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Robson da Fonseca Neves Significados e (re)significados: o itinerário terapêutico dos trabalhadores com LER/Dort Salvador 2006

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Robson da Fonseca Neves

Significados e (re)significados: o itinerário terapêutico dos trabalhadores com LER/Dort

Salvador

2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Instituto de Saúde Coletiva

Robson da Fonseca Neves

Significados e (re)significados: o itinerário terapêutico dos trabalhadores com LER/Dort

Dissertação apresentada ao Programa

de Pós-graduação em Saúde Coletiva,

Instituto de Saúde Coletiva da

Universidade Federal da Bahia, para

obtenção do grau de Mestre em Saúde

Coletiva.

Área de concentração: Ciências Sociais

Orientador: professora Mônica Nunes

Salvador

2006

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Ficha Catalográfica

Maria Creuza F. Silva CRB 5-996

____________________________________________________

N 511s Neves, Robson da Fonseca. Significados e (re) significados: o intinerário terapêutico dos trabalhadores com LER/Dort / Robson da Fonseca Neves – Salvador : R.F.Neves, 2006. 111p.

Orientador (a) : Profa. Dra. Mônica de Oliveira Nunes.

Dissertação (mestrado) - Instituto de Saúde Coletiva. Universidade Federal da Bahia.

1. Incapacidade para o Trabalho. 2. LER / Dort. 3.

Experiência - Doença. 4. Cura Terapêutica. I. Título. CDU 369.064 : 615.8

____________________________________________________

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Robson da Fonseca Neves

“Significados e (re)significados: o itinerário terapêutico dos trabalhadores com LER/Dort

Data de defesa: 10 de março de 2006 Banca Examinadora:

Profa. Elizabeth Costa Dias – UFMG

Prof. Paulo César Alves – FFCH/UFBA

Profa. Mônica de Oliveira Nunes – UFBA

Salvador 2006

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Penetrar nos labirintos das escolhas

terapêuticas é uma tarefa

demasiadamente sedutora. Sua

entrada parece nítida, mas seu

interior...

Robson Neves

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Dedico este trabalho a minha mãe Irias† e a

meu pai José†, que, em meio à pobreza, me

proporcionaram a riqueza da educação

enquanto vida tiveram. E às professoras Leila

Albuquerque e Helena Maia por me

conceberem para o mundo da pesquisa

científica.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, meu amigo.

A Mônica Nunes, minha orientadora, por ter dividido

generosamente a experiência e por tornar a amizade um produto desta caminhada.

À Universidade Católica do Salvador na pessoa da saudosa

Profa Margarida Machado e da atual diretora da Faculdade de Enfermagem e do Curso de Fisioterapia, Profa Sumaia Sá, pelo incentivo e compreensão, minha eterna gratidão.

À secretária Ana Célia (minha Aninha), pelo seu cuidado,

carinho, proteção, amparo e amor, tão importantes, principalmente nessa etapa tão difícil.

Aos meus colegas da Ucsal e da Unime e aos irmãos da IPA, que

toleraram o meu “não posso por causa do Mestrado”. Ao mestre na essência Henrique Celso, por ter me ajudado a

refletir sobre o mundo científico e sobre o mundo da vida. Aos professores Paulo César Alves e Paulo Pena, por terem

trazido os elementos que faltavam a essa dissertação no momento da qualificação, a generosidade de vocês levo comigo.

A Creuza, Bia, Anunciação e Nea, pela ajuda e gentileza. Às colegas Márcia Marinho e Mônica Coutinho, pela amizade

que nos fortalece nesse itinerário chamado “Mestrado da Vida”. Às minhas amigas Mônica Angelim e Silvia Sá, por terem cedido

as inquietações compartilhadas que deram luz a esse estudo e pelo companheirismo de sempre.

Aos informantes dessa pesquisa e aos amigos do Cesat, pela rica

ajuda em especial aos funcionários do Same. Aos colegas do mestrado pela rica convivência espero encontrá-

los em breve. E a todos os colegas, amigos, irmãos e parentes que torceram

por mim e suportaram a minha ausência, especialmente àqueles que trazem paz ao meu coração: Cal, Day, Ana Nery, Cleide, Deise, Bruno,Profa Lurdes e Rosália a Cátia Suse, Simone Cucco, Alcylene, Nildo, Yana, Joca, Ricardo, Eduardo, Mônica Lajana, Marcos, Ana Márcia, Francesca, Ludmilla, Arismari, Helaine, Fábio Almeida, Jorge Beke, Adriano Rodrigues, Mara Rúbia, Eliana Brito, Maura, Mônica, Marielson, Mateus, Toinho, Simone, Peu e Mari ...

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SUMÁRIO

Apresentação.......................................................................................................

Artigo I: LER: uma experiência de ofensa ao corpo

Resumo.................................................................................................................

Abstract.................................................................................................................

Introdução.............................................................................................................

Cenários teórico-metodológicos...........................................................................

Construindo enredos para a incapacidade...........................................................

Percepção da incapacidade: incipiência da experiência.......................................

Resistindo... .........................................................................................................

Da metáfora ao nome...........................................................................................

Para além do corpo experencial e social, “o corpo político”................................

Referências bibliográficas...................................................................................

Artigo II: Da legitimação à (re)significação: o itinerário terapêutico de

trabalhadores com LER/Dort

Resumo.................................................................................................................

Abstract.................................................................................................................

Introdução.............................................................................................................

Trilha teórico-metodológica.................................................................................

O trabalho de campo.............................................................................................

Da percepção para a legitimação: da enfermidade para a doença........................

Excesso e culpabilização: representações etiológicas da LER/Dort................

Itinerário terapêutico: sinais, sintomas e significados.........................................

O valor social do curso da doença........................................................................

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O mito da cura e o significado da fala..................................................................

Referências bibliográficas....................................................................................

Anexos

Projeto de pesquisa...............................................................................................

Termos de consentimento livre e esclarecido.......................................................

Roteiro de entrevista.............................................................................................

Perfil dos trabalhadores entrevistados..................................................................

Aprovação no comitê de ética

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APRESENTAÇÃO

As LER/Dort (Lesões por Esforços Repetitivos/ Distúrbios Osteomusculares

Relacionados ao Trabalho) são síndromes crônicas caracterizadas pela

multideterminação causal que confere um caráter emblemático a sua ocorrência. Trata-

se de um importante problema de Saúde Pública, que leva os lesionados a procurarem

serviços médicos e previdenciários, devido à incapacidade física e laborativa que pode

gerar. Esta pesquisa representa o esforço de evidenciar os processos de busca de cura

das LER/Dort sob o olhar da antropologia e da sociologia médica.

A motivação para a elaboração do projeto de dissertação deu-se a partir de

um estudo realizado no ano de 2001, no Cesat (Centro de Estudo de Saúde do

Trabalhador), na Cidade de Salvador, Bahia, intitulado: “Atitude frente à dor em

trabalhadores de atividades ocupacionais distintas: uma aproximação da psicologia

cognitivo-comportamental”. Este estudo, de cunho quantitativo, foi realizado com uma

amostra de trabalhadores com diagnóstico de LER e, dentre outros achados, gerou

informações e interrogações importantes sobre as trajetórias de cura desses

trabalhadores.

As questões levantadas no estudo acima faziam eco com minha atuação

profissional como fisioterapeuta, porém, aceitar o desafio de estudar o itinerário

terapêutico de trabalhadores com LER/Dort exigiu de mim uma aproximação ao terreno

estranho e, por vezes, movediço da interpretação fenomenológica, a qual serviu de eixo

principal para a execução da dissertação atual. Além disso, a minha inserção na clínica

de dor em um hospital-escola em Salvador possibilitou uma aproximação maior com os

lesionados crônicos, sobretudo com os acometidos pelas LER, onde pude exercitar o

olhar e o ouvir.

A etapa de qualificação foi fundamental para a concepção do trabalho atual,

pois apontou para a necessidade de olhar para o curso diacrônico do adoecimento de

trabalhadores, levando em consideração as marcas que as transformações e relações de

trabalho imprimem no processo de adoecimento e as repercussões disso sob o prisma

macrossocial. Pontuou, também, a necessidade de reconhecer quem é esse sujeito

doente e qual é seu papel social. Este processo exigiu um mergulho nas narrativas de

trabalhadores com diagnóstico de LER/Dort, a fim de extrair as estruturas de relevância

sobre a experiência da doença, metáforas empregadas para esse adoecimento, modelos

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de realidade que ajudam a explicar a ocorrência da doença e os itinerários terapêuticos

traçados pelo sujeito doente.

O mergulho no material produzido a partir das entrevistas aguçou o escrever

e, nesse momento, o diálogo com os autores e a vivência e troca de experiências no

ambiente acadêmico possibilitaram a produção de dois artigos que compõem o corpo

dessa dissertação.

O primeiro artigo – LER: uma experiência de ofensa ao corpo – apresenta

uma abordagem de reconhecimento da incapacidade, com base na experiência de

adoecer a parir das reflexões de Artur Kleinman, Byron Good e Paulo César Alves,

fazendo um diálogo com autores como Nancy Scheper-Hughes, Luc Boltanski e Maria

Cecília Donnangelo, a fim de compreender a geração da incapacidade sob a ótica dos

conceitos de corpo fenomenológico, social e político.

No segundo artigo – Da legitimação à (re)significação: o itinerário

terapêutico de trabalhadores com LER/Dort –, utilizei a noção de modelos

explanatórios de Kleinman como estrado para compreender os processos de escolha e

adesão de terapêuticas assumidas pelos trabalhadores doentes dentro do campo de

possibilidades de que dispõem, mas atentando para os processos socioeconômicos e

políticos que permeiam essas trajetórias.

As possibilidades de retorno desses estudos traduzem-se na condição real de

levar essa discussão para dentro da academia, visto que, na condição de professor do

curso de fisioterapia, posso amadurecer mais ainda o debate sobre as questões e

reflexões aqui iniciadas, com vistas à sensibilização para o cuidado mais humanizado e

enriquecido pela noção de funcionalidade. Penso também na interlocução que teremos

no Projeto Cuidados Integrais em LER/Dort, pois trata-se de um grupo de

pesquisadores e técnicos que vêm pensando a rede de cuidados em saúde para

trabalhadores com essa síndrome no Estado da Bahia, certamente essas indagações e

reflexões trarão elementos novos para novas e profícuas reflexões. Por fim, aproveitarei

as oportunidades que tiver para discutir o tema com os trabalhadores nos espaços

criados pelas entidades de classe e com outros interlocutores atentos que poderão

contribuir com suas impressões sobre as premissas encontradas neste texto.

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LER/Dort: uma experiência de ofensa ao corpo

Robson da Fonseca Neves & Mônica Nunes

RESUMO

As LER/Dort são síndromes de repercussões importantes para a saúde do trabalhador e

para os sistemas previdenciários e de saúde brasileiros e têm origem nas lesões

osteoarticulares cuja complexidade segue o curso histórico das profundas modificações

ocorridas no trabalho e nas relações de trabalho. Objetiva-se conhecer a experiência de

adoecimento sob a ótica do “corpo incapacitado” nas perspectivas fenomenológica,

social e política, apoiando-se nos pressupostos da “experiência de enfermidade” e nas

“narrativas da doença”. Para construir esses enredos, utilizou-se a “análise temática” de

entrevistas em profundidade com trabalhadores sob regime de benefício pela

Previdência Social brasileira. A trama foi tecida partindo do auto-reconhecimento dos

trabalhadores sobre sua condição antes do adoecimento, seguindo pelas percepções

iniciais da incapacidade, bem como as estratégias mais incipientes de enfrentamento até

ações mais pragmáticas de resistência, passando pelas construções metafóricas que

apontam para processos legitimadores da invalidez. Sentidos e significados foram

extraídos dessas experiências, denotando também processos macrossociais imbricados

nos sentidos da vida prática, requerendo uma visão holística, dialeticamente integrada a

estratégias que valorizem mais a abordagem intersubjetiva sobre a incapacidade em

LER/Dort.

Palavras-chave: experiência de enfermidade, incapacidade, LER/Dort

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RSI/WMSD: Experiencing an offense to the body

ABSTRACT

Making a considerable impact on both Brazilian workers’ health and the national social

security system, Repetitive Strain Injuries (RSIs)/ Work-Related Musculoskeletal

Disorders (WMSDs) have their origins in osteoarticular injuries, the complexity of

which has paralleled the deep changes in the work and the work relations throughout

history. This work is aimed at phenomenologically, socially and politically grasping the

illness experience from the viewpoint of the “disabled body” by drawing on “illness

experience” and “disease narratives”. “Thematic analysis” of in-depth interviews with

Brazilian workers receiving Social Security compensation was used to build the illness

plots, which ranged from the workers’ own acknowledgement of their condition before

sickness, followed by their early perceptions of the disability together with the initial

coping strategies, to more pragmatic resistance actions and metaphorical constructions

pointing to processes aimed at legitimizing their disability. The sense and meaning

produced by those experiences, which also denoted macrosocial processes embodied in

everyday life senses, require a holistic view that is dialectically combined with

strategies valuing intersubjective approaches on the disability in RSI/WRMSD.

Key Words: illness experience, disability, RSI/WRMSD

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INTRODUÇÃO

O célebre livro “De Morbis Artificum Diatriba”, escrito por Bernardino

Ramazzini no século XVII, traz uma série de relatos de processos de adoecimento

experimentados por trabalhadores de diversos ofícios da época. Essas descrições têm em

comum a particularidade de evidenciar a doença como um fator importante de

sofrimento de várias ordens para os indivíduos, de trazer à tona a centralidade do

trabalho para a vida dessas pessoas e, por fim, apontar a incapacidade para o labor

diário como uma falha moral a ser considerada na dinâmica do adoecimento. Neste

relato de Ramazzini sobre a cãibra do escrivão, esses aspectos emergem:

“Conheci um homem, notário de profissão, que ainda vive, o qual

dedicou toda sua vida a escrever, lucrando bastante com isso;

primeiro começou a sentir grande lassidão em todo o braço e não

pôde melhorar com remédio algum e, finalmente, contraiu uma

completa paralisia do braço direito. A fim de reparar o dano,

tentou escrever com a mão esquerda; porém, ao cabo de algum

tempo, esta também apresentou a mesma doença. Em verdade,

martiriza os operários o poderoso e tenaz esforço do ânimo,

necessitando para seu trabalho grande concentração de todo o

cérebro, contenção dos nervos e fibras; sobrevêm as ‘cefalalgias’,

corizas, rouquidões, lacrimejamento de tanto olharem fixamente o

papel, conseqüências estas que afetam muito mais os contadores e

mestres de cálculo, como assim se chamam os que se alugam aos

comerciantes” (Ramazzini1, 1988; 158).

A incapacidade encontrada nos relatos de Ramazzini parece apontar para

uma anormalidade ou perda da estrutura ou função psicológica, fisiológica ou

anatômica, o que se aproxima bastante do conceito de disfunção ou deficiência2

proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O termo limitação2 também é

utilizado com freqüência com o mesmo significado dos demais nos contextos cotidianos

para representar a incapacitação. A OMS distingue bem e dá significados bem precisos

para os léxicos acima, além disso, incorpora a idéia de disfunção e de deficiência para

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definir inicialmente a incapacidade como “qualquer redução ou falta da capacidade

para realizar uma atividade de uma maneira que seja considerada normal para o ser

humano, ou que esteja dentro do espectro considerado normal” (Mendes3, 2003: 60).

Atualmente, a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde2

(CIF/OMS) amplia o conceito afirmando que “utiliza o termo ‘incapacidade’ para

denotar um fenômeno multidimensional que resulta da interação entre pessoas e seu

ambiente físico e social” (p.271). Portanto, de acordo com esse novo modelo conceitual,

a incapacidade representa um conjunto complexo de condições que envolvem fatores

biológicos, sociais, culturais e políticos.

Sob o prisma do trabalho, a incapacidade laborativa3 no Brasil também é

cotidianamente referida como deficiência e limitação, mas, sobretudo, é comumente

chamada de invalidez4, termo que é aplicado a todo aquele que é considerado incapaz e

insusceptível de reabilitação para o exercício de atividade que lhe garanta a

subsistência. Para fins previdenciários, a incapacidade laborativa ou incapacidade para o

trabalho é definida pelo Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) como “a

impossibilidade do desempenho das funções específicas de uma atividade (ou

ocupação), em conseqüência de alterações morfopsicológicas provocadas por doença

ou acidente”3 (p.60). Nota-se, portanto, que existe um descompasso conceitual entre as

concepções de incapacidade da OMS e da Previdência Social brasileira, de forma que

esta última parece reduzir o problema a uma dimensão quase que puramente biomédica.

Trabalhando nessa perspectiva, a Previdência Social brasileira, o Sistema

Único de Saúde (SUS) e as empresas públicas e privadas totalizam números alarmantes

que dizem respeito à invalidez no Brasil, apesar da escassez e inconsistência das

informações. Estima-se que, no período de 1999 a 2003, a Previdência Social registrou

1.875.190 acidentes de trabalho e, no mesmo período, foram concedidos 854.147

benefícios por incapacidade temporária ou permanente devido a acidente de trabalho5.

Em 2003, os gastos da Previdência Social com pagamento de benefícios acidentários e

aposentadorias especiais no setor formal de trabalho foram estimados em cerca de 8,2

bilhões de reais. Certamente, o Estado brasileiro gasta muito mais do que o estimado

acima, uma vez que custos dessa população com saúde, reabilitação profissional e

outros gastos correlacionados não foram contemplados nessas estimativas5.

O planejamento e o financiamento para a assistência ambulatorial e

hospitalar prestada pelo SUS à saúde do trabalhador têm sofrido bastante com a falta de

informações sobre os custos dispensados para esses casos6, o que torna o problema mais

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agravado e de solução mais remota. Diante dos cenários já citados, fica claro como a

incapacidade para o trabalho é um problema de saúde pública importante e o quanto ele

precisa ser repensado sob outros prismas que não apenas o da ordem biomédica de

estabelecimento da incapacidade nas ocorrências patológicas que levam a essa

condição.

Diversas fontes de adoecimento levam à incapacidade para o trabalho, dentre

elas as LER/Dort7 (Lesões por Esforços Repetitivos/ Distúrbios Osteomusculares

Relacionados ao Trabalho), que são síndromes que têm origem histórica nas lesões

osteoarticulares e cuja complexidade na contemporaneidade segue o curso das

sucessivas e profundas modificações que sofreu o trabalho, o processo de trabalho e as

relações de trabalho no decorrer da nossa história8,9. Atualmente, evidencia-se uma

variedade de quadros relacionados a essas síndromes e uma gama de teorias explicativas

do processo de causação, que apontam para os fatores biológicos, sociais e psicológicos

como agentes desse processo de adoecimento10. Por isso, torna-se tão problemática a

conceituação desses episódios de adoecimento e tão instigante a procura de novas

informações sobre essa síndrome e suas repercussões.

É vasta a produção de conhecimentos sobre saúde e trabalho, e, em parte, é

graças a essa iniciativa que se estabelece o campo da saúde do trabalhador11. É também

considerável a contribuição das ciências sociais nesse campo. Em uma recente revisão,

Minayo-Gomez e Thedim-Costa12 escrutaram esses trabalhos, sobretudo os produzidos

no Brasil, e caracterizaram as abordagens ali encontradas da seguinte forma: reflexões

sobre a construção e características do campo de conhecimento da saúde do trabalhador;

políticas de saúde do trabalhador e práticas institucionalizadas; abordagens

compreensivas; questões de gênero e temáticas decorrentes da precarização do mercado

de trabalho. Dentre esses assuntos, a temática compreensiva foi a que mais se

aproximou do presente estudo, visto que trata de questões pertinentes ao campo,

especificamente do adoecimento de trabalhadores, ao abordar a práxis social dos

trabalhadores, o sentido que conferem ao cotidiano do trabalho, suas formas de ser,

sentir, perceber e agir, além de destacar o trabalhador como sujeito que, ao interagir

com as condições objetivas, elabora categorias próprias de pensamento e ação.

No Brasil, alguns estudos tratam especificamente da questão da LER/Dort na

perspectiva das ciências sociais. O trabalho de Rocha13 tratou da questão da construção

social da LER/Dort e representou um importante esforço teórico na luta pela

legitimação da doença em nosso país. Verthein & Minayo-Gomez14 criticam o poder

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hegemônico do capital ao constituir um modelo reducionista de entendimento dos Dort

baseado na neuropsiquiatrização e na idéia de distúrbios adquiridos por uma

predisposição do sujeito a adoecer. Este modelo tinha por finalidade descaracterizar a

participação do trabalho no adoecimento dos lesionados com o objetivo de reduzir

custos para o INSS.

Merlo et al15 estudaram o sofrimento psíquico dos portadores de LER a

partir do referencial teórico-metodológico da psicodinâmica do trabalho e afirmam que

existe uma complexa relação que vincula a dor às vivências subjetivas e à identidade

social do trabalhador doente. A psicodinâmica do trabalho16 postula que a escuta do

trabalhador, a mediação da linguagem, é considerada essencial para apreender os

significados que ele dá a sua vivência. Essa corrente analítica propõe-se a compreender

a dinâmica dos processos mórbidos pela confrontação do sujeito com a realidade do

trabalho. Merlo et al chegam a uma conclusão que parece bastante útil para o presente

estudo: “Pensar os efeitos das LER/Dort na saúde dos trabalhadores implica pensar no

lugar atribuído ao trabalho em nossa sociedade, na importância que este assume na

produção da subjetividade e também nos modos de adoecer dos trabalhadores”

(p.134).

Nesse sentido, a tese de Magalhães17, baseada em referenciais do campo

socioantropológico, trata das representações sociais dessa síndrome de forma densa,

explorando as experiências mais gerais dos sujeitos doentes nos campos da causalidade,

curso, terapêutica e projeções futuras, evidenciando o grande hiato existente entre a

experiência do lesionado e o que é descrito nos manuais técnicos e acadêmicos. Mesmo

com essa valiosa contribuição, ainda é escassa a abordagem que trata da experiência da

doença, especialmente na perspectiva da antropologia médica, dentre os estudos sobre

LER/Dort no Brasil.

No presente artigo, tomou-se como objeto de estudo a experiência de

adoecimento de trabalhadores com diagnóstico de LER/Dort na cidade de Salvador-BA,

e o foco centrou-se na produção de significados sobre a incapacidade, desde a sua mais

incipiente percepção até o processo de reconhecimento social dessa condição. Para

tanto, buscou-se, nas experiências de trabalhadores com diagnóstico firmado de

LER/Dort, os enredos e suas traduções nos campos fenomenológico, social e político. O

entendimento dessas dimensões pode trazer luz para os processos diagnósticos,

terapêuticos e de reabilitação desses doentes, bem como reorientar políticas públicas de

atenção à saúde do trabalhador.

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CENÁRIOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

A presente pesquisa, de cunho qualitativo, abordou a experiência do

adoecimento por LER/Dort em trabalhadores da cidade de Salvador, através de um

diálogo profícuo com a antropologia médica. Para visitar esse mundo investido de

complexidades, foi necessário um aporte teórico conceitual que ora se expõe para tornar

o objeto minimamente tangível e passível de análise. Nesse sentido, a noção de

“experiência da enfermidade” e de “narrativas da enfermidade” permeiam o sentido de

estar doente no mundo da vida e são conceitos úteis para esse artigo.

A realidade social inscrita num sistema biomédico como o nosso parece não

valorizar o que a literatura antropológica médica chama de illness, visto que a

perseguição materialista dos mecanismos biológicos de causação da doença torna

encobertas perturbações potencialmente tratáveis a partir do mundo da vida das

pessoas18. Isso tem repercussões claras, pois, para quem sofre, o corpo não é só um

objeto físico ou fisiológico, mas é também uma parte essencial do “eu”. Dessa forma,

admite-se que o corpo não está dissociado da consciência, da subjetividade e do mundo

vivido19. Rejeitando o fisicalismo reducionista, vários autores, dentre eles Byron

Good19, Robert Huhn20, Artur Kleinman21 e Allan Young22, entendem a illness como:

percepções da pessoa e experiência da pessoa de certos estados socialmente

desvalorizados, incluindo, mas não limitado à doença.

