Severino - Existencia Humana

download Severino - Existencia Humana

of 11

Transcript of Severino - Existencia Humana

Extrado de: SEVERINO, Antnio Joaquim. Filosofia da Educao: construindo a cidadania. So Paulo: FTD, 1994.

A EDUCAO MEDIANDO A PRTICA DOS HOMENS

... no separte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, e tampouco dos homens pensados, imaginados ou representados para, a partir da, chegar aos homens em carne e osso;parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expe-se tambm o desenvolvimento dos reflexos ideolgicos e dos ecos desseprocesso de vida.

46

FILOSOFIA DA EDUCAO: Construindo

a cidadania

Este captulo vai explicitar o carter mediador da educao, entendida como um investimento intergeracional, no sentido de se inserirem os sujeitos educandos no trplice universo do trabalho, da sociabilidade e da cultura simblica.

A Existncia do Homem como Existncia Mediada

eomo veremos no decorrer deste livro, do ponto de vista histrico-antropolgico, o homem um ser de relaes: ele se relaciona com a natureza, com os outros homens e consigo mesmo. Mas essas relaes so fundamentalmente prticas, ou seja, elas se do atravs de aes, de operaes, de intervenes que o homem faz nesses elementos, que se colocam frente a ele como referncias fundamentais de seu agir. Por outro lado, j vimos tambm o que devemos entender por mediao: elemento de que nos servimos para apreender o sentido de um outro elemento, ao qual no podemos ter acesso direto. Assim, quando nos perguntamos o que o homem, esse sujeito humano que o educando, e esse outro, o educador, a resposta s pode ser encontrada nos elementos que expressam sua realidade, aos quais podemos ter algum acesso. Ora, nosso acesso ao ser do homem s se d atravs de suas atividades concretas, atravs de sua prtica real. A imagem que podemos construir do homem ser aquela que pudermos apreender de sua manifestao, acessvel a ns graas aos mltiplos canais de nossa experincia. Qualquer aspecto que ultrapassar as possibilidades da nossa efetiva experincia j no estar ao nosso alcance e poder constituir-se numa iluso de nossa subjetividade. Com efeito, nossa subjetividade ilude-se com muita facilidade, ou seja, ela confunde, muitas vezes, suas representaes com a realidade das coisas. Isso porque perde de vista que o conceito

A Educao Mediando a Prtica dos Homens

47

no a coisa, ele apenas sua mediao. Quando tratamos nossas idias como se fossem autnticas transposies das coisas, estamos tomando o abstrato pelo concreto. De tudo isso que acabamos de dizer, fica claro que o saber sobre o homem, inclusive sobre o sujeito/educando (e sobre o sujeito/educador), no pode prescindir, de maneira alguma, da contribuio das chamadas Cincias Humanas, presentes no currculo dos cursos de formao de educadores. A Filosofiada Educao no pode construir uma imagem do homem consistente e vlida se no levar em considerao a contribuio das Cincias Humanas. Isso porque, como vimos, s temos acesso ao homem atravs de sua prtica real, que se manifesta nas suas expresses concretas, mediadoras de sua existncia. Ora, so as cincias que levantam, explicitam, descrevem e analisam essas expresses, dando-nos bases mais slidas para traduzir essas expresses em conceitos e categorias. A imagem universal do homem que a Filosofia busca construir precisa fundar-se nos aspectos particulares levantados pelas cincias. Estaremos chamando ateno para essa contribuio especfica das Cincias Humanas a cada passo de nossa exposio, ressaltando, assim, a complementaridade entre as cincias e a Filosofia nesse trabalho de construo do conceito de Homem.1. Agindo sobre a Natureza

o Homem

e

A primeira esfera da ao dos homens aquela que os coloca em relao com a natureza e tem a ver mais diretamente com sua prpria vida biolgica, com sua existncia material. a esfera de sua existncia que os faz mais prximos de todas as outras espcies vivas. O ntimo relacionamento do homem com a natureza decorre de sua prpria constituio a partir dos elementos naturais. Como ser fsico-biolgico, o homem parte integrante da natureza, compartilhando todas as determinaes desse nvel de existncia. Sua sobrevivncia orgnica depende da troca ininterrupta de elementos naturais entre seu corpo e a natureza ambiente: ar, gua, alimentao, proteo, etc. Portanto, como qualquer outro ser vivo, o homem s vive se for atravessado por um intenso intercmbio com o mundo natural. da natureza que ele retira tudo aquilo de que necessita para manter sua existncia material. Contudo, as atividades pelas quais o homem estabelece essas relaes com a natureza so acrescidas de algumas caractersticas que vo diferenci-las das atividades praticadas pelos demais seres vivos, que tm que se adaptar integralmente s "ofertas"

