Folclore Brasileiro Artur da Silva João Filipe de Souza 3º ano D.
Silva,MarioAugustoMedeirosda D
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Mrio Augusto Medeiros da Silva
A Descoberta do Inslito: Literatura Negra e Literatura Perifrica no Brasil (1960-2000)
Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas
da Universidade Estadual de Campinas sob a orientao da Profa. Dra. Elide Rugai Bastos
BANCA
Profa. Dra. (Orientadora) Elide Rugai Bastos (Unicamp)Prof. Dr. (membro externo) Antnio Srgio Alfredo Guimares (USP)Prof. Dr. (membro externo) Alexandro Dantas Trindade (UFPR)Prof. Dr. (membro externo) Lilia Katri Moritz Schwarcz (USP)Prof. Dr. (membro interno) Renato Jos Pinto Ortiz (Unicamp)
SUPLENTES:
Prof. Dr. (membro externo) Andr Pereira Botelho (UFRJ)Prof. Dr. (membro interno) Josu Pereira da Silva (Unicamp)Prof. Dr. (membro interno) Priscila Nucci (Unicamp)
MARO/2011
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FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP
Bibliotecria: Ceclia Maria Jorge Nicolau CRB n 3387
Ttulo em ingls: The discovery of unusual: black literature and peripheral literature in Brazil (1960-2000)
Palavras chaves em ingls (keywords) :
rea de Concentrao: Pensamento Social Brasileiro
Titulao: Doutor em Sociologia
Banca examinadora:
Data da defesa: 28-03-2011
Programa de Ps-Graduao: Sociologia
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Literature and societyBlacks in literatureBrazilian literatureBlack authors
Elide Rugai Bastos, Antnio Srgio Alfredo Guimares, Alexandro Dantas Trindade, Lilia Katri Moritz Schwarcz, Renato Jos Pinto Ortiz
Silva, Mrio Augusto Medeiros da Si38d A descoberta do inslito: literatura negra e literatura perifrica
no Brasil (1960-2000) / Mrio Augusto Medeiros da Silva. - - Campinas, SP : [s. n.], 2011.
Orientador: Elide Rugai Bastos.
Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.
1. Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977. 2. Lins, Paulo, 1958- 3. Ferrz, 1975- 4. Cadernos Negros . 5. Literatura e sociedade. 6. Negros na literatura. 7. Literatura brasileira. 8. Escritores negros. I. Bastos, Elide Rugai. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo.
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RESUMO
Discute-se, centralmente, a produo recente de escritores auto identificados negros e perifricos, bem
como seus livros, por vezes, relacionados s ideias de Literatura Negra e Perifrica. Selecionaram-se,
entre 1960 e 2000, Carolina Maria de Jesus (Quarto de Despejo, 1960; Casa de Alvenaria, 1961),
Cadernos Negros (1978-2008), Paulo Lins (Cidade de Deus, 1997) e Ferrz (Capo Pecado, 2000).
Autores e obras permitem aproximaes acerca de suas trajetrias pessoais e literrias, aspectos das
discusses empreendidas no sistema literrio, bem como dos problemas envolvidos nas definies do
que sejam Literatura Negra e Literatura Perifrica. Tambm possvel discutir, atravs deles, aspectos
da trajetria do ativismo poltico-cultural negro e perifrico, analisado e, por certo tempo, muito
relacionado com a prpria histria da Sociologia e Antropologia brasileiras. Assim, a negao de um
lugar naturalizado, poltica e culturalmente, para o sujeito negro e perifrico, atravs da Literatura,
operou com ideias e problemas diversos, em diferentes momentos, nuclearmente questionando e
propondo discusses sobre aspectos da desigualdade social no Brasil contemporneo.
ABSTRACT
Its discussed the recent self identified black and peripherals authors production, as well theirs books,
sometimes related to Black Literature and Peripheral Literature ideas. Were selected, between 1960 and
2000 Carolina Maria de Jesus (Child of the Dark, 1960; Casa de Alvenaria, 1961), Black Notebooks
(1978-2008), Paulo Lins (City of God, 1997) e Ferrz (Capo Pecado, 2000). Authors and books allow
approximations on theirs personal and literary trajectories, some aspects of the debates in the literary
system, as well the problems on the Black and Peripheral Literature definitions. Its also possible argue,
through them, aspects of black and peripheral political and cultural activism, analyzed and, by a time,
closely related to Brazilian Sociology and Anthropology histories. Thus, the denial of a political and
cultural naturalized place to black and peripheral subject, through Literature, worked with various ideas
and problems, at differents moments, nuclear questioning and proposing discussions on issues of social
inequality in modern Brazil.