Partindo do princípio acima, Kleinman18 afirma que as organizações

culturais locais, referindo-se às maneiras padronizadas pelas quais nós aprendemos a

pensar sobre nossas vidas e a agir sobre os nossos mundos vitais, organizam o nosso

senso comum convencional de modo que a experiência da illness é sempre

culturalmente moldada. Além disso, aponta ainda que as expectativas convencionais

sobre a illness são alteradas através de negociações em diferentes situações sociais, em

redes particulares de relações e, por fim, também diferem devido às nossas biografias

individuais singulares, o que leva a crer que a experiência da illness é também distintiva

ou individual.

Alves23 faz uma cuidadosa revisão sobre as considerações teóricas a respeito

da experiência de illness, que ele chama de “experiência da enfermidade”, e afirma que

a antropologia vê com cuidado a interpretação de como os indivíduos se apropriam de

um conjunto de idéias e crenças relativas à doença. Para tangenciá-la, acredita não ter

que escolher entre a determinação social ou a estrutura cognitiva, pois esta experiência

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comporta aspectos tanto sociais como cognitivos, tanto subjetivos (individuais) como

objetivos (coletivos). E conclui esse aspecto dizendo que: “A questão-chave que deve

ser colocada é como tornar ‘inteligível’ o movimento pelo qual as práxis individuais e a

generalidade do social se constituem e reconstituem entre si” (p.264).

Amparado nos pressupostos acima, Alves e Rabelo24 compreendem a

experiência da enfermidade como: “A forma pela qual os indivíduos situam-se perante

ou assumem a situação de doença, conferindo-lhe significados e desenvolvendo modos

rotineiros de lidar com a situação” (p.171). Esses autores falam do “sentir-se mal”

como uma referência à corporeidade, contudo não se referindo unicamente a alterações

ou disfunções orgânicas, mas também ao corpo vivido, indissociável da subjetividade.

Com isso, não se quer afirmar que a enfermidade se constrói apenas com base em

atitudes reflexivas, destacada do fluxo de vivências. Mais que isso, ela também se

substancia como significados através da construção intersubjetiva, isto é, a partir de

processos comunicativos de definição e interpretação reconhecidos e legitimados

socialmente24.

Essas premissas parecem bastante apropriadas para o contexto da LER/Dort

e da incapacidade, visto que a perturbação provocada pela incapacidade assimila o curso

da história de vida desse indivíduo. Dessa forma, como é dada ao indivíduo a

capacidade de expressar, interpretar e comunicar a sua experiência de sofrimento?

Respondendo a esse questionamento, as narrativas de enfermidade podem desempenhar

um papel central nos casos de incapacidade devido à LER/Dort, uma vez que elas têm a

propriedade de organizar uma experiência e de fazer com que ela tenha sentido25.

Good19 acredita que as narrativas, ou histórias com enredos, são uma das tentativas de

dirimir a dissolução do mundo da vida e uma forma também utilizada pelos sofredores e

pela sociedade para reconstruir o mundo desestruturado pela doença.

O interesse pela dimensão narrativa da enfermidade tem início na década de

70, centrando-se sobre a busca do cuidado e sobre processos terapêuticos. Duas

correntes derivam da literatura dessa época, uma encontrada dentro da medicina, como

uma forma mais elaborada das histórias de caso, que reflete sobre o que a doença diz

acerca do sofrimento da condição humana, e outra que emerge da pesquisa de sociologia

qualitativa. Mas é na década de 80, com a análise antropológica de Kleinman, que se

mostra a importância dos arcabouços sociais e culturais dentro dos quais as narrativas

surgem19. Nessa perspectiva, o sentido é criado na experiência de enfermidade narrada,

seguindo as linhas do roteiro traçado pela pessoa, as metáforas-chave, os artifícios

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retóricos, repertório de linguagem, idioma, imagens, mitos e lendas provenientes da

cultura na qual aquele sofrimento aconteceu18, 25.

Outro aspecto importante das narrativas diz respeito ao enredo, entendido

aqui como aquilo que dá ordem a uma história. Mais do que uma estrutura de relações

seqüenciais, o enredo é uma ordem significativa através da qual as experiências dos

eventos são colocadas juntas para formar uma história19. Além disso, Ricoeur apud

Good afirma que o enredo não está simplesmente presente como estrutura de uma

narrativa, mas, sim, ele é criado pelos leitores momento a momento na tentativa de

extrair a estrutura e o significado dos eventos19.

Enfim, as histórias de enfermidade refletem relações sociais conflitantes no

seio de famílias, nas relações de trabalho, fazem emergir relações de poder e de gênero

que dão um contorno especial a essas narrativas. Nesse sentido, a proposição de Lock e

Scheper-Hughes26 sobre os três corpos adiciona alguns elementos analíticos para pensar

a dimensionalidade holística do adoecimento e da incapacidade. No primeiro nível de

análise, portanto, o mais evidente, está o corpo subjetivo ou fenomenológico-individual,

que se refere a uma realidade existencial. No segundo nível está o corpo social que se

reporta a representações sociais e simbólicas culturais do corpo que contribuem para a

experiência do “eu” fenomenológico, bem como contribui para a estrutura das relações

sociais. No último nível e, portanto, no nível da abstração, reside o corpo político, que

faz alusão às maneiras pelas quais o corpo é manipulado como objeto público e como os

indivíduos e populações são regulados e controlados dentro de relações econômico-

políticas específicas de produção e dominação.

A visão de Lock e Scheper-Hughes aproxima-se das concepções de corpo e

trabalho de Luc Boltanski27 e de Donnangelo & Pereira28, pois as descrições desses

autores centram-se na instauração do corpo como realidade social, buscando, a partir

daí, explicar e identificar o papel disciplinador, ou de normatização, do corpo, exercido

pela própria medicina. A esse respeito complementa Donnangelo & Pereira: “(...) a

compreensão do modo pelo qual a sociedade toma seus corpos, os quantifica e lhes

atribui significado cultural, político e econômico é indispensável para explicar as

formas assumidas pela prática médica (...)” (p.27).

Dessa forma, entende-se que a incapacidade comporta componentes

subjetivos originados no ato individual de perceber o sentido do mal-estar, mas também

se adensa e se completa nos processos intersubjetivos adquiridos na vida cotidiana, onde

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a doença é legitimada e objetivada. Portanto, é dessa dialética que nascerão os primeiros

rudimentos de uma compreensão dos significados da incapacidade.

Os conceitos acima não se estabeleceram como categorias a priori que

determinaram à orientação do material empírico, todavia foram empregados como

quadros referentes para as exaustivas leituras das interlocuções que surgiam durante o

trabalho de campo, no intuito de capturar um sentido compartilhado entre o plano

teórico e o empírico.

O estudo contou com a participação de oito trabalhadores com diagnóstico

de Ler/Dort há mais de um ano, sob regime de beneficio da Previdência Social do

Brasil3, 4 por “auxilio-acidente”, conforme enquadramento nas condições estabelecidas

pelo art. 104 do Decreto nº 3.048/99; “auxílio-doença”, como regulamentado pelos arts.

71 e 80 do Decreto nº 3.048/99, ou “aposentadoria por invalidez”, conferida nas

condições estabelecidas nos arts. 43 a 50 do Decreto nº 3.048/99. Esses informantes são

de ambos os sexos, pertencentes a classes sociais e inserções religiosas diferentes, com

níveis de gravidade da lesão e causa do adoecimento diversos, sob variado regime de

trabalho, sendo que apenas um dos entrevistados não estava afastado das atividades

laborativas no período da entrevista (Anexo III).

Para a construção do corpus da pesquisa, utilizaram-se a entrevista narrativa

e informações obtidas dos documentos comprobatórios sobre o motivo do afastamento,

benefício e aposentadoria. A coleta foi realizada no período de julho a outubro de 2005,

e a entrevista aconteceu no local escolhido pelo entrevistado, tomando cuidado apenas

para que a narração não fosse interrompida por eventos externos indesejáveis. Os

instrumentos adotados foram o roteiro de entrevista e o diário de campo. As entrevistas

foram gravadas em fita cassete de 60 minutos e posteriormente transcritas.

Minayo29 afirma que a entrevista é um instrumento privilegiado de coleta de

informações, pois a fala é reveladora de condições estruturais, de sistemas de valores,

normas e símbolos. Corin et al. complementam mostrando que a coleta de narrativas

sobre a doença possui nítidas vantagens sobre outras técnicas, pois o saber médico não

profissional está embutido em contextos de ação e as narrativas permitem que se

mantenha este elo fundamental entre saber e contexto30.

Dentre os modelos de entrevista em profundidade existentes, a entrevista

narrativa, definida aqui como técnica que busca reconstruir acontecimentos sociais a

partir das histórias narradas dos informantes, foi escolhida, pois permite ao entrevistado

relembrar o que aconteceu, fornecendo uma seqüência para sua experiência, ajudando a

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encontrar explicações para os fatos e eventos e, por fim, modelando os acontecimentos

que compõem a vida individual e social atribuindo sentido às experiências31.

O material empírico obtido da entrevista narrativa foi avaliado sob a ótica da

análise temática31, considerada pertinente para a presente pesquisa visto que constitui

uma interpretação das entrevistas, juntando estruturas de relevância dos informantes

com as do entrevistador, o que remete ao conceito de “fusão de horizontes” presente na

teoria hermenêutica32.

A célebre metáfora “fusão de horizontes”, tomada aqui como conceito,

refere-se à idéia de receptividade para acolher outras tradições e outras culturas. Esse

princípio mostra que, ao se debruçar sobre o texto narrativo do informante, uma tarefa

se ergue: os mundos do intérprete e do interpretado, ambos mergulhados num contexto

histórico de culturas e tradições, mediados por uma efusão de símbolos supostamente

diferentes, precisam tornar-se complementares e minimamente dialógicos. A esse

respeito, Soares33 afirma que:

“A reflexão hermenêutica pode, isto sim, nos ajudar a entender

melhor o que está em jogo nos processos interpretativos, no

movimento da compreensão. Mais do que isso, e a partir daí, pode

nos apoiar na tentativa de lidar com os próprios limites das assim

chamadas ciências humanas” (p.18).

Casal32 e Soares33, estudando a compreensão hermenêutica de Ricoeur,

apreenderam que uma fusão entre o explicar, entendido como destacar as relações

internas que constituem a estatística do texto, e o interpretar, que é colocar-se no sentido

indicado e trazido pelo próprio texto, produz, no ato hermenêutico, a explicação

possível, que é atingida pela dialética que opera entre os dois sentidos anteriormente

explicitados. Perseguir essas premissas constitui-se o lastro utilizado para apreender

melhor a produção de significados que o adoecimento relacionado a LER/Dort traz no

bojo de seu curso enunciado pelas narrativas dos doentes.

Durante as entrevistas, e a partir do seguinte tópico central: “Conte

detalhadamente como e quando você começou a trabalhar e como essa doença entrou

na sua vida, destacando as repercussões provocadas por ela”, exploraram-se vários

temas, desde a inserção do entrevistado no mundo do trabalho, passando pela história da

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percepção inicial do adoecimento, caminhos trilhados para tratar a doença e o

reconhecimento social da doença.

Foram adotados os procedimentos éticos na pesquisa com seres humanos

segundo a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde e suas complementares e,

a fim de preservar a identidade dos entrevistados, utilizaram-se nomes fictícios no corpo

deste texto.

Construindo enredos para a incapacidade

Tomando como base o conceito já explicitado de enredo e o fato de que as

várias histórias transcritas de adoecimento dos trabalhadores lesionados são enredos

potenciais capazes de fornecer sentido para sua condição, o arcabouço que se segue é a

tentativa de uma justaposição entre os horizontes do contador da história e de um leitor

atento.

A trama parece tecer-se em atos distintos, mas complementares, que vai do

auto-reconhecimento do trabalhador sobre sua condição, antes dos primeiros indícios de

incapacidade, passando pelas percepções de mudanças nas condições de realização das

atividades de trabalho e da vida diária, pelo reconhecimento de alterações nas estruturas

do corpo e nas atitudes pessoais, seguindo na direção da adoção de estratégias iniciais

de enfrentamento e, por fim, desembocando na construção do corpo incapaz.

Diferente dos relatos de Ramazzini, que se ocupava das descrições dos

adoecimentos dos trabalhadores de categoria distintas, nos interessa, nesse momento,

apresentar brevemente o perfil dos entrevistados quanto ao desempenho nas funções de

trabalho e sua participação nas atividades da vida diária antes das percepções iniciais de

incapacidade. Com isso, não se deseja propor a existência de um ethos que norteia o

mundo da vida desses trabalhadores, mas, sim, criar uma base inicial de entendimento

sobre suas concepções de vida e trabalho. O trecho da entrevista de Mara precisa melhor

essas observações quando comenta sobre seu trabalho e sua vida.

Daí eu trabalhava com planejamento da área de rede, eu

trabalhava com a supervisão das linhas de rede; era toda sobre

minha responsabilidade, eu tinha que estar dando, era assim tipo

uma monitoria, tá? Já pagou? Não pagou? Se não pagou, eu tenho

que entrar em contato com o cliente, então, era pra mais de, vamos

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dizer, na época era pra mais de duzentas linhas de rede. Por quê?

Porque [a empresa] ela tem clientes e que dá apoio via central de

atendimento, você está entendendo? (...) Eu tinha que chegar,

abrir, ter a cautela de verificar quem tava, tinha linha quebrada,

então tinha que acionar. Fora isso, eu ainda fazia o atendimento à

secretaria. Eu fazia adiantamento de viagem, cuidava das

transferências de despesas de viagens de todos os tipos que você

puder imaginar, eu que solicitava o dinheiro pra pagar essas vias

que eram comutadas, tá entendendo? Interligadas, era Mara que

fazia lá pra Brasília. Então, todo esse processamento, eu não tive,

como é que chama? Tempo mais de respirar. Eu trabalhava ali,

era trabalho intermitente, não é assim que se fala? (...) Então, pela

minha experiência em secretaria, essas coisas todas, eles me

pediram pra eu ir pra lá pra poder organizar a documentação. Lá,

nós tínhamos: arquivos de toda a empresa, tinha diversos arquivos,

toda e qualquer correspondência que entrava e saía era lá, malote

era nesse espaço dentro da empresa. (...) Mas eu antes era uma

pessoa assim muito... muito sossegada, eu não abria a boca para

revidar nada, sabe? Eu não tinha uma discussão voltada, nenhuma

discussão voltada, eu tinha uma discussão de trabalho, eu tinha

uma discussão de organização de trabalho, eu tinha uma discussão

de produção, você está me entendendo? Eu tinha uma discussão de

empresa! (...) ah, eu tinha uma vida social assim maravilhosa,

graças a Deus! Eu tive um casamento maravilhoso de 18 anos de

casada, tá entendendo? E com quatro filhos, né? E eu tinha vida

muito sossegada, muito equilibrada financeiramente, certo? (Mara,

secretária).

Assim como Mara, os informantes desta pesquisa destacam a eficiência, a

agilidade, a precisão, a capacidade de liderança, a versatilidade, a experiência

acumulada, a dedicação, o interesse de crescimento, a disponibilidade, a disposição

incessante, dentre outros, como elementos visíveis de suas atuações no mundo do

trabalho e da vida. Todos esses adjetivos traduzem-se no fazer e no agir, que operam na

dimensionalidade da função, ou seja, as atividades e participações descrevem como o

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indivíduo exerce suas atividades diárias e se engaja na vida social, considerando as

funções e estruturas do seu corpo2, 34. Dessa forma, emerge a idéia de normalidade, tão

útil e tão cara para a sociedade contemporânea.

Subjazem também outros sentidos compartilhados como próprios da

dimensão do trabalho e da vida, como o companheirismo, a solidariedade, a validação

da competência, a responsabilidade, a honestidade, a ética profissional, a competição, a

integridade física e o fascínio por sentir-se útil, adjetivos que, em última análise,

parecem conferir a noção de moral para esses trabalhadores. Não se pretende aqui fazer

um estudo mais aprofundado dos construtos de normalidade e de moralidade, mas, sim,

trazer à tona proposições como a de Helman25 quando afirma que: “As narrativas

emergem em momentos de ruptura inesperada no fluxo da vida diária. Isso implica o

conceito de um estado prévio de normalidade, que, por sua vez, pode ser amplamente

definido em termos culturais”. (p.130). Esse momento de ruptura é marcado em muitos

casos pela possibilidade de falha moral, conforme mostra a fala de Margareth:

Minha mãe não trabalhava, e meus outros irmãos, todos, eram de

menor e não trabalhavam, então, quando eu trabalhei no banco,

foi um momento que melhorou bastante a situação da gente,

financeira, entendeu? Então, meu salário era muito importante

naquele momento. Aí eu tinha medo, e pensava: “Poxa, se eu for

demitida, como é que vai ser lá em casa?”. Minha mãe, separada

de meu pai, e a torcida de meu pai era que desse tudo errado,

então, a gente tinha que mostrar pra ele que ia dar tudo certo,

entendeu? (Margareth, digitadora).

A falha moral apresenta-se como uma quebra na possibilidade de continuar

reproduzindo símbolos sociais tão caros à existência humana em coletividades como

responsabilidade, capacidade de competição, manutenção da subsistência, dentre outros

já citados acima. Nessa direção, Good19 sugere que se focalize na forma como as

dimensões do mundo percebido são desestruturadas, dilaceradas, interrompidas, como

resultado de uma enfermidade séria. Para isso, é necessário um investimento maior nas

histórias dos adoecimentos dos trabalhadores, conforme se segue.

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Percepção da incapacidade: incipiência da experiência

A percepção de que alguma coisa não está bem para os trabalhadores

entrevistados passa pela dimensão do corpo que serve ao trabalho, na expressão do

descompasso entre a produção exigida pelo trabalho e a produzida pelo corpo do

trabalhador, evidenciadas pela diminuição da produção, das constantes advertências dos

superiores hierárquicos, da detecção da queda do rendimento nos processos de avaliação

da empresa e a perceptível diminuição da agilidade para o trabalho. Esses desarranjos

são percebidos pelos indivíduos, porém não se traduzem inicialmente como doença ou

como incapacidade, como mostra a fala dessa informante:

...eu via todo mundo dando produção e eu não conseguia chegar,

né? Eu fazia somente as coisas pela metade, eu comecei a fazer as

coisas pela metade e isso já estava me incomodando. E, lá na

empresa, eles têm um processo de avaliar de seis em seis meses e

minhas avaliações estavam começando a cair, tá entendendo? E

isso começou a me chamar a atenção... (Margareth, digitadora).

A inquietação por não poder atender aos anseios da produção no trabalho

também contribui para os primeiros indícios de uma identidade de incapacidade,

precocemente marcada pelas incertezas quanto ao desempenho funcional no trabalho e

pelo sofrimento psicológico gerado. Essas insatisfações se manifestam através da auto-

avaliação do próprio rendimento e da qualidade do trabalho, conforme evidencia esta

reflexão: “Eu não conseguia produzir, aquilo estava me matando, tá entendendo? E aí

eu comecei a tomar antidepressivo, fui pra psiquiatra pensando que eu estava com

problema na cabeça (...)” (Mara, secretária).

Sobre as questões acima, Good19 argumenta que as categorias propostas por

Schutz, para a análise da “realidade do senso comum” podem ser bastante eficazes para

entender essas percepções iniciais como uma desestruturação do mundo da vida diária,

onde o trabalho é parte integrante. Dentre essas categorias, duas proposições parecem

delinear satisfatoriamente os achados empíricos. A primeira está pautada no princípio de

que “no dia a dia, o ‘eu’ é tido como autor das ações, portanto, total, e não dividido”

(p.124 – tradução livre), ou seja, nós agimos no mundo através dos nossos corpos e

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nossos corpos são sujeitos de nossa ação. Nas falas acima, percebemos os trabalhadores

estranhando seus corpos, diferenciando-os do “eu” que estava agindo e vivenciando.

A segunda proposição está baseada na idéia de tempo, ou seja, numa

perspectiva de tempo que o sofredor compartilha com as outras pessoas. O descompasso

apresentado pelos trabalhadores e seus anseios não correspondidos de produção

denunciam uma diacronia entre o tempo interior e o tempo exterior. Como corolário,

afirma Good19 , “o mundo privado não apenas perde sua relação com o mundo em que

as pessoas vivem, mas também a sua própria dimensão organizadora começa a se

desestruturar” (p.126 – tradução livre). Os reflexos desses eventos estão para além do

mundo do trabalho, pois se pronunciam também nas atividades da vida diária.

Good19 afirma que “A experiência vivida é organizada em um ritmo social

natural, que se move da atividade para o repouso, do trabalho para o lazer, da

concentração para o relaxamento” (p. 131 – tradução livre). A dificuldade na

realização de um desses eventos é sinal de falha moral. Portanto, a desestruturação do

mundo da vida mediada pela falha moral dá lugar a um imaginário de incapacidade, que

ganha força nas constatações das limitações para a realização das atividades da vida

diária, como atividades domésticas, lazer, atividade esportiva, e na idéia da deformidade

progressiva das estruturas do corpo que vai se instalando. Com isso, o ritmo normal da

vida vai se quebrando, pois o homem vai se submetendo aos poucos aos ritmos vitais do

seu corpo que adoece35. A fala a seguir cadencia essa acomodação do ritmo do corpo:

É horrível o psicológico. Na verdade, eu me sentia inútil, porque

eu não podia mais fazer nada dentro de casa. Eu sempre fui ativa,

sempre! Eu nunca fiquei parada; dentro de casa, eu não fico

parada. Então, eu me via assim numa situação que eu tinha que

ficar quieta num canto, eu não podia ler porque o movimento de

passar a página me incomodava (Margareth, digitadora).

Concordando com o trabalho de Magalhães17, o presente estudo mostra que

mudanças nos comportamentos, nas atitudes e nas estruturas do corpo ajudam a

consolidar o imaginário de incapacidade, através da reclusão, da tristeza, da idéia fixa

na possibilidade de ficar inútil, na perda de confiança no corpo, no nervosismo que

subitamente toma o ser, na maneira como a pessoa vê o seu corpo físico e o coloca no

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mundo e nas mudanças de hábitos e práticas próprios da vida cotidiana. Esses aspectos

parecem condensar-se na fala dessa lesionada:

Eu tinha vergonha de meu corpo, eu tinha vergonha de usar blusas

decotadas, né? Meus braços eram monstruosamente cheios de

nódulos, né? Aqui, essa parte do braço era cheia de nódulos; isso

daqui meu era horroroso, meus dedos eram horrorosos, tudo em

mim era feio, né? (Mara, secretária).

Era, em certa medida, angustiante perceber que, no momento das entrevistas,

os informantes, ao se referirem às marcas das possíveis lesões, modificações de

contornos nas estruturas dos seus corpos, na presença de nodulações dolorosas, no rubor

da pele na temperatura desigual, solicitavam insistentemente do entrevistador a atenção

total à localização exata, o esforço imaginativo do que havia se sucedido na sua

anatomia e fisiologia, mesmo que não houvesse mais indícios de que algo acontecera

ali. E, muitas vezes, requeriam a palpação solícita das estruturas corporais acometidas

ou em processo de acometimento.

Os estados e sensações corporais experimentadas pelos indivíduos e as

interpretações feitas fazem parte de códigos pertencentes a grupos sociais específicos.

Nessa perspectiva, o corpo pode ser entendido como “suporte de signos” 36. Leach apud

Ferreira indica que: “A função do signo é comunicar idéias por intermédio de

mensagens, ou seja, o signo tem o objetivo de transmitir uma informação, fazendo parte

assim de um processo de comunicação” (p.102). Tomando como base essa idéia do

corpo como signo para pensar a formulação da incapacidade, pode-se supor que, por

intermédio das mensagens emitidas pelo corpo na forma das experiências da

enfermidade e dos sinais advindos das estruturas, sistemas e funções corporais,

provavelmente se chegará a um significado, o da incapacidade.

Essa formulação encontra bases sólidas na fenomenologia da percepção

trabalhada por Merleau-Ponty35 e, recentemente, na teoria do “embodiment” trabalhada

por Csordas37 e compartilhada por outros autores19, 24. Uma interseção importante entre

esses autores é a tentativa de entender o mundo experencial do sofredor através da

senciencia corporificada em todas as suas modalidades sensoriais. Com base nesses

princípios, a compreensão da incapacidade não depende unicamente da moldagem

cognitiva da experiência, mas também da apreensão de informações do corpo sensorial.

