugenomamaisdcil.

    Uma segunda falha grave do conceito romntico diz respeito

  • reproduo. Se os homens primitivos apanhassem um ilhote de lobo e olevassemparaoacampamento,quandoesseprotocodomado(masaindanodomesticado)atingisseamaturidadesexual, escapariaparaprocurarparceiros e no retornaria, pondo assim um im ao experimento (edesperdiandoosrecursosquehaviamsidoempregadosemsuacriao).Antesqueumprotocoganhassealiberdade(oufosseusadoparaajudarnascaadasdoshomens),oproblemadareproduonaselvateriadeserresolvido. Para que, no cenrio romntico, uma espcie domstica fossedesenvolvidacomsucesso(umaespciecapazderesistiraoapelodaselvaedeescolher livrementeoconvviocomasociedadehumana),umavastapopulaodelobosprecisariasermantidaemcativeiroporumperododetempo relativamente longo. Mesmo assim, a grande diiculdade tcnicadesse processo estaria alm dos meios e at da compreenso dostrogloditas. Convm lembrar que os ces domsticos surgirambemantesde os humanos realmente domesticarem as plantas ou aprenderem aarte da agricultura em grande escala estamos lidando aqui com umconceitorevolucionriosemprecedentes.

    Em vista do exposto, os Coppingers acreditam que um processo deseleo gentica deve ter ocorrido naturalmente, e no artiicialmente.Sustentam que esse mecanismo seletivo natural apareceu quando oshomenspassaramaviveremaldeiaseadepositarseulixoforadoslimitesda rea habitada. Involuntariamente, pela concentrao de recursos, osantigos aldees acabaram por selecionar, no genoma inteiro dos lobosselvagens(ouprotoces),osmenosariscos(traodeacessibilidade):nessecenrio,osltimosdetritvorosafugirdaaproximaocomoshomenseosprimeiros a voltar depois que estes partiam icavam com a poromaiorde lixo e inalmente prevaleceram, na luta pela sobrevivncia, sobre osmaiscautelosos.Porim,omedodehumanosdiminuiunessesespcimesaponto de, voluntariamente, cruzarem a linha entre a vida selvagem e asociedade dos homens, tomando lugar junto lareira. Os homens, ento,teriam descoberto as vantagens de conservar por perto um protocodomesticadoparamanteracasalimpa,acompanh-losnacaaemesmo,talvez, ajud-los a capturar outros animais gregrios que pudessem ser

  • tambm domesticados. Os Coppingers veem no lixo da aldeia um iltronatural de genes que se prestaram s nossas inalidadesmodernas; issoaconteceu sem a necessidade onerosa de alojar e alimentar quaisqueranimais, e bem antes que se percebesse alguma utilidade em uminvestimentodeliberadoemsemelhanteaventura.

    Emapoioaessatese,osCoppingersmencionamumaexperinciacomcriao de raposas iniciada nos anos 1950 pelo cientista sovitico DmitriBelyaev.Elequeriademonstrarqueasmudanascomportamentais,enoasfsicas,acionaramoprocessodedomesticao.Belyaevselecionou,entremilhares de indivduos, as raposas selvagens menos ariscas e, em umtemporelativamentecurto,aexperinciaproduziuespcimessemelhantesaos ces tanto em temperamento quanto em caractersticas sicas.Aparentemente, muitas mudanas anatmicas acompanharam a respostaminimizadaaoestresseemraposasqueforamselecionadaspornoteremmedodoshomens.OsCoppingers,deseulado,descobriramqueemquasetodas as aldeias de pases subdesenvolvidos existem cachorros que nopertencemaningum,masestosempreporpertoesvezesparticipamdediversasatividades,tirandoseusustentodolixo.

    TambmcorroboraatesedosCoppingersofatodeaacessibilidadedoanimalestardiretamenteligadaaofenmenochamadoneotonia,comoditoanteriormente: persistncia na idade adulta de traos anatmicos ecomportamentaisdainfncia.Porissosedizqueocodomsticoumloboque nunca cresceu. Eternos ilhotes, eles se sentem instintivamenteatrados pelos seres humanos, da mesma forma que os ilhotes dequaisquer animais se sentem atrados pelo que, ou por quem, estejainicialmente exposto (conforme Konrad Lorenz demonstrou em suasfamosasexperinciasdecunhagemcomgansos-bravos jovens).StephenBudiansky,emTruthAboutDogs [AVerdadesobreosCes],airmaqueaneotonia no apenas explica o fenmeno da domesticao, mas tambmcomo as raas dos ces evoluram graas a esse mesmomecanismo. Emsuaopinio,aquiloqueoscriadoresdeinemcomoumtraoderaa,naverdade,umrelexoinfantilextradodeseucontextoinstintivoprprio.Osces de determinadas raas se apegam, por assim dizer, a um elemento