sua Trplice Prtica

48

FILOSOFIA DA EDUCAO: Construindo a cidadania

feitas, por assim dizer, por iniciativa da prpria natureza. Eles tm que esperar e contar com esse ritmo para coletar os elementos indispensveis manuteno de sua vida material. J com os homens, as coisas ocorrem de maneira bem diferente: alm de se apropriarem desses elementos de modo idntico ao dos demais seres vivos, eles passaram a intervir na natureza, fazendo com que ela lhes fornea esses elementos, mesmo fora de seu ritmo normal. Inverte-se, portanto, o processo: agora a natureza que vai se adaptando s necessidades e aos interesses dos homens. Essa interveno do homem sobre a natureza constitui, do ponto de vista antropolgico, o mbito da prtica produtiva dos homens. Com efeito, atravs dela os homens passam a produzir os bens naturais que precisam, alm dos meios de produo desses bens. A agricultura e a indstria nos do os exemplos mais evidentes dessa situao. Ao criarem a agricultura, os homens comearam a forar a natureza (a terra, os vegetais) a produzir seus frutos de uma maneira localizada, sistemtica e planejada. Ao mesmo tempo, criaram as ferramentas que precisavam para lidar com a terra, com as plantas e com os insumos. Na indstria, os homens transformaram a matria-prima natural em outros tantos bens e produtos para a satisfao de suas necessidades, produzindo antes os equipamentos adequados para essa produo.

A Educao Mediando a Prtica dos Homens

49Pelo trabalho, o homem se relaciona com a natureza, retirando dela os elementos necessrios para a produo de sua existncia material.

o conjunto dessas atividades ligadas s relaes produtivasconstitui o que chamamos, modernamente, de trabalho, conjunto de atividades bsicas, por meio das quais os homens asseguram seu prprio sustento, pela produo dos bens naturais indispensveis e dos meios tcnicos para a produo dos mesmos. Garantindo sua vida material, os homens asseguram sua reproduo e a conservao da espcie. Retomaremos, nos captulos 4 e 7, os aspectos relacionados com o trabalho e sua significaopara a educao e para a vida do educador. Mas necessrio lembrar desde j que, quanto a estes aspectos, preciso recorrer, de um lado, s Cincias Biolgicas, que do conta da condio do homem como ser vivo, e, de outro, s Cincias Econmicas, que estudam as condies do trabalho e da produo material. 2. Relacionando-se com seus Semelhantes Os homens no se relacionam com a natureza, no esquema indivduo/mundo material, como ocorre com os demais seres vivos. Na verdade, o esquema essencialmente grupo/natureza. Isto quer dizer que, embora sejam os indivduos que ajam concretamente, sua ao sempre uma ao coletiva. Temos, ento, uma segunda esfera da prtica humana, que a prtica social, intimamente vinculada sua prtica produtiva. O que a observao histrico-antropolgica nos permite ver que a espcie humana organiza-se socialmente, forma-se em grupos, estabelecendo relaes especficas entre seus membros. Isto ocorre, inicial e fundamentalmente, com vistas ao exerccio da prtica produtiva, ou seja, para intervir sobre a natureza e assegurar sua sobrevivncia material. Os homens se organizam coletivamente, realizando o que denominamos hoje uma diviso tcnica do trabalho. Com isso se quer dizer que as diversas funes que devem ser realizadas so atribudas a diferentes indivduos, que, com o tempo, vo se especializando nelas. Assim, uns caam, outros pescam, outros plantam, outros fazem guerra, outros cuidam da prole, etc. Mas, se observarmos mais atentamente, constataremos que a essa diviso tcnica do trabalho sobrepe-se uma diviso social do trabalho, ou seja, os grupos especializados nas diversas funes no ocupam lugares simtricos no interior da sociedade como um todo, mas posies hierarquicamente distribudas. Os indivduos e grupos que se diferenciavam pela variedade de funes que exerciam passam a se distinguir tambm pelo lugar social que ocupam, pela posio que tm na hierarquia social.

Pela sociabilidade, os homens estabelecem relaes entre si, que so tambm relaes hierarquizadas, marcadas pelo poder.

50

FILOSOFIA DA EDUCAO: Construindo a cidadania

A esta posio incorpora-se um coeficiente de poder, ou seja, em funo do lugar ocupado, os indivduos ou grupos detm uma espcie de fora sobre os que esto em lugares inferiores. As relaes que os homens estabelecem entre si, no contexto dessa hierarquizao social, constituem a esfera da sociabilidade, o mbito da prtica poltica.

