“Seu New Wave”: disputas juvenis e rock em Florianópolis ... · 19 anos eu tinha quando vim...

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“Seu New Wave”: disputas juvenis e rock em Florianópolis (década de 1980) CARLOS EDUARDO PEREIRA DE OLIVEIRA 1 Apressando, e com espaço limitado para relembrar fatos e fotos, vou apenas instigar a imaginação do leitor que viveu aquela época de rock, surfe e brotos no grande palco da Ilha, a nossa Joaca, antes da fama mundial de Florianópolis. Aquela era ainda uma época em que a cidade não tinha sido invadida. Iam a praia as mesmas turmas que iam às festas do Paineiras, do Doze e que se encontravam à noite no Big Bravos, Iron Bar, Agapito... A cidade na verdade era uma turma só (MENEZES, 2008). Em um dos textos de sua coluna, o jornalista Cacau Menezes inicia uma fala apaixonada sobre o Bar do Chico, restaurante que se localizava na praia da Joaquina, na região leste da Ilha de Santa Catarina. Por lá, segundo Menezes, se encontravam os jovens que circulavam por uma Florianópolis que, segundo ele próprio, ainda “não tinha sido invadida”. Esses jovens, para o autor, são os mesmos que iam a diversos outros locais, e que, “na verdade, era uma turma só”. A colocação de Cacau Menezes se aproxima de uma ideia homogênea sobre a juventude. Quando afirma que, “na verdade, era uma turma só” que vivia em Florianópolis, o jornalista evoca uma série de elementos que corroboram com ela, e que não estão, necessariamente, escritos. O que Menezes agencia nessa frase? Qual é sua visão sobre os jovens que viviam na capital catarinense na “época dourada” do Bar do Chico? Essas perguntas dialogam com este trabalho: através de entrevistas realizadas com músicos, radialistas, jornalistas e outros que participavam das cenas de rock na cidade, e ancorada com as questões sobre a memória e a forma como ela se constitui no presente, o objetivo aqui proposto é analisar as disputas entre os jovens de Florianópolis nos anos 1980, tendo como foco aquelas que se perfaziam no rock. Assim, podemos lançar uma pergunta que costura a narrativa: afinal, Florianópolis era composta por “uma turma só”? “Eles ficaram perdidos quando Florianópolis foi invadida, entendeu?”: a capital nos anos 1980. Ricardo Davoli (ou Pena), natural de São Paulo, veio para Florianópolis no final da década de 1970 para cursar Geografia na Universidade Federal de Santa Catarina. Escolheu a cidade por abrigar o melhor de dois mundos: o surf e a universidade pública. 1 UDESC, mestrando em História, apoio CAPES.

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“Seu New Wave”: disputas juvenis e rock em Florianópolis (década de 1980)

CARLOS EDUARDO PEREIRA DE OLIVEIRA1

Apressando, e com espaço limitado para relembrar fatos e fotos, vou apenas

instigar a imaginação do leitor que viveu aquela época de rock, surfe e

brotos no grande palco da Ilha, a nossa Joaca, antes da fama mundial de

Florianópolis. Aquela era ainda uma época em que a cidade não tinha sido

invadida. Iam a praia as mesmas turmas que iam às festas do Paineiras, do

Doze e que se encontravam à noite no Big Bravos, Iron Bar, Agapito... A

cidade na verdade era uma turma só (MENEZES, 2008).

Em um dos textos de sua coluna, o jornalista Cacau Menezes inicia uma fala

apaixonada sobre o Bar do Chico, restaurante que se localizava na praia da Joaquina, na

região leste da Ilha de Santa Catarina. Por lá, segundo Menezes, se encontravam os

jovens que circulavam por uma Florianópolis que, segundo ele próprio, ainda “não tinha

sido invadida”. Esses jovens, para o autor, são os mesmos que iam a diversos outros

locais, e que, “na verdade, era uma turma só”.

A colocação de Cacau Menezes se aproxima de uma ideia homogênea sobre a

juventude. Quando afirma que, “na verdade, era uma turma só” que vivia em

Florianópolis, o jornalista evoca uma série de elementos que corroboram com ela, e que

não estão, necessariamente, escritos. O que Menezes agencia nessa frase? Qual é sua

visão sobre os jovens que viviam na capital catarinense na “época dourada” do Bar do

Chico? Essas perguntas dialogam com este trabalho: através de entrevistas realizadas

com músicos, radialistas, jornalistas e outros que participavam das cenas de rock na

cidade, e ancorada com as questões sobre a memória e a forma como ela se constitui no

presente, o objetivo aqui proposto é analisar as disputas entre os jovens de Florianópolis

nos anos 1980, tendo como foco aquelas que se perfaziam no rock. Assim, podemos

lançar uma pergunta que costura a narrativa: afinal, Florianópolis era composta por

“uma turma só”?

“Eles ficaram perdidos quando Florianópolis foi invadida, entendeu?”: a capital

nos anos 1980.

Ricardo Davoli (ou Pena), natural de São Paulo, veio para Florianópolis no final

da década de 1970 para cursar Geografia na Universidade Federal de Santa Catarina.

Escolheu a cidade por abrigar o melhor de dois mundos: o surf e a universidade pública.

