Sherlock Holmes - Antologia

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SHERLOCK HOLMES - A NTOLOGIA 

Sir Arthur Conan Doyle

by Joabe S. Arruda

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 A BBEY GRANGE

Numa fria e nevoenta manhã de inverno, em 1897, acordei com um puxão em meu ombro. EraHolmes. A vela que ele segurava iluminava-lhe o rosto ansioso, e eu soube imediatamente que acon-

tecera alguma coisa.

— Venha, Watson, venha! O jogo começou! Nem uma palavra! Vista-se e venha!

Dez minutos mais tarde, estávamos numa carruagem, atravessando ruas silenciosas a caminho daEstação de Charing Cross. Os primeiros sinais da madrugada apareciam, e víamos de vez em quandoum vulto de operário. Holmes estava silencioso, encolhido em seu vasto sobretudo, e eu também,pois o frio era cortante e nenhum de nós tomara café antes de sair. Só depois de termos tomado umchá bem quente na estação, e já sentados no trem, é que ele se sentiu disposto a falar, e eu, a ouvir.Holmes tirou um papel do bolso e leu em voz alta:

"Abbey Grange, Marsham, Kent, 3:30 h.

Caro sr. Holmes — Ficaria muito satisfeito se pudesse vir imediatamente em meu auxílio, num casoque promete ser realmente extraordinário. É algo de sua especialidade. A não ser para libertar adama, farei com que tudo fique exatamente como foi encontrado, e peço-lhe que não perca uminstante, pois é difícil deixar Sir Eustace lá.

Sinceramente,Stanley Hopkins".

— Hopkins pediu meu auxílio sete vezes, e todas elas se justificaram — disse Holmes. — Creio que oscasos de nosso amigo fazem parte de sua coleção, Watson, e devo confessar que você tem um dom deseleção que desculpa muita coisa deplorável, a meu ver, em suas narrativas. Seu hábito fatal de olharpara tudo como uma história, em vez de um exercício científico, arruinou o que poderia ter sido umainstrutiva e até mesmo clássica série de demonstrações. Refere-se por alto a um trabalho de grandeastúcia e delicadeza, e apoia-se em pormenores sensacionalistas, que podem excitar mas não instruiro leitor.

— Por que não escreve você mesmo seus casos? — repliquei, um tanto azedamente.

— Escreverei, caro Watson, escreverei. No momento presente, estou muito ocupado, como sabe, maspretendo dedicar a velhice à composição de um livro que focalizará toda a arte detetivesca num único

 volume. Nosso caso presente parece ser de assassinato.

— Acha, então, que Sir Eustace está morto?

— Creio que sim. A letra de Hopkins denota grande agitação, e ele é emotivo. Sim, acho que houve violência, e que o corpo está à nossa espera para um exame. Um simples suicídio não faria com queHopkins me chamasse. Quanto a dizer que libertou a dama, parece que ela esteve presa no quartodurante a tragédia. Estamos nos movendo na alta sociedade. Veja, Watson, o papel, o monograma E.

B., o brasão, o pitoresco endereço. Creio que nosso amigo Hopkins estará à altura da situação, e que vamos ter uma manhã interessante. O crime foi cometido antes da meia-noite de ontem.

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— Como sabe?— Por um exame dos trens e uma avaliação do tempo. A polícia local foi chamada, mas comunicou-se com a Scotland Yard. Hopkins foi para lá e, por sua vez, chamou-me. Tudo isso leva bem umanoite de trabalho. Bem, cá está a Estação de Chislehurst, e já o saberemos.

Um trajeto de três quilômetros, por estreitas azinhagas, levou-nos a um portão grande, aberto por

um homem que parecia aflito, provavelmente por causa da tragédia. A alameda cortava um parqueantigo, no meio de velhos olmos, e ia acabar diante de uma casa baixa, esparramada, com pilares nafrente. A parte central era, evidentemente, muito antiga, coberta de hera, mas as janelas largasindicavam que houvera reforma, e uma ala da casa parecia completamente nova. O inspetor Stanley Hopkins, com seu vulto jovem e expressão viva, esperava-nos à porta.

— Estou muito satisfeito por ter vindo, sr. Holmes. E também o senhor, dr. Watson! Mas, se pudesse voltar atrás, não os teria incomodado, pois a dona da casa, depois que voltou a si, fez-nos uma descri-ção tão clara do incidente que não nos resta muito o que fazer. Lembra-se daquele grupo de ladrõesde Lewisham?

— Refere-se aos três Randalls?

— Exatamente: o pai e os dois filhos. É obra deles, não tenho a menor dúvida. Fizeram um trabalhinhoem Sydenham, há quinze dias, e foram vistos e descritos. É uma audácia fazer outro logo em seguida,mas foram eles. Desta vez, é a forca que os espera.

— Quer dizer que Sir Eustace morreu?

— Sim, esmagaram-lhe a cabeça com o atiçador da lareira de sua própria casa.

— O cocheiro disse-me que se trata de Sir Eustace Brackenstall.

— Realmente, era um dos homens mais ricos de Kent. Lady Brackenstall está na saleta. Pobre senho-ra, passou por uma terrível prova. Parecia mais morta do que -viva quando cheguei. Creio que émelhor ouvi-la contar os fatos. Depo is, iremos examinar a sala de jantar.

Lady Brackenstall não era uma pessoa vulgar. Raras vezes tenho visto mulher tão graciosa, tãofeminina, tão bela. Loura, com cabelos dourados, olhos azuis; teria, naturalmente, a tez perfeita quegeralmente acompanha esse tipo, se a experiência daquela noite não a tivesse deixado tão desfeita.Os sofrimentos eram tanto físicos como mentais, pois um lado da testa estava roxo e inchado, e era

constantemente banhado com água e vinagre por uma criada alta e austera. A dona da casa estavaestendida, exausta, num divã, mas o olhar vivo, observador, a expressão alerta no belo rosto indica-

 vam que nem o intelecto nem a coragem tinham ficado prejudicados com a terrível experiência. Vestia uma camisola solta, azul e prateada, mas havia a seu lado um vestido preto de jantar.

— Já lhe contei tudo o que aconteceu, sr. Hopkins — disse ela, com voz cansada. — Se posso repetir?Bem, se achar necessário, repetirei para esses senhores. Já estiveram 'na sala de jantar?

— Achei melhor ouvirem primeiro sua história.

— Ficarei satisfeita assim que o senhor tomar todas as providências. É horrível pensar nele lá. —Estremeceu, escondendo o rosto nas mãos. Ao fazê-lo, a manga solta caiu, mostrando o antebraço,Holmes soltou uma exclamação.

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— Tem outros ferimentos, minha senhora! O que é isso?

Duas manchas vermelhas marcavam o braço claro e roliço. A jovem ocultou-as imediatamente.

— Não é nada — disse ela. — Nada tem a ver com o horrível acidente de ontem à noite. Façam o favorde se sentar, e eu contarei o que houve.

"Sou esposa de Sir Eustace Brackenstall. Casei-me há um ano. É inútil querer ocultar o fato de tersido um casamento infeliz. Todos os vizinhos poderiam informá-lo, senhor, mesmo que eu tentassenegar. Talvez a culpa seja, em parte, minha. Fui educada na atmosfera mais livre, menos convencio-nal do sul da Austrália, e adapto-me mal à vida na Inglaterra, com seus preconceitos e tabus. Mas arazão principal estava num fato de todos conhecido, isto é, Sir Eustace era um bêbado inveterado.Conviver com um homem assim, mesmo por uma hora, é desagradável. Pode imaginar o que era,para uma mulher sensível e voluntariosa, viver presa a ele dia e noite? É um sacrilégio, um crime,dizer que tal casamento é indissolúvel. Essas leis monstruosas trarão maldição ao país. Deus nãopermitirá que tanta maldade persista."

Ela sentou-se por um momento, de rosto corado, os olhos brilhando sob a marca na fronte.Depois, a mão forte e macia da criada fez com que se deitasse de novo, e a cólera foi substituída porsoluços. Finalmente, continuou:

— Vou contar-lhes o que aconteceu a noite passada. Talvez saibam que todos os empregados dormemna ala nova. Neste bloco central ficam os dormitórios, com a cozinha atrás e nosso quarto em cima.Minha empregada, Theresa, dorme num quarto acima do meu. Não há mais ninguém, e nenhumsom perturbaria os que dormem na outra ala. Isso devia ser do conhecimento dos ladrões, pois decontrário não teriam agido como agiram.

"Meu marido foi para o quarto às dez e meia, mais ou menos. Os empregados já tinham se recolhi-do. Somente minha criada estava acordada, e ela costuma ficar em seu quarto, em cima, aguardandoque eu a chame. Fiquei aqui nesta sala até depois das onze horas, absorta num livro. Depois dei uma

 volta para ver se estava tudo em ordem, antes de subir. Era meu hábito fazê-lo pessoalmente, poisnão se podia confiar em Sir Eustace. Fui à cozinha, à copa, à sala de armas, à sala de bilhar, à sala de

 visitas e, finalmente, à sala de jantar. Ao aproximar-me da porta-janela, coberta por uma cortinapesada, senti de repente um golpe de vento no rosto, o que indicava que estava aberta. Abri a cortinae dei com um homem idoso, de ombros fortes, que acabara de entrar na sala. A porta-janela é largae dá para um relvado. Eu tinha na mão minha vela de quarto e, à luz dela, vi atrás do homem outrosdois, que iam entrando. Recuei, mas o primeiro sujeito avançou. Agarrou-me primeiro pelos pulsos,

depois pelo pescoço. Abri a boca para gritar, mas recebi um soco no olho e caí. Devo ter ficadoinconsciente por alguns minutos, pois, quando dei por mim, vi que tinham rebentado o cordão dacampainha e que me tinham amarrado na cadeira de carvalho que fica à cabeceira da mesa. Estavatão bem presa que não podia mover-me, e uma mordaça impedia-me de gritar. Foi nesse momentoque meu pobre marido entrou na sala. Evidentemente, ouvira sons e viera preparado para o quequer que fosse. Estava de calça e camisa, e tinha na mão sua bengala favorita. Correu para um dosladrões, mas o outro, o sujeito de idade, inclinou-se, apanhou o atiçador da lareira e desferiu-lhe umterrível golpe. Meu marido caiu sem um gemido, e não mais se moveu. Desmaiei de novo, mas deveter sido apenas por alguns minutos. Quando abri os olhos, vi que tinham tirado as pratas de cima doaparador e uma garrafa de vinho que lá estava. Cada um deles tinha um copo na mão. Já lhe disse

que um era idoso, com barba, e os outros dois, rapazinhos imberbes. Poderiam ser pai e filhos.Falavam por murmúrios, Depois, aproximaram-se, verificando se eu estava bem amarrada. Final-mente saíram, fechando a janela. Só um quarto de hora depois consegui fazer com que a mordaça

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caísse. Gritei, e minha criada acudiu. Depois vieram os outros empregados e mandaram chamar apolícia, que alertou Londres imediatamente. É só o que posso dizer-lhes, senhores, e espero que nãome seja necessário repetir história tão dolorosa."

— Alguma pergunta, sr. Holmes? — disse Hopkins.

— Não quero abusar do tempo e da paciência de Lady Brackenstall — declarou meu amigo, — Mas,antes de ir para a sala de jantar, gostaria de ouvir o que a criada tem a dizer — continuou, voltando-se para ela.

— Vi os homens antes de entrarem em casa — contou ela. — Sentada à minha -janela, vi três homensao luar, perto do portão de entrada, mas não dei importância a isso, na ocasião. Somente uma horadepois é que ouvi minha patroa gritar, e corri para baixo, encontrando-a, coitadinha, como ela jálhes contou, e ele caído no chão, todo ensangüentado. Era de deixar uma mulher louca, ali amarra-da, o vestido manchado com o sangue do próprio marido, mas nunca lhe faltou coragem, à srta.Mary Fraser, de Adelaide... e Lady Brackenstall, de Abbey Grange, não é diferente. Já a interroga-

ram bastante, senhores, e agora ela vai para o quarto, com sua velha Theresa, à procura do descansoque necessita.

Com ternura de mãe, a mulher magra e abatida pôs os braços à volta da patroa e levou-a.

— Está com ela desde criança — contou Hopkins. — Foi sua ama, e veio com Lady Brackenstall para aInglaterra, quando deixaram a Austrália há dezoito meses. Chama-se Theresa Wright, e é o tipo deempregada que não se encontra hoje em dia. Por aqui, sr. Holmes, por favor!

A expressão de interesse desaparecera do rosto de Holmes, e percebi que, uma vez que não existiamistério, o caso não o atraía. Ainda precisava ser efetuada uma prisão, mas quem eram aquelesmalandros vulgares, para que Holmes sujasse suas mãos na tarefa de capturá-los? Um grande especi-alista que fosse chamado para um caso de sarampo teria a mesma expressão aborrecida que vi norosto de meu amigo. Mas a cena na sala de jantar foi suficientemente estranha para lhe chamar aatenção e reavivar-lhe o interesse.

Era uma sala grande e de pé-direito alto, com teto e lambris de carvalho, uma bela coleção decabeças de veado e armas antigas nas paredes. Na parede oposta à porta de entrada, vimos a porta-janela de que nos tinham falado. Três janelas menores, do lado direito, deixavam entrar o pálido solde inverno. A esquerda, havia uma lareira grande, funda, com um pesado tampo de carvalho. Aolado da lareira, uma pesada cadeira de carvalho, de braços e com pés cruzados embaixo. Na madeira

trabalhada, via-se enrolada uma corda vermelha, amarrada embaixo, nos pés cruzados. Ao soltarema dona da casa, a corda escorregara, mas ficaram os nós que a tinham prendido. Esses pormenores sónos chamaram a atenção mais tarde, pois nossos olhos fixaram-se no terrível espetáculo oferecidopelo homem estendido no chão, sobre uma pele de tigre.

Era o corpo de um homem alto, bem-feito, de mais ou menos quarenta anos de idade. Estava decostas, o rosto para cima, os dentes brancos como que arreganhados no meio da barba preta. As duasmãos contraídas estavam erguidas acima da cabeça, e no meio delas via-se uma pesada bengala. Orosto escuro, aquilino, estava convulso, num espasmo de cólera vingativa, dando-lhe um ar diabólico.Evidentemente estava deitado quando ouviu o barulho, pois usava um camisolão de dormir preten-

sioso, bordado, e os pés que saíam das calças estavam nus. A cabeça estava horrivelmente machucada,e toda a sala indicava a ferocidade do golpe que lhe fora desferido. A seu lado estava o atiçador,dobrado, devido ao impacto. Holmes examinou-o e ao terrível ferimento por ele causado.

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— Deve ser um homem muito forte, o tal Randall — observou.

— É, sim — disse Hopkins. — Sei muito bem quem é, um sujeito perigoso.

— Não lhe será difícil apanhá-lo.

— Claro que não. Temos andado à sua procura, e ouvíramos dizer que fugira para a América. Agoraque sabemos que o bando está aqui, não poderá escapar-nos. Mandamos aviso para todos os portos,e será oferecida uma recompensa antes que caia a noite. O que me admira é como podem ter feitotal loucura, sabendo que Lady Brackenstall os descreveria e que não poderíamos deixar de reconhe-cer a descrição.

— Exatamente, Seria de esperar que tivessem também procurado obter o silêncio de Lady Brackenstall.

— Talvez não tenham percebido que ela voltara a si.

— Provavelmente. Estando ela inconsciente, não lhe tirariam a vida. Que me diz deste infeliz, Hopkins?Lembro-me de ter ouvido estranhas histórias a seu respeito.

— Era um bom homem, quando sóbrio, mas um demônio quando bêbado, ou antes, meio bêbado,pois raramente se embriagava por completo. O demônio parecia tomar conta dela, nessas ocasiões,e era capaz de tudo. Pelo que ouvi dizer, apesar da fortuna e do título, uma ou duas vezes quase semeteu com a polícia. Houve um escândalo, pois dizem ter derramado gasolina num cão, ateando-lhefogo... o cão da esposa, o que é pior, e só com dificuldade o caso foi abafado. Depois, atirou uma jarrana cabeça da criada, Theresa. Também isso lhe trouxe aborrecimentos. Cá entre nós, a atmosferaaqui ficará mais leve sem ele. O que está procurando agora?

Holmes estava de joelhos, examinando com grande atenção os nós da corda vermelha que tinhamprendido a dona da casa. Depois examinou o cordão da campainha, que fora arrancado.

— Quando tiraram o cordão, a campainha deve ter tocado alto na cozinha — disse ele.

— Ninguém poderia ter ouvido. A cozinha fica muito no fundo.

— Como o ladrão poderia saber que ninguém ouviria? Como ousou arrancar um cordão de campai-nha dessa maneira temerária?

— É verdade, sr. Holmes, é verdade. O senhor formula a pergunta que, mais de uma vez, fiz a mimpróprio. Não há dúvida de que esse sujeito conhecia a casa e seus hábitos. Devia saber que os criadosestariam deitados àquela hora da noite, e que ninguém ouviria a campainha na cozinha. Deve,portanto, ter tido algum criado como cúmplice. Mas são oito, e todos com boas referências.

— Em princípio, a suspeita recairia sobre a criada em quem o patrão atirou a jarra. Mas isso seria traira patroa, a quem ela parece tão dedicada. Bem, bem, isso não tem importância, e, quando Randallestiver preso, você não terá dificuldade em saber o nome dos cúmplices. A história contada peladona da casa parece corroborada pelo que vemos diante de nós. — Holmes foi até a porta-janela eabriu-a. — Aqui não há pegadas; mas o chão é duro e não seria o caso de esperar encontrá-las. Vejo

que as velas sobre a lareira foram acesas.— Sim, foi por esta luz e pela vela que a senhora trazia que os ladrões puderam orientar-se.

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— E o que foi que levaram?

— Oh, não roubaram grande coisa. Apenas algumas peças de prata, de cima do aparador. Lady Brackenstall acha que ficaram tão perturbados com a morte de Sir Eustace, que não fizeram a limpe-za que pretendiam fazer.

— Deve ser verdade. Apesar disso, beberam vinho, pelo que vejo.

— Para retemperar os nervos.

— Exatamente. Ninguém tocou nesses três copos sobre o aparador, não é?

— Não. E também a garrafa está como foi deixada.

— Vamos ver. Ora, ora, o que é isso?

Os três copos estavam agrupados, todos tintos de vinho, e um deles continha borra. A garrafaestava perto, três quartos cheia, e, ao lado, uma rolha longa, manchada. Sua aparência e o pó nagarrafa indicavam que os ladrões não tinham aberto uma garrafa comum. A atitude de Holmesmudou. Perdeu a expressão distraída, e vi de novo uma luz de interesse em seus olhos profundos.Ergueu a rolha e examinou-a atentamente.

— Como a tiraram? — perguntou.

Hopkins apontou para uma gaveta aberta pela metade. Havia ali roupa de mesa e um grande saca-rolhas.

— Lady Brackenstall disse que o saca-rolhas foi usado?

— Não. O senhor deve lembrar-se de que ela estava inconsciente no momento em que a garrafa foiaberta.

— Isso mesmo. Por falar nisso, o saca-rolhas não foi usado. A garrafa foi aberta com um saca-rolhas debolso, provavelmente desse tipo que vem junto com um canivete e que não tem mais de quatrocentímetros de comprimento. Se examinar a parte de cima da rolha, verá que foi furada três vezes,até que conseguissem tirá-la. Não foi trespassada. Esse saca-rolhas grande teria trespassado a rolha,que sairia com um só arranco. Quando encontrar o ladrão, verá que possui um desses canivetes.

— Ótimo! — disse Hopkins.

— Mas confesso que estes copos me deixam perplexo. Lady Brackenstall viu os homens beberem, nãoé verdade?

— Sim, foi clara a esse respeito.

— Então, está acabado. Que mais se pode dizer? Apesar de tudo, deve reconhecer que os três copossão extraordinários, Hopkins! Ora, não vê nada estranho? Bem, bem, vá lá. É possível que, quando

um homem possui dons e poderes extraordinários, como eu, seja levado a procurar uma explicaçãocomplexa quando tem uma simples à mão. Talvez seja coincidência a respeito dos copos. Pois bem,até logo, Hopkins. Não creio que possa ajudá-lo, e parece-me que o caso está bem claro. Avise-me

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quando Randall for preso, ou se houver qualquer outra novidade. Espero poder dar-lhe logo osparabéns por uma feliz conclusão. Venha, Watson, creio que poderemos aplicar melhor nosso tempoem casa.

Na viagem de regresso percebi, pela expressão de Holmes, que ele estava muito preocupado comalgo que observara. De vez em quando, com esforço, procurava desfazer essa impressão e conversar

como se o caso estivesse liquidado, mas depois ficava de novo pensativo. Finalmente, com súbitoimpulso, assim que nosso trem saiu de uma estação de subúrbio, pulou para a plataforma e puxou-me.

— Desculpe-me, caro amigo — disse, quando vimos o trem virar a curva. — Sinto torná-lo vítima doque talvez seja apenas um capricho, mas, por Deus, Watson, não posso deixar o caso como está.Todos os meus instintos gritam contra isso. Está errado, está errado, está tudo errado. E, no entanto,a história da dona da casa está completa, foi corroborada pela empregada, cada pormenor pareceabsolutamente exato. Que tenho eu a opor a isso? Três copos de vinho, apenas. Mas, caso eu nãotivesse tomado as coisas como certas, se tivesse examinado tudo com o cuidado de quem começa uma

investigação com a cabeça fresca, sem ter ouvido uma história, não teria encontrado algo mais defi-nido? Claro que teria. Sente-se neste banco, Watson, até que chegue um trem de Chislehurst, epermita-me que ponha os indícios diante de você, implorando-lhe, em primeiro lugar, que afaste dopensamento a idéia de que os fatos contados pela dona da casa e pela criada sejam necessariamente

 verdadeiros. A encantadora personalidade da dama não deve influir em nosso julgamento.

"Na história de Lady Brackenstall existem certamente pormenores que, examinados a sangue-frio,excitariam nossas suspeitas. Esses ladrões cometeram um considerável roubo em Sydenham, há quin-ze dias. Saiu nos jornais a descrição do pai e dos filhos, e ela logo ocorreria a quem desejasse inventaruma história na qual bandidos imaginários tomassem parte. Em geral, os ladrões que fizeram umbom negócio dão-se por felizes de aproveitar em paz as vantagens do roubo, em vez de se meteremem outra perigosa aventura. Além disso, não é natural que atuem tão cedo, no princípio da noite;em geral não espancam uma mulher para evitar que grite, pois seria esse o meio mais fácil de fazê-lagritar; não é comum assassinarem um homem, quando são em número suficiente para dominá-lo; éextraordinário que se contentem com pouca coisa, quando têm muita a seu alcance; e, finalmente,asseguro-lhe que é estranho que tais homens deixem uma garrafa de vinho pela metade. Que acha,

 Watson?"

