Silva, Franklin Leopoldo e - Descartes a Metafísica Da Modernidade

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Descartes a Metafísica Da Modernidade

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    Fronklin Leopoldo e Silva

    Descartes e

    o metafsico do modernidade

    111111111111 10203449

    5111 Moderna

  • Cl FRANKUN lfOI'OIDO E SilVA 2004 I' odoo 1993

    5111 Moderna COOIUlfNAO EOOOIMl DA 1' EDICO Alu

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    SUMARIO

    Introduo Dualismo, 1 O; Idealismo, 11; Subietivismo, 12; Representao, 13

    Parte I

    O pensamento de Descartes

    l Vida e obro, 16 . . . . . . . . . .

    Uma poca de conflitos, 16; A histria de um esprito, 17; Descartes e o novo cincia, 23; Cronolog1o, 25

    2 O mtodo, 26

    Crtico do tradio, 26; Do dvida evidncia, 29; Descartes e o ceticis mo, 38

    3 A construo do filosofio,42

    Critico do aristotelismo tomista: fsica e metafsico, 42 O alcance do subjetividade, 46; Idio e realidade, 52; A id1o de Deus e o questo do fundamento do saber, 57

    4 Essncia e existncia, 62

    O mundo como conceito e como realidade percebido, 62; A natureza humano: experincia e conhecimento. 66; Problemas do idealismo, 70

    5 O ideal de sabedoria, 75

    Conhecimento e moral. 75; Cincia e tcnica, 81, O racionalismo mtodo ou sistema?, 85

    6 Concluso: os duas faces do herana cartesiano, 88

    A consc1ncia e o mundo, 88; O mundo e a conscincia, 89

  • Parte 11 ...... ..... ... ...... ... .. ...... ... ..

    Antologia

    Sabedoria, 92 . . . . . . . .

    Teoria e prtica, 92; Mtodo e verdade, 92

    Crtico do cultura, 93

    Transmi.sso do saber, 93; A unidade do saber, 94; Em busca do ~unda-mento dos cincias, 95

    Mtodo e autonomia do razo, 96 . . . .

    As regras do mtodo, 97

    A dvida, 98

    Dvida metdica, 98; Dvida natural, 99; Dvida metafsiCO, 100

    O Eu pensante, 1 02

    A primeiro certeza, 1 02; Pensamento: essncia do Eu, 1 03; Prioridade do pensamento Ido conhecimento intelectual). 1 05

    Deus e verdade, 1 07 . . . . . . . . . . . .

    A questo do fundamento do saber, 1 07; Idias e tuzas, 108, Realidade objetiva e idia do infinito, 1 11 ; Da idio de Deus real idade de Deus, 1 1 2; Deus: fundamenlo de lodos os certezas e causa de lodos as coisas, ll 5; Deus e o Eu pensante, 116

    A causo do erro e como evit-lo, 7 17

    Essncia e existncia, 119 ... ... ..... ...

    A certeza do extenso geomtrico e dos demais essnc1os matemoltcos, 1 1 9; A essncia de Deus implica a sua existncia, 120, Deus como funda-mento do verdade e da cincia, l 21

    Conhecimento e mundo sensvel, 122 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Existncia dos coisas materiais: possibilidade e probobd1dode, 122, Insu-fiCinCia do conhecimento sensvel, 125; Provo do existncia das ca1sas materiais, 126; A representao sensvel no totalmente objetivo, 127

    A unio substancial, 128

    Moral provisria, 7 29 . . . . . . . . . . . .

    Moral: o bom uso dos paixes, 132

    Bibliografia, 133 . . . . . . . . .

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    l ) ,

  • Introduo

    A importncia de Descartes como filsofo que inaugura o pensamento moderno nos coloca antes de mais nada a questo de saber o que nele existe de continujdade c de ruptura em relao filosofia anterior. Nenhuma dessa~ duas posies. tomada isoladamente, garante a adequada compreenso da fi losofia de Descartes. Isso porque a ruptura com a tradio no signi fica que o filsofo a ignora. mas sim que ele a critica. Da mesma forma, a continuidade em re lao tradio no quer dizer que o filsofo simplesmente repete os seus antecessores. mas sim que e le retoma os temas tradicionais para lhes dar um tratamento que julga mais pertinente.

    Temos de admir tambm que as modificaes que Descartes introduziu na filosofia tm um alcance bem mais amplo que o de simples correes nas solues que historicamente foram apresentadas para os problemas fil osficos. Descartes opera uma inverso radical das perspectivas metdicas, e o faz a partir de concepes metafsicas completamente diversas das que eram at ento vigentes. Contudo, isso se faz por meio de uma profunda reflexo acerca da compatibilidade entre as questes que se devem resolver c as alternativas at ento apresentadas.

    Podemos ter uma idia inicial desse enorme trabalho de reconstruo do saber examinando algumas das noes que so caractersticas do pensamento cartesiano e explorando o significado original que Descartes lhes atribui. Essas noes, das quais voltaremos a falar muitas vezes nos prximos captulos, so as seguintes: dualismo. idealismo, subjeti vismo e representao.

    DUALISMO Costumamos dizer que Descartes dualista. ou seja. admite a existncia de

    duas realidades completamente separadas: a alma e o corpo ou, na sua terminolo-gia. a substncia pensante e a substncia exTensa. Essa diviso radical dete rmina todo o processo de constituio do saber. pois estabelece o tratamento metdico das questes da fsica exclusivamente a partir da extenso, por meio da aplil:ao do mtodo matemtico. Nessa perspectiva entrecruzam-se, portanto. as questes da in-dependncia completa entre o pensamento e a extenso (com a definio metafsica de ambos) c a possibilidade da existncia do mecanicismo. isto . do tratamento da realidade fsica em termos de quantidade e por meio da matemtica.

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    Essa separao significa ainda algo mais do que a independncia recpro-ca entre corpo e esprito: significa a separao entre sujeito e objeto. Na medida em que o pensamento estabelecido na sua completa autonomia. o sujeito de conhecimento se constitui tambm fora da relao imediata de conhecimento. pois preciso que se afirme primeiramente o sujeito, pan1 que ento possam aparecer para e le objetos. o elenco daquilo que ele pode saber, a partir de s i mesmo, acerca daquilo que no e le mesmo. A independncia do suje ito, no plano metafsico, . pois, solidria do mtodo que se constituir para a filosofia e que consistir fundamentalmente em tomar o sujeito como ponto de partida do conhecimento.

    IDEALISMO O que quer dizer tomar o sujeito como ponto de partida do conhecimento'?

    Significa no apenas dizer que para haver conhecimento preciso um sujeito que conhea. coisa que ningum jamais duvidou, mas significa principalmente que o sujeito plo irradiador de certeza e que a partir do que se encontra no sujeito que se constitui o conhecimento verdadeiro, entendendo-se aqui o sujei-to como exclusivamente o pensamento. Dizemos ento que o conhecimento em Descartes se constitui a partir de idias e que por isso ele idealista. O termo idealismo no significa necessariamente que a realidade tal como dada aos sentidos perde definitivamente todo valor e toda consistncia, ficando o mundo dos sentidos relegado para sempre ao nvel de pura fantas ia. O idealismo pode s ignificar que se assume doravantc uma nova hie rarquia entre os sentidos e o inte lecto, no s do ponto de vista dos resultados finais do conhecimento (e aqui o conhecimento intf!!ectual sempre teve privilgio). mas tambm e prin-cipalmente da perspecti va do ponto de partida e dos princpios. No se admite mais, por exemplo. a sensao como ponto de partida e como princpio. J no temos, como na filosofia anterior. de um lado princpios lgicos e inte lectuais que seriam abstraes vazias e, de outro, a realidade qual se aplicam esses princpios e que tomada em si mesma tambm como um principio. visto que o conhecimento s comearia com as coisas ou as imagens das coisas.

    Sendo o intelecto, de agora em diante. o nico princpio de conhecimento. a realidade sensvel do mundo material ter de ser de alguma forma demons-trada no nfvel do intelecto, da idia, para que possa vir

  • A separao tradicional entre matria e forma repousava no pressuposto de que a materialidade, ainda que indeterminada, dada aos sendos e recebe do intelecto a forma que a determina. Quando as idias so concebidas como ponto de partida do conhecimento, evidente que Descartes no as pensa apenas enquahto formas, mas enquanto se.res completos. cujo contedo, por ser ideal, no lhes diminuj em nada a realidade: pelo contrrio, torna-a mais evidente e mais segura, j que no sujeita s flutuaes da experincia sens-vel. A realidade est sempre primeiramente no esprito, isto , no sujeito, e se apresenta na forma de idias.

    SUBJETIVISMO O sujeto tem uma funo pelo menos ordenadora do conhecimento. ele

    a sede da certeza de todo os objetos. Subjetivismo no signifi ca, obviamente. que a mente de cada um detenha os critrios que orientaro o conhecimento. Subjetivismo quer dizer apenas primado da subjetividade, precedncia do sujei-lo no processo de conhecimento, e essa , seguramente. a grande modi ficao introduzida por Descartes na tllosofia. Significa ela que o pensamento, metodi-camente conduzido, encontra primeiramente em si os critrios que permitiro estabelecer algo como verdadeiro.

    o homem no se pe apenas diante das coisas para apropriar-se abstrati-vamente dos contedos de conhecimento veiculados na relao sujeitO/objeto, mas assume a tarefa defwzdar na subjetividade todo e qualquer conhecimento. S poder tornar-se efetivamente conhecido aquilo que puder ter a sua evidn cia aJicerada na subjetividade metodicamente conduzida. a qual se pe como realidade primeira ejwulante no plano do conhecimento. Sendo assim, os con-tedos mentais no so considerados apenas reOexos das coisas . Se e les forem contedos autnticos, isto , se passarem pela prova dos critrios metdicos, sua realidade estar assegurada, independentemente de serem confrontados com algum contedo da experincia sensvel.

    Isso supe que os critrios de reconhecimento subjetivo da verdade se-jam esclarecidos anteriormente. Por isso para Descartes o conhecimento no imediatamente uma relao a ser estabelecida entre o sujeito e as coisas que o rodeiam, mas antes um problema a ser solucionado, para que ento essa relao possa ser bem estabelecida. Os critrios de reconhecimento, que so as garantias metdicas da verdade, so pensados na esfera da subjetividade. primeiramente de forma autnoma e independente. No por outra razo que a primeira verdade, paradigma de todas as outras, ser aquela relativa prpria existncia do sujeito enquanto pensamento. O conhecimento no pode

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    ser imediatamente uma relao entre o sujeito c o mundo externo porque este deixou de funcionar como princpio de conhecimento. A primeira realidade que dada a um sujeito pensante no pode ser outra seno o prprio pensamento. Essa prioridade que determina que Descartes estabelea um fundamento nicn para o conhecimento. Se puder ser estabelecida alguma forma de concordncia entre as idias do sujeito e o mundo exterior, esse acordo se constituir a partir da hegemonia do sujeito.

