SHAPIRO, Scott - Crazy Little Thing Called Law

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  • 7/23/2019 SHAPIRO, Scott - Crazy Little Thing Called Law

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    Shapiro, Scott J. Legality. London: The Belknap Press of Harvard University Press,

    2011.

    Traduo das pginas 35 a 53.

    Mariana Kuhn de Oliveira

    Juridicidade

    Scott J. Shapiro

    Captulo 2: Coisinha louca chamada Direito

    A inveno do direito

    Thomas Hobbes, como bem conhecido, sustentou que o estado de natureza- ou

    seja, a condio social sem lei e governo- seria uma guerra de todos contra todos na

    qual a vida seria solitria, pobre, srdida, embrutecida e curta1. Sem uma autoridade

    reconhecida para resolver as disputas, cada pessoa agindo como juiz, como jri e como

    carrasco, o conflito e a competio por recursos escassos trariam constantemente a

    ameaa de irromper em violncia. No entanto, Hobbes disse de modo muito claro que

    ele entendeu que o estado de natureza uma grande construo ficcional: ningum

    nunca viveu totalmente sem lei, embora ele tenha pensado que alguns povos civilizados

    tenham emergido do estado de natureza e que os povos selvagens da Amrica

    estivessem vivendo nessa condio miservel. A questo trazida por Hobbes no era

    que a vida fosse intolervel sem a lei, mas que ela poderia s-lo, e que ao invs de

    correr o risco de um tal destino, as pessoas afortunadas o bastante para viver sobgovernos estveis, mesmo os tirnicos, no deveriam tentar destitu-los; ao contrrio,

    elas obedeceriam a seus lderes em quase todas as circunstncias.

    Acontece que Hobbes estava duplamente errado. O primeiro erro dele foi

    relativamente pequeno. Antroplogos acreditam atualmente que humanos viveram sem

    lei a maior parte de seu tempo na terra. Evidncias arqueolgicas e estimativas de

    observaes etnogrficas de humanos que ainda hoje caam ou colhem seus alimentos

    1HOBBES, Thomas.Leviathan, Ed. Richard Tuck, 2 Ed., captulo 13, p. 89. (Cambridge: CambridgeUniversity Press. 1996).

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    sugerem que, at 12.000 anos atrs, a maioria dos humanos vivia em grupos chamados

    bandos.2 Bandos so pequenos grupos de indivduos, geralmente nmades, seus

    membros so relativamente instveis e subsistem atravs da caa e coleta. No h

    estruturas formais de autoridade nesses grupos e eles so governados principalmente

    pela tradio, consenso e persuaso dos mais velhos. Em outras palavras, aqueles que

    vivem em bandos, no possuem lei.

    O segundo e mais srio erro de Hobbes foi assumir que o estado de natureza

    seria um estado de guerra. Embora quase que certamente brutal e curta, a vida humana,

    ao menos nos bandos, no parece ter sido particularmente solitria ou srdida3. Seres

    humanos so criaturas sociais e trabalharam em grupos de forma mais ou menos

    pacfica para coletar comida, criar as crianas e proteger um ao outro dos predadores

    externos. Esses grupos tambm parecem ter sido governados por regras que regulavam

    aquilo que mais essencial na vida social: o compartilhamento da comida, a seleo de

    parceiros, a conteno de agresses fsicas etc.

    Em outras palavras, cooperao e ordem no foram possveis apenas durante a

    pr-histria: elas tm sido a norma. A sociedade pr-histrica tem sido anrquica apenas

    no sentido estrito, literal: o de no ter o que hoje chamamos direito. provavelmente

    verdade que as pessoas no conseguem coexistir em grupos sem regras. No entanto, elas

    podem viver e de fato viveram juntas por milnios sem sistemas jurdicos.

    Contrariamente a Hobbes, portanto, o estado de natureza no uma fantasia da filosofia,

    porm uma realidade histrica experienciada por muitas geraes de seres humanos. De

    fato, plausvel supor que o direito , uma inveno comparativamente recente,

    sucedendo a roda, a linguagem, a agricultura, a arte e a religio.

    Hobbes estavacerto quando afirmou que sem o direito no haveria cultivoda

    terra, nem navegao, nem uso das mercadorias que podem ser importadas do mar; no

    h construes confortveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas queprecisam de grande fora; no h conhecimento da face da terra, nem cmputo do

    tempo, nem artes, nem letras; no h sociedade.4Civilizao s possvel com alto

    nvel de cooperao social e interdependncia, o que, por sua vez, s possvel quando

    a comunidade tem a habilidade de regular as relaes sociais de forma eficiente e

    2Ver, por exemplo, The Cambridge Encyclopedia of Hinters and Gatherers, ed. Richard Lee e RichardDaily, 1-4 (Cambrigde: Cambridge University Press, 1999)

    3A bibliografia da antropologia sugere que a violncia intergrupal entre os humanos era bastante grande.Nesse sentido: Azar Gat, War and Human Civilization (Oxford: Oxford University Press, 2006).4HOBBES,Leviathan, p. 89.

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    efetiva. O direito foi uma inveno revolucionria exatamente porque permitiu essa

    regulao. As pessoas poderiam, ento, usar o direito para criar, modificar e aplicar

    regras e, assim, gerenciar o grande nmero de aspectos da vida social sem contar apenas

    com o costume, com a tradio, com a persuaso e com o consenso.

    Como o Direito Possvel?

    No h forma de saber, claro, se a primeira sociedade a ter direito comeou a

    criar um mtodo eficiente de regulao social ou se ela simplesmente descobriu

    acidentalmente esse mtodo. Ao criar o direito, todavia, essa sociedade produziu uma

    tecnologia que continua sendo - assim como religies organizadas, a moral popular e as

    convenes sociais - uma ferramenta de grande valor para o controle da comunidade.

    Alm disso, mesmo com toda a certeza que temos de que as instituies legais

    foram criadas em algum ponto da pr-histria e que aqueles responsveis tinham boas

    razes para cri-las, continuamos confusos sobre como o direito pode ter sido

    inventado. Assim como pessoas que procuram o primeiro emprego encontram-se na

    difcil situao de precisar de experincia de trabalho para conseguir essa experincia,

    adquirir autoridade jurdica parece envolver uma situao sem sada: para conseguir

    poder legal, j se tem que terpoder legal.

