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Brasília a. 41 n. 163 jul./set. 2004 193 Walter Nunes da Silva Júnior 1. Esclarecimentos iniciais Conquanto existam vários escritos sobre as hipóteses de admissibilidade de inter- ceptação das comunicações telefônicas, não se vê preocupação doutrinária quanto à in- vestigação científica sobre os contornos do sigilo da correspondência, a fim de esclare- cer pontos que recalcitram em permanecer obscuros. Alguns processualistas penais, de forma simplista, têm manifestado o en- tendimento de que, proibida a violação de cor- respondência, ilícita também a sua interceptação ou apreensão (cf. MIRABETE, 2002, p. 320; TOURINHO FILHO, 1990, p. 319), tratando da referida garantia como se ela estivesse plasmada em um direito fundamental ab- soluto, que não enxerga limites. O pensamento central desenvolvido ao longo deste trabalho segue a orientação fi- losófica segundo a qual não há direito ab- soluto, por mais fundamental que ele seja, O tratamento constitucional do sigilo da correspondência Walter Nunes da Silva Júnior é Juiz Federal. Sumário 1. Esclarecimentos iniciais. 2. Escorço his- tórico do sigilo das comunicações no Direito brasileiro. 3. Alcance da expressão sigilo de correspondência. 4. O sigilo da correspondên- cia no Direito estrangeiro. 5. Assertivas que infirmam o caráter absoluto do sigilo da cor- respondência. 5.1. Garantias constitucionais como limitações ao direito de punir do Estado. 5.2. Os direitos fundamentais são heterogêne- os e se autolimitam. 5.3. Interpretação sistêmi- ca. 6. Conclusão.

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Walter Nunes da Silva Júnior

1. Esclarecimentos iniciais

Conquanto existam vários escritos sobreas hipóteses de admissibilidade de inter-ceptação das comunicações telefônicas, nãose vê preocupação doutrinária quanto à in-vestigação científica sobre os contornos dosigilo da correspondência, a fim de esclare-cer pontos que recalcitram em permanecerobscuros. Alguns processualistas penais,de forma simplista, têm manifestado o en-tendimento de que, proibida a violação de cor-respondência, ilícita também a sua interceptaçãoou apreensão (cf. MIRABETE, 2002, p. 320;TOURINHO FILHO, 1990, p. 319), tratandoda referida garantia como se ela estivesseplasmada em um direito fundamental ab-soluto, que não enxerga limites.

O pensamento central desenvolvido aolongo deste trabalho segue a orientação fi-losófica segundo a qual não há direito ab-soluto, por mais fundamental que ele seja,

O tratamento constitucional do sigilo dacorrespondência

Walter Nunes da Silva Júnior é Juiz Federal.

Sumário1. Esclarecimentos iniciais. 2. Escorço his-

tórico do sigilo das comunicações no Direitobrasileiro. 3. Alcance da expressão sigilo decorrespondência. 4. O sigilo da correspondên-cia no Direito estrangeiro. 5. Assertivas queinfirmam o caráter absoluto do sigilo da cor-respondência. 5.1. Garantias constitucionaiscomo limitações ao direito de punir do Estado.5.2. Os direitos fundamentais são heterogêne-os e se autolimitam. 5.3. Interpretação sistêmi-ca. 6. Conclusão.

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pois eles são herterônomos e autolimitam-se entre si, para que seja possível a convi-vência harmônica. Tem-se, assim, que, mes-mo quando a Constituição não faz qualquerressalva, deve-se entender que a garantiaconstitucional não é absoluta, uma vez queos direitos fundamentais têm limites ima-nentes ou implícitos.

Na dedução lógica da exposição, em pri-meiro momento, faz-se o bosquejo históricodo sigilo das comunicações no Direito bra-sileiro que, a despeito do assegurado em to-das as nossas Constituições, tendo mereci-do destaque já na Carta Imperial de 1824,nunca foi previsto como uma garantia deordem absoluta, sempre sendo admissível asua restrição no âmbito criminal. Em passoseguinte, faz-se uma necessária digressãopara precisar o alcance da expressão sigiloda correspondência, uma vez que há posi-ção do Supremo Tribunal Federal fazendo adistinção entre carta e encomenda, no senti-do de excluir esta da proteção constitucio-nal.

A fim de ter uma visão do tratamento dis-pensado ao tema no Direito Comparado, des-tinou-se o tópico 4 para analisar as Cons-tituições e as doutrinas da França, Alema-nha, Itália, Espanha e Portugal, além dajurisprudência de alguns desses países. Emvez de seguir o critério adotado porMIRANDA1, de que quatro são as famíliasconstitucionais da atualidade – inglesa,norte-americana, francesa e soviética –, e daífazer o estudo comparatista levando em con-sideração a posição de cada um desses paí-ses, preferiu-se eleger como paradigma jus-tamente aqueles países cujas Constituiçõesinfluenciaram fortemente o constituinte de1988. Nesse estudo comparativo, observa-se que os países analisados não fazem dis-tinção entre o sigilo da correspondência e oda comunicação telefônica e, muito emboraos coloque como direitos fundamentais, es-tabelecem limites para ambas as formas detransmissão de mensagem.

No último momento, são expostas as ra-zões pelas quais não é razoável defender

que a correspondência é insusceptível deinterceptação ou que o seu segredo não podeser revelado, porquanto nem mesmo o direi-to à vida, o direito fundamental em torno doqual gravitam todos os demais, encerra umagarantia constitucional absoluta, na medi-da em que, no exercício do poder de polícia,o agente do Estado pode, para a manuten-ção da segurança pública, usar de força ca-paz de resultar na morte do autor de com-portamento ilícito. Demonstra-se que a ju-risprudência do Supremo Tribunal Federalé calcada no fundamento de que, no nossosistema jurídico, não há direito fundamen-tal absoluto e que a Corte Suprema já se pro-nunciou sobre a constitucionalidade do art.41, parágrafo único, da Lei de ExecuçãoPenal, que autoriza o administrador peni-tenciário restringir o sigilo da correspon-dência do detento.

2. Escorço histórico do sigilo dascomunicações no Direito brasileiro

O constituinte de 1988, repetindo idéiaconstitucional anterior, asseverou, no art.5º, inciso X, que são invioláveis a intimidade,a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,para acrescentar, no inciso XII, que é invio-lável o sigilo da correspondência e das comuni-cações telegráficas, de dados e das comunicaçõestelefônicas, salvo no último caso, por ordem ju-dicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabele-cer para fins de investigação criminal ou instru-ção processual penal. Manteve-se, assim, a tra-dição de nosso Direito Constitucional quereside em estatuir o sigilo da correspondên-cia como direito fundamental da pessoa.

Com efeito, o sigilo da correspondênciavem sendo constitucionalmente assegura-do desde a Constituição Política do Impériodo Brasil, de 1824, pois nela está expresso,em seu art. 179, 27, que o segredo das cartas éinviolável2”. Regulamentando o princípioconstitucional, o legislador do Código Cri-minal do Império, nos arts. 215, 216, 217 e218, entendeu que se tratava de direito rela-tivo, de modo que não vedou a utilização

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das missivas no processos criminais, senãoaquelas tiradas do correio maliciosamente semautorização do destinatário, ou da mão do porta-dor particular, por qualquer maneira que seja[...] (ALMEIDA JÚNIOR, 1960, p. 65).

O tratamento constitucional sobre o si-gilo da correspondência não sofreu altera-ção de conteúdo com as Constituições de1891 e de 1934, tendo ambas disciplinado amatéria com enunciado idêntico – arts. 72,§ 18, e 113, 8, respectivamente – ao dizerque é inviolável o sigilo da correspondência. ACarta de 1937, com seu cunho ditatorial,assegurava, no art. 122, 6, a inviolabilidadedo domicílio e da correspondência, salvo as ex-ceções previstas em lei, deixando expressa,aqui, a possibilidade de que a garantia vies-se a ser quebrada, conquanto prevista a hi-pótese em lei ordinária. Sob a batuta daConstituição de 1937, veio a lume o atualCódigo de Processo Penal, que, no art. 233,tornou defesa a admissibilidade das cartasparticulares como prova apenas quandointerceptadas ou obtidas por meios criminosos.

A Constituição de 1946, que represen-tou a redemocratização do País, no art. 141,§ 6º, dizia que é inviolável o sigilo da corres-pondência, não prevendo nenhuma ressalvacomo fizera a de 1937, mas, mesmo assim,durante a sua vigência, não se questionou aadequação do art. 233 do Código de Proces-so Penal com a nova ordem constitucional.Na época, o entendimento do Supremo Tri-bunal Federal era até mais elástico, na me-dida em que admitia a quebra do sigilo dacorrespondência até mesmo para fins nãopenais, como se colhe da análise do acór-dão no recurso em mandado de segurançanº 11.274, julgado em 27.11.63, lavrado peloentão Ministro Evandro Lins e Silva, queentendeu lícito o exame da correspondên-cia comercial por meio de agentes fiscais3.

Mantendo a tradição do nosso Direito, aCarta de 1967, com a Emenda nº 1, de 1969,deixou estampado, no art. 153, § 9º, que éinviolável o sigilo da correspondência e das co-municações telegráficas e telefônicas, trazendocomo novidade apenas a inserção das co-

municações telegráficas e telefônicas comogarantias constitucionais. A despeito doenunciado constitucional em exame, nãohavia dúvidas quanto à possibilidade de ascartas particulares serem interceptadas ouobtidas, a fim de que fossem utilizadas comoprova em processo criminal, ressalvando-se apenas a rejeição quando obtidas pormeios ilícitos. O art. 233 do Código de Pro-cesso Penal, por conseguinte, durante todoesse tempo, sempre foi aceito sem maiorescontestações.

Todavia, como se observa da redação doart. 5º, inciso XII, da Constituição de 1988, adicção normativa constitucional atual refe-rente ao sigilo das comunicações, a par deagregar à garantia do sigilo as comunica-ções de dados, fez a ressalva da possibili-dade de limitar esse direito fundamental nashipóteses e na forma que a lei estabelecer. Até aínão se tem nenhuma inovação de montamaior, todavia, tal como redigida a ressal-va, em interpretação literal, o exegeta é leva-do a concluir que a exceção se dirige apenasàs comunicações telefônicas, o que implicareconhecer, nessa linha de raciocínio, queas outras formas de comunicação encon-tram-se protegidas de forma absoluta, demodo que em nenhuma hipótese podem elasser objeto de interceptação ou de revelaçãodo conteúdo, salvo com autorização daspessoas envolvidas diretamente na relação.Nessa ordem de idéias, o sigilo da corres-pondência seria absoluto, não sendo admis-sível, em nenhuma hipótese, a quebra dessagarantia constitucional.

