Silva, Ricardo - Hobbes e a Liberdade Repblicana de Skinner

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Crítica do Dr. Ricardo Silva sobre Hobbes e a Liberdade Repblicana de Skinner.

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    [19]CitadoemSkinner,Hobbes e a liberdade republicana,op.cit.,p.111.

    [20]Ibidem,p.112.

    [21] Ibidem,p.113.

    [22]Ibidem,p.116.

    modificaes menores, ao menos duas importantes inovaes so introduzidas nessa obra.

    A primeira decorre da nova postulao de Hobbes de que a nica coisa verdadeira no mundo o movimento19. A liberdade passa ento a ser definida como a ausncia de todo e qualquer impedimento ao movimento dos corpos. No h dvida de que uma compreenso adequada de tal definio requer que se esclarea o que de fato conta como impedimento ao movimento. Hobbes referese a duas modalidades de impedimentos capazes de subtrairnos a liberdade: os impedimentos externos e os impedimentos arbitrrios. Os impedimentos externos so aqueles causados por obstculos surgidos de causas exteriores ao corpo em movimento. possvel afirmar, por exemplo, que as guas de um rio sofrem um impedimento absoluto para moverse livremente alm dos limites das margens do rio. Analogamente, no que se aplica liberdade humana, dizse, por exemplo, que uma pessoa encerrada numa priso est privada da liberdade de moverse alm dos limites das grades da priso. J a noo de impedimento arbitrrio indica que a causa que impede o movimento no mais exterior ao corpo, porm interna a ele. Se os impedimentos externos criam obstculos absolutos ao movimento dos corpos, os impedimentos arbitrrios, conforme os define Hobbes, no impedem absolutamente o movimento, mas o fazem per accidens, isto , por nossa prpria escolha20. O fato de esse tipo de impedimento derivar de uma escolha indica que seu mbito de aplicao a liberdade humana. O impedimento arbitrrio liberdade surge quando uma pessoa se abstm de realizar determinada ao mesmo quando tem a capacidade e o desejo de agir. Neste ponto, como observa Skinner, a questo que emerge a seguinte: que tipo de fora pode ser considerada capaz de nos impedir de querer executar uma ao que est em nosso poder. Hobbes responde que a fora em questo procede de nossas paixes, e acima de tudo a paixo do medo21.

    A segunda inovao introduzida em Do Cidado a ideia de liberdade civil. Nada semelhante pode ser encontrado nos Elementos da lei. Na verdade, a lgica argumentativa que animava essa primeira sistematizao da teoria poltica de Hobbes no somente ignorava, mas tambm vetava a concepo de qualquer forma de liberdade alm da liberdade natural. Skinner argumenta que Hobbes, influenciado pelo clima poltico e ideolgico que o levou deciso de exilarse, procede reviso dos Elementos da lei de modo a apresentar sua defesa da soberania absoluta em um estilo mais conciliador e menos inflamado22. A admisso da possibilidade de os indivduos preservarem alguma forma de liberdade mesmo depois da efetuao do pacto que os retira do estado de natureza requer claramente a renncia tese de que a

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    [23]CitadoemSkinner,Hobbes e a liberdade republicana,op.cit.,p.117.

    [24]Ibidem,p.143.

    [25]CitadosemSkinner,Hobbes e a liberdade republicana,op.cit.,p.141.

    liberdade o estado de quem no sdito. Contudo, se no se pode mais afirmar que qualquer forma de governo suprime a liberdade, tambm no se sustenta a crena de que apenas determinadas formas de governo favorecem a liberdade, ao passo que outras levam necessariamente escravido. Com base na ideia de liberdade como ausncia de impedimento externo ao movimento, Hobbes passa a afirmar que todos os servidores e sditos que no esto acorrentados nem encarcerados so livres23. Ademais, independentemente da forma de governo, haver sempre um nmero quase infinito de aes que no so nem prescritas nem proibidas, constituindo a liberdade inofensiva dos sditos. Por outro lado, com base em sua concepo de impedimento arbitrrio ao movimento dos corpos, ele reconhece que as leis civis constituem uma limitao liberdade, uma vez que o medo das consequncias previsivelmente advindas de sua infrao levaria os indivduos ao refreamento de aes que eles tm vontade e capacidade para realizar. Em suma, medo e liberdade seriam incompatveis.