    Assim, vou discorrer mais sobre esse quebra-cabea. Deixe-me falar mais sobre

    esse quebra-cabea atravs de uma fantasia filosfica. Imagine que o direito foi

    inventado em uma pequena vila de agricultores no Crescente Frtil em 1 de janeiro de

    10.000 a.C. Nesse dia, o ancio da vila, Lex, teve uma idia e chamou uma reunio com

    a comunidade para discuti-la. Ele, ento, disse a seu povo: muitos de vocs vieram

    recentemente a mim reclamar da crescente discrdia em nosso vilarejo. Temos passadogrande parte do nosso tempo de lazer em reunies comunais, ouvindo reclamao aps

    reclamao, discutindo os mritos de cada queixa, em uma deliberao sem fim sobre o

    quanto de ajuda cada famlia deve fornecer a outra durante o plantio e a colheita, quanto

    cada famlia deve contribuir para o armazenamento de comida para o inverno, quais

    meninos devem poder casar com quais meninas, quando as vacas devem poder pastar na

    praa da vila, onde largar o lixo etc. Ano aps ano, com o crescimento da vila, a

    situao piora. Vocs devem lembrar que no fomos capazes de resolver a questo sobreo dzimo no ano passado e, como resultado, ficamos sem gro antes da colheita. Alm

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    disso, a vila est freqentemente quase que sem reserva de feno, e vocs concordariam

    que isso uma tragdia.

    Com a inteno de remediar a situao, eu proponho o seguinte: eu vou criar

    um conjunto de regras relativas aos assuntos mais urgentes. Vocs sabero quando eu

    tiver criado uma regra, pois a transmitirei sentado sob a grande palmeira que se encontra

    na praa da vila. Tambm estarei disponvel para resolver disputas sobre a maneira certa

    de aplicar as regras que eu criei. Minhas decises sero finais e ningum poder desafi-

    las. Por fim, quando eu morrer, todas as regras que eu criei continuaro vlidas e um

    dos meus dois filhos assumir como lder oficial da vila. Meu sucessor escolhido poder

    modificar as regras se desejar.

    Quase todos na vila gostaram da proposta de Lex. Eles respeitavam a sabedoria e

    o carter do ancio e confiaram que ele criaria boas regras. Eles tambm reconheceram

    os enormes benefcios que poderiam advir da liderana de Lex. Com Lex no comando,

    eles no perderiam tempo deliberando e tentando atingir um consenso em cada

    problema da comunidade. Ter regras firmes e anteriores aos fatos impede o incio de

    disputas e ajuda a coordenar comportamentos com o propsito de produzir mais bens a

    partir dos quais todos poderiam lucrar.

    Apenas um morador da vila fez uma objeo ao plano de Lex: Phil, o filsofo da

    vila. Lex, sua proposta parece boa, masnunca ir funcionar. Veja bem, para voc ter o

    poder de criar, modificar e aplicar regras para nossa vila, deveria haver uma regra que

    concedesse esse poder a voc. No entanto, tal regra ainda no existe. Se voc tentar criar

    uma regra sob a palmeira sem que uma regra anterior autorize voc a faz-lo, isso ter

    tanta fora quanto se eu tentasse fazer uma regra, ou seja, nenhuma.

    Lex ponderou a objeo por um curto espao de tempo e respondeu: Phil, eu

    no poderia apenas fazer uma regra que me autorizasse a criar regras para a

    comunidade? Phil balanou sua cabea de forma melanclica e disse: infelizmente,isso tambm no iria funcionar. Como no h regra autorizando voc a fazer uma regra

    autorizadora, a tentativa de criar tal regra ser, de forma similar, nula e vazia.

    Lex tentou novamente: bom, no poderiam todos na vila votar para me

    autorizar a criar regras? Phil respondeu: o mesmo problema que surge para voc,

    surgiria para eles. Como no h regras autorizando eles a autorizarem voc, a

    autorizao deles tambm seria nula e vazia.

    Lex ainda no estava convencido. Voc est certo em dizer que eu no possocriar regras sem estar autorizado, mas por que voc est to certo de que essa regra no

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    existe? Isso fcil demonstrar, disse Phil. Para que uma regra autorizadora exista,

    ela teria que ser criada por algum que tenha esse poder. Isso exigiria uma regra pr-

    existente autorizando esse algum. No entanto, na mesma lgica, essa regra pr-

    existente teria que ser criada por algum autorizado a faz-lo, o que significaria que

    deveria existir uma regra autorizando essa pessoa a criar regras autorizando outros a

    criar regras autorizadoras. Podemos ficar nesse raciocnio para sempre; ao menos que

    voc queira postular um nmero infinito de regras e um nmero infinito de atos que os

    efetuariam, eu acredito que est bem claro que no existam tais regras autorizadoras.

    Mas no seu raciocnio, concluiu Lex, ningum nunca poder criar ou

    modificar regras na comunidade. Phil respondeu: sim, verdade. Sinto muito.

    Lex e o resto dos moradores da vila no deram ouvidos a Phil. At mesmo nos

    tempos pr-histrico, aparentemente, as pessoas tinham a tendncia a ignorar os

    filsofos. Lex comeou a criar regras e o resto da comunidade seguiu-o. E, ento, o

    direito foi criado.

    Apesar do fato de os moradores da vila no terem prestado ateno nas

    advertncias de Phil, o argumento dele forte. Lgica bsica parece ditar que a

    afirmao de Lex sobre o poder jurdico no pode ter sido verdadeira. E se ela no foi

    verdadeira, ento ele no tinha uma autoridade legal. Assim, o direito no foi criado no

    tempo suposto por ns.