  • particulardorepertriocompletoqueexistenoslobosadultos.SeosCoppingersestiveremcertos,poderemosentotraarumalinha

    reta do lixo da aldeia ao co domstico pelo trao de acessibilidade e dofenmeno da neotonia.Mas e quanto aos outros animais que tambm sesentematradospelossereshumanos?Emoutraspalavras,onde icamasraposas-ces, para no falar dos guaxinins, ursos, coiotes etc. deestimao?Aneotoniaeaalimentaonosdepsitosde lixohumanosnobastariam para domesticar uma espcie, pois isso deve ter acontecidomuitas vezes antes que os ilhotes de todas as espcies se tornassematraentes aos olhos dos homens. Nem seria preciso mencionar que umtrao caracterstico do co domesticado sua incansvel perseguio dapresa, de onde o termo teimoso, e, em algumas raas, um nvel semparalelo de agressividade. (Logo pensamos nospitbull terriers, que,paradoxalmente, so considerados uma das raas mais infantilizadas:sempre achei estranho que sua dentio seja to frgil em comparaocomaforadesuamordida.)Comoatendnciaperseguioincansveleotemperamentoferozpoderiamsertraosinfantis?

    Essa , na verdade, a melhor explicao do motivo pelo qual noexistemraposas-cesnemnenhumoutrotipodeanimal-coselvagem.Seasubmissooquepermitiuaoprotocoabrir caminhoparaa lareiraeocoraohumano, ento o code caa selvagemdafrica um candidatomaisprovvelqueolobo,poissuasinteraessociaissecaracterizamporumindivduotentandosubmeterosdemais.

    Assim,seaaparnciaeaacessibilidadedesempenharamalgumpapelnadomesticao,essepapelnofoidecisivo.Oanimaltinhadesertilaoshomens e a que a agressividade, tornando-o sujeito socializao edisponvel para a domesticao, se torna importante. A combinaoespecial de todos esses fatores que tornou o protoco toimpressionantemente til, de vrias maneiras, para a humanidade etambm to persistente nas tarefas que os homens estabeleceram paraeles o que de modo algum uma aptido infantil. Isso, a meu ver,desqualiica a tese de Budiansky, segundo a qual o co adulto das maisdiversas raas est simplesmente inserido emumadada seodo cdigo

  • decomportamentocanino.Enim, o que signiica dizer que os ces so domesticados? Segundo

    StephenBudiansky,osces,naverdade,norespondememocionalmenteans;pelocontrrio,os instintosdesubmissoedominaonamatilhasoconfundidospelosdonoscomestadosemocionaishumanos,reforadasporrecompensas e afeto.Esses instintos sousadospelo copara cativar odono (mas ningum se queixa disso, claro). Assim, em resposta pergunta de Pollan O que os ces sabem e os lobos ignoram? , acincia diria que os ces sabem, no nvel do gene egosta, comoexplorar (por meio do fenmeno da neotonia) o impulso de proteo dapsiquehumana.Muitoscientistasmodernoscaracterizamorelacionamentoemocional entre co e dono como uma rua de mo nica: o dono tem aemoo, o co responde com instintos que imitam e capitalizam amesmaemoo.Semdvida,issogratiicaasnecessidadesemocionaisdodono,demodo que os ces se tornam cada vez mais populares e bem-tratados,disseminando seus genes por toda parte, em conformidade com a teoriaevolucionriaclssica.

    Portanto, o modelo atual airma que o co domesticado amistoso,prontoaobedecereimpressionveldevidoaumamenteingnua,podendoassim ser treinado para uma ampla gama de servios e inserido emqualquerestilodevida.

    Mas pode a cincia explicar todos os tipos de comportamento queobservamos?ComeceiestecaptulocomahistriadeIlloedodespertador uma anedota que enfatiza as impressionantes capacidades dos ces,nem sempre enquadrveis nas teorias modernas. Sem dvida, anedotascomo essa so frequentemente consideradas no cienticas porque impossvel reproduzi-las em laboratrio; no entanto, como semultiplicamconstantemente,tornam-sesigniicativasedescart-lasseriatambmumaatitudenocientfica.

    Cruiser, opastorque jmencionei,manteve seusdonos acordados anoite inteiraporqueseuvaivmegemidos incessantespareciamumsinaldequeicariadoente.Osdonossaltavamdacamaacadaquarentaecincominutos para caminhar com ele. Repreendiam o animal, achando que

  • estavaicandomuitoimportunomas,ento,suacasafoisacudidaporumleve terremoto e, logodepois, Cruiser adormeceria.Osdonos se sentirampssimos.Damesmaforma,otsunamide2004naIndonsiatrouxebailacentenas de histrias de ces e outros animais que se comportaram demaneiraestranhahorasantesdoapocalipse.

    Eoquedizerdecesqueleemsereshumanos?Conhecialgunsquedetectaram intenes criminosas em pessoas desconhecidas, as quais,conforme depois se constatou, estavam prestes a cometer delitos. Umcachorropolicial,emseuprimeirodiadetrabalho,descobriuumcriminosoem uma reunio de adolescentes em um estacionamento, vigiando daviaturacadagestodohomem.