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Kleinman18 adensa a discussão acima trazendo para dentro do domínio da

enfermidade a experiência vivida dos processos de monitoramento corporal. Isso fica

patente nos acometidos por LER/Dort17 a partir das mudanças anatômicas e fisiológicas

do corpo, caracterizadas por inchaços; nodulações; diminuição da amplitude do

movimento articular; déficit de sensibilidade e força, bem como alterações do estado de

humor e outras funções cognitivas. Enfim, todos esses sinais que são percebidos,

categorizados e analisados pelas lentes do senso comum, numa linguagem acessível a

todas as pessoas ligadas ao grupo social do lesionado e ao grupo social mais largo.

Assim, pode-se concluir que as percepções embrionárias de incapacidade se dotarão de

significado na medida em que se estabeleçam e sejam aceitas como real para os

indivíduos e para os membros da sociedade.

Resistindo...

Até então, lidou-se com percepções iniciais, com experiências de

enfermidade comunicadas pelos indivíduos, que expõem as ofensas sofridas pelos seus

corpos, porém com uma legitimação social apenas incipiente. No curso dessas ofensas,

respostas são dadas a esse ideário de incapacidade que vai se estabelecendo através de

ações concretas como: antecipações de férias, utilização de licenças-prêmio, uso de

banco de horas extras, outras licenças especiais, consultas com profissionais médicos,

fisioterapeutas, acupunturistas, massagistas dentre outros e o uso de automedicação.

Todas essas estratégias se estabelecem de forma velada com o objetivo de resistir à

ideação de que se pode ficar inválido para o trabalho. É uma espécie de modos

operandi, se assim pode ser chamado o que circula entre os trabalhadores17.

...eu sempre dizia às meninas [referindo-se às colegas de trabalho]

‘poxa, eu tô com uma dor nas pernas’, eu sentia muita dor, aí uma

delas disse assim: ‘Menina, tome citoneurim que é bom’, como a

gente que trabalha geralmente a gente não tem tempo de ir pra

médico, aí eu tomava citoneurim, aí foi quando as dores piorou, as

dores piorou, aí fui procurar um médico, fui procurar o médico, aí

disse a ele que eu tava sentindo as dores além do fêmur, já tava

sentindo nos braços e tudo, aí foi quando ele passou a

eletroneuromiografia, só que a eletroneuromiografia não fazia

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pelo SUS, era pago, na época era 100 reais, eu não tinha como

fazer, aí ele passou mais uma outra caixa de citoneurim, eu tomei e

continuei a trabalhar, continuei e sempre tomando assim uns

paliativos por fora, Flotac, que uma vez eles passaram Flotac pra

mim, Diclofenaco aquela coisa toda, eu tomava, aliviava um

pouco, mas de novo voltava, aí foi quando eu tava trabalhando, eu

não me lembro onde, eu tava trabalhando, nessa empresa é assim:

não pode parar a máquina, se parar a máquina e o dono ver, o

dono já xinga faz e acontece, entendeu? E tem que ter a produção

ali, então era assim, tirava e botava uma bobina, vamos supor de

400 kg de material grande era um material vamos supor que era

aqui assim, então eu tinha que ficar com essa mão segurando aqui

esse saco que caía e essa outra ajeitando pra solda não cair, não

colar uma solda na outra (Maria, operadora de corte e solda).

O conceito de habitus pode servir bastante para compreender o uso de

estratégias de enfrentamento diante das percepções iniciais de invalidez dentre os

trabalhadores. Pierre Bourdieu38 descreve a questão de sentidos e formulação de

percepções a partir do conceito de habitus, que se organiza num princípio gerador de

práticas e representações, originadas da interiorização das estruturas objetivas e

subjetivas. O conhecimento acumulado vai se transmitindo e transmutando em hábitos

passados de geração em geração, emitindo construções coletivamente alicerçadas, e que

refletem não apenas as percepções de um dado indivíduo diante de uma questão da

realidade, mas acerca de como um determinado grupo e/ou sociedade pensa e elabora

esta dada questão.

As estratégias para lidar com a noção de incapacidade, na perspectiva do

habitus, não passam necessariamente por uma atitude reflexiva; esse pressuposto é

fundamental para que não se caia na cilada de estabelecer uma divisão rígida entre ação

habitual e ação racional. Como afirmam Alves & Rabelo39: “Ao atuar com vistas a

determinado fim, o ator experimenta um remanejamento de suas capacidades corporais

que nem é simples automatismo (porque se dá à luz do seu projeto), nem se produz sob

o comando da reflexão: remete a uma intencionalidade operante ao nível do corpo”

(p.112). Essas premissas parecem bastante úteis para pensar os projetos que subjazem

dessas estratégias de enfrentamento inicial.

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A centralidade do trabalho na vida dos acometidos por LER/Dort, revelada

pela necessidade de cumprir compromissos firmados em torno do trabalho; pelo medo

de perder o emprego e ficar desamparado; pelo prazer nas relações de trabalho, nos

afazeres da atividade e no ambiente de trabalho; pelos objetivos de ascensão

profissional dentre outros, torna a percepção da incapacidade um risco potencial que

precisa ser afastado. As ações de resistência são formuladas inicialmente em contextos

específicos, como o local de trabalho, e se expandem para contextos mais amplos, como

o consultório médico público ou privado. Nessas ações, o que parece estar em jogo, na

verdade, é a possibilidade de garantias da normalidade e do senso moral que dá sentido

ao mundo da vida das pessoas. Nessa direção, as estratégias de enfrentamento

funcionam como escudo protetor contra a desordem que sorrateiramente insiste em se

instalar.

Da metáfora ao nome

Metáforas como “você se sente um lixo, um nada!”, “grande parte da minha

juventude inútil”, “você sente inútil”, “olhe, isso aí não tem cura” comumente

aparecem nos relatos de experiência dos trabalhadores em processo de adoecimento

como forma de comunicar a experiência da enfermidade adotada pelos narradores

dessas histórias. No entanto, faz-se necessário retomar a conceituação e a crítica à

definição clássica de metáforas para que se entendam as proposições acima como

metáforas da incapacidade.

Aristóteles apud Sontag40 diz em sua Poética que a metáfora “consiste em

dar a uma coisa o nome de outra”. Porém, muitos teóricos da literatura e filósofos têm

criticado a proposição de que, ao se reduzir à metáfora a uma mera substituição de

palavras, não se dá conta da dimensão de seu sentido potencial24. Além disso, Ricoeur

argumenta que o lugar específico da metáfora é a frase e não a palavra, uma vez que:

“As metáforas dizem respeito à função de predicação da frase: operam, inicialmente,

instituindo uma tensão, no seio do enunciado, entre duas interpretações opostas; é o

conflito entre ambas que sustenta a metáfora” (Ricoeur apud Alves & Rabelo24: 177).

É baseado nesse rompimento criativo com o uso comum da linguagem

metafórica que se permite apostar em outros sentidos fora daqueles amarrados pela

interpretação literal e se obtém uma nova informação oriunda de estruturas internas do

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enunciado. Partindo desse pressuposto, algumas falas que deram origem às metáforas de

incapacidade acima serão retomadas em seus contextos a fim de atribuir-lhes sentido.

...você se sente um lixo, um nada! Sabe? Porque você está dizendo

pra pessoa que você está sentindo dor, que você não está

agüentando, e a pessoa diz assim: “Não, mas você fisicamente,

você não tem nada”, porque você não tem um defeito, entendeu?

Você tem as mãos, os braços, tudo, então ele acha que você não

tem nada (Margareth, digitadora).

Porque, sei não, até tem coisas, rapaz, que você... O que eu fico

assim, que a gente fica triste, é que quando você chega no médico,

o médico diz: “Olhe, isso aí não tem cura”. Porra, aquilo fica (ri).

“Mas não tem jeito de curar?” E o médico diz: “Não, isso aí você

vai ter paliativo, mas não vai ficar bom” (Matheus, bancário).

O sentimento de desvalorização integral do ser; a percepção do desperdício

dos anos de vida por conta do adoecimento; a discriminação e a rejeição para o mundo

do trabalho; a sensação de não mais ser reconhecido dentro do seu próprio ambiente de

trabalho; o atestado público de descensão profissional, o descrédito quanto à condição

de enfermo e o desengano quanto à possibilidade de melhora são representações

embutidas nas metáforas, empregadas pelos trabalhadores nessa pesquisa, para dar

sentido ao seu sofrimento.

Suzan Sontag40, 41, em suas publicações, explora os sentidos compartilhados

das metáforas relacionadas à tuberculose, ao câncer e à Aids, mostrando que a falta de

conhecimento mais aprofundado sobre a tuberculose, no passado, e sobre o câncer e a

Aids, atualmente, torna o contexto em torno dessas moléstias obscuro, o que tende a

sobrecarregá-las de significação. Essa constatação é particularmente compatível com a

incapacidade por LER/Dort, pois enfermidade que se acredita ter múltiplas causas reúne

as maiores possibilidades de ser usada como metáfora para o que se considera social ou

moralmente deturpado41.

As metáforas referentes às enfermidades não são enunciados estanques que

se perpetuam ao longo dos anos, elas podem se modificar na medida do grau de

compreensão do adoecimento e também na proporção da evolução da cura. Assim, o

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mais importante é compreender o uso das metáforas nos momentos em que elas se

estabelecem. Nesse sentido, as metáforas da incapacidade por LER/DORT parecem

revelar como significados a insuficiência do sistema biomédico em produzir modelos

explicativos coerentes e intervenções eficazes para o problema; a falha da sociedade

capitalista em construir um modelo industrial avançado que regule a produção

adequadamente. Portanto, existe um potencial revelador sobre o qual Alves & Rabelo24

chamam atenção ao dizer que:

“Nas narrativas de aflição, as metáforas desempenham um papel

central: constituem estratégia de inovação semântica, que

estendem sentidos habituais para domínios inesperados,

oferecendo assim uma ponte entre a singularidade da experiência e

a objetividade da linguagem, das instituições e dos modelos

legitimados socialmente” (p.173).

As narrativas de enfermidade não são povoadas unicamente pelas

metaforizações; as substantivações também aparecem nesses discursos inicialmente

como significado cultural particularmente poderoso, freqüentemente de um tipo

estigmatizador, e posteriormente vão se dotando de valores legitimadores reconhecidos

pela sociedade. Para os entrevistados dessa pesquisa, os relatos abaixo representam bem

a conformação da identidade de inútil, incapaz ou inválido reconhecido e legitimado

socialmente.

[Após o tratamento] Quando você retorna, ainda é pior, você se

sente inútil, porque lhe jogam prum lado, lhe jogam pro outro,

tinha momentos de eu ficar sem fazer nada. “Ah, suba, vá lá pra

lanchonete”, porque o fax era lá embaixo. “Vá lá pra lanchonete e

fique lá sentada um pouquinho”. Parecendo que não era nada,

sabe? (...) Era como se você não fosse nada. “Ah, essa daí é

inútil”, ficou doente, deixa lá, deixa ela quieta aí vá, não pode ser

demitida...(Margareth, digitadora).

Quando [meu sobrinho] viu como era minha aposentadoria por

invalidez, ele disse: “Minha tia, se você for se meter a querer

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voltar, vai ser uma complicação tão grande que não aconselho de

jeito nenhum” (Martha, bancária).

A atribuição de um nome a uma enfermidade é largamente explorada pela

literatura. Autores como Kleinman18 e Good19 reconhecem o caráter muitas vezes

estigmatizador do nome atribuído às enfermidades, mas colocam essa nomeação como

um divisor de águas, pois a doença, que era um domínio perceptual da mente do

sofredor, agora ganha uma outra dimensão. Nesse sentido, dar um nome para a origem

do sofrimento é conseguir poder para aliviá-lo, é também um passo importante para

reestruturação do mundo da vida; mais ainda, confere poder para tornar o “eu” integrado

no contexto mais amplo do sofrimento19.

Kleinman defende o fato de que a ação de nomear uma enfermidade é

realizada pela pessoa doente e pelo seu círculo18, com o objetivo de superar uma

determinada ocorrência considerada anormal ou desestruturante, como é o caso da

incapacidade por LER/Dort. Para isso, o sofredor e as pessoas do seu meio social

transformam a experiência da enfermidade em algo domesticado e controlado, ou seja,

em uma experiência cultural. Dessa forma, o nome atribuído confere uma teia de

possibilidades: dá um caráter de veracidade e legitimação ao evento, credencia para

outras ações terapêuticas, abre canais de entendimento sobre a doença e outros aspectos

relacionados a ela, possibilita a tomada de decisões e a luta por direitos. Conforme

ratifica Good19: “Similarmente, o nomeamento simbólico das fontes do sofrimento serve

para formular o objeto do tratamento e, portanto, organizar uma série de respostas

sociais e de atividades terapêuticas” (p.131 – tradução livre).

Para além do corpo experencial e social, “o corpo político”

Tomando como ponto de partida o “estar normal” para o trabalho e para a

vida, caminhou-se até agora no sentido de descortinar os significados, tomados aqui

como ofensas, embutidos no “corpo incapaz” nas perspectivas fenomenológica

individual e social, com base na proposição de Scheper-Huges. Ancorado ainda nesse

pressuposto teórico, tratar-se-á de forma mais expressiva o corpo político do trabalhador

inválido, tentando traduzir de que forma o corpo é manipulado como objeto político

dentro de relações econômicas e políticas.

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Certamente, a manipulação econômica e política dos corpos de trabalhadores

enfermos já foi abordada neste estudo, ao se demonstrar que há uma relutância por parte

do trabalhador a se conformar com a incapacidade. Essa resistência torna-se clara pelas

estratégias iniciais de enfrentamento utilizadas e por ações mais pragmáticas de

resistência e insubordinação às exigências da produção. Porém, são nos processos de

concessão e manutenção de benefício e aposentadoria que se localizam tensões

importantes, que dão margem para uma análise política um pouco mais abrangente

sobre a problemática que envolve a incapacidade.

Segundo Good19, a dispensação de benefícios por incapacidade tem sido

um desafio constante para o discurso médico e para o debate político, pois a busca por

legitimação da doença tem representado para os sofredores uma causa de vida

importante. No entanto, a luta por legitimação da condição de incapaz possui limites e

intercessões de espectro maior que estes representados aqui nas falas dos informantes:

Mesmo com esses dois relatórios, mesmo com o relatório daqui, o

INSS me deu auxílio-doença. Aí, agora, eu vou estar entrando com

um processo lá dentro do INSS pra provar a eles que não é auxílio-

doença, entendeu? (Matheus, bancário).

Foi uma briga muito grande... vamos dizer: eu queria voltar pro

meu trabalho, mas eu não queria voltar do jeito que eles queriam

que eu voltasse. Aí começou meu impasse e a minha experiência

também dessa parte, tá? Eles queriam que eu voltasse pra

trabalhar 8 horas, que eu desse a mesma produção que eu dava

antes, tá me entendendo? (Mara, secretária).

A tradução da incapacitação do corpo pelo viés político constata-se pela

insubordinação aos limites impostos pela produção, pelo requerimento de novos

parâmetros de avaliação do trabalho, pelo uso mais pragmático de estratégias de

enfrentamento, pela submissão passiva à comunicação entre os profissionais de saúde,

realizada por meio dos relatórios e dos exames diagnóstico que restringem a

participação do lesionado e pelos conflitos com profissionais de saúde e outros atores

sociais e com outras instâncias de cuidado e legitimação da incapacidade.

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Retoma-se aqui o estudo de Rocha13 sobre a legitimação das LER no Brasil

para mostrar que esse processo tão caro à saúde do trabalhador se deu também à custa

de esforços e avanços importantes no campo da biomedicina, onde critérios de

estadiamento da doença, adoção de exames diagnósticos de tecnologia mais precisa,

criação de modelos assistenciais e de vigilância à saúde do trabalhador, bem como a

própria evolução do conceito de incapacidade para o trabalho, representaram ganhos

inequívocos para o processo de legitimação da LER/Dort e da própria incapacidade

laborativa17.

No entanto, como se viu no relato da trabalhadora acima, muitas vezes os

cuidados e avanços da biomedicina no campo da legitimação de incapacidades podem

se transformar em desvantagens expressivas, na medida em que expropria do “outro” o

seu próprio corpo, a ponto de levar sem uma reflexão maior esse “corpo inútil”, do

ponto de vista médico, a circular indefinidamente por instituições previdenciárias e

agências de saúde na busca de cura e amparo. Reconhecer os limites, intercessões e

conseqüências de ordem mais geral dessa dialética sobre corpo e cuidado empresta

outros significados à problemática da incapacidade.

Eu não posso trabalhar. Aí, no INSS, tem aquela coisa, né.

[Referindo-se ao perito do INSS] Manda voltar só porque não

trouxe uma receita. Eles pedem o remédio e a receita. Dessa última

vez, ele me pediu. Levei o relatório da ortopedista, mas ele exigiu o

cartão da fisioterapia; como eu não tinha levado, ele colocou na

observação que era pra levar (Mathildes, cabeleireira).

Nesse cenário, nota-se claramente que o trabalhador considerado

socialmente incapaz passa a transitar entre dois pólos de ação. Por um lado,

insubordina-se aos requerimentos de produção e da capacidade exigidos pelo trabalho e,

por outro lado, subordina-se ao processo de medicalização imposto por atores sociais e

instituições ligadas ao processo de reconhecimento da incapacidade.

Magalhães17, analisando aspectos relacionados à reabilitação profissional de

lesionados com diagnóstico de LER/Dort, aponta para algumas premissas que trazem

elucidação para a questão da insubordinação aos limites impostos ao trabalho. Essa

autora mostra que as possibilidades profissionais para os indivíduos com incapacidade

se tornam bastante sombrias, pois as possibilidades de mudança para funções que

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preservem os membros superiores, num universo cada vez mais automatizado e que

exige qualificação, e com garantias de trabalho isento de maiores desgastes, são

remotas. E conclui afirmando que: “O que se observa, portanto, é a combinação de um

sentimento de traição, de ter sido vítima de uma negligência ou de um conluio perverso

entre o governo, os empresários, e um certo fatalismo que admite uma ação de algo

como o destino na ocorrência da enfermidade” (p.181).

A questão da subordinação ao processo de medicalização foi abordada por

Verthein e Minayo-Gomez14 ao debruçar-se sobre o problema da construção do “sujeito

doente” em LER/Dort. Esses autores, apoiados nas idéias de Tuke, na Inglaterra, e

Pinel, na França, sugerem que o médico é visto como a autoridade normativa do social,

num contexto onde o olhar vigilante deve produzir a autocontenção, onde a

infantilização deve gerar a necessidade de proteção e onde o julgamento da sanidade

gera o discernimento da normalidade.

Essas construções encontram abundante apoio na literatura que trata do

processo de medicalização da sociedade, do qual destacam-se aqui alguns

representantes, como: Foucault42, no clássico sobre “O nascimento da clínica”;

Boltanski27, com o não menos clássico relato sobre “As classes sociais e o corpo”; e o

apreciável trabalho de Donnangelo e Pereira28, “Saúde e Sociedade”. Não se pretende

aqui fazer uma retomada dos pressupostos e das argumentações de todos esses

trabalhos, mas, sim, tentar uma síntese de aproximação dessas construções com os

achados empíricos do corpo político desse estudo.

Nesse sentido, a visão do “corpo inútil” surge com a autorização do corpo

como espaço para a leitura médica, pois é nesse momento que se tem, claramente, um

olhar sobre o corpo como portador do bem e do mal42 e sobre a saúde como um esboço

de bem político, que arregimenta e mantém a força de trabalho para a evolução do

processo produtivo9, 28. Nessa conjuntura, não há espaço para um discurso sobre saúde e

doença originado das classes populares, ou mesmo de trabalhadores, pois o domínio do

saber médico, dito “científico”, precisa ficar sob a guarda do profissional médico, como

forma de manter sob controle as tensões sociais27.

Os processos de medicalização observados nos séculos XVIII e XIX nas

sociedades européias28 em muito se assemelham aos encontrados hoje nos países em

desenvolvimento como o nosso. Scheper-Huges já sinalizava para isso ao fazer uma

análise crítica sobre a fome no Brasil e denunciar o seu uso como fator de manipulação

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política, tendo no médico e no farmacêutico atores sociais importantes dessa

normatização26.

Nos casos de incapacidade por LER/Dort, as marcas da medicalização

parecem vivas e sólidas em modelos assistenciais de saúde e proteção social que

investem numa política policialesca de controle e concessão de benefícios

previdenciários, da adoção de medidas de reabilitação profissional que não valorizam

suficientemente a experiência acumulada pelos indivíduos ao longo de suas carreiras

profissionais e, ainda, pela desvalorização da subjetividade ao excluir o lesionado do

processo dialógico das consultas médicas e periciais, adotando no seu lugar o diálogo

exclusivo entre profissionais de saúde por meio dos infindáveis relatórios e dos exames

médicos, que devem ser apresentados a cada encontro sob a pena de perder a sua

condição legitimada.

[O médico da perícia do INSS, lendo o prontuário da última

avaliação] – “Pediu aqui uma ressonância”. Eu disse: já trouxe

aqui. “Pediu também o cartão do INSS”. Aí eu levei. Aí, ele me

disse: “A senhora ande direitinha, pois a qualquer hora a senhora

está saindo”[referindo-se ao benefício]. “É mole!”. Eu disse: “Ô,

doutor, eu estou aqui é porque eu estou com problema, porque

trabalhar é o que eu gosto. Só que agora eu não consigo pegar,

doutor, nem um copo com água”. “Tá, tá, então volte aqui daqui a

quinze dias”.

Então, incapaz por quê? Inválido para quê? O enredo apresentado neste

artigo mostra que é na dinâmica do dia-a-dia e do trabalho que se percebem os

primeiros indícios de instalação da incapacidade por LER/Dort. E que o imaginário de

invalidez traz com ele o reconhecimento de que o mundo da vida está se

desestruturando e isso é revestido por situações de sofrimento em vários planos da

existência. A narrativa de experiência e as metáforas de incapacidade podem funcionar

como recursos importantes para o reconhecimento inicial dos sentidos da incapacidade e

dos seus significantes.

Neste artigo, foram apontadas como medicalização as ações de atores sociais

ligados a instâncias de saúde e de assistência social que trabalham no sentido de

domesticar os corpos dos trabalhadores considerados incapazes. Contudo, creditam-se à

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própria biomedicina e à sua interação com o campo da saúde do trabalhador os avanços

no que tange à legitimação e cuidados nos casos de invalidez. Nesse sentido, pretende-

se investigar em um próximo artigo os percursos adotados por esses trabalhadores após

o reconhecimento legal da enfermidade, a fim de acrescentar mais peças nesse quebra-

cabeça que é o processo de adoecimento e reabilitação de trabalhadores com LER/Dort.

A atenção à saúde dos trabalhadores tidos como inválidos para o trabalho

precisa ser revista através de uma lente mais ampliada, uma perspectiva holística de

cuidado, de modo que se atente para a necessidade de restabelecimento do mundo da

vida dos sujeitos, utilizando-se de manejos mais positivos2, ou seja, intervenções com

bases dialógicas e que primam pela valorização dos potenciais que esses sujeitos têm, e

não com base no que ele perdeu devido ao acometimento por LER/Dort. Essas reflexões

parecem bastante pertinentes para o campo da saúde do trabalhador, visto que deposita

sobre a questão outras bases de entendimento que podem ser úteis para o processo que

vai da prevenção à reabilitação do trabalhador lesionado e lança, no meio desse campo,

a necessidade de refletir mais profundamente sobre os questionamentos feitos

anteriormente.

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Da legitimação à (re)significação: o itinerário terapêutico de

trabalhadores com LER/Dort

Robson da Fonseca Neves & Mônica Nunes

RESUMO

No Brasil, as LER/Dort representam um importante problema de saúde pública. O modo

de adoecimento, a multideterminação de sua origem e a conturbada assistência prestada

aos lesionados parecem expor as próprias contradições do modo de produção capitalista.

Neste artigo, buscou-se compreender os processos macrossociais identificados nos

percursos de cura feitos por trabalhadores com LER/Dort, atentando para os processos

de negociação e (re)significação operados nessas trajetórias. Entrevistas em

profundidade com trabalhadores sob regime de benefício pela Previdência Social

brasileira passaram por “análise temática” sob a luz dos “modelos explanatórios” e da

noção de “itinerário terapêutico” para abarcar o domínio socioeconômico e político.

Sobressaíram o excesso e a culpabilização, ligados à etiologia; dor, cansaço e estresse,

iniciando os sintomas, e, no curso da doença, somam-se a perícia médica, as

reabilitações e o prognóstico tal como (re)significado pelos trabalhadores na tentativa de

forjar um “tipo ideal” de trabalhador, que, apesar da lesão, se mantém produtivo.