    REPRESENTAO hegemonia do sujeito corresponde o que se convencionou denominar

    em Descartes de primado da representao. Podemos dizer, em princpio. que represenrao todo e qualquer contedo presente na mente. Para uma teoria realista do conhecimento, como e ra por exemplo aquela que predominava na poca de Descartes. a representao apenas o reflexo de objetos particulares ou ento a transfigurao abstrata da ordenao do mundo material. Nessa perspectiva, tudo aquilo que o esprito representa j foi a lguma vez. objeto de percepo, pois nada poderia estar presente na mente sem que tivesse estado antes nos sentidos. Assim, a questo do conhecimento consistiria em expl icar o trajeto das coisas mente por intermdio da sensibilidade c a transformao do particular e divisvel em essncia universal e indivisvel, presente no intelecto. Os gneros intelectuais eram reconhecidos como abstraes que representavam o universo das coisas para alm do que era dado de maneira singular. PHra apre-ender o real efdivo. devia-se visar ao particular por meio de um gnero univer-sal. Exemplo: a substncia. enquanto tal, uma abstrao; real este ou aquele indivduo que reconheo como substncia. Portanto. para representar algo como substncia, seria preciso que houvesse um contedo sensvel determi nado por meio desse conceito. Isso quer dizer que para a filosofia anterior a Descnrtes. mais precisamente a filosofia aristotlico-tomista. qualquer representao que aspire realidade tem de ser primeiro uma representao sensvel, pois das coisas para o intelecto que segue a trajetria do conhecimento.

    Em Descartes o que ocorre o inverso: tudo que temos p1imciramente so representaes das quais se trata de atestar a realidade. Como no h um fundamento material reconhecido como vlido, uma vez que a experincia sensvel posta entre parnteses. terei de buscar na prpria representao os CTitrios que me mostraro a sua validade. Significa que parto das idias e procuro nelas os ndices que atestaro que existe na realidade algo que lhes corresponde. Isso quer dizer que Descartes no um idealista inteiramente fechado s coisas exteriores. Pe lo contrrio, as represen.taes me levam

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    I I

  • espontaneamente a crer que os seus contedos correspondem a realidades efeti vamentc existentes. S que. como os sentido!' j no ba!'>tam para garantir o outro plo dn correspondncia, terei de sair da idia contando ~penas com os recursos que e ln prpria me proporciona. Ser uma inspe!iO de idias. um percurso pelo interior das representaes. que poder me levar ti existncia daquilo que no mundo corresponde s representaes.

    Esse um trabalho exaustivo, razo pela qual o mundo exterior ser a ltima coisa tomada como objeto de demon~trao metafsica. preciso per-correr primeiro a esfera de todo o conhecimento naquilo que ele tem de interno mente, para depois tentar sair da representao para as coisas. Ainda assim, todo e qualquer resultado obtido aqui ser tributrio da anlise das idias. nunca de qualquer recurso sensao como critrio de prova. Por isso dizemos que a fi losofia cartesiana parte da representao enquanto puro contedo mental, e no tomada como reflexo de um mundo cuja realidade no se questionaria.

    Como o objetivo de Descartes reconstruir o saber a partir de bases mais slidas que aquelas que ele encontra na filosofia tradicional. e como esse saber deve em princpio abranger tudo. e le no poder abdicar do conhecimento das coisas. A filosofia passa a ser ento uma reconstruo do saber enquanto marcha pelo caminho dn representao em direo ao reencontro da realidade.

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    Parte I

    O pensamento de Descartes

  • l Vida e obra

    UMA POCA DE CONFLITOS A primeira metade do sculo XV II , poca em que viveu Descartes, foi

    marcada por conflitos polticos em toda a Europa. O mais importante foi sem dvida a Guerra dos Trinta Anos, que de 1618 a I 648 devastou a Alemanha e imps grandes perdas humanas c materiais Frana, Espanha, Holanda, Dina-marca e Sucia. Entre as causas dessa longa guerra est a diferena religiosa que ento opunha catlicos c protestantes. e da qual ambas as partes se serviam para consolidar interesses polticos. Entre esses estavam, por exemplo, os que opunham os prncipes alemes, que detinham o poder nas v~\rias regies desse pas que ajnda no se enconrrava completamente unificado, e o imperador, que, e mbora usufruindo de um poder central formalmente acima dos principados, encontrava grande dificuldade para impor de fato sua vontade. Assim, o pro-testantismo do imperador Fernando de Habsburgo e o catolicismo de vrios prncipes alemes esto na origem do confronto em que vrios outros pases acabaram se envolvendo.

    Essa oposio entre governo central e provncias no era exclusiva da Ale-manha. Tambm na Frana, pela mesma poca, o rei tentava consolidar seu poder perante a nobreza provincial, que opunha forte resistncia pretendida centraliza-o. Henrique IV e, principalmente, Lus Xlll, por meio de seu poderoso ministro Richelieu, consolidaro o poder absoluto a duras penas, num esforo de mais de cinqenta anos e tendo de enfrentar inclusive revoltas armadas.

    Para fazer frente aos gastos oca11ionados pela guerra e pela pretenso abso-lutista. o governo aumentava os impostos. que incidiam principalmente sobre as classes populares, ocasionando assim novos conflitos, aos quais se somavam a falta de al imentos e as epidemias que as condies de vida tomavam freqentes. Como se v. o sculo XVU no apenas a poca do Rei-Sol, Lus XIV, que ascen-deu ao poder somente em 1661 e governou sob condies bem diferentes das de seus antecessores, beneficiando-se do grande esforo de Richelieu e de Mazarino para fortalecer o poder real por meio da submisso da nobreza provincial e dos Parlamentos. A identificao entre o rei e o Estado que se observa no reinado de Lus XIV foi conseguida progressivamente ao longo de meio sculo de confl itos polticos.

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    Numa poca em que a antiga nobreza sofre as conseqncias Je seu enfraquecimento poltico c financeiro, a famlia de Descartes aparece. de um lado. como pertencente burguesia que ascende nesses novos tempo!>; de ou-tro, como enobrecida por via dessa mesma ri4ue1a provi nda do exerccio de "ofcios'' como medicina, comrcio e funes pblicas. A classe de Descartes era, portanto, a pequena nobreza. que podia usu fruir as vantagens do "eno-brecimento" conservando ao mesmo tempo as virtudes de eq uilbrio herdadas dos ancestrais burgueses.

    Essa origem social nos ajuda a entender as opes de vida do filsofo . Vivendo numa poca extremamente conturbada. conseguiu no entanto organizar para si uma vida tranqila inteiramente dedicada filosofia e em coerncia com um projeto formulado quando ainda era bastante jovem. Sua condio financeira permitiu-lhe, durante toda a vida, gozar de inteira liberdade, tendo sido sempre o nico juiz de todas as suas decises. Essa independncia c o gozo pleno da individualidade so os fundamentos materiais da autonomia do esprito de que a sua vida foi um grande exemplo. Pde alimentar sem problemas o gosto pela solido e. embora se mantendo sempre muito bem-informado acerca de tudo o que ocorria sua volta, principalmente no plano intelectual, esteve afastado de grupos e das discusses entre seitas filosficas. admirvel que tenha consegui-do manter esse estilo de vida. levando-se em conta que a sua filosofia bastante radjcal e de molde a suscitar surpresa e inquietao nos contemporneos. No possvel saber at que ponto o prprio Descartes tinha plena conscincia desse carter inovador de seu pensamento. O certo que nunca buscou a notoriedade e a glria nem procurou impor-se como sbio perante o mundo, bastando-lhe sempre a aprovao dos amigos, que o respeitavam e admirav-m sua geniali-dade. O carter discreto que imprimiu sua vida faz com que sua histria seja principalmente a histria da evoluo do seu esprito.

    A HISTRIA DE UM ESPRITO Descartes nasceu a 31 de maro de I 596 em La Haye e aos oito anos foi

    enviado para estudar no Colgio Jesuta de La Fleche. A formao a recebida constituiu para Descartes objeto de meditao durante grande parte de sua vida, tanto para reconhecer os mritos do ensino que lhe foi ministrado quanto para criticar o que nele havia de dogmtico. de incerto e de vazio. Ensinavam-se gramtica, retrica, poesia. latim, grego e 111oso6a. a includas a lgica, a ma-temtica, a fsica, a tica e a metafsica Essa amplitude que era ento conferida filosofia nos ajuda a entender aquilo que Descartes desenvolver mais tarde como mtodo filos6jco: uma maneira segura de estabelecer, a partir do modelo

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  • matemtico. um saber filosfico acerca de todos os assuntos que interessam ao progresso humano.

    Embora de maneira geral seguissem a tradio, os jesutas de La Fleche no deixavam de acompanhar o progresso cientfico. Foi assim que o jovem Descartes, em 1611 , teve notcia das descobertas feitas por Galileu. possveis graas inveno da luneta. que pemlitiu observar os satlites de Jpiter e as manchas solares. Tais novidades no chegavam, no e ntanto. a constituir uma prova definiLiva dos erros inerentes filosofia natural de Aristteles e, menos ainda, sua metafsica. Essas duas partes da filosofia constituam um sistema explicativo do Universo, que era ensinado por meio de manuais que resumiam a sntese feita por So Toms de Aquino entre a filosofia aristotlica e a re lig io crist. Descartes ter sempre em mente que a solidez do saber depende da coe-so e do encadeamento de todas as ~uas partes. Por isso ele dar nfa~e. no seu trabalho, ao carter sistemtico do pensamento.

    Descartes terminou seus estudos regulares em 1616, e a deciso que tomou por essa poca nos indica que no estava muito satisfeito com os resultados de sua educao. Nada tinha a opor aos mtodos de ens ino praticados no Colgio de La Fleche, em particular. que era seguramente uma das melhores escolas da poca. O que o descontemava era o prprio ensino tal como era em geral ministrado no seu tempo e que refletia uma certa concepo do que fosse o saber. A extrema valorizao da cultura antiga e um certo dogmatismo, que faziam o saber depe nder da autoridade mais que do exerccio independente da razo, levavam-no a desconfiar de quase tudo o que havia aprendido ao longo de seus anos de estudos. Quando o saber adquirido apenas como um conjunto de resultados. sem grande preocupao com o mtodo e com o fundamento, no podemos estar seguros de que o que nos est sendo transmitido sejam verdades, pois o que passa por isso pode muito bem ser a consolidao de erros atravs dos anos. No devemos, bem entendido. ignorar os livros e a tradio. So esses. pelo contrrio. os meios que temos de ctialogar com os melhores espritos que nos antecederam. Mas o saber algo de que devemos purricipar. Se no somos ns a estabelec-lo, pelo menos devemos procurar ver como foi estabelecido o conjunto de verdades q ue herdamos da tradio.

    Por isso Descartes resolveu, por volta de 1618, procurar um o utro tipo de saber, cujos fundamentos e fonna de aquisio pudessem ser exam inados de ma-neira mais imediata. Vai. ento, estudar em si mesmo e uo " livro do mundo", ou seja. inteirar-se do que so as coisas e os costumes observando-os por si mesmo ao lonoo das oportunidades que a vida oferece. Integra-se ao exrcito do prncipe

    o .. Maurcio de Nassau. que combatia os espanhis, com a nica inteno de vtaJar

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    e observar. Com esse mesmo propsito junta-se, no ano seguinte. s tropas do rei da Baviera. Foi nessa poca. precisamente a 10 de novembro de 16 19. que. retido numa cidade da Alemanha pelo rigor do inverno, Descartes. segundo ele mesmo nos relata num escrito de que temos apenas noticia. Olimpica, teve a revelao de algo a que chamou dcjtmclamenros da cincia admirvel. ulgo 4uc ele mesmo s compreender no seu inteiro significado muitos anos mais tarde. O carLer imag inativo e mesmo mstico desse episdio nos alerta para um aspe~.:to da personalidade do fi lsofo que o racionalismo de sua obra nos leva muitas vezes a esquecer: a re ligiosidade e, de maneira mais a mpla, a profundidade do Eu, de onde provm o impulso que o levar a reconstituir toda a c incia a partir do fundo de si mes mo, de sua a lma. na qual est, justamente. o .fundamento dssa cincia admirvel.