    Passandoparaoutrotipodecapacidadeextraordinria,conheoumapequenacockapoo cinza,Maxine,queseescondeuemum traileremumaparadadecaminhespertodesuacasaemBrewster,NovaYork, e s foidescoberta pelo motorista em um posto de gasolina de Ohio. Discando onmeroqueviunacoleiradeMaxine,omotoristaavisouaosdonos,masobichinhoescapouantesqueeleo levasseparaocanil local,deondeseriaresgatado. Meses depois, a famlia abriu a porta dos fundos para deixarentrarFant,seupastor-alemo,equementra,magraetodasuja?Maxine,afujona!

    Karina,cadelapertencenteminhasogra,saadeumsonoprofundoecorriaparaumaportaou janeladeondesepodiaverqualquerguaxinimque entrasse no quintal; isso aconteceu durante uma epidemia de raiva,quandotodosnospreocupvamosmuitocomguaxinins.EmnossafazendadeVermont,Illosemprepercebiaraposasalmdohorizonte,foradevista,e,assimcomoKarina,nousavaofaro.

    Voltando a Cruiser, seus donos me contaram que certa vez eleacompanhou um hspede da casa durante um im de semana inteiro e,infelizmente, descobriu-se mais tarde que o homem tinha uma doenaterminal. Um co de guarda que treinei para oHospital de Stamford, emConnecticut, certa feita arrastou Tony, seu acompanhante, peloestacionamento,comoventopelascostasenopodendofarejarnada,atum carro onde um homem cometera suicdio aps assassinar a esposa.

  • Segundo Tony, o co simplesmente percebeu que havia algo de muitoruimnaquelecarro.

    Essacapacidadenoobedeceaoparadigmavigente,sendoomaisdasvezesatribudaaosentidodoolfato;noentanto,vi inmerosexemplosdeces, gatos e cavalosquepercebiamcoisaspeloolhar, quandoo faronoestavaenvolvido.Oolfatonoexplicatudo.

    Nem mesmo o comportamento comum dos cachorros obedece aoparadigmavigente.Porque,digamos,umcosesentaquandovaireceberum biscoito? Parece bvio dizer que ele se sentana expectativa de umarecompensa. Agitamos o biscoito diante de seus olhos, arregalados ebrilhantes de ansiedade, e as palavras imediatamente brotam de nossoslbios:Elepensaquevaiganharumbiscoito.Umcomportamentalistanoslembrariaque,tecnicamentefalando,ocoassociaoatodesentar-secomapossibilidade de ganhar umbiscoito.Mas por que os gatos no apreciamviagensde carronem icamexcitados como tilintar das chaves?Por queelesnosesentamparaganharalgumacoisa?Noporqueosgatosnopossam ser treinados para isso; eles podem, e a questo est justamentea: os gatosprecisam ser treinados , ao passo que os ces aprendem etomam essa atitude espontaneamente. Omotivo no que os ces sejammais inteligentes que os gatos. Mesmo os macacos, mais espertos quegatos e ces, precisam ser treinados para se sentar e aguardar umarecompensa. E todo treinamento deste mundo no produziria em ummacacoodesempenhocheiodeentusiasmodo coque, sentado sobumacadeiranahoradojantar,esperaumamigalhacairdabocadobeb.

    Oscessabemoqueoshumanosquerem(aindaqueosprprioshumanosnoosaibam)

    Aolongodavidacrescendopertodocanildemeupai,queeraquaseumafazenda,edepoismontandoumnegcioprprioemumstiodeminhapropriedade, tenhocuidadodemuitosanimais.Namaioriaces,claro,mas tambm gatos. Meu pai possua um pequeno rebanho de gado decorte, almdealguns cavalosepneis.Trateideovelhas, cabras, gralhas,

  • galinhas,pombosdecompetioe,devezemquando,porcos.Tendo alimentado dezenas de milhares de animais, o nico que me

    ameaouou tentoumemorderquandochegueipertoou lheapresenteiacomida foi um cachorro. Cavalos, carneiros e bois davam empurres,cabeadas oumordidelas uns nos outros quando eume aproximava comsuarefeio;oscavalosescoiceavamoscesquerondavamporali catadealgumasobra;eosporcos literalmentetentavamcomermeuspscasoumpoucode lavagemescorresse do cochopara dentro deminhas botas.Masnenhumdessesbichosjamaismeagrediuporcausadecomida.Soscesexibemessapropenso.Porqu?Porque,seocoqueraquilo, sentequeohomemtambmquer.Ocoanicacriaturacapazdeconcentrarohumano,oeueacomidaemumnicosentimentoaomesmotempo.Masissofuncionaemduasdirees.Oscachorrosqueremoqueoserhumanoquerapenasporqueoserhumanooquer .Elesnosabemque,sentando-se,ganharoarecompensadoalimento.Aocontrrio:pelaemoo,ocachorrotorna-se o igual, mas tambm ooposto do humano quando se senta nafrentedeumapessoadep.Ambossetornamumasmenteemtornodeumdesejo.