3. Alcance da expressão sigilo dacorrespondência

Antes de passar a esmiuçar o que se en-tende por correspondência, cabe realçar que,para se tornar efetiva a garantia de sigilodesse meio de comunicação, a Constituição,no art. 21, X, confere à União a competênciaexclusiva para a prestação do serviço pos-tal, atribuição a ser exercida pela adminis-tração direta ou por delegação. O monopó-

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lio do serviço postal, como forma de tornarefetiva a garantia do sigilo da correspon-dência, como não poderia deixar de ser,igualmente mereceu a atenção dos constitu-intes nas constituições brasileiras pretéri-tas, caracterizando-se como poder-deverconferido à União, em monopólio estatal.Consoante magistério haurido do constitu-cionalista FERREIRA (1989, p. 239), o mo-nopólio do Estado a respeito do serviço decorreio vem desde 1797. Mais adiante, acres-centa o renomado doutrinador que o Brasiladeriu a diversos atos e convenções concer-nentes ao regime postal, mencionando en-tre eles: o Tratado de Berna, de 1874, peloDecreto nº 6.581, de 25.05.1877; a Conven-ção Postal Universal de Paris, pelo Decretonº 7.229, de 29.3.1879; a Convenção PostalUniversal de Washington, pelo Decreto 531,de 17.12.1906, além de outras ConvençõesPostais, como a de Roma de 1906, a de Ma-dri de 1920, a Pan-Americana de 1921 e a deEstocolmo em 1924.

CRETELLA JÚNIOR (1990), em comen-tários à Constituição de 1988, analisando otratamento dispensado pelas Constituiçõesao assunto, afirma que

“A Constituição de 1891, art. 34,15, falava, tão-só, em ‘legislar sobreserviço de correios e telégrafos nacio-nais’. A Constituição de 1934, art. 5o,VII, preferiu a fórmula ‘manter o ser-viço de correio’ e, no mesmo sentido,foi a orientação da Carta de 1937, art.15, VI. A Constituição de 1946, art. 5o,XI, é precisa ao determinar: ‘manter oserviço postal e o Correio Aéreo Naci-onal’.”

Registre-se, ainda, que a ConstituiçãoFederal de 1967, no inciso XII do art. 8o, dei-xou expresso competir à União Federal, ape-nas, manter o serviço postal e o correio aéreonacional. A Constituição em vigor, repetin-do a idéia da anterior, expôs, no art. 21, X,ser da competência da União manter o servi-ço postal e o correio aéreo nacional.

Desse modo, reconhecer-se-ia que aUnião Federal detém, por desejo dos consti-

tuintes, o poder-dever ou dever-poder de exer-cer os serviços de correio que interessam atodo o grupo social. A atividade postal, emsua essência, não merece a consideraçãopelo constituinte pelo fato de constituir-seem elemento de integração nacional, sendorelevante a sua disciplina por ordem de se-gurança nacional e por se tratar de serviço derelevante interesse coletivo, principalmentetendo em conta a necessária preservação dosigilo das correspondências, mas tambémem virtude de compromissos internacionaisassumidos pelo Governo brasileiro peranteEstados estrangeiros, pois é espécie de ser-viço que extrapola os limites internos dospaíses, transformando-se em questão afetaà ordem internacional.

Outrora, a União Federal mantinha esseserviço por meio do Departamento de Cor-reios e Telégrafos, órgão sem personalidadejurídica, integrante do Ministério da Viaçãoe Obras Públicas. Posteriormente, o Decre-to-Lei nº 509, de 20.03.69, criou a EmpresaBrasileira de Correios e Telégrafos – ECT,empresa pública federal de personalidadejurídica de Direito Privado, vinculada aoMinistério das Comunicações.

O serviço postal, prestado pela EmpresaBrasileira de Correios e Telégrafos – ECT,em virtude de delegação de competência,encontra-se, hodiernamente, regulado naLei no 6.538, de 22 de junho de 1978, e noDecreto no 83.858, de 15 de agosto de 1979.Não é gratuito, mas sim pago pelo usuáriopor meio de uma tarifa – preço público –cobrada com a venda do selo que deve estarestampado no documento postal.

Mas, o que é correspondência, enquantoobjeto jurídico da tutela constitucional? Emcompasso com a Lei nº 6.538/78 (art. 9º), omonopólio do serviço postal confiado à ECTse circunscreve a três atividades: a) distri-buição de carta e cartão-postal; b) distribui-ção de correspondência agrupada; e c) emis-são de selo.

De qualquer forma, impõe-se definirquais os papéis que se inserem na qualifica-ção de carta, cartão-postal ou correspondência

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agrupada. O legislador, no desiderato de es-coimar divergência, em interpretação autên-tica, no art. 47 do Diploma Legal em referên-cia, assere:

“CARTA – objeto de correspon-dência, com ou sem envoltório, sob aforma de comunicação escrita, de na-tureza administrativa, social, comer-cial, ou qualquer outra, que contenhainformação de interesse específico dodestinatário.

CARTÃO-POSTAL – objeto de cor-respondência de material consisten-te, sem envoltório, contendo mensa-gem e endereço.

CORRESPONDÊNCIA AGRUPA-DA – reunião, em volume de objetosda mesma ou de diversas naturezas,quando, pelo menos um deles, for su-jeito ao monopólio postal, remetidosa pessoas jurídicas de direito públicoou privado e/ou suas agências, fili-ais ou representantes.”

J. CRETELLA JÚNIOR (1990, p. 1364),imiscuindo-se no assunto, entende que o

“serviço postal abrange o recebimen-to, a expedição, o transporte e a entre-ga em domicílio, colocada à disposi-ção do destinatário nas próprias de-pendências do Correio, de (a) corres-pondência (carta, cartão-postal, im-presso, ecograma), (b) encomendas ouobjetos, valores (dinheiro, ordem depagamento, recebimento de tributos,prestações, contribuições e obrigaçõespagáveis à vista).”

Agrega CRETELLA JÚNIOR (1990) quenão existe infração à Constituição o serviço pos-tal do Estado-membro para a própria correspon-dência, o mesmo ocorrendo com o Município, como Distrito Federal e com os Territórios. Dentrodessa linha de idéias, defende também nãoconstituir infração o serviço postal próprioou interno, consistente na comunicaçãoepistolar na empresa da matriz para as fili-ais, a exemplo do que se verifica com diver-sas editoras, que transportam livros de umaloja para outra.

Noutro passo, sustenta que se encontraexcluído, ainda, do monopólio o serviçopostal quando o expedidor, pessoalmente oupor empregado seu, nos negócios de sua econo-mia, efetua o transporte.” Nesse contexto, as-severa que a correspondência comercial bancá-ria, compreendendo manuscritos e impressos, estáexcluída do monopólio postal, salvo quando ascorrespondências estiverem fechadas em formade carta. (CRETELLA JÚNIOR, 1990).

Por fim, ao analisar a definição de cartano art. 47 da Lei n º 6.538/78, deduz que s emmensagem ou comunicação escrita entre “reme-tente” e “destinatário”, inexiste carta ou missi-va. Assim, títulos, valores e documentos nãoconfiguram a “carta”. (CRETELLA JÚNIOR,1990, p. 1368).

No apreciar embargos infringentes inter-postos pela Epatil do ABC – Prestação deServiços Ltda – empresa que fez a consultaao ínclito Professor Celso Bastos –, o Egré-gio Tribunal Regional Federal da QuartaRegião, por maioria de votos, tendo comorelator funcionado o Juiz Ari Pargendler,decidiu que se compreende no monopóliopostal toda espécie de comunicação de ne-gócios, de débito pela prestação de serviços,de vencimentos de obrigações, ou seja, tudoaquilo que pode ser concebido, dentro daótica legal, no conceito de carta4.

Em situação outra, em que se discutiaquanto à permissibilidade do recebimento,transporte e distribuição de avisos bancári-os por empresa prestadora de serviços dis-tinta da ECT, a Segunda Turma do TribunalRegional Federal da Primeira Região, semdiscrepância de entendimento, decidiu que,nesse caso, não há afronta ao monopóliopostal da União, pois não se inclui no con-ceito de carta o aviso bancário. De fato, na-quele julgamento, o aresto assim ficou emen-tado:

“Constitucional. Apreensão dedocumentos bancários da AssessoriaPostal Ltda. pela ECT. MonopólioPostal. Lei nº 6.538/78 e OSP nº 039/80. I – O recebimento, o transporte e adistribuição de avisos de vencimen-

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tos bancários não se inclui no concei-to de ‘carta’ contido na Lei nº 6.538/78, não se enquadrando, portanto, emqualquer das hipóteses acima, nomonopólio postal da União (OSP nº039/80). II – Remessa Oficial des-provida”(IOB 11/91).

A Colenda Primeira Turma do Superi-or Tribunal de Justiça, contudo, ao ter emmesa para exame processo em que se dis-cutia se a entrega domiciliar de avisos delançamento e guias de recolhimento deimpostos violentava o monopólio estatal,relatado pelo Ministro Humberto Gomesde Barros, em votação unânime, assimdecidiu:

“ADMINISTRATIVO – MONOPÓ-LIO POSTAL – NOTIFICAÇÃO DELANÇAMENTO TRIBUTÁRIO – LEINº 6.538/78. Os carnês de notificaçãode lançamento tributário constituemcarta. Por isto, sua distribuição inte-gra monopólio da ECT (Lei nº 6.538/78 – arts. 9º e 47)” (Lex 44/133).

Voltando os olhos para o tema deste es-tudo, cabe lembrar que o Decreto nº 83.858,de 15.08.79, no art. 17, alínea “n”, exclui,peremptoriamente, do monopólio da União,“o transporte e a entrega de aviso de cobran-ça relativo ao consumo de água, de energiaelétrica, ou de gás, quando realizados peloconcessionário do respectivo serviço públi-co”. Tem-se, assim, que o documento entre-gue aos consumidores, com a leitura doshidrômetros e os respectivos valores dascontas de consumo de água, não está inseri-do no conceito de “carta”, preceituado noart. 47 da Lei nº 6.538/78.