    Na verdade, o argumento de Phil pode ser usado para demonstrar que nenhuma

    afirmao sobre poder jurdico jamais poderia ser verdadeira. Considere a afirmativa de

    que o Congresso tem o poder de regular o comrcio entre estados. Para justificar essa

    afirmativa, se poderia, presumidamente, referir o artigo primeiro da seo 8 da

    Constituio dos Estados Unidos da Amrica: O Congresso ter o Poder Para... regular

    o Comrcio com Naes estrangeiras e entre os vrios Estados.5 Claramente, essa

    afirmao pressupe que a Constituio dos Estados Unidos direito vlido. Noentanto, o que justificaria essa afirmativa? A resposta natural seria que a Constituio

    foi ratificada por trs quartos dos 13 estados originais. Ento podemos perguntar: qual

    regra conferiu autoridade para que esses estados ratificassem a Constituio?

    Algum pode se sentir tentado a mencionar o artigo VII da prpria Constituio,

    que diz: A Ratificao da Conveno dos nove Estados ser suficiente para o

    5Constituio dos EUA, art. I, seo 8. No original: The Congress shall have Power To... regulateCommerce with foreign Nations, and among the several States.

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    Estabelecimento desta Constituio entre os Estados que ratificaram a mesma.6 Essa

    resposta, todavia, no justificaria o poder jurdico, na medida em que o artigo parte da

    prpria Constituio. Ele no pode conferir autoridade aos que ratificam para ratificar a

    Constituio antes que ela prpria esteja ratificada. Argumentar em outro sentido o

    mesmo que entrar em crculo vicioso de pensamento.

    A nica opo nesse caso identificar alguma outra norma que confira poder aos

    ratificadores para ratificar a constituio do estado. Contudo, quem criou essa norma e

    de onde retiraram autoridade para faz-lo? Novamente, qualquer resposta a essa

    pergunta ir simplesmente trazer uma nova pergunta. Tentar encontrar o topo da cadeia

    de autoridade, aparentemente, levar-nos-ia ou a um raciocnio em crculo ou a um

    regresso sem fim. Ainda, precisamente esse tipo de autoridade ltima que deve ser

    encontrado para que afirmaes sobre autoridades jurdicas sejam verdadeiras.

    Note que esse paradoxo um clssico problema do ovo e da galinha. Por um

    lado, todas as galinhas devem vir de ovos de galinha. Por outro, todos os ovos de

    galinha devem ser colocados por galinhas. Esses dois princpios combinados sugerem

    que nem galinhas ou ovos de galinha podem existir em um universo finito, porque a

    existncia de um pressupe a existncia do outro.

    Nosso paradoxo sobre a possibilidade do direito tem a mesma estrutura. Imagine

    que normas que confiram o poder legal sejam ovos e aquelas com poder de criar

    normas legais so as galinhas. Os princpios do Ovo e da Galinha podem ser assim

    representados:

    Ovo: algum tem o poder de criar normas legais se uma norma pr-

    existente lhe confere esse poder.

    Galinha: uma norma conferindo poder para criar normas legais existe

    apenas se algum com poder a crie.

    Para perceber por que esses dois princpios tornam impossvel a autoridade

    jurdica, assuma que A1 tem o poder de criar um conjunto de normas legais. Pelo

    princpio do Ovo, existe uma norma que confere poder a A1.Chame essa norma que

    confere poder de n1.Pelo princpio da Galinha, algum com poder para criar n1 de fato a

    criou. Ento, pergunta-se: quem criou n1, que conferiu poder a A1? A resposta no pode

    6Constituio dos EUA, artigo VII. No original: The Ratification of the Convention of nine States, shallbe sufficient for the Establishment of this Constitution between the States so ratifying the Same.

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    ser A1 porque ele no tinha o poder de criar nenhuma norma at que n1 existisse.

    Ficaramos em um raciocnio circular ao dizer que A1 concedeu poder a si mesmo,

    porque n1deveria existir antes que A1pudesse cri-la. Assim, uma autoridade diferente,

    chamada A2, deve ter criado a norma que conferiu poder a A1.No entanto, de onde A2

    obteve o poder para criar n1? Novamente, se queremos evitar um raciocnio circular, a

    nica resposta possvel que A2 obteve sua autoridade de A3. No h, todavia, fim,

    nessa linha de raciocnio, mesmo que A3existisse, deveria haver A4, A5, A6, A7e assim

    por diante. Essa linha de argumentao pretende mostrar que nenhum argumento sobre

    autoridade jurdica compatvel com os princpios do Ovo e da Galinha sem acabar em

    crculos viciosos ou em regressos ao infinito.

    Nota sobre normas

    O leitor mais cuidadoso deve ter notado que, na ltima seo, mudei a

    terminologia na metade do texto. Quando contei e histria de Lex e de Phil, falei em

    regras. No entanto, ao formular a histria dos princpios do Ovo e da Galinha e ao

    estabelecer a verso formal do paradoxo, utilizei o termo norma. Por que a mudana?

    Ao construir uma narrativa, a razo para no usar a palavra norma que

    pessoas comuns normalmente no a usam, ao menos no contexto da histria.

    Podemos dizer que, por exemplo, mandar uma nota de agradecimento a algum aps

    receber um presente anorma, mas no que existe umanormapara esse efeito. Em

    um contexto no acadmico, poderamos dizer que existe uma regra segundo a qual

    devemos mandar uma nota de agradecimento, aps receber um presente, ou, talvez, de

    forma mais simples: a regra que todos devem mandar uma nota de agradecimento

    aps receber um presente.

    Norma, por outro lado, um termo da filosofia.7Uma das razes pelas quaisos filsofos usam o termo norma, ao invs de regra, que regras necessariamente

    so gerais. Se o Congresso promulga uma legislao que impe um tributo nico a

    Acme Corp., ele no cria uma regra, pois a regra criada individualizada e

    particularizada, aplica-se apenas a Acme e por apenas uma vez. Os filsofos precisam

    7A palavra norma tambm utilizada por juristas europeus para se referir ao que os juristas anglo-americanos chamam de regra.