    AmentegrupalevoluiemtornodoGrandeDesejo

    importante notar, a respeito dos lobos, que eles evoluram naslatitudes setentrionais, no nas meridionais. Isso decisivo, pois o lugaronde evoluramdeterminou a presa que caavam.Omais notvel quantoaos grandes e perigosos animais de presa do norte como o alce, o boi-almiscarado e o biso que eles se defendem em bandos bemcoordenados. J nas savanas da frica, a estratgia de sobrevivncia damaioriadasespciesdepresacomoosgnus,aszebraseasgazelasasegurana pelo nmero e a velocidade. Virtualmente, nenhum animal depresasearriscaauma lutasolitriacomum leo.Assim,deslocam-seemgrandes manadas e, quando um predador ataca, fogem em todas asdirees recorrendo estratgia evolucionria de tentar confundir o

  • inimigo. No norte, os bfalos e bois-almiscarados se renem em crculosfechados, com os mais vulnerveis comprimidos no centro: no fogem,contra-atacam.Issoduplamentesigniicativoporqueoslobos,mesmoemalcateia, so isicamente inferiores a um alce. Qualquer desses animaispode despedaar com facilidade um lobo solitrio. Como salientam osCoppingers, as mandbulas dos caninos so relativamente fracas secomparadas s dos felinos e outros superpredadores. Uma alcateia ,isicamente,inferioraumalcesozinho,quepodeseimporavrioslobos;e,comonaselvaserferidoquaseumasentenademorte,novaleapenapara o predador vencer uma luta e sair machucado. Os lobos precisamicar livresdoperigo.Assim,caarumapresamaisforteopoloopostodoqueacontecenooutroladodaTerra.Noapresaquetentaconfundiro predador, o predador que tem de confundir a presa . Ao contrrio deoutros grandes predadores que caam por instinto, os lobos caam porsensao.

    Os lobos precisamsentir qualpresaest icandonervosaeprestesasair das ileiras, fazendo com que toda a formao se rompa. Mais: elesprecisam sentir qual outro membro da alcateia est sentindo a mesmacoisa para trabalharem em sincronia, respondendo instantaneamente,comoums,mudanarpidadascircunstncias.

    diferena dos ces de caa selvagens da frica, que normalmenteatiram sua presa ao cho, onde devorada viva, mas indefesa devido exausto, o lobo s tem sucesso quando consegue mudar a maneira desentirdesuavtima.Paraolobo,nohduaspresasiguais.

    Se os lobos caam por sensao, e no por instinto ou mesmo porastcia, o que isso implica para a neotonia e a ideia de uma superiorcapacidadeemocional?

    Costumamos pensar na mente recm-nascida ou pueril como umaetapa de transio no processo de desenvolvimento, que logo sersuperada pela mente adulta do co maduro. Nunca pensamos na mentepueril comoumaplena faculdadede intelignciapordireitoprprio.Mas,como James Serpell observa emThe Domesticated Dog [O CoDomesticado], at um feto um especialista altamente evoludo, pois se

  • adaptaao complicadonichodavidanotero.Creioqueessa tambmamaneiramaiscorretadeencararamente infantildoco.Estenosuperasua mente pueril porque dessa forma ele consegue aprender. A mentepueril reduz coisas e situaes complexas aos valores simples, primriosdaemoo,onvelbsicodosigniicadodeoutra forma,amenteadultanoconseguiriaseadaptarnovidade.

    Almdisso,amenteinfantilanseiapormaisinformaesdoquepodeprocessar, o que, no adulto, se torna uma capacidade dos sentidos, umesquemamental magnticoque lhediz como se juntar a seus iguaisemtornodeumdesejocomum .Os traos infantispodemmigrarparaa idadeadulta e transformar-se em aspectos ixos de uma disposiomadura. Asexualidade no passa de uma elaborao da neotonia e, ameu ver, issoaconteceporque, fundamentalmente,asexualidadeestmaisaserviodasincronizao das atividades grupais altamente coordenadas do que dareproduo.

    Oqueoshumanosprimitivossabiamsobrecriaoegentica?Elesssabiamoquequeriam: Queroaquelealce,aquelepssaro,aquela lontra,aquele rastro de sangue, aquele rato, aquele veado, aquele pato, aquelelobo. E ento, voil!, hoje temos ces que caam alces, pssaros, lontras,rastrosdesangue,veadosetc.Oshomensdizem:Queroaquelepapagaio-do-mar e l est para isso o lundehund noruegus especializado nessatarefa, de juntas duplas ou triplas, capaz de tocar a base do rabo com apontadofocinhoedevencerngulosimpossveisaosubirnosiordesparasurpreender ninhos de papagaios-do-mar. Emminha leitura da naturezados ces, a paixo em comum oucompaixo Est sentindo o que eusinto? o modo pelo qual a energia transpe a brecha criada pelosgenes,pensamentoseinstintosque,deoutromodo,manteriamasespciesseparadas.