1 UDESC, mestrando em História, apoio CAPES.

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Eu vim em 79. 19 anos eu tinha quando vim pra cá. Aí vim pra fazer

Geografia. Porque eu tinha que fazer uma universidade federal, porque

minha família não tinha grana e tal, e ai, porra, juntei tudo, porque eu já

pegava onde, já andava de skate lá em São Paulo. Já curtia o rock and roll,

desde moleque, como eu te falei. Então falei, puta, Floripa é o lugar certo,

tem surf, e, po, eu vou pra lá, universidade federal, não pago nada, vou pra

lá2.

Assim como Pena, José Luis Carvalho (ou Zeca) veio para Florianópolis por

conta das ondas. Praticante do surf “desde sempre”, chegou em 1982 para trabalhar com

música. Natural de São Paulo trabalha como DJ “desde que nasceu”, e junto com Pena

foi um dos idealizadores e apresentador do programa de rádio Sincronia Total, que

diariamente tocavam diversas músicas do espectro do rock. Osias Alves Jr, 47 anos, é

natural de Santos, litoral paulista, mas veio para Biguaçu, na região metropolitana da

capital, aos seis anos, em 1976. Cursou e se graduou em jornalismo na Universidade

Federal de Santa Catarina (UFSC) no final dos anos 1980, tendo um trânsito constante

com a Ilha de Santa Catarina.

Antônio Carlos de Barros, 66 anos, é músico radicado em Florianópolis. Natural

de São Paulo, entre idas e vindas acabou por escolher a Ilha de Santa Catarina como sua

casa. Chegou a cidade pela primeira vez em 1976, com 26 anos, para trabalhar com a

confecção de pranchas de surf e, paralelamente, a música.

Vim pra morar. Então eu falei, cheguei... Eu tinha uma faculdade trancada

de Engenharia lá em São Paulo... Porque eu já fazia prancha, tinha minha

oficina. Então o que eu ganhava, tinha meu fusquinha, então o que eu

ganhava botava de gasolina pra pegar onda no fim de semana. (...) Então, eu

cheguei aqui em Florianópolis, foi nessa época aqui, em 76. Em 77, 78, a

gente começou a formar isso aqui, que foi a banda Paz e Amor nas Estrelas.

Eu e um amigo meu que também fazia prancha. Eu falei ‘po, você tem que

fazer prancha lá cara, em Florianópolis’3.

Assim como esses sujeitos, outros também migraram para a capital a partir da

década de 1970. Florianópolis viveu uma explosão migratória, complexificando e

modificando a sua paisagem urbana, contrastando com a cidade que se desenhava até

esse período, com um núcleo urbano pouco extenso, rodeada por núcleos esparsos e

dedicados a atividades agrícolas e pesqueiras, em que somente tinham contato com o

centro urbano quando necessário, tendo que enfrentar diversas dificuldades, como as

distâncias, precariedade das vias e falta de meios de locomoção (FALCÃO, 2010, p.2).

2 Pena. Entrevista concedida ao autor. Florianópolis, ago. 2017

3 Antônio. Entrevista concedida ao autor. Florianópolis, nov. 2017

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Conseguimos identificar um período de grande desenvolvimento urbano em

Florianópolis após os anos 1970. O aumento populacional, em decorrência das

migrações e do crescimento da população que resedia na cidade, se demonstra como um

fator preponderante nessa análise, como evidenciado por Rafael Dias. Segundo o autor,

houve uma radicalidade nas transformações urbanas e sociais na segunda metade do

século XX, com uma ocupação intensa de toda parte insular de Florianópolis, e

principalmente após a década de 1970, com a chegada de migrantes, muitas vezes

naturais de outras capitais do país, evidenciando que o maior contingente era do meio

urbano (DIAS, 2013). Além disso, temos uma complexificação da estrutura econômica

da cidade, com o aumento de empregos ligados à área governamental e o aumento de

trabalhadores públicos. Segundo Dias, podemos perceber que Florianópolis empregava

muitas pessoas de áreas que não na indústria, carro-chefe das maiores cidades do

Estado, como Joinville e Blumenau. Boa parte desses trabalhadores era migrante,

contribuindo para essa mudança.

Pena, Zeca, Osias e Antônio migraram para Florianópolis nesse período.

Independente de suas motivações, podemos compreender suas falas sob a ótica do

deslocamento, de pessoas em trânsito que saíram de suas cidades natais, e vieram

procurar abrigo em uma nova cidade. Uma capital que, em contraste com São Paulo,

reunia aspectos que consideravam cruciais para suas vidas. Antônio, ao falar sobre sua

vinda para Florianópolis, é categórico:

Vim aqui pro paraíso né cara. Eu não queria mais cidade grande, eu queria

mais a natureza, eu queria a onda, a praia, então eu vim pro paraíso. Isso

aqui antigamente era uma coisa... Hoje o cara que tá com quase 40 anos e

fala “puta Antônio, lembra, eu era moleque naquela época, e você falava que

isso aqui ia se tornar e eu não acreditava”, ia se tornar um inferno. (...) As

pessoas alimentavam os filhos, entravam na Lagoa pra caçar o siri e o

camarão, que era desse tamanho. O cara entrava, “não não, pera ae”. A

gente pegava onda, vinha pra casa, que era lá no Canto da Lagoa, o cara já

parava “não, pera ae, desce aí, come um camarãozinho”. Aí o cara pegava

um balde, entrava a pé na Lagoa, isso eu vi cara, pegava uns camarões desse

tamanho [fazendo sinal com as mãos de algo grande]. Ele alimentava os 10

filhos assim. (...) Eu fui um dos primeiros a chegar, quando eu cheguei aqui

só tinha uma pessoa que tinha vindo de São Paulo já, que tinha alugado uma

casinha. (...) Mas eu vim pro paraíso nessa época, mas agora eu to querendo

retornar ao paraíso, um lugar igual a quando eu cheguei aqui, não tinha

asfalto não tinha nada. Procuro esse lugar de novo, um lugar assim pra

viver4.