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    de uma palavra que se refira aos procedimentos individuais e particulares, bem como

    queles gerais, ento empregam o termo norma com esse propsito.8

    A vantagem de usar o termo norma que podemos jogar nossa rede da forma

    mais ampla possvel. Formular o Princpio do Ovo em termos de regras deixa o

    princpio restrito, de forma arbitrria, a padres generalizados de conduta. H,

    entretanto, uma desvantagem em usar um termo tcnico, como norma: os filsofos

    dispem dele em muitas formas, frequentemente sem especificar explicitamente qual,

    em particular, esto usando naquele momento.

    Na sequncia, utilizarei o termo norma para indicar qualquer padro - geral,

    individualizado ou particularizado - ou seja, algo que deve guiar a conduta e servir de

    base para avaliao ou para crtica.9 Regras rigorosas, mximas de experincia,

    presunes, princpios, padres, linhas gerais, planos, receitas, ordens, mximas e

    recomendaes, podem todos ser normas. Alm disso, padres morais, religiosos,

    institucionais, racionais, lgicos, familiares e sociais so tambm normas.

    As normas devem ser distinguidas das sentenas que a representam. Proibido

    trfego de veculos no parque uma sentena que descreve a norma de que veculos

    no podero trafegar no parque e, portanto, no pode ser a prpria norma. Nem mesmo

    os textos que criamnormas so normas. Quando o sargento diz: limpe a latrina, ele

    cria uma norma sobre limpar a latrina, mas a frase em si no a norma criada.

    Como seu nome mesmo sugere, normas so normativas, no descritivas. Elas

    no pretendem dizer aos seus sujeitos o que eles faro ou poderiam fazer, mas sim elas

    pretendem dizer o que, em certo sentido, os sujeitos esto autorizados, devem ou podem

    fazer. Por essa razo, possvel violar uma norma sem que ela se torne invlida, como

    o caso de agir contrariamente a uma generalizao de comportamento estrito: muitas

    pessoas em Nova York atravessam a rua fora da faixa de segurana, mesmo que essa

    prtica seja proibida.Tal como empregarei o termo, normas no precisam ser vlidas. As normas

    semprepretendem dizer o que voc deve fazer ou o que desejvel, bom ou aceitvel,

    8Outra razo para que esse uso exista que regras seguidamente so contrastadas com princpios (a regraseguindo o padro tudo ou nada, enquanto o princpio ampara vrias opes sem ser conclusivo) e, muitasvezes, com padres (regras so objetos que podem ser aplicados sem avaliao, enquanto padres devemser aplicados utilizando avaliaes). Sobre essas distines, veja o captulo 9 desse livro. Como regras,

    princpios e padres so todos entidades normativase tm a inteno de dizer a voc o que fazer ou quepossui valor, o que desejvel, aceitvel, etceles so todos normas.

    9Como a norma adquire seu objetivo de guiar e avaliar depende do tipo de norma que ela . Normasmorais e lgicas adquirem seus objetivos da sua validade intrnseca. Planos pessoais, por outro lado,derivam suas funes das intenes a partir das quais eles foram criados.

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    mas se elas de fato tm sucesso nessa tarefa uma outra questo a ser discutida. Uma

    norma que diz para voc fazer algo que voc no deveria, uma norma invlida. uma

    norma ruim, mas continua sendo uma norma. Normas, nesse sentido, so como nomes,

    pois sempre tm como objetivo se referir a algo, apesar de algumas vezes no

    cumprirem o objetivo. Papai Noel um nome, apesar de no se referir a ningum.

    Solues possveis

    O paradoxo que escolhi para esse tpico- que chamarei de Paradoxo da

    Possibilidade- desafia a idia de que autoridades legais so possveis. Nesse tpico,

    vou esboar vrias solues para o paradoxo. O objetivo desse esboo no descrever

    exaustivamente cada soluo e avaliar seus mritos, mas familiarizar o leitor com as

    variadas respostas disponveis na teoria jurdica e ento fornecer um guia para o restante

    da discusso.

    Comearemos com uma viso mais ampla. Conforme vimos nas sesses

    anteriores, chegamos at o paradoxo da Possibilidade porque aparentemente ningum

    com poder de criar normas legais pode derivar seu poder de alguma norma, enquanto

    que qualquer norma que poderia conferir esse poder deve, ela mesma, ser criada por

    algum com poder para tanto. No entanto, para demonstrar que o direito possvel,

    teremos que parar com esse regresso ameaador. H duas formas bvias de fazer isso.

    Primeiramente, poderamos rejeitar o princpio do Ovo achando algo cujo poder no

    necessite ser derivado de alguma norma. Chamemo-lo de autoridade ltima. Se uma

    autoridade ltima pudesse ser estabelecida, resolveramos o enigma demonstrando que

    qualquer autoridade em qualquer sistema jurdico ter seu poder derivado dessa

    autoridade ltima. No haver risco de um regresso ao infinito porque a autoridadeltima no deriva sua autoridade de outra norma.

    De forma alternativa, algum pode frustrar o paradoxo encontrando uma norma

    que confira poder para criar normas legais, mas que no foi criada por algum com um

    poder similar. Chamemo-la norma ltima. Normas ltimas, se que elas existem,

    param o regresso ao rejeitar o princpio da Galinha. O poder legal de qualquer pessoa

    em um sistema jurdico em particular poderia, assim, ser rastreado at uma norma

    ltima que exista sem ter sido posta por ningum.

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    Durante toda a histria da teoria do direito, diferentes autores optaram por

    diferentes estratgias. Uma bastante popular dizer que Deus a Autoridade ltima.

    Assim, na viso clssica do direito natural, Deus criou a lei natural que confere o direito

    legal aos legisladores para legislarem. A autoridade moral de Deus , dessa forma,

    necessria e suficiente para criar autoridade jurdica. Um dos benefcios dessa

    concepo que, se Deus existe, ele um grande candidato a ser a Autoridade ltima.

    Ao menos em concepes voluntaristas de tica teolgica, Deus no deriva autoridade

    moral de alguma outra norma ou poder, mas o motor imvel de todas as regras e

    autoridade, jurdica ou no.

    Como voc deve estar imaginado, autores de direito natural moderno no se

    baseiam em Deus para resolver o paradoxo da Possibilidade. Eles tenderam a olhar a

    certos direitos morais de comunidades polticas para determinar os termos e direo da

    cooperao social. Na concepo padro ps-Iluminista, por exemplo, o povo possui a

    autoridade moral para orientar suas vidas em comunidade como acreditarem ser melhor.