— O efeito acumulado de tudo isso é de fato considerável, mas cada um dos pontos em separado éadmissível — respondi. — O mais estranho, para mim, é que ela tenha sido amarrada.

— Pois bem, isso não é assim tão estranho, Watson, pois é evidente que teriam de matá-la, ou amarrá-la, para que não desse imediatamente o alarme da fuga. E, acima de tudo, vem o incidente dos trêscopos de vinho.

— Que têm eles?

— Não pode se recordar deles?

— Claro que posso.

— Disseram-nos que os três homens beberam. Acha isso provável?— Por que não? Havia vinho em todos os copos.

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— Exatamente. Mas havia borra num apenas. Deve ter notado essa particularidade. O que lhe suge-re?

— O último copo servido provavelmente foi o que recebeu a borra.

— Claro. A garrafa estava cheia dela, e é inconcebível que dois copos estivessem sem nada, e o outro,

cheio dela. Há duas explicações, e apenas duas. Uma, que a garrafa foi violentamente agitada depoisde ser servido o segundo copo, de modo que o terceiro apanhou a borra. Isso não parece provável.Não, não, tenho certeza de que tenho razão.

— Então, qual é sua suposição?

— De que somente dois copos foram usados, e que os restos dos dois foram vertidos no terceiro copo,para dar a impressão de que havia três pessoas. Dessa maneira, toda a borra iria para o terceiro copo,não é verdade? Sim, estou convencido de que foi isso. Mas, se acertei na explicação desse pequenopormenor, então o caso passa do comum para o extraordinário, pois significa apenas que Lady 

Brackenstall e sua criada tentaram deliberadamente mentir-nos, e não devemos acreditar numa sópalavra de sua história; elas têm motivos para ocultar o verdadeiro criminoso, e devemos investigarnosso caso sem o auxílio delas. É esta a nossa missão, Watson, e aqui esta o trem.

O pessoal da casa ficou muito admirado com nossa volta, mas Holmes, vendo que Hopkins saírapara fazer seu relatório, tomou conta da sala de jantar, fechou a porta por dentro e dedicou-se,durante duas horas, à minuciosa investigação que era a base em que se firmava o brilhante edifíciode suas deduções. Sentado a um canto, como o estudante interessado que observava a demonstraçãodo professor, acompanhei todos os passos de sua extraordinária busca. A janela, as cortinas, o tapete,a cadeira, a corda — cada objeto foi examinado minuciosamente, e seu valor, ponderado.

O corpo do infeliz baronete fora removido, mas o resto continuava em seus lugares. Depois, comespanto, vi Holmes subir na maciça lareira. Acima de sua cabeça, pendiam alguns centímetros decorda, ainda presa ao arame. Durante muito tempo ele olhou para cima, e, tentando chegar maisperto, apoiou o joelho na mão-francesa da parede. Isso permitiu que sua mão chegasse muito pertoda ponta da corda, mas foi a mão-francesa o que mais lhe prendeu a atenção. Finalmente, desceucom uma exclamação satisfeita.

— Está certo, Watson — disse ele. — Este caso é um dos mais extraordinários de nossa coleção. Mas,Deus do céu, como fui inepto, quase chegando a cometer a maior falta de minha vida! Acho, agora,que os poucos elos que faltam à corrente estão quase à nossa mão.

— Sabe quem são os homens?

— O homem, Watson, o homem. Apenas um, mas uma formidável criatura. Forte como um touro,basta ver a violência com que o atiçador foi dobrado. Um metro e noventa de altura, ágil como umesquilo, e de dedos hábeis. Finalmente, homem de muito sangue-frio, pois esta história engenhosa éde sua autoria. Sim, Watson, temos aqui o trabalho de um sujeito extraordinário. Mas com a cordaele nos dá uma pista que não deixa dúvidas.

— Que pista?

— Pois bem, se você tivesse de puxar aquela corda, Watson, onde esperaria que ela rebentasse? Certa-mente no ponto onde se prende ao arame. Por que haveria de partir-se a oito centímetros da extre-

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midade de cima, como aconteceu com esta aqui?

— Pelo fato de estar gasta?

— Exatamente. Esta ponta aqui está gasta. Ele teve a inteligência de cortá-la com uma faca, mas aoutra parte não está desfiada. Não se podia observar isso daqui de baixo, mas subindo na lareira pude

 ver que a ponta da parte superior está cortada firmemente, sem sinais de desgaste. Podemos reconstituiros fatos. O homem precisava da corda. Não quis arrancá-la, com medo do alarme da campainha. Oque fez, então? Pulou para a lareira, não pôde alcançar a corda, pôs o joelho na mão-francesa, como

 você pode ver pela marca na poeira, e cortou a corda com a faca. Faltam oito centímetros para queeu alcance a extremidade, de modo que calculo que ele seja oito centímetros mais alto do que eu.

 Veja esta marca na cadeira de carvalho! O que é?

— Sangue.

— Claro que é sangue. Só isso desmente a história da dona da casa. Se ela estava sentada nesta

cadeira, quando o crime foi cometido, como pode haver aqui esta marca? Não, não, ela foi posta nacadeira após a morte do marido. Garanto que há uma marca correspondente em seu vestido preto. Ainda não encontramos nosso Waterloo, mas isso aqui é nossa Marengo, pois começa com derrota etermina com vitória. Gostaria de trocar uma palavra com Theresa, a criada. Temos de nos acautelar,a princípio, se quisermos a informação que desejamos.

Era interessante aquela australiana de ar severo. Taciturna, desconfiada, pouco amável. Holmeslevou tempo para, com sua amabilidade e aceitação de tudo o que ela dizia, conseguir que se abrisse.

 A mulher não tentou ocultar seu ódio pelo antigo patrão.

— Sim, senhor, é verdade que ele arremessou a jarra contra mim. Quando o ouvi chamar minhapatroa por certo nome, eu lhe disse que ele não ousaria falar assim se o irmão dela estivesse presente.Foi então que ele a atirou. Poderia atirar uma dúzia, contanto que deixasse minha menina em paz.Ele estava sempre maltratando-a, e ela era orgulhosa demais para se queixar; ela nunca vai chegar ame contar tudo o que o marido lhe fez. Não me falou sobre aquelas marcas no braço que o senhor

 viu esta manhã, mas eu sei que foram feitas com um alfinete de chapéu. O miserável! Deus meperdoe por falar assim, agora que está morto, mas jamais existiu demônio igual na terra. Era todomel, quando o conhecemos, há dezoito meses apenas, mas parece que foram dezoito anos. Ela acaba-ra de chegar a Londres. Era sua primeira viagem, nunca saíra da Austrália. Ele conquistou-a com seutítulo, seu dinheiro e suas falsas maneiras londrinas. Se a coitada cometeu um erro, pagou caro. Emque mês o conhecemos? Logo que chegamos. Chegamos em junho, e ela conheceu-o em julho.

Casaram-se em janeiro do ano passado. Sim, ela está na saleta agora, e creio que o receberá, mas osenhor deve poupá-la, pois já agüentou o máximo que uma criatura pode agüentar.

Lady Brackenstall estava reclinada no mesmo divã, mas parecia mais animada. A criada entrouconosco e recomeçou a pôr compressas na mancha da testa da patroa.

— Espero que não tenham vindo interrogar-me de novo — disse a dona da casa.

— Não — respondeu Holmes com sua voz mais suave. — Não quero incomodá-la desnecessariamente,Lady Brackenstall. O meu desejo é facilitar-lhe as coisas, pois estou convencido de que sofreu muito.

Se quiser tratar-me como amigo e confiar em mim, creio que não se arrependerá dessa confiança.— O que quer que eu faça?

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SHERLOCK HOLMES - Sir Arthur Conan Doyle - 12

Sua filha era magnífica. Não havia, na frota, oficial que se lhe comparasse. Quanto ao caráter, eleera digno de confiança quando em seu posto; fora do navio era um sujeito violento, exaltado, facil-mente excitável, mas leal, honesto e de bom coração. Foram essas as informações que Holmes co-lheu na companhia de navegação. Dali foi para a Scotland Yard, mas, em vez de entrar, ficou sentadona carruagem, mergulhado em seus pensamentos. Finalmente, foi ao telégrafo da Charing Cross emandou um telegrama. Dali a pouco púnhamo-nos a caminho da Baker Street.

— Não, não pude fazê-lo, Watson — disse ele. — Uma vez expedido o mandado de prisão, nada mais osalvaria. Uma ou duas vezes durante minha carreira, achei que o mal que eu tinha feito, ao revelar ocriminoso, era maior do que o que ele próprio fizera. Aprendi a ser cauteloso, e prefiro prejudicar alei inglesa a prejudicar minha consciência. Precisamos saber mais alguma coisa antes de agir.

Ao anoitecer, recebemos a visita do inspetor Hopkins. As coisas não lhe corriam bem.

— Creio que o senhor é um feiticeiro, sr. Holmes. Às vezes acho realmente que tem poderes sobrena-turais. Como pôde saber que as pratas roubadas estavam no fundo do tanque?

— Não sabia.

— Mas aconselhou-me a verificar.

— Encontrou-as, então?

— Encontrei-as, sim.

— Fico muito satisfeito por tê-lo ajudado.

— Mas não me ajudou. Tornou o caso mais difícil ainda. Que espécie de bandidos são esses, queroubam pratas para atirá-las ao tanque?

— Não há dúvida de que é uma excentricidade. Calculei apenas que, se as pratas tivessem sido rouba-das por pessoas que não as quisessem, e que as tivessem levado apenas para despistar (como foi o queaconteceu), essas pessoas ficariam desejosas de se ver livres delas.

— Mas por que lhe ocorreu tal idéia?

— Pois bem, achei possível. Quando eles saíram pela porta-janela, viram o tanque com um buraco

bem no meio. Poderia haver melhor esconderijo?

— Ah, esconderijo, isso é outra coisa! — exclamou Hopkins. — Sim, sim, agora vejo tudo! Era cedo,havia gente nas estradas, eles tiveram medo de ser vistos com as pratas, de modo que as atiraram aotanque, pretendendo voltar quando as coisas se acalmassem. Excelente, sr. Holmes, melhor do quesua idéia da pista falsa.

— Isso mesmo. Tem aí uma admirável teoria. Reconheço que minhas idéias são fantásticas, mas levei-o a descobrir as pratas.

— Sim, sim, foi graças ao senhor. Mas tive um contra-tempo.— Um contratempo!?

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SHERLOCK HOLMES - Sir Arthur Conan Doyle - 13

— Sim, sim, sr. Holmes. O bando de Randall foi preso em... Nova York, hoje de manhã.

— Que diabo, Hopkins, isso vai contra sua teoria de que eles teriam cometido um assassinato emKent na noite passada.

— É um golpe, sr. Holmes, um golpe fatal. Enfim, sempre há outras quadrilhas, ou talvez se trate de

uma que a polícia não conheça.

— É muito possível. O quê, já vai embora?

— Sim, sr. Holmes. Não descansarei enquanto não chegar ao fim deste caso. Suponho que não temnenhuma pista a dar-me!

— Já lhe dei uma.

— Qual?

— Pois bem, falei em pista falsa.

— Ora, sr. Holmes, ora!

— É essa a questão, naturalmente. Mas dou-lhe a sugestão. Talvez perceba que tem algum fundamen-to. Não quer jantar? Então adeus, e dê-me notícias.

O jantar terminara quando Holmes aludiu de novo ao Caso. Acendeu o cachimbo e aproximou ospés do fogo. De repente, olhou para o relógio.

— Estou à espera de novidades, Watson.

— Quando?

— Daqui a alguns minutos. Acha que agi mal com Hopkins, agora há pouco?

— Confio em você.

— Resposta muito sensata, Watson. Pode encarar o caso desta maneira: o que sei não é oficial; posso,portanto, agir à minha moda, mas ele... mas ele, não. Hopkins tem de revelar tudo, para ser leal a

seu emprego. Havendo dúvidas, eu não gostaria de deixá-lo em posição difícil, de modo que reservominha informação até ter absoluta certeza.

— Mas quando será?

— Chegou a hora. Vai presenciar a última cena de um dramazinho extraordinário.

Ouvimos passos na escada, e nossa porta abriu-se para dar entrada ao mais belo tipo de homemque jamais vi. Era um rapaz muito alto, de bigode louro, olhos azuis, pele queimada pelo sol dostrópicos e um andar que indicava ser ele ágil e forte. Fechou a porta, ficou de mãos contraídas e peito

ofegante, parecendo profundamente emocionado.— Sente-se, capitão Croker. Vejo que recebeu meu telegrama.

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SHERLOCK HOLMES - Sir Arthur Conan Doyle - 14

Nosso visitante caiu numa poltrona, olhando-nos com ar interrogador.

— Recebi e vim à hora que o senhor marcou. Soube que esteve na companhia de navegação. Nãohavia maneira de lhe escapar. Ouçamos o pior. Que vai fazer de mim? Prender-me? Fale, homem!Não pode ficar aí sentado, brincando de gato e rato comigo.

— Tome um charuto — disse Holmes. — Fume, e não se deixe dominar pelos nervos, capitão Croker.Eu não estaria aqui sentado, fumando, se o considerasse um criminoso vulgar, pode estar certo disso.Seja franco comigo, e talvez resolvamos o caso. Mas se procura enganar-me, liquido-o.

— Que deseja que eu faça?

— Conte-me exatamente o que aconteceu em Abbey Grange, a noite passada... a história verdadeira,sem nada acrescentar ou diminuir. Se o senhor se desviar da verdade um centímetro que seja, tocareieste apito de polícia à janela, e o caso sairá para sempre de minhas mãos. O marinheiro pensou ummomento. Depois bateu na perna, com a grande mão queimada de sol.

— Arrisco-me. Acredito que o senhor seja um homem honrado e de palavra, e vou contar-lhe ahistória. Mas direi uma coisa em primeiro lugar. Pelo que me diz respeito, de nada me arrependo enada temo. Maldita seja aquela fera; se tivesse dezenas de vidas, de todas elas teria de me prestarcontas! Mas existe aquela senhora, Mary, Mary Fraser, pois nunca a chamarei pelo maldito sobreno-me do marido. Quando penso que posso prejudicá-la, eu, que daria a vida só para vê-la sorrir, ficocom o coração partido. E no entanto, no entanto, o que eu poderia ter feito? Vou contar-lhes ahistória, senhores, e depois lhes perguntarei de homem para homem se poderia ter feito outra coisa.

"Tenho de retroceder um pouco. Parece que sabem tudo, de modo que com certeza não ignoramque a conheci quando era primeiro-oficial, a bordo do Rock of Gibraltar. Desde o primeiro dia, nãoexistiu no mundo outra mulher para mim. Cada dia a amava mais, e muitas vezes, desde então,ajoelhei-me no tombadilho, na escuridão da noite, e beijei o chão, por saber que ela passara por ali.Ela tratou-me com toda a lealdade. Não tenho do que me queixar. Era amor de meu lado e camara-dagem e amizade do lado dela. Quando nos despedimos, Mary era livre, mas eu nunca mais seria umhomem livre.

"Quando regressei de minha última viagem, soube que ela estava casada. Por que não haveria de secasar com quem quisesse? Título e dinheiro, quem mais do que ela mereceria ser feliz? Nasceu para ascoisas bonitas e caras. Não lamentei o casamento dela, não era egoísta até esse ponto. Alegrei-me porter tido sorte, em vez de desperdiçar a vida com um marinheiro sem vintém. Era assim que eu amava

Mary Fraser.

"Pois bem, pensava nunca mais tornar a vê-la, mas quando cheguei fui promovido, de modo quetive de esperar meu navio alguns meses, em Sydenham. Um dia, no campo, encontrei-me comTheresa, a criada de Mary. Ela contou-me tudo sobre Mary, o marido, tudo. Garanto-lhes, senhores,que fiquei como louco. Aquele bêbado miserável ousar erguer a mão para a mulher cujos sapatos elenão merecia beijar! Encontrei Theresa de novo. E encontrei Mary várias vezes. Depois, ela não quis

 voltar a ver-me. Há alguns dias, recebi a comunicação de que meu navio ia partir dentro de umasemana, e resolvi ir vê-la mais uma vez. Theresa sempre foi minha amiga, pois era afeiçoada a Mary e detestava aquele vilão tanto como eu. Por ela, fiquei conhecendo a casa e seus hábitos. Mary 

costumava ler embaixo, na saleta. Fui de mansinho até lá, ontem à noite, e bati na janela. A princí-pio, ela não quis abrir, mas no fundo do coração eu sabia que ela me amava e que não me deixariafora de casa, numa noite gélida. Ela disse-me que fosse até a porta grande da frente. Entrei na sala de

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jantar. Ouvi de novo, de seus próprios lábios, coisas que me fizeram ferver o sangue, e amaldiçoei obandido que assim maltratava a mulher que eu amava. Pois bem, senhores, estava ali com ela, ino-centemente, tomo a Deus por testemunha! Quando ele entrou como louco na sala, chamou-a pelonome mais baixo que um homem pode atirar a uma mulher e deu-lhe no rosto com a bengala quetinha na mão. Eu agarrei o atiçador, e houve uma luta leal entre nós dois. Veja aqui em meu braçoo ponto onde ele me feriu em primeiro lugar. Chegou então minha vez e avancei, como se ele fosse

um verme. Pensam que estou arrependido? Nunca! Era minha vida ou a dele, e, mais do que isso, eraa dele ou a dela, pois como eu poderia deixá-la em poder daquele louco? Pois bem, o que os senhoresteriam feito se estivessem no meu lugar?"

O capitão Croker continuou:

— Ela gritou quando ele lhe bateu, e isso fez com que Theresa acorresse. Havia uma garrafa de vinhono aparador. Abri-a, fiz Mary tomar um gole, pois estava mais morta do que viva. Depois, tambémtomei um gole. Theresa conservara absoluto sangue-frio, e o plano foi tanto dela como meu. Tínha-mos de dar a impressão de que houvera ladrões em casa. Theresa repetia a história à patroa, enquan-

to eu subia na lareira para cortar a corda. Amarrei Mary a uma cadeira, desfiando a corda para queparecesse gasta, pois do contrário pensariam: como poderia um ladrão subir para cortá-la? Depois,apanhei algumas peças de prata para reforçar a idéia de roubo, e saí, recomendando que dessem oalarme um quarto de hora após minha partida. Atirei as pratas no tanque e dirigi-me a Sydenham,achando que, ao menos uma vez na vida, agira com justiça. É esta a verdade e toda a verdade, sr.Holmes, mesmo que eu tenha de ir para a forca.

Holmes fumou em silêncio durante algum tempo. Depois atravessou a sala e apertou a mão do visitante.

— É isso o que penso — disse ele. — Sei que cada palavra sua é verdadeira, pois não disse uma única queeu já não conhecesse. Ninguém a não ser um acrobata, ou marinheiro, poderia ter alcançado a cordaapoiando-se na mão-francesa; e ninguém, a não ser um marinheiro, teria feito aqueles nós na corda.Somente uma vez Lady Brackenstall estivera em contato com marinheiros, isto é, naquela viagem, edevia ser alguém de sua classe, pois ela fazia tudo para protegê-lo, mostrando assim que o amava.Bem vê como foi fácil descobri-lo, uma vez que me pus na pista certa.

— Calculei que a polícia nunca pudesse descobrir a trama.

— E não descobriu nem descobrirá, ao que penso. Agora, escute, capitão, esse assunto é sério e estoupronto a reconhecer que o senhor agiu sob grande provocação. Não sei se, alegando legítima defesa,

seria ou não absolvido. Isso compete ao júri. Mas simpatizo tanto com seu caso que, se o senhordesaparecer dentro de vinte e quatro horas, prometo que ninguém o impedirá de fazê-lo.

— E depois tudo virá a público?

— Claro que sim.

O marinheiro ficou vermelho de cólera.

— Que espécie de proposta é essa para se fazer a um homem? Conheço bastante a lei para saber que

Mary seria considerada cúmplice. Acha que a deixaria só para enfrentar tudo, enquanto eu fugisse?Não, senhor, que me façam o pior, mas, pelo amor de Deus, sr. Holmes, arranje uma forma dedeixar Mary fora de tudo isso.

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Pela segunda vez, Holmes estendeu-lhe a mão.

— Eu estava pondo-o à prova e, também agora, cada uma de suas palavras soou verdadeira. Pois bem,é uma grande responsabilidade que tomo, mas fiz uma alusão a Hopkins e, se ele não a aproveitar,paciência. Ouça, capitão Croker, vamos fazer isso a exemplo da lei. O senhor é o prisioneiro. Watson,

 você é o júri britânico.... e jamais encontrei pessoa mais apta para representá-lo. Eu sou o juiz. Agora,

senhores jurados, conhecem o processo. Consideram o réu culpado ou inocente?

— Inocente, meritíssimo juiz — respondi.

— Vox populi, vox Dei. Está absolvido, capitão Croker. Enquanto a lei não encontrar outra vítima, osenhor poderá ficar tranqüilo. Venha buscar sua dama dentro de um ano, e que o futuro de ambosjustifique a sentença que hoje pronunciamos.

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 A C AIXA  DE P APELÃO

Ao escolher alguns casos típicos, que demonstrassem bem os extraordinários dotes mentais demeu amigo Sherlock Holmes, esforcei-me, tanto quanto possível, por selecionar os que, apesar de

oferecerem vasto campo para aplicação de suas qualidades, apresentassem o mínimo de sensaciona-lismo. Infelizmente, porém, não há possibilidade de separar inteiramente o elemento sensacional docriminal, e o cronista fica a braços com o dilema de sacrificar pormenores essenciais à narrativa, edar assim uma falsa impressão do problema, ou usar o material oferecido pelo acaso e não pelaescolha. Com este breve preâmbulo, volto às minhas anotações sobre o caso que se revelou umasucessão de acontecimentos estranhos, embora apavorantes.

Era um dia sufocante de agosto. A Baker Street parecia um forno, e o reflexo do sol sobre osazulejos amarelos da fachada da casa fronteira tornava-se intolerável aos olhos. Custava crer quefossem aquelas as mesmas paredes sombrias que mal se distinguiam através da névoa espessa do

inverno. Tínhamos até baixado as cortinas das janelas, e Holmes estava recostado no sofá, lendo erelendo uma carta que recebera pelo correio da manhã. Quanto a mim, o tempo de serviço na Índiahabilitara-me a suportar melhor o calor que o frio, e, assim, o termômetro a trinta e cinco graus nãome incomodava. Mas o jornal matutino nada continha de interesse. O Parlamento suspendera osseus trabalhos, grande parte da população abandonara a cidade e eu ansiava pelas clareiras verdejantesde New Forest ou pelas praias recobertas de seixos de Southsea. A situação precária de minha contabancária, contudo, havia me obrigado a adiar as férias, e, no tocante a meu companheiro, nem ocampo nem o mar exerciam sobre ele a menor atração. Deliciava-se em permanecer no meio decinco milhões de pessoas, qual aranha a desenvolver em torno de si os fios da teia, sempre alerta aomenor rumor ou suspeita de um crime inextricável. A apreciação da natureza não encontrava lugar

entre seus inumeráveis predicados, e a única mudança que ele podia suportar era desviar seu espíritodo malfeitor da cidade para perseguir o colega deste na província.