3. RepresentandoIntencionalizando

Simbolicamente a Realidade sua Prpria Prtica

e

Nem a prtica produtiva nem a prtica poltica dos seres humanos teriam especificidade se no fossem atravessadas e permeadas pelos efeitos de uma terceira dimenso de seu agir: a prtica subjetiva, que se expressa atravs do processo e dos produtos de sua subjetividade. Com efeito, ao mesmo tempo em que desenvolvem relaes com a natureza, por meio do trabalho produtivo, e com os seus semelhantes, por meio da prtica social, os homens desenvolvem ainda relaes no mbito de sua prpria subjetividade, por intermdio da prtica simbolizadora, pela qual criam signos e lidam com eles. Mediante os signos elaborados no plano da subjetividade (conceitos, valores, imagens, juzos, raciocnios e seus correspondentes objetivados como expresses culturais: palavras, frases, obras de arte, comportamentos, rituais, etc.), os diversos aspectos envolvidos em suas relaes com a natureza e com a sociedade

A Educao Mediando a Prtica dos Homens

51

ganham uma dimenso simblica. Assim, sua conscincia subjetiva passa a desenvolver um processo especificamente subjetivo, que visa a "explicar" a prpria realidade de sua existncia e todos os demais elementos com ela relacionados. A esfera dos elementos constitudos a partir dos resultados dessa atividade simbolizadora aquela que se designa como cultura simblica. Trata-se, na verdade, do conjunto dos elementos que s ganham existncia porque trazem a marca de atuao da subjetividade humana. Eles tm um "sentido" que lhes aposto pela atividade simbolizadora, que surge e se desenvolve a partir da ao subjetiva dos seres humanos. Esses elementos simblicos sobrepem-se a todos os aspectos da prtica produtiva dos homens - sobretudo o fazem tecnicamente, na manipulao do mundo natural- e sobre aqueles de sua prtica social, sobre todas as relaes que os homens estabelecem entre si. Pela cultura simblica, os homens produzem e usam os bens culturais.

I~\ .~~Podemos dizer, pois, que este o trplice universo das mediaes da existncia real dos homens, ou seja, os homens existem como organismos vivos que atuam praticamente intervindo sobre a natureza, relacionando-se com seus semelhantes e produzindo/fruindo cultura. Saber o que o homem caracteriz-lo mediante as prticas que ele desenvolve nessa trplice dimenso. O indivduo s humano na exata medida em que pode "existir", atuando nesses trs registros.

52

FILOSOFIA DA EDUCAO: Construindo

a cidadania

vai construindo e conservando sua existncia concreta na exata medida em que, atravs de sua prtica, vai se relacionando com a natureza, pelo trabalho; com a sociedade, pela sociabilidade; e consigo mesmo, pelo cultivo de sua subjetividade. So esses os trs planos integrados que constituem as efetivas mediaes da existncia humana. Essas trs dimenses inter-relacionam-se, complementam-se e atuam de maneira integrada no processo real da vida dos homens. A prtica produtiva sustenta a esfera do social e da cultura simblica. Mas, se de um lado a prtica social pressupe a esfera do econmico, do poltico e do simblico, por outro lado, delimita as condies de organizao do trabalho e da produo e fruio da cultura. Por mais frgil que seja a esfera do simblico, a marca da intencionalidade subjetiva atravessa tanto o formato tcnico da atividade produtiva como todo o tecido da estruturao poltica da sociedade. Assim, ao trabalharmos, pressupomos um certo ndice de atividade subjetiva de representao dos fins e dos processos do trabalho, bem como envolvemos toda uma circunstncia social de intercmbio para a produo, a circulao e o consumo dos bens produzidos. Nossa vida em sociedade no seria possvel sem a produo sistemtica de bens materiais e sem a comunicao no mbito da cultura simblica. Esta, por sua vez, depende, para sua consolidao e desenvolvimento, da infra-estrutura econmica e da estrutura social.

o homem

A Inter-relao das Prticas HumanasEsfera da prtica produtiva, mbito do trabalho e universo das relaes tcnicas. Esfera da prtica simbolizadora, mbito da cultura simblica, universo das relaes intencionais.