4 Antônio, op cit.

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Pena, ao discorrer sobre seu início de amizade com Zeca, corrobora com a ideia

de que todos em Florianópolis se conheciam, faziam parte da mesma turma, quando

coloca sua impressão sobre a cidade dos anos 1980.

A gente já se conhecia, e o Zeca tinha um monte de coisa de som, de vinil,

que eu não tinha. O Zeca era mais chegado prum reggae, curtia rock

também, mas ele tinha muita coisa de reggae que eu nem conhecia. (...) E ai

a gente começou a fazer umas festas juntos aqui na Lagoa. Porque não tinha

nada, não tinha bar, não tinha porra nenhuma, e as pessoas se conheciam,

todo mundo se conhecia da praia, ‘ah, vamos fazer uma festa na casa de

fulano’, ‘tá, quem vai fazer o som?’ ‘O Pena e o Zeca’5.

Zeca também adiciona elementos que corroboram com essa visão.

Puta, era a cidade mais linda do Brasil. Nossa, era um tesão cara. Todo

mundo se conhecia aqui, todo mundo era amigo, todo mundo se respeitava,

não tinha violência, pessoal era legal. Nunca teve um problema, tinha uma

briga ou outra, mas era muito pouco. Nada. Não tinha nem página policial.

Policial de vez em quando ia lá, em Biguaçu, o cara pegava facão, passava

na galinha do outro, era o máximo, não tinha nem página policial6.

André Seben é músico e jornalista, radicado em Florianópolis, mas natural de

Joaçaba, cidade do interior catarinense. Com 47 anos, toca guitarra em uma banda – a

Farra do Bowie – e trabalha em uma editora. Mesmo vindo de outra realidade urbana,

Seben corrobora com essas mesmas visões sobre Florianópolis

Isso aqui era um sítio, velho. Eu vim morar aqui em 1982. Isso aqui era uma

estrada de chão... A minha casa era aqui, por isso o prédio tem o nome do

meu pai, não é porque meu pai é o dono do prédio. Mas a gente construiu

uma casa aqui, depois pra vender pra construtora, a construtora, dentro do

negócio, ‘não, a gente bota o nome do seu pai’, sabe? [...] Mas enfim, isso

aqui era um sítio, estrada de chão. A primeira vez que eu vim visitar o

terreno, aqui, eu tinha 8 anos, um cachorro me mordeu, era só bambu7.

Podemos compreender, através dessas falas, que existem diversas narrativas

sobre a Florianópolis dos anos 1980. Entretanto, elas resguardam pontos em comum,

inclusive com aquela passagem que inicia esse texto. Algumas colocações sobre a

cidade oitentista dão conta desses aspectos. A população urbana ultrapassou a rural

somente na década de 1970, em Santa Catarina, como evidencia Dias (DIAS, 2013,

p.34). Ademais, diferente de outras cidades do Estado, Florianópolis recebeu maior

número de migrantes vindos de outros centros urbanos, como São Paulo e Porto Alegre,

por exemplo, influenciando na sua demografia. É desse fluxo migratório que Pena,

5 Pena, op cit.

6 Zeca Carvalho. Entrevista concedida ao autor. Florianópolis, ago. 2017.

7 André Seben. Entrevista concedida ao autor. Florianópolis, set. 2016

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Zeca, Osias e Antônio são provenientes. Novamente recorrendo as suas falas, vimos que

a saída desses grandes centros se ancoram, principalmente, na procura por uma cidade

calma, pacata e próxima a praia. Zeca, ao falar sobre a relação com as bandas, diz que

“o pessoal do Inocentes ficava aqui na minha casa. Não é que ficava, é porque era

assim, sabe? Em São Paulo já era uma cidade mais fria né?8”. Antônio foi mais incisivo:

“Ah, dai eu larguei São Paulo, cheguei pros meus pais e falei ‘ó, até logo, to indo

embora, vou morar em Santa Catarina’. Por causa das ondas que tem aqui. Daí eu

peguei meu fusca e vim embora”.

Visões sobre uma cidade pacata, que não tinha violência e, quando tinha,

acontecia longe da ilha, em uma região periférica (na qual se localiza Biguaçu e outros

municípios da região metropolitana). Um lugar em que todos se conheciam,

congregavam uma amizade mútua, se respeitavam e viviam em harmonia. Uma

definição que se aproxima daquilo que o catolicismo prega como o paraíso. As

narrativas desses sujeitos se cruzam quando colocam Florianópolis nesse patamar.