Percebendo que Holmes estava demasiado absorto para conversar, pus de lado o jornal inútil erecostei-me na cadeira, concentrado em melancólica divagação. De súbito, a voz de meu amigo inter-rompeu-me o curso dos pensamentos.

— Você tem razão, Watson — disse. — É de fato absurda essa maneira de resolver contendas.

— Incrivelmente absurda! — exclamei. No mesmo instante, porém, compreendendo que ele fizeraeco ao que eu estava pensando naquele momento, endireitei-me na Cadeira e fitei-o, atônito.

— Como é possível, Holmes? — gritei. — Isso ultrapassa tudo quanto eu poderia imaginar.

Ele riu gostosamente de minha perplexidade.

— Deve lembrar-se — disse ele — de que quando há pouco tempo li para você um trecho de um contode Poe, no qual certa personagem acompanha pelo raciocínio os pensamentos íntimos do compa-nheiro, você se mostrou inclinado a considerar o assunto simplesmente um tour de force do autor.Como se afirmasse que estava habituado a fazer a mesma coisa, mostrou-se incrédulo.

— Oh! Não é verdade!

— Talvez não tenha dito nada, meu caro Watson, mas o movimento de suas sobrancelhas deu-o a

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entender. Assim, quando o vi abandonar o jornal e pôr-se a pensar, aproveitei o ensejo para seguir ocurso de sua meditação e, eventualmente, interrompê-lo com uma oportuna observação, a fim delhe provar que o havia feito. — Todavia, eu estava longe de me dar por satisfeito.

— No exemplo que você leu — disse eu —, o raciocinador tira suas conclusões dos atos praticados pelohomem que ele observa. Se não me engano, este tropeçou num monte de pedras, olhou para as

estrelas, e assim por diante. Eu, porém, deixei-me ficar tranqüilamente em minha cadeira. Portanto,que indicação poderia ter-lhe proporcionado?

— Você não é justo para com você mesmo. As feições foram dadas ao homem como meio de exprimirsuas próprias emoções, fato que em si pode muito bem ser absurdo.

— Quer dizer que você seguiu o curso de meus pensamentos pela expressão de meu rosto?

— Do rosto e especialmente dos olhos. Talvez se recorde de como teve início seu devaneio, não é verdade?

— Na verdade, não me lembro.

— Então, vou dizer-lhe. Depois de ter atirado o jornal para o chão, gesto esse que me atraiu a atençãopara sua pessoa, deixou-se ficar durante meio minuto com o rosto inexpressivo. Em seguida, seusolhos fixaram-se no retrato, recentemente emoldurado, do general Gordon, e percebi, pela mudan-ça de sua fisionomia, que este lhe provocara uma série de reflexões. Estas, porém, não o levarammuito longe. Seu olhar voltou-se subitamente para o retrato ainda sem moldura de Henri WardBeecher, que se encontra em cima de seus livros. Depois disso, você olhou para a parede e adivinhei-lhe claramente o pensamento. Você considerou que, se o retrato estivesse emoldurado, caberia exa-tamente naquele espaço vago e ficaria simétrico com o de Gordon, do outro lado.

— Você acompanhou-me maravilhosamente! — exclamei.

— Até aí, dificilmente poderia enganar-me. Mas, nesse momento, você voltou a pensar em Beecher,e seu olhar tornou-se fixo, como se estivesse estudando através das feições o caráter do homem.Depois, seus olhos perderam a firmeza; no entanto, você continuou a mirar o retrato com ar pensa-tivo, evocando os incidentes da carreira de Beecher. Tinha certeza de que não poderia fazer isso semse lembrar da missão por ele empreendida a favor do norte, durante a guerra civil, pois recordo-mede tê-lo ouvido dar largas à sua indignação pela maneira como foi recebido pêlos mais exaltados denossos compatriotas. Seu ressentimento era tão forte a esse respeito, que compreendi não lhe ser

possível pensar em Beecher sem se recordar disso. Quando, um instante depois, vi seu olhar desviar-se do retrato, suspeitei que seu pensamento se voltara para a guerra civil, e, ao observar-lhe os lábioscerrados, os olhos cintilantes e os punhos crispados, fiquei absolutamente certo de que estava serecordando da admirável bravura demonstrada por ambas as partes naquela luta desesperada. Toda-

 via, seu rosto novamente se carregou, e você sacudiu a cabeça. Refletia sobre a tristeza e o horrordaquele conflito, e o inútil desperdício de vidas. Sua mão pousou quase inadvertidamente sobre oferimento na perna, e um sorriso lhe pairou nos lábios, o que me veio demonstrar que notara oridículo desse modo de resolver questões internacionais. Foi então que concordei com você, afirman-do-lhe que era absurda essa situação, e fiquei satisfeito por ver que todas as minhas deduções eramexatas.

— Exatíssimas! — confirmei. — E agora, depois de me ter explicado tudo, confesso que estou tãoperplexo como antes.

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— Asseguro-lhe que foi uma experiência muito superficial, caro Watson. E nem lhe teria chamado aatenção para isso, se não fosse a incredulidade demonstrada por você outro dia. Entretanto, tenhoaqui entre as mãos um pequeno problema que talvez se mostre de solução bem mais difícil do quemeu modesto ensaio de leitura de pensamento. Leu por acaso no jornal um breve parágrafo relativoao estranho conteúdo de certo pacote enviado pelo correio à srta. Cushing, residente à Cross Street,em Croydon?

— Não, não li nada.

— Ah! Deve ter-lhe escapado, então. Passe-me o jornal. Cá está ele, sob a coluna financeira. Querfazer o favor de lê-lo em voz alta?

Tomei o jornal que ele me devolvera e li o parágrafo indicado. Trazia o título "Um pacote macabro"e rezava o seguinte:

— "A srta. Susan Cushing, residente à Cross Street, Croydon, foi vítima do que se pode considerar

uma brincadeira de mau gosto particularmente revoltante, a não ser que se prove que o incidentetenha significado mais trágico. Às duas horas da tarde de ontem, foi-lhe entregue pelo carteiro umpacote envolto em papel pardo. Dentro encontrava-se uma caixa de papelão cheia de sal grosso. Aoesvaziá-la, a srta. Cushing deparou, horrorizada, com duas orelhas humanas, aparentemente recém-cortadas. A caixa fora despachada de Belfast, como encomenda, na manhã anterior. Não há a me-nor indicação quanto à identidade do remetente, e o caso torna-se ainda mais misterioso ao conside-rar-se que a destinatária é solteira, tem cinqüenta anos de idade, sempre levou uma vida muitoisolada e possui tão poucos conhecidos ou correspondentes que, para ela, é acontecimento raroreceber qualquer coisa pelo correio. Todavia, há alguns anos, quando morava em Penge, alugouquartos a três jovens estudantes de medicina, dos quais foi obrigada posteriormente a desfazer-sedevido aos hábitos irregulares e turbulentos deles. A polícia é de opinião que se trata de obra dessesestudantes, que, por vingança, enviaram à srta. Cushing, com o intuito de aterrorizá-la, esses sobejosda sala de anatomia.

Essa hipótese apresenta certas probabilidades pelo fato de um dos estudantes ser oriundo do norteda Irlanda e mesmo, como a srta. Cushing crê poder afirmar, de Belfast. Entretanto, o caso estásendo ativamente investigado, sob a direção do sr. Lestrade, um de nossos mais hábeis agentes poli-ciais."

— Isto é o que diz o Daily Chronicle — disse Holmes, quando terminei a leitura. — Vejamos agoranosso amigo Lestrade. Recebi um bilhete dele hoje de manhã, com os seguintes dizeres:

"Suponho que este caso seja muito a seu gosto. Temos grandes esperanças de esclarecê-lo. Noentanto, encontramos certa dificuldade em obter uma pista concreta. Já telegrafamos, naturalmen-te, para a agência do correio de Belfast, mas, como naquele dia foi entregue ali grande número depacotes, não foi possível identificar o que nos interessa, nem a pessoa do remetente. A referida caixaé de tabaco para cachimbo, de meia libra, e não nos fornece nenhuma indicação. Segundo meparece, a hipótese relativa ao estudante de medicina é a mais viável, mas, se o senhor pudesse disporde algumas horas, teria muito prazer em vê-lo por aqui. Encontrar-me-á, a qualquer hora do dia, emcasa da srta. Cushing ou no posto policial.'

"Que me diz disso, Watson? Sente-se com coragem para enfrentar o calor e me acompanhar atéCroydon, com a vaga esperança de mais um caso para seus anais?"

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— Estava ansioso por fazer alguma coisa.

— Aí tem, pois, a oportunidade. Chame o criado e peca-lhe que nos arranje um carro. Estarei prontonum instante; apenas o tempo de mudar de roupa e encher a charuteira.

Caiu uma chuva forte durante a viagem de trem, e encontramos em Croydon um calor muito

menos opressivo do que na cidade. Holmes fizera-se preceder de um telegrama, de modo que Lestrade,nervoso, vivaz e furão como sempre, aguardava nossa chegada na estação. Uma caminhada de cincominutos conduziu-nos à Cross Street, onde residia a srta. Cushing.

Era uma rua muito comprida, formada por fileiras de casas de tijolos, sóbrias e bem-conservadas,com degraus de pedra branca e pequenos grupos de mulheres tagarelando no limiar das portas. A meio caminho, Lestrade parou e bateu a certa porta, que foi aberta por uma criadinha. Fomosintroduzidos na sala da frente, onde se encontrava a srta. Cushing, mulher de fisionomia plácida,olhos grandes e meigos e cabelos grisalhos, que caíam em bandós sobre as têmporas. Via-se em seuregaço uma coberta de poltrona, já quase toda bordada, e, sobre um tamborete próximo, um cesto

com novelos de fios de seda de diversas cores.

— Aquelas coisas horrendas estão lá fora, no quarto de despejo — disse, ao ver Lestrade entrar. —Ficar-lhe-ia grata se as levasse daqui definitivamente.

— É o que vou fazer, srta. Cushing. Conservei-as aqui até que este meu amigo, o sr. Holmes, as visseem sua presença.

— Por que em minha presença?

— Para o caso de ele desejar fazer-lhe alguma pergunta.

— Que adianta fazer-me perguntas quando já lhe afirmei não saber nada a esse respeito?

— Perfeitamente, minha senhora — interpôs Sherlock Holmes com seu tom conciliador. — Estoucerto de que já foi muito importunada por causa desse desagradável assunto.

— Já o fui, deveras. Sou amiga do sossego e levo vida retirada. É absoluta novidade para mim ter onome nos jornais e a polícia em minha casa. Não quero ver aquelas coisas aqui, sr. Lestrade; se desejaexaminá-las, deve fazê-lo no quarto de despejo, lá fora.

Era um acanhado quartinho, no estreito quintal dos fundos da casa. Lestrade entrou e trouxe delá uma caixa amarela de papelão, embrulhada com um pedaço de papel pardo e um barbante. Haviaum banco, num canto do quintal, em que todos nos sentamos, enquanto Holmes observava, um porum, os objetos que Lestrade lhe entregara.

— Este barbante é extremamente interessante — ponderou, levantando-o contra a luz e cheirando-o.— Que me diz disso, Lestrade?

— Foi besuntado com alcatrão.

— Precisamente. Trata-se de barbante alcatroado. Terá notado, sem dúvida, que a srta. Cushing ocortou com uma tesoura, como se depreende das duas pontas desfiadas. Isso é importante.

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SHERLOCK HOLMES - Sir Arthur Conan Doyle - 21

— Não vejo qual a importância de tal fato — retorquiu Lestrade.

— A importância está no fato de o nó não ter sido tocado. Ora, este nó é característico.

— Foi feito com muita precisão. Já o notara também — acrescentou Lestrade com ar complacente.

— Isso no que diz respeito ao barbante — continuou Holmes, sorrindo. — Vejamos, agora, o invólucroda caixa. Papel pardo com forte cheiro de café. Como? Não o havia notado? Creio não existir dúvi-das. Endereço escrito em letra de forma e em caracteres muito irregulares: "Srta. S. Cushing, CrossStreet, Croydon". Escrito com pena de ponta grossa e tinta de qualidade muito ordinária. A palavraCroydon foi a princípio ortografada com i, depois transformado em y. O pacote, portanto, foi envi-ado por um homem — a letra é visivelmente masculina — de limitada cultura e que não conhece acidade de Croydon. Até aqui, muito bem! A caixa é de tabaco para cachimbo, de meia libra, amarela,sem nada de especial exceto duas marcas de polegar no ângulo inferior esquerdo. Está cheia de salgrosso, da qualidade usada para conservar peles e outros produtos comerciais de tipo inferior. E nomeio dele é que se encontram estas singularíssimas remessas.

Enquanto falava, retirou as duas orelhas da caixa e, colocando-as sobre uma tábua, em cima dosjoelhos, pôs-se a examiná-las atentamente, ao passo que eu e Lestrade, curvados a seu lado, olháva-mos alternadamente para aqueles despojos horrorosos e para o rosto atento e sagaz de nosso compa-nheiro. Finalmente, repôs as orelhas macabras na caixa e deixou-se ficar algum tempo imerso emprofunda meditação.

— Com certeza, já deve ter observado — disse ele por fim — que estas duas orelhas não pertencem aum mesmo indivíduo.

— Sim, já o notara; mas, se isso é brincadeira de mau gosto da parte de alguns estudantes, a estes seriatão fácil subtrair da sala de anatomia duas orelhas diferentes como um par.

— Perfeitamente; mas não se trata aqui de travessura de estudantes.

— Tem certeza disso?

— As aparências são absolutamente contrárias a tal hipótese. Os cadáveres usados para dissecaçãonormalmente são injetados com um líquido próprio para conservá-los. Ora, estas orelhas não apre-sentam sinais desse líquido e, além do mais, são frescas. Foram cortadas com instrumento cortantemal-afiado, o que dificilmente aconteceria se fosse obra de um estudante de medicina. Por outro

lado, não ocorreria por certo a esse estudante escolher sal grosso como elemento preservativo, massim o formol ou o álcool retificado. Repito que não existe aqui nenhuma brincadeira de mau gosto,mas que nos encontramos em face de gravíssimo delito.

Senti um ligeiro arrepio percorrer-me a espinha ao ouvir as palavras de meu amigo e ao ver agravidade de sua expressão. Aquele prelúdio brutal parecia vaticinar estranha e inexplicável tragédia.Lestrade, porém, abanou a cabeça como quem tivesse ainda suas dúvidas.

— Certamente, podem ser levantadas objeções à hipótese de uma travessura — disse. — Todavia, hárazões muito mais fortes contra sua teoria. Sabemos que esta mulher levou vida tranqüila e respeitá-

 vel durante os últimos vinte anos, tanto em Penge como aqui. Durante esse tempo, quase não seafastou de casa. Por que diabos um criminoso iria enviar-lhe as provas de sua culpabilidade, tantomais que, salvo tratar-se de atriz consumada, ela parece entender tanto do assunto como nós mes-

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mos?

— É esse o problema que nos cumpre resolver — replicou Holmes —, e por minha parte iniciarei aspesquisas no suposição de ser correto o meu raciocínio e de ter sido cometido um duplo assassinato.Uma dessas orelhas é de mulher: pequena, de contornos delicados e com um orificiozinho parabrincos. A outra é de homem, queimada de sol, descorada e também furada para brincos. Ambas as

pessoas devem estar mortas; caso contrário, já teríamos sabido alguma coisa. Hoje é sexta-feira. Opacote foi posto no correio quinta-feira cedo; a tragédia, portanto, ocorreu quarta ou terça-feira, outalvez antes. Ora, se estas duas pessoas foram assassinadas, quem, senão o assassino, teria enviado àsrta. Cushing a prova do delito? Podemos, pois, considerar o remetente do pacote como o homemque nos interessa. Contudo, alguma razão poderosa deveria tê-lo feito mandar esta caixa à srta.Cushing. Qual seria? Teria agido dessa maneira a fim de mostrar-lhe ter sido o crime cometido, outalvez para impressioná-la e afligi-la? Nesse caso, ela sabe de quem se trata. Saberá realmente? Duvi-do. Se soubesse, por que haveria de chamar a polícia? Poderia ter enterrado as orelhas, e ninguémficaria sabendo de nada. É o que teria feito se quisesse proteger o criminoso. No entanto, se nãotivesse a intenção de protegê-lo, teria dado o nome dele. Há aqui uma confusão que precisa ser

esclarecida.

Holmes falara rapidamente, em voz alta, olhando absorto por sobre a cerca do jardim. De súbito,pôs-se de pé e encaminhou-se para a casa.

— Preciso fazer algumas perguntas à srta. Cushing — explicou.

— Nesse caso, vou deixá-lo aqui — respondeu Lestrade —, pois tenho que tratar de outro assunto demenor importância. Creio já ter obtido da srta. Cushing todas as informações que me poderiaminteressar. Encontrar-me-á no posto policial.

— Passaremos por lá quando formos para a estação — respondeu Holmes.

Momentos após, eu e ele encontrávamo-nos de novo na sala da frente, onde a impassível senhoracontinuava trabalhando tranqüilamente em seu bordado. Ao entrarmos, depô-lo no regaço e fitou-nos com os olhos azuis, francos e inquiridores.

— Estou convencida — disse-nos — de que toda essa história não passa de um engano, e que o pacotenão me era destinado. Já o disse várias vezes àquele senhor da Scotland Yard, o qual, todavia, selimitou a rir de mim. Que eu saiba, não tenho um único inimigo no mundo. Por que iria alguémfazer tal brincadeira comigo?

— Estou propenso a concordar com a sua opinião, srta. Cushing — replicou Holmes, sentando-se aoseu lado. — Creio ser mais que provável...

Parou de falar e, olhando-o, fiquei admirado ao notar o singular interesse com que fitava o perfilda srta. Cushing. Nesse instante foi-me possível ler em seu rosto expressivo surpresa e contentamen-to, embora, quando ela se voltou para averiguar a causa de sua interrupção, ele já houvesse recupera-do a impassibilidade habitual. Pus-me a estudar, por minha vez, seus cabelos lisos e grisalhos, a graci-osa touca, os pequenos brincos dourados e suas feições serenas; nada, porém, encontrei que justificas-se a evidente emoção de meu

amigo.

— Há uma ou duas perguntas...

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— Oh! Já estou farta de perguntas — exclamou a srta. Cushing com impaciência.

— A senhorita tem duas irmãs, creio.

— Como pode saber isso?

— Logo que entrei nesta sala, vi sobre a prateleira da lareira o retraio de três moças, uma das quais éindiscutivelmente a senhorita, enquanto as outras se lhe assemelham de modo a não deixar dúvidasacerca do parentesco que as une.

— De fato, tem razão. São minhas irmãs Sara e Mary.

— E aqui a meu lado está outro retraio, tirado em Liverpool, de sua irmã mais nova em companhiade um homem que, pelo uniforme, me parece comissário de bordo. Vejo que nessa ocasião ela aindanão era casada.

— Que grande observador!

— É minha profissão.

— Realmente, acertou. Todavia, ela casou-se poucos dias após com Browner. Na época dessa fotogra-fia, ele fazia o serviço regular de navegação para a América do Sul, mas amava-a tanto que não seresignou a passar tanto tempo longe dela, e conseguiu transferência para o serviço costeiro entreLondres e Liverpool.

— No Conqueror, por acaso?

— Não; no May Day, pelo menos na última vez que dele tive notícias. Em certa ocasião, Jim veio visitar-me. Foi antes de ele quebrar sua promessa; desde então, porém, sempre que desembarcavapunha-se a beber, e bastavam uns poucos goles para transformá-lo num doido varrido. Ah! Diafatídico aquele em que começou a beber! Primeiro deixou de me procurar, depois brigou com Sara,e agora que Mary deixou de me escrever, não sei como andam as coisas entre eles.

Era evidente ter a srta. Cushing tocado em assunto que lhe era de extremo interesse. Como amaioria das pessoas de vida solitária, tinha se mostrado tímida a princípio, mas acabara por tornar-seexcessivamente loquaz. Contou-nos numerosas particularidades a respeito do cunhado marinheiro,e depois passou ao assunto dos antigos pensionistas, os estudantes de medicina, de cujas travessuras

nos fez longa relação, dando-nos seus nomes e os dos hospitais em que praticavam. Holmes ouviatudo com atenção, fazendo ocasionalmente uma ou outra pergunta.

— A propósito de sua segunda irmã, Sara — disse —, não compreendo como, sendo ambas solteiras,não pensaram em montar casa juntas.

— Ah! Se o senhor conhecesse o gênio de Sara, compreenderia. Tentei morar com ela por ocasião deminha mudança para Croydon, e estivemos juntas até há cerca de dois meses, quando fomos força-das a nos separar. Não quero falar mal de minha própria irmã, mas Sara sempre foi muito difícil deaturar.

— A senhorita disse que ela se dava mal com seus parentes de Liverpool?— Sim, mas houve tempo em que eles foram étimos amigos, a ponto de ela se mudar para lá para

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estar mais perto deles. E, no entanto, agora vive dizendo o pior de Jim Browner. Nos últimos seismeses que passou aqui, não fazia outra coisa senão falar na maneira como ele bebia e em seu maucomportamento. Suspeito que Jim a apanhou fazendo algum mexerico, ficou seriamente zangado eaí está como principiou a inimizade entre eles.

— Obrigado, srta. Cushing — disse Holmes, pondo-se de pé e fazendo uma vênia. — Parece haver-me

dito que sua irmã Sara mora na New Street, em Wailington, não é? Passe bem, e creia que lastimoque tenha sido tão importunada num caso com o qual nada tem que ver.

Ao sairmos dali, passava um carro, e Holmes fez sinal ao cocheiro.

— Qual é a distância daqui a Wailington? — indagou.

— Não chega a um quilômetro e meio.

— Muito bem. Suba, Watson; precisamos malhar enquanto o ferro está quente. Embora simples, este

caso oferece alguns aspectos muito interessantes. Pare um momento na agência telegráfica maispróxima,cocheiro.