Até porque Carta é, na definição colhidado Aurélio, a comunicação manuscrita ou im-pressa e devidamente acondicionada, remetida auma ou várias pessoas. Mas essa comunica-ção diz respeito à mensagem, no sentido demissiva. Não deve ser considerado comotal, por exemplo, o aviso de vencimento,porquanto corresponde à cobrança, que éo exercício do direito de ação extrajudici-al, não se confundindo com mensagem

(comunicação). Com o seu encaminha-mento à outra parte, não se está fazendocomunicação, no sentido de informá-la arespeito de algo, mas propriamente cobran-do o que lhe é devido.

É o que ocorre com a entrega das contasde consumo de água. A concessionária, nes-se caso, não está se correspondendo, no sen-tido de epistolar com a outra pessoa, e simcobrando aos consumidores a importânciaque lhe há de ser paga, pelo fato de o consu-mo de água, em determinado período, tercorrespondido àquele valor constante nodocumento apresentado.

O Superior Tribunal de Justiça, ao apre-ciar recurso ordinário em habeas corpus, pormeio de sua Quinta Turma, em votação unâ-nime, fez a distinção entre carta e encomen-da, no escopo de estabelecer que tutela dosigilo da correspondência, plasmada naConstituição, abrange apenas as missivastrocadas entre pessoas, daí por que não háofensa à Carta Maior a determinação deapreensão na agência dos correios de brin-quedo contendo em seu interior substânciaentorpecente. Pela clareza com que redigi-da, merece transcrição a ementa do acórdão,vazada nos seguintes termos:

“Penal. Processual. Tigre de pelú-cia contendo cocaína. Apreensão deencomenda na agência dos correiosantes de ser entregue ao destinatário.Ação penal. Prova ilícita. Quebra desigilo de correspondência.

1. Correspondência, para os finstutelados pela Constituição da Repú-blica (art. 5º, VII) é toda comunicaçãode pessoa a pessoa, por meio de carta,através da via postal ou telegráfica.(Lei nº 6.538/78).

2. A apreensão pelo Juiz compe-tente, na agência dos Correios, de en-comenda, na verdade tigre de pelúciacom cocaína, não atenta contra aConstituição da República, art. 5 º, VII.Para os fins dos valores tutelados,encomenda não é correspondência.

3. Recurso Ordinário conhecido

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mas não provido.” (DJU de 2.4.01, p.311)5 BRASIL (2003a).

Note-se que o Superior Tribunal de Jus-tiça, no julgado em apreciação, absteve-sede esmiuçar o alcance da garantia constitu-cional do sigilo da correspondência, evitan-do enfrentar a discussão a respeito do seucaráter absoluto ou relativo. Resolveu aquestão fazendo a distinção entre encomen-da e correspondência, para, daí, concluir quea primeira modalidade de comunicação nãoestá tutelada pela norma constitucional.

4. O sigilo da correspondência noDireito estrangeiro

No exame do Direito comparado, verifi-ca-se que o sigilo da correspondência sem-pre vem reconhecido como garantia funda-mental dos cidadãos6. Na França, em umprimeiro instante, a Assembléia Nacional,ainda em 1789, deparou-se com a discus-são quanto à licitude da violação do segre-do contido em carta, para fins de investiga-ção de atos contra-revolucionários. Defen-dia-se a legitimidade do uso desse instru-mento probatório, ao argumento de que osatos conspiratórios, praticados em uma si-tuação de guerra como a que estava viven-do o povo francês, justificavam o uso de for-ça mais cogente para coibir as condutas. Noentanto, findou prevalecendo entendimen-to sedimentado em texto histórico de Cíce-ro, que repudiava a utilização de cartas tro-cadas entre marido e mulher e amigos(ALMEIDA JÚNIOR, 1960, p. 65), de modoque a assembléia manteve o segredo dascartas7.

Agrega João Mendes de ALMEIDAJÚNIOR (1960, p. 66), com suporte em dou-trina de Helie, que mais tarde a doutrinafrancesa fez distinção no sentido de que ascartas dirigidas ao indiciado – ou que emanamdele – podem ser apreendidas pelo juiz de ins-trução na repartição dos correios; as cartas diri-gidas a terceiro e que não emanam do indiciado,essas não podem ser apreendidas. Desse modo,no sistema francês, o sigilo da correspon-

dência não é absoluto, podendo ocorrer, as-sim, a utilização da carta em processo cri-minal. Essa posição se mostra afinada como art. 4º da Declaração dos Direitos do Ho-mem e do Cidadão, feita pelo povo francês,constituída em Assembléia Nacional, no dia26 de agosto de 1789, que expressamenteadmite o estabelecimento de limites aos di-reitos fundamentais, desde que previstos emlei. No Direito francês, não há manifesta-ção normativa específica sobre os limites dosigilo da correspondência, mas a doutrinaevoluiu para entender que é possível a reve-lação do segredo contido na missiva, desdeque mediante ordem judicial.

O Direito alemão, que construiu a dog-mática do princípio da proporcionalidade,contempla a inviolabilidade da correspon-dência e das comunicações postais, telegrá-ficas e telefônicas, dando-lhes o mesmo tra-tamento; todavia, na primeira parte do nº 2do art. 10, esclarece que “só podem ser orde-nadas limitações com base numa lei”8. Es-pecificamente em relação à proibição da pro-dução de provas em respeito a garantiasfundamentais registradas na ConstituiçãoAlemã, o Tribunal Constitucional daquelepaís tem sufragado o princípio da ponderaçãode interesses, que dá orientação hermenêuti-ca no sentido de que “... há de identificar-seuma área mais ou menos extensa em que osdireitos individuais poderão ser sacrifica-dos em sede de produção e valoração da pro-va, em nome da prevenção e repressão dasmanifestações mais drásticas e intoleráveisda criminalidade” (ANDRADE, 1992, p. 28).

Em exame do leading case, julgado em 21de fevereiro de 1964 pela Suprema CorteConstitucional Alemã, conhecido como ocaso do diário, ANDRADE (p. 31) informa queo princípio geral de ponderação coloca em pri-meiro plano a efetivação da justiça penal,cuja realização justifica e legitima o sacrifí-cio de direitos fundamentais, daí por que

“(...) à semelhança do que aconte-ce para as escutas telefônicas, tambémpara os demais meios de prova a Cons-tituição oferece ao legislador ordiná-

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rio um campo considerável de possi-bilidades de compressão dos direitosfundamentais para, à luz do princí-pio da ponderação, dar resposta ade-quada à ameaça da criminalidademais grave”.

ALEXY (2001, p. 87), doutrinador alemãoque é referência obrigatória no trato dos di-reitos fundamentais, elaborou consistenteteoria sobre essa espécie de direitos e dedu-ziu, com desenganada inteligência, as ba-ses científicas para a solução da colisão en-tre eles. Certo de que a aplicação indepen-dente de duas regras fundamentais conduzo intérprete a resultados incompatíveis, [...]es decir, a dos juicios de deber ser jurídico con-tradictorios, ensina o festejado jurista que,quando há o atrito entre dois princípios fun-damentais, como no caso em que um encer-ra uma permissão e o outro uma proibição,o deslinde da questão não enseja a escolhade eficácia de um com a conseqüente con-clusão de que o outro é inválido, como ocor-re na colisão de normas jurídicas, mas simque, diante das circunstâncias que permei-am o caso concreto, um deles tem de cederdiante do outro (ALEXY, p. 89). Com supor-te na análise da jurisprudência do TribunalConstitucional Alemão em um caso no qualse discutia a colisão entre o direito à instru-ção do processo penal e o direito à integri-dade física do acusado, ALEXY (p. 91-92),em concordância com a decisão alvitradapela Corte, arremata:

“Tomados em sí mismos, los dosprincipios conducen a una contradic-ción. Pero, esto significa que cada unode ellos limita la posibilidad jurídicade cumplimiento del outro. Esta situ-ación no es solucionada declarandoque uno de ambos principios no esválido y eliminándolo del sistema ju-rídico. Tampoco se la soluciona in-troduciendo una excepción en uno delos principios de forma tal que en to-dos los casos futuros este principiotenga que ser considerado como unaregla satisfecha o no. La solución de

la colisión consiste más bien en que,teniendo en cuenta las circunstanci-as del caso, se establece entre los prin-cipios una relación de precedencia con-dicionada. La determinación de la pre-cedencia condicionada consiste enque, tomando en cuenta el caso, se in-dican las condiciones bajo las cualesun principio precede al otro. Bajootras condiciones, la cuestión de laprecedencia puede ser solucionadainversamente”.

Embasado nessas considerações, ALE-XY (p. 268) assevera, mais adiante, que osdireitos fundamentais, ainda que tais, estãosujeitos a restrições, de modo que podem serdelimitados ou limitados, encontrando-sesuperada a doutrina defendida por Klein,segundo a qual, de acordo com a lógicapura, isso não seria possível. A esse respei-to, ressalta ALEXY (p. 269) que o TribunalConstitucional Federal Alemão, em casos decolisão de direitos fundamentais, adota ateoria da ponderação, concebendo a possi-bilidade de haver a restrição de princípios.

Consoante se vê na doutrina acima ex-posta e mesmo da mera leitura do art. 10, nº2, primeira parte, da Constituição da Ale-manha, no Direito germânico, a fim de faci-litar a efetivação da justiça penal, que é al-çada à categoria de bem jurídico de digni-dade constitucional próprio do Estado deDireito, o legislador ordinário tem ampla li-berdade de prever, para os crimes mais gra-ves, a possibilidade de restrição das garan-tias fundamentais, entre elas o sigilo da cor-respondência e das comunicações postais.

Já a Constituição espanhola contém nor-ma garantindo [...] o segredo das comunica-ções, em especial das comunicações postais, tele-gráficas ou telefônicas” , mas, na parte final,concebe que a decisão judicial determine aquebra do sigilo9. Como se nota, a Consti-tuição da Espanha vai mais além, na medi-da em que não remete à lei a especificaçãodas hipóteses que excepcionam a garantiado sigilo, mas sim confere ao juiz a possibi-lidade de examinar, no caso concreto, se é

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pertinente, ou não, dotar o Estado de forçamaior na investigação do caso que está sobapreciação.