Novas formas se experenciar a cidade eram postas a prova, muito por conta da vinda

desses migrantes urbanos, acostumados com um ritmo diferente no seu cotidiano. Dias

coloca que a urbanização em Florianópolis teve caráter modernizante e acelerado, em

que podemos ver contrastes entre as novas e antigas formas de se viver e enxergar

Florianópolis (DIAS, 2013). Entretanto, mesmo com esses choques, vimos um conjunto

de discursos sendo evocados pelos próprios migrantes, como essa ideia de que todos se

conheciam, ou que a cidade era um paraíso na terra. Segundo Reinaldo Lohn,

Grande parte da população de Florianópolis vivenciou a construção, na

década de 1960, de um dilema que opôs desenvolvimento e mudança a atraso

e tradição. Um horizonte polifônico abriu-se, para logo ser fechado,

traduzido em termos de passado ou futuro. Quanto ao presente, esse parecia

pouco interessar. Como uma cidade sem presente, a capital parecia

reproduzir ritmos que remetiam ao passado e às sociabilidades tradicionais,

com sua decantada mansidão e tranquilidade (LOHN, 2016, p.169).

Mais uma vez, colocamos em voga a pergunta inicial do trabalho: Florianópolis

era composta por uma única “turma”? Podemos levantar pontos que contrastam a ideia

de uma cidade única, onde todos se conheciam, sem crimes, em que todos faziam parte

de uma mesma turma. Somente a partir desse exercício, começaremos a enxergar

Florianópolis como uma cidade complexa e multifacetada, com inúmeras disputas e

embates em sua malha urbana, e com sujeitos tão multifacetados quanto ela.

8 Zeca. Op. cit.

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“Musiquinha new wave”: os embates do rock em Florianópolis

Uma das formas de analisar o caráter polifônico de Florianópolis é através da

música. Somente pela sua pluralidade, poderíamos compreender os espaços que cada

estilo musical ocupa na estrutura urbana: as rodas de samba na Travessa Ratclif e no

Mercado Público aos sábados; o sertanejo em casas de shows com grande estrutura; as

baladas alternativas no Centro, uma região conhecida pela prostituição; e o rock, em

suas diferentes acepções e com locais espalhados pela cidade. Entretanto, o objetivo

deste trabalho é analisar o rock através de um olhar histórico, colocando pontos que

dialoguem com questões de identificações e urbanidades. Para isso, voltemos a matéria

de Cacau Menezes sobre o Bar do Chico, “o templo mais festeiro da cidade nos anos

1980” (MENEZES, 2008).

Como colocado anteriormente, ele afirma que todos faziam parte de uma mesma

turma, que ia até a praia da Joaquina, a “única praia das décadas de 70 e 08 que

bombava em Floripa”, para se divertir no bar em questão, “antes da fama mundial de

Florianópolis”. Vimos, inclusive, que a narrativa é evocada pelos sujeitos aqui

entrevistados, dando conta de que na capital “todos se conheciam”, não existia crime,

um paraíso na terra. Porém, devemos lançar questões sobre essas afirmações.

Comecemos, então, com a fala de Menezes: quem são esses “todos” que ele evidencia

em sua matéria, que “todo dia, dando sol, todo mundo dava um pulo até a praia da

Joaquina”?

Imagine um lugar onde todos os dias, as melhores e mais conhecidas pessoas

da cidade — de 15 a 50 anos, se encontravam para conversar, beber,

dançar, mergulhar, jogar futebol, frescobol, surfar e até fumar maconha. E

de barrigas e pernas de fora. A Joaquina foi a cópia mais fiel do Pier de

Ipanema, no Rio. E o Bar do Chico era a nossa Pizzaria Guanabara, o point

da moçada no Baixo Leblon (MENEZES, 2008).

Podemos compreender essas afirmações através da inserção social do próprio

Cacau Menezes. Filho de um dos maiores jornalistas do Estado, Manoel de Menezes,

exerce a mesma profissão do pai desde a década de 1970, se notabilizando pela sua

coluna social nos principais jornais de Santa Catarina. Uma figura pública, que

organizou em 1978, nesse mesmo Bar do Chico, o festival Rock, Surfe e Brotos9, junto

9 Realizado em Junho de 1978, foi idealizado por Cacau Menezes e Ricardinho Machado, também

jornalista e colunista social. Consistia em um campeonato de surf durante o dia e, a noite, bandas de rock

faziam seus shows. Ficou marcado pela ação da Polícia Militar e, principalmente, na figura do Delegado

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com Ricardinho Machado, também colunista social na cidade. O evento, em conjunto

com o Palhostock10

, está no panteão dos maiores que ocorreram na região, e que tinham

o rock como pano de fundo. Conseguimos estruturar uma noção do local de fala do

jornalista, inserido na classe alta de Florianópolis, com trânsito facilitado nesse meio e

com peso de ser alguém famoso na cidade. Como ele mesmo coloca em sua matéria

Foi lá que fizemos, eu e Ricardinho, o lendário Rock, Surfe e Brotos. Foi lá

na Joaquina que convenci, numa festa no hotel do meu pai, o indicado

prefeito de Florianópolis, Esperidião Amin, debutando no cargo, a

pavimentar a estrada da Joaquina. Foi para lá que levei o Tim Maia, o

Serguei, o Edu K, o Evandro Mesquita, o Pato Banton, o Cidade Negra

(MENEZES, 2008).