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Dedicado a
Augusto Sabino da Silva e Suzana do Carmo Dias; Benedicta Rodrigues Medeiros e
Mrio Medeiros (in memoriam), as metades vvidas. Aos seus filhos e descendentes.
Wilson Sabino da Silva, Maria Helena Medeiros da Silva e Wilson Sabino da Silva Jr., o
fecho das metades.
Para Nicole Somera, que esteve ao lado todo o tempo, vivendo as consequncias.
Para Mariana Miggiolaro Chaguri, inseparvel nos desafios da aventura intelectual e da
sincera amizade quotidiana.
Para Elide Rugai Bastos, que orientou o sentido das coisas e mostrou a fora das ideias.
Agradecimentos
Dez anos na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) formataram boa parte do meu
pensamento, em diferentes aspectos, sobre o papel da academia e dos intelectuais, contraindo-se da
dbitos enormes a esta instituio. A Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo
(FAPESP) pelos quarenta e oito meses de bolsa, que me permitiram dedicao total e exclusiva, tempo
e pacincia para fatura deste trabalho, bem como aquisio de livros, viagens para pesquisa,
participao em congressos etc. E ao meu parecerista annimo, rigoroso, crtico e incentivador.
Para os escritores, ativistas e intelectuais que li, conheci, entrevistei e estudei na fatura desta
tese, o meu reconhecimento e admirao: Ferrz, Oswaldo de Camargo, Cuti, Ruth Guimares, Audlio
Dantas, Cyro Del Nero (in memoriam), Mrcio Barbosa, Esmeralda Ribeiro, Srgio Ballouk, Sidney de
Paula Oliveira, Paulo Lins, Alessandro Buzo, Allan Santos da Rosa, Sacolinha, Ridson Du Gueto,
Srgio Vaz. Os livreiros e editores especializados em Literatura Negra, que gentilmente me
concederam entrevistas e informaes sobre seu trabalho:Kitabu Livraria Negra, Selo Negro Editora,
Mazza Edies, Sob Livraria Negra. Sem eles, a tese no seria possvel, alguns captulos e argumentos
no teriam sido, simplesmente, pensados ou escritos.
Os colegas ingressantes nas turmas de Mestrado e Doutorado em Sociologia de 2006, do
PPGS/IFCH, que discutiram este projeto. Rodolfo Scachetti, Daniela Ribas Ghezi, Rosane Pires Batista
e Gilda Portugal Gouva, entre outros. Em particular a Renata da Silva Nbrega, das primeiras
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incentivadoras e defensoras deste trabalho, de quem ganhei meu primeiro exemplar de Cadernos
Negros.
Ao Vinebaldo Aleixo de Souza Filho, amigo e parceiro de trabalho, que tornou a entrevista com
o Quilombhoje possvel. Keila Prado Costa, com quem divido os crditos de entrevistar Paulo Lins. E
Janana Damasceno, com quem entrevistei Ruth Guimares, amiga determinada na aventura de suprir
as lacunas sobre escritores, ativistas e intelectuais negros. Perigando perder o ltimo nibus de viagem
na madrugada, meses para conseguir uma entrevista, corridas em ladeiras ngremes e escorregadias
num fim de semana de cidade interiorana, entre outros: com os trs, partilhei bastidores de pesquisas
inesquecveis e formadores.
Aos professores que compuseram as bancas de qualificao e exame da tese, pela possibilidade
de dilogo, crticas e sugestes ao trabalho: Maria Suely Kofes, Priscila Nucci; Alexandro Trindade,
Antnio Srgio Alfredo Guimares, Andr P. Botelho, Lilia Katri Moritz Schwarcz, Josu Pereira da
Silva e Renato Ortiz.
Os grupos de estudos formados com Daniela Roberta Antnio Rosa e Priscila Nucci (Literatura,
Imprensa e Teatro Negro no Brasil); sobre a obra de Pierre Bourdieu (Eugnio Braga, Alexandro L.