    Halgunsanos,oDiscoveryChannelexibiuumdocumentriosobreocurioso relacionamento entre baleeiros aborgines da Nova Zelndia ebaleias-assassinas.Emminhaopinio,issoexplicaempartecomoohomemeo lobo izeramcontato e irmaramumacordoque foi se tornando cadavezmais slido e incrivelmente variado com o passar dos sculos, sendo

  • at mesmo retomado por baleeiros ocidentais. Talvez devamos chamaressahiptesedecenrioxamnico.

    Segundo o documentrio, os povos nativos izeram um contrato detrabalho com as baleias-assassinas: elas trariam baleias migratrias doalto-mar para a baa Two Fold, onde poderiam ser facilmente arpoadas,levadas para a praia e desossadas. Essas baleias eram grandes demaispara que as assassinas as caassem sozinhas, podendo aindamergulharmaisfundoepermanecersobaguamuitomaistempo;e,comoviviamemmaralto,ospequenosbotesdospescadoresnoconseguiamalcan-las.Odocumentrioapresentoutestemunhosocularesdeilhosdessesbaleeirosocidentais;foramincontveisnarrativasdecomotrabalhavamjuntosparaobteroqueunseoutrosdesejavam.Isso,semdvida,nosdumavisodecomoohomemprimitivoeolobofizeramcontato.

    Aprendi, em uma vida inteira dedicada aos ces, quea natureza seconforma fora do desejo. Quando dois seres querem a mesma coisa,acabamporsecomunicar.Equandodoisseresqueremamesmacoisasemquenenhumdelesconsigaobt-lasozinho,elesentramemumacordo.Umdesejoemcomumteceateiadavida,umarededesentimento.

  • ParteII

    Minhavidacomosces

  • Captulo4

    Altimapalavra

    Quando eu era criana, durante o vero, quase todas as segundas-feirasdemanh iacommeupai,naperuada famlia, recolhereentregarces em Nova York. Na capota do carro, papai colocou uma pequenaigurinha demetal de umpointer ingls, cinza e branco, vestido com suaprpria camiseta da Universidade Canina. Todas as viagens da famliacomeavameterminavamcomaquelecachorroaparentementeapontandoocaminho.

    MeupaicresceuduranteaGrandeDepresso,napequenacidadedeHoosicFalls,ondeaprendeuasevirarcompouco;opaideleeradoenteemorreu cedo; a despensa dos Behan estava quase o tempo todo vazia. Oquemenospoderiamquererseriamaisumabocaparaalimentar,maserajustamente isso que papai desejava: um cachorro. Posso imagin-lo,menino,percorrendoumaestradapoeirentadeHoosicFalls,noestadodeNova York, enquanto um rico desportista passava por ele com seu bemtreinadoperdigueironocarro.Essa imagem icougravadaemsuamente,no tenho dvida, e o levaria ao sucesso. Trabalhou aqui e ali, pegandoqualquer emprego, mesmo o de coveiro, at que um dia, na estao deHoosicFalls,viuchegarumtremtrazendoemumengradadodemadeiraoobjetodeseussonhos:umfilhotedecollie.

    Parameupai, boasmaneiras eram tudoe ele quis que seuprimeirocachorrofossetobemtreinadoquantoodequalquerricao.Combasenoqueaprendeuem livrossobreadestramentodeces,ensinouobsicoao

  • seu e levava-o para onde quer que fosse ao trabalho, a encontros, abailes do colgio. Sabia-se sempre onde Jackie Behan estava s por sepoder ver seu co esperando-o nas proximidades. Papai airmava e eununcativemotivosparaduvidarqueseucoeraomaisbem-comportadodacidade.

    Durante a SegundaGuerraMundial,meupai deuum jeito de entrarparaoprogramadecesdoexrcito,oquelhepermitiuteracessoaumaabordagemformalizadadotreinamentocanino.Ceseramdoadosdetodasaspartesdopaseenviadosparaocampodeadestramentodoexrcito,naVirgnia, onde aprendiam diversas tcnicas de combate: guarda, ataque,rastreamento, busca e resgate, deteco de explosivos e entrega demensagens. Antes que os ces de patrulha chegassem s lorestas dasFilipinas a maioriadoberman pinschers , a expectativa de vida de umpatrulheiro era de sete horas. Depois que os ces treinados foramentreguesspatrulhas,maisnenhumhomemcaiuemumaemboscada.

    Oprogramadecesdeguerramoldoumuitosdospontosdevistademeu pai sobre ces e treinamento. Como oicial, ele era responsvel portodos os tipos de ces que se possa imaginar: puros-sangues, vira-latas,rejeitados, marotos, preguiosos e imprestveis. Sua funo consistia emencontrar um meio de aproveit-los. Trabalhando com uma amplavariedade de ces, de todas as origens concebveis, convenceu-se de quepodia treinarqualquerumpara fazeroqueelequisesse, ou seja,dequequalquercopodiasertransformadoconformeseudesejo.Aprendeuqueas inlunciasambientais tmmaispesonaevoluoecomportamentodeumcodoquesuaheranagentica.