Recomenda-se pensar políticas de saúde que sejam também responsivas aos processos

mais amplos das organizações e das relações de poder e classe envolvidos na assistência

às LER/Dort.

Palavras-chave: LER/Dort, itinerário terapêutico, modelos explanatórios

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From legitimation to (re)signification: the therapeutic itinerary of

workers with RSIs/WMSDs

ABSTRACT

Repetitive Strain Injuries (RSIs)/Work-Related Musculoskeletal Disorders (WMSDs)

are a major issue in Brazilian public health. The way such sickness is produced, its

multidetermined origin and the troubled care provided to sufferers point to the very

contradictions of the capitalist production system. This work aims at understanding the

macrosocial processes surfaced in the workers’ search for cure of RSIs/WMSDs, paying

close attention to the negotiation and (re-)signification processes present in those

trajectories. By drawing on “explanatory models” and the concept of “therapeutic

itinerary”, “thematic analysis” of in-depth interviews with Brazilian workers receiving

Social Security compensation was used to approach the socioeconomic and political

realms.

Culpability and excess were reported in connection with etiology whereas pain,

tiredness and stress were shown to be related to symptom initiation. Legal medical

assessment, rehabilitation programs and prognosis were all along (re-)signified by the

interviewees in an attempt to create an “ideal type” of productive worker despite the

injury. It is then urged that public health policies responsive to the wider organization

and processes of power and class related to the care of RSIs/WMSDs are devised.

Key Words: RSIs/WMSDs, therapeutic itinerary, explanatory models

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INTRODUÇÃO

Tecer uma discussão onde as LER/Dort (Lesões por Esforços Repetitivos /

Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho) figuram como pano de fundo

remete à necessidade de compreender minimamente sobre o lugar do trabalho na vida e,

em particular, entender a atual conformação que adquiriu ante as históricas

transformações que experimentou. Antunes1 sintetiza de forma esclarecedora a segunda

proposição feita acima quando diz que:

“O mundo do trabalho viveu, como resultado das transformações e

metamorfoses em curso nas últimas décadas, particularmente nos

países capitalistas avançados, com repercussões significativas nos

países do Terceiro Mundo dotados de uma industrialização

intermediária, um processo múltiplo: de um lad, verificou-se uma

despolarização do trabalho fabril nos países de capitalismo

avançado. (...) Mas, paralelamente, efetivou-se uma significativa

subproletarização do trabalho, decorrência das formas diversas de

trabalho parcial, precário, terceirizado, subcontratado, vinculado

à economia informal, ao setor de serviços, etc. Verificou-se,

portanto, uma significativa heterogeneização, complexificação e

fragmentação do trabalho” (p.209).

Paralelamente ao exposto, é fato que, desde os relatos de Ramazzini2,

trabalho, saúde e doença formam uma tríade que vem merecendo esforços no sentido de

estudar suas relações sob os diversos ângulos, bem como no sentido de organizar

estratégias para lidar com os problemas que resultam da interface do homem com seu

local e relações de trabalho3. No Brasil, as relações entre trabalho e saúde do

trabalhador conformam um mosaico, coexistindo múltiplas situações de trabalho,

caracterizadas por diferentes estágios de incorporação tecnológica, diferentes formas de

organização e gestão, relações e formas de contrato de trabalho, as quais, de forma mais

específica, se refletem sobre a morbi-mortalidade dos trabalhadores4, 5.

A experiência acumulada pelos Programas de Saúde do Trabalhador na rede

de serviços de saúde sustenta a proposta de reorganização do modelo assistencial,

buscando uma integração construtiva, onde trabalhadores e técnicos da saúde busquem

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compreender a complexidade da situação da saúde do trabalhador em conjunturas e

espaços específicos e, a partir daí, tracem estratégias comuns para superar as

dificuldades6.

O presente artigo nasceu de inquietações surgidas durante a coleta e análise

de dados de um estudo realizado no ano de 2001, no Cesat (Centro de Estudo de Saúde

do Trabalhador), na Cidade de Salvador, Bahia, intitulado: “Atitude frente à dor em

trabalhadores de atividades ocupacionais distintas: uma aproximação da psicologia

cognitivo-comportamental”7. Esse estudo, de cunho quantitativo, foi realizado com uma

amostra de trabalhadores com diagnóstico de LER/Dort e, dentre outros achados, gerou

informações importantes sobre as trajetórias de cura desses trabalhadores.

As principais conclusões dessa pesquisa, no que tange ao processo

diagnóstico e à terapêutica adotada pelo grupo de lesionados, apontaram o médico como

o primeiro agente de saúde a ser procurado para a obtenção de diagnóstico e indicação

de tratamento e as medicações prescritas pelos profissionais médicos, bem como as

terapias físicas, administradas pelos fisioterapeutas, como os recursos mais procurados

por esses doentes. No entanto, questões como o que motivou a procurar tal cuidado? e

quais são as implicações das escolhas? permaneceram sem respostas.

Surge, então, o interesse em esculpir o objeto “busca por cura entre os

trabalhadores com LER/Dort”, que requereu um foco maior sobre a complexidade da

enfermidade, sobre a oferta de cuidados e sobre as relações sociais infiltradas nessas

questões, visto que, nas “sociedades complexas modernas”8, as pessoas que sofrem de

algum desconforto, quer de ordem física quer de emocional, contam com diversas

formas de ajuda, e, quanto maior e mais complexa é a sociedade, maior é a pluralidade

dos espaços de cura. Além do mais, os sistemas de assistência à saúde não podem ser

estudados isoladamente de outros aspectos sociais, especialmente de sua organização

social, de suas estruturas de poder e de suas representações simbólicas mais amplas

sobre doença e cura8.

Nessa perspectiva, a forma de legitimação médica conduzida nos casos de

LER/Dort, a busca do reconhecimento dos direitos dos trabalhadores lesionados, a

utilização de instituições e agências de cuidados à saúde, bem como situações mais

abrangentes relacionadas ao acesso, financiamento, cobertura de serviços e a concepção

ideológica praticada pelos sistemas de assistência e seguridade social despontam como

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canais privilegiados para pôr em evidência as opções da sociedade em seus programas

sociais, bem como alguns laços da estruturação socioeconômica e política da sociedade.

Nesse processo, Luz9 considera ainda importante levar em conta o papel de

(re)significação da saúde, do adoecimento e da cura. Essa construção de novos

significados requer o entendimento do processo histórico que envolve os projetos de

cura dos doentes numa abrangência de espectro maior que as centradas nas condições

psicobiológicas da doença.

O conceito de itinerário terapêutico tem sido empregado para estudar

questões de saúde diversas, que vão desde situações mais amplas, que envolvem o uso

de serviços de cuidado à saúde por comunidades10-16, até situações mais específicas de

grupos de doentes que guardam um mesmo diagnóstico clínico, ou enfrentam uma

determinada situação de saúde17-22. Embora, estudos quantitativos de caráter descritivo,

como o de Santana13, tenham sido utilizados, e ainda as estratégias híbridas12, 20, que

alocam, no mesmo estudo, a metodologia quantitativa e qualitativa, a escolha

metodológica por estratégias não estruturadas tem sido preponderante entre os estudos

citados.

As compreensões mais influentes sobre itinerários terapêuticos de

enfermidades surgem com o clássico estudo de Janzen16 no Baixo Zaire (atual Congo).

O autor mostra, em seu trabalho, a necessidade de se adotarem conceitos e teorias

subsidiárias para o entendimento dos percursos de cura, tais como a noção de sistemas

médicos, pluralismo médico e redes de apoio, construção etiológica das doenças,

categorização da doença e legitimação de práticas de cura.

Abordagens na linha transétnica, como o trabalho de Izugabara et al10, e na

perspectiva multiétnica, como o ensaio de Langdon14, trataram de questões a respeito de

busca de espaços de cura que respondessem à natureza complexa do processo saúde-

doença, sobre as relações que se estabelecem entre paciente e terapeuta nesses espaços,

bem como exploraram a realidade simbólica do processo saúde-doença e o uso das

diversas alternativas diagnósticas e terapêuticas disponíveis nesses contextos.

Os estudos de itinerários terapêuticos não têm se limitado apenas a

abordagens étnicas. Pesquisas na área de busca por cuidados de saúde em populações de

trabalhadores também têm utilizado esse conceito. Santana13 justifica que, para

examinar o itinerário terapêutico, é necessário apresentar, em primeiro lugar, quais são

os contextos específicos, os campos de possibilidades de escolha através dos quais os

indivíduos podem buscar auxílio terapêutico.

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Essa opção metodológica de descrever a realidade é pertinente, uma vez que

a busca de cura não se constrói num processo meramente subjetivo, mas numa

experiência que ocorre de acordo com os meios disponíveis em uma dada realidade. E

ganha força com a adoção da análise interpretativa, que ilumina o entendimento sobre

os processos de escolha e avaliação dessas agências de cura por parte do trabalhador

doente.

Nesse sentido, estudos como o de Matos11 apóiam-se, justamente, no ato

interpretativo para compreender as noções de saúde, de doença e de cura, bem como as

condições objetivas nas quais os discursos “popular” e “oficial” são produzidos. Este

estudo, em particular, buscou entender a influência desses discursos na formação do

“itinerário terapêutico tendencial”23. Ele aponta para a necessidade de se integrar os

aspectos biológico, social e cultural na formação dos itinerários e na (re)significação da

doença e do processo de cura.

O itinerário terapêutico também tem sido apropriado para estudar doenças

crônicas. Ly et al.20 estudaram os percursos de usuários, portadores de câncer de mama,

usuários de um serviço de oncologia médica. Utilizou inicialmente uma descrição

quantitativa das ofertas e escolhas terapêuticas e, posteriormente, centrou-se no estudo

das representações da doença. Seus achados apontaram para a influência das

representações dos doentes e da sua rede de apoio na busca e escolha dos espaços de

cuidados de saúde, bem como revelou as dificuldades na relação entre os pacientes e

profissionais de saúde. Esse estudo reforça o valor das operações cognitivas quando

ressalta a existência de uma dinâmica de interações sistêmicas entre sistemas de signos,

significados e de ações e retroações, que envolvem os itinerários terapêuticos

individuais e coletivos.

Reinaldo19, Mattosinho18 e Silva et al17 também estudaram condições

crônicas de adoecimento e incorporaram nas suas abordagens os conceitos de sistemas

médicos e de modelos explicativos de Kleinman como importantes referenciais teóricos

norteadores do entendimento dos percursos escolhidos por pacientes e familiares e

reforçam a idéia de que a doença é socialmente construída.

Algumas abordagens apresentadas nessa revisão apresentam características

que se aproximam da presente pesquisa, por isso alguns elementos teórico-

metodológicos, como a noção dos modelos explanatórios, pluralismo médico, redes de

apoio, construção etiológica das doenças, categorização da doença, legitimação de

práticas de cura e a noção de campo de possibilidades, são bastante úteis para ajudar a

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responder à questão: qual o itinerário terapêutico de trabalhadores com diagnóstico de

LER/Dort?

Até o momento, é escassa a produção de estudos que apontem para uma

reflexão sobre o itinerário terapêutico em trabalhadores com LER, a partir de uma

compreensão que extrapole as explicações com base em sistemas culturais de referência

e penetrem em uma camada de interpretação que envolva as representações coletivas do

que é estar doente, sentir-se doente e procurar ajuda, bem como compreender

minimamente a natureza da organização social e econômica de uma sociedade

implicada com essa problemática.

Com efeito, a identificação de itinerários terapêuticos por uma perspectiva

que vá além do reconhecimento de uma pluralidade de possibilidades e de ofertas de

cura pode auxiliar na organização da rede de cuidados integrais para trabalhadores com

LER. Para isso, busca-se neste artigo compreender os processos macrossociais

identificados no percurso de obtenção de cura feito por trabalhadores com incapacidade

por LER/Dort a partir do reconhecimento legitimado da doença, atentando para os

processos de negociação e (re)significação operados nessas trajetórias de adoecimento.

TRILHA TEÓRICO-METODOLÓGICA

Aspectos teóricos

Para alcançar a pretensão de construir uma compreensão sobre os itinerários

terapêuticos de trabalhadores com diagnóstico de LER/Dort, buscou-se, na abordagem

qualitativa e em alguns conceitos da antropologia e sociologia médica, a sustentação

teórico-metodológica para obtenção e análise dos dados que constituíram o corpus desta

pesquisa. Nesse sentido, os conceitos de “modelos explanatórios” e de “itinerário

terapêutico” serão largamente utilizados neste artigo na perspectiva que se segue.

Autores como Good24, Kleinman25, Huhn26 e Young27 preocuparam-se com

a diferenciação dos termos illness, disease e sickness, estabelecendo, com poucas

variações, que disease designa uma anormalidade no funcionamento, ou na estrutura, de

órgãos ou sistemas corporais. É a “doença”, tal como concebida pelo paradigma

científico da medicina moderna e reduzida a um distúrbio dos processos biológicos ou

psicológicos. O conceito de patologia enfatiza a doença em seus sinais biológicos

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observáveis e concretos, em sua existência, independentemente da consciência e do

reconhecimento por parte do sujeito e da sociedade.

Já a enfermidade, illness, por sua vez, representa a doença vivida, percebida

e significada pelo paciente enquanto experiência subjetiva de um estado de

descontinuidade no desempenho de papéis sociais e na sua forma de “estar no mundo”.

Assim, o conceito de enfermidade refere-se à experiência psicossocial e ao significado

da moléstia para o indivíduo que, por sua vez, é construído em um processo interativo

onde participam a família e a rede social imediata do doente. A doença, sickness, reflete

o entendimento de um distúrbio pelo seu senso genérico dado pela população e fala das

forças macrossociais (econômica, política, institucionais e organizacionais), que dão o

caráter de determinação social da doença25.

Essas diferenciações foram importantes para o presente estudo, pois elas

revelam que o olhar sobre o adoecimento do trabalhador com LER/Dort se dá, em larga

medida, a partir da passagem da enfermidade socialmente entendida como

incapacitante28 para uma forma legalmente aceita pelo sistema médico oficial de

referência neste país. Este tem, na biomedicina, o seu principal alicerce para tentar

identificar, explicar, tratar e amparar socialmente os casos de distúrbios originados da

relação do homem com o seu trabalho.

Com base no exposto acima, a compreensão do que Kleinman chamou de

“modelo explanatório” serviu como estrado onde se pôde acompanhar, através das

histórias narradas desses lesionados, os itinerários terapêuticos desenvolvidos,

buscando, nessas trajetórias, as escolhas, as adesões e, mais que isso, as estruturas de

referência que permitam entender melhor o adoecimento através do prisma das

implicações sociais mais amplas envolvidas na trama entre trabalho, doença e projetos

de cura.

O conceito de modelos explanatórios definido por Kleinman25 como “a

noção que os pacientes, as famílias e os profissionais têm sobre episódios de

enfermidade específica” (p.121, tradução livre) remete à idéia de Geertz de que as

culturas fornecem às pessoas maneiras de pensar que são, simultaneamente, modelos de

realidade e modelos para a realidade27. Esses modelos estruturam-se como um conjunto

de crenças que contêm quaisquer ou todas as seguintes questões: etiologia, início dos

sintomas, fisiopatologia, curso da doença e tratamento25, 29, elementos que serão

explorados ao longo deste artigo.

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No entanto, esta ênfase no domínio clínico da experiência do adoecimento

fornece pouca porosidade para que aspectos de naturezas socioeconômica e política

possam ser compreendidos a partir dos relatos dos trabalhadores doentes. Nesse sentido,

o uso do conceito do itinerário terapêutico oferece elementos teóricos capazes de fazer

dialogar melhor a clínica médica e a biografia dos indivíduos com vistas a atos

interpretativos que levem em conta estes e outros aspectos da história pessoal, social e

da doença.

Alves & Souza30, tratando dos aspectos teórico-metodológicos do itinerário

terapêutico, afirmam que é importante aprofundar em nível dos procedimentos usados

pelos atores sociais na interpretação de suas experiências e no delineamento de suas

ações, sem perder o domínio dos macroprocessos socioculturais. A escolha e a avaliação

do tratamento realizado por um indivíduo ou grupo social não devem se ater a um único

conjunto de estruturas cognitivas e essas não podem ser identificadas como fonte última

de significação das afirmações proferidas pelo informante. O projeto individual deve

estar inscrito num campo de possibilidades históricas e culturais8, 30

É importante, também, apresentar o sujeito desse processo como alguém

que compartilha com outros um estoque de crenças e receitas práticas para lidar com o

mundo ao longo da construção de um projeto biográfico singular8, 31. Por isso, os

itinerários terapêuticos podem ser entendidos como ações humanas que se constituem

pela junção de atos distintos que compõem uma unidade articulada, capaz de gerar

significações no curso de suas ações30.

Janzen16, ao estudar o processo de busca de cura dos habitantes do Baixo

Zaire (atual Congo), descreveu as alternativas e possibilidades ao alcance dos doentes e

do grupo de parentes e amigos (management group of therapy), mobilizadas para a

definição da situação do doente e para a resolução do seu quadro de saúde. Essa

descrição representou um salto importante na compreensão do itinerário terapêutico,

porém Alves & Souza30 advertem que “uma análise que se atenha apenas à descrição

das alternativas e possibilidades oferecidas pela sociedade/ cultura não poderá

compreender como são construídos em contextos específicos os complexos processos de

escolha e decisão de tratamento” (p.134).

Para esse artigo, o mapeamento do campo de possibilidades terapêuticas

seria uma tarefa difícil de ser realizada, visto que, nas “sociedades complexas

modernas”8, vive-se uma pluralidade de ofertas e escolhas, configurando um mosaico de

opções, o que inviabilizaria essa categorização. Por isso, optou-se por não identificar a

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priori as possibilidades terapêuticas, mas sim, compreender as escolhas e adesões,

sobretudo pela lente dos contextos socioeconômicos e políticos, na medida em que elas

aparecem nas narrativas dos lesionados.

O trabalho de campo

O estudo contou com a participação de oito trabalhadores com diagnóstico

de LER/Dort há mais de um ano, sob regime de beneficio32, 33 da Previdência Social do

Brasil por “auxílio-acidente”, conforme enquadramento nas condições estabelecidas

pelo art. 104 do Decreto nº 3.048/99, “auxílio-doença”, como regulamentado pelos arts.

71 e 80 do Decreto nº 3.048/99, ou “aposentadoria por invalidez”, conferida nas

condições estabelecidas nos arts. 43 a 50 do Decreto nº 3.048/99. Esses informantes são

de ambos os sexos, pertencentes a classes sociais e inserções religiosas diferentes, com

níveis de gravidade da lesão e causa de adoecimento diversos, sob variado regime de

trabalho, sendo que apenas um dos entrevistados não estava afastado das atividades

laborativas no período da entrevista (Anexo III).

Para a construção do corpus da pesquisa, utilizaram-se a entrevista narrativa

e informações obtidas dos documentos comprobatórios sobre o motivo do afastamento,

benefício e aposentadoria. A coleta foi realizada no período de julho a outubro de 2005

e a entrevista aconteceu no local escolhido pelo entrevistado, tomando cuidado apenas

para que a narração não fosse interrompida por eventos externos indesejáveis. Os

instrumentos adotados foram o roteiro de entrevista e o diário de campo. As entrevistas

foram gravadas em fita cassete de 60 minutos e posteriormente transcritas.

Minayo34 afirma que a entrevista é um instrumento privilegiado de coleta de

informações, pois a fala é reveladora de condições estruturais, de sistemas de valores,

normas e símbolos. Dentre os modelos de entrevista em profundidade existentes, a

entrevista narrativa é definida aqui como técnica que busca reconstruir acontecimentos

sociais a partir das histórias narradas dos informantes. Kleinman25 afirma que as

narrativas de doença servem para dar coerência a eventos distintos e ao curso da doença,

e, mais que isso, essas narrativas podem até mesmo funcionar como um comentário

político, apontando para a condenação e para a injustiça percebidas nesse processo.

O material empírico obtido da entrevista narrativa foi analisado sob a ótica

da análise temática35, considerada pertinente para a presente pesquisa visto que

constitui uma interpretação das entrevistas, juntando estruturas de relevância dos

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informantes com as do entrevistador, o que remete ao conceito de “fusão de horizontes”

presente na teoria hermenêutica36.

A célebre metáfora “fusão de horizontes”, tomada aqui como conceito,

refere-se à idéia de receptividade para acolher outras tradições e outras culturas. Esse

princípio mostra que, ao se debruçar sobre o texto narrativo do informante, uma tarefa

se ergue: os mundos do intérprete e do interpretado, ambos mergulhados num contexto

histórico de culturas e tradições, mediados por uma efusão de símbolos supostamente

diferentes, precisam tornar-se complementares e minimamente dialógicos. A esse

respeito, Soares37 afirma que:

“A reflexão hermenêutica pode, isto sim, nos ajudar a entender

melhor o que está em jogo nos processos interpretativos, no

movimento da compreensão. Mais do que isso, e a partir daí, pode

nos apoiar na tentativa de lidar com os próprios limites das assim

chamadas ciências humanas” (p.18).

Casal36 e Soares37, estudando a compreensão hermenêutica de Ricoeur,

apreenderam que uma fusão entre o explicar, entendido como destacar as relações

internas que constituem a estatística do texto, e o interpretar, que é colocar-se no sentido

indicado e trazido pelo próprio texto, produz, no ato hermenêutico, a explicação

possível, que é atingida pela dialética que opera entre os dois sentidos anteriormente

explicitados. Dessa forma, acredita-se que a fusão do potencial explicativo do modelo

explanatório com as possibilidades de compreensão, geradas pelos itinerários

terapêuticos, produzirá informações úteis para a interpretação hermenêutica que se

pretende.

Durante as entrevistas e a partir do seguinte tópico central: “Conte

detalhadamente como e quando você começou a trabalhar e como essa doença entrou

na sua vida, destacando as repercussões provocadas por ela”, exploraram-se vários

temas: a etiologia da doença, a fisiopatologia, o início dos sintomas, o curso da doença e

o tratamento, que foram utilizados como categorias a priori, sobre as quais emergiram

outras categorias também relevantes para este estudo.

Foram adotados os procedimentos éticos na pesquisa com seres humanos

segundo a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde e suas complementares e,

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a fim de preservar a identidade dos entrevistados, utilizaram-se nomes fictícios no corpo

deste texto.

Da percepção para a legitimação: da enfermidade para a doença

A tradução da enfermidade para a doença clinicamente legitimada levanta

sentidos que permitem compreender essa passagem não como um ato puramente clínico,

mas como uma teia simbólica sobre a qual se produzem significados. Good24 afirma

que, para a pessoa que está doente e para o clínico, a doença, no sentido patológico, está

localizada no corpo como um estado fisiológico ou objeto físico; dessa forma, o

conhecimento médico sempre se remete a um estado do corpo, independentemente dos

estados subjetivos. Mas, para quem sofre, o corpo não é só um objeto físico, ou um

objeto fisiológico, mas é também uma parte essencial do “eu”. Dessa forma, ele é um

agente desregulado da experiência, e não apenas uma representação cognitiva ou campo

de prática da medicina24, 38.

As explicações dos trabalhadores entrevistados sobre a LER/Dort circularam

em torno da idéia de que, atualmente, o diagnóstico clínico é pouco influenciado pela

produção de sinais e sintomas e, contrário a isso, os recursos tecnológicos de imagem

diagnóstica, como os exames de ultra-sonografia, tomografia computadorizada,

ressonância magnética e, principalmente, eletroneuromiografia, ganharam um lugar de

destaque nesse processo de tradução. Um outro aspecto importante, segundo eles, é que

esse processo de transformação sofre influências das ações de entidades de classe e de

movimentos sociais ligados à causa dos trabalhadores.

Então, levei mais um ano, o terceiro ano todo nisso, ainda com

muitas dores aí e tudo. Só que essas dores chegaram a um ponto

que eu achei que não podia ser LER, era tanta dor, como é que

podia ser LER? Só podia ser um reumatismo, alguma coisa. Aí eu

fui pra o [Hospital] Aliança, particular, pra [a empresa] não saber

que eu estava fazendo esses exames, pra ver se era reumatismo. Aí

fiz todos os exames, inclusive radiografia da bacia; ele pediu tudo.