Podemos compreender que Menezes está falando de uma determinada camada

da juventude florianopolita, em uma classe social com alto poder aquisitivo, inserção

em diversos meios da sociedade que outros jovens não estavam presentes. Como

aqueles que estiveram no show da banda punk paulista Cólera, em 1987, no bar Metrô,

localizado no bairro Estreito, região continental de Florianópolis. O grupo, um dos

maiores do gênero no país, veio para a cidade por intermédio de Pena e Zeca, e

enfrentaram diversos problemas. Segundo Pena:

Eles tinham um pouco de medo. Bom, a gente fez o Cólera, cercaram o

quarteirão e levaram todo mundo em cana. Acabou o show, abriu as portas

do final do show, quem tava dentro do show assistindo saía e entrava no

camburão. Não precisava nem perguntar, era direto. Prenderam 300

pessoas. Quarteirão da Metrô tava cercado com uns 20 camburão, ônibus

pra levar os caras. Queriam prender a banda e queriam prender a gente

também. Mas a gente se escondeu lá, nos fundos lá, ficamos lá até o negócio

se acalmar, entendeu? Porque ninguém tinha visto punk rock, os caras

ficaram assustados. Os caras da Metrô, que fizeram o show, viram os caras

chegando lá de moicano, com umas correntes, com umas botas, uns saltos de

metal, eles falavam ‘que que são esses caras?’. Isso era 87, imagina?11

Elói, fazendo uma grande operação para acabar com o evento. A sua célebre frase, “nem todo maconheiro

é surfista, mas todo surfista é maconheiro”, estampou as manchetes do jornal O Estado no período,

marcando esse evento. Para saber mais sobre o tema, ver: BORGES, Maurio. Rock, Surf e Brotos:

muita polícia e pouca onda. Blog Waves, 2008. Disponível em: <

http://waves.terra.com.br/surf/noticias/colunaspalanquemovel/rock-surf-e-brotos/muita-policia-e-pouca-

onda> Acesso em: 16/09/2017. ILHA 70. Roteiro e Direção: Marco Martins e Loli Menezes.

Documentário, 7:12. Vinil Filmes, 2010. Disponível em: <

https://www.youtube.com/watch?v=sATEz4yR2X0> Acesso em: 16/09/2017 10

Palhostock – originalmente, 1º Festival de Música Pop – foi uma festival de música que pretendia

seguir os moldes do Woodstock, com música ao ar livre. Um dos maiores festivais catarinense dos anos

1970 reuniu uma série de jovens no estádio Renato Silveira, em Palhoça, em Outubro de 1974. Para saber

mais, ver: DE SOUZA, Manoela. Música e Constentação: Palhostock, o Woodstock de Santa Catarina.

Revista Santa Catarina em História, Florianópolis, v.9, n.2, 2015, p.38-50. ILHA 70, op. cit. 11

Pena. Op cit.

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8

A escolha do local, segundo Zeca, se deu por conta da “estrutura mais ou menos pras

bandas poderem” tocar. Mesmo assim, o que ele recorda sobre o show foi a atuação da

polícia. Como ele coloca

O Cólera mesmo, a polícia do exército foi lá e cercou... Tava tendo

campeonato Brasileiro de Surf né, na Joaquina, o Dadá Figueiredo, cara

pegava onda pra caralho, adorava Dead Kennedy’s, adorava. E o Dadá foi

lá nesse show né velho, vendo o Cólera, do Redson, meu amigo que morreu,

quando de repente escuta falar a moçada que tava saindo ‘meu, os caras

cercaram, cercaram a Metrô’, e a Polícia do Exército prendendo todo

mundo que tava de coturno, prenderam. Deram a volta no lugar, cercaram,

que nem bandido, metranca e o cacete... ‘cê tá de coturno, tira’... Prenderam

o Dadá Figueiredo. E eu que fazia o som do campeonato também, direto,

chegou lá, cadê o Dadá? Chamavam o Dadá... Falei, ‘caralho o Dadá foi

preso!’. Os caras cercaram a Metrô só porque a moçada tava de coturno,

porra meu!12

Podemos enxergar uma complexidade na juventude florianopolitana. Cacau

Menezes coloca que todos faziam parte do mesmo grupo, mas vimos através das falas

de Pena e Zeca que não existiam ligações estreitas entre o Bar do Chico, por exemplo, e

o bar Metrô. Aprofundando, a única turma de Menezes, na verdade, era uma daquelas

que viviam em Florianópolis, e que pouco se aproxima da turma que viu o show da

banda Cólera e teve problemas com a polícia. Podemos entender que ambas as visões

fazem parte da cidade, e dela são produtos. A diversidade de narrativas existentes sobre

o rock é posta a prova através desses pontos. Mesmo com o rock sendo um dos

aglutinadores dos jovens inseridos nessas diferentes realidades, quero chamar a atenção

para a sua heterogeneidade.

Devemos compreender a juventude como uma construção histórica, indo de

encontro com a ideia dos jovens inseridos em uma unidade social. Como coloca José

Machado Pais, as representações correntes sobre ela é que a condicionam sobre uma

noção homogênea da juventude (PAIS, 1990). Assim, demonstra-se essencial questionar

esse caráter unitário, trabalhando com as fissuras dessas mesmas representações e

discursos construídos sobre ela, colocando outro olhar sobre o conceito. Para Ana Maria

Frota, encará-la por esse viés nos auxilia a compreender suas “múltiplas emergências”,

evidenciando um caráter multifacetado em que os sentidos sobre ela são construídos,

evidenciando-a como uma categoria historicamente construída (FROTA, 2007).

12

Zeca. Op cit.