Pires, Mariana Chaguri), sobre Le Dieu Cach (Elide Rugai Bastos e Mariana Chaguri), sobre
Pensamento Social e Brasil contemporneo (Slvio Sawaya, Maria Cludia Curtolo, Mariana Chaguri,
Yvonne Moran, Rodrigo Fessel, Aline Hasegawa, Paula Saes, Rodrigo Ribeiro etc.) e aos estudantes do
curso em que Mariana e eu lecionamos e dividimos, no primeiro semestre de 2009, sobre Pensamento
Social. Com eles, aprendi muito, bem mais do que contribu. Todos sempre dispostos ao bom debate,
provando que pensar no um ato isolado. Muito de nossas discusses incorporei ao longo da tese,
direta ou indiretamente.
Dadas as dificuldades de encontrar muitos dos livros, documentos e textos de que me valho no
trabalho, um agradecimento especialssimo deve ser feito s equipes responsveis pelos stios Estante
Virtual e Abebooks, ideias simples e geniais de unir sebos pela internet, permitindo que pesquisadores
tenham acesso a fontes distantes e ausentes em bibliotecas pblicas. Igual deferncia ao pessoal do
Banco de Dados de So Paulo, com seu clipping de jornais; e a livreiros e funcionrios de sebos que
tornaram esta pesquisa possvel.
Aos colegas e amigos Kassandra Muniz, Raquel Honorato, Slvia, Janana Damasceno, Fabiana
Mendes, Cristina Ocuni, Anselma Garcia, Wilson Penteado Jr., Daniela Rosa, Pedro Ferreira entre
outros, do Ncleo de Estudos Negros na Unicamp (NEN) pelo que e enquanto foi possvel,
especialmente em nossas discusses e projetos conjuntos.
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No tocante ao IFCH, sou grato a Mrio Martins de Lima, por todas as leituras, cafs, discusses
e enfrentamentos partilhados. Dizer isso muito pouco pelo que representa. No AEL-IFCH, onde o
conheci, tambm fiz grandes amigos, que esto no princpio do meu caminho pela pesquisa acadmica:
Maria Dutra, Isabel, Marilza Silva entre outros. A todos, o meu muito obrigado. Elisabete S. S. Oliveira
[Betinha], Christina Faccioni [Chris] e Magali Mendes, Ben e Diego, [xrox da biblioteca]
funcionrios do IFCH merecem todos os meus agradecimentos e respeito pela presteza, dedicao e
graa quotidiana no exerccio de suas funes e no trato mpar com os estudantes, ao longo de todos
esses anos.
Os funcionrios de que, infelizmente no guardei nomes, que me ajudaram nesta pesquisa,
direta e indiretamente, ficando o registro precrio pelas instituies que constroem cotidianamente, em
que vrias vezes estive e pacientemente fui atendido: Do Arquivo Pblico do Estado de So Paulo,
Arquivo da Cmara Municipal de So Paulo, Fundao Biblioteca Nacional, Unidade Especial de
Informao e Memria (UFSCar), Arquivo Edgar Leuenroth, Centro de Documentao Alexandre
Eullio, Bibliotecas Octavio Ianni (IFCH/Unicamp), IEL e FE/Unicamp, Florestan Fernandes (USP e
UFSCar), Museu Afro-Brasil.
Vtor Cooke, Slvio Sawaya, Maria Cludia Curtolo, Edson Cardoso[Irohin], Ana Flvia M.
Pinto, Antnio Brasil Jr., rica Peanha do Nascimento, ris Morais Arajo, Tlio Custdio, Alexandro
Paixo, Anderson Trevisan, Clia Tolentino entre outros, so grandes amigos que tive a oportunidade
de conhecer, dialogar e estreitar laos ao longo desses ltimos anos, cujos trabalhos e conversas
incorporei, de diferentes modos, aqui e ali. Cabe mencionar os colegas conhecidos nos mais diferentes
congressos, seminrios e palestras, que discutiram aspectos do trabalho Agradecimentos especiais ao
Vtor, Slvio e Cludia, pela inteligncia e bom humor, permeados pelo dilogo denso. A rica,
pioneira na etnografia da cultura perifrica, que gentilmente me introduziu em aspectos desse universo
e partilhou ideias. Ao Antnio, pelas leituras de captulos, amizade e debates sobre sociologia
brasileira, por ter gentilmente pesquisado no Arquivo Florestan Fernandes para mim. E a ris, alm de
interlocutora intelectual de alto nvel, sobre os mais diferentes assuntos, por ter ajudado em transcries
para este trabalho.