Nem sombra de reumatismo. Aí tinham marcado meu PPS, aquele

exame periódico [da empresa]. Aí eu fui; quando Miranda, Dra.

Miranda me examinou, ela achou estranho: “Você sente dores,

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Martha?” “Eu sinto!, mas você fica sem querer dizer muito o que

tá sentindo”. Ela percebeu um pouco, aí pediu um

eletroneuromiografia e pediu que eu não fosse trabalhar sem ela

pegar meu resultado. Mas eu disse a ela que eu não podia deixar

de trabalhar; ela disse “é só que hoje você não vai mais trabalhar,

você só vai trabalhar quando você trouxer de volta”. Aí eu fiquei,

quando eu fui fazer o exame lá no [Hospital] São Rafael, ela pediu,

a médica queria que fizesse lá no São Rafael tudo direitinho. Aí a

médica, já saí, a médica dizendo que eu tava com uma lesão

moderada, que eu tava com Síndrome do Túnel do Carpo. Aí eu

disse: “Não é possível uma coisa dessa” e fiquei angustiada. Isso

foi no final de novembro. Aí eu levei os exames pra Miranda, aí

Dra. Miranda preencheu a CAT na hora e remeteu. E me deixaram

de licença; a licença era até fevereiro... (Martha, bancária).

O processo legitimador de doenças passa por compreensões amplas sobre as

relações entre cultura, sociedade e, especificamente, sobre a práxis médica. Nesse

contexto38, 39, abarcar toda essa dimensão do problema seria uma tarefa intangível para o

momento. Aqui, o foco que se pretende dar é sobre a marginalização dos sinais e

sintomas e sobre o poder das tecnologias diagnósticas no processo de legitimação

clínica dessa síndrome.

A falência do exame clínico baseado no relato das queixas nos casos de

LER/Dort parece refletir a natureza dos sinais e sintomas apresentados pelos lesionados.

A subjetividade da dor40, do cansaço, da sensação de peso, da fadiga; a ausência de

anomalias perceptíveis a “olho nu”; e a desconfiança quanto à possibilidade de

simulação relacionada à diminuição, disfunção ou perda de movimento e da

sensibilidade colocam em cheque as supostas certezas científicas médicas e os seus

modelos de avaliação, tão dependentes de sinais patognomônicos e outras condições

objetivas, úteis para o diagnóstico.

Os avanços no campo da tecnologia diagnóstica por imagem certamente

representam um salto de qualidade no que concerne à identificação de lesões em

estruturas anatômicas e, conseqüentemente, para o diagnóstico de algumas patologias no

caso das LER/Dort. Contudo, a literatura especializada sobre a clínica dessa síndrome

aponta para o fato de que, em muitos casos, não existem condições anatomo-fisiológicas

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objetivas que caracterizem uma lesão que possibilitem o diagnóstico de LER/Dort, mas,

ainda assim, outras condições clínicas associadas inequivocamente com as condições de

trabalho podem levar ao reconhecimento da doença41.

Esse fato colabora para tornar pouco válida a busca desenfreada por um

marcador biológico através dessa infinidade de exames. Ressalta-se, mais uma vez, a

contribuição dessas tecnologias para a prática médica e, especialmente, para o

diagnóstico das LER/Dort, mas critica-se a ritualização em torno do seu uso, pois a

representação circulante dentre os doentes é que a tecnologia diagnóstica apresenta-se

como fonte única e inequívoca de confirmação do “caso” para os lesionados.

Observou-se que os informantes dessa pesquisa compareceram para as

entrevistas munidos de todos os exames diagnósticos, laudos, relatórios e receitas. Foi

corriqueira também a solicitação insistente para que o pesquisador olhasse seus exames

diagnósticos, que testemunhasse naquele momento o registro da ocorrência de lesão

diagnosticada naquela folha de papel chancelada. Transparecia que os informantes

queriam cumplicidade na perplexidade e o compartilhamento da indignação diante do

contra-senso médico e da forma estigmatizada atribuída a eles através de metáforas

como “ele agora é LERdo”, significando o pária, o ineficiente para o mundo do

trabalho.

Esses inquietamentos e reivindicações apontam para a necessidade de ação

mais pró-ativa por parte das entidades de classe e dos movimentos sociais ligados a essa

problemática, a fim de que garantias de fato sejam cumpridas e, mais importante ainda,

que o processo diagnóstico clínico legitimador da LER/Dort não se constitua em uma

cilada técnico-burocrática para adequar a doença aos ditames do poder hegemônico

biomédico. Por isso, é preciso colocar essas discussões na agenda do setor saúde e, mais

especificamente, no campo da saúde do trabalhador.

Excesso e culpabilização: representações etiológicas da Ler/Dort

A LER/Dort não corresponde a uma unidade nosológica, por isso torna-se

uma tarefa difícil e insensata descrever uma fisiopatologia, segundo o modelo

biomédico. Porém, investindo-se mais das proposições dos modelos explanatórios para

a LER/Dort, nota-se a variedade de origens etiológicas atribuídas a essa síndrome. A

literatura clássica sobre o assunto aponta para causas biológicas, psicológicas e sociais,

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porém minimiza a importância dos conteúdos experenciais sobre a causação da mesma.

Não se pretende aqui trazer uma revisão sobre as bases etiológicas das LER, visto que

se trata de uma abordagem densa e complexa que mereceria certamente um esforço de

pesquisa maior, já elaborado por outros autores42, 43. Enseja-se, no entanto, apresentar a

perspectiva fenomenológica sobre essa questão a partir do relato dos informantes dessa

pesquisa e, com isso, deflagrar um debate de maior alcance sobre a problemática

etiológica, com vistas aos projetos de cura adotados por esses trabalhadores no curso

diacrônico da doença.

Os informantes dessa pesquisa atribuíram ao “nervo”, ao “excesso” e à

“culpa” o epicentro das lesões que sofriam, conferindo a eles sentidos que permitiram

análise mais ampla sobre o processo de causação do adoecimento, bem como as

principais implicações disso para a posterior trajetória na busca de cura.

As percepções da origem do adoecimento atribuída ao “nervo” giraram em

torno do psicológico abalado, da depressão, da convulsão, do sofrimento excessivo, do

esforço, da descontinuidade, da fragilidade e da perda de comando, conforme revela a

fala dessa trabalhadora: “E, na minha época, assim, eu acho que o que mais pesou em

mim foi o psicológico mesmo, assim, me abalou demais. E, eu não sei, eu ouvi dizer que

ele ataca muito o sistema nervoso, né? Ataca o sistema nervoso” (Margareth,

digitadora).

É vasta a literatura que trata dos “nervos” sob o olhar socioantropológico.

No Brasil, autores como Duarte, Souza, Rabelo & Alves, Scheper-Hughes, Rosemberg,

Costa e Rebhun trataram com maior profundidade o assunto sob vários aspectos44. No

entanto, é Souza quem traz uma reflexão sobre “nervos” em trabalhadores que se

aproxima mais das discussões travadas aqui.

A perspectiva dos “nervos” ou do “nervoso”, apresentada por trabalhadores

nesse estudo, trilha sentidos que vão do individual ao social. No plano individual,

“nervos” faz referência à experiência vivida no plano corporificado, nas sensações e

desconfortos apresentados que remetem, sobretudo, a uma descompensação, ou mesmo

falha, do sistema nervoso, tal como concebido pela visão biomédica. Kleinman25 avança

nessa questão ao afirmar que “nervo”, no nível pessoal, representa um conjunto de

manifestações decorrentes de fenômenos psicobiológicos e que tais manifestações

sofrem a influência cultural, pois é nesse campo que são percebidos, rotulados,

explicados e avaliados os agentes estressantes.

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Já no plano social, os sentidos dos “nervos” parecem reeditar algumas

máximas sobre a discussão que envolve a falta de controle por parte do trabalhador em

relação a seu processo de trabalho e as exigências impostas pelos processos produtivos

como fonte de sofrimento coletivo. Souza45 discorreu sobre a doença dos nervos, em

trabalhadores que estavam em processo de reabilitação profissional, como uma

estratégia de sobrevivência à exploração e à opressão das classes trabalhadoras, visto

que as demandas do mercado de trabalho geram sentimentos de fracasso e de

exploração que inviabilizam o processo de readequação profissional, favorecendo,

assim, o aparecimento de sintomas nervosos.

A autora destaca ainda que esses sintomas também se vinculam ao

desenvolvimento industrial, à crescente urbanização e às diferenças sociais e culturais

geradas por tal processo. Portanto, acredita-se que seja necessária uma investigação

mais específica sobre a temática dos nervos na perspectiva do lesionado com LER/Dort,

a fim de que se possam compreender melhor essas e outras facetas no plano individual e

social referente ao adoecimento.

Os sentidos do termo “excesso” variaram entre os trabalhadores como

percepções deste ligadas a fatores biomecânicos, tais como postura, movimento, força,

agilidade, além de outros de cunho ergonômico; e de outras percepções ligadas à

organização do trabalho, tais como repetitividade, acúmulo de funções e monotonia.

Essas percepções, por vezes, davam lugar também ao sentimento de culpa como fator

etiológico de segundo nível, co-responsável pelo infortúnio que lhes agrediu.

Aí, quando eu entrei, que eu vi aquele quadro ali, aquela produção

toda, eu digo: “Eu vou ganhar primeiro lugar” (ri). Acho que foi

por isso que eu fiquei com esse problema, porque eu digitava

muito, mas eu digitava assim, com prazer (...) porque eu não

conhecia a doença. Comecei a sentir muitas dores, eu pensei até...

porque eu jogava vôlei, então eu achava que era alguma coisa do

vôlei, eu digo: eu vou parar, porque eu acho que já está me

incomodando (Margareth, digitadora).

O ponto de partida para tentar compreender o significado relacionado a

esses fatores etiológicos talvez esteja no fato de que os fatores acima citados

configuram o modelo biologizante da doença, que encontra na fadiga muscular

decorrente da atividade produtiva, na nocividade de fatores biomecânicos produtores de

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atrito nos tendões e na noção de traumas cumulativos os principais fatores

desencadeantes da enfermidade. Essas concepções remetem a um contexto privado de

vulnerabilidade, que elimina a eventualidade de causalidade de natureza externa ou

exógena, e formam os principais pilares de legitimação de qualquer etiologia

ocupacional, segundo os critérios objetivos requeridos pelo paradigma biomédico42, 43.

Portanto, parece fazer sentido a reprodução, por parte dos trabalhadores, de

um discurso médico hegemônico, visto que todo o processo de legitimação da doença e

obtenção de benefícios se dá sob a égide desse sistema. Vale notar que a perícia médica

do sistema previdenciário brasileiro, a reabilitação física e profissional do sistema

oficial de saúde do país e os programas de assistência e prevenção de adoecimento no

trabalho são bastante influenciados por uma ideologia que transfere para a medicina e,

conseqüentemente, para seus agentes certa medida de controle da sociedade38.

Além disso, a biologização da doença opera no sentido de atomizar os

fatores de maneira arbitrária e reducionista, de modo que o conceito de doença se

subordine ao fato biológico, conformando “corpos sem experiência”. Essas concepções

sobre a causalidade promovem uma hipervalorização das características individuais e

tem como conseqüência o obscurecimento das condições de produção social da

enfermidade42.

... o problema hoje que eu tenho, e que também tinha meu

ajudante, ele falou comigo: “Às vezes, o jeito de pegar um tubo,

remover uma coisa pesada de um lado pra outro”, ele falava que

tava com problema de coluna, eu achava que era manha, porque

eu não sentia dores em meu corpo, não sentia; eu achava que era

manha, mas hoje eu tô sofrendo com o problema, já fiz duas

cirurgias (Mathias, caldeireiro).

O fator “culpa”, também presente nos relatos dos informantes, encontra

bases em uma visão psicologizante sobre o adoecimento, que alega serem as LER/Dort

decorrentes de processos psíquicos, na sua maioria desvinculados das condições e da

organização do trabalho. Ao admitir características essencialmente subjetivas do

processo de adoecimento, esta concepção sobre a etiologia da doença descaracteriza a

relação com o trabalho, focalizando o portador do distúrbio como predisposto para a

mesma. Dessa forma, transfere para o sujeito a responsabilidade por ter adoecido. Daí, o

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processo de culpa por ter se descuidado da postura, por não ter parado a tempo, por não

observar as regras, encerrando, assim, um processo de individualização da culpa por ter

adoecido43, 46, 47.

Alves46 ratifica dizendo que: “A interpretação biologizante e psicologizante

de um fenômeno essencialmente social acaba por culpabilizar o cidadão pelo

adoecimento” (p.41). Os argumentos dos defensores dessa visão de individualização da

culpa parecem confluir para uma mesma linha ideológica, que leva o trabalhador a uma

alienação quanto à capacidade do processo produtivo de criar mazelas para a vida

humana e social.

Nos trabalhadores entrevistados, a negociação de realidades e as trocas de

experiências no decurso do tempo foram trazendo à consciência os fatores relacionados

ao trabalho como principais causadores do processo de adoecimento, fato que contraria

a lógica proposta pelas correntes acima, como se nota no relato a seguir:

Meu Deus do céu! Eu tinha raiva do meu ex-marido, eu queria

matar meu ex-marido, você está entendendo? E meus filhos

ficaram doidos comigo, porque eu achava que tudo o que estava

acontecendo na minha vida não era proveniente do meu trabalho,

era proveniente do meu casamento, porque ele me deixou e aquilo

estava me consternando em toda a minha vida. Aí a médica: “Não,

Mara, está errado, está tudo errado”. Doutor B. também me

chamou às vias de fato: “Não, Mara, pelo amor de Deus, isso que

você tem é doença ocupacional (Mara, secretária).

Portanto, entender a origem do adoecimento pelos prismas totalizantes de

alguns modelos causais, que servem a uma determinada ordem social, parece submeter a

doença a padrões predeterminados, que são assimilados e reproduzidos pelas

consciências coletivas que estão sob a égide dessa ideologia. Certamente, os

significados surgidos dessas interpretações não representam o conjunto de todas as

possibilidades de entendimento sobre o tema, mas levantam um importante

questionamento que deve ser levado em conta ao se pensar sobre o curso dos doentes na

busca por cura de suas enfermidades. Qual o papel dos contextos sociais mais amplos

sobre essa questão?

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Itinerário terapêutico: sinais, sintomas e significados

Os sintomas iniciais do adoecimento apresentados aqui não se estabelecem

como um modelo representativo standartizado para o início da doença em todos os

casos de LER/Dort. Na verdade, é o conjunto das percepções dos informantes desse

estudo sobre o estabelecimento das etapas iniciais da doença e suas implicações num

cenário mais amplo.

As mais variadas formas de apresentação da dor, quais sejam a sensação de

peso, o formigamento e o cansaço, assim como as outras formas de manifestação de

início dos sintomas, tais como o estresse, o déficit de força e de sensibilidade, a

dificuldade de movimento dos segmentos corporais, os distúrbios do sono, a tensão

muscular e as dificuldades para realizar as atividades da vida diária estão fortemente

presentes nos discursos dos sujeitos acometidos por LER/Dort. Esses achados já foram

largamente estudados pela literatura médica especializada, com o objetivo de classificar

os quadros inespecíficos das LER, a fim de fornecer informações úteis para o

planejamento terapêutico, para a avaliação da incapacidade laborativa e para o

prognóstico dessa síndrome.

Três desses aspectos merecem uma discussão mais aprofundada pela

influência que apresentam perante os itinerários terapêuticos dos entrevistados deste

estudo. O primeiro deles é a dor, que é abordada nessa etapa do desenvolvimento da

doença como um sintoma que precisa ser obscurecido, no sentido de uma dor que

precisa ser “calada”. Os outros aspectos são o estresse e o cansaço, cujo destaque nesse

artigo se dá por estarem fortemente presentes nos diagnósticos iniciais dos profissionais

médicos, em detrimento até de outros signos supostamente mais evidentes no momento

da consulta.

E o que a senhora sente? Eu disse ‘doutor, eu comecei a sentir; eu

só sei falar de segunda pra cá: uma dor fininha como que, doutor,

daqui, doutor, [costas e região lombar] e vai até o solado dos pés.

E agora está daqui e responde no dedo grande do pé, doutor, que

eu não estava nem agüentando falar, é como se fosse uma

contração de poucos minutos, aí vem de novo, em poucos minutos

vem de novo. E chega e parece que faz isso ói, torce tudo, é como

se desprendesse algo daqui do cérebro e vai descendo por aqui, vai

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tomando, e tomando todos os nós da coluna... E quando chega nos

dedos do pé. Eu cansava de me dar vontade de pegar assim, se

pudesse furar para sair essas quenturas, é muito fogo. Sabe o que é

fogo. Meu Deus! É uma coisa muito ruim. Aquela contração, ao

mesmo tempo uma porção de formigamento. Aí simplesmente

formigagem, espetada, coceira. Deixe lá que, desde que eu comecei

a sentir isso, há alguns anos atrás...(Mathilde, cabeleireira).

A dor é largamente estudada no cenário acadêmico internacional e nacional.

Em recente tese de doutoramento, Lima40, estudando os sentidos e práticas no cotidiano

dos espaços terapêuticos da clínica de dor, faz uma importante revisão sobre esta

entidade clínica. Após refletir sobre a dor como uma experiência sensorial e emocional

desagradável, relacionada com um dano real ou potencial, ela afirma que:

Este conceito reflete mudanças na concepção da dor para a

biomedicina e representa vários níveis de danos. Até mesmo aquele

que não está no corpo ou não é ‘visível’, mas percebido e descrito

pelo doente que o sente. (...) A dor está no corpo, na mente, na

história de vida, no cotidiano, no mundo da vida, é

multidimensional (p.65).

Como uma entidade multidimensional, a dor carrega também alguns

significados inerentes ao mundo do trabalho. Nessa direção, a dor que precisa ser

“calada” reflete a necessidade de a pessoa manter-se sempre apta para o trabalho,

íntegra na sua totalidade, produtiva aos olhos das exigências do trabalho. Calar a dor é

mimetizar um “tipo ideal” de trabalhador, constituído para servir a este sistema de

produção capitalista, como mostra o relato dessa trabalhadora:

Então, aí, quando aconteceu dessa minha transferência pra essa

área, que eu comecei a abraçar todo esse trabalho, né? Foi que

começaram a me chamar, porque eu não estava dando cabo do

serviço, não porque eu não queria, e sim porque eu utilizava de

uma estratégia. Foi aí que eu comecei a sentir as dores. Como doía

muito, e eu não podia falar, que eu tinha dores embaixo do braço,

que iam pra o seio esquerdo, tá entendendo? Então, o que é que eu

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fazia? Eu comprava as minhas injeções e levava pra o serviço

médico da empresa. E quando a dor estava muito forte, eu descia e

pedia para a enfermeira me aplicar a injeção, pra eu poder voltar

a trabalhar. E isso também é assim: isso quando os remédios que

eu tomava já não estavam fazendo efeito; os remédios assim:

comprimidos, né? Os tandrilax da vida... não, não era tandrilax,

não, era dorflex, mas tinha um outro lá que o médico costumava

passar pra gente, no próprio serviço médico da empresa, que eu

não me lembro agora (Mara, secretária).

O relato acima traz, também, o uso de remédios como um importante

elemento utilizado no sentido de calar a dor dos lesionados nesse estudo. Porém, eles

não são os únicos; a massagem realizada por profissional ou por leigo também figura

como um importante recurso nessa empreitada. As técnicas de manipulação corporal, a

medicação e, mais notadamente, a automedicação parecem funcionar como um suporte,

como uma maneira de conferir ao corpo a possibilidade real, ainda que subvertendo uma

ordem médica, de mascarar seu sofrimento em prol da manutenção do posto de trabalho.

A ação de parar de trabalhar para realizar uma consulta, ou tratamento específico, em

muitos casos, não é vista como terapêutica apropriada ou possível, como mostra o relato

de Maria: “Eu não fui logo, porque, lá, a gente não tem chance de ir assim pra

médico”.

Além disso, o uso de remédio sem prescrição médica e de técnicas de

manipulação do corpo são amplamente difundidos e bastante acessíveis nas sociedades

modernas, fatos que consolidam ainda mais esses recursos como principal escolha

terapêutica nessa fase de início dos sintomas da LER/Dort. Para Matos11, “a rede

informal de indicações de serviços de saúde”, formada a partir de sugestões de amigos,

vizinhos e colegas, é um condicionante na formação desse itinerário terapêutico.

Também não há, nas narrativas, indícios do uso de forma sistemática e

organizada de uma medicina complementar; a natureza do uso de terapêuticas

complementares é fragmentada e espúria. Concordando com a afirmação de Luz9 sobre

práticas, valores e representações em saúde na sociedade civil:

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“Diversidade, fragmentarismo, colagem (ou, se preferimos a

expressão cunhada por Lévi-Strauss, bricolage), hibridismo e

sincretismo, características culturais atribuídas à pós-

modernidade, estão seguramente no grande mercado social da

saúde contemporânea” (p.97).

A consulta médica, para o trabalhador com autopercepção de que é

incapaz28, figura como uma possibilidade que remete a duas situações que soam como

abomináveis para muitos: a eminência do afastamento do trabalho e a conseqüente

demissão. Matos11 aponta essas situações como “coerções cotidianas e condições

objetivas de vida” para explicar que o sistema de produção capitalista requer uma força

de trabalho eficiente e atuante. Nesse sentido, a consulta médica parece confundir-se

com um ato que delata uma espécie de falha, de desajuste com os propósitos desse

sistema.

Essa proposição parece materializar-se no segundo e terceiro aspectos, ou

seja, o diagnóstico médico de estresse e cansaço nessa fase inicial dos sintomas. Em

primeira instância, o uso médico do “estresse” como taxonomia diagnóstica se deu

porque o estresse tornou-se uma das metáforas mais comuns para o sofrimento

individual e coletivo no final do século XX49.

Uma visita ao conceito de estresse de Selye, descrito em 1936 como

“resposta genérica do organismo frente às exigências do ambiente” (Selye apud

Helman49:262), mostra que, para que haja uma coerência mínima nesse diagnóstico, é

necessário que as condições de vida e trabalho sejam devidamente avaliadas.

No entanto, nas consultas médicas iniciais, relatadas nesse estudo, ocorreu

uma preocupação maior por parte dos médicos com os sintomas físicos apresentados

pelos pacientes do que com outras questões que poderiam estar levando ao suposto

estresse. Além disso, as propostas terapêuticas para o estresse diagnosticado nos

trabalhadores entrevistados parecem incoerentes ou, no mínimo, reducionistas, pois

foram conduzidas à base do uso de medicação analgésica ou antiinflamatória apenas.

Em alguns casos, até foi recomendado o afastamento temporário do trabalho para

descanso, para relaxar, porém sem nenhuma abordagem mais incisiva e específica sobre

os determinantes do estresse. Essas condutas traduzem o estresse vislumbrado pelo

médico como uma expressão máxima do significado de “cansaço”, remetendo mais uma

vez ao modelo biologizante que encontra na fadiga um forte fator de origem e no uso

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dos recursos terapêuticos a possibilidade de maximizar a exploração do corpo no

trabalho.

Eu sei que eu fui a primeira, porque, depois dessas dores, eu

comecei a perceber que digitando piorava e aí eu fui na... eu me

lembro que foi no [consultório], fui atendida pelo médico, o

médico olhou e fez: “Não, isso aí deve ser estresse, cansaço”.

Porque eu acho que nem os médicos conseguiam diagnosticar a

LER. Na época, chamava tenossinovite, não sei se ainda é esse

nome aí. Aí eu sei que eu fui e ele me botou uma tala, né? Uma

talinha de gesso pra eu não mexer...(Margareth, digitadora).

O valor social do curso da doença

As seguintes categorias fisioterapia, perícia médica, reabilitação profissional

e prognóstico emergiram com maior recorrência nos discursos dos entrevistados,

requerendo uma atenção maior sobre cada uma delas para uma discussão mais

adequada.

A perícia médica, realizada na previdência social, inaugura um processo

marcado pela ocorrência de sucessivos encontros clínicos, perícias e pelo ingresso na

reabilitação profissional. A perícia médica sofre grandes críticas dos trabalhadores desse

estudo, por dois motivos: primeiro, porque suas ações não parecem coerentes, uma vez

que se esperava do ato pericial uma atitude investigativa com tendências totalizantes, ou

seja, uma busca que envolvesse os determinantes que geram adoecimento no trabalho e

também um olhar médico de fato sobre a doença e sobre o doente. O segundo motivo é

o fato de o trabalhador não participar ativamente do processo decisório, sendo colocado

numa postura passiva pela coerção e pelo medo28.