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9

Dialogando com essas noções, podemos compreender as fissuras em uma ideia

unitária sobre a juventude florianopolitana. Na década de 1980, conseguimos enxergar

diferentes grupos que coexistem na cidade, com trânsitos próprios e sociabilidades

diversas. Como evidenciado anteriormente, a juventude que Cacau Menezes coloca

dialoga com a juventude de Pena e Zeca na questão do rock. Porém, se afasta em

diversos outros pontos, como as classes sociais envolvidas e os locais que transitavam,

por exemplo. Podemos nos aprofundar em mais duas questões, para analisar a

complexidade dos jovens oitentistas que viviam na capital de Santa Catarina: as relações

entre aqueles que moravam na ilha e no continente, e a preferência por certos estilos de

rock de acordo com a localização.

Osias nos dá alguns indícios sobre as fissuras entre os jovens do rock em

Florianópolis. Para ele:

Os roqueiros assim de... pesado assim e tal, de heavy metal né, eram uma

minoria. Porque Florianópolis tinha uma fama assim, de cidade de... porque

na época surgiu uma música chamada New Wave. Aí o New Wave era como

se dizesse assim que ‘seu New Wave’, quer dizer ‘seu viadão’. O New Wave

era xingamento porra. Escutar The Cure não, The Cure aí é... como vou

dizer assim... é o fim da picada né13

.

Próximo ao gênero do heavy metal, Osias via poucas opções de locais e bandas

desse estilo. Além disso, enxergava uma proliferação de bandas com outro estilo

musical, o new wave, sendo algo característico de Florianópolis. Osias, como colocado

anteriormente, residia em Biguaçu, região metropolitana da capital e distante 20km dela.

Assim como ele, outras pessoas que residiam nas cidades próximas reservavam

características diferentes daqueles que estavam na Ilha de Santa Catarina, respaldadas

por questões de classe, por exemplo. A área continental da cidade – e sua região

metropolitana – foi povoada por trabalhadores que não encontravam moradia dentro da

ilha, principalmente por conta dos altos preços dos imóveis, fruto de especulação

imobiliária que teve um boom a partir dos anos 1970. Como Lohn coloca

As diferentes opções de desenvolvimento, a escolha dos locais para a

expansão e localização de novos empreendimentos públicos e privados, a

suburbanização da área continental e o enobrecimento da região norte da

ilha, corresponderam a diferentes formas de pensar a cidade. (LOHN, 2016,

p.19).

13

Osias. Entrevista concedida ao autor. Florianópolis, set. 2017

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Corroborando com essas colocações, podemos aproximar essa discussão com a

formação de bandas na cidade nos anos 1980. Mesmo não alcançando sucesso nacional,

as bandas de rock de Florianópolis reservavam uma grande fama regional, em shows

com grande público, músicas próprias e LP’s lançados. Entre essas, podemos destacar

Expresso Rural14

, Tubarão15

, Decalco Mania16

, e Burn17

, todas bandas de rock18

, com

estilos próprios e que se diferenciavam. As três primeiras, por exemplo, contavam com

moradores de Florianópolis, principalmente da região central, e faziam uma música que

se aproximava do New Wave. Já a última, com membros que residiam na região

continental e metropolitana da capital, era um som mais pesado, próximo ao heavy

metal. Segundo Rodrigo de Souza Mota, “estas bandas são compostas, geralmente, por

cabeludos que muitas vezes são considerados drogados ou marginais apenas pela

aparência. Na verdade, usam esta aparência para chocar.” (MOTA, 2009, p.54). Osias

discorre sobre essa diferenciação:

O Burn é lá de São José, lá da região do bairro Ipiranga. Então o Burn ali,

aquela música ali, o rock, era tido como da periferia e dos mais pobres. A

ilha preferia uma música mais new wave, mais ligada ao reggae, ou é

surfista, mas aquela musiquinha que a gente odiava né. Musiquinha new

wave. (...) Quando eu entrei na faculdade de jornalismo, eu escrevi uma

reportagem, um trecho da matéria, sobre uma banda, acho que era o

Heroica. (...) Foi em 1988, entrei na faculdade nessa época né. Aí eu escrevi

o seguinte, eu não sei, a frase foi muito doida né, aí falando que o Heroica

né, entrou no cenário da ilha dominada por bandinhas que tocam música de

ameba, amestrada (...). Então era esse cenário de Florianópolis, é o

popzinho, a musiquinha mauricínha. E o continente era a região dos mais

roqueiros, dos mais pesados e tal, que gostava mais dessa música mais

pesada, mais underground19

.

14

Uma das principais bandas de rock de Florianópolis no período, Expresso Rural foi formada em 1981

por Zeca Petry e Daniel Lucena. Naturais de Lages, região serrana do Estado, montaram a banda em

conjunto com outros quatro músicos, todos naturais da mesma região. Mesmo assim, é radicada em

Florianópolis. Em seus primeiros trabalhos, se aproximavam do rock rural e do folk, e posteriormente, ao

new wave. 15

Outra banda com relativo sucesso na cidade, a Tubarão (ex-Ratones) foi formada em 1977, pelos

irmãos Paulo e André May, naturais de Tubarão, região sul do Estado. Vieram a Florianópolis para a

universidade, e alcançaram sucesso regional nos anos 1980. Seu estilo de música era próximo ao new

wave. 16

Mesmo sem gravar um EP, a Decalco Mania foi uma das grandes bandas do período em Florianópolis.