    De 1619 a 1628, Descartes segue o projeto de fazer a experincia Jo mundo, observando e refletindo sobre o que v. na esperana de tirar da al-gum proveito para o aperfe ioamento d ci ncia. Mas. a par das viagens c da vida mundana, aplica-se tambm ao estudo da rnatemti~.:a. principalmente da geometria, assunto de sua predileo. Para isso muito contribu ram as relaes que por essa poca travou com o matemtico holands Jsaac Beeckman. que o estimulou a buscar a resoluo de vrios problemas, entre os quais os que aparecem no tratado Diptrica, em que estuda a refrao dos raios luminosos. h de se supor tambm que se ocupasse nessa poca de ques tes algbricas c do tratamento de tpicos que levariam constituio da geometria analtica.

    Entretanto, como nos dir mais tarde, o que o fascinava na matemtica, mais que clculo com nmeros e figuras, era o mtodo que tais clculos indicavam. Para. quem. como ele, procurava no saber a ocasio do exerccio independente da razo, ou seja, a certeza atingida pelo prprio raciocnio e no simplesmente aceita por meio do argumento de autoridade, a matemtica devia aparecer como caso exemplar - e mesmo nico - de uma verdade que mostra e m si o seu pr-prio fundamento. bem verdade que o mtodo pelo qual os gemetras antigos alcanaram as evidncias que todos reconhecem nem sempre aparece claramente nas construes matemticas. Mas a certeza da matemtica. seu carter auto-evi-dente, prova da validade do mtodo. Estar aqui aquelefimdamemo da cincia admirvel? Se esli ver, certamente ele no fundamentar apenas a matemtica, mai> poder e deve r ser estendido a ouLras esferas do saber. q ue ento se beneficiariam da mesma certeza.

    Quais so essas outra

  • >

    tambm para essas cincias, principalmente para a fsica, que tomar como ob-jeto no tratado Do mundo e que, prudentemente. deixar de publicar. tendo em vista a semelhana de suas teses com as de Galileu. condenadas pela Igreja. Esses nove anos de observao do mundo foram tambm, como se v, empregados na formulao de teorias que mais tarde integrariam o sistema; mas foram principal-mente empregados na construo de um mtodo geral do saber, que a matemtica ilustra de maneira privilegiada, mas cujo alcance j visto por Descartes na perspecti va da unidade de toda a cincia. A relao entre a unidade do mtodo e a unidade da cincia est claramente exposta numa obra que Descartes escreveu por volta de 1628. mas que s foi publicada postumamente, as Regras para a direo do espriTo. Sendo a verdade uma s. a certeza, que a apropriao da verdade pelo esprito, de um nico tipo. Conseqentemente, o mtodo, isto , as regras pelas quais o espfrito atinge a verdade, o mesmo para toda e qualquer evidncia que possa ser alcanada. Essa descoberta de Descartes marca a atitude terica que inaugurar o pensamento dos tempos modernos.

    Em 1628 Descartes resolve ir morar na Holanda. No so claras as razes que o levaram a tomar essa deciso. Apesar de suas idias estarem de acordo com as de Galileu em muitos pontos, entre os quais aquele relativo ao movimen-to da Terra, que teria sido o motivo da condenao do astrnomo italiano, no h base para supor que Descartes. permanecendo na Frana. viesse a sofrer qual-quer incmodo por parte das autoridades polticas c religiosas. Cabe ressaltar wrnbm que a fsica e a cosmologia aristotlicas, ainda aceitas oficialmente pela Igreja, j no o eram pelos melhores espritos da poca, inclusive por aqueles cuja f no poderia ser colocada em questo. O mais provvel que Descartes procurasse a solido c um certo anonimato que lhe permitissem prosseguir com tranqilidade o seu trabalho. Embora ainda no tivesse publicado suas idias fundamentais. elas j percorriam de maneira relativamente ampla nos crculos cultos. e j se criara. a essa altura, alguma expectativa em tomo de sua filosofia. Provavelmente essas pessoas do crculo de amizades de Descartes o estimula~sem a expor publicamente suas idias. Dentre os amigos de Descartes, a maioria deles ligados s cincias, destaca-se o padre Mersenne. a quem esteve ligado durante toda a vida e com o qual manter importante correspondncia.

    O certo que, depois de uma estada no interior da Frana. Descartes se mudar para a Holanda, onde permanecer at 1649. Esse pafs. que ento se chamava Provncias Unidrts e que havia pouco conquistara sua independncia da Espanha. despootava como uma sociedade florescente e prspera. para onde era canalizada grande parte dos lucros com o comrcio internacional. Embora o protestantismo predominasse, havia um clima de relativa liberdade

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    religiosa e intelectual , e a riqueza da jovem nao era acompanhada por um progresso cultural favorecido pela tolerncia e pelo pluralismo. Durante os primeiros anos de permanncia na Holanda, Descartes ocupou-se ainda da matemtica, como mostram o seu tratado de tica (Diptrica) e um estudo de astronomja, os Meteoros, denominao que na poca era empregada para designar os corpos celestes.

    Como j observamos, os estudos de matemtica e de fsica interessavam a Descartes principalmente da perspectiva da aplicao do mtodo. Por isso, o primeiro livro em que expe sistematicamente suas idias fi losficas ser o Discurso do mtodo, seguido, na mesma publicao, de trs ensaios cientfi-cos: a Di6ptrica. os Meteoros c a Geometria. O livro foi publicado em 1637, na Holanda.

    A associao de um texto sobre o mtodo com ensaios cientficos visava mostrar o resultado do mtodo quando aplicado a trs reas do saber, ou seja, que o mesmo mtodo se adequava a diferentes objetos. Com isso, Descartes pretendia manifestar a universalidade do mtodo e a unidade do saber. por essa razo que o Discurso do mtodo ocupa-se tambm com assuntos de metafsica. corno as provas da existncia do Eu pensante e de Deus. O carter sistemtico do saber e da verdade exige que os fundamentos metafsicos do conhecimento apaream como sustentculos dos procedimentos metdicos.

    Descartes possua uma crena profunda na simplicidade; para ele. o ver-dadeiro aparece naturalmente como claro e sem complicaes. Era essa uma das razes pelas quais sempre censurou a filosofia escolstica, que para ele escondia o vazio de contedo atrs de uma terminologia confusa. Escreveu o Discurso do mtodo em francs, o que no era comum na poca, pois o latim era considerado o idioma apropriado s obras cultas. Procurou tambm redigir o livro numa linguagem que fosse acessvel mesmo queles que no estivessem familiarizados com os assuntos tratados. Assim, manifestava que o bom senso. em princpio igualmente distribudo entre todos os homens, constitui o requisito fundamental para a filosofia.

    H. no entanto, algo de mais profundo sob esse culto da simplicidade e da clareza: a crena na autonomia do pensamento, a idia de que a razo, bem dirigida, basta para encontrar a verdade. sem que precisemos confiar na tradio li vresca e na autoridade dos dogmas. O esprito humano tem em si os meios de alcanar a verdade, se sou ber cultivar sua independncia e conduzir-se com mtodo.

    Os lemas metafsicos tratados no Discurso, mesmo de fonna resumida, indicam-nos que Descartes. por essa poca. j estava plenamente na posse das

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  • verdades tndamenwis nas quais se basear seu sistema. Por isso no surpreende que, apenas trs anos depois do Discurso do mtodo. ele aprc ente a metafsica inteiramente desenvolvida nas Meditaes metajfsicas, que aparecem em 1641. Nesse livro s~o trc~tadas as grandes questc!. metafsicas: a existncia da alma. de Deus e do mundo. Trata-se de um livro escrito em latim, em que as anlises tcoicas so bem mais aprofundadas, embora Descartes conserve o estilo conciso que caracteriza a maioria de suas obras. interessante notar que, ao expor suas principais teses metafsicas, a existnca da alma e a existncia de Deus, Descartes formula tambm os fundamentos da fsica e a concepo de vontade, base terica da tica. Com isso fica configurado o carter sistemtico da filosofia de Descartes

    ~m como a unidade do saber assentada num nico fundamento. O ttulo completo da obra. Mediraes de filosofia primeira, indica-nos o seu cunho fundamenta-ciooista, uma vez que o termo designava tradicionalmente, desde Aristteles, o tratamento das questes relativas aos princpios do pensamento.

    Descartes teve o cuidado de publicar as suas Medi raes acompanhadas de objees formuladas, a seu pedido, por filsofos e telogos da poca, alguns de grande evidncia, como Hobbes e Arnaud. Por intermdio do padre Mersenne, o texto circulou e ntre um certo nmero de pessoas escolhidas. que apresentaram questes. as quais foram respondidas por Descartes, sendo o conjunto das Obje-ries e resposras publicado com as MedirutJes. Descartes havia solicitado ainda a aprovao da Faculdade de Teologia de Paris, que no chegou a se pronunciar antes da publicao. Com isso ele pretendia resguardar-se de uma situao que considerava extremamente incmoda: a polmica e a necessidade de just ificar seus escritos perante pessoas que nem sempre os entendiam corretamente. O Discurso do mtodo j lhe valera algumas experincias desse tipo. inclusive a acusao de atesmo. Mesmo na Holanda, pais "liberal", tais coisas no ocor-riam sem conseqncias. e Descartes teve, mais de uma vez. que se defender de acusaes pe rigosas.

    Ainda assim encontrou tempo para redigir os Princpios de filosofia, publi-cados em 1644. ou pelo menos as duas primeiras partes do livro originalmente planejado. Por essa poca inicia-se entre Descartes e a princesa Elizabeth uma correspondncia que tem a maior importncia para a compreenso de certos aspectos da filosofia cartesiana, principalmente os relativos moral. No Ois-curso do mtodo Descartes havia formulado uma "moral provisria", pcqueoo conjunto de regras que lhe permitissem viver e agir enquanto trabalhava ua~ questes metafsicas c fsicas que. siste maticamente, deveriam preceder uma moral definitivamente estabelecida. em tomo de assuntos relacionados com a orientao da conduta e com a fundamemao racional da moral que se conccn-

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    tram, principalmente, os temas das cartas trocadas entre Descarte~ e Elizabeth . Ta lvez estimulado por essas questes. ll filsofo comps o Tratado das paixes da alma, publicado e m 1649.