NAVARRETE (1991, p. 19), ao analisaro tratamento dos direitos fundamentais nosistema jurídico espanhol, adverte que, emtodos os ramos do Direito daquele país, háde ter-se presente duas etapas bastante dis-tintas: uma antes e outra depois da criaçãodo Tribunal Constitucional Espanhol, queveio a lume com a Constituição de 1978. Apartir de então, o mencionado tribunal pas-sou a exercer grande influência no panora-ma jurídico, promovendo, com as suas deci-sões de extremo rigor técnico e alto con-teúdo jurídico, o reengajamento social emesmo popular espanhol, desde que assuas posições são acompanhadas comintenso interesse pelos cidadãos, devidoà adequação à realidade sociopolítica. Omesmo autor alinha que o Tribunal Su-premo, na esteira do entendimento do Tri-bunal Constitucional, sufragou a tese deque

“cualquiera que sea la concepción quese acepte para la fundamentación delos derechos humanos básicos o fun-damentales de las personas, del ciu-dadano, tales derechos ni en su alcan-ce, ni en su jerarquía, ni en su limita-bilidad, ostenta, en niguna de las ta-blas constitucionales contemporáne-as, parigual significación, por lo queresulta necessario en los supuestos decolisíon establecer una gradación je-rárquica entre los mismos” (ALEXY,2001, p. 56).

Tal entendimento denota que a jurispru-dência espanhola parte da premissa de queos direitos fundamentais, por mais impor-tantes que sejam, são relativos, passíveis delimitações, especialmente quando ocorre acolisão entre eles, devendo-se, na soluçãodo problema teorético e prático, ter em contao conceito de relação de precedência condicio-nada, manifestada por Alexy, no desideratode formular a solução do caso com suportena chamada lei de colisão.

Na Itália, a Carta constitucional, ao tem-po em que, na primeira parte do art. 15, dizque são invioláveis a liberdade e o segredonão só da correspondência, como tambémde qualquer meio de comunicação, na se-gunda, explicita que, uma vez observadasas garantias preceituadas em lei, a autori-dade judiciária pode determinar a sua res-trição10. A despeito de constar da normaconstitucional que a limitação pode ocorrerpor determinação da autoridade judiciária,o novo Código de Processo Penal italianopermite que o Ministério Público, em casode urgência, execute a diligência sem a pré-via intervenção do juiz, devendo este, emexame posterior, convalidar, ou não, a me-dida. Advertem BUONO e BENTIVOGLIO(1991, p. 143) que o Código de Processo Pe-nal italiano de 1998 confere às comunica-ções por correspondência e telegráficas omesmo tratamento, com a definição dos de-litos que admitem a quebra do segredo. Tem-se, assim, que, na Itália, além de a garantiado sigilo da correspondência não ser abso-luta, em casos excepcionais, pode ser que-brado sem a prévia autorização do Judiciá-rio, sendo exercido o controle judicial ape-nas a posteriori.

A Constituição portuguesa de 1974, as-sim como os demais países analisados atéagora, igualmente garante o sigilo das cor-respondências e das telecomunicações, “sal-vos os casos previstos na lei em matéria deprocesso criminal.”11 Sem embargo de cui-dar do segredo das correspondências domesmo modo como do sigilo das telecomu-nicações, o constituinte português teve apreocupação de dissipar dúvidas quanto àadmissibilidade da imposição de limitaçõespelo legislador ordinário ao exercício dasduas garantias. A despeito da literalidadedo preceito constitucional português quan-to à possibilidade de quebra do sigilo dascorrespondências, em compasso com liçãohaurida de CANOTILHO (1991, p. 615-616),os direitos fundamentais são relativos, e nãoabsolutos, de modo que são conhecidos trêstipos distintos de restrições, a saber:

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“1. Limites constitucionais direc-tos ou imediatos = limites directamen-te estabelecidos pela própria consti-tuição; 2. Limites estabelecidos por lei,mediante autorização expressa daconstituição (reserva da lei restritiva);3. Limites imanentes ou implícitos (=limites constitucionais não escritos,cuja existência é postulada pela ne-cessidade de resolução de conflitos dedireitos e bens).”

Ancorado na doutrina de ALEXY (2001),CANOTILHO (1991) expõe que os direitosfundamentais são informados pela cláusulada comunidade ou dos limites originários ouprimitivos, de modo que eles, ainda quandonão haja previsão constitucional, longe deserem tidos como absolutos, sofrem limitesoriginários ou primitivos, insítos a todos eles,que se justificam porque são (1) “limites cons-tituídos por direitos dos outros”; (ii) limites ima-nentes da ordem social; (iii) limites eticamenteimanentes para, daí, concluir que “haverá,pois, uma ‘cláusula da comunidade’ nostermos da qual os direitos das liberdades egarantias estariam sempre ‘limitados’, des-de que colocassem em perigo bens jurídicosnecessários à existência da comunidade.”O constitucionalista lusitano agrega que oexame da jurisprudência do Tribunal Cons-titucional português revela que, muito em-bora sem o background teórico formado so-bre o assunto e sem uma uniforme retóricaargumentativa, adotou-se a idéia dos limi-tes imanentes dos direitos fundamentais (CA-NOTILHO, 1991, p. 622).

Em suma, de todo o exposto, não restadúvidas de que a doutrina e a jurisprudên-cia da França, Alemanha, Espanha, Itália ePortugal não fazem distinção ontológicaentre o sigilo da correspondência e o dascomunicações telefônicas e que, em todoseles, é plenamente admissível a restrição dosegredo das cartas. Merece registro, outros-sim, que o entendimento sedimentado nes-ses países é o de que os direitos fundamen-tais, ainda que inspirados nos direitos na-turais, não são absolutos, mas tão-somente

relativos, de modo que, mesmo quando nãohaja expressa previsão constitucional, nadaimpede que se imponha freios ao seu exercí-cio, porquanto aplicável à cláusula dos li-mites imanentes.

Por fim, merece consideração que no pro-jeto de Código Processual Penal-Tipo paraIbero-América, trabalho apresentado à co-munidade científica em 30/31 de outubrode 2000, na cidade de Santiago do Chile,com a participação de vários pesquisado-res latino-americanos e europeus (AMBOS;CHOUKR, 2001, p. 11), o art. 165, há a pre-visão expressa da interceptação e do seqües-tro12 da correspondência, admitindo-se, atémesmo, que, em casos de perigo pela demo-ra, o Ministério Público e a polícia13 possamfazer a interceptação sem a prévia autoriza-ção judicial, muito embora depois devamlevar ao crivo deste, que avaliará a legalida-de da medida tomada.14

5. Assertivas que infirmam o caráterabsoluto do sigilo da correspondência

Tal como redigido, o preceito da Consti-tuição de 1988 que assegura a inviolabili-dade da correspondência e das comunica-ções telefônicas, a um primeiro exame, pa-rece que o constituinte brasileiro se desa-partou dos paradigmas do Direito Compa-rado, com a intensão deliberada de conferirao tema um abordagem singular, na medi-da em que teria erigido o sigilo da corres-pondência à categoria de direito fundamen-tal absoluto, uma vez que somente excepci-ona a proteção à inviolabilidade do meio decomunicação quando se trata da hipótesede contato telefônico.

Se essa for a inteligência firmada sobre oassunto, implica conceber um regramentono ordenamento jurídico brasileiro peculi-ar, que rompe com a nossa tradição consti-tucional15 e, como restou acentuado, com odisciplinamento jurídico previsto nas Cons-tituições da França, Alemanha, Itália, Espa-nha e Portugal, justamente os países queinspiraram decisivamente a elaboração de

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nossa Carta vigente16. Todavia, não pareceque assim seja, na medida em que três as-sertivas de caráter lógico infirmam posiçãonesse sentido, de modo que não é razoávelsustentar-se a inviolabilidade, em caráterabsoluto, do segredo da correspondência.Essas assertivas se escoram no entendimen-to de que as garantias constitucionais são limi-tações ao direito de punir do Estado, que os di-reitos fundamentais são heterogêneos e se autoli-mitam e que a interpretação do alcance de umprincípio deve ter em conta todo o sistema jurí-dico, não sendo suficiente a explicação em-basada apenas em sua expressão literal.Para melhor dissecá-las, é de boa ordem tra-tá-las em separado, como será feito a seguir.

5.1. Garantias constitucionais como limitaçõesao direito de punir do Estado

O exame da história dos povos, contem-plando a transformação da sociedade pri-mitiva em Estado, mostra que o homem, adespeito da percepção da necessidade deformalização do poder político, sempre sepreocupou em estabelecer limites ao exercí-cio do mandato por parte do governante,utilizando como um dos instrumentos maisimportantes a declaração dos direitos fun-damentais inerentes à própria condiçãohumana, que subsistem independentemen-te da vontade dos governantes. Esses direi-tos fundamentais, porquanto indispensá-veis para o ser humano, que ocuparam aspreocupações mais profundas dos grandesfilósofos, desde o início, foram postos comogarantias delimitadoras dos poderes do Es-tado.

Os direitos naturais, normatizadosnas Constituições, passaram à categoriade direitos fundamentais17, também de-nominados garantias constitucionais.Essas garantias nas searas dos DireitosPenal e Processual Penal, conservandoa razão de sua origem, apresentam-secomo limitações ao exercício do direitode punir, no que diz respeito não só àaplicação da sanção penal, como tam-bém à própria investigação criminal. O

Estado, nada obstante detenha o direitolegítimo de encetar a persecução crimi-nal, tem essa missão tutelada pelas nor-mas constitucionais de ordem criminal,impondo a irrestrita obediência ao prin-cípio da legalidade, tendo em mira pre-servar o direito de liberdade, na sua maisampla acepção.Por mais repugnante e hediondo que seja

o comportamento daquele que violou a nor-ma penal, ainda assim, na persecução quan-to à aplicação da pena, só poderá o Estadoagir dentro dos parâmetros gizados desde aLei Fundamental. Os contornos da atua-ção do Estado no sentido de buscar a res-ponsabilidade criminal estão plasmadosnas garantias constitucionais e perfazemo que se convencionou chamar de devidoprocesso legal. Sem a observância dessasregras, a atuação jurisdicional se dá forado perfil do Estado Democrático de Direi-to.

A garantia constitucional tem o seu co-mando voltado no sentido de expandir agarantia do direito à inviolabilidade da in-timidade e da vida privada e, até mesmo, dahonra e da imagem, quanto à violação a queesses bens jurídicos estão sujeitos, não sópor parte dos órgãos públicos, como tam-bém pelas pessoas físicas e jurídicas de Di-reito Privado. Em primeira nota, a normaseria destinada, tão-somente, àqueles quepautam o seu agir de conformidade com asnormas jurídicas postas perante o gruposocial, não socorrendo aqueles que agem deforma errante, trazendo prejuízos à coletivi-dade. Contudo, as garantias constitucionaisexpostas pelo constituinte têm incidência,via de regra, no campo penal, como é o casodo sigilo das correspondências, ainda maispelo fato de ter-se deixado expresso, maisadiante, no inciso L do art. 5 º, que “são inad-missíveis, no processo, as provas ilícitas”.A premissa é que a defesa do agente é a maisampla possível, mas o Estado tem de con-formar o seu agir dentro daquilo que for pre-visto pela norma, daí por que não poderálevar em consideração uma prova obtida de

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forma ilícita, a fim de condenar quem querque seja, seja qual for o crime.