    Aps cumprir seu servio militar, escreveu um livro intitulado TheDogs of War [Os Ces de Guerra], publicado pela editora CharlesScribners. Isso lhe valeu o convite para um programa de rdio deaudincianacionalqueentrevistoupessoaspor trsdoesforodeguerraamericano. O programa recebeu vrios convidados notveis, entre elesRobert Oppenheimer, o inventor da bomba atmica. Enquanto esperavaser chamado, meu pai temia acabar perdido no meio daqueles iguresmilitaresmas,parasuasurpresaedeleite,quasetodasasperguntasdo

  • pblico foramdirigidasaele: Comoensinomeucoasesentar?, Comofao para que ele atenda aomeu chamado?, Por que alguns cachorrosmordem?. As pessoas queriam saber mais sobre ces do que sobre adesintegrao do tomo. Percebendo o enorme interesse pelocomportamentoeotreinamentodecachorros,papaiconcluiuquepoderiaviverdaquiloquemaisgostavadefazer.Assim,dependurouumatabuletaporta de seu estabelecimentoda rua86Leste, emManhattan, e iniciouumacarreiraqueo tornaria, possivelmente, oprimeiro treinadorde cesdefamliadaAmrica.

    Porfim,transferiuonegcioparaConnecticut,ondeminhastrsirmseeunascemos,eosucessooacompanhou.CelebridadescomoEdSullivan,Rex Harrison, Robert Goulet, Roger Maharis, Shelly Winters e muitosoutros ricos e famosos como os Strauss, os Johnsons (da Johnson &Johnson) e os Rockefellers ouviram falar de papai e solicitaram seusservios. No cortejo de celebridades e milionrios que vinhamregularmente ao canil, lembro-me bem de um prncipe saudita com umafghanhoundque,quandoviuEileen,minha irmmaisnova,eseusolhosmatizados de trs cores, ofereceu por ela uma soma considervel. Oprncipelevouseucachorro,masnsficamoscomminhairm.

    DuranteaCrisede1929,papaitevededeixarafaculdade,mas,leitorvorazqueera,aprendeusozinhovriasmatrias,podendoconversarcomqualquer um por muito tempo sobre praticamente todos os assuntos.Possuamosemcasamais livrosqueabiblioteca local.Estudandoa fundoosanimais,elereconheceubemcedoamarcado lobonocodomsticoeacabou por rejeitar o ponto de vista vigente na poca, segundo o qual oloboeraummonstroenormeehorrvelcomoodahistriadeChapeuzinhoVermelho. Cresci ouvindo-o dizer aos clientes e ao pblico de suaspalestras que, fora os casos de animais infectados por raiva, no existenenhumepisdiodocumentadodequeumlobotenhaatacadoumhomem.

    Meu pai via o lobo como um ser social altamente evoludo e nissomuito semelhante aos homens algo que, hoje, pressinto ser maisverdadeirodoqueeleouqualqueroutrapessoajamaistenhaimaginado.justo esclarecer que ele foi o primeiro treinador de ces domsticos a

  • explicaraopblicoqueocodafamliaexibeaestruturasocialaltamenteevoludadolobo.Quandoeueragaroto,elemedeuo livro NeverCryWolf[NoSeAlarmeToa] e essahistriadeumpesquisador solitriovendoalm dos esteretipos convencionais de sua poca foi uma inlunciainspiradora.

    Quando estvamos na cidade por ocasio de nossas excursessemanais, emeu pai entrava em apartamentos de luxo para recolher ouentregar ces, eupermaneciano carroparapoder acionar a buzina casoalgum guarda de trnsito aparecesse. Depois, saindo de Manhattan,passvamospelalojadoUpperEastSide,ondemeupaiiniciouseunegciode treinamento de ces com Chum Stropnicky emantinha um pequenoescritrio. Papai brincava com Chum e respondia s suas mensagenstelefnicas,enquantoeuiabuscarsanduchesnalanchoneteprxima.

    svezes,parapassarotempoacaminhodecasa,eutentavaimaginaroqueaspessoasdacidadesentiamquandonosvisitavamnocampo.Fingiaque estava vendo aquilo tudo pela primeira vez. Na primeira hora,corramospelaviaexpressaedepois,nameiahoraseguinte,porpequenasestradas municipais que iam atravessando fazendas e assentamentossuburbanos, entreo condadodeWestchester,NovaYork, eo condadodeFarield, Connecticut. Finalmente, saamos da rodovia 7, emRidgeield, jem Connecticut, para uma estradinha estreita, de roa, que logo entravapor um tnel de estrada de ferro, demo nica, feito de pedra. Quandosaamosdooutro lado, era comosehouvssemos sido lanadospara foradeumtuboquenos levavada loucuradamegalpolenova-iorquinaparauma dimenso inteiramente nova: West Redding, Connecticut. Dali, aestrada prosseguia subindo e descendo colinas ngremes, ladeadas aolongodopercursoporvelhosmurosdepedraquea luzdosol iluminava,iltrando-seporentreasrvores.Umlagodecastoresassinalavaocomeode meu territrio familiar. Cerca de meio quilmetro adiante, a estradaChestnutHillcorriaporentrecamposdecercasbrancascomumlagoeumpequeno rebanho de cavalos e vacas, com nossos celeiros e canilaparecendodistncia.DepoisdevirardireitaparaaestradaMarchant,entrvamosemuma longaentradaparacarros,ondeseviauma tabuleta