    Porm, conforme o historiador ingls, a formulao definitiva do conceito hobbesiano de liberdade s viria a acontecer no Leviat. Hobbes tinha conscincia de que precisava enfrentar os tericos da liberdade republicana em seu prprio terreno24. Tal enfrentamento traduziuse na disputa pelo sentido da expresso homem livre. O discurso republicano contra a monarquia absolutista (e em grande medida contra a monarquia tout court) fazia da ideia de homen livre sua principal arma de luta ideolgica. Traduo da expresso latina liber homo, o termo freeman circulava amplamente entre os republicanos ingleses contemporneos de Hobbes. Viver sob o domnio absoluto de um monarca seria incompatvel com a manuteno do status de homem livre. nesses termos que se expressam, por exemplo, John Milton e John Hall, dois dos mais notveis escritores republicanos da poca. Segundo Milton, se no podemos ter a expectativa de alcanar nossos objetivos sem o dom e o favor de uma nica pessoa no somos nem Repblica, nem livres, somos vassalos de posse e domnio de um senhor absoluto. John Hall ainda mais categrico ao afirmar que viver sob uma monarquia viver como um escravo25.

    Skinner procura mostrar como a reviso do conceito de liberdade no Leviat decorre do esforo de Hobbes para desacreditar a noo de homem livre dos republicanos. Consolidando desenvolvimentos anteriores de sua reflexo sobre o tema, Hobbes parte da definio do que ele considera a liberdade em sentido prprio, aplicvel tanto a criaturas irracionais e inanimadas como a racionais. Em seu sentido prprio, a liberdade definese exclusivamente pela ausncia de oposio ao movimento. Esta frmula j aparecia em Do Cidado. Agora, porm, a ideia de oposio (ou impedimento) restringida para referirse apenas a barreiras externas ao movimento dos corpos. Hobbes

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    [26]Hobbes, Thomas. Leviat. SoPaulo:MartinsFontes,2003,p.180.

    [27]Ibidem,p.184.

    faz desaparecer o conceito de impedimento arbitrrio como uma possvel causa da reduo da liberdade, uma alterao que traz profundas consequncias em sua argumentao. Agora medo e liberdade no so mais incompatveis, pois resta evidente que o medo no pode ser tomado como um obstculo externo s nossas escolhas. Ao eliminar a possibilidade de tratar constrangimentos internos como restrio liberdade, Hobbes prepara o terreno para o assalto definitivo noo republicana de homem livre. A ansiedade, o medo ou qualquer outro freio de ordem psicolgica capaz de interferir nas escolhas e nos movimentos de um indivduo em situao de dependncia no constituem o tipo de impedimento que Hobbes considera contrrio liberdade. Neste caso, bem como quando se trata de um impedimento interno de ordem fsica, a exemplo do enfermo imobilizado em seu leito, no de ausncia de liberdade que se trata, mas da ausncia de poder.