    Esse direito de soberania no deriva de Deus: deriva das regras ou princpios de

    moralidade poltica. E porque as regras de moralidade polticas so ltimas ningum

    as criouno h preocupao com o regresso ao infinito. O povo recebe dessas normas

    ltimas sua autoridade para influenciar o processo legal e, assim, possui o poder para

    transmitir a legitimidade para legisladores democraticamente escolhidos.

    Isso no significa que os autores de direito natural moderno esto

    comprometidos a reservar o rtulo de direito apenas para sistemas jurdicos

    democrticos. Eles tambm concedem esse poder a outros regimes em certas

    circunstncias. No que eles realmente insistem, entretanto, que a autoridade jurdica

    deve, em ltima instncia, derivar de alguma norma moral. Explicando de uma forma

    um pouco diferente, isso significa que, segundo o direito natural, a existncia de uma

    autoridade jurdica ltima repousa, em ltima instncia, em fatos morais. o fato moralde que Deus ou o Povo (ou possivelmente um ditador benevolente) possui a autoridade

    moral para conceder o poder a outros de agirem que os investe com autoridade jurdica.

    As prximas duas solues possveis so positivistas, pois baseiam a

    autoridade jurdica no em fatos morais, mas em fatos sociais. A opo mais simples

    nessa ramificao argumentar que a autoridade jurdica repousa ao fim e ao cabo no

    poder bruto que pode, em ltima instncia, produzir direito legal. Na concepo

    de John Austin, como veremos, o soberano deriva sua autoridade jurdica no de umaoutra norma existente, mas da sua prpria habilidade de coero de acordo com sua

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    vontade. O soberano uma autoridade ltima porque seu poder de criar normas legais

    repousa meramente nos fatos sociais de que sua vontade obedecida habitualmente pela

    comunidade poltica e de que ele habitualmente no obedece a ningum mais.

    Outra soluo positivista aquela em que se argumenta que todas as instncias

    da autoridade jurdica so, em ltima anlise, rastreveis at uma regra social. Nessa

    viso, por exemplo, o povo possui, em pases democrticos, o poder legal de selecionar

    seus legisladores no porque ele est moralmente autorizado a realizar tal ato, mas

    porque tribunais e outros funcionrios pblicos seguem regras que impem deferncia

    sua escolha. Na concepo de H. L. A. Hart, por exemplo, essas regras existem no pelo

    exerccio do poder normativoos tribunais no possuem a autoridade jurdica para criar

    um sistema jurdico , elas so simplesmente produtos de uma prtica estabelecida de

    deferncia Em outras palavras, as regras fundamentais de um sistema jurdico so

    normas ltimas que repousam puramente em fatos sociais.

    A ltima instncia

    Conforme descrevi o debate na filosofia do direito, o positivismo jurdico afirma

    que o direito , em ltima instncia, determinado por fatos sociais apenas, enquanto que

    os autores de direito natural acreditam que os fatos morais desempenham tambm esse

    papel. importante precaver o leitor para no interpretar essa descrio de forma literal.

    O positivismo jurdico no pretende seriamente dizer que o direito, em ltima instncia,

    determinado apenas por fatos sociais, pela simples razo de que pouqussimas pessoas

    acreditam que os fatos sociais estejam entre os componentes ltimos do universo. Que

    certos membros de um grupo pensem e ajam de um certo modo, no um fato bruto

    semelhante localizao de um quark no espao-tempo. Muitos filsofos acreditam, por

    exemplo, que fatos sociais podem ser reduzidos a fatos relativos ao e psicologiaindividuais. Alguns defendem que fatos sociais podem ser reduzidos a fatos morais. Da

    mesma forma, muitos filsofos acreditam que fatos morais so redutveis a fatos no-

    morais mais bsicos. Na verdade, alguns afirmam at mesmo que fatos morais so

    redutveis a fatos sociais de alguns tipos.

    Para o nosso propsito, entretanto, essas questes metafsicas mais profundas

    sero ignoradas. Desenharemos uma linha metodolgica abarcando o social e o moral e

    trataremos fatos sociais e morais como se eles fossem ltimos. A nossa classificao defilsofos do direito, portanto, ir considerar apenas aqueles que estiverem acima da

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    linha traada. Iremos, por exemplo, classificar os autores como positivistas desde que

    eles pensem que fatos jurdicos so determinados apenas por fatos sociais, apesar de

    muitas vezes eles acreditarem que fatos sociais que baseiam fatos jurdicos so, em um

    momento posterior, redutveis a fatos morais.

    O desafio de Hume

    No h dvida de que alguns iro ver o Paradoxo da Possibilidade como uma

    charada, do tipo que filsofos adoram discutir, mas que tem pouco interesse para

    aqueles que no apreciam quebra-cabeas. Outros podem ainda considerar o Paradoxo

    irritante ou exasperante, uma artimanha filosfica, o equivalente, na teoria do direito a

    Como sabemos que no estamos sonhando? J que sabemos que o direito possvel,

    da mesma forma que estamos convencidos de que no estamos sonhando, intil

    perdermos tanto tempo tentando refutar uma proposio que, usando uma frase do

    pragmtico Charles Peirce, no uma dvida real e viva.10

    No entanto, conforme mencionei no captulo anterior, filsofos usualmente usam

    paradoxos como instrumentos analticos para resolver problemas filosficos

    importantes. Enigmas possibilitam que eles isolem suposies profundas e muitas vezes

    nunca examinadas que subjazem a nossa concepo de certa rea ou assunto e mostram

    que essas pressuposies se chocam de alguma forma fundamental. O envolvimento

    com o enigma permite aos filsofos testar a validade de suas suposies e remover

    aquelas consideradas equivocadas.