Holmes expediu um breve telegrama, e durante o resto do trajeto permaneceu recostado nofundo da carruagem, com o chapéu caído sobre os olhos para proteger-se do sol. Nosso veículo paroudiante de uma casa não muito diversa da que acabávamos de deixar. Meu companheiro ordenou aococheiro que esperasse, e estava para bater à porta quando esta se abriu e um jovem de maneirascircunspectas, vestido de preto e usando uma cartola muito reluzente, apareceu no limiar.

— A srta. Cushing está em casa?

— A srta. Cushing acha-se gravemente enferma — respondeu o jovem. — Apresenta desde ontemdistúrbios cerebrais de extrema intensidade. Como seu médico, não posso arcar com a responsabili-dade de permitir-lhe visitas. Tomo a liberdade de pedir-lhes para voltarem daqui a uns dez dias.

Dizendo isso, calçou as luvas, fechou a porta e afastou-se a pé, rua abaixo.

— Bem, o que não tem remédio, remediado está — observou Holmes em tom gaiato.

— Talvez ela não estivesse em condições, ou mesmo não tivesse desejo de lhe dizer grande coisa.

— Não pretendia que ela me dissesse nada; queria apenas vê-la. Não obstante, creio ter obtido tudoquanto desejava. Leve-nos a algum hotel decente, cocheiro, onde possamos almoçar; depois, passare-mos pelo posto policial para ver nosso amigo Lestrade.

Fizemos juntos uma agradável refeição, durante a qual Holmes não falou de outra coisa senão de violinos, explicando-me com grande satisfação como comprara pela ridícula soma de cinqüenta ecinco xelins, a um judeu vendedor de objetos de segunda mão, na Tottenham Court Road, seuStradivarius, que valia no mínimo quinhentos guinéus. Esse assunto fê-lo divagar sobre Paganini, eficamos, pelo espaço de uma hora, sentados diante de uma garrafa de clarete, enquanto desfiava

histórias e mais histórias acerca dessa extraordinária personalidade. A tarde já declinava e a luzardente do sol transformara-se em amena claridade, quando chegamos ao posto policial. Lestradeesperava-nos à porta.

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— Aqui está um telegrama à sua espera, sr. Holmes — disse.

— Ah! É a resposta que aguardava. — Holmes abriu-o, leu rapidamente o texto e guardou-o no bolso.— Vai tudo muito bem — acrescentou.

— Conseguiu descobrir alguma coisa?

— Descobri tudo!

— Como?! — exclamou Lestrade, assombrado, fitando Holmes. — O senhor está brincando!

— Nunca disse nada de mais sério em minha vida. Foi perpetrado um crime espantoso, e acredito tê-lo desvendado em todos os pormenores.

— E o criminoso?

Holmes rabiscou algumas palavras no verso de um cartão de visita e estendeu-o a Lestrade.

— Eis o nome dele — explicou. — Todavia, não poderá prendê-lo senão amanhã à noite. Gostaria quemeu nome não fosse mencionado no que diz respeito a este caso, porque prefiro associá-lo unicamen-te a crimes cuja solução ofereça reais dificuldades. Vamos, Watson.

Encaminhamo-nos a pé para a estação, enquanto Lestrade fitava, entre atônito e satisfeito, o car-tão que Holmes lhe entregara.

— Este caso — declarou Sherlock Holmes enquanto cavaqueávamos naquela noite, saboreando nos-sos charutos nos aposentos da Baker Street — assemelha-se aos que você já descreveu sob os títulos deUm estudo em vermelho e O signo dos quatro, nos quais fomos obrigados a raciocinar, seguindo aordem inversa, dos efeitos para as causas. Escrevi a Lestrade pedindo-lhe que nos forneça os detalhesque ainda nos faltam, os quais só poderão ser obtidos depois de ele ter capturado o homem. Issopodemos ter a certeza de que o fará, pois, embora desprovido totalmente de inteligência, é dotado deuma tenacidade de buldogue quando compreende o que deve fazer. Aliás, foi justamente essa tenaci-dade a causa de sua ascensão na Scotland Yard.

— Então seus dados ainda não estão completos? — perguntei.

— Estão quase completos no que se refere aos pontos essenciais. Sabemos quem é o autor deste crime

revoltante, apesar de ainda ignorarmos a identidade de uma das vítimas. Você, naturalmente, játirou suas próprias conclusões.

— Imagino ser Jim Browner, o comissário de bordo de um navio de Liverpool, a pessoa de quem vocêsuspeita.

— Oh! É mais do que simples suspeita.

— E, ainda assim, nada vejo senão indícios muito vagos.— Pelo contrário, para mim nada poderia ser mais claro. Deixe-me recordar-lhe os pontos principais.

Como deve estar lembrado, enfrentamos o caso com espírito completamente desarmado, o que,nestas circunstâncias, constitui sempre uma vantagem. Não tínhamos formulado nenhuma hipóte-se. Ali estávamos, simplesmente para observar e tirar conclusões do que nos fosse dado ver. O que se

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nos deparou em primeiro lugar? Uma excelente senhora, calma e respeitável, que parecia completa-mente alheia ao mistério, e um retrato que me revelava possuir ela duas irmãs mais novas. Instanta-neamente, surgiu-me no espírito a ideia de que o pacote talvez fosse destinado a uma delas. Deixei delado essa hipótese, que poderia, em tempo oportuno, ser confirmada ou abandonada. Dirigimo-nosdepois, como deve estar lembrado, para o quintal, onde examinamos o singularíssimo conteúdo dacaixa amarela.

"O barbante do tipo usado no velame de navios, e, de súbito, o ambiente do mar invadiu nossasinvestigações. Quando observei que o nó era característico entre marinheiros, que o pacote foraexpedido de um porto de mar e que a orelha masculina tinha um orifício para brinco, coisa muitomais comum entre marujos do que entre habitantes de terra firme, convenci-me de que os protago-nistas da tragédia deviam encontrar-se nos meios marítimos.

"Ao examinar o endereço do pacote, notei estar ele dirigido à srta. S. Cushing. Ora, a irmã mais velha seria, naturalmente, também srta. Cushing, mas, embora sua inicial fosse S, essa letra poderiapertencer da mesma forma a uma das outras. Nesse caso, deveríamos iniciar nossas pesquisas em

base completamente nova. Entrei, portanto, na casa, com o intuito de esclarecer esse ponto. Talvezse lembre de que, quando eu estava para afirmar à srta. Cushing minha convicção de ter havidoalgum engano, calei-me subitamente. O fato é que acabara de notar algo que me encheu de surpresae, ao mesmo tempo, restringiu consideravelmente o campo de minhas indagações.

"Na qualidade de médico, Watson, deve saber que não existe parte do corpo humano que apresen-te tantas variações como a orelha. Cada uma tem as próprias características, e difere de todas asdemais. Na Revista Antropológica do ano passado, você encontrará duas breves monografias deminha lavra sobre o assunto. Examinei, por isso, com olhos de entendido, as orelhas contidas nacaixa, e verifiquei cuidadosamente suas peculiaridades anatômicas. Imagine, pois, meuespanto quan-do, ao olhar para a srta. Cushing, reparei corresponder sua orelha à orelha feminina que eu acabarade inspecionar. Não era possível pensar em coincidência. Ali estava o mesmo encurtamento daaurícula, a mesma curva larga do lobo superior, a mesma circunvolução da cartilagem interna. Emtodos os pontos essenciais, era perfeita a semelhança.

"Percebi logo a enorme importância de tal observação. Era evidente ser a vítima uma consangüí-nea e até, provavelmente, parente muito próxima. Comecei a falar-lhe de sua família, e você selembra que ela nos propiciou informações particularmente preciosas.

"Em primeiro lugar, o nome da irmã era Sara, e até há pouco tempo o endereço de ambas eraidêntico, o que tornava patente a causa do engano e a pessoa a quem se destinava o pacote. Falou-nos

depois daquele comissário de bordo, casado com sua irmã mais nova, e ficamos sabendo que suasrelações com Sara foram tão íntimas durante algum tempo que esta passara a residir em Liverpool afim de ficar mais próxima dos Browners, embora uma desavença os separasse depois. Essa discórdiafizera cessar todas as relações entre eles durante alguns meses, e por isso, se Browner tivesse tidoocasião de remeter um pacote à srta. Sara, tê-lo-ia feito ao antigo endereço.

"O assunto começava, então, a tornar-se extremamente claro. Sabíamos da existência desse maru-jo, homem impulsivo e de paixões violentas (lembre-se de que, para ficar mais perto da esposa,renunciou a carreira muito superior), sujeito também a freqüentes bebedeiras. Tínhamos razõespara crer que sua mulher fora assassinada e que um homem, talvez um marujo também, havia sido

morto na mesma ocasião. Imediatamente, o ciúme se nos apresenta como motivo do crime. Mas porque mandar à srta. Sara Cushing as provas do delito? Possivelmente porque, durante sua estada emLiverpool, ela teve alguma influência na sucessão de acontecimentos que levaram à tragédia. Repare

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que os navios da linha de Browner fazem escala em Belfast, Dublin e Waterford; presumindo, por-tanto, que Browner tivesse cometido o crime, embarcando logo após no May Day, Belfast teria sidoo primeiro porto do qual podia expedir o macabro pacote.

"Nessa fase, evidentemente, era possível uma segunda solução, e embora a achasse muito menosprovável, resolvi elucidá-la antes de ir mais além. Um apaixonado repelido talvez pudesse ter matado

o sr. e a sra. Browner, e a orelha masculina seria então do marido. Contra essa hipótese existiammuitas e graves objeções, mas era admissível. Por conseguinte, telegrafei a meu amigo Algar, dapolícia de Liverpool, e pedi-lhe que me informasse se a sra. Browner se encontrava em sua residênciae se Browner partira no May Day. Feito isso, dirigimo-nos a Wailington, a fim de visitar a srta. SaraCushing.

"Antes de mais nada, estava curioso por ver até que ponto os traços de família da orelha se tinhamreproduzido nela. Por outro lado, talvez ela pudesse fornecer-nos informações importantes, coisacom que, aliás, eu não contava muito. Já devia ter ouvido falar sobre o assunto no dia anterior, poisem toda Croydon não se comentava outra coisa, e só ela podia ter compreendido a quem se destina-

 va o pacote. Se fosse sua intenção ajudar a justiça, decerto já teria se comunicado com a polícia. Emtodo caso, era nosso dever procurá-la, e por isso fomos até lá. Verificamos que a notícia da chegadado pacote, pois sua doença datava daquele momento, produzira nela efeito tão violento que a pros-trara de cama com uma febre cerebral. Era mais que evidente ter ela compreendido todo o seusignificado e, por outro lado, era igualmente claro que teríamos de esperar algum tempo antes depodermos contar com qualquer ajuda de sua parte.

"Na realidade, porém, esse auxílio era-nos desnecessário. As respostas que desejávamos já nosesperavam no posto policial, pois dera a Algar instruções para remetê-las para lá. Não poderiam sermais conclusivas. A casa da sra. Browner encontrava-se fechada havia mais de três dias, e os vizinhosacreditavam que ela viajara para o sul, em visita a parentes. Algar certificara-se, na companhia denavegação, da partida de Browner a bordo do May Day, que, calculo, entrará amanhã à noite noTamisa. Ao chegar, será acolhido pelo obtuso mas resoluto Lestrade, e não tenho dúvidas de queobteremos então os pormenores que ainda nos faltam."

Sherlock Holmes não viu frustradas suas expectativas. Dois dias mais tarde, recebia um envelope volumoso que continha um bilhete do detetive e um documento datilografado constando de váriaspáginas de papel de carta.

— Lestrade apanhou-o, como eu esperava — disse Holmes, lançando-me um olhar significativo. —Talvez lhe interesse saber o que ele diz.

"Meu caro sr. Holmes:De acordo com o plano por nós estabelecido a fim de poder provar nossas teorias, dirigi-me ao cais

 Albert, ontem às dezoito horas, e subi a bordo do May Day, propriedade da Liverpool, Dublin &London Stream Packet Company. Procedendo a indagações, fui informado de que efetivamente seencontrava ali um comissário de nome James Browner, que se portara durante a viagem de maneiratão estranha que o capitão se vira forçado a dispensá-lo de suas funções. Descendo à sua cabina, fuiencontrá-lo sentado num caixote, com a cabeça entre as mãos, agitando-se como um demente. É umtipo corpulento, robusto, de rosto escanhoado e pele trigueira — meio parecido com Aldrige, que nosauxiliou no caso da falsa lavanderia. Quando soube do objetivo de minha visita, pôs-se de pé num

salto felino, e eu já estava com o apito na boca para chamar dois homens da polícia fluvial que meesperavam do lado de fora quando ele, dando mostras de completa falta de ânimo, estendeu maqui-nalmente as mãos às algemas, sem opor a menor resistência. Levamo-lo imediatamente para a pri-

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são, juntamente com o caixote, que pensávamos pudesse conter algo de acusador; no entanto, alémde um facão afiado, como os usados pela maioria dos marinheiros, nada encontramos que merecessenosso trabalho. Mas verificamos não serem necessárias mais provas, pois, uma vez diante do inspetorde serviço, pediu licença para fazer uma declaração que, como é natural, foi anotada literalmentepelo nosso taquígrafo. Mandamos tirar três cópias datilografadas, das quais lhe mando uma. A coisa,como sempre imaginei, resolveu-se de maneira extremamente simples. Todavia, fico-lhe agradecido

pela sua gentil assistência na investigação deste caso. Com as melhores saudações, creia-me seu amigodevotado,

G. Lestrade."

— Hum! A investigação era realmente muito simples — comentou Holmes; — no entanto, não creioque assim lhe parecesse quando nos procurou pela primeira vez. Vejamos, entretanto, o que diz JimBrowner. Eis sua declaração, feita diante do inspetor Montgomery, no posto policial de Shadwell,que tem a vantagem de ter sido registrada com as próprias palavras do criminoso:

"Se tenho alguma coisa que dizer? Sim, muitíssimo. Sinto necessidade de aliviar minha consciên-cia. Se quiserem, podem enforcar-me ou deixar-me em paz. Pouco me importa. O que posso afirmaré que não preguei o olho desde que fiz aquilo, e não sei se jamais conseguirei fazê-lo. Algumas vezesé o rosto dele que vejo, mas é o dela que me surge diante dos olhos com mais freqüência. Nãoconsigo fazê-los desaparecer de minha frente. Ele fita-me, carrancudo e ameaçador; ela, porém, olha-me com surpresa. Ah! Pobrezinha! O que não teria sentido ao ver a morte estampada num rostoonde até então só vira amor!

"No entanto, a culpa foi toda de Sara, e possa a maldição de um desgraçado cair sobre sua cabeçae fazer-lhe apodrecer o sangue nas veias! Não digo isso para me inocentar; tinha recomeçado a beber,como um bruto que sou. Mas tudo isso ela me teria perdoado; ela continuaria ligada a mim comouma corda à sua caçamba, se a figura daquela mulher nunca tivesse escurecido a porta de nosso lar.Pois Sara Cushing amava-me — esta foi a origem da tragédia —, amava-me até sua paixão desvairadase transformar em ódio venenoso quando percebeu que para mim tinham mais valor as pegadas deminha mulher na lama do que todo o seu corpo e alma juntos.

"Eram três irmãs. A mais velha era uma boa criatura; a segunda, um demônio, e a terceira, umanjo. Quando me casei, Sara tinha trinta e três anos, e Mary, vinte e nove. No início, a felicidade eracompleta em nosso lar, e em toda Liverpool não existia melhor esposa do que minha Mary. Certodia convidamos Sara para passar uma semana conosco, mas a semana converteu-se num mês, osmeses sucederam-se, e ela acabou por tornar-se pessoa da casa.

"Minha situação financeira naquela época era boa, tínhamos começado a economizar algum di-nheiro, e tudo corria às mil maravilhas. Meu Deus, quem poderia supor que iríamos terminar assim?Quem poderia ao menos imaginá-lo?

"Freqüentemente, eu passava os fins de semana em casa, e algumas vezes, quando o navio ficavaretido à espera de carga, tinha sete dias de licença, o que me proporcionava maior contato comminha cunhada. Era uma bela mulher, alta, morena e enérgica, de porte altivo e tinha olhos quepareciam lançar chispas de fogo. Todavia, quando a pequenina Mary estava em casa, nem pensavanela, e isso eu juro pela esperança que tenho na misericórdia divina.

"Às vezes, tinha a impressão de que ela desejava ficar só comigo ou procurava convencer-me a saira passeio em sua companhia. No entanto, jamais dei importância a isso. Mas certa noite meus olhos

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abriram-se. Tinha desembarcado e, chegando a casa, encontrei apenas Sara à minha espera.

"— Onde está Mary? — perguntei.

"— Oh! Saiu para pagar umas contas.

"Fiquei impaciente e pus-me a andar de um lado para outro na sala.

"— Você não pode ficar sossegado cinco minutos sem Mary, Jim? — disse ela. — É bem pouco lisonjeiropara mim que não possa contentar-se com minha companhia por tão pouco tempo.

"— Não fique zangada comigo, minha cara — desculpei-me, estendendo-lhe a mão num gesto carinho-so. Ela, porém, tomou-a de súbito entre as suas, que queimavam como se estivesse com febre. Fitei-anos olhos e compreendi tudo num relance. Não tivemos necessidade de falar, nem ela nem eu.

 Assumi um ar severo e retirei a mão de entre as suas. Ela permaneceu algum tempo em silêncio,depois levantou o braço e bateu-me no ombro.

"— Paciência, meu velho — disse-me e, com uma espécie de risada irónica, saiu da sala.

"Pois bem, desse dia em diante Sara passou a odiar-me de todo o coração. E de que ódio é capazaquela mulher! Fui idiota por deixá-la continuar a viver conosco, um rematado idiota; mas nuncadisse nada à minha mulher, pois sabia que a iria desgostar. Tudo ficou como antes; todavia, algumtempo depois, principiei a notar certas mudanças em Mary também. Ela, que sempre se mostraraconfiante e inocente, tornara-se esquisita e suspeitosa. Queria saber onde eu estivera e o que haviafeito, a proveniência de minhas cartas, o conteúdo de meus bolsos e outras tantas tolices. Dia a dia setornava mais estranha e irritável, provocando discussões pêlos motivos mais fúteis. Tudo isso medeixava francamente perplexo. Sara passou a evitar-me; no entanto, ela e Mary eram inseparáveis.Percebo agora que ela conspirava contra mim e envenenava a alma de minha mulher. Entretanto,eu, cego e cretino, não via nada disso. Foi então que quebrei a promessa e recomecei a beber, masnão creio que o tivesse feito se Mary continuasse a ser a mesma de antigamente. Tinha, então,motivos bastantes para se sentir desgostosa comigo, e a cisão entre nós aumentava cada vez mais.Entretanto, apareceu em cena esse maldito Alec Fairbairn, e a situação piorou sensivelmente.

"Foi para ver Sara que ele foi pela primeira vez à minha casa, mas logo suas visitas destinavam-se atodos nós, pois era um homem de maneiras insinuantes e arranjava amigos aonde quer que fosse.Rapaz agradável, audacioso, elegante, vira meio mundo e sabia falar do que vira. Era sem dúvidabom companheiro, e sua educação excedia a de um marujo. Por isso, julgo que houve uma época em

que viajava mais como passageiro do que como tripulante. Durante um mês não fez outra coisasenão ir à minha casa, e nem por um momento me passou pela cabeça a ideia de que qualquer malpudesse resultar de seus modos gentis e suaves. Finalmente, porém, algo me fez suspeitar, e desdeentão minha tranqüilidade desapareceu para sempre.

"Na essência, o episódio foi insignificante. Eu entrara em casa de improviso e, ao transpor a soleirada porta, notei um clarão de alegria no rosto de minha mulher. Contudo, quando viu que se tratavade mim, essa luz desapareceu, e ela voltou-se com ar desapontado. Isso bastou-me. Não existia nin-guém, além de Alec Fairbairn, cujo andar ela pudesse confundir com o meu. Se naquele momento otivesse ao alcance das mãos, tê-lo-ia morto, pois sempre que fico fora de mim procedo como um

louco. Mary leu nos meus olhos a fúria demoníaca, correu para mim e segurou-me pela manga docasaco.

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SHERLOCK HOLMES - Sir Arthur Conan Doyle - 30

"— Não, Jim, pelo amor de Deus! — suplicou.

"— Onde está Sara? — perguntei.

"— Na cozinha — respondeu.

"— Sara — gritei —, não quero que Fairbairn ponha mais os pés aqui dentro.

"— E por quê?

"— Porque assim o ordeno.

"— Oh! — exclamou —, se meus amigos não são dignos desta casa, eu também não o sou.

"— Faça como quiser — repliquei-lhe —, mas se Fairbairn tornar a aparecer por aqui, mandar-lhe-eiuma de suas orelhas como lembrança.

"Acredito que a tenha assustado com a expressão de meu rosto, pois não disse mais nada, e no diaseguinte abandonou nossa casa.

"Ora, não sei se essa mulher agia assim por simples maldade, ou se pensava poder revoltar-secontra minha mulher, encorajando-a a trilhar seu caminho. Seja como for, ela arranjou uma casa adois quarteirões de distância, onde alugava aposentos a marinheiros. Fairbairn costumava alojar-selá, e Mary ia freqüentemente tomar chá com a irmã e ele. Quantas vezes ela foi, não sei dizer. Certodia, porém, segui-a, e, ao chegar à porta, Fairbairn fugiu covardemente, pulando o muro do quintal.

 Jurei a minha mulher matá-la se a encontrasse novamente na companhia daquele homem, e levei-apara casa, soluçante e trêmula, branca como uma folha de papel. Já não existia entre nós a menorsombra de amor. Percebia o ódio e o temor que ela me votava, e quando, por causa disso, me punhaa beber, o desprezo juntava-se a esses sentimentos.

"Sara, entretanto, compreendeu que não lhe era possível ganhar o suficiente para viver emLiverpool. Por isso — pelo menos assim o creio — voltou a viver com a irmã em Croydon, mas asituação em minha casa continuou no mesmo estado vacilante de sempre. Finalmente, chegou estaúltima semana e toda a maldição e ruína que se seguiram.

"Foi assim. Tínhamos embarcado no May Day para uma viagem de sete dias, mas, devido a certaavaria a bordo, fomos obrigados a permanecer no porto durante doze horas. Deixei o navio e fui

para casa, pensando na surpresa que iria causar a minha mulher e esperando que ela talvez ficassecontente por me ver de volta tão cedo. Essa idéia ainda me empolgava quando dobrei a esquina deminha rua, no momento em que passou por mim um carro, em cujo interior vi minha mulhersentada ao lado de Fairbairn, ambos conversando e rindo animadamente, sem notarem minhapessoa, que os observava imóvel na calçada.

