Silva - Por Amor a Revolta 2008

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374 SILVA, Nilson Adauto Guimarães da. A revolta na obra de Al- bert Camus: posicionamento no campo literário, gênero, estética e ética. (Tese de Doutorado em Letras Neolatinas. Rio de Ja- neiro, Faculdade de Letras da UFRJ, 2008, 210 p.) POR AMOR À REVOLTA: NILSON ADAUTO DIANTE DA OBRA DE CAMUS Se uma tese deve conter uma tese, se uma tese deve oferecer uma nova perspectiva sobre seu corpus, Nilson Adauto da Silva é autor de uma bela Tese de Doutorado em Letras Neolatinas. Mas, se uma tese não pode ser confundida com um ensaio, então já se- ria o caso de reconsiderar-se essa certeza. A tese de Nilson Adauto, Professor Adjunto da Universidade Federal de Viçosa, realmente passa a ser uma obra sem a qual não é mais possível estudar Camus. Seu ingresso na fortuna crítica, no entanto, não se dá por outra via que não a das idéias. Trata-se de um ensaio que contém uma tese, ou poderíamos considerá-lo uma tese cuja linguagem agradável e de generosa clareza pode irmaná-la aos melhores ensaios críticos. O ensaio parte de uma premissa fundamental: a revolta e o absurdo são dois dos motores de toda a obra de Camus. Não é a tese de Nilson Adauto que o diz, mas este seu resenhista e leitor, a quem a tese tão claramente mostrou isso. O autor apresenta como “fio condutor” * da obra camusiana o mito, em especial o mito clássico. No esquema proposto pela te- se, o absurdo se desenvolve sob a égide do mito Sísifo, e a revolta toma como epítome a figura de Prometeu. Esses signos que tam- bém referenciam e reverenciam a identidade européia norteiam a urdidura de uma literatura que não reconheceu suas fronteiras com a filosofia. Nilson Adauto afirma que Camus “desenvolveu de maneira própria” os mitos gregos de que se vale. Poderíamos, contudo, a par- tir da própria tese, sugerir que Camus tenha capturado os elementos que, nas versões dos mitos sobre os quais ele mostra tanto conheci- mento, tenham interessado de forma plural aos projetos de inserção do humano no centro das especulações e ações do próprio homem. A tese propõe uma decodificação do uso dos mitos gregos por Camus, e, para isso, investiga seu ambiente de formação e seu * (cf. p. 34) ALEA VOLUME 10 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2008 p. 374-376

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    SILVA, Nilson Adauto Guimares da. A revolta na obra de Al-bert Camus: posicionamento no campo literrio, gnero, esttica e tica. (Tese de Doutorado em Letras Neolatinas. Rio de Ja-neiro, Faculdade de Letras da UFRJ, 2008, 210 p.)

    por amor rEvolta: nilson adauto diantE da obra dE Camus

    Se uma tese deve conter uma tese, se uma tese deve oferecer uma nova perspectiva sobre seu corpus, Nilson Adauto da Silva autor de uma bela Tese de Doutorado em Letras Neolatinas. Mas, se uma tese no pode ser confundida com um ensaio, ento j se-ria o caso de reconsiderar-se essa certeza.

    A tese de Nilson Adauto, Professor Adjunto da Universidade Federal de Viosa, realmente passa a ser uma obra sem a qual no mais possvel estudar Camus. Seu ingresso na fortuna crtica, no entanto, no se d por outra via que no a das idias. Trata-se de um ensaio que contm uma tese, ou poderamos consider-lo uma tese cuja linguagem agradvel e de generosa clareza pode irman-la aos melhores ensaios crticos.

    O ensaio parte de uma premissa fundamental: a revolta e o absurdo so dois dos motores de toda a obra de Camus. No a tese de Nilson Adauto que o diz, mas este seu resenhista e leitor, a quem a tese to claramente mostrou isso.

    O autor apresenta como fio condutor* da obra camusiana o mito, em especial o mito clssico. No esquema proposto pela te-se, o absurdo se desenvolve sob a gide do mito Ssifo, e a revolta toma como eptome a figura de Prometeu. Esses signos que tam-bm referenciam e reverenciam a identidade europia norteiam a urdidura de uma literatura que no reconheceu suas fronteiras com a filosofia.

    Nilson Adauto afirma que Camus desenvolveu de maneira prpria os mitos gregos de que se vale. Poderamos, contudo, a par-tir da prpria tese, sugerir que Camus tenha capturado os elementos que, nas verses dos mitos sobre os quais ele mostra tanto conheci-mento, tenham interessado de forma plural aos projetos de insero do humano no centro das especulaes e aes do prprio homem.