    O Paradoxo da Possibilidade, portanto, melhor entendido como um

    instrumento analtico que filsofos do direito podem usar para determinar os

    fundamentos dos sistemas jurdicos. A questo ainda no respondida Em que se

    baseia a autoridade jurdica, apenas fatos sociais ou em fatos morais tambm? muito abstrata para qualquer um fazer algum avano. Perguntar a mesma coisa em

    forma de um paradoxo sobre a possibilidade do direito, todavia, fornece-nos um melhor

    indicativo de como resolver um assunto sobre o qual h dvidas reais e vivas. Isso

    permite que filsofos olhem para a questo de um ngulo diferente e sugiram, assim,

    novas formas de resolv-la. Isso nos instiga a, por exemplo, considerar os vrios tipos

    10PIERCE, Charles S. Selected Writings 100(New York Courier Dover Publications, 1966).

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    de normas ou autoridades ltimas que existem e se a autoridade jurdica pode ser

    fundada em alguma delas.

    Na medida em que o Paradoxo da Possibilidade afeta os fundamentos ltimos

    dos sistemas jurdicos, sua soluo possui grande influncia prtica, pois se as solues

    positivistas esto corretas e o direito baseia-se apenas em fatos sociais, ento a nica

    forma de determinar definitivamente as regras fundamentais de um sistema jurdico e

    sua metodologia interpretativa prpria dedicando-se a uma pesquisa sociolgica. No

    entanto, se os autores de direito natural esto corretos e o direito baseia-se tambm em

    fatos morais, ento essas questes legais podem ser respondidas com o auxlio apenas

    de argumentos morais. O Paradoxo da Possibilidade, portanto, no verso glorificada

    de palavras-cruzadas ou de Sudoku, resolv-lo uma questo de particular urgncia

    para todos que se importam com a doutrina jurdica.

    Positivo vs. Natural

    Conforme vimos, a soluo para o Paradoxo da Possibilidade tem implicaes

    importantes para o raciocnio jurdico. Como juzos legais devem seguir fatos jurdicos,

    uma teoria que nos diga quais fatos determinam, em ltima instncia, o contedo do

    direito, ser essencial para o desenvolvimento de uma outra teoria que nos mostre como

    descobrir o contedo do direito (como diria um filsofo, a metafsica do direito tem

    envolvimento direto com sua epistemologia).

    Uma vez que a conexo entre a soluo do Paradoxo da Possibilidade e o

    raciocnio jurdico se tornar evidente, um problema bvio aparecer para a teoria

    positivista. Para perceb-lo, voltemos ao nosso primeiro sistema jurdico fictcio trinta

    anos a frente do que o deixamos. Lex est em seu leito de morte e precisa decidir qual

    de seus dois filhos, Positivo ou Natural, deve suced-lo. J que Positivo era umpouco mais esperto que Natural, Lex apontou-o como seu sucessor. Naturalmente,

    Natural ressentiu a deciso e passou a odiar Positivo.

    Com alguns anos de reinado, Positivo modificou a regra do dzimo, aumentando

    a quantidade de gro que cada membro deveria contribuir para o depsito coletivo.

    Como ningum ficou feliz com essa deciso, Natural viu uma possibilidade para

    desafiar o poder do irmo. Durante a prxima reunio da vila, Natural levantou-se e

    enunciou que ele no ia se submeter nova regra sobre o dzimo. Mas Natural

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    protestou Positivo Eu sou o legislador e voc est juridicamente obrigado a me

    escutar.

    Natural j tinha convivido o bastante com Phil e aprendido alguns de seus

    truques. Em resposta ao protesto de Positivo, Natural utilizou-se do mesmo paradoxo

    sobre a possibilidade da autoridade jurdica que Phil havia criado para seu pai h

    dcadas: como pode Positivo ter uma autoridade jurdica para criar regras, se regras so

    exigidas para conferir tal autoridade e a autoridade para criar tais regras? Positivo, no

    entanto, j tinha ouvido o enigma da boca de seu pai diversas vezes e j tinha pensado

    em uma resposta. Agora ele teria a chance de experiment-la.

    Positivo afirmou que a autoridade jurdica baseia-se, em ltima instncia, no

    poder poltico. Como ele possui a capacidade de punir qualquer um que no pague o

    dzimo, ele tem um direito legal de impor uma obrigao de obedincia a eles. Natural,

    entretanto, tinha uma resposta: O mero fato de que voc pode me punir apenas um

    fato descritivo sobre o mundo. Sua argumentao apenas reporta o que o caso, No

    entanto, para que eu esteja legalmente obrigado a escut-lo, voc precisa demonstrar

    que voc deveser juridicamente obedecido. Como ningum pode derivar um dever de

    um ser, eu no posso ser juridicamente obrigado a escut-lo.

    Positivo admitiu que Natural estava certo, mas tentou outra idia na qual ele

    estava pensando. Autoridade jurdica, nessa viso alternativa, deriva da prtica de

    deferncia entre os membros do grupo. Positivo possui autoridade jurdica para obrigar

    outros porque todos o consideram com tendo tal autoridade. Natural, ento, oferece a

    mesma resposta: Dizer que todos pensam que voc tem o direito de dizer a eles o que

    fazer meramente um argumento descritivo sobre o mundo. Por outro lado, inferir que

    voc realmente tem um direito o mesmo que esboar uma concluso normativa.

    Afirmaes normativas nunca podem ser deduzidas simplesmente de afirmaes

    descritivas. Positivo percebeu o ponto de Natural e ento no soube o que responder.Assim, ele fez o que governantes fizeram durante os sculos queles dissidentes

    coerentes: Positivo executou-o.11

    11Nesse sentido, ver a famosa resposta de John Austin ao jurista que defende o direito natural na obra TheProvince of Jurisprudence Determined, 158, Ed. Wilfred E. Rumble (Cambridge: Cambridge UniversityPress, 1995). (Suponha que um ato incuo ou positivamente benfico seja proibido pelo soberano etenha como condenao a pena de morte; se eu cometer esse ato, devo ser julgado e condenado e, se euapelar da sentena dizendo que a sentena contrria lei de Deus, que ordenou que legisladores

    humanos no probam atos que no tenham conseqncias ms, a Corte de Justia demonstrar aredundncia dos meus argumentos e me enforcar, dando continuidade lei cuja a validade euimpugnei.)