  • em estilo colonial com os dizeres: Universidade Canina: Onde seu Co umAristocrata.

    A entrada subia um pouco e contornava uma fonte localizada entredois grandes celeiros de madeira. Em um dos lados do ptio erguia-senossa casa, com vista para um lago. Perto dos celeiros, uma srie deobstculos, plataformas e muros de escalada, onde ces policiais e deguardaeramtreinados.Atrsdosceleiros,noaltodeumacolina,estavaoedifciodocanilparaoscesresidentes.

    Meu pai deixava tudo muito limpo. A piscina brilhava, os gramadosviosos eram meticulosamente cuidados. Edicios e aparelhos estavamsemprepintadosdenovo.AUniversidadeCaninatinhaumvisualperfeito.Os donos, saindo dos carros, perguntavam em tom de brincadeira setambmpodiamicarnocanilcomseusces.Quandometorneitreinador,elessemostravamdispostosaacreditaremtudooqueeudissessedesdeomomentoemquechegavam.

    Nos primeiros anos, papai estabeleceu ali uma atmosferauniversitria.A equipeusavablusas com frases e ouniformeda casa.Osces em treinamento faziam um curso de cinco semanas, ao im do qualrecebiam um diploma de excelncia canina. Das paredes da sala detreinamento,pertodaUniversidadeCanina,pendiamlmulasdeHarvard,Yale,Stanfordeoutrasinstituiesdeensinosuperior.

    Afora toda essa exibio de parafernlia universitria, a vida naUniversidade Canina era quase uma vida de fazenda porque tudo aligirava em torno de animais. No nosso caso: cesmilhares emilharesdeles.Cespequenos,cesgrandes,cesbonzinhos,cesmalvados,cespoliciais,cesdeguarda,cesdecaa,cesdomsticos,cesabandonados.Ir igreja aos domingos, celebrar aniversrios e dias santos, friasfamiliares tudo issosemprevinhadepoisdoscuidadoscomocaniledoempenhoemfazerotrabalhomaisrpidoeeficientepossvel.

    Ao contrrio de outros garotos deminha idade, no aprendia sobreanimaisnosilmesdaDisney,nosprogramasdetelevisoounoslivros.Eusaa commeu pai quando algum empregado nos chamava porque o coestava incontrolvel, quando tinha sido atropelado na estrada ou quando

  • mantinha a polcia fora de uma casa na qual ela precisava entrar. Abriatrilhas no mato para os ces rastreadores que papai estava treinando,escondia-meno celeiropara ser achado, limpava e esterilizavaos objetoscujo cheiro os ces deviam distinguir. Aprendi a acalentar pombos eescond-los em arbustos para que os perdigueiros em treinamento osprocurassem.Meninoainda,aprendi tambmatirarumcoassustadodofundodeseucanil semqueelememordesse.Aos trezeanos,podia lidar,durantehoras,comumcohirsutoeintratvel,prestesameagredir.

    Gostasseounodoqueumanimal fazia, issonoafetavaemnadaamaneiracomointerpretavaseucomportamento.Seumcavaloseassustavaemeatiravaforadasela,eupodiamemachucar,massempreentenderiaque ele estava apenas respondendo instintivamente ao medo. No havianadadeerradoemrecearoqueumcavalopudessefazer,eeudevezemquando icava realmente furioso,mas nunca achei que por isso o animalfosse malvado. Muitos cavalos eu no conseguia domar, mas sabia queemalgum lugarexistia algumcapazde fazeraquilo com facilidade.Paramim, qualquer ato de um animal tinha sentido e sempre havia umamaneiradecontornarasituaocasoeuentendesseoquesepassavanontimodacriatura.Foioquemeupaimeensinou,eeuacreditavaemtudooqueelemedizia.

    No achava, porm, que estivesse aprendendo nada de especial.Considerava-meomeninodocanil.Nofaziaideiadequetinhaacessoaomais bem equipado laboratrio de pesquisa, capaz de investigar osrecessosmaisprofundosdanatureza:ummundodeces,cesemaisces.