"Asseguro-lhes que, daquele momento em diante, já não fui senhor de mim próprio, e tudo meparece um sonho confuso ao recordar os acontecimentos. Nestes últimos tempos andara bebendomuito, e as duas coisas juntas uniam-se para me transtornar completamente. Agora sinto qualquercoisa a bater-me na cabeça como o malho de um britador, mas naquela manhã tinha todo o Niagara

assobiando e zumbindo nos ouvidos.

"Corri desabaladamente atrás do carro. Tinha nas mãos um pesado bastão de carvalho e afirmo-

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lhes que, desde o princípio, comecei a ver tudo vermelho; no entanto, a corrida tornou-me tambémastuto e, de vez em quando, procurava ficar um pouco para trás, a fim de ver sem ser visto. Dentro depouco tempo eles pararam na estação. Havia muitas pessoas junto à bilheteria, e pude, portanto,aproximar-me deles sem ser notado. Compraram bilhetes para New Brighton; fiz o mesmo, masinstalei-me três vagões atrás. Chegados a seu destino, desceram e dirigiram-se para a praia. Eu acom-panhava-os sempre a cerca de uma centena de metros de distância. Vi-os, por fim, alugar um barco e

sair remando, pois fazia muito calor e eles julgavam sem dúvida que sobre a água o ar estaria maisfresco.

"Na verdade, era como se estivessem em minhas mãos. O dia estava algo enevoado, e nada se viapara além de certa distância. Aluguei também um barco e fui no encalço deles. Conseguia distinguir-lhes o contorno do barco, mas iam quase tão depressa como eu e já deviam estar a um quilômetro emeio da praia quando os alcancei. A neblina formava como que uma cortina à nossa volta, e dentrodela estávamos os três. Deus meu! Jamais poderei esquecer a expressão de seus rostos quando viramquem estava no barco que se aproximava! Ela soltou um grito de pavor, ele pôs-se a praguejar comoum alucinado e atirou um remo em minha direção, pois deve ter lido nos meus olhos um presságio

de morte. Eu esquivei-me ao golpe e atingi-o com meu bastão, que lhe espatifou a cabeça como sefosse um ovo. É possível que a tivesse poupado, apesar de toda a minha loucura. Ela, porém, lançouos braços em torno dele, gritando desesperadamente e chamando-o 'Alec'. Desferi, então, novogolpe, e prostrei-a a seu lado. Sentia-me qual besta feroz que houvesse provado sangue. Se Saraestivesse presente, por Deus, ter-se-ia juntado a eles. Puxei de minha faca e... bem, chega! Já disse obastante. Experimentava certa alegria selvagem ao pensar no que Sara sentiria diante daqueles doistestemunhos do resultado de suas intrigas. Amarrei então os corpos ao barco, quebrei uma tábua dofundo e fiquei ali perto até submergirem de todo. Sabia muito bem que o proprietário da embarca-ção julgaria que ambos tinham perdido o rumo na névoa, sendo impelidos para o alto-mar. Limpei-me bem. Depois regressei a terra e reembarquei em meu navio, sem que pessoa alguma suspeitassede tudo quanto se passara. Naquela noite, preparei o pacote para enviá-lo a Sara Cushing, e no diaseguinte remeti-o de Belfast.

"E aqui têm toda a verdade. Podem enforcar-me ou fazer o que quiserem de mim, pois não pode-rão punir-me mais do que já fui punido. Não consigo fechar os olhos sem ver aqueles rostos a fitar-me. . . como o fizeram quando viram meu barco surgir ao lado do deles dentre a névoa. Matei-osrapidamente, mas eles estão me matando devagarinho; sei que, se isso durar mais uma noite, ficareilouco ou morrerei antes do amanhecer. O senhor não me porá sozinho numa cela, não é verdade?Pelo amor de Deus, não o faça. Oxalá seja tratado no dia de sua agonia como me tratar agora!"

— Qual é o significado disso tudo, Watson? — proferiu Holmes, em tom solene, ao terminar a leitura.

— Que propósito anima este círculo de desgraça, violência e terror? Deve tender para um fim. Deoutro modo, nosso universo seria governado pelo acaso, o que é inadmissível. Mas qual será esse fim?Eis o imenso, imutável e eterno problema, de cuja solução a mente humana se encontra mais longedo que nunca.

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 A C ASA V  AZIA 

O assassinato do honorável Ronald Adair, ocorrido na primavera de 1894, em estranhas einexplicáveis circunstâncias, despertou o interesse de toda a cidade de Londres, deixando consterna-

dos os meios elegantes. O público conhece os pormenores que vieram à luz nas investigações polici-ais, mas muita coisa ficou oculta naquela época, pois as acusações eram tão graves e evidentes que erapouco aconselhável divulgar todos os fatos. Somente agora, quase dez anos mais tarde, é que me épermitido apresentar os elos que faltaram e que completam a extraordinária cadeia. O crime em siera interessante, mas esse interesse nada significava para mim, comparado com a sua inconcebívelseqüência, que me causou o maior choque e a maior surpresa de toda a minha vida aventurosa.Mesmo agora, após tão longo intervalo, vibro ao pensar nisso e me sinto de novo invadido por umatorrente de alegria, espanto e incredulidade.

Ao público que se interessou pelas informações que de vez em quando eu dava a respeito dos

pensamentos e ações daquele homem extraordinário, quero dizer que não deve me censurar por nãoter compartilhado tudo com ele. Teria sido esse o meu primeiro dever, se não houvesse expressaproibição, formulada pelos lábios daquele homem — proibição que foi levantada no dia 3 do mêspassado.

É fácil imaginar que a minha intimidade com Sherlock Holmes me fizesse tomar grande interessepelo crime em geral e que, após o desaparecimento do meu amigo, eu nunca deixasse de ler comcuidado os vários problemas levados a público. Mais de uma vez, para meu gozo pessoal, tentei em-pregar os métodos de Holmes e solucionar tais problemas, embora sem resultado.

Nenhum me atraiu tanto como a tragédia de Ronald Adair. Ao ler no inquérito os depoimentosque levaram ao veredicto: "assassinato cometido por pessoa ou pessoas desconhecidas", compreendimais do que nunca que perda fora para a sociedade a morte de Sherlock Holmes. Havia, no estranhocaso, pontos que certamente o teriam atraído — e o trabalho da polícia teria sido auxiliado, ou maisprovavelmente, antecipado, pela experiente observação e a inteligência desperta do maior criminalistada Europa. Nesse dia, enquanto fazia as minhas visitas, pensei demoradamente no caso, não encon-trando explicação adequada. Embora corra o risco de contar uma história pela segunda vez, vourecapitular os fatos que se tornaram do domínio público no final do inquérito.

O honorável Ronald Adair era o segundo filho do conde de Maynooth, na ocasião governador deuma das colônias australianas. A mãe de Adair viera da Austrália para ser operada de catarata. Ela e

seus filhos Ronald e Hilda moravam no número 427 da Park Lane. Os dois jovens freqüentavam amelhor sociedade; ao que constava, não tinham inimigos, nem vícios. Ele estivera noivo da srta.Edith Woodiey, de Carstairs, mas o noivado fora desfeito meses antes, de comum acordo, e nãohavia motivo para se supor que existisse ressentimento. Quanto ao resto, o rapaz freqüentara umcírculo estreito e convencional, pois tinha hábitos moderados e temperamento calmo. Apesar disso,a morte apresentou-se a esse jovem aristocrata de maneira estranha e inesperada, entre as dez e asonze e vinte, na noite de 30 de março de 1894.

Ronald Adair era aficionado pelas cartas e jogava com freqüência, mas não de maneira que pudes-se prejudicá-lo. Era sócio dos clubes Baldwin, Cavendish e Bagatelle. Ficou provado que no dia da sua

morte jogara whist no Bagatelle, depois do jantar. Também jogara ali à tarde. Soube-se, pelo depoi-mento do sr. Murray, de Sir John Harday e do coronel Moran, que o jogo fora whist e que houveracerto equilíbrio na sorte. Adair perdera mais ou menos cinco libras. Possuidor de enorme fortuna,

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esse prejuízo em nada poderia afetá-lo. Tinha jogado todos os dias, num ou noutro clube, mas eracauteloso e em geral saía com lucro. Ficou provado que, como parceiro do coronel Moran, chegara aganhar quatrocentas e vinte libras numa sessão, algumas semanas antes, de Godfrey Milner e LordeBalmoral. Esses fatos eram recentes, pelo que se soube no inquérito.

Na noite do crime, ele voltou do clube exatamente às dez horas. Sua mãe e sua irmã tinham ido

 visitar uns parentes. A criada declarou que o ouvira entrar na sala da frente, no segundo andar. Elaacendera o fogo nessa sala, e, devido à fumaça, abrira a janela. Não fora ouvido o menor ruído até asonze e vinte, hora a que voltaram a dona da casa e sua filha. Desejando dizer boa-noite ao filho, Lady Maynooth tentara entrar no seu quarto. Estava fechado por dentro, e não houve resposta quandobateram e chamaram. Pediram socorro, e a porta foi arrombada. O infeliz rapaz estava caído pertoda mesa. Fora horrivelmente mutilado por uma bala explosiva, mas não se encontrou arma algumano aposento. Na mesa estavam duas notas de dez libras, assim como dezessete libras e dez xelins emmoedas de prata e de ouro, dispostas em pequenas pilhas. Havia também algarismos numa folha depapel, com os nomes de alguns amigos do clube, donde se deduziu que estivera, antes de morrer,tentando verificar seus lucros ou prejuízos no jogo.

Um exame minucioso do caso tornou-o ainda mais complexo. Em primeiro lugar, não havia razãopara o rapaz ter fechado a porta por dentro. Havia a possibilidade de ela ter sido fechada peloassassino, que poderia ter fugido pela janela. Mas era uma queda de sete metros, e embaixo havia umcanteiro de açafroes em pleno f lorescimento. Nem as flores nem a terra pareciam ter sido pisadas, enão havia marcas na estreita faixa de relva que separava a casa da rua. A julgar pelas aparências, forao próprio rapaz que fechara a porta. Mas como fora ele morto? Ninguém poderia ter galgado aquelajanela sem deixar vestígios. Mesmo supondo-se que alguém tivesse feito pontaria pela janela, eranecessário que se tratasse de um ótimo atirador para causar tal ferimento. Além disso, a Park Lane émuito freqüentada, e havia um estacionamento de carros a cem metros da casa. Ninguém ouvira otiro. E, no entanto, lá estava o morto, bem como a bala, achatada como todas as balas de pontamacia, provocando um ferimento que devia ter causado morte instantânea. Eram essas as circuns-tâncias do mistério da Park Lane, complicadas pela total ausência de motivo, já que, como dissemos,o jovem Adair não parecia ter inimigos e não houvera tentativa de roubo de dinheiro, ou de objetosde valor.

Durante o dia todo, pensei nesses fatos, procurando encontrar uma teoria que os explicasse, oudescobrir a linha de menor resistência, que, na opinião do meu pobre amigo Holmes, era o ponto departida de qualquer investigação. Confesso que fiz poucos progressos. À tarde, caminhei pelo par-que, e, às seis horas, vi-me na extremidade da Park Lane que dá para a Oxford Street.

Um grupo de curiosos na calçada, todos olhando para uma determinada janela, indicou-me a casaque eu havia ido ver. Um homem alto e magro, de óculos escuros, que desconfiei fosse um policial àpaisana, expunha uma teoria de sua autoria às pessoas que se agrupavam para ouvi-lo. Cheguei omais perto possível, mas as observações me pareceram absurdas, de modo que me afastei, aborreci-do. Ao fazê-lo, esbarrei num homem velho e disforme, que estava atrás de mim, e derrubei várioslivros que ele levava. Lembro-me de que, ao erguê-los, notei o título de um deles, The origin of tree

 worship, e ocorreu-me que o sujeito devia ser um pobre bibliófilo, que, por profissão ou mania,colecionava volumes obscuros. Procurei desculpar-me, mas era evidente que aqueles livros, que eutivera a infelicidade de derrubar, eram preciosos aos olhos do dono. Ele se virou com um rosnar dedesprezo, e a corcunda e as suíças brancas desapareceram no meio da multidão.

Minhas observações sobre o número 427 da Park Lane não me ajudaram a elucidar o problemaque me interessava. A casa era separada da rua por um muro baixo, com grade, não tendo o conjun-

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to mais do que um metro e meio de altura. Seria portanto muito fácil a qualquer pessoa entrar nojardim. Mas a janela era inacessível, uma vez que não havia condutor de água ou qualquer outra coisaque pudesse ajudar o mais ágil dos homens a galgá-la. Cada vez mais perplexo, voltei para Kensington.Não havia ainda cinco minutos que entrara no meu escritório, quando a criada veio me avisar quealguém queria me ver. Notei, com surpresa, que era o estranho colecionador de livros, de rostoenrugado sob os cabelos brancos, carregando os preciosos volumes, no mínimo doze, sob o braço

direito.

— Está admirado de me ver aqui, senhor? — perguntou ele com um grasnar estranho.

Respondi que realmente estava.

— Pois bem, mas é que eu tenho consciência, e, ao vê-lo entrar nesta casa, quando vinha atrás dosenhor, disse a mim mesmo que ia entrar e dizer-lhe que, se me mostrei um tanto brusco, foi semquerer e que lhe estou grato por ter apanhado os meus livros.

— Está dando muita importância ao incidente — disse eu. — Posso perguntar como soube quem euera?

— Pois bem, senhor, se acha que estou tomando excessiva liberdade, dir-lhe-ei que sou seu vizinho;minha livrariazinha fica na esquina da Church Street, onde terei muito prazer em vê-lo, pode ficarcerto. Talvez o senhor também seja colecionador, e tenho aqui Pássaros britânicos, Catulo e A Guer-ra Santa — cada um deles uma pechincha! Com cinco volumes o senhor poderia preencher aqueleespaço, na segunda prateleira. Dá um ar de desordem, não é verdade, senhor?

Virei a cabeça e olhei para a estante atrás de mim. Quando tornei a me virar, Sherlock Holmesme encarava sorrindo, do outro lado da escrivaninha. Ergui-me de um salto, olhei-o durante algunssegundos, completamente atônito, e parece que desmaiei pela primeira e última vez na minha vida.Não há dúvida de que uma nuvem cinzenta dançou diante dos meus olhos, e, quando recuperei ossentidos, vi que meu colarinho fora desabotoado e senti na boca um gosto de conhaque. Holmesestava inclinado sobre a minha cadeira, de frasco na mão.

— Caro Watson, peço-lhe mil perdões — disse a tão conhecida voz. — Não imaginei que ficasse tãoabalado.

Agarrei-o pelo braço.

— Holmes! — exclamei. — É você mesmo? Será possível que esteja vivo? É verdade que conseguiu sairdaquele pavoroso abismo?

— Espere um momento! — disse ele. — Tem certeza de que está em estado de discutir os fatos? Causei-lhe um choque sério com a minha aparição desnecessariamente dramática.

— Estou bem, mas, francamente, Holmes, mal posso acreditar nos meus olhos. Deus do céu, pensarque você, você, dentre todos os homens, está aqui no meu escritório!

— Agarrei-o de novo pela manga e senti-lhe o braço fino e nervoso. — Bom, em todo caso, não éespírito. Caro amigo, estou radiante por revê-Io. Sente-se e conte-me como saiu vivo do horrívelprecipício.

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Ele se sentou diante de mim e acendeu um cigarro, com aquele seu jeito despreocupado. Vestia omesmo terno velho do vendedor de livros, mas as outras características daquele indivíduo estavamem cima da mesa, juntamente com a cabeleira branca e a pilha de livros. Holmes parecia mais magroe mais astuto do que antigamente, mas havia no rosto aquilino uma palidez que indicava não terlevado vida sadia ultimamente.

— Estou satisfeito por poder me esticar novamente, Watson — disse ele. — Não é brincadeira, paraum homem alto, ter de diminuir sua estatura trinta centímetros durante horas a fio. Agora, caro amigo, quanto às explicações: se quiser me dar a sua cooperação, temos uma noite dura e perigosa ànossa frente. Talvez seja melhor eu lhe relatar os fatos depois desse trabalho terminado.

— Estou curiosíssimo. Prefiro ouvi-lo agora.

— Vai me acompanhar hoje à noite?

— Quando quiser e aonde quiser.

— Como antigamente, então. Temos tempo para um jantarzinho, antes de partir. Pois bem, quantoao abismo... não tive dificuldade em sair dele pela simples razão de nunca ter estado lá.

— Nunca ter estado lá?

— É verdade, Watson, a pura verdade. O bilhete que lhe escrevi foi sincero. Não duvidei que tivessechegado ao fim da minha carreira, quando vi o vulto sinistro do falecido professor Moriarty, de pé,na estreita vereda que o levava para junto de mim. Li nos seus olhos cinzentos uma resoluçãoinexorável. Troquei com ele algumas palavras e obtive a sua amável permissão para lhe escrever,

 Watson, o bilhete que você mais tarde recebeu. Deixei-o juntamente com minha cigarreira e minhabengala e segui pela vereda, com Moriarty no meu encalço. Quando cheguei ao fim, ambos paramos.Ele não sacou arma alguma, mas correu para mim e rodeou-me com os seus longos braços. Sabia quepara ele não havia esperança e queria se vingar. Lutamos à beira do precipício. Mas conheço umpouco de baritsu, um tipo de luta japonesa que mais de uma vez tem me valido. Consegui me liber-tar. Com um grito horrível, ele esperneou durante alguns segundos, como se procurasse agarrar o arcom ambas as mãos, mas, por mais que se esforçasse, não recuperou o equilíbrio e caiu no precipício.

 Vi-o durante muito tempo. Depois bateu numa rocha e desapareceu na água.

Ouvi com espanto essa explicação, que Holmes me deu enquanto fumava.

— Mas, e as marcas! — exclamei. — Vi, com os meus próprios olhos, pegadas de duas pessoas indo enenhuma de regresso.

— Vou lhe contar. No momento em que o professor desapareceu, ocorreu-me que eu tinha tido umasorte extraordinária. Sabia que Moriarty não era o único que jurara me matar. Havia pelo menosmais três cujo desejo de vingança se acentuaria com a morte do chefe. Eram todos homensperigosíssimos. Um deles acabaria por me apanhar. Por outro lado, se o mundo inteiro estivesseconvencido de que eu morrera, aqueles homens ficariam à vontade, e, cedo ou tarde, eu teria opor-tunidade de destruí-los. Seria, então, hora de anunciar que eu ainda pertencia ao mundo dos vivos.

 A mente raciocina com tal rapidez, que tudo isso me ocorreu antes mesmo de o professor Moriarty 

ter chegado ao fundo das quedas de Reichenbach.

"Levantei-me e examinei o rochedo atrás de mim. Na sua pitoresca descrição do incidente, que li

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meses mais tarde, você assegura que a rocha era escarpada. Não é bem verdade. Havia alguns pontosde apoio para os pés e a ligeira indicação de uma saliência. O rochedo era tão alto que pareciaimpossível galgá-lo todo, mas seria também impossível voltar pela vereda sem deixar sinais. Eu pode-ria, é claro, virar os sapatos, como já tenho feito noutras ocasiões, mas a impressão de três grupos depegadas na mesma direção certamente despertaria suspeitas. Em suma, era preferível arriscar-me asubir. Não foi agradável, Watson. A catarata rugia a meus pés. Não sou pessoa imaginosa, mas garan-

to-lhe que tinha a impressão de ouvir a voz de Moriarty gritando do fundo do abismo. Um erro teriasido fatal. Mais de uma vez, quando um tufo de relva me ficou nas mãos, ou o pé me escorregou nasfendas úmidas da rocha, pensei que chegara ao fim. Mas continuei o esforço da subida e finalmentealcancei uma plataforma de alguns metros de profundidade, coberta por relva úmida, onde pudedescansar sem ser visto, com todo o conforto. Estava estendido ali quando você, caro Watson, e todosos seus acompanhantes investigaram minha morte da maneira mais amiga e eficiente que se poderiaimaginar.

"Finalmente, depois de terem chegado às inevitáveis e completamente errôneas conclusões, você voltou para o hotel, e eu me vi de novo só. Pensei que tivesse chegado ao fim das minhas aventuras,

mas uma ocorrência extraordinária me provou que ainda me esperavam surpresas. Uma pedra enor-me, vinda de cima, passou por mim e foi cair no precipício. Pensei por um momento que fosseacidente, mas, segundos depois, olhando para cima, vi a cabeça de um homem contra o céu sombrio,e outra pedra bateu na própria saliência onde eu me achava, bem perto da minha cabeça. Não haviadúvida quanto à intenção. Moriarty não estava só. Um cúmplice — e aquele olhar de relance meprovou o quanto ele era perigoso — ficara de atalaia enquanto o professor me atacava. De longe, semque eu o visse, presenciara a morte do amigo e a minha fuga. Esperava então, e, dirigindo-se ao cumedo rochedo, procurava vencer onde o chefe fora derrotado.

"Não levei muito tempo para tirar minhas conclusões, Watson. Vi novamente o rosto sinistro láem cima e percebi que viria outra pedra. Comecei a descer para a vereda. Não creio que o tivesseconseguido a sangue-frio. Era cem vezes mais difícil descer do que subir. Mas não tive tempo parapensar nas dificuldades, pois outra pedra passou por mim quando me dependurei, agarrando-mecom as duas mãos à beira da saliência. A meio caminho, escorreguei, mas, com a ajuda de Deus,consegui chegar à vereda, ensangüentado e rasgado. Tratei de fugir. Caminhei dezesseis quilômetrospelas montanhas, no escuro, e uma semana mais tarde estava em Florença, certo de que ninguém nomundo poderia saber qual fora o meu fim.