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    Natural tinha boas respostas para as tentativas de Positivo de resolver o

    Paradoxo da Possibilidade e legitimar suas regras. Podem igualmente generalizao

    suas objees para aplic-la a todas as formas de positivismo jurdico. De acordo com o

    positivismo jurdico, o contedo do direito , em ltima instncia, determinado apenas

    por fatos sociais. Para saber o direito, portanto, deve-se (ao menos em princpio) ser

    capaz de derivar essa informao exclusivamente do conhecimento de fatos sociais. No

    entanto, o conhecimento do direito normativo enquanto que o conhecimento dos fatos

    sociais descritivo. Como pode o conhecimento normativo ser derivado exclusivamente

    do conhecimento descritivo? Isso seria derivar juzos sobre o que juridicamente se deve

    fazer a partir de juzos sobre o que socialmente o caso. O positivismo jurdico,

    portanto, aparentemente viola o famoso princpio introduzido por David Hume

    (geralmente chamado Lei de Hume), segundo o qual ningum pode derivar um deve

    ser de um ser. 12

    J que esse um desafio extremamente srio para o positivismo jurdico,

    passaremos mais tempo examinando como diferentes positivistas tm tentado resolv-

    lo. Primeiramente, contudo, quero descrever o desafio em maiores detalhes.

    Nino e Dino

    Suponha que eu diga para uma criana guarde seus brinquedos! A criana me

    olha com cara de perplexidade e responde por que eu deveria obedecer a voc? Eu,

    ento, digo porque eu disse. Nesse ponto, a criana reclamaria mas por que eu

    deveria obedecer a voc s porque voc disse? Quando digo porque sou seu pai, ela

    responde e por que os filhos devem obedecer a seus pais?. Eu respondoporque os

    filhos sempre obedecem a seus pais e meu filho dispara sim, mas o fato de que

    crianas sempre obedeceram a seus pais no significa que elas devem obedecer.Note que apesar de estar sendo inconveniente e imprudente, a criana tem, de

    fato, um ponto. Ela est correta em sustentar que quando eu digo para ela guardar seus

    brinquedos porque eu sou seu pai, ou porque as crianas sempre escutam seus pais, nada

    disso pode, por si s, ou conjuntamente, fornecer uma razo para que ela me obedea.

    Esses fatos so meramente descritivos e, segundo a Lei de Hume, nenhuma concluso

    normativa pode seguir-se de sentenas que os descrevam. Com o objetivo de justificar

    12Ver HUME, David.A Treatise of Human Nature, vol. III, parte 1, fim da seo 1.

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    minha reivindicao por autoridade, eu devo produzir um princpio que faa uma ponte

    entre o descritivo e o normativo. Tem que ser algo do tipo voc deve me obedecer

    porque crianas devem respeitar seus pais ou se voc no obedecer, eu vou puni-lo e

    punies so ruins.

    Como concluses normativas no podem ser derivadas exclusivamente de

    premissas descritivas, raciocnios normativos devem ter certo grau de deduo: eles

    devem assegurar que seu raciocnio utilize um juzo normativo como inputpara que um

    juzo normativo seja um output. Chamo esse modelo de deduo do tipo entra

    normativo/sai normativo13 de uma inferncia modelo NINO. A Lei de Hume

    violada, portanto, se um juzo normativo for produzido na base apenas de juzos

    descritos. Chamemos essa sequncia de modelo DINO.

    A preocupao relativa ao positivismo jurdico, pode-se dizer, que ele viola a

    Lei de Hume por permitir padres DINO de inferncia. Suponha que algum realizando

    um raciocnio jurdico quer responder alguma questo que exija conhecimento das

    regras fundamentais de um sistema jurdico. Digamos que ele quer saber se o presidente

    possui o poder de declarar guerra ou se a pena de morte constitucional. Para obter a

    resposta, o positivismo requer que a pessoa considere alguns fatos sociais. Assim, a

    teoria positivista permite quele que est pensando sobre a questo derivar juzos

    normativos sobre direitos e deveres a partir de juzos descritivos sobre fatos sociais.

    Juzos normativos saram, mas nenhum entrou. Essa objeo ao positivismo jurdico

    chamada de Desafio de Hume.

    A teoria do direito natural passa intocada pela Lei de Hume, uma vez que

    resolve o Paradoxo da Possibilidade atravs de fatos morais, ao invs de sociais. Para

    responder questes que requerem o conhecimento de regras jurdicas fundamentais,

    deve-se formar juzos morais e us-los como premissas para deduzir concluses

    jurdicas. Como tanto o juzo jurdico quanto o moral aparentam ser normativos, odireito natural respeita o modelo NINO. Juzos normativos sobre o direito podem ser

    deduzidos apenas porque juzos normativos sobre a moral serviram como ponto de

    partida.

    13N.T. No original o modelo de deduo dito normative in, normative out, formando com a primeiraletra de cada palavra o termo NINO. O mesmo acontece com DINO, pois podemos inferir do texto aseguinte frase descriptive in, normative out.

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    Escolha seu remdio amargo

    Poder-se-ia pensar que a teoria positivista foi de tal modo avariada pelo Desafio

    de Hume, que devesse ser rejeitada em favor da teoria do direito natural. No entanto, a

    teoria do direito natural tambm possui problemas srios. Por insistir em basear a

    autoridade jurdica na autoridade moral ou em normas morais, a teoria do direito natural

    afasta a possibilidade de sistemas jurdicos maus. Conforme observamos no ltimo

    captulo, um trusmo que a Unio Sovitica possua um direito, mesmo que a liderana

    exercida pelo Partido Comunista no tivesse legitimidade moral.

    Chamemos isso o Problema do Mal. Assim como telogos se esforaram para

    provar que o mal possvel, tendo em vista a bondade de Deus, o direito natural deve

    contar com a possibilidade de um sistema jurdico mau, j que, segundo esses autores, o

    direito baseado em fatos morais. Positivistas, por outro lado, no possuem essa

    dificuldade. Segundo a teoria positivista, a Unio Sovitica teve um sistema jurdico

    porque os oficiais soviticos tinham poder de coero sobre a populao ou porque os

    oficiais soviticos reconheciam a autoridade sovitica. Em ambos os casos, a autoridade

    jurdica de regimes maus pode ser explicada apelando-se para certos fatos sociais, em

    oposio aos fatos morais.