Uma vez concebido o sigilo da corres-pondência como uma garantia do cidadãocontra o Estado na sua persecução crimi-nal, tem-se que não é defesa a edição de nor-ma jurídica que venha a regulamentar aquebra do sigilo da correspondência, nosentido de viabilizar a sua utilização comomeio de defesa a quem responde a processocriminal. Isso porque, se a garantia da invi-olabilidade do sigilo da correspondência,na sede criminal, é encarada como uma li-mitação do direito de punir, não haveriacontradição com a norma constitucionalpermitir essa violação, desde que o seja parapossibilitar ao acusado o direito de contes-tar a pretensão punitiva contra ele exercida.Essa constatação é suficiente para fazer ruira tese de que o sigilo da correspondência semanifesta inquebrantável, com caráter ab-soluto, como se não fosse possível, em ne-nhuma hipótese, a sua restrição ou limita-ção18.

Outra ótica que se dessome da premissade que as garantias constitucionais penaistraduzem comandos relativos à limitação dodireito de punir do Estado é que o agente doEstado ou a quem atribuída a função de coi-bir a prática de crime pode, nada obstanteas normas constitucionais, independente-mente de autorização judicial, no exercíciodo poder de polícia, agir a fim de embargarconduta ilícita. Veja-se que a Constituição,a par de assegurar a inviolabilidade do do-micílio, permite, expressamente, que o agen-te do Estado, desde que esteja ocorrendo umcrime em seu interior, quebre essa garantiaconstitucional, independentemente de au-torização judicial. Do mesmo modo, a nor-ma fundamental assegura o direito de liber-dade, mas possibilita que o agente do Esta-do ou quem suas vezes fizer restrinja essagarantia, quando o autor do ilícito for sur-preendido em flagrante delito.

Pode-se dizer, é verdade, que, nessas hi-póteses mencionadas supra, o constituinte,expressamente, previu as circunstâncias em

que a garantia constitucional-penal pode-ria ser violada pelo agente do Estado, inde-pendentemente de autorização judicial, demodo que, como em relação ao sigilo da cor-respondência o legislador não fez nenhu-ma ressalva, não seria correto estender a ila-ção para abarcar também essa hipótese.Mas, ainda assim, vamos raciocinar. AConstituição da República, quando assegu-ra o direito à vida, não diz, em tempo ne-nhum, que o Estado ou quem agir em seunome pode legitimamente matar quem querque seja. O direito à vida, nos termos daConstituição, seria absoluto, até porque nãose encontra, em nenhum dos seus artigos,nenhum comando normativo que autorizematar alguém.

O direito à vida, portanto, estaria prote-gido, em qualquer circunstância. Não é as-sim, porém. Devemos partir do princípio. Anorma ou normas que protegem o direito àvida na seara criminal expressam limitaçãodo direito de punir, e não à atuação do Esta-do no sentido de manter a ordem, quandodo exercício do poder de polícia, pois, parao fim de coibir a prática de atos ilícitos, sefor necessário, ainda que vedada a pena demorte, pode ser tirada a vida de um pessoa,sem que isso represente afronta ao direito àvida, nem acarrete responsabilidade penalou mesmo civil.

O que o Estado não pode é aplicar a penade morte ou, então, para investigar um cri-me, torturar o agente até a morte, no deside-rato de fazê-lo confessar e, assim, descobrira verdade. Agora, se um agente está prati-cando um crime, ainda que não o tenha con-sumado, se preciso for, o agente do Estadopode, independentemente de autorizaçãojudicial, sendo necessário, usar da violên-cia para expungir o ato ilícito, coartando odireito de liberdade, ou mesmo, ainda que aConstituição não apresente ressalva, tiran-do a vida do indivíduo.

Esse direito do Estado, de até mesmo re-tirar a vida de quem está praticando crime,sem que essa forma de agir seja ilícita, estáimplicitamente regulado na Constituição e,

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expressamente, no Código Penal, ao incluir,entre as causas de justificação, o estrito cum-primento de dever legal. Daí por que, nadaobstante o constituinte assegure o sigilo dacorrespondência sem apresentar qualquerressalva, é possível que o agente do Estado,para sustar a conduta criminosa, quebre essagarantia, independentemente, até, de auto-rização judicial, desde que as circunstânci-as assim imponham que se proceda.

FERNANDES (1994, p. 72), malgradotenha como suporte o princípio da propor-cionalidade, lembrando que, em determina-dos casos, para garantir o direito à própriavida, há necessidade de ser violado o sigiloda correspondência, lança a seguinte asser-tiva: “Imagine-se que alguns presos, atra-vés de troca de correspondência, preparama fuga, na qual será sequestrada e morta umaautoridade. Estranho que não se permita aviolação dessa correspondência se há notí-cia do plano, com o intuito de abortá-la.”Nesse caso, entende o autor citado que ovalor maior, a vida, há de ser preservado,afirmação com a qual não se há de tergiver-sar19.

Imagine-se a situação da carta-bomba.Diante da garantia do sigilo absoluto, sempossibilidade de restrições, ela não poderiaser interceptada? Só poderia ser intercepta-da caso o destinatário consentisse? E se odestinatário fosse um suicida? Vale lem-brar os acontecimentos posteriores ao 11 desetembro de 2001, com as cartas enviadaspara americanos, contendo a substânciaquímica letal identificada como “antraz”.Consoante noticiário jornalístico, nos Esta-dos Unidos, em muitos casos, ante merassuspeitas, cartas foram interceptas e aber-tas, no escopo de evitar males que viessematingir não apenas o próprio destinatário,mas também a terceiros.

Em síntese, ainda que se entenda que osigilo da correspondência é absoluto, mes-mo assim, esse comando normativo teria seuraio de alcance restrito à inadmissibilidadeda quebra do segredo da missiva, no intuitode não permitir que o seu conteúdo seja va-

lorado como instrumento probatório, nun-ca, porém, como óbice para que, no legítimoexercício do poder de polícia, o Estado oumesmo qualquer do povo intercepte ou obs-trua uma correspondência utilizada comoo próprio instrumento do crime, como nocaso imaginado da carta-bomba.

5.2. Os direitos fundamentais são heterogêneose se autolimitam

Enquanto reminiscência da discussãoem torno da existência de um direito natu-ral e que subsistisse em virtude da próprianatureza do ser humano, indispensável àsatisfação das necessidades humanas, BO-BBIO (1992, p. 20), em a Era dos Direitos, comlucidez, enfrenta a temática, desenvolven-do o seu pensamento sobre o assunto, par-tindo da premissa de que não há direito ab-soluto. A seu sentir, os direitos do homem,por mais fundamentais que sejam, são rea-lidades históricas, surgidos em razão dedeterminadas condições de vida, sendo,portanto, apenas relativos, não resultando,como defendiam os jusnaturalistas, da pró-pria natureza do homem. Em sua concep-ção, os direitos fundamentais do homempodem ser definidos por naturais tão-so-mente sob a ótica de assim consideradosporque cabem ao homem pela sua própriacondição de ser, não dependendo da von-tade do soberano20.

Os direitos não são absolutos, até por-que eles não nascem de uma só vez, poisresultam da luta pela melhor qualidade devida, sendo gerados quando devem, ou mes-mo podem nascer, sendo passíveis de mo-dificações com o tempo, em compasso coma evolução das necessidades crescentes doser humano. De acordo com o pensamentode Kant, mencionado por BOBBIO (1992), oúnico direito irresistível seria a liberdade,enquanto direito inerente ao ser humano,tais como o direito de comer, beber, casar,namorar, trabalhar, etc., porquanto os direi-tos do homem, considerados como categori-as ínsitas à condição humana, seriam aque-les que pertencem, ou deveriam pertencer,

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aos homens, indispensáveis ao aperfeiçoa-mento da pessoa humana ou para o desen-volvimento da civilização. De qualquer for-ma, reconhecia Kant que a extensão do di-reito de liberdade de uma pessoa tem os seuslimites determinados pela necessidade deobediência ao direito de liberdade dos de-mais indivíduos.

De qualquer forma, na visão de BOBBIO(1992), manifesta-se extremamente comple-xo definir os direitos do homem, uma vezque o alcance do enunciado fica à mercê dosvalores cultivados pelo intérprete. Ade-mais, e aqui penso que a idéia de Bobbioatinge o âmago da questão, os direitos fun-damentais, caso entendidos como absolu-tos, não poderiam ser cumpridos de formaglobal, a um só tempo, porque, a fim de quefossem observados num mesmo instante,seria necessária a conciliação, que os direi-tos interagissem de forma sistêmica, paraque um não anulasse o outro.

Ainda assim, como os direitos do homemsão históricos, eles pertencem a uma classevariável, que se cria no tempo, modifica-secom ele e continua a modificar-se com a al-teração das condições históricas, com basenos interesses e necessidades das classesno poder, no surgimento ou desaparecimen-to dos meios indispensáveis à realizaçãodos direitos e, sobretudo, nas inovações deordem tecnológica, o que nos leva a suporque, no futuro, poderão surgir direitos ini-magináveis atualmente. Por isso mesmo,alguns bens fundamentais mereçam valo-res universais, muito do que se apresentacomo direito fundamental para uma deter-minada era histórica e numa certa civiliza-ção não o é em relação a outras épocas e emoutras culturas ou mesmo às vezes não temconteúdo idêntico.

Atento para essas peculiaridades, mal-grado reconheça que há alguns direitos quevalem em qualquer situação e para todos oshomens indistintamente, como o caso dodireito de não ser escravo ou de não ser tor-turado, adverte BOBBIO (1992, p. 18) que osdireitos são heterogêneos e, muitas das ve-

zes, incompatíveis entre si, daí por que di-reitos que possuem fundamentos tão diver-sos devem ser limitados, quando sopesadosentre si, no desiderato de que todos sejamobservados, perfazendo um sistema harmô-nico.