"Tive apenas um confidente: meu irmão Mycroft. Devo-lhe mil desculpas, caro Watson, mas eraabsolutamente necessário que me considerassem morto, e tenho a certeza de que você não descreve-ria a minha morte de maneira tão convincente se nela não acreditasse. Muitas vezes, nos últimos três

anos, peguei na pena para lhe escrever, mas temia sempre que a sua afeição por mim o levasse aqualquer ato indiscreto que traísse o meu segredo. Por esse motivo, afastei-me de você hoje, quandoderrubou meus livros, pois no momento eu corria perigo, e qualquer sinal de emoção de sua partepoderia chamar a atenção para a minha pessoa e provocar as mais desastrosas conseqüências. Quan-to a Mycroft, tive de confiar nele para obter o dinheiro de que necessitava. O curso dos acontecimen-tos, em Londres, não foi o que eu esperava, pois o julgamento do bando de Moriarty deixou emliberdade dois dos seus mais perigosos membros e meus maiores inimigos. Viajei durante dois anospelo Tibete, diverti-me visitando Lassa e passando uns dias com o dalai-lama. Você deve ter ouvidofalar das notáveis explorações de um norueguês chamado Sigerson, mas aposto que nunca lhe ocor-reu que estava tendo notícias deste seu amigo. Passei depois pela Pérsia, dei uma olhada em Meca, fiz

uma visita interessante ao califa de Cartum, e comuniquei os resultados ao Ministério do Exterior. Ao voltar para a França, empreguei alguns meses na busca de derivados do alcatrão, num laboratóriode Montpeilier, no sul da França. Tendo concluído satisfatoriamente o meu trabalho e sabendo que

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somente um dos meus inimigos ficara em Londres, dispus-me a voltar, mas resolvi me apressar, aoouvir as notícias deste extraordinário mistério da Park Lane, que me atraiu não só pelos seus própriosméritos como ainda porque pareceu me oferecer algumas peculiares oportunidades pessoais. Vimimediatamente para Londres, apresentei-me em pessoa na Baker Street, provoquei histeria na sra.Hudson e verifiquei que Mycroft conservara meus aposentos e meus papéis exatamente como eu osdeixara. E foi assim, caro Watson, que hoje, às duas horas, vi-me sentado na minha poltrona, no meu

antigo quarto, desejando apenas poder ver o meu velho amigo Watson na outra cadeira, que eletantas vezes ocupara."

Foi essa a extraordinária história que ouvi naquela noite de abril — narrativa que teria sidoinacreditável se não fosse confirmada pela presença do homem alto e magro que eu pensara nuncamais tornar a ver. Ele soubera do meu desgosto e manifestou sua solidariedade, mais pela atitude deque por palavras.

— O trabalho é um antídoto para a tristeza, caro Watson — disse ele. — Tenho para nós dois, hoje ànoite, um trabalho que, se for realizado com êxito, por si só justificaria a vida de um homem neste

planeta.

Supliquei-lhe que me contasse mais alguma coisa.

— Você ficará sabendo o suficiente ainda antes do amanhecer — continuou Holmes. — Temos trêsanos do passado para discutir. Que isto baste até as nove e meia, hora em que daremos início ànotável aventura da casa vazia.

Pareceu-me realmente que voltara ao tempo antigo, quando, àquela hora, vi-me sentado numcarro ao lado dele, com um revólver no bolso e o entusiasmo da aventura no coração. Holmes estavafrio, severo e silencioso. Quando a luz dos lampiões brilhava no seu rosto austero, eu notava quetinha as sobrancelhas contraídas e os lábios cerrados. Não sabia que fera selvagem íamos perseguirna floresta do crime, mas, pela atitude do meu mestre, percebi que era um caso grave — e o sorrisosardônico, que de vez em quando surgia em seu rosto de asceta, augurava mal para o seu inimigo.

Pensei que nos dirigíssemos para a Baker Street, mas Holmes parou na esquina da CavendishSquare. Vi-o, ao descer, olhar cautelosamente de um lado para o outro; a cada esquina, dali pordiante, tomou o mesmo cuidado, para ter certeza de que não estávamos sendo seguidos. Não hádúvida de que nosso itinerário era singular. Holmes tinha um extraordinário conhecimento dosatalhos de Londres, e eu o via agora enveredar com segurança por uma rede de terrenos e estrebariasde cuja existência eu jamais suspeitara. Finalmente entramos numa rua ladeada por casas velhas e

sombrias, que nos levou à Manchester Street e depois à Blandford Street. Ali, enfiou-se rapidamentepor uma viela estreita, passou por um portão de madeira e entrou num quintal deserto, abrindo aporta traseira de uma casa. Entramos, e ele fechou a porta.

Estava escuro como breu, e era evidente que nos achávamos numa casa vazia. Nossos passos faziamranger o soalho nu, e minha mão tocou uma parede onde o papel caía em tiras. Os dedos frios deHolmes se fecharam sobre o meu pulso, e ele me conduziu por um longo corredor, até que vi vaga-mente a luz dúbia que se filtrava pela bandeira da porta. Holmes virou subitamente para a direita,nos encontramos num aposento vazio, grande e quadrado, com sombras profundas nos cantos, mas

 vagamente iluminado no centro pela luz da rua. Não havia lâmpada perto, e a vidraça estava coberta

de pó, de modo que mal nos víamos. Meu amigo me pôs a mão no ombro e os lábios perto do meuouvido.

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— Sabe onde estamos? — murmurou.

— Não há dúvida de que ali é a Baker Street — respondi, olhando através da janela.

— Exatamente. Estamos na Camden House, que fica defronte da minha casa.

— Mas por que estamos aqui?

— Porque temos uma ótima vista do pitoresco edifício. Peco-lhe que se aproxime da janela, caro Watson, tomando todas as precauções para não ser visto. Olhe depois para nossos antigos aposentos— ponto de partida de tantas aventuras. Veremos se três anos de ausência anularam ou não o meudom de surpreendê-lo.

Avancei cautelosamente e olhei para a conhecida janela. Quando meus olhos caíram sobre ela,mal pude conter uma exclamação de espanto. A cortina estava descida e uma luz forte brilhava noaposento. A silhueta de um homem sentado numa cadeira se desenhava fortemente no quadrado

luminoso da janela. Não se podia deixar de reconhecer o equilíbrio da cabeça, a força dos ombrosquadrados, a agudez dos traços. O rosto estava meio virado, e o efeito era o de uma daquelas silhuetasnegras que nossos avós gostavam de emoldurar. Era uma perfeita reprodução de Holmes. Tão admi-rado fiquei, que estendi a mão para ter certeza de que meu amigo estava ao meu lado. Ele ria silenci-osamente.

— Então? — perguntou.

— Deus do céu, é maravilhoso! — exclamei.

— Espero que nem a idade, nem o hábito façam com que desapareça o meu dom de infinita varieda-de — disse ele. Reconheci na sua voz o orgulho e o prazer que sente o artista com a própria criação. —Parece-se bastante comigo, não é verdade?

— Poderia jurar que é você.

— O mérito da execução pertence a M. Oscar Meunier, de Grenoble, que levou alguns dias fazendoo molde.

É um busto de cera. O resto arranjei eu mesmo durante minha visita à Baker Street, hoje à tarde.

— Mas por quê?

— Caro Watson, tenho as mais fortes razões para desejar que certas pessoas pensem que estou lá,quando na realidade me encontro noutro lugar.

— Acha que a sua residência está sendo vigiada?

— Tenho certeza de que está sendo vigiada.

— Por quem?

— Pelos meus antigos inimigos da encantadora sociedade cujo chefe repousa nas quedas deRcichenbach. Lembre-se de que eles, e somente eles, sabiam que eu estava vivo. Devem ter calculado

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que, cedo ou tarde, eu voltaria para casa. Observaram-na constantemente, e hoje de manhã viram-me chegar.

— Como sabe disso?

— Porque reconheci a sentinela, quando olhei de relance pela janela. Era um sujeito mais ou menos

inofensivo, chamado Parker, extraordiná ;rio tocador de gaita, magarefe de profissão. Pouca impor-tância lhe dou, mas dou muita à pessoa que está por trás dele, o amigo íntimo de Moriarty, aqueleque atirou as pedras do alto do rochedo, o mais perigoso e mais astuto criminoso de Londres. É ele ohomem que anda atrás de mim hoje à noite, Watson, o homem que nem de .longe desconfia queestamos atrás dele.

Os planos de meu amigo iam sendo revelados pouco a pouco. Daquele nosso cômodo retiro, osobservadores estavam sendo observados e os perseguidores, perseguidos. A sombra angulosa lá adi-ante valia como isca, e nós éramos os caçadores. Ficamos em silêncio, juntos, no escuro, observandoos vultos apressados que passavam e repassavam diante de nós. Holmes estava imóvel e silencioso,

mas eu sentia que estava alerta, que os seus olhos se fixavam atentamente nos homens que passavam.Era uma noite feia e tempestuosa e o vento assobiava na rua. Muitas pessoas iam de um lado paraoutro, quase todas com capotes e echarpes. Uma ou duas vezes tive a impressão de ter visto a mesmapessoa, e notei particularmente dois homens que pareciam se abrigar do vento no vão de uma porta,a pequena distância. Procurei chamar para eles a atenção do meu companheiro, mas Holmes soltouuma exclamação de impaciência e continuou olhando para a rua. Mais de uma vez moveu nervosa-mente os pés, batendo rapidamente com os dedos na parede. Evidentemente começava a ficar inqui-eto, e seus planos pareciam não sair a contento. Finalmente, quando era quase meia-noite e a rua iagradualmente ficando deserta, ele começou a passear pelo quarto, parecendo muito agitado. Eu iafazer uma observação, quando ergui os olhos para a janela iluminada e de novo senti a mesmasurpresa de há pouco. Agarrei o braço de Holmes e apontei para cima.

— A sombra se moveu! — exclamei.

Na realidade não era o perfil e sim as costas que víamos agora.

Três anos não tinham amenizado o gênio de Holmes, nem lhe tinham dado mais paciência paracom pessoas de inteligência menos viva que a dele.

— Claro que se moveu — replicou. — Julgava-me por acaso um desastrado, Watson, a ponto de colocarali um boneco e esperar iludir um dos homens mais perspicazes da Europa? Há duas horas que

estamos neste quarto, e a sra. Hudson mudou a posição do manequim oito vezes, uma a cada quinzeminutos. Ela mexe nele pela frente, de modo que sua sombra nunca é vista. Ah! ... — Aqui, Holmesteve uma exclamação excitada. Â luz dúbia, vi sua cabeça se inclinar para a frente e ficar em atitudede rígida atenção. Aqueles dois homens ainda poderiam estar no vão da porta, mas agora eu não os

 via. Estava tudo escuro e silencioso, a não ser no quadrado iluminado à nossa frente, com a silhuetanegra ao centro. Ouvi de novo o som sibilante e fino que em Holmes significava excitação reprimi-da. Um momento depois, ele me puxou para o canto mais escuro do quarto, e senti sobre os meuslábios a mão que pedia silêncio. Os dedos que me seguravam tremiam. Nunca vira meu amigo tãoemocionado, embora a rua continuasse deserta e silenciosa à nossa frente.

Mas logo percebi o que os seus sentidos mais aguçados já haviam pressentido. A meus ouvidoschegou um som baixo, furtivo, vindo não da direção da Baker Street, mas da parte de trás da própriacasa onde nos abrigávamos. Uma porta abriu-se e depois fechou-se. Minutos depois, passos no corre-

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dor — passos que queriam ser silenciosos, mas que ressoavam asperamente na casa vazia. Holmes seagachou contra a parede e eu fiz o mesmo, com a mão na coronha do revólver. Procurando perscru-tar a escuridão, distingui o contorno de um homem, um vulto um pouco mais escuro do que onegrume da porta. Ele ficou parado por um instante; depois, adiantou-se, agachado, ameaçador.Estava a três passos de nós, e eu me preparava para receber o ataque quando percebi que ele não faziaa menor ideia da nossa presença. Passou rente a nós, foi até a janela de mansinho e ergueu ligeira-

mente a vidraça. Ao se ajoelhar para ficar ao nível dessa pequena abertura, a luz da rua, livre agorado vidro embaciado, iluminou-lhe o rosto. O homem parecia fora de si de excitação. Seus olhosbrilhavam como estrelas e suas feições estavam convulsas. Era um homem idoso, de nariz fino eproeminente, testa alta, com grandes entradas, e enorme bigode grisalho. Usava um chapéu alto,colocado atrás; a camisa, de peito duro, brilhava por entre o sobretudo desabotoado. O rosto eraesquálido e moreno, com rugas profundas. Trazia na mão um objeto que parecia uma bengala, mas,quando o colocou no chão, ouviu-se um ruído metálico. Do bolso do sobretudo, tirou um objeto

 volumoso e empenhou-se numa tarefa que terminou com um dique forte, seco, como se uma molaou um trinco tivessem sido acionados. Ainda ajoelhado, inclinou-se para a frente e atirou todo o seupeso como que sobre uma alavanca, ouvindo-se um ruído longo, triturante e rotativo, que acabou de

novo num forte estalido. Endireitou-se então, e vi que o que tinha na mão era uma espécie deespingarda, com uma coronha curiosamente deformada. Abriu a culatra, colocou nela qualquercoisa e engatilhou a arma. Depois, agachando-se, descansou a ponta do cano no peitoril da janelaaberta. Vi o longo bigode cair sobre a coronha e os olhos brilharem, quando ele espreitou pela mira.Ouvi um suspiro de satisfação quando encostou o cano no ombro e viu aquele estranho alvo, asilhueta negra no quadrado amarelo, bem nítida na linha de tiro. Por um momento ficou rígido,imóvel. Depois, seu aedo comprimiu o gatilho. Ouviu-se um silvo alto, estranho, e um ruído de vidropartido. Nesse momento, Holmes pulou como um tigre sobre o homem, derrubando-o de bruços,no chão. O miserável ergueu-se imediatamente e, com força convulsa, agarrou Holmes pelo pescoço,mas eu bati em sua cabeça com a coronha do meu revólver e ele caiu de novo no chão. Atirei-mesobre ele e, enquanto o segurava, meu amigo fez soar um apito estridente. Ouvimos um ruído de péssobre a calçada, e dois policiais fardados, com um detetive à paisana, passaram pela porta de entradae irromperam no quarto.

— É você, Lestrade? — perguntou Holmes.

— Sim, sr. Holmes, eu próprio me encarreguei do caso. É um prazer vê-lo de novo em Londres.

— Creio que você precisa de um auxiliozinho extra-oficial. Três assassinatos sem solução num ano,Lestrade... é muita coisa! Mas você solucionou o mistério de Molesey com um pouco mais de habili-dade do que de costume... isto é, você o solucionou com bastante habilidade.

Tínhamos nos erguido todos, o prisioneiro respirando ofegante, com um avantajado policial decada lado. Alguns curiosos tinham se reunido na rua. Holmes foi até a janela e fechou-a. Lestradeapareceu com duas velas, e os policiais pegaram as suas lanternas. Finalmente pude ver bem o prisi-oneiro.

O rosto que nos encarava era extraordinariamente viril e sinistro. Testa de filósofo sobre uma bocasensual, o homem devia ter tido capacidade para o bem e para o mal. Mas ninguém poderia olharpara seus cruéis olhos azuis, de pálpebras cínicas e caídas, ou para o nariz agressivo, ou para a fronteameaçadora, sem neles notar os mais nítidos sinais de um caráter perigoso. Não olhou para nenhum

de nós. Tinha os olhos fixos em Holmes, com uma expressão de ódio e de espanto ao mesmo tempo.

— Demônio! — murmurou várias vezes. — Demônio de uma habilidade infernal!

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— Ah, coronel! — exclamou Holmes, arrumando o colarinho. — "Termina a jornada com o encontrodos namorados", conforme se dizia na peça antiga. Não creio que tenha tido o prazer de vê-lo desdeque me obsequiou com sua atenção nas quedas de Reichenbach, quando eu me ocultava na saliênciada rocha.

O coronel continuava a olhá-lo, como que em transe.

— Demônio de uma habilidade infernal! — Era só o que sabia dizer.

— Ainda não o apresentei — disse Holmes. — Este cavalheiro, senhores, é o coronel Sebastian Moran,do exército de Sua Majestade e o melhor caçador do império oriental. Creio que não me engano,coronel, ao afirmar que o número de tigres que abateu ainda não foi igualado, não?

O feroz velho nada dizia, continuando a fulminar o meu companheiro com o olhar. Com os olhosselvagens e o bigode eriçado, ele próprio parecia um tigre.

— Admiro-me que tão simples estratagema tenha iludido um shikari tão sabido — observou Holmes.— Devia ser seu conhecido. Será que nunca pôs um boneco sob uma árvore, ficando em cima delacom a espingarda, esperando que a isca atraísse o tigre? Esta casa vazia é a minha árvore e o coronel,o meu tigre. Naturalmente o senhor tinha outras armas de reserva, caso viessem vários tigres, ou nahipótese pouco provável de errar a pontaria. Estes aqui — continuou Holmes, com um gesto circular— são as minhas outras armas. O paralelo é perfeito.

O coronel Moran pulou com um rosnar de cólera, mas os dois policiais o puxaram de novo paratrás. A fúria em seu rosto era terrível.

— Confesso que tive uma pequena surpresa — continuou Holmes. — Não pensei que o senhor seservisse desta casa vazia e desta cômoda janela da frente. Pensei que agisse da rua, onde Lestrade eseus companheiros o esperavam. A não ser por isso, tudo ocorreu conforme eu supusera.

O coronel Moran voltou-se para o detetive oficial.

— O senhor pode ou não ter motivos para me prender — disse ele. — Mas, pelo menos, não há razãopara que eu me submeta às ironias desta criatura. Se é que estou nas mãos da lei, que tudo se façalegalmente.

— Pois bem, é razoável — concordou Lestrade. — Tem alguma coisa a acrescentar, sr. Holmes, antes de

nos retirarmos?

Holmes apanhara do chão a poderosa espingarda de ar comprimido e examinava-lhe o mecanis-mo.

— Arma única e admirável — disse ele. — Silenciosa e muito poderosa. Conheci Von Herder, omecânico alemão, cego, que a construiu por ordem do falecido professor Moriarty. Há anos que seida sua existência, embora jamais tenha tido oportunidade de manejá-la. Chamo sua atenção paraela, Lestrade, assim como para suas balas.

— Pode ficar certo de que cuidaremos disso, sr. Holmes — disse Lestrade, dirigindo-se com os outrospara a porta. — Mais alguma coisa?— Queria lhe perguntar apenas qual vai ser a acusação.

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— A acusação? Mas, naturalmente, tentativa de morte contra o sr. Sherlock Holmes — respondeu odetetive.

— Nada disso, Lestrade. Não quero figurar no caso. A você, e somente a você, pertence a glória daextraordinária prisão que efetuou. Sim, Lestrade, dou-lhe os parabéns! Com a sua habitual misturade audácia e sagacidade, apanhou-o.

— Apanhei-o! Apanhei quem, sr. Holmes?

— O homem que toda a polícia em vão procurou: o coronel Sebastian Moran, que matou o honorávelRonald Adair, servindo-se de uma espingarda de pressão, usando bala explosiva, que varou a janelada frente, no segundo andar do número 427 da Park Lane, no dia 30 do mês passado. É essa aacusação, Lestrade. E agora, Watson, se estiver disposto a suportar a corrente de ar devido à janelaquebrada do meu escritório, creio que meia hora de prosa, fumando um charuto, vai diverti-lo.

Nossos antigos aposentos não tinham sido modificados, graças à supervisão de Mycroft e aos cuida-

dos da sra. Hudson. Quando entrei, é verdade que vi uma ordem fora do comum, mas as velhasmarcas estavam nos seus antigos lugares. A mancha de ácido, na mesa. Numa estante, uma fileira deformidáveis cadernos de apontamentos e livros de referências que muitos cidadãos teriam tido pra-zer em queimar. Os diagramas, a caixa do violino, a prateleira dos cachimbos, até a mesma bolsapersa de tabaco feriram o meu olhar, quando examinei a sala. Havia dois ocupantes: a sra. Hudson,toda sorridente, e o estranho boneco que tivera parte tão importante nos acontecimentos da noite.Era um modelo em cera colorida, réplica perfeita do meu amigo. Estava numa mesinha, vestido comum velho roupão de Holmes, arranjado com tal arte que da rua a ilusão fora completa.

— Espero que tenha tomado todas as precauções, sra. Hudson — disse Holmes.

— Fui de joelhos, exatamente como o senhor me recomendou.

— Ótimo. Deu muito bem conta do recado. Viu onde entrou a bala?

— Sim, senhor. Receio que tenha estragado o seu belo busto, pois perfurou a cabeça, indo bater naparede. Apanhei-a no tapete. Aqui está!

Holmes mostrou-me a bala.

— Bala de ponta mole, como vê, Watson. Idéia genial... pois quem iria pensar que saíra de uma

espingarda de ar comprimido? Muito bem, sra. Hudson, fico-lhe muito grato. E agora, Watson,quero vê-lo na sua antiga poltrona mais uma vez, pois há vários pontos que desejaria discutir com

 você.

Ele despira o casaco velho, voltando a ser o Holmes de outros tempos, metido no roupão cinzentoque tirara do boneco.

— O velho shikari continua de nervos sólidos e os olhos não perderam a agudeza — disse ele, rindo,enquanto examinava a testa da efígie.

Continuou:

— Bem no meio da nuca. Ele era o melhor atirador da Índia, e creio que há poucos que se igualem a

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ele em Londres. Conhecia-o de nome?

— Não, não o conhecia.

— Bom, bom, é assim a fama! Mas, se bem me lembro, você também desconhecia o professor Moriarty,uma das maiores cabeças do século. Faça o favor de me dar meu índice de biografias, aí nessa prate-

leira.

Virou as páginas preguiçosamente, recostado na poltrona e tirando baforadas do charuto.

— Minha coleção, no M, é extraordinária — disse ele. — Moriarty sozinho bastaria para tornar essaletra ilustre, e aqui temos Morgan, o envenenador; e Merridew, de triste memória; e Mathews, queme quebrou o canino esquerdo na sala de espera de Charing Cross; e, finalmente, nosso amigo dehoje à noite.

Entregou-me o livro, e eu li: "Moran, Sebastian, coronel. Desempregado. Pertenceu ao l. Bengalore

Pioneers. Nascido em Londres, em 1840. Filho de Sir Augustus Moran, C. B., antigo ministro britâ-nico na Pérsia. Educado em Eton e Oxford. Serviu na Campanha de Jowaki, na Campanha do Afeganistão, em Charasiab (despachos), em Sherpur e em Cabul. Autor de Jogo pesado no Himalaiaocidental, 1881; Três meses na selva, 1884. Endereço: Conduit Street. Clubes: Anglo-Indiano,Tankerville e Bagatelle".

Na margem estava escrito, com a letra clara de Holmes: "Em segundo lugar, entre os homens maisperigosos de Londres".

— Extraordinário — observei, devolvendo-lhe o livro. — Carreira de um honrado militar.

— É verdade — respondeu Holmes. — Até certo ponto, portou-se bem. Sempre teve nervos de aço, e,na Índia, ainda contam como se arrastou por um escoadouro, atrás de um tigre perigoso. Há árvores,

 Watson, que crescem normalmente até certo ponto e, depois, apresentam uma anomalia. O mesmoacontece com as criaturas. Tenho uma teoria pela qual o indivíduo representa, no seu desenvolvi-mento, toda a procissão de antepassados, e a inclinação para o bem ou para o mal significa qualquerforte influência que vem da sua linhagem. Dessa forma, essa pessoa se torna o resumo da história dafamília.

— É de fato interessante.