Cada perícia era um trauma, você ficava uma semana, sabe? Já

anterior, duas, tremendo, porque sem saber o que é que iam dizer

pra você, o que é que iam fazer com você, pra onde lhe iam jogar,

o que é que iam dizer, se iam olhar seus exames, ou se não iam.

Porque já teve casos aí deles sequer olharem seus exames.

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Mandava você voltar e aí você trabalhava, como eu cheguei a

trabalhar, trabalhei assim 15 dias, aí os braços inchavam todo.

Muda, trabalha em outro lugar, aí mudavam na outra semana, as

próprias pessoas dentro da agência não sabiam lidar com isso, aí,

no final, mandou eu ficar o quê? O gerente, cobrando, fazendo

cobrança por telefone, com aquela mão pendurada e fazendo uma

coisa que era superdesagradável, que era cobrar, e você só ouvia

desaforo (Martha, bancária).

A reabilitação profissional, conforme o relato acima, também é alvo de

críticas por parte dos trabalhadores, sobretudo, porque, supostamente, não se realiza

uma reabilitação profissional no sentido estrito do termo, nos termos de buscar

alternativas de trabalho compatíveis com a funcionalidade do lesionado e com a

utilização de critérios de execução e avaliação dessas ações, de forma partilhada com os

envolvidos nesse processo.

Observam-se ainda o descrédito e a desvalorização profissional por que

passa o trabalhador que se submete ao processo de reabilitação profissional, pois são

rechaçados, mal vistos, recusados e colocados em postos de trabalho que não refletem o

potencial profissional que acumularam nos anos de trabalho. Esse modelo de assistência

ao trabalhador enfrenta um descompasso importante com a reabilitação física e um

desajuste de propósitos com as empresas que recebem esses trabalhadores. Com isso, os

resultados apontados tendem a ser os piores possíveis.

A reabilitação física é dimensionada, no imaginário popular, principalmente

como ações de saúde destinadas a devolver a capacidade motora aos lesionados. Nos

modelos de história natural da doença, freqüentemente, ela é tida como ações adotadas

na fase de “incapacidade residual”50. Neste artigo, os entrevistados focalizaram suas

visões de reabilitação nas intervenções fisioterapêuticas, atribuindo a elas a capacidade

de lidar positivamente com situações de sofrimento físico extremas, com disfunções

incapacitantes e com o restabelecimento físico para o retorno ao trabalho.

Que não era aquele de passar aquele trocinho aqui no braço,

ultra-som, que não era aquilo, tem outro lá que eles passavam,

umas placas que eles botavam lá, que faz descarga elétrica (...)

não era nada disso! Que aquilo dali me debilitava mais ainda. Não

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era gelo, essas coisas todas, porque não adiantava isso daí, isso

me maltratava muito mais! E eu saía pior do que eu entrava.

Então, eu fui procurar formas de tratamentos, que não era aquela.

Então, eu achei uma forma de tratamento que foi maravilhosa pra

mim, né? Porque eu achei uma fisioterapeuta, que ela trabalhou

meu corpo como um todo, você está me entendendo? Ela começou

do fio do cabelo, aqui da cabeça, até o dedinho do pé. Ela me vê

toda, é integral, sabe? Ela não me via assim: a mão, o braço, o

cotovelo, não! Ela queria me ver como um todo, tá? E, quando ela

mexia no meu corpo, ela dava... “vamos ver aonde eu posso mexer

pra você se sentir melhor”. Então, esse tipo de fisioterapia, nós

não temos assim acesso, nem todo trabalhador tem acesso. Eu só

consegui porque a assistência médica que eu tinha, ela estava no

convênio... (Mara, secretária).

A avaliação e a adesão ao tratamento fisioterapêutico parecem seguir em

direções opostas e até contraditórias, pois, de um lado, há uma constatação dos parcos

benefícios produzidos pela fisioterapia administrada de forma segmentada e com o

objetivo único de minimizar os sintomas apresentados pela doença. Essa forma de

terapia, tida como “convencional”, utiliza a corrente elétrica de baixa voltagem, a onda

sônica, as formas de produção de calor superficial e profunda associadas ou não a

exercícios terapêuticos.

Do outro lado, estão experiências bem-sucedidas de tratamentos

fisioterapêuticos, que adotam uma linha mais integral de cuidado, onde o corpo é visto

como um todo, onde o movimento é parte integrante do tratamento e os limites do corpo

são respeitados e superados. Os informantes tratam estas perspectivas terapêuticas como

“técnicas manuais”. Essas abordagens coabitam bem com outros recursos corporais

tidos como alternativos em nossa sociedade, como yoga, massagem ayurvédica, dentre

outros. Mas essas terapêuticas, em grande parcela, não fazem parte da oferta de recursos

de fisioterapia da rede pública, que conta essencialmente com os recursos convencionais

de tratamento.

O pano de fundo para discutir as percepções acima passa pelo entendimento

do acesso a determinadas terapêuticas ou serviços de saúde como uma questão de poder

e de classe social e também da reestruturação dos paradigmas para a reabilitação física e

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profissional na rede pública de saúde e previdência brasileira. Fundamenta-se como uma

questão de classe social, pois os que possuem um poder aquisitivo maior, e

conseqüentemente um capital cultural mais elevado, têm condição de pagar e buscar

outras possibilidades terapêuticas e profissionais. Diferentemente do trabalhador

assalariado, que depende exclusivamente do arsenal de cuidados oferecidos pelo

Sistema Único de Saúde (SUS) e do engessado programa de benefícios da previdência.

Mais que isso, a discussão acima traz a reboque a necessidade de se pensar

sob a ótica dos modelos assistenciais que coexistem no Brasil51. Esses modelos também

refletem a diferenciação de classe, na medida em que, por um lado, o modelo médico

privatista abarca aquela parcela da população que pode pagar pelos serviços de saúde e,

com isso, apresenta um acesso privilegiado, ainda que se perceba um crescente

definhamento da assistência prestada nesse modelo. Por outro lado, o modelo

assistencial alternativo, que abriga o grande contingente populacional pobre desse país,

luta contra forças hegemônicas, contra estruturas e superestruturas de poder para

garantir o acesso universal.

Para além da questão de classe e poder, há também um entrave

paradigmático que precisa ser repensado e superado. As LER/Dort no Brasil são vistas

como uma condição grave que leva à invalidez47, ou seja, uma visão negativa sobre os

indivíduos afetados, pois passa-se a focalizar naquilo que o trabalhador não é capaz de

fazer e no que ele perdeu de sua funcionalidade devido à doença. Por esse caminho, só

se imagina uma possibilidade remota de cura e uma reabilitação que se restringe a

manter a vida com o que resta de funções50. Faz-se necessário repensar esse estatuto

utilizado para assistir os trabalhadores no Brasil.

Dessa forma, pensar o conceito “funcionalidade” como52 “um termo

genérico para as funções do corpo, estruturas do corpo, atividades e participação (...)

indica os aspectos positivos da interação entre um indivíduo (com uma condição de

saúde) e seus fatores contextuais (fatores ambientais e pessoais)” (p.242), é buscar nos

indivíduos as suas potencialidades, quer em ambientes padronizados, como são os

espaços terapêuticos, mas, sobretudo, é trabalhar positivamente a participação desse

indivíduo no mundo da vida, no qual se inclui certamente o trabalho.

A reabilitação física e profissional precisa ser revista sob essa perspectiva

para que se possa enxergar o corpo doente de forma integral, a fim de evocar

capacidades latentes e ampliar a possibilidade de participação desses indivíduos nos

contextos sociais onde vivem. Nesse sentido, a postura dialógica entre os atores sociais

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envolvidos nessa questão pode traduzir-se em modelo de atuação que vise integrar a

reabilitação física e profissional com ações afirmativas no chão de fábrica, com vistas

ao respeito dos limites impostos pela doença, a garantia da empregabilidade, a

valorização da história laborativa dentre outras, implicadas no curso da vida e da

doença.

O prognóstico, aqui entendido como uma imagem, um cenário de futuro,

apresenta-se para os trabalhadores estudados como sombrio, pois descortina piora

irreversível e ascendente do quadro instalado, tendo como signos a atrofia progressiva

de músculos, nervos e tendões e a culpa por não ter se cuidado antes. Mesmo assim,

esses lesionados não se encorajavam a parar, utilizavam-se da fisioterapia, da mesma

forma que se utilizavam da medicação no início dos sintomas, como uma forma de

mascarar a gravidade do problema e continuar trabalhando até que o imponderável se

estabeleça.

O prognóstico, por outro lado, também revela o discurso padronizado dos

profissionais da rede oficial de que o quadro é irreversível, de que o trabalhador se

excedeu demais, de que agora não tem mais jeito e de que só lhe resta cuidar do que lhe

restou. Dessa forma, maximiza a lógica da incapacidade que sepulta outras

possibilidades.

O prognóstico demarca ainda os frágeis limites do sistema de saúde e da

previdência em lidar com a cronicidade, com a incapacidade, com a disfunção, com a

culpa, com o nervosismo, com o medo de perder o emprego e com a possibilidade de

volta ao trabalho. Nesse sentido, utilizam-se do despejo, ao invés do acolhimento,

expondo o trabalhador lesionado muitas vezes a sua própria sorte.

Aí, corri às várias fisioterapias. Aí, nos lugares que eu rodo, pois

no [Hospital] Sarah é meio difícil, os médicos dizem: no seu caso,

vai ter tratamento, mas cura, a gente não pode, pois é uma coisa

muito antiga. A lágrima veio no olho, porque eu vi, como se fosse

um filme daquele passado que eu deixei lá (Mathilde, cabeleireira).

As implicações relacionadas ao prognóstico aqui apresentado parecem fazer

eco com a discussão da “circuloterapia” apresentada por Lima40 ao discutir os limites da

terapêutica no espaço da clínica de dor como: “circulação de sentidos e de pessoas no

espaço físico e social da clínica de dor (...)” (p.150).

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Tanto na dor, como entidade nosológica, quanto na Ler/Dort, como

síndrome permeada pela dor, lida-se com a insuficiência do saber e a impotência do

terapeuta, pois, segundo Lima40:

“A invisibilidade da dor e a não-correlação entre dor crônica e

lesão, apesar de serem proposições aceitas teoricamente pela

neurofisiologia, atingem fortemente o Modelo Biomédico,

dificultando a compreensão da ‘doença’ para o médico clínico,

mantendo o doente numa condição de suspeição” (p.88).

Além do exposto acima, as LER também expõem todas as dificuldades do

sistema previdenciário e do próprio sistema produtivo em lidar com mazelas que ele

mesmo produz. À luz da proposição da existência de uma “circuloterapia” entre os

doentes com dor crônica, visualiza-se também uma dinâmica de busca dos pacientes

com diagnóstico de LER/Dort por um relatório fisioterapêutico, por um atestado

médico, por um exame diagnóstico específico, pelo tratamento com o terapeuta

ocupacional e com o psicólogo como formas legitimadoras para sua condição de doente

e manutenção do beneficio.

Essa recorrência a várias agências e agentes revela a face compulsória do

itinerário terapêutico desses trabalhadores. Kleinman critica duramente o modelo

biomédico que serve a esse propósito dizendo que:

“Na biomedicina contemporânea e noutras profissões adjacentes,

não existe uma perspectiva teleológica sobre a illness que possa

abordar os componentes do sofrimento relacionados aos

problemas da perplexidade, da ordem, do mal que parece ser

intrínseco à condição humana; ao invés disso, a burocracia médica

moderna e as profissões adjacentes que trabalham dentro dela (...)

estão orientadas a tratar o sofrimento como um problema de

colapso mecânico que requer um concerto técnico. Elas arranjam

uma manipulação terapêutica dos problemas de disease em lugar

de dar uma resposta espiritual ou moral significativa para os

problemas da illness” (p.27, 28 – tradução livre).

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71

O mito da cura e o significado da fala

O desenrolar das trajetórias de busca de cura revelaram significados

importantes das histórias de adoecimento de trabalhadores com LER/Dort. Para

complementar esses achados, serão apresentadas as percepções de (re)significação

desses adoecimentos, a fim de extrair daí os significados que permeiam as experiências

desses indivíduos após a legitimação da sua doença.

Entre os entrevistados, notou-se que alguns fizeram claramente o caminho da

(re)significação daquelas situações, tidas como marcantes e cruciais para o processo de

adoecimento. No entanto, outros não o fizeram, referindo-se àqueles indivíduos que

continuam presos aos sentidos do “calar”, representados pelo uso de estratégias

mimetizadoras para camuflar o sofrimento e manter-se trabalhando.

Então, hoje eu... eu, vamos dizer assim: eu hoje não sou

empregado nem sou... não trabalho nem... porque, encostado, você

não pode fazer nada, não é verdade? E, realmente, eu não devo

fazer. Então, eu pretendo, enquanto estiver no INSS e puder fazer o

tratamento pra eu melhorar, eu vou fazer isso, eu vou esquecer

trabalho, eu quero ficar bom. Eu quero ficar bom, meu objetivo é

melhorar (Matheus, bancário).

Nesses lesionados, o mito da cura ainda é forte o suficiente para mantê-los

gravitando em torno da doença e alimentando-se das formas de tratamento que mantêm

vivas essas esperanças. Kleinman25 afirma que a fabricação de um mito, que é uma

qualidade universal e humana, nos tranqüiliza de que os recursos estão conforme os

nossos desejos, e não conforme as descrições reais. Dessa forma, torna a doença

tolerável, porém dificulta a obtenção de novos significados para a doença.

Por outro lado, subverter-se ao “calar” significa, em primeira instância,

reconhecer a condição de doente, mas repudiar a condição de inválido, segundo o

paradigma operante na sociedade brasileira. É, também, dar respostas claras na direção

de não esperar, de braços cruzados, pela cura que reedita biografias de exploração do

corpo pela produção. Nesse sentido, espera-se uma atitude de oposição à lógica de

produção, através da abertura de uma consciência crítica àquela dedicação cega de

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outrora. É voltar a produzir, porém, não mais fazer sacrifícios que coloque seu próprio

corpo em risco em prol das demandas do trabalho.

Herzlich53 apud Michael Bury ratifica o papel da (re)significação ao afirmar

que:

“Uma doença duradoura leva a ‘uma fundamental reconsideração

da biografia da pessoa e de seu conceito de si’. Devido a seu

conceito de ‘ruptura biográfica’, a ênfase se deslocou na direção

da dimensão temporal da experiência da doença e do trabalho

‘reflexivo’ realizado pelos pacientes que buscam, nem sempre com

sucesso, recuperar o controle de suas vidas” (p.387).

O itinerário terapêutico dos trabalhadores entrevistados transcorreu sob a

influência do sistema biomédico. Dentro dessa perspectiva, os sujeitos construíram

projetos individuais na busca por cura, contando invariavelmente com uma forte

presença de estruturas sociais mais amplas, que também modelam esses percursos,

conferindo-lhes significados. Constatou-se que, no início dos sintomas e no curso da

doença, o trabalhador vivenciou a experiência do “calar”, negando a sua condição de

doente, mascarando a sua dor e outros sofrimentos, através do uso de medicação, de

recursos fisioterapêuticos, almejando mimetizar um tipo ideal de trabalhador que está

sempre capacitado a atender às demandas do sistema produtivo, mesmo que isso

represente prejuízos ainda maiores para as estruturas do seu “corpo”28.

Essas trajetórias também serviram para denunciar um modelo de assistência

que expurga o trabalhador dos canais de tratamento e de amparo social, deixando-o à

mercê da própria sorte, rodando em círculo atrás do relatório médico, do cartão de

comparecimento ao tratamento fisioterapêutico, do laudo do exame diagnóstico e de

tantos outros atestados e relatórios. Isso reflete a diferenciação de classe e o uso do

poder operado dentro do Modelo Biomédico, para satisfazer os interesses de

acumulação e produção capitalista.

Esses achados requerem uma reflexão de espectro mais amplo sobre a

incapacidade gerada pela LER, no sentido de caminhar em duas vertentes

simultaneamente. Primeiro, no corpo a corpo com os trabalhadores através da adoção da

funcionalidade como conceito integrador entre o trabalhador doente, seu meio social e o

mundo da vida. Segundo, pelo engajamento de todos os atores e setores envolvidos com

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73

essa problemática na elaboração de políticas que sejam responsivas à magnitude

macrossocial dos adoecimentos causados pela LER/Dort.

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SIGNIFICADOS E (RE)SIGNIFICADOS: O Itinerário

Terapêutico dos Trabalhadores com LER/Dort

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: CIÊNCIAS SOCIAIS

Aluno: Robson da Fonseca Neves

Orientadora: Mônica Nunes

SALVADOR

JUNHO 2005

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Instituto de Saúde Coletiva

Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva

MESTRADO EM SAÚDE COLETIVA

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78

SUMÁRIO

1. DELIMITAÇÃO DO PROBLEMA..............................................................

2. JUSTIFICATIVA.........................................................................................

3. OBJETIVOS...................................................................................................

4. PRESSUPOSTOS...........................................................................................

5. REVISÃO DA LITERATURA....................................................................

6. QUADRO TEÓRICO...................................................................................

6.1 Sistemas médicos...............................................................................

6.2 Itinerário terapêutico.........................................................................

6.3 Ampliação do conceito de doença.....................................................

7. MODELO TEÓRICO.....................................................................................

8. ESTRATÉGIA METODOLÓGICA..............................................................

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................

ANEXOS .............................................................................................................

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87

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1 - Delimitação do problema

O presente projeto de pesquisa origina-se de inquietações surgidas durante a

coleta e análise de dados de um estudo realizado no ano de 2001 no Cesat (Centro de

Estudo de Saúde do Trabalhador) intitulado: “Atitude frente à dor em trabalhadores de

atividades ocupacionais distintas: uma aproximação da psicologia cognitivo-

comportamental”. Esse estudo de cunho quantitativo foi realizado com uma amostra de

trabalhadores com diagnóstico de LER/Dort (Lesões por Esforços Repetitivos /

Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho).

O propósito primeiro daquela investigação era verificar as adaptações no

comportamento desses sujeitos que sofrem de dor crônica, a partir dos referenciais da

teoria cognitivo-comportamental1. Para tanto, era necessário colher informações quanto

às terapias adotadas pelos indivíduos, quem as indicava, como eram administradas,

quais eram os resultados obtidos, etc.

Os principais achados dessa pesquisa no que tange ao processo diagnóstico-

terapêutico adotada pelo grupo de trabalhadores estudados parecem identificar o médico

como o primeiro agente de saúde a ser procurado para a obtenção de diagnóstico e

indicação terapêutica. As medicações prescritas pelos médicos e as terapias físicas

administradas pelos fisioterapeutas são os recursos mais procurados, embora com uma

resposta terapêutica considerada como “melhora regular”, “pouca melhora” e “nenhuma

melhora”. Os recursos não prescritos pelo médico referidos pelos entrevistados foram:

chás, automedicação, doutorzinho, spray, pano quente, gelo, caminhada, hidroterapia,

acupuntura, massoterapia, fitoterapia e floral. Esse leque de opções apresentadas, apesar

de variado, não detém conteúdos de informações quanto ao motivo da escolha e adesão

a esses tratamentos, portanto, não traduz os imbricamentos no processo de busca por

cura por parte desses trabalhadores.

Por sua vez, o instrumento de investigação utilizado naquela pesquisa não

possibilitava aprofundar nas questões que envolviam as escolhas terapêuticas. Dessa

forma algumas perguntas, como qual o percurso terapêutico dos indivíduos com essa

enfermidade? O que os impulsiona a fazer uso de terapias caseiras no lugar de, ou

1 Teoria que se fundamenta no pressuposto de que os processos cognitivos, biológicos, comportamentais, socioculturais e ambientais influenciam-se mutuamente, visando promover o melhor ajustamento entre o indivíduo e seu ambiente (FORDYCE, 1976).

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associadamente com, tratamentos médicos mais consagrados? Qual o significado da

doença para o trabalhador com LER/Dort? Será que existe alguma regularidade nessas

escolhas de cuidados? Que avaliação fazem das ofertas de tratamento que já utilizaram?,

ficaram sem respostas satisfatórias no estudo de origem.

Esculpir o objeto “busca por cura entre os trabalhadores com LER/Dort”

parecia requerer um foco maior sobre a complexidade biopsicossociocultural da

enfermidade e nas suas relações com os processos de escolha e adesão às alternativas

terapêuticas disponíveis para lidar com essa síndrome, além de uma abordagem teórico-

metodológica que se propusesse a dar conta das interrogações levantadas acima. É nesta

perspectiva que se estrutura o atual projeto de pesquisa.

Segundo Magalhães (1998), a expressão Lesões por Esforços Repetitivos foi

proposta no Brasil como tradução para a denominação Repetitive Strain Injuries e

tornou-se a mais conhecida e utilizada no país. Outras expressões também são adotadas,

tais como Lesões por Traumas Cumulativos (LTC), Lesão Cérvico Braquial, Neuralgia

Braquial, Síndrome Dolorosa nos Membros Superiores de Origem Ocupacional e, mais

recentemente, Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho. O esforço de

nominação reflete parcialmente o lugar de destaque que essa enfermidade ocupa no

cenário da saúde pública mundial, cujo debate atual tende para o reconhecimento da

multideterminação dessa afecção pela possível participação de fatores psicológicos,

biológicos e sociológicos na gênese desses distúrbios. Por isso, conhecer os principais

núcleos que organizam o discurso médico sobre as LER poderá trazer subsídios para

entender os percursos realizados pelos portadores dessa síndrome.

A polêmica sobre a influência dos contextos socioeconômico e cultural

na determinação da gênese das LER/Dort gerou debates que se intensificaram nos

anos 80 na Austrália. Nesse país, a onda de processos judiciais a respeito de uma

suposta nova doença parece ter sido o elemento provocador de apaixonadas

discussões entre os diversos grupos interessados: sindicatos, médicos do trabalho,

representantes patronais, cirurgiões, trabalhadores queixosos. Para além do embate

no campo jurídico, a diversidade de situações de trabalho, padrões de vida e de

adoecimento tem se modificado ao longo dos anos em decorrência das conjunturas

política e econômica adotadas, fato que tem acrescentado novos elementos à

compreensão da doença em todo o mundo (MAGALHÃES, 1998).

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No caso brasileiro, o processo de reestruturação produtiva, em curso

acelerado no país a partir da década de 90, tem conseqüências ainda pouco

conhecidas sobre a saúde do trabalhador, decorrentes da adoção pela

desregulamentação e perda de direitos trabalhistas e sociais, legalização dos

trabalhos temporários e da informatização do trabalho. Esses fatores, associados ao

descumprimento de regulamentos de proteção à saúde e segurança, rebaixamento dos

níveis salariais e aumento da instabilidade no emprego, completam o quadro que

favorece a exclusão social e a deterioração das condições de saúde, que aponta para

os embates entre o capital e o trabalho (PAIM, 2002).

Esses enfrentamentos apontam para a perspectiva sociológica em torno da

LER. Nesse contexto, um dos modelos explicativos para a gênese da doença está na

teoria marxista, que entende o adoecimento como conseqüência iminente e necessária

da lógica de produção capitalista, ou seja, as LER/Dort seriam encaradas como uma

construção social resultante do conflito de classes e de movimentos sociais dos

trabalhadores. Porém, essa não é a única compreensão possível, outras visões permeiam

o campo da etiologia social dessa enfermidade (CHIAVEGATO FILHO & PEREIRA

JR., 2004).

Numa outra perspectiva sociológica, as Dort são vistas como simulações

que se caracterizam, na maior parte das vezes, como artifícios utilizados pelos

empregados no conflito social com seus patrões no contexto do trabalho, tendo em

vista benefícios relacionados ao salário, autonomia, ritmo de produção, etc.; obtidos

a partir da permissividade dos sistemas de compensação de doença e contextos

estimuladores de neuroses ocupacionais. Ou ainda como um processo de iatrogenia

social derivada de condições sociais concretas que amparam o pretenso adoecimento

orgânico; e do fornecimento de informações inadequadas, por diversas fontes que

vão desde a mídia até a atuação de profissionais especializados, que levariam a

comportamentos distorcidos maximizadores da dor (MARTIN & BAMMER, 1997).