Por fim, realça o filósofo italiano que,além de notar-se em muitos casos o contras-te entre o direito fundamental de uma cate-goria e de outra, deve-se verificar que, asmais das vezes, exsurge antinomia entredireitos invocados pelas mesmas pessoas,acrescentando que, paradoxalmente, à me-dida que os poderes dos indivíduos aumen-tam, mais diminuem as liberdades dos mes-mos indivíduos, visto que “os direitos fun-damentais garantidores da liberdade con-sistem em poderes, exigindo dos outros (in-cluídos os poderes públicos) obrigaçõespuramente negativas, que implicam absten-ção de determinados comportamentos, ouentão obrigações positivas” (BOBBIO, p. 21-22).

Tem-se, assim, que, para fins de preser-vação da dignidade humana, há a necessi-dade de serem previstos direitos fundamen-tais, muitos deles guardando certa antino-mia. Dessa forma, não há um direito funda-mental absoluto, mas direitos fundamentaisrelativos, tidos, historicamente, diante decertas circunstâncias, como imprescindíveispara o desenvolvimento da pessoa humanae da civilização. Voltando ao tema centraldeste escrito, não se pode perder de vistaexistir, ao lado do direito ao sigilo das cor-respondências, que procura tornar efetiva aproteção à intimidade, à vida privada, e atéà imagem e à honra, o direito de defesa geraldos cidadãos contra a utilização dessa ga-rantia como forma de perpetrar os crimesmais variados, até mesmo tendo como re-sultado a morte.

No meu entender, o Código Penal, aoestabelecer que, ao agir em estrito cumpri-mento de dever legal, o agente do Estadonão pratica nenhum crime, está a permitir,por linhas transversas, que, sendo o caso,desde que necessário para o cumprimento

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do dever de polícia quanto ao desempenhoda segurança pública, restrinja-se o sigiloda correspondência. Ora, ainda que, à pri-meira vista, essa posição pareça despropo-sitada, ela se torna razoável, na medida emque imaginarmos a possibilidade de o agen-te do Estado, no estrito cumprimento de de-ver legal, agredir fisicamente o agente do ilí-cito, até mesmo lhe ocasionando a morte,em afronta ao bem jurídico maior de todo equalquer ordenamento jurídico, que é a vida,mas não possa, também para evitar, impe-dir a consumação ou fazer com que a ativi-dade criminosa cesse, interceptar a corres-pondência, ainda que sem autorização ju-dicial. Se alguém está prestes a matar ou-trem, utilizando-se de um revólver, o agentedo Estado pode intervir e, no estrito cumpri-mento de dever legal, prendê-lo, violando oseu direito de liberdade ou, até mesmo, sefor o caso, matá-lo para evitar que o crimeocorra. Nesse caso, a ação não só é legítimacomo também é legal, ainda que se arranheo direito de liberdade ou o próprio direito àvida do agressor. Porém, se o agente do cri-me, astutamente, enviar uma carta-bomba aoutrem, não poderia o agente do Estado in-tervir, porque essa atitude violaria o direitoao sigilo? Não seria razoável que assim seentendesse.

Se até o direito à vida, como vimos, não éabsoluto, não só porque a constituição res-salva, expressamente, a possibilidade dapena de morte, em caso de guerra declara-da, como também porque no exercício dopoder de polícia, em casos extremos, o agentedo Estado pode legitimamente ceifar a vidado autor do ilícito, não se mostra coerentesustentar que o sigilo da correspondência oseja. Ademais, essa garantia, igualmente,não tem apenas limitações implícitas, mastambém pelo menos uma expressa. É quan-do na Constituição deixa plasmado, no art.136, § 1º, que, durante o estado de defesa, odecreto que o instituir deverá determinar otempo de sua duração, além de especificaras garantias constitucionais restringidas,entre elas o sigilo da correspondência.

BARROS (2000, p. 160), forte na doutri-na de Canotilho, não põe dúvidas quanto àexistência de limites ou restrições para osdireitos fundamentais, que podem estar ex-pressos diretamente pela Constituição, in-diretamente pela lei e implícitos, uma vezque imanentes devido à coexistência de prin-cípios opostos. Pondera a autora que os li-mites imanentes se justificam na medida emque as normas de direitos fundamentais in-fluem na relação mantida entre os próprioscidadãos, titulares de garantias que mere-cem igual proteção, e, não raro, essa colisãose destaca entre direitos individuais e bens ju-rídicos da comunidade, como a saúde pública,segurança pública, defesa nacional (BARROS,p. 169).

A esse respeito, o Supremo Tribunal Fe-deral, por mais de uma vez, emitiu pronun-ciamento sufragando a tese de que não há,no nosso sistema jurídico, garantia consti-tucional absoluta, apresentando-se, todoselas, apenas de forma relativa, daí por que éválido afirmar que, como regra de princí-pio, os direitos fundamentais possuem li-mites, quando não expressos, que lhes sãoimanentes. Com efeito, ao deferir medida li-minar no Mandado de Segurança n o 23.669-DF, o Ministro Celso de Mello21, ao longo dadecisão, afirmou:

“Na realidade, como já decidiuesta Suprema Corte, não há, no siste-ma constitucional brasileiro, direitosou garantias que se revistam de cará-ter absoluto, mesmo porque razões derelevante interesse público ou exigên-cias derivadas do princípio de convi-vência das liberdades legitimam, ain-da que excepcionalmente, a adoção,por parte dos órgãos estatais, de me-didas restritivas das prerrogativasindividuais ou coletivas, desde querespeitados os termos estabelecidospela própria Constituição” (MS23.452-RJ, Rel. Min. Celso de Mello).

Com essas considerações, não se temdúvidas de que o art. 233 do Código de Pro-cesso Penal que, a contrario sensu, admite

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como prova as cartas interceptadas ou obti-das sem o consentimento do emitente ou dodestinatário, desde que não tenha sido uti-lizado meio ilícito, continua em plena vi-gência, diante de sua compatibilidade coma Constituição de 1988, da mesma formacomo se afinava com as Cartas de 1937, 1946e 1967. Como desenvolvimento do mesmoraciocínio, também se chega à conclusão deque o art. 240, § 1º, letra f, do OrdenamentoProcessual Penal é plenamente compatívelcom os ditames da Constituição, de modoque a medida cautelar de busca e apreen-são, determinada de ofício ou a requerimen-to do Ministério Público ou da autoridadepolicial, em decisão fundamentada do juiz,constitui-se no instrumento hábil para secolher a correspondência para fins de queela instrua o processo na qualidade de pro-va.

5.3. Interpretação sistêmica

Nenhuma regra jurídica existe isolada-mente, pois o direito, antes de tudo, é siste-ma, devendo os preceitos constitucionais serinterpretados conforme os princípios da ci-vilização. O legislador, ainda que se tratedo constituinte, não detém o dom de prevertodas as circunstâncias da vida que reco-mendam a solução alvitrada pela normajurídica. A visão do legislador, logicamen-te, é preconcebida dentro daquelas circuns-tâncias vislumbradas, daí por que, as maisdas vezes, o alcance da norma, para deter-minados casos, em razão da peculiaridadeda situação, é restringido ou alargado. Oque se quer dizer é que o verdadeiro alcancede uma norma não está de pronto reveladocom o seu enunciado, mas sim quando seexamina a extensão com que ela deve serinterpretada, dentro de um determinadocontexto fático.

Cabe ao exegeta, portanto, enxergar odireito enquanto sistema organizado, fazen-do as distinções necessárias para adequara norma aos seus verdadeiros fins, de modoque se, diante das circunstâncias, são feitasas distinções desacertadamente, com a con-

seqüente valoração inadequada, o erro é dooperador jurídico, e não da norma em si. Atéporque o direito é instrumento de vida, for-ma de pacificação social, que ordena o de-senvolvimento e as realizações das necessi-dades humanas dentro dos valores colima-dos pelo grupo social, de modo que nuncaconduz ao absurdo, a não ser que o opera-dor jurídico trilhe o caminho errado.

Muito embora a dicção normativa encar-tada na Constituição da República, no inci-so XII do art. 5 o, deixe consignado que é invi-olável o sigilo da correspondência e das comuni-cações telegráficas, de dados e das comunicaçõestelefônicas, salvo, no último caso, por ordem ju-dicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabele-cer para fins de investigação criminal ou instru-ção processual penal e, em sua leitura isolada,leve a crer que o constituinte ressalvou apossibilidade de quebra, ainda que medi-ante autorização judicial, apenas das comu-nicações telefônicas, por motivos óbvios,essa não é a forma mais adequada de se pro-curar enxergar o alcance da cláusula emdestaque.

A primeira interpretação que ressai danorma, e é a mais fácil de ser vista, leva acrer que o constituinte deixou expresso queseria “inviolável o sigilo da correspondên-cia”. Se ele quisesse restringir, assim comoo fez em relação às comunicações telefôni-cas, o direito ao sigilo quanto à correspon-dência, às comunicações telegráficas e aosdados, não teria utilizado a expressão “sal-vo no último caso”. Porém, interpretaçõesoutras, mais consentâneas com a realidade,emergem do enunciado sub studio. Até por-que, na seara do direito, a norma jurídica,sempre e sempre, admite, no mínimo, duasinteligências diametralmente opostas. É nes-se contexto hermenêutico que se pode de-fender a idéia de que o dispositivo encerradois comandos: o primeiro se refere ao sigi-lo em si das fontes que enuncia e o segundorelaciona-se à comunicação desses elemen-tos informativos de prova que, nessa linha,poderia ser interceptada, pois quando oconstituinte disse salvo, no último caso [...] es-

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taria se referindo a qualquer hipótese de comu-nicação, e não apenas àquela veiculada pelavia telefônica.

Aliás, parece que o Legislativo assim estáa entender que a expressão salvo, no últimocaso [...] está se referindo a qualquer um doscasos de comunicação, a partir do instanteem que editou norma, contida no art. 6 º, VIII,alínea “a”, da Lei Complementar nº 75, de20 de março de 1993, expondo competir aoMinistério Público da União representar aoórgão judicial competente para quebra de sigiloda correspondência e das comunicações telegrá-ficas, de dados e das comunicações telefônicas,para fins de investigação criminal ou instruçãoprocessual [...], preceito aplicável também aoMinistério Público dos Estados, por forçado art. 80 da Lei 8.625, de 12.02.93. Em exa-me sistemático, a interpretação emprestadaquando da feitura da Lei Complementar nº75, de 1993, é a que melhor se compatibilizaà lógica, desde que não haja justificativapara que se permita, apenas, a quebra dosigilo por meio das comunicações telefôni-cas, afastando toda e qualquer forma de in-gerência nas demais modalidades. Isso por-que não há distinção ontológica entre umaforma e outra de comunicação. Veja-se queaqui se mostrou que, na história do nossoDireito Constitucional, o sigilo da corres-pondência permaneceu sendo asseguradodesde a Carta Imperial de 1824, mas semprese entendeu que ele era de caráter relativo enunca tinha havido nenhum tratamentodiferente em relação a essas formas de co-municação (cf. tópico 2). Por outro lado, naapreciação da doutrina e da jurisprudênciade países cujas Constituições serviram deparadigma para a elaboração da nossa de1988 – França, Alemanha, Itália, Espanha ePortugal –, em todos eles o sigilo da corres-pondência é tido como relativo e ele recebe omesmo tratamento que é dispensado para acomunicação telefônica (cf. tópico 4).