— Bom, não garanto nada. Seja qual for a causa, o coronel Moran começou a agir mal. Embora nãose metesse em nenhum escândalo, tornou-se indesejável na Índia. Aposentou-se e veio para Londres,onde também adquiriu mau nome. Foi então procurado pelo professor Moriarty, tornando-se seuajudante-de-ordens. Moriarty dava-lhe bastante dinheiro e servia-se dele apenas num ou noutro tra-balho de responsabilidade, que não confiaria a um criminoso vulgar. Talvez você se lembre da morteda sra. Stewart, de Lauder, em 1887. Não? Pois bem, tenho certeza de que Moran estava metidonisso, mas nada ficou provado. Ele agiu com tanta esperteza que, mesmo quando o bando foi preso,nada se provou contra ele. Lembra-se daquela ocasião em que fui visitá-lo, Watson, e em que fecheias venezianas, com medo de espingardas de ar comprimido? Com certeza achou que eu tinha excessode imaginação. Pois eu sabia exatamente o que estava fazendo, já que tinha conhecimento da existên-

cia dessa arma extraordinária e também de que um dos maiores atiradores do mundo estaria atrásdela. Quando estivemos na Suíça, ele nos seguiu, com Moriarty, e não há dúvida de que foi Moranquem me fez passar aquele mau quarto de hora nas quedas de Reichenbach.

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"Deve calcular como li com atenção os jornais, durante a minha estada na França, na esperança deuma oportunidade de apanhá-lo. Enquanto ele estivesse livre, em Londres, minha vida não valeriagrande coisa. Noite e dia a sua sombra estaria atrás de mim, e, cedo ou tarde, teria a sua oportunida-de. Que poderia eu fazer? Não podia matá-lo sem provocação, pois nesse caso eu é que me veria notribunal. Não adiantava apelar para a polícia. Ela só age quando há forte suspeita. Sendo assim, eunada poderia fazer. Mas continuava a acompanhar as notícias de crimes, sabendo que cedo ou tarde

o apanharia. Veio então a morte de Ronald Adair. Finalmente tinha a minha oportunidade! Saben-do o que sabia, poderia duvidar de que o culpado fosse o coronel Moran? Ele jogara com o rapaz;seguira-o, ao sair do clube; alvejara-o pela janela aberta. Não havia dúvida. As balas bastarão paralevá-lo à forca. Vim para Londres imediatamente. Fui visto, ao entrar em casa, pela sentinela, quedaria parte da minha presença ao coronel, disso eu tinha certeza. Ele não deixaria de ligar a minhasúbita volta ao seu crime e ficaria grandemente alarmado. Fiquei certo de que ele procuraria meeliminar imediatamente, e que traria sua perigosa arma. Preparei-lhe um bom alvo, na janela, e,avisando a polícia da provável necessidade de interferência (a propósito, Watson, você notou a pre-sença dos dois detetives com grande perspicácia), vim para o que considerei um bom posto de obser-

 vação, nem de longe suspeitando de que também ele escolheria esse local. Meu caro Watson, precisa

de mais explicações?"

— Preciso — respondi. — Você não explicou o motivo que Moran tinha para assassinar Ronald Adair.

— Ah, caro Watson, chegamos agora ao reino das conjecturas, onde a mente mais lógica pode falhar.Cada qual poderá formar a sua hipótese, de acordo com as provas, e a sua poderá ser tão corretacomo a minha.

— Você tem uma opinião formada, então?

— Creio que não é difícil explicar os fatos. Ficou provado, no inquérito, que Adair e Moran ganha-ram grande quantia no jogo. Agora, com certeza Moran trapaceou, como sei que várias vezes temfeito. Creio que, no dia do crime, Adair descobriu que o outro andava roubando no jogo. Provavel-mente falou com ele em particular e ameaçou denunciá-lo, a não ser que pedisse demissão do clubee prometesse não jogar mais. Seria improvável que uma pessoa tão jovem como Adair provocasseimediatamente um escândalo expondo um homem muito conhecido e muito mais velho do que ele.Certamente agiu como imaginei. A expulsão de um clube significaria a ruína para Moran, que viviade jogo desonesto. Portanto, matou Adair, que na ocasião tentava calcular quanto deveria devolver,já que não queria lucrar com a desonestidade do parceiro. Ele fechou a porta, para que a mãe e airmã não o surpreendessem e quisessem saber o que significavam aqueles nomes e algarismos. Acha

 viável a teoria?

— Não duvido de que seja essa a verdade.

— No julgamento será esclarecido. Entretanto, o coronel Moran não mais nos importunará, a famo-sa espingarda de Von Herder irá embelezar o Museu da Scotland Yard e Sherlock Holmes está denovo livre, para dedicar seu tempo ao exame dos interessantes problemazinhos que a vida complexade Londres tão freqüentemente apresenta.

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 A CICLISTA SOLITÁRIA 

No intervalo compreendido entre os anos de 1894 e 1901 inclusive, o sr. Sherlock Holmes andoumuito ocupado. Pode-se afirmar que não houve nenhum caso público difícil em que ele não fosse

consultado, nesses oito anos, e houve centenas de casos particulares, alguns complicados e extraordi-nários, nos quais representou papel importante. Inúmeros grandes sucessos e alguns fracassos inevi-táveis encheram esse período de trabalho contínuo.

Como guardei notas completas sobre esses casos, e cheguei mesmo a tomar parte em alguns,devem compreenderque não me será fácil saber quais apresentar ao público. Ficarei, no entanto, fielà minha antiga norma, que é dar preferência àqueles que apresentam interesse, não pela brutalida-de do crime, mas pelo engenho e pela finalidade surpreendente da solução.

Por esse motivo, vou contar agora o caso da srta. Violet Smith, a ciclista solitária de Charlington,

e a curiosa sequência de nossas investigações, que culminaram em inesperada tragédia. É verdadeque as circunstâncias não permitiram nenhuma demonstração extraordinária dos dons que torna-ram meu amigo famoso, mas há, no caso, pontos que o colocaram em destaque, em meio à coleçãode crimes onde me inspiro para tais narrativas.

Consultando o meu caderno de 1895, vejo que foi num sábado, dia 23 de abril, que pela primeira vez ouvimos falar da srta. Violei Smith. Lembro-me de que sua visita desagradou a Holmes, queestava nessa altura interessado num problema relacionado com a estranha perseguição de que fora

 vítima John Vincent Harden, o conhecido rei do tabaco. Meu amigo, que acima de tudo gostava deprecisão e de concentração, aborrecia-se com qualquer coisa que desviasse sua atenção do assunto em

que se ocupava no momento. Mas, sem rudeza (estranha, aliás, ao seu temperamento), consentiu emouvir a história daquela mulher jovem e bela, alta, graciosa e imponente, que se apresentou naBaker Street já muito tarde, implorando a assistência de Holmes e seus conselhos. Inútil dizer que eleestava sobrecarregado. A jovem viera disposta a contar sua história, e era evidente que nada, a nãoser a força, faria com que dali saísse antes de realizar seu intento. Com ar de resignação e um sorrisocansado, Holmes convidou a bela intrusa a se sentar e nos contar o que a preocupava.

— Pelo menos, não é questão de saúde — disse ele, examinando-a com o olhar. — Uma ciclista tãoentusiasta deve ter muita energia.

A jovem relanceou os olhos para os sapatos, e notei uma aspereza do lado da sola, causada pela

fricção dos pedais.

— Sim, ando muito de bicicleta, sr. Holmes, e isso tem relação com minha visita de hoje.

Meu amigo segurou a mão da jovem e examinou-a com a grande atenção e o pouco sentimentoque um cientista demonstra por um espécime.

— Peço-lhe que me desculpe. Faz parte do trabalho — disse ele, largando-lhe a mão. — Quase caí noerro de supor que era datilógrafa. Não há dúvida de que se dedica à música. Veja as pontas dos dedos,espatuladas, Watson, consequência de ambas as profissões. Há, no entanto, uma espiritualidade no

rosto... — e virou de leve o rosto da jovem para a luz — que não se espera numa datilógrafa. Esta moçaé uma artista.

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— É verdade, sr. Holmes, sou professora de música.— No campo, suponho eu, pelo seu tom de pele.

— Sim, senhor, perto de Farnham, nos limites de Surrey.

— Lindo lugar, cheio de interessantes recordações. Lembra-se, Watson, que foi lá que apanhamos

 Archie Stamford, o falsificador? Agora, srta. Violet, que foi que lhe aconteceu em Farnham?

Com grande clareza e calma, a jovem começou sua narrativa:

— Meu pai já morreu, sr. Holmes. Era James Smith, regente da orquestra do velho Teatro Imperial.Minha mãe e eu ficamos sem nenhum parente, a não ser um tio, Ralph Smith, que partira para a

 África vinte e cinco anos antes, e de quem jamais tivéramos notícias. Ficamos pobres, depois damorte de meu pai, mas um dia nos disseram que havia no Times um anúncio, indagando do nossoparadeiro. Pode calcular como ficamos excitadas, pois imaginamos que alguém nos deixara umafortuna. Fomos imediatamente ao escritório do advogado, cujo nome viera no jornal. Ali conhece-

mos dois senhores, o sr. Carruthers e o sr. Woodiey, que tinham chegado da África do Sul. Disseramque eram amigos de meu tio, que ele morrera meses antes, pobre, em Johannesburg, e que lhessuplicara, à hora da morte, que nos procurassem e não permitissem que nos faltasse nada. Pareceu-nos estranho que o tio Ralph, que nunca se preocupara conosco em vida, se interessasse por nós nahora da morte, mas o sr. Carruthers explicou que meu tio acabara de ter notícia da morte de meu paie que, portanto, se sentia responsável por nós.

— Desculpe-me — interrompeu Holmes. — Quando teve lugar essa conversa?

— Em dezembro último, há quatro meses.

— Pode continuar.

— O sr. Woodley me pareceu uma criatura odiosa. Ficava sempre olhando para mim de maneiradesagradável, e tinha um rosto grosseiro e balofo, um bigode ruivo e cabelos empastados de cadalado da testa. Achei-o detestável, e tive a certeza de que Cyril não gostaria que eu conhecesse aquelesujeito.

— Oh, ele se chama Cyril! — disse Holmes, sorrindo.

A jovem corou e riu.

— Sim, sr. Holmes! Cyril Morton, engenheiro eletrônico, e esperamos nos casar no fim do verão.Deus do céu, como é que fui falar nele? O que eu queria dizer é que o sr. Woodiey era profundamen-te antipático e que o sr. Carruthers, embora muito mais velho, me deixou melhor impressão. Ho-mem moreno, pálido, bem-barbeado, silencioso, mas de boas maneiras e um sorriso simpático. Per-guntou-nos como estávamos de finanças, e, ao saber que éramos muito pobres, sugeriu que eu desselições de música a sua filha, de dez anos de idade. Respondi que não gostaria de deixar minha mãe,e ele disse que eu poderia ir passar com ela todos os fins de semana, e ofereceu-me cem libras porano, o que achei ótima remuneração. Acabei por aceitar, e fui para Chiltern Grange, a dez quilómetrosde Farnham. O sr. Carruthers disse que era viúvo, mas arranjara uma governanta, senhora muito

respeitável, já de idade, a sra. Dixon, para tomar conta da casa. A menina era muito boazinha, e tudocorria bem. O sr. Carruthers era amável e apreciava bastante a música, de modo que passávamosnoites agradáveis. Eu, todos os fins de semana, ia visitar minha mãe.

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"O primeiro aborrecimento foi a chegada do sr. Woodley. Veio por uma semana, mas me parece-ram três meses! Era muito antipático e queria mandar em todos, porém comigo foi pior ainda.Declarou-me amor de maneira odiosa, gabou-se da sua fortuna, disse que, se eu me casasse com ele,teria os mais belos brilhantes de Londres. Finalmente, certo dia, após o jantar, como eu não quisessesaber dele, agarrou-me com força, dizendo que não me largaria enquanto não o beijasse. O sr.Carruthers apareceu e afastou-o para longe de mim, mas o homem se virou contra ele e deu-lhe um

murro, derrubando-o e ferindo-o no rosto. Foi o fim da visita, como o senhor deve calcular. O sr.Carruthers me pediu desculpas no dia seguinte, dizendo que eu nunca mais ficaria sujeita a taisinsultos. Nunca mais vi o sr. Woodiey.

"E agora, sr. Holmes, chego ao acontecimento que me fez vir procurá-lo, para pedir conselho. Voutodos os sábados de bicicleta à estação de Farnham, para apanhar o trem de meio-dia e vinte e dois.

 A estrada é deserta e isolada, e há um trecho mais deserto ainda, de cerca de um quilómetro, quecorre entre a charneca de Charlington, de um lado, e a mata que rodeia a Mansão Charlington, dooutro. Não seria possível encontrar estrada mais solitária, e é raro se encontrar ali uma carroça, ouum camponês, até chegar à estrada real, perto de Crooksbury Hill. Há duas semanas, quando passa-

 va por lá, olhei por acaso para trás c vi um homem, também de bicicleta. Parecia de meia-idade, debarba curta e preta. Olhei de novo, antes de chegar a Farnham, porém o homem desaparecera, demodo que não pensei mais nisso. Mas o senhor vai ficar admirado, sr. Holmes, quando lhe contarque, ao voltar, na segunda-feira, vi o mesmo homem, no mesmo trecho da estrada. Meu espantoaumentou, quando isso se repetiu no sábado e na segunda-feira seguintes. Ele ficava sempre longe,não me incomodando de maneira alguma, mas o fato não deixava de ser estranho! Falei sobre issocom o sr. Carruthers, que pareceu interessado. Disse-me que encomendara uma charrete e um cava-lo, para que, dali em diante, eu não passasse sozinha por aquele lugar.

"Tanto o cavalo como a charrete deviam ser entregues naquela semana, mas não chegaram, demodo que tive de ir de novo de bicicleta para a estação. Foi hoje de manhã. É claro que olhei paratrás, quando cheguei àquele lugar; lá estava o homem, exatamente como duas semanas antes. Ficavasempre tão distante, que eu não podia ver seu rosto, mas tenho certeza de que não é pessoa que euconheça. Sempre de escuro, com boné de pano. A única coisa que eu podia lhe distinguir no rostoera a barba preta. Hoje não fiquei alarmada, mas curiosa, decidida a ver quem era e o que queria.Diminuí a marcha, mas também ele diminuiu a sua. Parei, e ele parou. Preparei-lhe então umaarmadilha. Há uma curva grande na estrada. Pedalei rapidamente até lá e parei, depois da curva,esperando vê-lo passar por mim, sem poder parar. Mas ele não apareceu. Voltei e olhei do outro ladoda curva. Podia ver um quilómetro e meio de estrada, mas o homem sumira. O mais extraordinárioé que não havia atalho por onde ele pudesse ter se metido.

Holmes esfregou as mãos, estalando a língua.

— O caso tem as suas particularidades — disse ele. — Quanto tempo se passou entre o momento emque virou a curva e aquele em que voltou, para olhar a estrada?

— Dois ou três minutos.

— Então, ele não poderia ter desaparecido na estrada, já que a senhora diz que não há atalho, não?

— Nenhum.

— Com certeza entrou em alguma vereda, de um lado ou de outro.

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— Não podia ser do lado das urzes, pois eu o teria visto.

— Então, por exclusão, chegamos à conclusão de que se dirigiu para a Mansão Charlington, que, peloque me consta, fica no meio de um parque, de um lado da estrada. Mais alguma coisa?

— Nada mais, sr. Holmes, a não ser que fiquei tão perplexa, que não sosseguei enquanto não vim

procurá-lo.

Holmes ficou em silêncio por algum tempo.

— Onde está seu noivo? — perguntou por fim.

— Trabalha na Midiand Electry Company, em Coventry.

— Não iria ele lhe fazer uma visi tinha de surpresa?

— Oh, sr. Holmes, como se eu não o conhecesse!

— Tem tido outros admiradores?

— Tive muitos, antes de conhecer Cyril.

— E depois?

— Há aquele odioso sr. Woodiey, se é que se pode chamar de admirador.

— Ninguém mais?

A nossa bela cliente pareceu confusa.

— Quem é ele? — perguntou Holmes.

— Oh, talvez seja imaginação minha, mas às vezes me parece que meu patrão, o sr. Carruthers, seinteressa muito por mim. Estamos sempre juntos. Acompanho-o ao piano, à noite. Ele nunca dissecoisa alguma. É um perfeito cavalheiro. Mas uma mulher sente essas coisas.

— Ah! — disse Holmes, gravemente. — Como ele ganha a vida?

— É rico.

— Tem cavalos, ou carruagens?

— Oh, não, em todo caso está bem de finanças. Mas vai à cidade duas ou três vezes por semana.Interessa-se bastante por ações de minas de ouro, da África do Sul.

— Ponha-me a par de qualquer novidade, srta. Smith. Estou muito ocupado atualmente, mas arran-jarei tempo para investigar seu caso. De qualquer maneira, não aja sem me consultar. Adeus. Espero

receber boas notícias a seu respeito.

A jovem saiu.

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— É a coisa mais natural uma jovem como essa ter admiradores — disse Holmes, puxando o cachim-bo, com ar pensativo. — Mas não namorados de bicicleta, em estradas desertas. Algum apaixonadosecreto, com certeza. Mas há, nesse caso, pormenores curiosos e sugestivos, Watson.

— O homem aparecer só naquele lugar?

— Exatamente. Nosso primeiro passo será descobrir quem mora na Mansão Charlington. Depois,qual a relação entre Carruthers e Woodiey, já que parecem tipos tão diferentes. Por que estão ambosinteressados em procurar a sobrinha de Ralph Smith? Mais uma coisa. Que espécie de casa é aquelaonde se paga por uma governanta o dobro do preço habitual, mas onde não existe um cavalo,embora a casa fique a dez quilómetros da estação? Estranho, Watson, muito estranho.

— Vai até lá?

— Não, caro Watson, vá você. Talvez seja uma intrigazinha insignificante, e não posso largar casosmais sérios, assim na dúvida. Segunda-feira, você chegará cedo a Farnham; ficará escondido perto da

charneca de Charlington; observará os fatos e agirá conforme achar acertado. Depois de ter indaga-do quais os moradores da mansão, voltará para me fazer seu relatório. E agora, caro Watson, nemmais uma palavra sobre o assunto até termos alguns pontos de apoio sólidos, com os quais possamosalcançar a verdade.

Tínhamos sabido, pela jovem, que ela costumava apanhar o trem que parte de Waterloo às novee cinquenta, de modo que saí mais cedo e apanhei o das nove e treze. Ao chegar à estação de Farnham,não foi difícil saber onde ficava a charneca de Charlington. Era impossível me enganar quanto aocenário descrito pela jovem, pois a estrada corre entre a charneca aberta, de um lado, e uma velhasebe de teixos, do outro, circundando um parque cheio de árvores magníficas. Havia um portãoprincipal, de pedra coberta de líquen, com pilares sustentando os emblemas heráldicos, mas, alémdessa entrada, notei diversos vãos na sebe, de onde saíam veredas. Não se via a casa, da estrada, mastudo lembrava tristeza e decadência.

A charneca estava coberta por douradas manchas de urzes, brilhando à luz do sol primaveril.Tomei posição atrás de uma dessas moitas, de maneira a poder ver tanto o portão da mansão comoum longo trecho de estrada de cada lado. Estava deserta, quando eu a deixei, mas então vi um ciclistase dirigindo para o lado de onde eu viera. Estava de roupa escura e tinha barba preta. Ao chegar aofim dos terrenos da Mansão Charlington, desceu da bicicleta e se enfiou com ela por um dos vãos, nasebe, desaparecendo de minha vista.

Um quarto de hora depois, surgiu novo ciclista. Dessa vez era a jovem, que vinha da estação. Vi-aolhar em volta, quando chegou àquele ponto. Segundos depois, o homem saiu do esconderijo, puloupara a bicicleta e seguiu a jovem. No largo cenário, apenas as figuras se moviam, a jovem graciosa,muito ereta na bicicleta, e o homem, inclinado sobre o guidão, com ar furtivo. Ela olhou para trás ediminuiu a marcha. Também ele diminuiu a sua. Ela parou. Ele parou imediatamente, ficando aduzentos metros do ponto onde se encontrava a srta. Smith. O próximo movimento da jovem foitão inesperado quanto enérgico. De repente, virou-se e pedalou com vigor para o lado dele. Mas ohomem foi igualmente rápido, fugindo num ápice. Então ela retomou seu caminho, olhando para afrente, não se dignando preocupar-se mais com seu silencioso acompanhante. Ele também se virara,guardando a distância, até que a curva da estrada o escondeu da minha vista.

Fiquei no meu esconderijo. Ainda bem, pois o ciclista voltou lentamente dali a pouco. Ao chegaraos portões da mansão, desceu da bicicleta. Vi-o por alguns minutos, no meio das árvores. Erguera as

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mãos e parecia ajeitar a gravata. Depois subiu de novo na bicicleta e se afastou pela alameda, nadireção da mansão. Corri pelas urzes e espiei por entre as árvores. Distingui, ao longe, a velha casacinzenta, com suas chaminés, mas a alameda corria no meio de árvores cercadas, e não vi mais nossohomem.

Pareceu-me que meu trabalho da manhã fora rendoso, e voltei, satisfeito, para Farnham. O corre-

tor de imóveis da localidade nada pôde me dizer sobre a Mansão Charlington e mandou-me procu-rar uma conhecida firma, em Pall Mall. Dirigi-me para ali, ao voltar a casa, e fui recebido comcortesia. Não, não podiam me alugar a Mansão Charlington durante o verão, pois acabara de seralugada, um mês antes. Sr. Williamson, chamava-se o inquilino.. Era um senhor de idade, respeitá-

 vel. Infelizmente nada mais podia informar, disse ele, pois a vida dos clientes não era assunto quepudesse discutir.

Sherlock Holmes ouviu com atenção o longo relatório que lhe apresentei naquela noite, mas nãorecebi a palavra de elogio que esperava e à qual teria dado tanto valor. Pelo contrário, seu rostoaustero ainda mais severo se tornou, quando ele comentou as coisas que eu fizera e as que deixara de

fazer.

— Seu esconderijo, caro Watson, deixou muito a desejar. Devia ter-se escondido atrás da sebe; dali,sim, teria podido ver de perto aquela interessante pessoa. Mas, ficando a centenas de metros dedistância, pôde me contar menos ainda do que a srta. Smith. Ela julga que não conhece o homem;eu acho que ela o conhece. Do contrário, por que haveria ele de evitar a todo custo que a jovem seaproximasse e lhe visse as feições? Você diz que ele se inclinava sobre o guidão. Pois trabalhou inuitomal. Quando o homem voltou para casa, procurou saber quem ele era e, para isso, foi procurar umafirma de corretores de imóveis, em Londres!