A experincia de participar do Projeto Temtico Linhagens do Pensamento Poltico Social
Brasileiro, no CEDEC, permitiu discutir alguns aspectos da tese, alm de vislumbrar formas de fazer,
debater e pensar as Cincias Sociais, nos dias e condies correntes. Nas figuras dos professores Gildo
Maral Brando (in memoriam), Elide Rugai Bastos, Andr Botelho, Bernardo Ricpero e Glucia
Villas-Bas, Antnio Brasil, Andr Kaysel, Melina Rombach e Marcos bem como Marleida Borges,
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Clia Regina e Aline Menezes sintetizo meus agradecimentos aos demais colegas e funcionrios do
projeto.
Aos meus mais novos colegas, com quem trabalho no Grupo de Estudos de Inventrio, da
Unidade de Preservao do Patrimnio Histrico da Secretaria de Estado da Cultura de So Paulo, devo
sinceramente agradecer por terem me recebido como tcnico, aps ter sido aceito por Marlia Barbour e
Leonora Portela. E por terem, sem saber, tornado a dupla jornada, na etapa de final de redao da tese,
muito mais fcil e agradvel: Adda Ungaretti, Alberto Candido, Ana Luiza Martins, Amanda W.
Caporrino, Deborah R. Leal Neves, Slvia Wolff, Elisabete Mitiko Watanabe, Tobias de So Pedro,
Mayara Nbrega, Rosana Rocha, Jos Otvio Cortez, Tony Zagato: O dilogo franco, a pacincia,
compreenso, respeito, incentivo e apoio de todos, quotidianamente, inestimvel. agradavelmente
curioso como laos de amizade podem se estreitar em to pouco tempo.
A todos, o meu muito obrigado.
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SumrioParte I: Balanos, Polmicas e Interrogaes........................................................................11
Introduo................................................................................................................................................... 13Captulo 1: Literatura Negra e Marginal/Perifrica: ideias e seus problemas.......................................................19
Literatura Negra & Escravido no Brasil: Representaes Estticas das Formas Sociais....................21A Funo Social do Esteretipo na e em torno da Literatura Negra (1940 1980)..............................24Buscando uma definio conceitual: Anos 1980...................................................................................38Vou cuspir no seu tmulo: um caso de mimetismo do estilo do romance de protesto negro................40O Protagonismo Terico do Eu-Enunciador..........................................................................................44O Protagonismo Concreto do Eu-Enunciador........................................................................................48Marginalidade Produtiva, Distributiva e Consumidora...........................................................................51A negao da negao..........................................................................................................................54Ativismo Negro-Literrio ou Militncia Ativa da Palavra........................................................................59Reflexes: sobre a literatura afro-brasileira...........................................................................................59Criao Crioula, Nu Elefante Branco.....................................................................................................66
Captulo 2:Marginalidade Literria Negra (1970-1980) e Literatura Marginal/ Perifrica (1990)...........................71O papel literrio e social das Antologias e das Mostras de Literatura Negra.........................................85Literatura Negra Marginal e Gerao do Mimegrafo...........................................................................92A Ideia de Literatura Marginal tomada de Assalto em Trs Atos...........................................................99Literaturas como Protestos: Mundos Ficcionais em disputa com o Mundo Real.................................109
Parte II: Literaturas, Sociologias & Processos Sociais.........................................................115Captulo 3: Encontro na Encruzilhada: Literatura Negra e Sociologia do Negro.................................................117
Sociologia como Caixa de Pandora.....................................................................................................121 sorte do destino, numa parte do caminho........................................................................................133Queremos saber o que os senhores vo fazer com a raa negra.......................................................139Confluncia e Divergncia entre processo social e anlise sociolgica: anos 1950...........................145Brancos e Negros em So Paulo: Associaes Negras e Sociologia Uspiana...................................150O Negro no Rio de Janeiro e O Negro Revoltado: Sobre micrbios e suas sandices.........................163