Marcado pelo estilo new wave, era formada por Iran Melo, Murilo Valente, Airton Perrone, Ivan Ratclif,

Kaw Régis e Murilo Verde. O ponto alto foi a abertura do show da banda Barão Vermelho, no Circo

Voador do Rio de Janeiro que rendeu uma boa exposição para a Decalco, além de elogios do então

vocalista Cazuza. 17

Burn foi um dos principais nomes do metal catarinense nos anos 1980. Criada em São José (região

metropolitana de Florianópolis) pelos irmãos Márcio Silva e Vitor Celso, o Burn ficou famoso pelos

efeitos de iluminação utilizados, os instrumentos feitos manualmente, e por ser uma das primeiras bandas

desse gênero musical na região. 18

Para saber mais sobre estas e outras bandas de rock de Florianópolis, ver: MOTA, Rodrigo de Souza.

Rock dos anos 1980, prefixo 48: um crime perfeito? Dissertação (mestrado em História). Universidade

Federal de Santa Catarina (UFSC). 2009, 180 p. 19

Osias, op cit.

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Conseguimos observar um distanciamento, nas narrativas colocadas, entre os

ilhéus e os continentais em Florianópolis. Relembrando, Osias é morador de Biguaçu,

região metropolitana da capital e distante, aproximadamente, 20km do Centro. Nos anos

1980, poderia ser apontando como um headbanger20

, por conta de suas falas aqui

elencadas, e também pelo seu gosto musical, que passa por bandas de heavy metal como

Exodus, Venom e Iron Maiden. Aprofundando nessa diferenciação, podemos enxergar

um distanciamento não somente pela localização geográfica, mas também pelo estilo

musical ouvido e executado nesses locais: aqueles que moravam na Ilha eram

relacionados ao new wave, seja pelas músicas das bandas que se ali se situavam, ou

pelos locais que as tocavam; em um contraste estético e técnico muito grande para com

o metal, por exemplo, era encontrava reverberação na região continental.

Desta forma, temos a marginalização e a rebeldia como elementos centrais na

constituição das identificações desses jovens citados anteriormente. Aqueles que

estiveram no show da banda Cólera sofreram com os olhares tortos dos donos do local

e, também, com a investida da polícia, assim como os cabeludos das bandas de heavy

metal da região continental e metropolitana de Florianópolis. A diferenciação com o

restante da sociedade é uma forma de constituição de identificações para esses jovens,

que buscavam na chave da diferença com os new waves ilhéus sua própria forma de se

enxergar como sujeito. Como Costa, Tornero e Tropea apontam

De alguna manera, se sienten minusvalorados o desplazados por el sistema –

la escuela, la familia, los adultos, etc. – y quieren conducirse de un modo que

expresa que se resisten a ese desplazamiento. De esta manera, cuando se

visten, se adornan o se comportan siguiendo ritos, ritmos y costumbres que

no pertenecen a la normalidad adulta, están manifestando su rebeldía y

buscando, a través de ellas, la construcción de una nueva identidad y de una

nueva reputación (COSTA, TORNERO, TROPEA, 1996, p.13)21

.

Lançando questionamentos sobre as afirmações anteriores, uma delas chama a

atenção: o fato de remeter um gênero musical a sexualidade. Condicionando o new wave

a homossexualidade, podemos compreender um fator que estigmatizava o gênero e,

principalmente, a sexualidade, colocando esse fator como um distanciamento entre esses

20

Headbanger é a denominação utilizada para a cultura de fãs de heavy metal e suas variações, fazendo

menção a forma de “dança” desse estilo musical. 21

“De alguma forma, eles se sentem subestimados ou desprezados pelo sistema – a escola, a família, os

adultos, etc. - e querem se comportar de uma maneira que expressa que eles resistem a esse deslocamento.

Desta forma, quando se vestem, se adornam ou se comportam seguindo ritos, ritmos e costumes que não

pertencem à normalidade adulta, estão manifestando sua rebeldia e buscando, através delas, a construção

de uma nova identidade e uma nova reputação” (Tradução livre feita pelo autor).

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sujeitos. Quem morava na Ilha, então, era o playboy, que escutava new wave e, por

conta disso, homossexual; enquanto os continentais eram pobres, que ouviam heavy

metal, e eram heterossexuais. Mesmo com características transgressoras para a

sociedade, através de suas roupas, cabelos e atitudes, resguardam alguns de seus

aspectos normativos, especialmente aqueles calcados na esfera da sexualidade. Com um

discurso pejorativo sobre a homossexualidade, a hierarquizam negativamente com

relação a heterossexualidade, resultando em lugares-comuns, com visões esteriotipadas

e preconceituosas22

. Com isso, condicionam uma prática musical a sexualidade para

colocá-la em detrimento de outras.

Considerações finais

Era música ridícula dos anos 80, Menudos né. Aí... a gente, roqueiro, fazia

piada né. Ao The Cure, né, aquela música Boys Don’t Cry, fazia uma piada

daquilo ali. Até, deixa eu lembra, tinha uma... É, nós tínhamos um ataque ao

Boys Don’t Cry, né, e nós tínhamos uma piada com o The Menudos né.

‘Dança sem parar’, é ridículo23

.

Uma das afirmações que Osias colocava se mostra interessante. “A gente,

roqueiro, fazia piada”. A piada, nesse caso, era com os Menudos, e também com The

Cure e o new wave, e quem dava risada desses estilos eram os “verdadeiros roqueiros”,

na sua visão. Se diferenciar dessas músicas era essencial na construção da identificação

como headbanger: um acordo tácito, extremamente visível em diversos momentos. Ao

escutar heavy metal, automaticamente, excluiria toda uma sorte de outros estilos.