    Quando esse livro saiu, Descartes j no se encontrava mais na Holanda. pois havia aceitado um convite da rainha Cristina da Sucia para transferir-se para aquele pafs. Tambm aqui no fcil supor os motivos que teriam levado Descartes a tomar tal dec iso, principalmente se considerarmos que a vida na Corte sueca no teria muitos atrati vos para um filsofo amante da solido c da tranqilidade e com hbitos a essa altura da vida j bem conso lidados. que as excentricidades da rainha deveriam perturbar. Exemplo do comportamento incomum da soberana era o horrio escolhido para entreter-se com a filosofia: o alvorecer, por volta de cinco horas da manh. Num pas de inverno rigoroso c com estradas cobertas de neve durante grande parte do ano, Descartes tinha de percorrer, de madrugada, a distncia entre sua casa e o palcio real. No levou muito tempo para que ficasse gravemente doente, e sua desconfiana e m relao aos mdicos o impedia de aceitar o tratamento. Morreu a 11 de fevereiro de 1650, provavelmente vtima de pneumonia. Por essa poca, suas idias j eram adotadas em muitas universidades holandesas c , na Frana, filsofos do porte de w11 Arnaud saudavam o sistema cartesiano como a expresso da verdade no plano da cincia c da metafsica.

    DESCARTES E A NOVA CINCIA O sculo XVH foi frtil em descobertas cientficas, e algumas delas vieram

    a alterdf radicalmente a concepo que o homem tinha do universo. Pode-se dizer que o primeiro golpe decisivo sofrido pela imagem antiga do mundo foi a proposta, fei ta por Giordano Bruno ainda no sculo anterior ( 1584), de um uni-verso infinito e sem centro. lsso se chocava diretamente com as idias herdadas da Antigidade, principalmente as de Aristteles. Para os antigos. a infinitude era sinal de imperfeio. Algo s podia ser bem conhecido e determinado se fosse acabado. Por isso os movimentos naturais eram concebidos como ciclos. cuja repetio assegurava o prolongamento indefinido das coisas sem que se precisasse conceb-Las dentro de um universo infinito. O prprio movimento eterno era considerado como circular porque, nesse movimento. o fim coincide com o comeo, de tal maneira que ele pode ser eterno sem ser inacabvel. Toda concepo do cosmos, isto , do universo ordenado, subord inava-se assim a uma perspectiva finita, a nica em que se podia ver uma ordem.

    verdade que a concepo judaico-crist de Deus inclua o infinito en-tre os atributos divinos. Mas com isso marcava-se mais fortemente o carte r

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  • finito das coisas c riadas, ou seja, de todo o universo. Temos de levar em conta tambm que a cosmologia aristot lica. vigente na ldade Mdia. conservou no mbito do pensamento filosfico a idia de fin itude para tudo o que no fosse Deus. Quando Giordano Bruno aventou. portanto. a hiptese de um universo infinito. isso somente poderia ser compreendido se fosse e liminada a diferena entre Deus e o Universo. Essa conseqncia valeu a Bruno a condenao morte na fogueira .

    As descobertas cientficas, no entanto, punham cada vez mais em ev i-dencia que a concepo da Terra como centro imvel de um ~ i ~tcma finito no se sustentava. No prprio ano em que Bruno foi queimado em Roma. o ingls Gilbert publica a obra Do maxnetismo, na qual afirma que a Terra gira sobre si mesma devido sua prpria fora magntica. Em 1605 Kepler enuncia a lei do movimento elptico dos planetas em torno do Sol, aperfeioando assim a teoria de Coprnico, que data do sculo anterior. Em 16 1 O, as observaes que faz Galileu. com a ajud da luneta, comprovam a teoria de Coprnico e ainda do margem a uma importante conseqncia de ordem metafsica: o universo no perfeito, como o provam as manchas solares e as montanhas da Lua. Perfeio significa imutabilidade; no sendo perfeito. o universo no imutvel. Ora. movimento e mudana so coisas que sempre estiveram associadas: e is agora o homem obrigado a encarar o fato de que a Terra no o centro do universo. mas. ao contrrio. ocupa um pequeno lugar num universo cujo centro no se conhece, e gira como outros tantos astros em tomo de uma estrela que lhe for-nece a vida, A contestao do geocentrismo inaugura urna crise na concepo da posio do homem no universo, pois o retira de sua posio central e o torna um ser relativo, entre muitos outros .. Em 1616 e 1633, Galileu sofre duas con-denaes pela Inquisio e obrigado a renunciar s suas teses, coisa que fez publicamente sem, no entanto, deixar de afirm-las c landestinamente, como o provam escritos posteriores.

    A esses progressos na fsica devemos acrescentar os trabalhos matemti-cos de Napier e Clavius. Este ltimo foi o organizador do ensino de matemtica nos colgios jesutas. tendo exercido, por essa via. uma influncia direta sobre Descartes. No que se refere ao conhecimento do corpo humano. o ingls Will iam Harvey publicou. em 1628, uma descrio da circulao do sangue, o que o fez um precursor da moderna fi siologia.

    As descobertas, principalmente no campo da fsica, obrigavam os sbios da poca a abandonar o sistema aristotlico, tendo em vista a evidente discrepncia entre a cosmologia do filti~ofo grego e os fatos que eram trazidos luz. O que !>e v. ento, uma separao entre o saber fi losfico e o saber cientfico, que muito

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    menos uma progres~iva independncia das cincias em relao filosofia. como muitas vezes se afirma. do que a constatao de uma insuficincia sistemtica da fi losofia aristot lica c dos fundamentos que ela propunha. A tarefa de Descartes ser a de refazer o carte r sistemtico do !>aber. unindo novamente c incia e filo-sofia fsica e metafsica. E para pensar essa nova fundamenta.o e le conta com uma concepo de Galileu que est implcita na nova fsica, e que formulada pelo astrnomo na sua obra O ensaiadnt; a natureza est~ escrita em linguagem matemtica. Isso significa que contamos com um poderoso instrumento de conhe-cimento, plenamente adequado decifrao da realidade natural; a matemtica. Essa cincia no se ope fsica como a quantidade se ope qualidade (conforme pensavam os aristotlicos), mas a prpria natureza tal que se presta naturalmente a um tratamento matemtico. Essa concepo galilaica se transformar no ponto central do mtodo de Descartes. cujo aspecto principal consiste na extenso do modelo de conhecimento matemtico a todos os objetos. por esse caminho que Descartes tentar encontrar os novos fundamentos para o conhecimento no ape-nas da natureza. mas tambm de Deus e da alma.

    CRONOLOGIA 1596 Nasce Ren Descartes em La Hoye, no provncia francesa de

    Touroine.

    1606 Entro poro o Colgio jesuta de lo Fleche, onde permanecer at 1616.

    1619 Inicio uma srie de viagens, acompanhando os e x rcitos de Maurc io de Nossau e do duque Maximiliano do Baviera .

    1628 Termino o redao das Regras poro o direo do esprito, obro que s ser publicado postumomente. Decide viver no Holanda .

    1633 Galileu condenado pela Inquisio, o que foz com que Des-cartes renunce publicao do Trotado do mundo, texto que continha idias semelhantes s de Golileu.

    1637 Publica o Discurso do mtodo. 1641 Publico os Medi/aes metafsicos. 1644 Publica os Princpios de filosofia . 1649 Publico o Trotado dos paixes do olmo. Viajo poro o Sucia o

    convi te do rainha C ristina . 1650 Morre em Eslocolmo o 11 de fevereiro

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  • 2 O mtodo

    CRTICA DA TRADIO H duas coisas igualmente notveis no projeto cartesiano: de um lado.

    sua ambio e grandiosidade e, de outro, a modstia que Descartes emprega para formul-lo. O projeto no nada menos que a reconstruo do saber, com tudo o que isso impl ica de crtica e recusa da tradio cultural e dos procedimentos filosficos da Escols tica. A modstia est na ins istnc ia com que Descartes o coloca como um caso de desenvolvimento pessoal de reflexo sobre a cincia e a metafsica que poderia eventualmente indicar a outros um certo caminho do fil osofar.

    Certamente h alguma coisa de prudncia nessa acentuao do carter estritamente pessoal da nova filosofia; Descartes no deseja que o alcance de uma polmica mais intensa perturbe o prprio processo de elaborao de sua fi losofia. Mas no deixa de ser curioso o fato de que o filsofo pret\!nda que um projeto extremamente revolucionrio do ponto de vista filosfico no cause em tomo de si um significativo abalo do ponto de vista cultural. Quando lemos, por exemplo, o ink io do Discurso do mtodo, no sem alguma surpresa que veri-ficamos que, ali, a proclamao do alcanCJ! limitado do projeto cartesiano est ao lado da enunciao implcita daquilo que o filsofo verdadeiramente almeja c acredita poder obter: a verdade absoluta.

    O Discurso do mtodo contm, no seu inicio, duas afi rmaes que, se li-gadas, pemutem-nos compreender o projeto cartesiano no mbito do mtodo. A primeira a frase famosa que abre o Discurso e que nos diz que o bom senso a coisa mais bem partilhada do mundo, pois cada qual pensa estar to bem provido dele que, mesmo aqueles que se mostram difceis de contentar em outras coisas, no desejam t-lo maior do que j o tm. A segunda afirmao, que se segue ao comentrio dessa primeira - no qual o bom senso identificado. entre outras coisas, como a capacidade de distinguir o verdadeiro do falso - , uma retifica-o do que foi expresso no incio. Informa-nos que no suficiente ter o esprito bom, o principal aplic-lo bem. Assim. desde as primeiras frases do Discurso do mtodo t1camos alertados de que a capacidade de distinguir o verdadeiro do falso. a qu\! chamamos bom senso, embora seja aquilo que os homens parecem possuir em grdu suficiente, necessita contudo estar vinculada a ueterminauas condies de

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    aplicao, para que o esprito exera com xito a sua funo de dl!scobrir 0 vcrJa-Jeiro. O bom senso, ainda que repartido ern grau suficiente por todos os homen~. na exata r~edida em que lodos so racionais, no garante por si s " identilicao ua

    ver~adc. E necessrio que a razo seja bem conduzida, e essa conduo se d por melO de regras que permitem atingir a evidm:ia. Por isso, primein1mente a ttulo de uma experincia pessoal que Descartes falar dos frutos do mtodo c de como tais frutos so obtidos independentemente da erudio ou de dons pacticuJares de memria e argcia. Descartes valoriza a tal ponto o mtodo que atribui a e le a ca-pacidade de remediar em grande parte, seno mesmo substituir. talentos pessoais que em princpio suporamos essenc iais ao estudo da c incia e da filosofia.

    ALCANCE DA CRnCA

    A crtica de Descartes ao ensino tradicional, a partir da experincia pessoal que seus esLUdos lhe proporc ionaram, est centrada no desestmulo em relao ao uso da razo e ao exerccio do bom senso. esse o sentdo que tem a espcie de resenha que Descartes faz dos estudos a que se dedicou nu juventude e que tem o alcance de crtica da cultura e dos mtodos intelectuais herdados da Idade Mdia. O exame que Descartes faz da cincia tal como era ens inada na sua poca tem a virtude de nos ajudar a entender exatamente o que significa o uso da n tzo ou do bom senso numa perspectiva desvinculada do que e le entende ser o verdadeiro mtodo.

    Os pontos mais importantes para ilustrar essa questo so os seguintes:

    1. Em primeiro lugar. urna apreciao geral relativa a toda a seqncia de estudos revela que o resultado foi o acmulo de dvidas em vez da aqui-sio do saber.