Captulo 4: Protesto, Revolta e Funo Social da Literatura/ Teatro Negro (1950-1964)...................................169Uma Associao Cultural do Negro no meio sculo XX......................................................................1701958: O que h para comemorar no Ano 70 da Abolio?..................................................................178Entre o assistencialismo e auto-determinao: o tema da integrao do negro..................................183 frica! frica!................................................................................................................................ 185O Negro Marginal e As Associaes Negras: Quarto de Despejo, 1960.............................................190De Habitante do Monturo a Shakespeare de Cor.............................................................................194Apenas palavras no bastam: Condicionamento social para a produo das ideias..........................197Alcances e limites, impasses e obstculos..........................................................................................202
Parte III: Obras, Autores & Idias.........................................................................................208Captulo 5:Sociologia da Lacuna........................................................................................................................209Captulo 6: O Povo e a Cena Histrica: Quarto de Despejo e a Integrao do Negro na Sociedade de Classes (1960-1964)........................................................................................................................................................ 217
Cenas de um quotidiano singular e plural............................................................................................220Integrao do Negro Sociedade de Classes....................................................................................228Um Estranho Dirio chamado Quarto de Despejo...............................................................................2411958 foi um ano ruim........................................................................................................................... 2491958-1960: como se cria um best-seller?............................................................................................258
Captulo 7:Das Iluses Perdidas Realidade Das ruas: Cadernos Negros, 1978.............................................2671961-1964: Iluses Perdidas, Dilemas e Problemas da Integrao Social..........................................268O discreto charme das mariposas noturnas........................................................................................276De Povo na Histria a Sociedade Civil: onde est o novo?.................................................................283Os Negros esto nas Ruas: Ambincia e contexto social de novas ideias..........................................292Entre maio e novembro: esttica e poltica negras..............................................................................305Retratos de Grupos: I 1978-1988: personagens para/em composio.............................................312Anos de enquadramento do retrato: no particular, o universal............................................................318
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Captulo 8:Contrastes & Confrontos: Cidade de Deus, 1997..............................................................................327Retratos de Grupos II: No rastro dos ndices negros (1986-1997)......................................................330Frantz Fanon e o ativismo poltico-literrio negro no Brasil: 1960/1980..............................................336Caminho difcil para um Poema sem Nome (1989-1997)....................................................................358Agora eu sou alto, forte e bonito: Mecenato & Converso scio-crtico-literria...............................365Mosaico de Vidas Breves: violncia, dominao e desigualdade .......................................................375Rtulos Diversos, Contedos Desiguais: Escritor Negro sem Literatura Negra?................................383
Captulo 9:Em que imprevisvel dormita a Histria: Capo Pecado, 2000..........................................................387Entre o determinstico e o impondervel: turbilho em surdina...........................................................388Moro dentro do tema ou Ascenso quotidiana para o cadafalso.........................................................398Retratos de Grupos III: Entre ns, os negros, eles, os perifricos(2000-?).........................................409O mundo se despedaa: crise da diversidade, potncia da desigualdade?........................................419
Captulo 10:Revisitando o todo e as partes........................................................................................................431Fontes, Bibliografia Consultada, Entrevistas.................................................................................................437