A única diferença que se poderia fazerentre a comunicação por correspondência eaquela por meio de telefone seria que a pri-meira se faz por meio da escrita, enquanto a

segunda por meio da fala. Porém, a escrita éa mera reprodução, em símbolos, da fala, ouseja, é uma representação da fala. Se a fala,que é representada pela escrita, pode serinterceptada, por que não a escrita, que éapenas a sua imagem? A escrita, à seme-lhança da fala, é forma de expressão da lín-gua, não havendo distinção ontológica en-tre uma e outra, a justificar tratamento dife-rençado no que respeita à proteção median-te a preservação do sigilo.

Ademais, o telefone, hoje, com o avançoda tecnologia, também possibilita o contatopor meio da escrita. É o que ocorre com ofac-símile. Qual a diferença entre a corres-pondência postal e aquela feita por fac-sí-mile, que justifique a distinção quanto àpossibilidade de quebra de apenas uma de-las? Sem falar no correio eletrônico que, emconsonância com a Lei nº 9.296, de 24 dejulho de 1996, pode ter o seu sigilo quebra-do, meio de comunicação que em nada dife-re da carta, senão quanto ao instrumentoque veicula a transmissão da mensagemescrita22. É por isso que a interpretação lite-ral é odiosa, para não dizer que ela, sozi-nha, não se presta para determinar o alcan-ce do preceito, especialmente quando se tra-ta de um princípio cujo enunciado, pela suaprópria natureza generalizante, compreen-de conceito polissêmico de complexa com-preensão. Não parece razoável querer ex-pressar o conteúdo de um princípio comsuporte somente na interpretação literal desua expressão normativa.

De qualquer forma, a despeito da LeiComplementar nº 75/93, ainda há a Lei deExecução Penal que, no art. 41, parágrafoúnico, diz que o direito do preso à corres-pondência pode ser suspenso ou restringi-do, mediante ato motivado do diretor do es-tabelecimento penal. Para quem defende queo sigilo da correspondência é absoluto, nemmesmo a correspondência dos detentospode vir a ser interceptada, o que conduzi-ria ao absurdo de permitir que o encarcera-do, de dentro do estabelecimento prisional,continuasse a comandar o crime, protegido

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pelo sigilo. Sob enfoque de outro ângulo,seria possível coibir que o detento, por meiodas comunicações telefônicas, desse conti-nuidade a sua participação na prática deilícitos, mas nada pudesse fazer quando omeio utilizado fosse a correspondência.

Felizmente, o Supremo Tribunal Federal,mantendo coerência com a sua concepçãode que os direitos fundamentais são relati-vos, chamado a dirimir controvérsia na qualse discutia a constitucionalidade do art. 41,parágrafo único, da Lei nº 7.210, de 1984 –Lei de Execução Penal –, que permite à ad-ministração penitenciária, por medida desegurança do estabelecimento, mesmo semautorização judicial, a interceptação da cor-respondência dos presos, assim se posicio-nou:

“[...] A administração penitenciá-ria, com fundamento em razões de se-gurança pública, de disciplina prisi-onal ou de preservação da ordem jurí-dica, pode, sempre excepcionalmen-te, e desde que respeitada a norma ins-crita no art. 41, parágrafo único, daLei nº 7.210/84, proceder a intercep-tação da correspondência remetidapelos sentenciados, eis que a cláusu-la tutelar da inviolabilidade do sigiloepistolar não pode constituir instru-mento de salvaguarda de práticas ilí-citas” (BRASIL, 2003d).

É interessante observar que, no caso danorma jurídica em estudo, permite-se que ainterceptação seja feita independentementede autorização judicial, porém, mesmo as-sim, o Supremo Tribunal Federal, diante daspeculiaridades da relação entre o adminis-trador penitenciário e os detentos, tem comojustificada a restrição nela imposta ao sigi-lo da correspondência.

Outra interpretação razoável do art. 5º,XII, da Constituição de 1988 poderia sobres-sair da análise dos vários pronunciamen-tos do Supremo Tribunal Federal, nos quaisa Suprema Corte delimitou as hipóteses emque as comissões parlamentares de inquéri-to, detentoras de poderes investigatórios

próprios das autoridades judiciárias, podemdeterminar a quebra de garantia constituci-onal, ou seja, independentemente de ordememanada de juiz. Na discussão sobre o al-cance dos poderes de investigação próprios dasautoridades judiciais que são outorgados pelaConstituição às comissões parlamentares deinquérito (art. 58, § 3º), o Supremo TribunalFederal, em reiteradas vezes, sufragou a tesede que, quando a Constituição estabelece agarantia, mas expressamente diz que elapode ser restringida mediante ordem, auto-rização ou decisão judicial23, somente a au-toridade judiciária, o juiz, no exercício daatividade tipicamente judicante, pode deter-minar a sua quebra, como ocorre nos casosde prisão cautelar e de inviolabilidade dodomicílio. É o que se chama reserva de juris-dição.

De outro lado, quando o direito funda-mental está previsto, mas não há nenhumtipo de ressalva, antes de isso querer dizerque ele não tem limite, em verdade, não ape-nas o juiz pode determinar a quebra da ga-rantia, como até mesmo a comissão parla-mentar de inquérito. Por isso mesmo, a co-missão parlamentar de inquérito não podedeterminar a invasão domiciliar, a prisãocautelar nem a interceptação de comunica-ção telefônica, porquanto as normas quegarantem esses bens jurídicos contêm cláu-sula de reserva de jurisdição. Mas a comissãoparlamentar de inquérito pode, por exem-plo, quebrar os sigilos fiscal e bancário e osigilo do rastreamento dos contatos telefô-nicos, pois a preservação desses dados en-contra-se lasmada no art. 5º, X, da Consti-tuição, que não contém cláusula de reservade jurisdição24.

Seguindo essa linha de pensamento, sese entender que a ressalva “... salvo no últi-mo caso”, estampada no art. 5 º, XII, da Cons-tituição, aplica-se apenas às comunicaçõestelefônicas, implica reconhecer que a cláu-sula de reserva de jurisdição quanto à garan-tia ali prevista se circunscreve a essa formade contato, daí sendo lícito deduzir que osigilo da correspondência pode ser quebra-

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do não só por ordem judicial, mas tambémpor decisão de comissão parlamentar deinquérito.

6. Conclusão

O Direito brasileiro, desde sempre, deuguarida ao sigilo da correspondência, tra-tamento normativo que principiou ainda naConstituição Imperial de 1824 e permane-ceu incólume em todas as Cartas do perío-do republicano. Também mereceu atençãodo Código Criminal do Império e do atualCódigo de Processo Penal, sempre sendo tra-tado, em sede constitucional e infraconsti-tucional, como direito fundamental limita-do.

O exame do Direito comparado eviden-ciado no das Constituições, da doutrina eda jurisprudência de países como França,Alemanha, Itália, Espanha e Portugal, fon-tes que guiaram os passos dos constituintesde 1998, mostra que nele se confere trata-mento idêntico para os sigilos da correspon-dência e das comunicações telefônicas, comimposição de limites quanto ao exercício dasduas garantias, na medida em que admitema interceptação e a utilização de seus con-teúdos como elemento de prova em proces-so criminal.

Os direitos fundamentais, na seara cri-minal, apresentam-se como limitações cons-titucionais quanto ao direito de punir doEstado, compreendendo-se, nessa assertiva,as espécies de penas e a forma de exercícioda pretensão punitiva, com inclusão da in-vestigação policial, daí por que, ainda quefosse o caso de se entender que a garantiado sigilo da correspondência se manifestacom caráter absoluto, ter-se-ia de conside-rar que ela não alcança o momento em que oEstado, no exercício do poder de polícia,deve agir para manter a ordem pública.Desse modo, ainda que fosse absoluto o si-gilo da correspondência, seria permitido queo agente do Estado ou quem suas vezes fi-zer, com base no art. 23, inciso III, primeiraparte, do Código Penal, no estrito cumpri-

mento de dever legal, quebrasse o sigilo dacorrespondência, a fim de sustar a práticade ilícito criminal.

O sigilo da correspondência não é abso-luto, uma vez que os direitos fundamentais,diante da sua heterogeneidade, que faz comque eles mesmos entrem em colisão, autoli-mitam-se. Sem embargo desse aspecto, hálimitação expressa na Constituição quantoao sigilo da correspondência, na medida emque se admite a restrição dessa garantiaquando da decretação do estado de defesa.

A interpretação mais razoável do dispo-sitivo do inciso XII do art. 5º da Lei Maior éde que a expressão “salvo no último caso”diz respeito aos casos de comunicação emsi, e não apenas às comunicações por meiode contato telefônico, até porque não há ra-zão, de natureza ontológica, para protegerabsolutamente todas as outras espécies decomunicação, pondo-se ressalva, apenas,àquela que é feita pela via telefônica.

Os dispositivos encartados na Lei Com-plementar nº 75/93, na Lei de ExecuçãoPenal e no Código de Processo Penal quelimitam o sigilo da correspondência sãoconstitucionais, de modo que o procedimen-to para se interceptar a correspondência éaquele que rege a busca e apreensão crimi-nal.

Notas1 MIRANDA (2002, p. 71 et seq.). Nesse estu-

do, Jorge MIRANDA insere o sistema constitucio-nal brasileiro na família que tem como paradigmao modelo português. De todo modo, o autor, embosquejo histórico do constitucionalismo brasilei-ro, mostra que, em alguns momentos, as CartasConstitucionais do Brasil exerceram influência nasConstituições portuguesas. Em reforço a essa tese,demonstra que as Constituições de Portugal de 1826e de 1911 foram orientadas, respectivamente, pelasConstituições do Brasil de 1824 e de 1891. Maisadiante, acrescenta que as constituições brasileirasde 1937, 1946, 1967 e 1988 se inspiraram fortementenas Constituições portuguesas, principalmente a quese encontra em vigor (MIRANDA, p. 144-145).