— O que devia ter feito então? — perguntei acaloradamente.

— Devia ter ido à taverna mais próxima. É o centro dos falatórios. Lá lhe diriam os nomes de todos,desde o do patrão até o da criada. Williamson! Não me diz nada. Se for um senhor idoso, não podeser o enérgico ciclista, que consegue escapar à atlética perseguição daquela jovem. Que ganhamoscom nossa excursão? A certeza de que a história da jovem é verídica? Nunca duvidei dela. Que háuma relação entre o ciclista e a mansão? Também nunca duvidei disso. Que o atual morador damansão se chama Williamson? Que adianta saber disso? Bom, bom, caro amigo, não fique tão depri-mido. Pouco podemos fazer até o próximo sábado, e, nesse meio tempo, procurarei investigar, eumesmo, um ou dois pontos.

Na manhã seguinte, recebemos um bilhete da srta. Smith, contando, brevemente e com exatidão,os incidentes por mim presenciados. Mas o mais importante estava no pós-escrito:

"Tenho certeza de que respeitará a minha confidência, sr. Holmes, quando lhe contar que minhaposição aqui se tornou delicada, pelo fato de o meu patrão ter me pedido em casamento. Estouconvencida de que seus sentimentos são sinceros e suas intenções, as mais dignas. Por outro lado,estou noiva. Ele aceitou a minha recusa com ar muito sério, mas delicadamente. O senhor deve, noentanto, compreender que a situação é constrangedora".

— Nossa amiga parece estar navegando em águas profundas — observou Holmes, pensativo, ao termi-

nar a carta. — O caso apresenta pontos interessantes e mais possibilidades de desenvolvimento doque a princípio me pareceu. Um dia tranquilo, mi campo, não me faria mal, e estou com vontade deir até lá hoje ã tarde, para 'experimentar uma ou duas teorias que elaborei.

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O calmo dia de Holmes no campo teve um fim singular, pois ele chegou tarde à Baker Street, comum lábio cortado e um galo na testa, além de estar com tal aspecto que poderia ter sido objeto deinvestigação da Scotiand Yard. Estava muito animado com a aventura, e riu gostosamente ao contá-la.

— Faço tão pouco exercício que é sempre um prazer praticar um pouco — disse ele. — Você não ignora

que sou perito no velho esporte inglês chamado boxe. De vez em quando, ajuda. Hoje, por exemplo,teria feito um triste papel e sofrido desagradáveis consequências, se não fosse o boxe.

Pedi-lhe que me contasse o que acontecera.

— Encontrei a taberna de que lhe falei e ali fiz perguntas discretas. Fiquei ao balcão, e o dono dataverna, sujeito loquaz, deu-me todas as informações que eu queria. Williamson é um homem debarba branca e mora na mansão, com poucos empregados. Murmura-se que é ou foi padre, mas umou dois pormenores de sua estada na mansão me pareceram pouco eclesiásticos. Já indaguei a esserespeito no lugar competente e fiquei sabendo que houve um padre com esse nome, cuja carreira foi

singularmente negra. O dono da taverna me contou que o homem sempre recebe visitas nos fins desemana (gente do barulho, senhor, disse ele), principalmente um homem de bigode ruivo, chamado Woodiey, que nunca deixa de vir. Tínhamos chegado a esse ponto, quando entra na sala. . . imaginequem?... o próprio sujeito, que estivera bebendo cerveja na saleta e ouvira a conversa toda. Quem euera? O que queria? Que significavam aquelas perguntas? Falava fluentemente, e seus adjetivos eram

 vigorosos. Acabou por me dar um soco, ao qual não pude me esquivar completamente. Os minutosseguintes foram deliciosos. Mandei-lhe um direto com a esquerda. Saí no estado que vê, mas o sr.

 Woodiey teve de ir para casa de carro. Acabou desse modo o meu dia no campo, e devo confessarque, por mais agradável que tenha sido, não foi muito mais proveitoso do que o seu.

Na quinta-feira, recebemos outra carta da srta. Smith:

"Vai ficar admirado, sr. Holmes, por saber que vou deixar a casa do sr. Carruthers. Nem mesmo oalto salário poderá compensar o constrangimento gerado pela situação. No sábado, irei para a cidadee não voltarei mais para cá. O sr. Carruthers tem agora uma charrete, de modo que o perigo naestrada, se é que houve perigo, deixou de existir. Quanto ao motivo que me leva a partir, não é tantoo pedido de casamento feito pelo sr. Carruthers, como o reaparecimento do odioso sr. Woodiev. Elesempre foi detestável, mas agora está pior, pois parece que sofreu um acidente e está desfigurado. Vi-o pela janela, mas felizmente não nos encontramos. Ele teve uma longa conversa com o sr. Carruthers,e este depois me pareceu muito excitado. Woodiey deve estar hospedado nas redondezas, pois nãoficou aqui. Apesar disso, vi-o de relance novamente, hoje de manhã, correndo furtivamente pelas

moitas. Eu preferia ver um animal selvagem, solto por aí, a encontrar esse homem. Detesto-o etemo-o mais do que gostaria de confessar. Como é que o sr. Carruthers pode suportar tal criatura,por um momento que seja? Felizmente meus aborrecimentos terminarão no sábado."

— Assim espero, Watson, assim espero — disse Holmes gravemente. — Há uma intriga em voltadaquela jovem, e é nosso dever evitar que a incomodem nessa última viagem. Acho que devemos irambos para lá no sábado, para que esta curiosa investigação não tenha um fim desagradável.

Confesso que, até então, eu não levara o caso a sério, pois me parecera mais bizarro e grotesco doque perigoso. Que um homem espere uma bela donzela e a siga, não é novidade em parte alguma,

mas o fato de nunca procurá-la e mesmo fugir à sua aproximação indicava que não era adversáriomuito perigoso. Quanto a Woodiey, o caso era diferente, mas, a não ser numa ocasião, não importu-nara a nossa cliente, e agora visitava Carruthers sem impor à jovem a sua presença. O homem de

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bicicleta era, sem dúvida, um dos membros das reuniões dos fins de semana de que falara o taverneiro.Mas é impossível saber quem era ou o que desejava. Somente a seriedade de Holmes e o fato demeter um revólver no bolso me indicaram que o caso poderia terminar em tragédia.

Uma noite de chuva fora seguida por uma bela manhã, e os campos de urzes pareciam ainda maisbelos aos olhos de quem estava habituado aos tons cinzentos da velha Londres. Holmes e eu cami-

nhamos pela estrada larga, respirando o ar fresco da manhã e ouvindo o chilrear dos pássaros. Deuma elevação da estrada, vimos a mansão no meio de velhos carvalhos, os quais, por mais velhos quefossem, eram mais novos do que a casa que circundavam. Holmes mostrou-me a grande extensão daestrada. Ao longe, vimos uma mancha preta, parecendo um veículo que vinha na nossa direção.Holmes soltou uma exclamação de impaciência.

— Eu tinha dado uma margem de meia hora — disse ele. — Se for a charrete da jovem, é porque vaiapanhar o trem mais cedo. Receio, caro Watson, que ela passe por Charlington antes que possamosapanhá-la.

Depois de termos passado a elevação, não vimos mais o veículo, mas caminhamos com tal rapidez,que comecei a notar os efeitos da minha vida sedentária e tive de ficar para trás. Mas Holmes estavasempre treinado e tinha uma reserva inesgotável de energia. Seu passo vivo não se abrandou. Derepente, quando se encontrava cem metros à minha frente, parou, erguendo a mão num gesto dedesespero. No mesmo momento, uma charrete vazia, com o cavalo a meio galope, de rédeas soltas,apareceu na curva, vindo na nossa direção.

— Tarde demais, Watson, tarde demais! — disse Holmes, enquanto eu corria, ofegante, para o seulado. — Idiota que fui, em não ter pensado num trem mais cedo! Houve um rapto! Assassinato, Deussabe o quê! Bloqueie a estrada, pare o cavalo! Isso mesmo. Agora pule, e vamos ver se consigo repararo meu erro.

Pulamos para a charrete. Depois de fazer o cavalo virar, Holmes chicoteou-o, e continuamos pelaestrada. Quando fizemos a curva, vimos à nossa frente a vasta extensão de estrada entre a mansão ea charneca. Segurei o braço de Holmes.

— Lá está o homem! — exclamei.

Um ciclista solitário vinha na nossa direção. Estava de cabeça baixa, com os ombros para a frente,pondo nos pedais toda a força que possuía. Voava como um corredor. De repente, ergueu o rosto debarba cerrada e parou, saltando da bicicleta. A barba negra contrastava singularmente com a palidez

do rosto, e os olhos brilhavam como se tivesse febre.

— Ei, parem! — gritou, obstruindo a estrada com a bicicleta. — Onde arranjaram essa charrete? Pare,homem! — berrou, tirando um revólver do bolso. — Pare, ou, por Deus, meto uma bala no cavalo!

Holmes atirou-me as rédeas e desceu.

— Você é o homem que desejamos ver. Onde está a srta. Violet Smith? — perguntou, com sua vozclara, incisiva.

— É o que lhe pergunto. Estão na charrete dela. Devem saber onde ela está.

— Encontramos a charrete na estrada, vazia. Estava tentando salvá-la.

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— Deus do céu, Deus do céu! Que fazer? — exclamou o homem, desesperado. — Agarraram-na. Omiserável Woodiey e o pseudo padre. Venha, venha, se realmente é amigo dela. Fique comigo, e nósa salvaremos, mesmo que meu cadáver fique no parque de Charlington.

Correu como um desesperado, de revólver em punho. Holmes seguiu-o. Deixando o cavalo pas-tando do lado da estrada, acompanhei meu amigo.

— Foi por aqui que entraram — disse ele, mostrando as pegadas no caminho enlameado. — Ei! Pareum minuto. Que é isto aqui na moita?

Vimos um rapaz de polainas, de dezessete anos, mais ou menos. Estava de costas, com os joelhospara cima, com um ferimento na cabeça. Inconsciente, mas vivo. Ao examinar o corte, vi que o ossonão fora atingido.

— É Peter, o empregado — disse o desconhecido. — Era quem guiava a charrete. Os miseráveis opuxaram para fora, ferindo-o. Vamos deixá-lo aqui. Por enquanto, nada podemos fazer por ele, mas

talvez tenhamos tempo de salvá-la da pior sorte que pode ter uma mulher!

Corremos desesperadamente pela vereda, que se insinuava por entre as árvores. Chegamos àsmoitas que circundavam a casa. Holmes parou.

— Não foram para casa. Aqui estão as marcas, à esquerda, ao lado dos loureiros. Ah, eu bem disse!

Nisso ouvimos um agudo grito de mulher, grito horrorizado, saindo da moita à nossa frente. Mascessou subitamente, como se a pessoa se engasgasse.

— Por aqui, por aqui!... Estão na clareira — disse o desconhecido, metendo-se pelas moitas. — Ah, oscovardes! Sigam-me, senhores. Tarde demais, tarde demais, por todos os deuses!

Entramos de repente num belo gramado, cercado por árvores velhas. Na extremidade, à sombrade um grande carvalho, havia um singular grupo de três pessoas. Uma mulher, a nossa cliente, pálidae a ponto de desmaiar, amordaçada. Â sua frente, um rapaz de aparência selvagem, bigode ruivo,pernas entreabertas, um braço erguido, segurando um chicote com a outra mão, numa atitude detriunfante desafio. Entre eles, um homem idoso, de barba grisalha, com uma sobrepeliz sobre umterno leve de casimira, acabara evidentemente de celebrar um casamento, pois enfiava no bolso olivro de orações quando surgimos, e bateu nas costas do sinistro noivo, felicitando-o jovialmente.

— Estão casados! — murmurei.

— Venham — disse nosso guia. — Venham!

Correu pelo gramado, com Holmes e eu no seu encalço. Quando nos aproximamos, a jovemcambaleou, procurando apoiar-se no tronco da árvore. Williamson, o ex-padre, inclinou-se diante denós com irónica cortesia, e o brutal Woodiey avançou com um grito de selvagem alegria.

— Pode tirar a barba, Bob — disse ele, — Reconheço-o muito bem. Você e seus amigos chegaram atempo de me permitir que os apresente à sra. Woodiey.

A resposta de nosso guia foi singular. Arrancou a barba que lhe servira de disfarce e atirou-a aochão, deixando-nos ver um rosto comprido, pálido e bem-barbeado. Ergueu o revólver, apontando-o

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para o miserável Woodiey, que avançava agitando o perigoso chicote.

— Sim, sou Bob Carruthers e farei com que esta mulher obtenha justiça, nem que eu vá para a forca.Eu lhe disse o que faria se a incomodasse, e, por Deus, cumprirei minha palavra.

— Chegou tarde demais. Ela é minha esposa!

— Não, é sua viúva.

O revólver estalou, e vi sair sangue do peito de Woodley, que soltou um grito, deu uma reviravoltae caiu de costas, com o rosto terrivelmente pálido. O velho, ainda de sobrepeliz, rompeu numatorrente de maldições como jamais ouvi, e puxou um revólver. Mas, antes que pudesse erguê-lo, viuo revólver de Holmes apontado para ele.

— Basta! — disse Holmes. — Largue essa arma! Watson, apanhe-a! Aponte-a para a cabeça do sujeito. Você, Carruthers, dê-me esse revólver. Basta de violência. Vamos, dê-me!...

— Quem é o senhor, então?

— Chamo-me Sherlock Holmes.

— Deus de piedade!

— Vejo que me conhece de nome. Representarei a polícia oficial, até que ela chegue. Aqui, você! —gritou para o assustado empregado que aparecia à beira do gramado. — Leve este bilhete o maisdepressa possível a Farnham.

Holmes rabiscou umas palavras no caderno de notas.

— Entregue isto ao superintendente, na delegacia. Até que ele venha, vejo-me obrigado a mante-lospresos.

A personalidade forte de Holmes dominava a trágica cena. Éramos todos como bonecos nas suasmãos. Williamson e Carruthers levaram para dentro de casa o ferido, e eu dei o braço à assustadajovem. O ferido foi colocado na cama. A pedido de Holmes, examinei-o. Fui depois contar a meuamigo o resultado, na velha sala de jantar cheia de tapeçarias, onde o encontrei com os dois prisio-neiros à sua frente.

— O homem viverá — disse eu.

— O quê! — exclamou Carruthers, pulando da cadeira. — Vou lá em cima acabar com ele. Quer dizerque aquela jovem, aquele anjo, vai ficar amarrada ao turbulento Jack Woodiey para o resto da vida?

— Não precisa se preocupar com isso — disse Holmes. — Há duas razões que a impedem de ser esposadaquele miserável. Em primeiro lugar, creio que podemos contestar o direito do sr. Williamson decelebrar o casamento.

— Recebi ordens sacras — disse o canalha.

— E foi, depois, expulso — declarou Holmes.

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— Uma vez padre, continua-se padre.

— Creio que não. E que me diz da licença?

— Tínhamos tirado uma licença de casamento. Está aqui no meu bolso.

— Então, conseguiu-a por fraude. De qualquer maneira, um casamento onde houve coação não é válido: é, sim, um crime sério, como você não tardará em descobrir. Terá tempo de refletir sobre issonos próximos dez anos, se não me engano. Quanto a você, Carruthers, teria sido melhor se tivesseconservado o revólver no bolso.

— Começo a achar que tem razão, sr. Holmes, mas, quando pensei no cuidado que tivera para prote-ger a jovem (pois eu a amava, sr. Holmes, e pela primeira vez soube o que era amor), fiquei louco,lembrando-me de que ela estava à mercê do maior bruto e canalha da África do Sul, homem cujonome inspira terror de Kimberley a Johannesburg. O senhor talvez não acredite, sr. Holmes, masdesde que a jovem veio trabalhar em minha casa, nunca a deixei passar por aqui, onde sabia que esses

bandidos a espreitavam, sem a seguir na minha bicicleta, para protegê-la. Usando barba postiça,ficava longe, para que não me reconhecesse, pois ela é uma moça decidida e não teria ficado noemprego se soubesse que eu a seguia pelas estradas.

— Por que não lhe falou do perigo?

— Porque ela me abandonaria, e eu não podia suportar tal ideia. Mesmo que não me amasse, era-meum prazer ver aquela figurinha bonita pela casa e ouvir o som de sua voz.

— Pois bem, o senhor chama a isso amor, mas eu o considero egoísmo, sr. Carruthers — observei.

— Talvez as duas coisas. De qualquer maneira, não pude deixá-la partir. Além do mais, com esseshomens por aqui, era preciso que alguém velasse por ela. Depois, quando chegou o cabograma, tivecerteza de que agiriam.

— Que cabograma?

Carruthers tirou um papel do bolso.

— Aqui está! O velho morreu.

— Hum!... — disse Holmes. — Creio que agora vejo claramente a situação, e compreendo que essamensagem tenha feito com que agissem, como você disse. Mas, enquanto esperamos, pode me con-tar o que sucedeu.

O velho de sobrepeliz rompeu de novo numa torrente de palavras.

— Com os diabos, Carruthers, se nos acusar, farei com você o que você fez a Woodiey! Pode se babarpela moça à vontade, isso é lá com você, mas, se acusar seus companheiros, fará a maior asneira desua vida.

— Vossa Reverendíssima não precisa ficar excitado — disse Holmes, acendendo um cigarro. — O casoé claro, e só peço explicações para satisfazer a minha curiosidade. Em todo caso, se não quiserem mecontar, fica o discurso por minha conta, e verão que probabilidades tê.m de me ocultar os seus

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segredos. Em primeiro lugar, os três chegaram da África: você, Williamson; você, Carruthers; e Woodiey.

— Primeira mentira — vociferou o velho. — Eu não conhecia esses sujeitos, há dois meses, e nuncaestive na África, de modo que pode engolir essa, seu intrometido!

— Ele está dizendo a verdade — declarou Carruthers.

— Bom, bom, então vieram só dois. O reverendo é artigo nacional. Vocês tinham conhecido RalphSmith na África. Sabiam que não viveria muito. Descobriram que sua sobrinha lhe herdaria a fortu-na. Que tal, hein?...

Carruthers inclinou afirmativamente a cabeça, e o velho blasfemou.

— Ela era o parente mais próximo, e vocês sabiam que ele não faria testamento — continuou Holmes.

— Não sabia ler nem escrever — informou Carruthers.

— Então, vocês dois vieram para cá e procuraram a jovem. Â ideia era que um de vocês casasse comela e o outro teria parte do dinheiro. Por um motivo qualquer, Woodiey foi escolhido para noivo.Que tal?

— Isso mesmo. Jogamos a bordo, e ele ganhou.

— Compreendo. Você tomou a jovem á seu serviço, e Woodiey devia cortejá-la em sua casa. A srta.Smith viu que bêbado brutal ele era, e não quis saber de nada. Nesse meio tempo, seus planos forampor água abaixo, pelo fato de você se apaixonar por ela. Não lhe foi mais possível suportar a ideia de

 vê-la nas mãos daquele canalha.

— Por todos os santos, foi isso mesmo!

— Brigaram. Ele saiu, furioso, e fez seus próprios planos.

— Parece-me, Williamson, que não temos muito que contar a esse cavalheiro — disse Carruthers, comum riso amargo. — Sim, brigamos, e ele me derrubou. Estamos quites, nesse ponto. Depois, perdi-ode vista. Foi quando ele se ligou a esse padre decaído. Descobri que moravam juntos nesta casa, naestrada por onde ela devia passar para ir para a estação. Comecei a zelar pela jovem, pois sabia que

eles preparavam algum ato diabólico. Visitava-os de vez em quando, pois estava ansioso por saberquais eram seus planos. Há dois dias, Woodiey me apareceu em casa com este cabograma, onde se liaque Ralph Smith falecera. Quis saber se eu estava disposto a continuar com o nosso antigo plano.

Respondi que não. Perguntou-me se eu queria me casar com a jovem e dar-lhe uma parte dodinheiro. Respondi que o faria com prazer, mas que ela não me aceitaria. Ele replicou:

"Vamos fazer com que se case primeiro, e, depois de uma semana, ela verá as coisas sob outroprisma". Respondi que não queria saber de violências. Ele saiu blasfemando, como homem semmoral que é, jurando que a possuiria. A srta. Smith ia me deixar esta semana definitivamente. Eu

tinha uma charrete para levá-la à estação, mas estava tão preocupado que a acompanhei de bicicleta.Contudo, a jovem saíra mais cedo, e, antes que eu pudesse alcançá-la, o mal estava feito. O primeiroaviso foi ver os senhores aparecerem na charrete.

Page 57: Sherlock Holmes - Antologia

7/30/2019 Sherlock Holmes - Antologia

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Holmes ergueu-se, atirando a ponta do cigarro na lareira.

— Fui muito obtuso, Watson — disse ele. — Quando você me disse que viu o ciclista arrumar a gravata,ao entrar na moita, só esse pormenor devia ter-me esclarecido tudo. De qualquer maneira, devemosnos congratular por este caso curioso e, sob certos aspectos, único. Vejo três policiais na alameda, eestou satisfeito por ver que o rapazinho consegue acompanhar-lhes o passo, de modo que parece que

nem ele nem o suposto noivo ficarão permanentemente prejudicados pela aventura desta manhã.Creio que, como médico, Watson, você poderá procurar a srta. Smith e dizer-lhe que, se se sentirbem, estamos prontos a levá-la para a casa de sua mãe. Se achar que ela não está bem, poderá lhedizer que pretendemos telegrafar para certo engenheiro eletrônico nas Middiands, e isso provavel-mente completará a sua cura. Quanto ao senhor, sr. Carruthers, creio que fez o possível para sereabilitar de sua participação num plano diabólico. Aqui está o meu cartão, cavalheiro, e, se meudepoimento puder ajudá-lo, no tribunal, estarei à sua disposição.

No torvelinho das nossas atividades, muitas vezes tem sido difícil para mim, como o leitor prova- velmente já observou, terminar minhas narrativas e apresentar os pormenores finais que os curiosos

poderiam desejar. Cada caso tem sido o prelúdio de outro, e, uma vez passada a crise, os atoresdesaparecem para sempre da nossa vida. Apesar disso, encontro uma pequena anotação, no fim domanuscrito deste caso, onde leio que a srta. Violet Smith herdou uma grande fortuna e é agoraesposa de Cyril Morton, o maior sócio da firma Morton and Kennedy, famosos eletricistas. Williamsone Woodiey foram julgados por rapto e assalto, o primeiro tendo sido condenado a sete anos e oúltimo, a dez.

Quanto ao destino do sr. Carruthers, nada sei, mas tenho certeza de que a sua participação no casonão foi vista com grande severidade pelo tribunal, uma vez que Woodiey tinha a reputação de ser umperigoso bandido. Creio que alguns meses bastaram para satisfazer a justiça.