Esses modelos trazem reflexões importantes sobre o processo de

adoecimento; o primeiro gira em torno do descrédito da dor sentida, e o segundo,

sobre as reais vantagens obtidas pelos trabalhadores com diagnóstico confirmado de

LER. Uma vez que efeitos colaterais perniciosos de origem intrapsíquica, tais como

medo, ansiedade, depressão, etc., podem ser induzidos no processo; e outros efeitos

que incidem sobre a vida social, tais como estigmatização, marginalização, exclusão

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do mercado de trabalho, dentre outros, podem trazer repercussões danosas à vida do

sujeito doente (RIO, 2000).

Na perspectiva psicologizante, as Dort são entendidas através dos

mecanismos psicológicos da neurose de conversão e compensação e por uma visão

psicossomática, que tentam fornecer modelos explicativos para a ocorrência da dor, da

invalidez, da suposta simulação, da somatização e de outros aspectos da personalidade

dos enfermos com LER.

Na neurose de conversão, o trabalhador transformaria recalques primários

em processos corporais, dos quais o principal sintoma seria a dor, o que suscita o debate

sobre fatores individuais versus fatores ambientais na construção da personalidade. Por

um lado, a corrente dos behavioristas e freudo-marxistas, que apostam na modelagem

de comportamento ou vivência a partir dos estímulos ambientais. Por outro, a corrente

psicanalítica mais ortodoxa, que, embora concedendo ao ambiente o papel de

desencadeador de mecanismos típicos de defesa diante da angústia gerada pelo trabalho

penoso, o fazem a partir do reconhecimento das particularidades desse processo em

cada trabalhador. Desses pressupostos entende-se que os determinantes da LER

precisam ser investigados a partir de um sistema formado por aspectos ambientais e

constitucionais, o que pode conduzir à superação do tradicional reducionismo

psicologista (MAGALHÃES, 1998).

A compreensão da neurose de compensação se dá pela investigação das

formas pelas quais os processos sociais e as determinações gerais do contexto

profissional e afetivo se manifestam no indivíduo. Nessa ótica, compreende-se que as

situações ansiogênicas, a exemplo de uma organização de trabalho rígida e opressora,

geram condições de sofrimento e manifestações de somatização. Quando o sujeito não é

mais capaz de tratar mentalmente essas condições de trabalho, é levado a desenvolver

defesas egóicas inconscientes, e a manifestação somática vem à tona. Advoga-se um

desejo inconsciente de um lucro secundário, favorecido pela condição de doente.

Assinala-se ainda que essa vantagem não precisa ser financeira, mas pode abranger o

status de inválido, a atenção dos outros sobre a incapacidade e o direito de não trabalhar

(MAGALHÃES, 1998; CHIAVEGATO FILHO & PEREIRA JR., 2004).

Na visão psicossomática, as LER/Dort estão ligadas a um comportamento

compulsivo do indivíduo dentro e fora do trabalho, que só se expressaria diante de uma

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estruturação do trabalho patogênica, ou seja, a maneira como o trabalho está organizado

aproveitaria e estimularia o trabalhador com este perfil, gerando os problemas

decorrentes. Na mesma direção, argumenta-se que os traumas psicológicos, a culpa e a

baixa auto-estima são conseqüências desta doença e não pilares de uma personalidade

naturalmente predisposta a adoecer. Araújo et al. (1998) constatam ainda que aspectos

relativos à personalidade, tais como: perfeccionismo, elevado senso de

responsabilidade, busca excessiva de reconhecimento, submissão às exigências de

produção e de qualidade, podem contribuir para o desenvolvimento desses distúrbios.

Contudo, tais fatores isolados não geram a doença, reafirmando, assim, a necessidade de

integrá-los aos demais aspectos determinantes dessa doença (VERTHEIN & GOMEZ,

2000).

A noção de um processo de adoecimento resultante da exposição a um

conjunto de fatores nocivos presentes no ambiente de trabalho, como movimentos

repetitivos e/ou forçados, ritmo de trabalho muitas vezes ditados por uma máquina,

adoção de posturas nem sempre adequadas e longas jornadas de trabalho, somados a

fatores pessoais2 configura o modelo biologizante da doença, que encontra na fadiga

muscular decorrente da atividade produtiva, na nocividade de fatores biomecânicos

produtores de atrito nos tendões e na noção de traumas cumulativos os principais fatores

desencadeantes da enfermidade. Essas concepções remetem a um contexto privado de

vulnerabilidade, que elimina a eventualidade de causalidade de natureza externa ou

exógena, e formam os principais pilares de legitimação de qualquer etiologia

ocupacional segundo os critérios objetivos requeridos pelo paradigma biomédico

(MAGALHÃES, 1998; OLIVEIRA, 1991).

Afirma-se, com base em estudos de natureza histológica, que esta síndrome

é resultante da associação entre fatores anatômicos e vasculares e que um fator genético

é provavelmente indispensável à eclosão da doença nos sujeitos predispostos. Outra

corrente atribui a ocorrência das Dorts a fatores como idade, fraturas prévias, gravidez e

notadamente o gênero. Outros fatores como os neurológicos, o uso de

anticoncepcionais, desordens metabólicas, diabetes mellitus, hipotireoidismo,

menopausa, insuficiência renal crônica, alcoolismo, hanseníase e tumores malignos de

pulmão são também apontados (MAGALHÃES, 1998).

2 A esse respeito é essencial considerar a discussão proposta por DEJOUR em O Fator Humano, 1997.

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Portanto, a visão biologizante é aquela que confere, às condições biofísicas

dos indivíduos e características materiais do trabalho, as determinações sobre a gênese

do aparecimento da síndrome, desconsiderando os aspectos subjetivos e sociais desse

distúrbio. Trata-se da visão mais aceita pelos profissionais de saúde, por se tratar de

uma abordagem mais normatizadora, que cristaliza o corpo do trabalhador em um

determinado sentido e afirma o médico como agente de intervenção nesse “corpo

instrumento de trabalho”, deixando à margem situações mais evidentes da violência do

trabalho e reitera o reducionismo do modelo biologizante (CHIAVEGATO FILHO &

PEREIRA JR., 2004; VERTHEIN & GOMEZ, 2000; GRAVINA, 2002).

A presença variável dos fatores supracitados, permeados pelas relações de

trabalho e pelas condições socioeconômicas e políticas, confere um caráter

multifacetário e emblemático à LER/Dort (RIBEIRO, 2003). A busca por cura realizada

por trabalhadores lesionados, diante desse cenário e num mundo que se torna mais

rigorosamente interligado com uma multiplicidade e diversidade de modelos, discursos,

práticas e representações nela presentes, é também complexa e emaranhada, como fios

de um novelo. Requerendo, assim, uma abordagem capaz de desenovelar os fios,

identificando seus percursos individuais, retomando o curso onde porventura se rompeu,

apontando suas interseções e tensões efetivas e suas mudanças de curso. Nesse sentido,

encontrar os significados e as intencionalidades no processo de adoecimento e busca de

restauração da saúde parece útil para elucidar a pergunta: Como se configura o itinerário

terapêutico dos trabalhadores com diagnóstico de LER/Dort na cidade do Salvador,

Bahia?

O termo “itinerário terapêutico”, referindo-se à interpretação dos processos

pelos quais os indivíduos ou grupos sociais escolhem, avaliam e aderem, ou não, a

determinadas formas de tratamento, traz contribuições importantes como forma de não

se limitar a identificar a disponibilidade de serviços, os seus modelos explicativos3 e a

utilização que as pessoas fazem das agências de cura. Mais que isso, a proposta é

verificar até que ponto a inclinação por uma opção de cura é influenciada pelo contexto

sociocultural em que ocorre e seu grau de dependência das coordenadas estabelecidas

pelo mundo intersubjetivo do senso comum (ALVES, 1999).

3 O Modelo Explicativo desenvolvido por Kleinman refere-se a um conjunto articulado de explicações sobre doença e tratamento, que determina o que se pode considerar como evidência clínica relevante e como se organiza e interpreta esta evidência com base em racionalizações construídas por perspectivas terapêuticas distintas (KLEINMAN apud ALVES, 1999, p.129).

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Partindo desse pressuposto e admitindo-se que as terapias realçam bem essa

teia de significados socioculturais envolta na importância que as sociedades parecem

dar à procura da contenção e domínio do sofrimento físico e psicológico, Helman

(2003) sinaliza que os diferentes povos e mesmo as classes sociais tendem a articular

suas experiências no reconhecimento e tratamento das enfermidades apoiados nas

tradições culturais. Dessa forma, o estudo do itinerário terapêutico referido a uma dada

síndrome, como é a LER/Dort, num primeiro plano, pode ser revelador de aspectos mais

profundos da realidade sociocultural que se estabelece em torno desses doentes e, em

um segundo plano, pode servir de elemento ordenador de políticas públicas de saúde

mais sensíveis no campo da saúde do trabalhador (LÉVI-STRAUSS, 1970; JANZEN,

1982; GEERTZ, 1989).

2 - Justificativa

Esforços no sentido de compreender melhor o caráter social e o econômico

envolvidos com a saúde do trabalhador, e em particular com a LER/Dort, apontam para

o fato de que, desde os anos 70, documentos da OMS, como a Declaração de Alma Ata

e a proposição de Estratégia de Saúde para Todos, têm enfatizado a necessidade de

proteção e promoção da saúde e da segurança no trabalho, mediante a prevenção e o

controle dos fatores de risco presentes no ambiente de trabalho. Recentemente, o tema

vem recebendo atenção especial no enfoque da promoção da saúde e na construção de

ambientes saudáveis (BUSS, 2003; TEIXEIRA & PAIM,2000). A Organização

Internacional do Trabalho (OIT), na Convenção/OIT nº 155/1981, adotada em 1981 e

ratificada pelo Brasil em 1992, estabelece que o país signatário deve instituir e

implementar uma política nacional em matéria de segurança e do meio ambiente de

trabalho (BRASIL, 2001).

No Brasil, as relações entre trabalho e saúde do trabalhador conformam

um mosaico, coexistindo múltiplas situações de trabalho caracterizadas por

diferentes estágios de incorporação tecnológica, diferentes formas de organização e

gestão, relações e formas de contrato de trabalho, que se refletem sobre o viver, o

adoecer e o morrer dos trabalhadores.

A experiência acumulada pelos Programas de Saúde do Trabalhador na rede de

serviços de saúde sustenta a proposta de reorganização do modelo assistencial, que

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privilegia as ações de saúde do trabalhador na atenção primária de saúde. Esses devem

garantir uma rede eficiente de referência e contra-referência, articulada com as ações

das vigilâncias epidemiológica e sanitária. No entanto, a participação parca dos

trabalhadores, cujos sindicatos limitam-se, na sua relação com o SUS, à geração de

demandas pontuais, tem contribuído para limitar a ampliação de uma integração

construtiva na qual trabalhadores e técnicos da saúde busquem compreender a

complexidade da situação da saúde do trabalhador em conjunturas e espaços específicos

e, a partir daí, traçar estratégias comuns para superar as dificuldades (BAHIA, 2002;

BRASIL, 2001).

A identificação de itinerários terapêuticos pode apontar para a necessidade

de organizar uma rede de cuidados integrais para trabalhadores com LER/Dort. Pois

provocará uma reflexão maior por parte dos profissionais do campo da saúde do

trabalhador em conhecer o amplo leque de opções terapêuticas que têm sido propostas

para o cuidado desses lesionados, bem como trará subsídios para a organização de

serviços com equipes multidisciplinares interessados em integrar as diversas abordagens

terapêuticas e de reabilitação, em diferentes níveis de atenção à saúde, promovendo não

só o a melhoria na qualidade do cuidado desses trabalhadores adoecidos como também

criando espaços de práticas de saúde que integrem a assistência, a vigilância e a

promoção à saúde, com a participação dos diversos atores sociais envolvidos

(MAGALHÃES, 1998).

3 - Objetivos:

3.1 - Objetivo geral:

Descrever os itinerários terapêuticos percorridos por pacientes portadores

de LER/Dort residentes na cidade de Salvador, Bahia, que tenham sido diagnosticados

há mais de um ano.

3.2 - Objetivos específicos:

3.2.1 - Identificar as modalidades de tratamento utilizadas pelos

trabalhadores com LER/Dort e os significados atribuídos para escolhas e adesões a essas

opções terapêuticas.

3.2.2 - Compreender o papel das redes de apoio (família, amigos, colegas de

trabalho, irmãos de credo religioso) na busca de tratamento por parte dos portadores de

LER/Dort.

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3.2.3 - Identificar os principais nós de convergência de diferentes itinerários

terapêuticos na rede de tratamento dos indivíduos com LER/Dort.

3.2.4 - Descrever como os portadores de LER/Dort transitam nessa rede e

compreender como se dão os pontos de virada nessas trajetórias.

4 - Pressupostos:

O itinerário terapêutico nos casos diagnosticados de LER/Dort delineiam as

marcas socioeconômicas e políticas através da busca da legitimidade da incapacidade.

5 - Revisão de literatura

O termo itinerário terapêutico tem sido empregado para estudar questões de

saúde diversas, que vão desde situações mais amplas que envolvem o uso de serviços de

cuidado à saúde por comunidades (IZUGBARA, 2004; MATOS, 2000; COOK, 1999;

SANTANA, 1996; LANGDON, 1994; BUCHILLET, 1991b; JANZEN, 1978) até

situações mais específicas de grupos de doentes que guardam um mesmo diagnóstico

clínico ou enfrentam uma determinada situação de saúde (SILVA et al, 2004;

MATTOSINHO, 2004; REINALDO, 2003; LY, 2001; FRAIZ, 2001; NETO, 1998). A

escolha metodológica por estratégias não estruturadas tem sido preponderante entre os

estudos citados. Todavia, estudo quantitativo de caráter descritivo, como o de Santana

(1996), também tem sido utilizado e ainda as estratégias híbridas (COOK, 1999; LY,

2001) que alocam, no mesmo estudo, a metodologia quantitativa e qualitativa.

Compreensões melhores sobre itinerários terapêuticos de enfermidades

surgem com o clássico estudo de Janzen (1978), que, dentre outras coisas, descreve a

estrutura histórica do pluralismo médico e o caráter social e cultural envolto nos

sistemas médicos. Para tanto, utilizou uma abordagem etnográfica, a fim de revelar

como pacientes, grupo administrador de terapias4 e médicos de uma região do Baixo

Zaire (atual Congo) diagnosticam doenças, selecionam terapias e avaliam tratamentos.

O autor mostra, em seu trabalho, a necessidade de se adotarem conceitos e teorias

subsidiárias para o entendimento dos percursos de cura, tais como a noção de sistemas

médicos, pluralismo médico e redes de apoio, construção etiológica das doenças,

4 Tradução livre feita para da expressão: “therapy managing group” – Esse grupo é formado por parentes e/ou tutores que assiste os doentes e é descrito como tecido social que mantém a normalidade para um doente (Janzen, 1978, p. 4-11).

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categorização da doença em doença natural ou de Deus e doença do homem e

legitimação de práticas de cura.

Aquele estudo realizado por Janzen orientou outros trabalhos como o de

Izugabara et al (2004), que investiga a busca de espaços de cura por mulheres Ibibio

fora dos seus próprios limites étnicos. Trata-se de um estudo de busca por cuidados de

saúde na perspectiva transétnica realizado no Estado de Akwa Ibom, na Nigéria, e

aborda o papel crítico da cultura na construção de espaços de tratamento, que sejam

responsivos à natureza complexa do processo saúde-doença e das relações que se

estabelecem entre paciente e terapeuta. Nesse trabalho, os autores elegem a entrevista

como principal técnica e não deixam claro se fizeram também o uso da observação

como fonte adicional de dados, o que parece mais pertinente para esse tipo de estudo,

uma vez que pode existir uma distância grande entre a informação dita pelos

entrevistados e o que eles de fato fazem. Nessa perspectiva, Janzen (1978) propõe que

os casos sejam acompanhados a fim de descobrir padrões relevantes de consultas

terapêuticas e a variedade de especialistas consultados.

Seguindo ainda na linha das abordagens étnicas, Langdon (1994) examinou a

relação saúde-cultura entre os índios Siona da Colômbia, partindo do princípio de que

os processos que fazem parte dessa relação são os mesmos que operam na sociedade

urbana moderna, apesar de existirem diferenças tanto nas teorias etiológicas quanto nas

tecnologias e procedimentos terapêuticos. Nesse ensaio, a autora deixa claro que vai

explorar a realidade simbólica do processo saúde-doença e o uso das diversas

alternativas diagnósticas e terapêuticas disponíveis, em um contexto multiétnico.

Utilizou-se de um estudo de caso para conhecer melhor o seu objeto e buscou, nos

referenciais teóricos da lógica da etiologia nativa, o fio condutor para apreender a

conjuntura sociocultural que permeia a busca por cura. Seguimos esse mesmo marco de

referência que define os níveis de causalidade, quais sejam, instrumental, eficaz e

última, e as preocupações que guiam o processo terapêutico: o registro de efeito e o

registro de causa, para compreender melhor a busca por cura em trabalhadores com

LER/Dort.

Os estudos de itinerários terapêuticos não têm se limitado apenas a

abordagens étnicas. Pesquisas na área de busca por cuidados de saúde em populações de

trabalhadores também têm utilizado esse conceito. O estudo de Santana (1996),

diferente dos estudos clássicos sobre itinerário terapêutico que utilizam metodologias

qualitativas para compreender os significados e intencionalidades da escolha e avaliação

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de tratamento por parte dos indivíduos, utilizou-se de metodologia quantitativa para

abordar as escolhas de tratamento por trabalhadores de duas comunidades rurais. A

autora justifica que, para examinar o itinerário terapêutico, é necessário apresentar em

primeiro lugar quais são os contextos específicos, os campos de possibilidades de

escolha através dos quais os indivíduos podem buscar auxílio terapêutico. Por um lado,

essa opção metodológica de descrever a realidade é pertinente, uma vez que a busca de

cura não se constrói num processo meramente subjetivo, mas numa experiência que

ocorre de acordo com os meios disponíveis em uma dada realidade. Por outro lado,

distancia-se da análise mais intersubjetiva, que ilumina o entendimento sobre os

processos de escolha e avaliação dessas agências de cura por parte do trabalhador

doente.

O estudo de Matos (2000) apóia-se justamente na intersubjetividade para

compreender as noções de saúde, de doença e de cura; bem como as condições objetivas

nas quais os discursos “popular” e “oficial” são produzidos. Buscou também entender a

influência desses discursos na formação do itinerário terapêutico tendencial5. Esse

estudo aponta para a necessidade de se integrarem os aspectos biológico, social e

cultural na formação dos itinerários e na ressignificação da doença e do processo de

cura. A noção de itinerário empregada remete mais a um mercado de cura e suas

relações mediadas por condicionantes que se expressam social e culturalmente. Essa

compreensão não valoriza sobremodo os aspectos cognitivos e interativos subjacentes

aos trabalhos etnográficos anteriormente apresentados.

O itinerário terapêutico também tem sido apropriado para estudar doenças

crônicas. Ly et al. (2001) estudaram os percursos de usuários, portadores de câncer de

mama, de um serviço de oncologia médica. Utilizou inicialmente uma descrição

quantitativa das ofertas e escolhas terapêuticas e posteriormente centrou-se no estudo

das representações da doença. Seus achados apontaram para a influência das

representações dos doentes e da sua rede de apoio na busca e escolha dos espaços de

cuidados de saúde, bem como revelou as dificuldades na relação entre os pacientes e

profissionais de saúde. Esse estudo reforça o valor das operações cognitivas quando

ressalta a existência de uma dinâmica de interações sistêmicas entre sistemas de signos,

5 A noção de itinerário terapêutico tendencial refere-se à noção sugerida por Loyola (1984), como o traçado da cura através da identificação de práticas curativas oficiais e não-oficiais, que compõem o “mercado de cura”.

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significados e de ações e retroações, que envolvem os itinerários terapêuticos

individuais e coletivos.

Reinaldo (2003) adotou a história de vida para elucidar os caminhos de cura

seguidos por pacientes com doença mental. A autora também incorpora em seu estudo

os conceitos de sistemas médicos e de modelos explicativos. Nesse estudo, emerge o

isolamento, o status de incapaz e as redes de apoio como importantes categorias

analíticas também presentes em outras abordagens.

Estudos nessa mesma linha, como os de Mattosinho (2004), que estuda o

itinerário terapêutico de adolescentes diabéticos, e Silva et al (2004), que se debruça

sobre o percurso na busca por cura realizado por portadores de doenças respiratórias

crônicas, apontam para a adoção do conceito de sistemas de cuidado à saúde de

Kleinman, já referido acima, como importante referencial teórico norteador do

entendimento dos percursos escolhidos por pacientes e familiares e reforçam a idéia de

que a doença é socialmente construída. Esses estudos apoiaram-se na análise

interpretativista e utilizaram as técnicas da entrevista, observação e fonte documental

para obtenção de dados; ferramentas que parecem plausíveis para estudar os objetos em

questão.

No entanto, até o momento, não foram encontrados trabalhos que apontem

para uma reflexão sobre o itinerário terapêutico em doentes com diagnóstico de

LER/Dort na linha mais interpretativista, o que denota a importância desse estudo para a

construção do conhecimento nesse domínio do saber científico.

6 - Quadro teórico

6.1 - Sistemas médicos

Na maioria das sociedades, as pessoas que sofrem de algum desconforto,

quer de ordem física, quer de emocional, contam com diversas formas de ajuda. Quanto

maior e mais complexa é a sociedade, maior é a pluralidade dos espaços de cura. No

entanto, os sistemas de assistência à saúde não podem ser estudados isoladamente de

outros aspectos sociais, especialmente de sua organização, social, religiosa, política e

econômica.

Kleinman (1980a) identifica nas diversas sociedades a existência de três

sistemas ou setores sobrepostos ou interligados da assistência à saúde: o setor popular, o

folk e o profissional. Cada um deles tem suas formas próprias de explicar e de tratar os

problemas de saúde e disponibilizam uma gama de recursos diagnósticos e terapêuticos

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segundo seu próprio código, normas e das relações terapêuticas que estabelecem no seu

interior. Nos sistemas popular e folk, terapeuta e usuário geralmente compartilham de

uma mesma visão de mundo, e isso favorece a eficácia terapêutica. Já no sistema

profissional, a eficácia é garantida pela cientificidade que dá legitimidade a esse setor.

As relações de poder são mais evidentes nos sistemas folk e profissional. No primeiro,

pela posição de status que os terapeutas populares especializados ocupam no tecido

social e, no segundo, pelo amplo processo de medicalização que as sociedades vêm

experimentando, mesmo aquelas onde as medicinas ditas paralelas têm um caráter

oficial. Porém, esses não são os únicos aspectos a serem observados quando tratamos de

pluralidade no setor saúde (KLEINMAN, 1980a; LAPLANTINE, 1989; HELMAN,

2003).

Kleinman (1980a) avança essa discussão mostrando que a proposta desses

modelos não pretende criar realidades estanques, duais e preconcebidas, uma vez que o

confronto entre os modelos pode ser mais rico que a simples troca de universos

cognitivos distintos, pois envolve: negociações, mudança de pensamento e ação de

outros atores sociais. Nesse panorama, o que ocorre freqüentemente do lado do paciente

é uma combinação de crenças e práticas médicas distintas, seguindo a tônica de um

mundo cada vez mais interligado, com uma multiplicidade e diversidade de modelos,

discursos e práticas nele presentes.

Nessa perspectiva, Luz (2003) visualiza um mercado social da saúde na pós-

modernidade, onde coabitam o fragmentarismo, a bricolagem, o hibridismo e o

sincretismo, e traduz essa diversidade pela ótica da noção de significado atribuído ao

adoecer. Concluindo que considera importante o papel de ressignificação da saúde, do

adoecimento e da cura. Essa restauração dos significados requer o entendimento do

processo histórico que envolve os projetos de cura dos doentes numa abrangência de

espectro maior que as centradas nas condições psicobiológicas. O que nos remete ao

conceito de itinerário terapêutico.