    2. No que concerne particularmente s matemticas, Descartes nota duas coisas: primeiro, a firmeza da evidnc ia que ne las se encontra e a clareza dos rac iocnios empregados; segundo, o fato de que uma cincia cujos fundamentos so to firmes e que propriamente o lugar da evidncia no sirva para nada de mais relevante do que o clculo abstrato e a aplicao nas artes mecnicas (engenharia). ningum tendo pen ado ainda na extenso da certeza da matemtica para outros domnios do conhecimento.

    3. Descartes observa tambm, finalmente, a desencorajadora diversidade de opinies que relna na fi losofia , na qual no h uma s queSto que no seja objeto de djscusso e sobre a qual no haja pelo menos duas opinies

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    \

  • diferentes. apesar de que s possa haver uma verdade. Isso se toma mais grave se pensamos a fi losofia como fundamento das cincias, j que a pouca ftrmez.a dos fundamentos acarreta naturalmente a fragilidade dos resultados alcanados em tudo aquilo que deles depende.

    O balano desses estudos. que pode tambm ser entendido como um ba-lano da cultura transmitida. revela que a razo, mesmo cultivada pelos espritos mais aptos de todas as pocas. no produz resultados satisfatrios quando no conduzida por um mtodo previamente concebido. O que se v. em geral, um mero exerccio de opinio que, quando muito. desemboca na verossimilhana, isto , em algo que, embora tenha a aparncia de verdade. no pode ser demonstrado como tal. A partir da se impe quele que busca a verdade na figura da evidncia absoluta um certo desprezo das letras e das cincias tais como foram cultivadas na tradio. e a procura da verdade por meio de outro procedimento.

    UNIDADE DA CINCIA, UNIDADE DO MTODO Qual seria o procedimento para a busca da verdade? Pelo exame do itinerrio

    pessoal do filsofo, abordado no captulo anterior. j sabemos pelo menos em que direo procur-lo: na cincia que Descartes acredita encontrar-se nele mesmo ou ento "no grande livro do mundo". Embora no se possa ainda falar com rigor em subjetividade, tal como esta ser estabelecida mais tarde pelo prprio Descartes. j temos como condio da busca da verdade a recusa da tradio cultural e de tudo o que a ela se vincula em tennos de procedimento filosfico. Ora, a recons-truo da c incia a partjr do esprito liberado dos contedos culturais aprendidos se faz, em Descartes, de acordo com um pressuposto que aparece desde muito cedo em seu pensamento, e que reaparece no Discursn: a unidade do saber a partir da unidade do intelecto. Essa idia significa que a cincia una, apesar da djversidade de seus objetos. Significa tambm que. desde os fundamentos at os ltimos resultados que deles possam derivar, existe uma unidade que principal-mente proveniente da unidade do esprito que investiga a evidncia dos diversos contedos. Por isso a cincia no poder, na sua estrutura bsica, progredir, pois o acmulo de conlribuies sucessivas no altera o perfil sistemtico do saber. E a razo disso ainda o mtodo: a unidade do mtodo determinante da unidade da cincia. Ora, duvidoso que geraes diferentes ao longo de sculos tenham seguido o mesmo mtodo, e isso que faz com que a cincia no tenha sido mais que o mero acmulo de opinies, e no uma construo a partir de fundamentns metodicamente estabelecidos e seguidos de dedues tambm metodicamente conduzidas. Descartes menciona o exemplo das cidades. que so mais ordena das quando planejadas por um s arquiteto do que quando crescem ao sabor da

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    vontade de muitos. Assim tambm a cincia tem sua verdade relacionada com a unidade e coeso no mbito dos procedimentos utilizados na sua elaborao. e tais procedimentos tm, por sua vez. a unidade consolidada no esprito que estabelece os preceitos metdicos.

    Por que Descartes v como incompatveis com a verdade a variao e a pluralidade na construo do saber?

    Em primeiro lugar porque, como j vimos. a prpria diversidade de opi-nies acumuladas ao longo da histria do saber se mostra incompatvel com o carter nico que deve possuir a verdade.

    Em segundo lugar, a relatividade que as condies e os costumes impri-mem na maneira de pensar tornam o conhecimento dependente dessas conjun-turas, caso no estabeleamos o modo de tornar a busca da verdade na cincia independente de tais condies. A consolidao das opinies toma-as aceitas qualquer que seja o seu valor intrnseco. A prpria formao do indivduo, sujeita s opinies e aos preconceitos cristalizados pela tradio, faz com que seu entendimento do que verdadeiro ou falso venha a depender mais desses preconceitos do que de um exame do valor do que lhe transmitido.

    Assim, toda a vida do indivduo orientada pela cristalizao de opinies cuja validade no questionada. Para Descartes. no tocante ao domnio pblico (moral, poltica, sociedade) mais vale se conformar. ainda que prQvisoriamente, ao que est estabelecido, tendo em vista a demasiada complexidade da tarefa de mudar todas essas coisas. O mesmo, entretanto, no vale para o domnio privado. por isso que Descartes insiste em que o seu projeto s abarca os seus prprios pensamentos: nesse domnio privado, a tarefa de superar a relativjdade das conjunturas a partir de urna recusa deliberada das vrias tendncias que formam a tradio algo vivel, desde que contemos com o mtodo adequado para empreender a pesquisa. Nesse domnjo, o costume e o exemplo no podem ser aceitos como signos de verdade.

    DA DVIDA EVIDNCIA

    0 MTODO Existe uma relao estreita entre o mtodo de aquisio da evidncia e

    a dvida como condio inic ial da reconstruo do saber. Quando a dvida comea a ser exercida, o esprito j tem de estar de posse do mtodo que per-mitir s ubstituir as opinies rejeitadas por verdades sobre as quais no pairem dvidas. Por isso, antes de exercer sistematicamente a dvida. preciso buscar as condies de elaborao do mtodo. A primeira coisa a verificar se existe

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  • algo no saber legado pela tradio que possa auxiliar na elaborao do mtodo. e De cartcs se volta particularmente para o domnio da matemtica e da lgica. A primeira por ser. como j vimos. o domnio privi legiado da evidncia, e a segunda por passar, aos olhos da tradio e dos contemporneos de Descartes, por detentora das regras do pensamento correto.

    Observe-se que Descartes j tivera oportunidade de reparar, como vimos. no fato de que a utilizao da matemtica no ia alm dos nmeros e figuras . e que sua evidnc ia limitava-se ao terrt:no interno das operaes aritmticas c geomLricas, o que Descarte~ acrediLava de pouca utilidade em relao tota-lidade do aber. A evidncia mate mtica aquilo que o esprito humano pode apreender de mais certo; o mLOdo consistir em captar a razo dessa certeza para que se possa estend-la a outros campos do conhecimento.

    Quanto lgica, que na poca de Descartes era a doutrina silogstica de Aristteles. com os acrscimos fe itos na fdade Mdia, o filsofo no poupa crticas a essa cincia que ele considera completamente estril. E isso deriva de que o mecanismo do sjlogismo. adequado, segundo ele, para expor conheci-mentos j encontrados. em nada nos auxilia quando se trata de encontrar novas verdades, uma vez que devemos parlir de conhecimentos universais para deduzir os particulares. De modo que a matemtica, tal como era vista at ento, c a lgica. de modo quase completo, acham-se excludas como matrizes do mtodo filosfico. No entanto Descartes as exclui por entender que o mtodo por e le concebido rene as vantagens dessas duas cinc ias sem conservar nenhwn de seus defeitos.

    Na origem do mtodo estar uma reflexo sobre o que permite que a ma-temtica atinja o alto grau de ev idncia que a distingue, e isso levar o filsofo a considerar o que a mate mtica tem defimdamemal nos seus procedimentos: a ordem e a medida. So essas as caractersticas bsicas do pensamento mate-mtico, mas no so especificas dele. A razo triunfa na matemtica porque faz uso. quase que espontaneamente, desses dois requisitos fundamentais de todo pensamento. Por isso o mtodo dever inspirar-se na matemtica para buscar nela a causa da certeza, os requisitos de o rdem e medida, e. ento, aplic-la a todos os objetos que pode m ser conhecidos.

    As QUATRo REGRAs

    O mtodo, tal como Descartes o expe no Discurso, consiste em quatro regras:

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    J. Clareza e distino. S devo acolher como verdadeiro o que se apresente ao meu esprito de forma to clara e distinta que eu no tenha como duvidar.

    2 . Anlise. Em presena de dific uldades no conhecimt:nto, devo dividi-las em tantas parcelas quantas forem necessrias para chegar a panes claras e

    distint

  • est nele mesmo. Se os requisitos metdicos forem cumpridos. a representao no poder ser colocada em dvida. e a certe-..a do sujeito corresponder:\ evi-dncia, que uma viso objetiva da verdade (vidncia). O mtodo proporciona ento o encontro de uma verdade subjetiva. isto . no sujeito. Essa verdade stthjetiva . no entnnto, profundamente diversa da apropriao subjetiva da verdade proposta pela tradio e aceita simplesmente pelo sujeito. Pois foi por via metdica que o fi lsofo encontrou a verdade enquanto evidncia. e o carter subjetivo que ela agora possui no decorre de condies subjetivas no sentido histrico ou psicolgico. e sim da subjetividade como lugar e fundamento da verdade, como veremos no prximo captulo.

    A DVIDA Dessas caractersticas que o mtodo impe ao conhecimento verdadeiro

    decorre. como conseqncia. que tudo aquilo que a razo no reconhece como portador de tais caractersticas deve ser colocado em dvida. Aquele que busca a verdade na evidncia s pode aceitar o que aparece como claro e distinto usando nica c exclusivamente a razo para determinar dessa forma o conhecimento. Ora, o exame a que. como vimos, foram submetidos os contedos culturais transmitidos pela tradio mostrou que tais conhecimentos no passaram pelo crivo racional da clareza e distino. O mesmo ocorre com as crenas que. direta e indiretamente. fo-ram adquiridas pelos sentidos. como se tudo aquilo que aparecia como verdadeiro antes da aplicao do mtodo no pudesse responder pela origem de sua verdade.

    . portanto, metodicamenre nece.tsrio colocar tudo em dvida. Mas no sero colocados em dvida apenas os conhecimentos efetivamente adquiridos no passado e no presente; preciso ir mais longe. no sentido de invalidar a prpria esfera do conhecimento sensvel. Isso significa que as incertezas e as oscilaes que se podem constatar nas crenas que chegam pela sensao c pela percepo so tomadas como ilustraes de uma possibilidade mais geral: a de que todo e qualquer conhecimento gerado nesse plano seja falso. a denominada generaliza-o: o prprio gnero do conhed mento sensvel que fica colocado em dvida.