    Treinar ces com meu pai no era apenas ensin-los a levantar-se,sentar-seeicarquietos.Ailosoiadetreinamentodemeupaibaseava-senofatodequeosces,comoseuantepassado,olobo,soimbudosdeumaordem social inatamuito semelhante dos homens. Primeiro, uma iguraautoritriadeveseapresentar,eentoaordemseguirnaturalmente.Eleacreditava que tanto os ces quanto as crianas anseiam instintivamentepelaorientaodeumlderaptoa lhes impor limites.Segundomeupai,asociedade, humana ou canina, mantm-se unida pela autodisciplina e oautossacricio inspirados em um bem maior deinido pela igura

  • autoritria. Em um grupo, se cada membro izer o que bem entender, oresultadoserocaos.

    Aimposiodelimitesoqueacontece,navisodemeupai,quandoumcoadultodisciplinaoilhoteouospaiscorrigemoilho.Certavez,elecriouumaninhadajuntamentecomameemoldousuailosoiaemtodoconformeoqueobservouemsuasinteraes.Acreditavapiamentequesquando as orientaes so deinidas com a maior clareza pelo lder damatilha (o que hoje chamamos de alfa) os jovens desenvolvem umaresposta positiva autoridade e vida. Na opinio de meu pai, acapacidadedecontrolarosimpulsosprimitivosemdefernciaautoridadeoquepermitiuaosseressociaiserguerem-seacimadonveldo instintoanimalbsico.Deoutromodo,abarbrieseimporia.

    As ideiasquemeupai articulouno inciodos anos1950 eramoquehavia demaismodernona poca e, desde ento, ganharamvida prpria.Um dia, j durante a dcada de 1970, enquanto almovamos, mameatendeuaotelefoneedisseapapaiqueomongedeumaordemdoestadodeNovaYorkqueria falarcomele. Juntamentecomseus irmos,omongeestava organizando um programa de criao e treinamento. Ele queriasaber se papai, como uma das maiores autoridades do pas no assunto,poderiadaralgumasdicasouassistnciaaseuprojeto.Aparentemente,omongepensavaqueostreinadoresdecessopoucomaisquecolegiaisedeve ter icado aturdido quando papai, sua inimitvel maneira,respondeu:Porquedevolhedardegraaoquemecustoutantotempoedinheiroparaaprender?.Papaivoltoumesaparecendomuitosatisfeitoconsigomesmo.Notinhaideiadequeatochajforapassadaadiante.OsMongesdeNewSketeiriamensinarnovageraodedonosqueumlderdematilhaomelhoramigodoco.

    Fundamentadasnapesquisacienticaegraasaoutrascontribuies,essas ideiasconstituemhojeodogmainstitucionalizadonamatria.Trata-sedeumateoriasedutora,quefereumanotasensvelnapsiquehumana.Certa vez, na dcada de 1970, quando eu comeava a assumir maisresponsabilidades, ofereci-me para atender um cliente fora de hora. Oscesdesseclientetinhampassadoportreinamentoduranteduassemanas,

  • mas ele prorrogou sua viagem de negcios por mais duas, e os cesicaram conosco por esse tempo extra. Meu pai izera a conta e iqueisurpreso, para no dizer um tanto nervoso, quando vi que ele cobraraquatro semanas de treinamento em vez de considerar as duas ltimascomoalojamento.Dizerqueohomemicouchocadoseriapouco.Quebreiacabeaparaacalm-lo.Noconseguindojustificarporqueeleestavasendocobradopelotreinamentoenopeloalojamentoduranteasduassemanasextras, sugeri chamar meu pai. O homem, verdadeiro magnata daindstria,algumqueprovavelmenteandarapassandoporcimademuitagente no pas inteiro, sorriu e perguntou-me: Que tal eu pagar osmil equinhentosdlaresparavocnochamarseupai?.Essafoiamaisvvidademonstraoquetivedodomnioquemeupaiexerciasobreaspessoas.Eleeramaisqueumlderdehomens,eraumlderdecesemsuma,umalfa.

    Averdade,obviamente,quemesmoantesdemeupaiedosMongesdeNewSkete, bemcomodas teorias fornecidaspela cincia, osdonosdeces j tendiam, por instinto humano, a se considerar o co supremo.Sentiamqueo cachorro tinhade conhecer seu lugar e aprenderquemera o chefe.Meu pai, e agora CesarMillan, apenas levam em conta umapredisposio instintiva j existente na psique humana. Desde o comeo,tentei separar intelectualmente nosso mtodo de treinamento da prticacomum, mas uma vozinha em meu ntimo sussurrava que a teoria damatilhanoeratocienticaassim.Achavaquedeviahaverumamaneirapela qual um co pudesse, a seu prpriomodo, compreender a essnciadaquilo que lhe pedamos durante um treinamento de obedincia.Supunhaqueelefossecapazdeentenderrealmenteoquequeramos,nodamaneirahumana,masdamaneirapelaqualoscesentendemascoisas,sejaelaqualfor.

    Enquanto isso, papai observava que donos de ces rebeldes erammuitasvezespaisde ilhos irrequietos.Quandoas famliaschegav