6.2 - Itinerário terapêutico

Inicialmente, as pesquisas no campo do itinerário terapêutico tinham uma

forte marca racionalista e utilitarista pautada na idéia de que os indivíduos orientam

racionalmente a conduta para a satisfação das suas necessidades, denotando, assim, uma

teoria baseada em uma concepção voluntarista e individualista, entendendo-se que as

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escolhas eram feitas em termos de custo/benefício. Tais teorias são conhecidas como

illness behaviour. Parsons6 foi seu principal crítico, pois, para ele, a ação humana é

inseparável de atos de interpretação; logo, para entendê-la, é necessário reconhecer a

importância dos valores e normas que orientam a conduta dos indivíduos. Dessa forma,

ele denuncia ou explicita o caráter simplista do modelo utilitarista racionalista, porém

este modelo ainda permaneceu presente sob novas roupagens teóricas (ALVES, 1999).

Uma segunda linha de estudos sobre comportamento do enfermo de grande

importância tratou de analisar a influência dos fatores culturais e/ou elementos

cognitivos que determinam a pouca ou elevada utilização dos serviços de saúde,

especialmente profissional, e os aspectos cognitivos dos pacientes referentes ao

processo de tratamento. Para isso, investigou tais facetas em minorias étnicas, estruturas

familiares, diferentes grupos socioeconômicos e quanto a gênero e idade. Nessa linha,

percebe-se uma tentativa de aliar a interpretação coletivista ao modelo utilitarista

racionalista (ALVES, 1999).

Os estudos sobre illness behaviour ganharam maior visibilidade ao

discorrerem os fatores extrabiológicos da doença. No entanto, sofreram críticas que

dizem respeito ao caráter teórico-metodológico, como, por exemplo, o fato de tratarem

as ações dos indivíduos apenas do ponto de vista da demanda do sistema de serviços de

saúde. Para além disso, boa parte das análises partia de uma crença não questionada no

modelo biomédico, conseqüentemente, ao explicar as ações dos indivíduos que

atribuíam excessiva ênfase à racionalidade desse modelo (ALVES, 1999).

Importantes reformulações teórico-metodológicas surgiram a partir das

críticas aos estudos tradicionais, illness behviour, e ganharam força com os estudos

etnográficos da década de 70, dos quais se destacam os trabalhos de Janzen na região do

Congo. Esses estudos passaram a salientar que: sociedades e grupos sociais não só

elaboram diferentes concepções médicas sobre causas, sintomas, diagnóstico e

tratamento de doença, como estabelecem convenções sobre a maneira como os

indivíduos devem comportar-se quando estão doentes, lançando uma nova luz sobre

definições e significados que indivíduos e grupos sociais atribuem às suas aflições

(ALVES, 1999; JANZEN, 1982).

6 PARSONS, T. Some theoretical considerations bearing on the field of medical sociology. In: PARSONS, T. Social Structure and Personality. PARSONS, T. The Social System (Fonte: ALVES, 1999, p. 137).

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Nessa perspectiva, Sindzingre & Zempléni apud Buchillet (1991b)

incorpora outros elementos que ajudam na compreensão do processo envolto nos

itinerários terapêuticos. Nesse sentido, propõe a existência de níveis de causalidade e

registros7 operatórios de efeito e causa. Três modelos de causalidade podem coexistir

em uma mesma doença: “a causa instrumental”, que se refere ao meio ou mecanismo de

desencadeamento da enfermidade; “a causa eficaz”, que remete à identificação da força

eficaz capaz de produzir a doença; e “a causa última”, que tenta trazer à tona eventos ou

conjunturas, ou seja, uma dimensão mais cosmológica para o infortúnio de saúde. Os

três níveis estão ligados e presentes, mesmo se o paciente ou curador não os leva em

consideração. O registro de efeito opera no nível do alívio dos sintomas, baseia-se em

manifestações patológicas e elementos que presidem a ocorrência da doença, e seu

diagnóstico inicial é feito na esfera pessoal, familiar ou da comunidade. O registro de

causa atua no nível cosmológico ou social e pode estar divorciado dos sinais e sintomas,

busca a causa última como modelo diagnóstico a partir dos meios físicos e sociais, com

isso tenta ressignificar o processo de adoecimento (BUCHILLET, 1991a).

A análise feita a partir do exposto acima é que os itinerários terapêuticos

passaram a sofrer influência dos aspectos cognitivos e interativos. Ao se estudar os

processos de escolha de tratamento, é preciso considerar que eles não são meramente

fatos que podem ser apreendidos com base em conceitos genéricos, mas ações humanas

significativas, dependentes das coordenadas estabelecidas pelo mundo intersubjetivo do

senso comum (ALVES, 1999).

Alves (1999), tratando dos aspectos teórico-metodológicos do itinerário

terapêutico, afirma que é importante aprofundar-se no nível dos procedimentos usados

pelos atores sociais na interpretação de suas experiências e delineamento de suas ações,

sem perder o domínio dos macroprocessos socioculturais. A escolha e a avaliação do

tratamento realizado por um indivíduo ou grupo social não devem se ater a um único

conjunto de estruturas cognitivas. E essas não podem ser identificadas como fonte

última de significação das afirmações proferidas pelo informante. O projeto individual

deve estar inscrito num campo de possibilidades históricas e culturais (ALVES, 1999;

VELHO, 1999).

7 A palavra “registro”, emprestada da sociolingüística, refere-se ao nível de causalidade que está sendo comunicado em um dado contexto. É o contexto, incluindo os atores e suas intenções, que determina qual registro está operando (LANGDON, 1994, p. 130).

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Um outro cuidado importante na interpretação é apresentar o sujeito desse

processo como alguém que compartilha com outros um estoque de crenças e receitas

práticas para lidar com o mundo ao longo da construção de um projeto biográfico

singular. No elenco de escolhas e avaliações, o significado das ações refere-se a uma

consciência de possibilidades que estão ao alcance e são igualmente aceitáveis ao

indivíduo. Com base nesses pressupostos, itinerários terapêuticos podem ser entendidos

como ações humanas que se constituem pela junção de atos distintos que compõem uma

unidade articulada (ALVES, 1999).

Velho (1999) sublinha que um processo de individualização, aqui tomado

como itinerário pessoal, não se dá fora de normas e padrões por mais que a liberdade

individual possa ser valorizada. Há uma relação dialética entre projetos individuais e os

círculos sociais em que o agente se inclui ou participa. Nessa perspectiva, reconhece-se

não existir um projeto individual “puro”, sem referência ao outro ou ao social. Os

projetos são elaborados e construídos em função de experiências socioculturais, de um

código, de vivências e interações interpretadas.

Aponta ainda que a trajetória do sujeito é essencialmente dinâmica, na

medida em que pode ser substituída por outras ou mesmo incrementada. Essa

plasticidade explica-se pela ação do tempo e da vida em sociedade, onde mudanças

sociohistóricas e as ações de outros atores podem produzir impressões nos itinerários

individuais. Para entender melhor esse dinamismo inscrito nas diversas trajetórias

individuais, propõem-se três estilos de relação do sujeito com o sistema simbólico aqui

tomado como sistema terapêutico: o isolamento, a relativização e a desorientação, com

suas possíveis combinações adotadas pelos sujeitos (VELHO 1999).

Figueira (1978), ao explicar o “isolamento”, afirma que esse estilo se

estabelece toda vez que o sujeito é totalmente orientado pelo sistema: a visão de mundo,

as experiências sociais de sentido e lógica não deixam brechas por onde possa insinuar-

se o desconhecido. A terapêutica quando requerida pode ser fornecida pelo próprio

sistema ou por outro que lhe seja ideologicamente afim, contando com um forte

consenso grupal, o que torna sua eficácia mais provável e garante a continuidade da

filiação.

Na “relativização”, o sujeito conhece alternativas e outras possibilidades,

ainda não experimentadas, que conferem a esse estilo uma característica fundamental

que é a flexibilidade, ou seja, a possibilidade de relativizar a própria visão de mundo.

Com isso, o consenso é fragilizado e enfraquece o vínculo do sujeito com um sistema e,

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portanto, a sua crença na terapêutica posta a seu alcance. Disso pode resultar o ingresso

em outro sistema mais satisfatório, ou iniciar uma série de mudanças que pode se tornar

interminável, configurando o tipo de paciente que já experimentou todas as terapêuticas

(BERGER, 1973).

No estilo de “desorientação”, aqui entendido como fragmentação, por vários

motivos o indivíduo se encontra impotente diante da pluralidade e oscila entre visões de

mundo, conjunto de normas e grupos de referência contraditórios, o que vem

acompanhado de um estraçalhamento de fidelidades e alianças. A eficácia terapêutica

raramente é alcançada e, para obtê-la, lança mão de recursos de escolha, dentre esses a

mudança radical para um outro sistema terapêutico sem qualquer relação com o que

antecedeu. Com esses momentos de virada, busca uma revigoração do consenso, a fim

de que a cura possa voltar a operar e com ela a reorientação (FIGUEIRA, 1978).

A pluralidade de sistemas de tratamento em uma sociedade urbana

complexa8, onde os indivíduos se orientam segundo os três estilos de relação com o

sistema terapêutico, permeado por uma teia de significados no plano social e cultural,

requer uma reflexão para além do mapeamento de trajetórias de busca de cura.

6.3 - Ampliação do conceito de doença

Além dos setores de cuidado com a saúde e dos modelos explicativos, uma

noção mais ampliada de doença é requerida. Kleinman, portanto, diferencia os termos

disease, illness, sickness, quebrando assim o conceito de patologia, que é a síntese do

objeto privilegiado de intervenção da biomedicina moderna. Disease designa uma

anormalidade no funcionamento ou na estrutura de órgãos ou sistemas corporais. É a

doença tal como concebida pelo paradigma científico da medicina moderna e reduzida a

um distúrbio dos processos biológicos ou psicológicos. O conceito de patologia enfatiza

a patologia em seus sinais biológicos observáveis e concretos, em sua existência

independente da consciência e do reconhecimento da parte do sujeito e da sociedade. Já

a enfermidade (illness), por sua vez, representa a doença vivida, percebida e significada

pelo paciente enquanto experiência subjetiva de um estado de descontinuidade no

desempenho de papéis sociais e na sua forma de “estar no mundo”. Assim, o conceito

8 Sociedades surgidas após a Revolução Industrial, cuja complexidade está fundamentalmente ligada a uma acentuada divisão social do trabalho, a um espantoso aumento da produção e do consumo, à articulação de um mercado mundial e a um rápido e violento processo de crescimento urbano (Hobsbawn apud Velho, 1993, p. 17).

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de enfermidade refere-se à experiência psicossocial e ao significado da moléstia para o

indivíduo que, por sua vez, é construído em um processo interativo onde participam a

família e a rede social imediata do doente. A doença (sickness) reflete o entendimento

de um distúrbio pelo seu senso genérico dado pela população, falam das forças

macrossociais (econômica, política, institucionais, etc.), que dão o caráter de

determinação social da doença (KLEINMAN, 1980b, YOUNG, 1982).

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7 - Modelo teórico

ITINERÁRIO TERAPÊUTICO

DISEASE ILLNESS POPULAR FOLK PROFISS

PLURALIDADES PODERES

LEGITIMAÇÃO

AGÊNCIAS OFICIAIS DE TRATAMENTO

AGÊNCIAS ALTERNATIVAS DE TRATAMENTO

LER DORT

MODELOS DE ATENÇÃO E VIGILÂNCIA DA SAÚDE

SICKNESS

REDES DE CUIDADOS INTEGRAIS

ITINERÁRIO TERAPÊUTICO REALIZADO POR TRABALHADORES COM LER/DORT

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8 - Estratégia metodológica

A descrição de itinerários terapêuticos realizados por portadores de LER/Dort

remete invariavelmente a um mergulho nos conteúdos da intersubjetividades desses

indivíduos. A pesquisa qualitativa atenderá a tais exigências, pois permite uma

aproximação maior do objeto a ser investigado, bem como possibilita um nível de

aprofundamento capaz de revelar significados e intencionalidades, que darão um

contorno especial à análise do objeto.

O estudo contará com informantes-chave que serão selecionados a partir dos

seguintes critérios de inclusão: diagnóstico de LER/Dort há mais de um ano, dado por

um médico do Cesat/BA e/ou da Previdência Social, trabalhadores de ambos os sexos,

pertencentes a classes sociais e inserções religiosas diferentes, com níveis de gravidade

da lesão e causa da doença diferentes, com e sem benefício por invalidez e sob regimes

diferenciados de trabalho.

Para a construção do corpus da pesquisa, serão utilizados entrevista

narrativa e documentos pertinentes. A pesquisa contará com um estudo piloto, que

servirá para ambientar o pesquisador com o instrumental de investigação, em seguida

realizar-se-á a etapa de obtenção dos dados. Essa coleta se dará de julho a agosto de

2005 e será realizada no local onde o indivíduo recebe tratamento, na residência do

entrevistado, no espaço de prática religiosa, no local de trabalho e lazer, etc., conforme

negociação prévia e consentimento do informante-chave. Os instrumentos adotados são

os roteiros de entrevista e o diário de campo. As entrevistas serão gravadas em fita

cassete de 60 minutos.

Quanto à logística a ser utilizada, Minayo (1993) afirma que a entrevista é

um instrumento privilegiado de coleta de informações, pois a fala é reveladora de

condições estruturais, de sistemas de valores, normas e símbolos. Ao mesmo tempo, tem

a magia de transmitir, através de um porta-voz, as representações de grupos

determinados, em condições históricas, socioeconômicas e culturais específicas. No

entanto, não podemos negar a situação de desigualdade em que a entrevista se processa,

uma vez que os objetivos reais da pesquisa são estranhos aos entrevistados e esses

raramente tomam a iniciativa no processo. Enfim, é importante para o pesquisador ter

em mente as dificuldades de penetração no mundo dos outros e colocar em discussão a

pretensa objetividade na situação de pesquisa (OLIVEIRA, 1996).

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Devido à variedade de entendimentos quanto à análise narrativa na

investigação dos percursos por busca de cura, será adotado o entendimento a partir de

um olhar diacrônico da história de doença de sujeitos numa perspectiva mais

hermenêutica, a fim de traçar os seus itinerários. O termo discurso é empregado para se

referir a todas as formas de fala e textos, seja quando ocorre naturalmente nas

conversações, como quando é apresentado como material de entrevista. Os fundamentos

básicos estão no fato de que o uso construtivo da linguagem é um aspecto da vida

social, ou seja, o discurso é visto como prática social e não como meio para chegar a

alguma realidade. Outro aspecto é que, como atores sociais, nós estamos continuamente

nos orientando pelo contexto interpretativo em que nos encontramos e construímos

nosso discurso para nos ajustarmos a esse contexto. Dessa forma, a realidade também

deve ser incluída simultaneamente nessa análise. Por fim, esse recurso trata a fala e os

textos como organizados retoricamente. Portanto, implicado em estabelecer uma versão

do mundo diante de versões competitivas (BAUER, 2002).

As categorias analíticas deste estudo são: isolamento, relativização,

fragmentação, causa eficaz, causa última, causa instrumental, registro de causa, registro

de efeito. As categorias a priori são: sinais e sintomas gerados pelos pacientes e pela

sua rede de apoio, diagnóstico do terapeuta, diagnósticos da rede de apoio, técnicas

terapêuticas consideradas apropriadas e não apropriadas e papéis sociais dos atores

envolvidos. As categorias êmicas também comporão o conjunto de conceitos e

emergirão do trabalho empírico realizado junto às pessoas-chave. Esses conceitos

fundamentais do entendimento serão agrupados em matrizes de análise para melhor

interpretar os dados obtidos.

A investigação possui implicações éticas, pois serão utilizadas informações

obtidas de dados primários coletados de entrevistas com seres humanos. No caso

especial do presente projeto, algumas questões envolvem aspectos relativos à

legitimação da doença para efeito de aposentadoria, afastamento do trabalho e

benefícios outros. Outras dizem respeito às opções religiosas e terapêuticas das pessoas

entrevistadas. Essas informações podem gerar situações de discriminação, retaliações

econômicas e sociais, com eventuais prejuízos para a vida particular e patrimonial dos

sujeitos da pesquisa. Portanto, o anonimato e a confidencialidade devem ser garantidos,

para tanto serão observados os aspectos éticos da pesquisa com base na Lei. 196/96. E o

projeto deverá ser submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde

Coletiva ISC/Ufba.

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100

CRONOGRAMA FÍSICO (EM TRIMESTRES)

ATIVIDADE

TRIMESTRE

2005

1

2005

2

2005

3

2005

4

2006

1

Contatos para o

trabalho de

campo

X

X

Exame de

Qualificação

X

Coleta de dados

X

X

Transcrição

das entrevistas

X

Leitura das

entrevistas

X

X

Transcrição

caderno de

campo

X

Classificação

do material

X

X

Reclassificação

material

X

Elaboração do

1º artigo

X

X

Elaboração do

2º artigo

X

Elaboração do

relatório final

da pesquisa

X

Preparação da

apresentação

X

Defesa da

dissertação

X

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101

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ANEXO I – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

I - DADOS DE IDENTIFICAÇÃO DO SUJEITO DA PESQUISA OU RESPONSÁVEL LEGAL

1. NOME DO INFORMANTE:................................................................. ..................................

DOCUMENTO DE IDENTIDADE Nº:........................................ SEXO : .M � F �

DATA NASCIMENTO:......../......../......

ENDEREÇO ................................................. Nº........................... APTO:..................

BAIRRO:................................................. CIDADE ............................ESTADO........

CEP:......................................... TELEFONE: DDD (............) ...................................

2.RESPONSÁVEL LEGAL ............................................................................................

NATUREZA (grau de parentesco, tutor, curador etc.) ................................................

DOCUMENTO DE IDENTIDADE :....................................SEXO: M � F �

DATA NASCIMENTO.: ....../......./......

ENDEREÇO: ................................................ Nº ................... APTO: .............................

BAIRRO: ................................................................................ CIDADE: ..................................

CEP: .............................................. TELEFONE: DDD (............)......................................

_________________________________________________________________________

II - DADOS SOBRE A PESQUISA CIENTÍFICA

1. TÍTULO DO PROTOCOLO DE PESQUISA: Significados e (Re)significados: O Itinerário Terapêutico de Trabalhadores com Diagnóstico de LER/Dort.

2. PESQUISADOR: ROBSON DA FONSECA NEVES

3. INSTITUIÇÃO RESPONSÁVEL: Instituto de Saúde Coletiva (ISC/Ufba)

TELEFONE E ENDEREÇO ELETRÔNICO DO RESPONSÁVEL PELA PESQUISA

Nome: ROBSON DA FONSECA NEVES

Contato telefônico: (071) 3351-0922 / (071) 9983-8602

Endereço eletrônico: [email protected]

DURAÇÃO DA PESQUISA: três meses

III - REGISTRO DAS EXPLICAÇÕES DO PESQUISADOR AO PACIENTE OU SEU REPRESENTANTE LEGAL SOBRE A PESQUISA:

1. O estudo tem os seguintes objetivos: descrever o Itinerário Terapêutico de Trabalhadores com Diagnóstico de LER/Dort há mais de um ano na cidade do Salvador-BA. Você contará a história completa desde quando sua doença teve início, deixando claro o que você fez em cada momento do curso dessa história. É importante lembrar tudo o que utilizou e quais foram as pessoas que te ajudaram a identificar e cuidar do que você tem .

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2. Esta história contada por você será gravada em fita cassete de 60 minutos e posteriormente transcrita, conservando na íntegra sua fala. O tempo de entrevista será o tempo necessário para esgotarmos a sua história e poderá ser desmembrado em vários momentos conforme sua disponibilidade.

3. Nessa história que você vai contar, certamente algumas passagens referem-se à aquisição e manutenção do benefício, aposentadoria, afastamento do trabalho, ou mesmo a opção religiosa e terapêutica etc. Revelar tais informações pode representar para você riscos com danos morais, sociais e econômicos. Porém, quero deixar claro que nem essa pesquisa nem o pesquisador estão vinculados a nenhum órgão governamental ou de empresa ou mesmo a nenhuma instância de tratamento físico ou entidade religiosa que possa colocá-lo em risco pelo que vai revelar.

4. Os benefícios que podemos obter com este estudo são: - maior conhecimento sobre o processo de adoecimento dos trabalhadores com LER; - Juntar elementos que possam organizar melhor a rede de cuidados integrais para trabalhadores com diagnóstico de LER.

_____________________________________________________________________________________

IV - ESCLARECIMENTOS DADOS PELO PESQUISADOR SOBRE GARANTIAS DO SUJEITO DA PESQUISA:

Aos pacientes que aceitarem participar da pesquisa será garantido:

1. Acesso, a qualquer tempo, às informações sobre procedimentos, riscos e benefícios relacionados à pesquisa, inclusive para dirimir eventuais dúvidas.

2. Liberdade de retirar seu consentimento a qualquer momento e de deixar de participar do estudo, sem que isto traga prejuízo à continuidade da assistência.

3. Salvaguarda da confidencialidade, sigilo e privacidade.

___________________________________________________________________________________________

V - OBSERVAÇÕES COMPLEMENTARES:

Todas as entrevistas serão inteiramente gratuitas e os seus resultados serão de conhecimento do paciente ao término da pesquisa.

EM CASO DE PROBLEMAS: O Senhor(a) deverá se comunicar com o “Comitê de Ética em Pesquisa” do Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Rua Augusto Viana, s/n, Campus Universitário do Canela, Salvador-Bahia, Tel/Fax: (71) 336-0034 ou 3263-7418.

__________________________________________________________________________________________

VI - CONSENTIMENTO PÓS-ESCLARECIDO

Declaro que, após convenientemente esclarecido pelo pesquisador e ter entendido o que me foi explicado, consinto em participar do presente Protocolo de Pesquisa.

Salvador, de de 200_

____________________________ _____________________________ assinatura do sujeito da pesquisa ou assinatura do pesquisador responsável legal (nome legível ou carimbo)

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ANEXO II – ROTEIRO DE ENTREVISTA

ROTEIRO DE ENTREVISTA

DADOS DE IDENTIFICAÇÃO DO INFORMANTE-CHAVE NOME: __________________________________________ IDADE: ______________

SEXO: ____________ ESTADO CIVIL: _____________________________________

FILHOS_______________________________________________________________

COM QUEM MORA: ____________________________________________________

TRABALHA: SIM ( ) QUAL O REGIME: __________________________________

NÃO( ) POR QUÊ: ___________________________________________

Qual a ocupação que você exercia quando foi diagnosticada a LER?________________

Quanto tempo você já tinha nessa ocupação? __________________________________

Você teve uma outra ocupação antes dessa? ______ Qual? _______________________

Documentos comprobatórios da situação e tempo de beneficio_____________________

______________________________________________________________________

______________________________________________________________________

TÓPICO CENTRAL

Conte detalhadamente como e quando você começou a trabalhar e como essa doença

entrou na sua vida, destaque as repercussões provocadas por ela.

Explorar:

1- Sinais e sintomas percebidos (doente, rede de relações);

2- Causa atribuída;

3- Modificações na dinâmica do trabalho;

4- Mudanças do estado psicológico e da maneira como passou a se enxergar;

5- O que mudou com o diagnóstico definitivo;

6- Metáforas em torno da doença;

7- Cuidados adotados (Identificar os Sist. Médicos);

8- Como assume o papel de estar doente;

9- Que relação estabelece com o mundo do trabalho;

10- O que pensa da cura;

11- O que mudou nas relações sociais (casa, lazer, prática religiosa etc.);

12- O que, de fato, é indesejado no fato de estar acometido por LER/Dort?

13- O que pensa sobre o tratamento médico e fisioterapêutico?

14- O que pensa sobre a reabilitação?

LER X SONHOS, DESEJOS, PROJEÇÕES

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110

ANEXO III - CARACTERIZAÇÃO DOS TRABALHADORES ENTREVISTADOS

Entrevistado Sexo Idade Estado civil Profissão

quando lesionado(a)

Situação previdenciária

J.N.V.A. (Mathildes)

Feminino 51 Casada Cabeleireira Auxílio-doença

M.A.L. (Margareth)

Feminino 37 Separada Digitadora Auxílio-acidente

G.M.S.A. (Martha)

Feminino 48 Casada Bancária Aposentada por invalidez

M.A.M.S. (Mara)

Feminino 48 Separada Secretária Aposentada por invalidez

J.D.C. (Maurício)

Masculino 45 Casado

Motorista Auxílio-doença

M.A.O.J. (Matheus)

Masculino 49

Casado Bancário Auxílio-doença

M.C.T. (Mathias)

Masculino 46 Casado Caldeireiro

Auxílio-doença

J.M.S. (Maria)

Feminino 35 Casada Operadora de corte e solda

Auxílio-doença