    CONHECIMENTO MATEMnC:O A necessidade metdica da dvida exige que ela v alm do questiona-

    mento dos contedos transmitidos pela tradio. Segundo Descartes, preciso que a dvida atinja tambm os conhecimentos matemticos. dos quais entretan-to no temos as mesmas razes de duvidar. Pois o conhecimento matemtico foi precisamente aquele que mostrou, no decorrer do exame a que todos foram submetidos, um grau de evidncia capaz de resistir naturalmente dvida. Para

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    I

    que a dvida possa passar ao plano dn matemtica, ser necessrio que se ge-neralize no o erro propriamente dito, como ocorreu com a esfera do sensvel, mas o fato de que. mesmo em matemtica. nos enganamos algumas vezes. No Discurso do mtodo Descartes se contenta com essa ~oluo. Veremos que nas Medirae.f mernjsicas a dvida acerca da matemtica ser justificada de outra maneira. pois o foco ser a existncia em geral. e no apenas a matemtica. notrio que no podemos manter. na esfera da matemtica. as mesmas razes de duvidar que conside ramos vlidas para o plano do sensvel. Isso porque. no que se refere s coisas materiajs, a verdade se pe como adequao entre a representao e a prpria coisa. Foi a constatao de que tal adequao muitas vezes no se d que nos levou a considerar que os sentidos enganam. Na mate-mtica no existe o problema da adequao. porque essa cincia constituda de entidades inteligveis. c no de coisas materiais que so percebidas. Assim. na matemtica no h como pr em dvida a adequao entre percepo e reaJidnde, pois a realidade dos objetos matemticos consiste precisamente em no serem percebidos como ex istncias sensveis. Ser preciso encontrar um argumento que fundamente de maneira majs efeti va a possibilidade de duvidar da matemtica.

    OUVIDA E EXISTNCIA

    Ao examinar o papel da dvida no Discurso do mtodo, no devemos esquecer que esse texto foi escri to para ser um prefcio a ensaios cientficos. Pretende mostrar um mtodo que em seguida ser justificado por resultados que. nos ensaios subseqentes, aparecero como obtidos graas a ele. Nesse sentido. o problema geral da realidade das coisas e das idias no ocupa o primeiro plano. questo da existncia das coisas e das id ias em sua mxima generalidade chamamos problema ontol~ico, visto ser a ontologia a parte da fil osofia que trata da existncia dos seres, que podem ser coisas percebidas ou id ias matem-ticas, sendo estas as essncias a que no correspondem necessariamente coisas existentes no mundo.

    Nas Meditaries metaficas precisamente o problema da ex istncia em geral que est em jogo. Nelas no est sendo visado nenhum problema particular de fsica ou de matemtica. mas sim a existncia da coisa em geral. O problema ontolgico assume ento o primeiro plano. Ora, por isso mesmo o problema da adequao torna-se mni geral c mais crucial. O que se trata de resolver no apenas a questo do acordo de certas representaes de coisas scnsfveis com as prprias coisas. mas a da adequao das exigncias internas da razo. expressas no mtodo. realidade externa. O mtodo foi elaborado com base

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  • em exigncias internas da razo, visando alcanar uma evidncia cujo modelo :se acha na atividade mais elevada e mais autntica da. razo - a matemtica, cujas leis so a~ da prpria razlio. Ma!> esse mtodo tem uma finalidade bvia: o conhecimento das coisas, c no apenas um inventrio de idia:s. No basta, nesse sentido. dizer que s podemos aceitar representaes claras e distintas. preci-so e ncontrar uma forma de vincular a clareza e a distino das representaes quilo que existe fo ra do entendimento. O mundo de Descartes no apenas um mundo ideal; o problema da passagem da essncia (idia ou representao) existncia cruc ial. e exatamente por isso que o problema onrolgico se pe com intensidade.

    Pode-se dizer que a questo apresenta-se sob dois aspectos profunda-mente ligados: I ) preciso provar que h corres pondncia entre repre e mao e realidade com base nas exigncias da razo; 2) preciso provar tambm que as ex igncias da razo correspondem ao que existe na realidade. preciso, em suma, de monstrar que o que objetivo segundo as regras da razo tambm o que objetivo do ponto lle vista universal - isto , pura e simplesmente real. Por que tais exigncias de prova? Porque as regras do mtodo so eswbeleci-das pela razo ou pelo entendimento subjetivo, ao qual tambm pertencem as representaes. Mas a verdade universal e no apenas subjetiva. Sen preciso mostrar, e nto, que a idia - a representao no sujeito - possui um valor tal que a verdade obtida por meio dela vale para a l m da esfera da subjetividade. A isso Descartes chama valor objetivo da representao: o contedo da idia no tem validade apenas no sujeito e para o sujeito. mas verdadei ramente objetivo, isto , universal. Caso contrrio, no teria sentido procurar a verdade na c incia que est ''em mim mesmo", pois no desejo atingir algo semelhante ao que j possui a antes do mtodo, isto , verdades dependentes de condies subjetivas ente ndidas como conjunturas psicolgicas. A unidade c a obje-tividade da verdade - seu carter absoluto - exigem que a subjetividade possua um alcance un iversal, devendo ser, portanto, um autntico fundamento inquestionado.

    A RADICALIZAO DA DVIDA o carter radical do que se procura que ex ige a radicalizao do

    prprio processo de busca. Para que haja a passagem da representao s ubje-tiva existncia exterior, preciso uma garantia de total objetividade. Essa garantia s pode ser dada por uma representao indubitvel. E o processo posto em prtica para e ncontrar tal representao ser a extenso da dvida a todas as representaes, inc lusive as matemticas . A reHexo s encontrar

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    'I

    a evidncia nbsoluta se partir da negao absoluta de todas as certezas. P(lr isso, n~o pode _haver nenhuma exceo para a dvida. Se todo o e)pao do co~hec."~ento for ocupado pela tlvitla. qualquer certeza que aparea a partir da1 tcra SJdll de alguma forma gerada pela prpria dvida, e no ser segura-mente nenhuma daquelas 4ue foram anteriormente varridas por essa m;sma dv ida. A gerao da certeza a parti r da dvida que d dvida o seu carter metdico. Da mesma forma, o aparec imento de uma certeza como que brotada da prpria d~vida mo~trar yue a dvida ter sido pro'visriu. Mas pa ra que a certeza surg1da a parur da dvida corresponda ao que exigido pelo mtodo preciso que a dvida seja radical, isto , atinja inteiramente cada uma da; 1 antigas certezas, c hiperblica, ou seja, deve ser levada ao limite extremo da generalizao. Quanto mais intensa for a d vida, 4uanto mais ela se estender e se radicalizar, tanto mais firme ser a certeza yue a e la resistir. A necessidade dessa firmeza justifica as caractersticas da dvida. poi s o que ~e procura no nada menos que o fundamento da cincia.

    DviDA NATURAL E DVIDA METAFSICA O andamento da Pri meira Meditao Metafs ica inclui a extenso e a

    intensificao progressiva da tlvida, processo que pode ser dividido em dua~ grandes partes: a dvida natural e a dvida metafsica.

    Todas as etapas da dvida maural esto re lacionadas com a recusa do fun -dam~nto sen vel do ~onhec imento, isto , a no-aceitao de que a percepo senstvel possa garanttr. mesmo em parte, o conhecimento. Uma vez veritlcado que tudo que sei vem tl ireta ou indiretamente pelos sentidos. o exercco deli-berado da dvida dever comear pela recusa dessa o rigem de minhas certezas. Como recuso o /ttlldame!lto sensvel do conhecimento, no preciso examinar as certezas uma a uma, pois a derrubada do fundamento faz com que caia com ele tudo o que sobre ele tiver sido edificado. No me contento, portanto, com a en~ruerao dos erros evemuais dos sentidos, aqueles que posso mais ou me nos facilmente reconhecer como erros, mas admitirei que tudo o que se relaciona com o conhecimento sensvel fal so. estendendo e radicalizando a dvida at os elem~r~os da sensao. Com isso. tornarei objeto de dvida no apenas as compostoes de e lementos sensveis, prct.:isameme por serem compostos. mas

    esten~erei a d ~ida a toda e qualquer representao re lac ionada com a percepo de co1sas ex tenores.

    Nisso desempenha papel importante um argumento de que Descane:-. lana m?: a impossibilidade de distinguir o sono da viglia. Esse argumento me permne colocar e m dvida no apenas as representaes pouco ntidas,

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  • longnquas. ou lembradas. mas tambm aquilo que me aparece mais clara-mente como fazendo parte de minha vida presente e atual, pois no sonho tais representaes no correspondem realidade. No . portanto, o carter pouco claro ou pouco familiar da representao que me leva a coloc-la em dvida; o seu carter sensvel.

    Talvez, no entanto. os elementos ltimos do sensvel no possam da mes-ma forma ser colocados em dvida. Tais elementos so o tempo. o espao. o nmero. a relao e outros do mesmo gnero, que Descartes denomina "coisas matemticas". Embora includas no conhecimento geral do mundo sensvel. no so propriamente objetos de sensao e percepo. e podem ser considerados parte. o que preci amente a matemtica faz quando trata tais elemento:. separa-dos das coisas sensveis. Ora, a dvida natural significa a ex istncia de ra

  • DESCARTES E O CETICISMO Por ter cul!iva
  • das certezas. Vi~am questionar a posio do homem como conscincia una, si~temtica, dotada do privilgio das certezas cientficas. e nfim . de tudo aqui-lo que tradicionalmente estava ligado ao exerccio da racionalidade nos vrios planos da teoria e da vida. Montaigne utiliza para i.;;so o procedimento ctico de mos trar a re latividade dos produtos da razo; a impossibilidade de certeza definitiva em vrios campos. notadamente a filosofia; a interferncia cons-tante das paixes comprometendo uma postura que se pretende puramente racional etc. Nesse sentido. Montaigne recusa-se a aceitar que as certeza. da tradio so intocveis e analisa detalhatlamente a Autuao tios sentidos - e conseqentemente os conhecimentos que adquirimos por meio deles. Existe em Montaigne uma profunda conscincia da interpenetrao entre intelecto e sensibilidade . razo e paixes. que faz do homem uma criatura mista e, a bem dizer. inexplicvel. Da a dificuldade em aceitar uma ohjetividade total do conheci me nto. como se a faculdade racional se pudesse exercer de fo rma completamente independente dos outros aspectos que constituem a realidade humana.

    H, no entanto. um aspecto para o qual tudo parece se dirigir, ou do qual tudo deriva - e o ponto em que se torna interessante uma comparao e ntre Descartes e Montaigne. o Eu que constata a relatividade. a conscincia que passeia pelas d iferentes formas tia existncia do homem. Mas a conscincia no encontra repouso em nenhuma delas. seja do ponto de vista da certeza cientlifa. seja da perspectiva dos princpios filosficos, seja ainda no plano das regras morais. Em tudo a aspirao de universalidade se choca com a variabilidade dos costumes. das opinies e das crenas. Portanto. no h cnmo buscar a certeza em qualquer das afirmaes humanas. Quanto mais dogmtica a crena, tanto mais se constata nela a fora da tradio, dos preconceitos e das contlies hist ricas que re lativizam o conhecimento.

    Resta ento subjetividade urna espcie de estado nmade: percorrer toda c; as certeza.s estabelecidas pelo homem mas sem se estabelecer. por sua vez, em nenhuma delas. No h um ponto de apoio. no h um lugar de partida nem um objetivo a que se chegar. Esse percurso im:essante caracteriza a supremacia da dvida sobre a certeza. Isso significa que o Eu que constata a variao muito mais um foco irradiador de dvida do que de certeza. Embora o Eu tenha o pri-viloio de refletir sobre toda essa variao. nem por isso ele se conhece melhor do ; ue conhece as outras coisas. Nem mesmo o Eu um ponto fixo. pois no apresenta aquela unidade que a noo tradicional de verdade requer. Assim. ape-sar de ser a reflexo subjetiva a apontar a relatividade das certezas. e la mesma se v atingitla por essa relatividade. O Eu. portanto, tem o privilgio da reflexo. mas no tem a fi rmeza do fundamento.