Podemos compreender as vicissitudes da juventude ligada ao rock, na Florianópolis dos

anos 1980, através desses olhares. A música, ligada ao espaço, podem dar indícios

importantes sobre as diferenças entre os grupos, compreendendo a juventude como uma

categoria heterogênea.

No que diz respeito a esse trabalho, enxergamos diversas diferenças entre ilha e

continente. Paulo Carreirão, empresário e dono de um restaurante de comina natural no

centro da cidade nos anos 1980, deixa isso bem claro, ao falar para seu irmão que ele

“não vai ao Estreito faz 20 anos”, ou que “é mais fácil a gente ir pros Ingleses do que

22

Para ver mais: QUEIROZ, Igor Henrique de Lopes. As sexualidades desviantes nas páginas do

jornal Diário Catarinense (1986-2006). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de

Santa Catarina, 2014, 262p. 23

Osias, op cit.

Page 13: “Seu New Wave”: disputas juvenis e rock em Florianópolis ... · 19 anos eu tinha quando vim pra cá. Aí vim pra fazer ... fala “puta Antônio, lembra, eu era moleque naquela

13

pra Coqueiros”24

, colocando que, mesmo Estreito e Coqueiros serem bairros da região

continental de Florianópolis e próximos a região central, não eram lugares que

frequentavam. Pelo contrário, se deslocavam, em alguns momentos, ao bairro dos

Ingleses, na região norte da Ilha e a aproximadamente 39 quilômetros de distância do

centro da cidade.

As particularidades na relação entre os habitantes da ilha e do continente são

inúmeras. A tentativa, nessa poucas páginas, é de realizar um estudo inicial sobre elas,

calcada no rock e nas juventudes de Flórianópolis dos anos 1980. Para isso,

caminhamos por questões de classe, moradia, espoliação urbana, direito a cidade,

sexualidade e música: aspectos que podem dar um caldo interessante para a análise

desses distanciamentos, espaciais, temporais e comportamentais. Em uma primeira

análise, conseguimos entender a reverberação de gêneros próximos ao heavy metal nas

regiões periféricas da capital catarinense, conectando os pontos anteriores, tecendo uma

narrativa que dialogue com essa afirmação. Entretanto, essa é apenas uma primeira

análise sobre esse objeto, que dá conta de um caminho a ser percorrido.

A cultura urbana florianopolitana pode ser entendida através de um olhar sobre

os sujeitos e locais de rock que nela existiam. Analisar essas disputas e negociações

entre os jovens da cidade envolve compreender a questão das suas identificações e

formas de se portarem na urbe. As visões construídas sobre Florianópolis por aqueles

que moravam “do lado de lá da ponte” 25

, assim como os embates entre os nativos e os

migrantes, dão caldo para o emaranhado cultural que a cidade se envolve.

REFERÊNCIAS

COSTA, Pere-Oriol, TORNERO, José Manuel Pérez e TROPEA, Fábio. Tribus

urbanas, el ânsia de identidad juvenil: entre el culto a la imagen y la autoafirmación a

través de la violencia. Barcelona (Espanha): Paidós, 1996, 246 p.

DIAS, Rafael Damaceno. A efêmera chance de encantar o mundo: Florianópolis nas

últimas décadas do século XX. Tese (doutorado em História). Universidade Federal do

Paraná. 2013. 160 p.

FALCÃO, Luis Felipe. Palavras indesejadas: relatos que estorvam a ideia de uma

história única e uniforme (Florianópolis, últimas décadas do século XX). In: X Encontro

24

Paulo Carreirão. Entrevista concedida ao autor. Florianópolis, nov. 2017 25

Uma gíria para referenciar aqueles que moravam na região continental de Florianópolis e municípios da

região metropolitana.

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14

Nacional de História Oral – Testemunhos: história e política. 10, 2010, Recife. Anais do

X Encontro Nacional de História Oral. Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),

2010, p. 1-10.

FROTA, Ana Maria Monte Coelho. Diferentes concepções da infância e adolescência: a

importância da historicidade para sua construção. Estudos e Pesquisas em Psicologia,

Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p.147-160, abr. 2007.

LOHN, Reinaldo Lindolfo. Artífices do Futuro: cultura política e a invenção do

tempo presente de Florianópolis (1950-1980). Florianópolis: Insular, 2016. 360 p.

MENEZES, Cacau. Bar do Chico, 2008. Disponível em: < http://www.clicrbs.com.br/blog/jsp/default.jsp?source=DYNAMIC%2Cblog.BlogDataS

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MOTA, Rodrigo de Souza. Rock dos anos 1980, prefixo 48: um crime perfeito?

Dissertação (mestrado em História). Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

2009, 180 p.

PAIS, José Machado. A construção sociológica da juventude - alguns

contributos. Análise Social, Lisboa, v. 25, n. 2, p.139-165, jan. 1990.

Fontes orais

André Seben. Entrevista concedida ao autor. Florianópolis, set. 2016

Antônio. Entrevista concedida ao autor. Florianópolis, nov. 2017

Osias. Entrevista concedida ao autor. Florianópolis, set. 2017

Paulo Carreirão. Entrevista concedida ao autor. Florianópolis, nov. 2017

Pena. Entrevista concedida ao autor. Florianópolis, ago. 2017

Zeca Carvalho. Entrevista concedida ao autor. Florianópolis, ago. 2017