    A tese prope uma decodificao do uso dos mitos gregos por Camus, e, para isso, investiga seu ambiente de formao e seu

    * (cf. p. 34)

    alea VOlUMe 10 NMeRO 2 JUlHO-DezeMBRO 2008 p. 374-376

  • 375HeNRIQUe CaIRUS | Por amor revolta: Nilson adauto diante da obra de Camus

    universo referencial. O leitor da tese convidado s leituras de Camus, as que ele realizou, e a um mergulho em seu esprito. De uma educao baseada num roteiro que se pode identificar como neo-tomista, comum nas melhores escolas francesas, Nilson Adau-to identifica, como herana, o amor pela razo despertada por Plo-tino e o sentido maior da angstia trgica tal como a expressa a obra de Santo Agostinho.

    A formao neo-tomista, no entanto, no garantiu a Camus um convvio pacfico com o catolicismo. Para seguir a tese, ao mes-mo tempo em que ele demonstra uma simpatia pelo cristianismo, considerando-o [...] uma espcie de herosmo espiritual, h, por outro lado, uma desconfiana ante o providencialismo cristo.

    Desde o primeiro escrito de Camus vindo luz, a f e a razo, segundo Nilson Adauto, so dois extremos que no satisfazem sua voracidade de saber e nem sua gana de viver.

    O mesmo binmio que, segundo Nilson Adauto, serve de es-pinha dorsal obra de Camus, sustenta tambm a sua tese. Absur-do e revolta conduzem a argumentao da tese, e, ao passo que se apiam em certa leitura peculiar dos elementos mticos da tradio clssica, conduzem, em seu outro extremo, aos inevitveis confron-tos que a sofrida primeira metade do sculo XX impunha. Conflitos tambm e talvez sobretudo de idias. assim que tanto a revolta quanto o absurdo levam Camus a uma relao com Jean-Paul Sar-tre que Nilson Adauto soube explorar de forma incomum.

    Escrevo aqui incomum, esperando com isso poder dizer que essa famosa querela, to explorada poca e mesmo depois pe-la imprensa dita cultural, no comumente pensada pelo ponto de vista proposto pela tese. Desde o comeo de sua exposio sobre essa querela, Nilson Adauto a analisa enquanto discurso, a partir da noo de campo proposta por Pierre Bourdieu. E, para che-gar a isso, o texto de Nilson parte de consideraes sobre a forma-o de Sartre, at chegar a propostas de novas perspectivas sobre a posio filosfica de Camus perante o existencialismo, que o inte-ressa, segundo a Tese, tanto quanto fale sobre o tema do absurdo. Da mesma forma, a tese prope que o pensamento camusiano te-nha se divorciado do existencialismo em nome de uma esperana, ou, segundo o texto de Nilson Adauto, quando acredita que tais concluses so contraditrias s premissas, uma fuga que s pode levar ao transcendente, [] histria absolutizada, ou [a] um prin-cpio racional unificador do real, o que, lembra o texto da tese, Camus considerava um suicdio filosfico.

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    Ao falar da querela Sartre-Camus, Nilson Adauto, com um texto que estrategicamente oscila entre a narrao, a descrio e a reflexo, desenha com beleza e preciso uma cena enunciativa. E ainda assim, no o desenho a bico de pena que constitui a sua maior contribuio para o estudo da obra de Camus. Tampouco o a extensa exposio sobre o problema taxonmico de gnero que a obra de Camus suscita. Mesmo porque a mtua freqentao dos gneros na obra camusiana explicada, pela tese, da seguinte ma-neira: se fosse adotada uma apresentao sistemtica demais, a fi-losofia do Absurdo e da Revolta seria deformada.*

    Revolta e Absurdo, na tese, sempre em caixa-alta, no so pa-lavras-chave da obra de Camus, porque no redundam em tema; no so cifras, porque, assim como a tese de Nilson Adauto, a obra camusiana clara, e no so metas, porquanto no esto, em ne-nhum sentido, no fim. So, pelo que comprova to bem a tese, os sustentculos de um pensamento e de uma ideologia que no en-contrariam conforto em nenhuma classificao, mas que encon-tram, nesses dois pilares, seu desconforto ideal, portanto, o seu mo-tor, como j foi dito.

    Sobraram, na tese, algumas poucas pginas, umas seis ou sete das duzentas que formam o todo, justamente as seis ou sete prxi-mas do final, sem as quais o texto ganharia um pouco. Isso porque so nessas poucas pginas em que o autor parece querer atestar a pertinncia imediata de uma tese da qual o leitor j teria lido qua-se duzentas pginas que se justificam, cada uma delas, por si. Nes-se momento, entra um sculo XXI um tanto torto e um Brasil que no tem muito motivo de estar ali.

    Mas o tom prevalecente logo retomado, e o que agrada a todos temos um final que realmente atinge as mentes e os cora-es dos leitores de Camus: a confluncia entre a tica e a esttica reafirma os dois baluartes de sua obra e ressoa o ideal helnico que o sub-captulo Camus e a Grcia clssica ilustra.

    Ler a tese de Nilson Adauto , pois, adiantar-se na leitura de um texto que, publicado para alm das pobres prateleiras institu-cionais, ter a projeo de um ensaio com potncia para tornar-se referencial.

    Henrique Cairus (UFRJ)

    * (p. 160)