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    EM BUSCA DA CERTEZA Descartes busca a consistncia 0() fu ndamento. No incio da Primeira Me-

    ditao Metafsica e le declara estar. como Arquimedes. procura de um ponto fixo que lhe permita levantar o mundo. A dvida a procura desse ponto fixo. Existe um projeto anterior ao exerccio da dvida, que o projeto de recons-truo do saber; a dvida est a servio desse projeto. e o seu sentido deriva da finalidade que e la deve cumprir.

    Descartes se distingue dos cticos acadmicos na medida em que no julga que a certeza seja impossvel de atingir. Para e le, a matemtica a prova de que a razo humana compatvel com a verdade. O projeto de reconstruo do saber s tem sentido a partir da convico de que o intelecto humano capaz de atingir a verdade. Por isso, a dvida no tem sentido por si mesma; no se trata de culti-var a indiferena a partir da impossibilidade de distinguir o verdadei ro do falso. O sentido da dvida deriva de algo que a ultrapassa e at mesmo. sob muitos aspectos. lhe contrrio: o mtodo enquanto caminlw que leva verdade.

    No entanto. Descartes no cultiva a dvida apenas como forma de percorrer as certezas infundadas e constatar a relatividade daquilo que os homens tm admitido como verdade. A dvida um percurso com direo -~-. e objetivo, que consiste precisamente no ponto de chegada como ponto fixo,

    pois se o ponto de chegada da dvida for um ponto fixo, ele ser o ponto de partida do conhecimento.

    O carter metdko e provisrio da dvida cartesiana faz com que, por mais paradoxal que possa parecer, ela tenha de ser mais radical do que a d-vida de Montaigne. Pois no se trata apenas de abalar as certezas; trata-se de destruf- las para recomear inteiramente. Por isso, como vimos, Descartes no se contenta em abalar as certezas sensveis: ele invalida o fundamento sensvel do conhecimento, a certeza das certezas materiais. O que resta aps a dvida cartesiana no somente a desconfiana em relao s verdades adquiridas: o vazio que se segue destruio sistemtica de todas as certeza~ por via da recusa dos procedimentos pelos quais essas certezas foram adquiridas.

    " Por isso a dvida de Descartes, embora metdica e provisria, no fingi-da. preciso descre r radicalmente do conhecimento adquirido sem mtodo para aceitar inteiramente o novo processo metdico de construo da cincia. essa profunda autenticidade da dvida que dar absoluta segurana quanto ao carter inabalvel da certeza. principalmente da primeira rerte::.tl .

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  • 3 A construo da filosofia

    CRTICA DO ARISTOTELISMO TOMISTA: FSICA E METAFSICA 0 SENTIDO DA CRTICA

    Na origem do projeto cartesiano, e tambm como sua fora geradora, podemos colocar um trabalho crtico, entendendo por isso uma reviso do saber tradicional. Oe5tcartes realiza es~e trabalho por meio da dvida metdica a que j nos referimos. No se pode situar o projeto cartesiano dentro da histria tio pensamento sem esclarecer primeiramente o significado desse ato de suspenso de juzo sobre o valor de verdade de todos os conhecimentos herdados da tra-dio. J sabemos que Descartes no julga neccss:rio. para levar a cabo essa suspenso, examinar efetivamente todos os conhecimentos at ento ace itos como verdadeiros. mas simplesmente recusar todos eles a fim de empreender de incio a construo do saber.

    No entanto, o trabalho filosfico de Descartes repousa sobre a refutao, ao menos implcita, de certos conceitos-chave da tradio aristotlico-tomista, ou seja, da sntese elaborada principalmente por So Toms de Aquino, no s~culo XIII, entre a filosofia de Aristteles e a doutrina crist, e que permanec1a ainda muito viva na poca de Descartes. O exame da refutao cartesiana da filosofia aristotlico-tomista, que na verdade mais uma substituio de concei-tos tradicionais pelas idias do prprio Descartes. pode nos ajudar a entender as modificaes profundas que Descartes introduz nos fundamentos da c incia.

    Entre os conceitos cuja refutao se pode seguir desde os primeiros escri-tos de Descartes est o de .forma substancial, um dos alicerces da filosofia da nature:la tomista.

    0 OBJETO DA CRTICA Em Aristteles h dois pares de noes que desempenham funo estratgi-

    ca: forma/matria e ato/potncia. A matria o indeterminado que se dctennina ao receber uma forma. A potncia a possibilidade. em si meramente indeterminada, que se realiza concretamente pela determinao de um ato. Uma substncia , pois, potncia atualizada. ou matria que ganha uma determinada forma. tornan-do-se, ento, algo. Toda substncia compe-se de forma e matria, e a forma precisamente o ato que faz com que a substncia exista de maneira detenninada

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    Ora. esse ato constitutivo da substncia. pelo qual e la existe. a forma suhswn-cal ou a fonna da substncia. essa forma que faz com que alguma coisa ex ista. primeiramente, como substncia (essncia) qual se acrescentaro os acidentes. que so as determinaes no-essenc iais da subst!incia. Essa noo descmp1.!11ha papel de destaque no conhecimento dentro da filosofia aristotlicoAomista, pois chegando ao conhecimento da fonna enquanto ato constitutivo da substncia que podemos conhecer a essncia e, de maneira geral. a estrutura essencial do univer-so. Conhecer uma substncia conhecer aquilo que a identifica como ela mesma e no outra: conhecer sua forma substancial.

    Ora, uma vez que cada substncia tem uma forma ou uma essncia que a identifica, nada seria mai. estranho a Aristteles do que conceber a fsica como um conjunto de leis da natureza vlidas para todos os fenmenos, indept:n-dentemente da essncia de cada um. O estudo da natureza a compreenso da essncia dos fenmenos. da realidade em seus mltiplos movimentos. e no a explicao das leis que regem os conjuntos de fenmenos independenteme nte da e~pecificdade de cada um. A natureza se apre~enta primeiramente 1tn sua caracterstica mais marcante e mais intrigante: movimento ou mudana. EstuJar a natureza ser principalmente considerar o movimento ou a mudana. Por esses termos Aristteles compreende no s as vrias passagens de um estado a outro, como tambm a gerao de algo que no ex1stia, o nascimento. Isso importante na medida em que. estando a gerao de um novo ser compreendida na categoria de movimento ou mudana, possu uma d iferena apenas de grau em relao a outras mudanas e movimentos, como, por exemplo, mudana de qualidade ou movimento de um lugar para outro.

    Mas, para Aristteles, o nascimento ou gerao aparece como a mudana mais relevante que ocorre no mundo fsico. uma espcie de modelo de rodas as mudanas e movimentos. a partir dela que todas as outras podem ser concebidas e compreendidas. Assim corno o nascimento nos faz presenciar o aparecimento de uma substncia que no existia antes, assim tambm uma mudana de 4ualiadc se assemelha ao nascimento de uma nova propriedade numa dada substncia. Por isso, o nascimento a mais elevada e a mais intensa das transfonn aes, o movi-mento mais notvel que de alguma maneira recobre e explica todos os outros.

    Toda mudana, para Aristteles, a gerao de um efeito por uma causa. A conseqncia dessa concepo muito importante para toda a fsica. Sendo esta o estudo do movimento em termos de causas e efeitos, esse estudo vai se colocar em todos os casos do ponto de vista de uma analog ia com o nascimento ou a gerao de um ser, para compreender todos os movimentos ou mudanas. Costuma-se dizer que a fsica de Aristteles tem uma caracterstica biolgim. e aqui est a razo: toda mudana deve ser considerada por analogia com 0

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  • mecanismo de reproduo no que diz respeito sua causa. Mudar ou movi-mentar engondrar, isto , fazer nascer. Ora. como conhecer, para Aristteles, identificar rausus, a fsica deve ser entendida como a explicao do movimento pelas sua!> causas. E sendo o movimento concebido por analogia com o engen-uramento 11u o nascimento, ele s poder ser estudado por meio da identificao ue suas causas ou princpios nos diversos seres existentes.

    Os cres se dividem em naturais e artificiais. Natural todo ser que no foi fabricado pelo homem. Sua caracterfstica possuir em si mesmo o princpio ele movimento ou de mudana. Os animais e as plantas efeluam a partir de si mesmos o~ movimentos de gerao. corrupo. crescimento. alterao de qua-lidades etc . Mesmo o minerais devem ser entendidos dessa maneira: o ferro tende para baixo por ser pesado, portanto por uma qualidade que lhe interna, inerente. Ter em si o princpio de movimento ter em si o princpio de vida. Todo processo de mudana e de movimento um processo de vida, c isso par-ticu larmente constatado com mais nitidez nos animais superiores e no h1)mcm, nos quais o princpio interno de mudana e movimento possui maior variao e complexidade. Mas o mesmo em todos os seres naturais.

    Portanto. as propriedades que os seres naturais po, suem devem ser con-cebidas l:Ornu derivadas desse princpio, por analogia com a maneirn pela qual as operaes do ser vivo derivam do princpio que o define como ser vivo, que o ser natural mais perfeito. Esse princpio a alma. Assim. toda a fsica deve estudar os movimentos e as mudanas a partir desse paradigma de princpio de movimento e mudann que a alma. Ora, a alma a forma substancial do homem. Em cada substncia deve, pois, existir um princpio de movimento e de mudana. e ao mesmo tempo de conservao da substncia no seu ser. que a forma substancial de cada uma. J se v que a concepo de forma substancial por analogiu com a alma faz com que exista um terreno comum entre a fs ica c a psicologia. O estudo de qualquer ser natural, do homem ao mineral. deve levar em conta, para considerar a "natureza" desse ser- ou o que ele "substan-cialmente'' - . o aspecto que hoje chamaramos de "psicolgico", mas que para Aristteles e para os aristotlicos medievais era apenas uma fora viva inerente a tudo o que natural. A natureza de uma coisa a sua forma. Quando essa coisa uma sub$tncia, a natureza a forma substancial como seu princpio de vida.

    Descartes julgava tudo isso inaceitvel, c ele no foi o primeiro a ter essa atitude. Nn verdade, todo o trabalho de Galileu. com o mtodo que o acompanha e a concepo de natureza em que se baseia, envolve o abandono da noo de forma substancial. uma vez que despreza a considerao das essncias qualitativas no estudo dos fenmenos naturais. A compreenso das essncias substituda pela viso das relaes matcmtkas que os fenmenos mantm entre si. Nesse sentido,

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    todos so considerados homogneos do ponto de vista do conhecimento. Mas a crtica de Descartes noo de forma substancial no fruto de uma reflexo sobre o trabalho de Galileu. Ela tem um alcance metafsico mais amplo.

    0 ALCANCE DA CRnCA O primeiro texto em que aparece expl icitamente a crtica cartesi

  • se complementam na formulao do novo ideal de conhecimento, que supe um universo de objetos uboruveis matematicamente, isto , apenas em termo!. de figura. extenso e movimento. sem que se considere qualquer essncia ou prin-cpio interno no acessvel ao mtodo matemtico. Uma pluralidade de objetos considerauos a panir de seus princpios interno:. de vida no pode ter lugar num universo concebido unicamente em termos de ordem e medida.