    Escolher um ponto de partida para o nosso exame, portanto, como um

    exerccio de escolher entre remdios amargos. Assim, no seria errado dizer que ambas

    as posies so, perante a cincia do direito, altamente problemticas. Com efeito, o

    debate entre positivismo jurdico e direito natural to interessante e dura h tanto

    tempo, que parece que nenhum dos lados o correto. Por um lado, se seguirmos o

    direito natural e tentarmos resolver o Paradoxo da Possibilidade baseando o direito em

    fatos morais, excluiramos a existncia de sistemas jurdicos moralmente ilegtimo.

    Mesmo que evitssemos completamente apelar a fatos morais e segussemos a teoria

    positivista, que baseia o direito apenas em fatos sociais, resolveramos o Paradoxo daPossibilidade apenas pagando o preo de violar a Lei de Hume. Filsofos do direito

    encaram, dessa forma, um terrvel dilema: so execrados se baseiam o direito em fatos

    morais e tambm o so se no o fizerem.

    Nos prximos captulos, examinaremos as respostas que o positivismo jurdico

    tem oferecido a esses paradoxos e desafios, comeando pela teoria do direito de John

    Austin e ento passando a considerar outras explicaes positivistas. Quero comear

    com os positivistas no porque as objees teoria do direito natural sejam mais fortes,mas pela simples razo de que as objees teoria positivista so mais interessantes e

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    possuem uma prioridade lgica. Assim, considere de que modo os filsofos do direito

    natural devem responder ao Problema do Mal. Eles devem: (1) negar que estejam

    desdenhando um trusmo; (2) afirmar que o desdenho do trusmo no to ruim quanto

    os problemas encontrados pelos positivistas. A primeira parte dessa resposta pode estar

    correta (embora eu duvide disso), mas no interessante, porque, afinal, ela no nada

    mais que uma declarao desafiadora de que regimes jurdicos maus no so possveis.

    Uma vez que esse caminho adotado, no claro onde a conversa pode parar. Por outro

    lado, a segunda parte da resposta dos jusnaturalistas filosoficamente interessante, mas

    sua validade pode ser avaliada apenas quando tivermos determinado a fora das

    objees contra os positivistas. Assim, saberemos qual remdio amargo escolher apenas

    quando avaliarmos o grau de toxidade dos positivistas.

    Captulo 3: A Teoria da Sano de Austin

    Brincadeira de criana

    Para ter uma idia do quo difcil encontrar uma teoria do direito plausvel,

    tente explicar o que direito para uma criana esperta de cinco anos de idade. Crianas

    dessa idade so timas pra testar teorias desse tipo, porque mesmo que elas j tenham

    adquirido certo conhecimento sobre idias normativas, como o significado de: REGRA,

    DEVER e ERRADO, elas no possuem qualquer dos conceitos jurdicos distintivos. A

    ingenuidade para com os conceitos impede a nossa tentao de descrever o direito como

    sendo aquelas regras feitas por autoridades jurdicas, pois a criana de cinco anos no

    tem idia do que seja uma autoridade jurdica. Crianas no dominam conceitos

    normativos sofisticados, como PRTICA ou INSTITUIO, ento qualquer descriodo direito teria que explicar a prtica jurdica e as instituies em termos mais simples.

    Se voc for como eu, voc provavelmente vai ficar tentado a oferecer uma

    explicao como a seguinte: o direito consiste naquelas regras que, se desobedecidas

    por um adulto, um policial poder puni-lo, forando-o a pagar algum dinheiro ou a ficar

    um tempo em um lugar chamado cadeia. Essa descrio, entretanto, no satisfatria

    o bastante, no apenas porque policiais normalmente no punem quem viola a lei, mas

    porque ela faz referncia a policiais e usa, portanto, um conceito jurdico (embora sejaum dos poucos conceitos jurdicos que as crianas parcialmente dominem). Ento,

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    algum pode tentar dizer que o direito consiste naquelas regras que se desobedecidas

    por um adulto, pessoas cujo trabalho pegar e punir quem desobedece lei podem

    puni-lo, forando-o a pagar algum dinheiro ou a ficar um tempo em um lugar chamado

    cadeia.

    Essa descrio, claro, incompleta, no nos diz, por exemplo, de onde vm as

    regras, nem especifica como essas regras devem ser interpretadas. Esse esboo, no

    entanto, no tem o objetivo de ser uma teoria completa do direito supostamente para

    exprimir em uma frase a identidade do direito, ou seja, a propriedade ou as propriedades

    que faam do direito o que ele e que o distingam de outras regras ou prticas sociais. E

    primeira vista ao menos, a descrio desempenha bem seu papel. Primeiro, porque a

    descrio faz referncia a conceitos normativos simples, relativamente sem problemas,

    como REGRA, EMPREGO e PUNIO- conceitos perfeitamente entendidos por

    crianas. Segundo, ela razoavelmente boa ao separar o direito de outras prticas

    sociais. Normalmente, punem-se as crianas tirando algo de valor delas ou deixando-as

    de castigo, o que no acontece com adultos. Isso extraordinrio, pois quando ocorre,

    apenas algumas pessoas podem utilizar-se da fora para garantir o cumprimento das

    regras jurdicas. Terceiro, a descrio revela por que muitas pessoas se importam com o

    que o direito: para no serem punidas. A motivao , mais uma vez, clara para uma

    criana de cinco anos de idade.

    Nesse captulo, discutirei uma famlia de teorias jurdicas que melhoraram essa

    descrio bsica. Tendo em vista que essas justificativas usam sanes como centrais

    para estabelecer a natureza do direito, vou me referir a elas como teorias jurdicas da

    sano. Conforme veremos, mesmo que as teorias da sano sejam intuitivamente

    atraentes, elas esto, contudo, seriamente equivocadas e no podem representar teorias

    plausveis do direito.