    E o que dizer da lei civil? Em que medida ela pode ser tomada como um impedimento liberdade? Em Do Cidado, Hobbes j havia chamado a ateno para o fato de que sob qualquer sistema de leis h um semnmero de aes no proibidas nem prescritas pelo soberano. Ele repete esse argumento no Leviat, com a mxima de que a liberdade reside no silncio da lei. Mas agora Hobbes vai adiante, realizando uma operao decisiva para seu propsito de desvincular a liberdade da lei. Anteriormente ele havia apresentado o medo de infringir a lei como impedimento arbitrrio ao livre. Com o subsequente abandono da noo de impedimento arbitrrio, o medo perde sua funo de impedimento da ao e a lei deixa de significar restrio liberdade. Hobbes oferece como prova o fato de que mesmo diante de uma lei proibitiva ou prescritiva extremamente rigorosa restar sempre aos sditos a alternativa da desobedincia. Como sintetiza Hobbes, o medo e a liberdade so compatveis []. E de maneira geral todos os atos praticados pelos homens no interior de repblicas, por medo da lei, so aes que os seus autores tm a liberdade de no praticar26. Ora, se no h qualquer conexo necessria entre a liberdade dos cidados e a forma jurdica do Estado, deixa de fazer sentido a questo sobre qual seria a forma de Estado mais afeita liberdade. Deixa de fazer sentido tambm a resposta republicana segundo a qual somente numa repblica autogovernada, num Estado livre, a liberdade humana poderia ser assegurada. Hobbes encerra a questo afirmando que quer a repblica seja monrquica, quer seja popular, a liberdade sempre a mesma27.

    PAssAdo e Presente

    Skinner conclui sua narrativa com a sugesto de que a frmula definida no Leviat resultou em uma mudana conceitual revolucion

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    [28]Skinner,Hobbes e a liberdade re-publicana,op.cit.,p.197.

    [29]Ibidem,p.194.

    [30]Dienstag,Joshua.Manofpea-ce: Hobbes between politics andscience.Political Theory,vol.37,no5,2009,p.703.

    [31] Collins, Jeffrey. QuentinSkinnersHobbesandtheneo-repu-blicanproject.Modern Intellectual History,vol.6,no2,2009,p.365.

    [32]Silva,Ricardo.Ocontextualis-molingusticonahistriadopensa-mentopoltico:QuentinSkinnereodebatemetodolgicocontempor-neo.Dados,vol.53,no2,2010.

    [33] Skinner, Quentin. QuentinSkinner on encountering the past(interview).Finnish Yearbook of Poli-tical Thought,vol.6,2002,p.55.

    ria e em poderosa arma de luta ideolgica contra o republicanismo. Hobbes venceu a batalha28, deixando como herana uma concepo de liberdade que, na atualidade, tem sido amplamente tratada como um artigo de f29.

    A esta altura, um crtico familiarizado com a metodologia contextualista de Skinner poderia legitimamente perguntar: a afirmao de que a concepo de liberdade desenvolvida por Hobbes no longnquo sculo xvii grassa hoje como um artigo de f no levaria ao tipo de anacronismo to estigmatizado nos ensaios metodolgicos do prprio Skinner? H quem acredite que sim, considerando estranho encontrar um escritor que comeou pela insistncia na especificidade histrica de cada perodo agora vindo a defender o tipo de categoria metahistrica maniquesta que ele tanto deplorou30. H tambm os que julgam desconcertante que grande parte dos escritos de Quentin Skinner nos estgios mais adiantados de sua carreira seja informada por seus compromissos polticos e filosficos fortemente assumidos31.

    No entanto, quando se observa a trajetria recente de Skinner, seu afastamento de alguns de seus postulados metodolgicos originais no surpreende32. H pelo menos uma dcada, Skinner j afirmava que passara a encontrar mais coisas na perspectiva de uma tradio e, consequentemente, de uma continuidade intelectual do que costumava encontrar, e que isso o fez ver mais promissoramente do que costumava ver o valor atual do engajamento crtico com nossos antepassados e grandes pensadores, ao menos quanto a alguns conceitoschave que continuam a estruturar nossa vida em comum33. Mais do que qualquer outro livro de Skinner, Hobbes e a liberdade republicana reflete essa alterao na perspectiva do autor sobre a relao entre o passado e o presente da teoria poltica.

    Ricardo Silva professor do Centro de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal de

    Santa Catarina.

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