    Isso significa que: 1. o procedimento pelo qual a reflexo cartesiana chega a estabelecer a dou-

    trina da absoluta distino das substncias praticamente coincide com o procedimento crtico de demolio das fom1as substanc.:iais.

    2. a independncia da substncia extensa e sua absoluta distino em relao ao pensamento configuram a possibilidade de uma fsica que empregue o mtodo matemtico, e ao mesmo tempo acarretam o fato de yuc o co-nhecimento do mundo fsico dar-se- apenas em termos geomtricos, pois Descartes ainda no concebe uma fsico-matemtica que possa integrar completamente a dinmica do movimento c da mudana. Jsso se deve ao fato de que, sendo seu mtodo geomtrico, pode considerar apenas posi-es. e no o movimento das coisas de uma posio para outra. Os dois pontos aqui assinalados nos indicam que a recusa das formas subs-

    tanciais e a conrrapartida positiva dessa recusa, que a afirmao da separao entre substncia pensante e substncia extensa. podem ser entendidas como o princpio fundador da fsica moderna.

    A separao das substncias impe a escolha do ponto inicial da constru-o da filosofia. A substncia pensante, sujeito c fundamento do conhecimento, ser esse ponto de partida.

    O ALCANCE DA SUBJETIVIDADE

    DA DVIDA CERnZA Em Descartes o processo de dvida , como j vimos, metdico porque, a

    bem dizer, duvidar procurar o fundamento, um "ponto fixo e seguro'' no qual se possa apoiar a reconstruo da cincia. Embora Descartes subscreva implici-tamente a demolio do saber tradicional empreendida pelo ceticismo de Mon-taigne. a diferena entre o pensador renascentista e o projeto canesiano toma-se evidente quando comparamos o contexto cultural de um e de outro. Montaigne se move ainda num universo regido pelas concepes cosmolgicas aristotlicas mns j em crise. tendo em vista o movimento cientfico moderno. Descartes j pensa no mbito de uma cincia praticamente triunfante, pois na sua poca a reao contra a cosmologia aristotlica algo comum entre os melhores espritos. Isso

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    vai repercutir na concepo cartesiana de subjetividade. Assim como a dvida em M~ntaigne visa apen.as ao abalo das certezas, sem a projeo de uma cincia llliC reststa ao ataque cttco, tambm a subjetividade nele , por essa mesma ral.o. flutuante e imprecisa. Por satisfazer-se com a c.Jvida, no necessita dos contornos slidos~ funda~cntadores que receber em Descartes. Neste ltimo, a subjetivi-dade ~at cum~nr o papel daquele ponto fi x:o c seguro de que j

  • }

    ) )

    0 ENCONTRO DO PENSAMENTO possvel observar que, embora o pensamento se coloque como extstncia

    indubitvel para si prprio. na verdade ele no definido. como no deixaram Jc observar os contemporneos de Descartes. Mas h duas razes que o filsofo evoca para mostrar que a falta de definio no caso no representa inconsistncia do raciocnio nem compromete a verdade que foi encontrada. No entender dos crticos de Descartes. seria preciso definir os termos pensamemo e existncia. con-lidos na proposio penso. logo existo. Em primeiro lugar, o pensamento o caso privilegiado em que o conhecimento coincide perfeitamente com o seu objeto. Em segundo lugar. pensamento e existncia fazem parte daquilo que constitui para Descartes as noes comuns. primeiras e indefinveis, evidentes por si. Qualquer tentariva de explicao dessas noes somente as tornaria mais obscuras.

    O intuitivismo de Descartes dispensa que se leve a anlise dos termos mais longe do que uma clarificao psicolgica da evidncia conceitual, recusando, por exemplo. um procedimento analtico absolutamente redutor identidade l-gica. Para Descartes, todos sabemos o que queremos dizer quando empregamos as palavras existncia e pensamento, sem que para tanto tenhamos de explicitar tais termos em definies logicamente anteriores a eles.

    Ainda assim podemos afirmar que o pensamento nada mais que o conjunto dos contedos da conscincia - e requisito essencial o estado consciente desses contedos. No existe. portanto. uma distino enlre os fatos internos. pela qual uns seriam pensamentos e outros no. Toda conscincia interna pensamento: por isso, o pensamento recobre toda e qualquer representao. As representaes. por-tanto, permanecem com o valor de contedos de conscincia. e isso ser o campo inicial em que se exercer o mtodo por meio de uma inspeo do esprito.

    O fato de que tudo consider-ddo. antes de mais nada, como pensamento tem profundas implicaes do ponto de vista da anlise da conscincia. Significa. por exemplo. que no preciso jazer uma distiniin em termos de gnero emre o pe11swne11to e o sentimento. No se deve considerar. des< e ponto de vista. a existncia de duas faculdades distintas na alma. A representao implicada no sentimento faz. com que senlir seja pensar. ou que sentir seja primeiramente pen-sar. ou, ainda. que o pensamento seja condio da representao dita sensvel. Do ponto de vista puramente representativo posso, portanto, abstrair o julgamento acerca da verdade ou falsidade do que veiculado pela imagem: nem por isso a representao enquanto tal deixar de existir na sua verdade de representao que no outra seno a verdade do pensamento. Isso no quer dizer que. no caso do sentimento e da sensao, o corpo e os sentidos no desempenhem papel algum. Como estado de conscincia. entretanto, interessa a Descartes ver nesse estado primeiramente a conscincia do sentimento, o que equivale a pensamento.

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    A variedade dos estados de conscincia no exclui, portanto,

  • Essa afirmao bastante intcn~a do pensamento como nica propriedade por enquanto descoberta tem uma contrapartida, que a atualidade do pen~umento. Penso, logo existo significa tambm existo enqttw11o penso. A vinculao e ntre pensamento e existncia total precisamente porque o pensamento a nica realidade acerca da qual posso verdadeiramente afirmar que existo. Essa conseqnc ia da ligao estreita entre pensamento e existncia faz. com que o eu penso no possa por enquanto se afi rmar como um fundamento cont nuo no tempo nem mesmo ser objeto de definio num sentido mais rigoroso c cons-tante. o que poderia incluir a constatao de outras propriedades alm do puro pensamento, como j mencionamos. So esses problemas que nos re metem questo da natureza do ser pensante.

    CONHECIMENTO DA NATUREZA DO Eu PENSANTE O fato de a anulao do corpo no processo da dvida no impedir que o

    pensamento seja conhecido com toda certeza mostra que existe uma prio ridade do conhecimento da alma sobre o do corpo. Isso j posso constatar mesmo antes de saber com certeza que existe m corpos, devido absoluta independncia do pensame nto. O que est, alis, em perfeito acordo com o mtodo, pois natural , a partir das regras de conhecimento j estabelecidas, que o esprito, na sua sim-plicidade c autonomia, seja conhecido antes que os objetos caracterizados por composio e interdependncia. como o caso dos contedos das percepes sensveis. Essa prioridade se reflete no s na possibi lidade de conhecer o esp-rito independentemente do corpo, como tambm na maior facilidade (que aqui significa maior simplicidade) do conhecimento do esprito. Dois movimentos Hustram essa afirmao:

    t . A anlise do conhecimento "naturaJ" que tenho de mim mesmo mostra que esse conhecimento insustentvel diante das razes de duvidar. Nenhum atributo corpreo pode legitimamente faz.er parte do conhecimento que busco em relao a mim mesmo.

    2. o atributo pensamemo. no entanto, no pode ser separado de mim, sendo por enquanto o nico que me define. Os modos em que se d o pensamen-to, tais como sentimento e imaginao, podem ser considerados como outros tantos atributos que devem ser acrescentados ao conhecimento de mim mesmo? No, se considerarmos os aspectos em que esses modos de-pendem daquilo que anteriormente foi colocado e m dvida. Por exemplo. 0 sentime nto: no se pode sentjr sem o corpo. e por isso o sentimento, enquanto modo de pensamento. no pode a inda ser considerado comer forma especfica de tomar contato com corpos por meio de rgos senso-

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    riais. Ma~ naquilo em que o sentimento implica o pensar (represe111ao do sentir), e le se reduz a um contedo me ntal que. e nquanto pensamento. j foi constatado na sua espet:ifil:idade. Sendo assim. a representao do sentimenlo se beneficia da certeza du pensam e nto. nessa mesma linha de racioc nio que se situa a excluso da imaginao

    como meio de adquirir conhecimento sobre mim mesmo. Na medida em que amaginar produzir representaes ligadas ao domnao do corpreo. o contedo delas nada pode acrescentar ao conhecimento de mim mesmo enquanto ~er pensante que no caia sob a interdio das razes de duvidar. Por isso. imaginar no acresce nada de positivo ao conhecimento do Eu pe nsante. Aqui tamb m s posso considerar a imaginao como um modo de pensamento e, nesse sentido. reduzir as re presentaes imaginativas quela homogeneidade fundamental de todos os contedos mentais.

    Os modos em que se d o pensamento no constituem, po is, faculdades au-tnomas nem acrescentam algo mais quilo que j os engloba a todos: o prprio pe nsamento. De maneira que, aps o inventrio dos modos, permaneo ainda com o que tinha no incio. Mas sei agora que ex iste uma variedade de modos de pensame nto, correspondentes s modalidades de re presentao. sem que isso em nada inte rfira na unidade do pensamento. O pensame nto toda c qualquer representao na mente, e no consideramos ainda a questo do valor objetivo que possam ter tais representaes.

    Ocorre, no entanto, que temos a inclinao natural para pensar que aquilo que se apresema imaginao, devido aos conto rnos corpreos prprios da imagem, deveria estar dotado de maior nitidez e ter precedncia em re lao quilo que no pode cair sob a imaginao. por isso que Descartes tratar de mostrar que, mesmo no caso mais favorvel a essa concepo. que o ca!>o do conhecimento dos corpos. o pensamento de uma essncia que no pode aparecer imaginao tem precedncia e muior clareza intelectual.

    Para isso Descartes realiza a anlise de um hipottico pedao de cera que seria submetido a todas as variaes da percepo sensvel: duro, rnas pode to rnar-se mole se aquecido: seu cheiro pode mudar; pode assumir as mai!> variadas formas: pode liquefazer-se etc. No h propriedade sensvel que no possa mudar e . no entanto, dizemos que a mesma cera o objeto submelido a todas as variaes.

    Mas como posso reconhecer que a mesma cera se todas as suas carac-tersticas sensveis mudam? Precisamente porque a ide ntidade que o obje to mantm no depende dessas variaes, mas de algo que no se apresenta em si mesmo percepo sensvel. Pois o que permanece sob as variaes uma certa extenso: na verdade, o ser exlenso da cera. Mas n~ essa ou aquela

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  • )

    extenso particular, lquida ou slida. quadrada ou triangular. a extcn:;;o como caracterstica essencial. no perceptvel em si. mas apenas por meio de acidentes ou de circunstncias nas quais o objeto se apresenta. Essa extenso no depende dos sentidos nem da imaginao. mas apenas do pensamento no sen