2 O dispositivo em foco ainda continha umasegunda parte, assim redigida: “A administração

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do correio fica rigorosamente responsável por qual-quer infração deste artigo.”

3 O teor da ementa é o seguinte: “Inviolabilida-de da correspondência. Está sujeita a exame pelosagentes fiscais a correspondência comercial. O inte-resse público sobrepõe-se ao interesse privado. Nãohá direito líquido e certo para a recusa à fiscaliza-ção dos papéis constantes de arquivo comercial.Recurso de mandado de seguranca não provido”.(BRASIL, 2003b)

4 “Monopólio postal. Abrange as comunica-ções de negócio, de débito pela prestação de servi-ços, de vencimentos de obrigações, de posição desaldo bancário, enfim, de tudo que, do ponto devista legal, é considerado carta, v.g., objeto de cor-respondência, com ou sem envoltório, sob a formade comunicação escrita, de natureza administrati-va, social, comercial, ou qualquer outra, que conte-nha informação de interesse específico do destina-tário (Lei 6.538, de 1978, art. 47). Embargos Infrin-gentes rejeitados, sem o conhecimento da questãosuperveniente de saber se o monopólio postal sub-siste em face da Constituição Federal de 1988” (IOB,20/91).

5 O relator do acórdão foi o Ministro Edson Vi-digal.

6 A expressão aqui está empregada em sentidoamplo, no escopo de abranger todas as pessoasque devem ser tratadas com dignidade.

7 João Mendes de ALMEIDA JUNIOR (1960)relata que Camus se opôs à admissibilidade dautilização como prova das cartas particulares porconsiderar “... uma carta fechada como uma pro-priedade, e não se pode, sem atacar abertamente osmais sagrados direitos, romper os segredos das car-tas”. Cita ainda o referido autor que Mirabeau, in-dignado, exclamou: “Que é isto?! Um povo quequer tornar-se livre, emprestando as máximas e osprocesso da tirania?! (...) É sem utilidade algumaque seriam violados os segredos das famílias, ocomércio dos ausentes, as confidências de amiza-de, a confiança entre os homens. Dir-se-ia de nósna Europa: em França sob pretexto de segurançapública, são privados os cidadãos de todo o direitode propriedade sobre as cartas que são as produ-ções do coração e o tesouro da confiança.”

8 Art. 10 - “1. O sigilo da correspondência e dascomunicações postais, telegráficas e telefônicas éinviolável.

2. Só podem ser ordenadas limitações com basenuma lei. Se a limitação tiver por finalidade prote-ger a ordem constitucional liberal e democrática oua existência e a segurança da Federação ou de umEstado, a lei poderá determinar que a limitaçãonão seja levada ao conhecimento do indivíduo afec-tado e que, em vez de seguir a via judicial, o contro-le seja efetuado por órgãos principais e auxiliaresdesignados pela representação do povo.”

9 Art. 18, 3: “É garantido o segredo das comu-nicações, em especial das comunicaçõe spostais,telegráficas ou telefônicas, salvo decisão judicialem contrário.”

10 A norma está assim redigida: “A liberdade eo segredo da correspondência e de qualquer outraforma de comunicação são invioláveis.

Sua limitação pode ocorrer somente por deter-minação da autoridade judiciária, mantidas asgarantias estabelecidas pela Lei.”

11 Art. 34, nº 4: “É proibida toda a ingerênciadas autoridades públicas na correspondência e nastelecomunicações, salvos os casos previstos na leiem matéria de processo criminal.”

12 No Código de Processo Penal brasileiro, o ins-tituto que confere lastro à apreensão da carta é abusca e apreensão.

13 Conferir esse poder de interceptação e seqües-tro ao Ministério Público e à polícia, independente-mente de autorização judicial, mesmo que reserva-do à hipótese de perigo pela demora, dá margemmuito grande à prática de abusos. Nesse aspecto,a proposta merece crítica.

14 A norma proposta tem a seguinte redação:“Art. 165. Seqüestro de correspondência. Quandofor de utilidade para a averiguação poder-se-á or-denar a interceptação e o seqüestro da correspon-dência postal, telegráfica ou teletipográfica e osenvios dirigidos ao imputado ou por ele remetidos.A ordem será expedida pelo juiz de instrução... OMinistério Público e a polícia poderão expedir aordem em caso de perigo pela demora. Porém,deverão proceder segundo o art. 162 e a correspon-dência ou ´envio´não lhes será entregue, mas aotribunal competente. Se dentro de três dias, a ordemnão é ratificada pelo tribunal, cessará a intercepta-ção e o seqüestro, e as peças serão liberadas a quemcorrespondam.” (AMBOS; CHOUKR, 2001, p. 303).

15 Confira-se o que restou dito no nº 2.16 Raul Machado HORTA (2001, p. 64), sem

desconsiderar as influências internas que guiaramo constituinte de 1988, afirma que foram sentidasas influências externas que “provieram do consti-tucionalismo europeu, através da Lei Fundamen-tal da Alemanha de 1949 e das Constituições daItália de 1947, da França, de 1958, da Espanha, de1978, e de Portugal, de 1976”.

17 Nesse sentido, conferir José F. Lorca Navarre-te (1991, p. 14). Jorge MIRANDA (2002, p. 145)afirma que as atuais Constituições de Portugal edo Brasil – respectivamente de 1974 e de 1988 –guardam muita identidade, exemplificando com“a extensão das matérias com relevância constitu-cional, o cuidado posto na garantia dos direitos deliberdade, a promessa de numerosos direitos soci-ais, a descentralização, a abundância de normasprogramáticas”. Finaliza o constitucionalista por-tuguês: “E a Constituição brasileira consagraria

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regras ou institutos indiscutivelmente provindos daportuguesa: a definição do regime como ‘EstadoDemocrático de Direito’, alguns direitos fundamen-tais, o estímulo ao cooperativismo, o alargamentodos limites materiais da revisão constitucional, afiscalização da inconstitucionalidade por omissão”(Os grifos não constam do original). A influênciada Constituição portuguesa na elaboração da Cons-tituição brasileira de 1988 foi mais forte do que seimagina.

18 Como as normas constitucionais penais re-presentam, antes de tudo, limitações ao direito depunir do Estado, a cláusula encartada na Lei Fun-damental, consubstanciada na ampla defesa, é con-templada somente ao acusado. Ainda dentro des-sa linha de idéia, deve-se concluir que, quando noinciso seguinte do art. 5º , o constituinte diz que“são inadmissíveis, no processo, as provas obtidaspor meios ilícitos”, evidentemente que, no processocível, a proibição alcança não só o autor como tam-bém o réu, mas, no processo penal, já que se tratade uma limitação do direito de punir, a norma édirecionada unicamente à pessoa que exerce a titu-laridade da ação penal. O que quero dizer, semtirar nem pôr, é que a Constituição implicitamentepermite que o acusado, no exercício da sua ampladefesa, utilize-se das provas necessárias para acomprovação de sua inocência ou mesmo para ate-nuar a sua culpabilidade, ainda que obtidas deforma ilícita. Essa tese se sustenta na clásula cons-titucional que veda a utilização de provas obtidaspor meios ilícitos dirigida para o Estado, de modoque, em sua essência, quer dizer que ela não poderáser valorada para o fim de dar suporte à condena-ção, mas nada obsta que venha a subsidiar o juízode absolvição.

19 Cf. jurisprudência do Supremo Tribunal Fe-deral referida no tópico 5.3 (BRASIL, 2003d).

20 Lembra BOBBIO (1992, p. 5) que os direitosfundamentais, erroneamente definidos como abso-lutos, são fruto da criação das declarações dos di-reitos do homem, que foi uma necessidade históri-ca, sendo ampliados ou restringidos ao sabor dascircunstâncias da vida. Depois, vieram os direitosda segunda geração, os chamados direitos sociais,e, agora, os da terceira, ainda heterogêneos e vagos,a exemplo do direito a um meio-ambiente puro.

21 (BRASIL, 2003c)22 A Lei nº 9.296, de 1996, regulamentou a inter-

ceptação das comunicações telefônicas e do fluxode comunicações em sistemas de informática e te-lemática, o que abrange a correspondência eletrôni-ca.

23 A Constituição não usa uma terminologiauniforme. Quando tratou do sigilo das comunica-ções, o constituinte utilizou a expressão ordem judi-cial, ao se reportar à prisão cautelar, preferiu a ter-minologia ordem escrita e fundamentada, ao passo

que, ao cuidar do sigilo do domicílio, escolheu de-terminação judicial. Sem embargo da nomenclaturaempregada, em todos esses casos em que se exige aprévia manifestação do judiciário, o pronunciamen-to do juiz se faz por meio de decisão, necessaria-mente escrita e, obviamente, fundamentada.

24 Cf. “A quebra do sigilo fiscal, bancário e tele-fônico de qualquer pessoa sujeita a investigaçãolegislativa pode ser legitimamente decretada pelaComissão Parlamentar de Inquérito, desde que esseórgão estatal o faça mediante deliberação adequa-damente fundamentada e na qual indique a neces-sidade objetiva da adoção dessa medida extraor-dinária. Precedente: MS 23.452-RJ, Rel. Min. Celsode Mello (Pleno). Princípio CONSTITUCIONAL DARESERVA DE JURISDIÇÃO E QUEBRA DE SIGI-LO POR DETERMINAÇÃO DA CPI. – O princípioconstitucional da reserva de jurisdição – que incidesobre as hipóteses de busca domiciliar (CF, art. 5º ,XI), de interceptação telefônica (CF, art. 5 o, XII) e dedecretação da prisão, ressalvada a situação de fla-grância penal (CF, art. 5º , LXI) – não se estende aotema da quebra de sigilo, pois, em tal matéria, epor efeito de expressa autorização dada pela pró-pria Constituição da República (CF, art. 58, § 3º),assiste competência à Comissão Parlamentar deInquérito, para decretar, sempre em ato necessaria-mente motivado, a excepcional ruptura dessa esfe-ra de privacidade das pessoas”. Na linguagem usa-da na jurisprudência do STF, interceptação de co-municação telefônica não se confunde com quebrado sigilo telefônico, uma vez que este diz respeitoapenas ao acesso ao registro dos contatos telefôni-cos, sem que se tenha conhecimento do contéudodo contato.

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