A Educao Mediando a Prtica dos Homens

53

Textos Complementares[Sou Diferente da Pedra] Dizes-me: tu s mais alguma cousa Que uma pedra ou uma planta. Dizes-me: sentes, pensas e sabes Que pensas e sentes. Ento as pedras escrevem versos? Ento as plantas tm idias sobre o mundo? Sim: h diferena. Mas no a diferena que encontras; Porque o ter conscincia no me obriga a ter teorias sobre as cousas: S me obriga a ser consciente. Se sou mais que uma pedra ou uma planta? No sei, Sou diferente. No sei o que mais ou menos. Ter conscincia mais que ter cor? Pode ser e pode no ser. Sei que diferente apenas. Ningum pode provar que mais que s diferente. Sei que a pedra a real, e que a planta existe. Sei isto porque elas existem. Sei isto porque os meus sentidos mo mostram. Sei que sou real tambm. Sei isto porque os meus sentidos mo mostram, Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta. No sei mais nada. Sim, escrevo versos, e a pedra no escreve versos. Sim, fao idias sobre o mundo, e a planta nenhumas. Mas que as pedras no so poetas, so pedras; E as plantas so plantas s, e no pensadores. Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto, Como que sou inferior. Mas no digo isso: digo da pedra, " uma pedra", Digo da planta, " uma planta", Digo de mim, "sou eu". E no digo mais nada. Que mais h a dizer?(PESSOA, Fernando. Obra potica. Rio de Janeiro, Aguilar, 1986, p. 234.)

54[O Homem: Aquele que Fala)

FILOSOFIA DA EDUCAO: Construindo a cidadania

O ser humano fala. Ns falamos acordados; ns falamos em sonho. Falamos sem cessar, mesmo quando no proferimos nenhuma palavra, e apenas escutamos ou lemos; falamos mesmo se, no mais escutando verdadeiramente, nem lendo, nos entregamos a um trabalho, ou nos abandonamos a nada fazer. Constantemente falamos, de uma maneira ou de outra. Falamos porque falar nos natural. Isto no provm de uma vontade de falar que seria anterior palavra. Diz-se que o homem possui a palavra por natureza. O ensino tradicional quer que o homem seja, diferentemente da planta e da besta, o ser vivo capaz de palavra. Esta afirmao no significa somente que, ao lado de outras faculdades, o homem possua tambm aquela de falar. Ela quer dizer que realmente a palavra que torna o homem capaz de ser o ser vivo que ele enquanto homem. O homem homem enquanto aquele que fala.(HEIDEGGER, Martin. In: BEAINI, Thas C. escuta do silncio; um estudo sobre a linguagem no pensamento de Heidegger. So Paulo, Cortez, 1981, p. 25.)

[Alinguagem que Fala no Homem) O homem comporta-se como se fosse o criador e o senhor da linguagem, ao passo que esta ao contrrio que e permanece sua soberana. Quando esta relao de soberania se inverte, estranhas maquinaes vm ao esprito do homem. A linguagem torna-se um meio de expresso. Enquanto expresso, a linguagem pode cair ao nvel de um simples meio de presso. Convm que, mesmo em uma semelhante utilizao da linguagem, cuide-se ainda de seu falar; mas este cuidado, a ele s, nunca nos ajudar a remediar a inverso da verdadeira relao de soberania entre a linguagem e o homem. Pois, no sentido prprio dos termos, a linguagem que fala. O homem fala somente enquanto responde linguagem, escutando o que ela lhe diz. (...) A linguagem nos faz sinal e ela que, primeira e ltima, conduz assim em direo a ns o ser de uma coisa.(HEIDEGGER, Martin. In: BEAINI, Thas C. escuta do silncio; um estudo sobre a linguagem no pensamento de Heidegger. So Paulo, Cortez, 1981, p. 73-4.)

A Educao Mediando a Prtica dos Homens

55

Para Refletir1. Comente: "o homem um ser de relaes". 2. Comente a frase de Marx colocada como epgrafe do captulo. 3. Em grupo, discuta a afirmao: "a Educao medeia a prtica real dos homens". 4. Atravs de um exemplo, explique: "o conceito no a coisa; apenas sua mediao". 5. Justifique: "a cultura simblica se sobrepe prtica produtiva dos homens e aos elementos da prtica sociopoltica".

6. Voc concorda com as idias de Fernando Pessoa (Texto Complementar)? Voc jviveu alguma experincia que lhe trouxe dvidas sobre a realidade, sobre os valores das pessoas e das coisas? Comente com seus colegas. 7. At que ponto importante para o profissional da Educao o conhecimento biolgico? Que elementos da Biologia devem integrar um programa de Biologia Educacional? 8. Baseando-se nas idias de Martin Heidegger, que aparecem em dois Textos Complementares, discuta as seguintes afirmaes: "o homem aquele que fala" e "a linguagem que fala no homem". 9. Por que estudar Economia Poltica importante para o educador?