ndice de ilustraesIlustrao 1: Capas de Reflexes sobre a Literatura Afro-Brasileira, com a composio do Quilombhoje em 1985...................................................................................................................................................................... 60Ilustrao 2: Capas de Criao Crioula, Nu Elefante Branco, 1987.....................................................................67Ilustrao 3: Algumas Antologias de Literatura Negra, 1967-1988.......................................................................88Ilustrao 4: Trs Atos de Caros Amigos/Literatura Marginal.............................................................................101Ilustrao 5: Florestan Fernades, Solano Trindade e Henrique Losinkas Alves, na sede da ACN, sem data. Fonte: livro Henrique L. Alves: um agitador cultural...........................................................................................152Ilustrao 6: Srie Cultura Negra, vol.05, da Associao Cultural do Negro......................................................176Ilustrao 7: Desenhos de Clvis Graciano para Cultura Negra 1, bicos de pena de Srgio Milliet, Carlos Assumpo e Oswaldo de Camargo; 15 Poemas Negros..................................................................................181Ilustrao 8: Carolina M. De Jesus em Niger da ACN, setembro de 1960. .......................................................191Ilustrao 9: Primeira edio de Quarto de Despejo, 1960.................................................................................261Ilustrao 10: Casa de Alvenaria, 1961..............................................................................................................272Ilustrao 11: O Carro do xito, capa e matria de Versus................................................................................295Ilustrao 12: Versus e o incio da seo Afro-Latino-Amrica...........................................................................300Ilustrao 13: Cadernos Negros, 1978-1980......................................................................................................309Ilustrao 14: As trs mscaras como smbolo do Quilombhoje, 1983..............................................................319Ilustrao 15: Cadernos Negros 11....................................................................................................................350Ilustrao 16: Cidade de Deus, 1997..................................................................................................................375Ilustrao 17: Capa e Contracapa das primeiras edies de Capo Pecado.....................................................398Ilustrao 18: Coleo Literatura Perifrica, Editora Global...............................................................................414Ilustrao 19: Cadernos Negros, 1997-2008......................................................................................................424
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Parte I: Balanos, Polmicas e Interrogaes
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Introduo
Das artes, a Literatura das mais baratas na forma de concepo. Um pedao de papel qualquer,
uma ponta de lpis, um pedao de pedra ou o resto de uma carga de caneta. A parede de uma priso,
papel de cigarro, embrulho de po, os restos do que foi um caderno, um bilhete no exlio. Algo de
instruo formal num idioma, quando impossvel, embora desejado, o processo educacional formal
completo. As ideias transcritas, de certa maneira, dependem quase exclusivamente da capacidade
criativa, em que um mundo paralelo, um universo ficcional, se constri. A imaginao e os sentidos
atribudos pelo criador, posteriormente em dilogo com um interlocutor pblico, mediados por
elementos de transmisso, amarraro os vrtices de circulao social das ideias.
Esta descrio, de fato, pouco ortodoxa. Mas o que explica, muitas vezes, em condies e
situao absolutamente adversas, o aparecimento e a vontade de um criador literrio? Ou a criao de
um grande livro, longe de escrivaninhas, dos crculos cultos ou cultuados e do sossego das bibliotecas
bem servidas? Primo Levi nos campos de concentrao; Jean Genet, nas cadeias francesas; Luiz
Alberto Mendes no Presdio Carandiru; Pepetela e Luandino Vieira no calor das guerrilhas de
libertao angolanas; Carolina Maria de Jesus na favela do Canind, Joo Antnio em Vila Anastcio
etc. Graciliano Ramos na priso e no poro de navios; Lima Barreto no cemitrio dos vivos; De Sade
nas masmorras. Os exemplos so vrios e contnuos na histria literria.
bem provvel que neste momento, nessas condies, um grande autor esteja surgindo. Ou, ao
menos, um escritor de criao respeitvel e incontornvel, que merea ser lido e debatido. A Literatura
a maneira mais barata de viajar, de romper os limites do tempo e do espao, negar a negao, veicular
ideias, influenciar semelhantes, prximos ou aqum do alcance. Algo to impressionante e fascinante
assim extremamente difcil de definir. O que Literatura, afinal? Um mundo ficcional e potico,
independente do mundo tido como real? A produo de um efeito esttico por meio das palavras? Uma
composio de regras historicamente debatidas, de gneros, formas, estilos? E essas mesmas regras
podem ser subvertidas pelo aparecimento de um autor capaz de criar uma nova forma de criar, um
inventor na rotina. Afinal, indubitavelmente, o que Literatura?
Sendo difcil de definir a ideia substantiva, imagine-se quando ela particularizada. O que
Literatura Negra? O que Literatura Marginal ou Perifrica? O nmero de proposies, embates,
problemas estticos e sociais envolvidos em suas definies so pouco menos inferiores que os das
tentativas de enquadramento do pargrafo anterior. As histrias de seus grupos sociais e as lutas
travadas historicamente por eles informam, em grande medida, o entendimento da confeco literria.
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Mas e a Literatura, no possui autonomia, ento? Ela seria um instrumento de uma causa, um elemento
funcional? Ou, antes de tudo, uma forma de expressar uma maneira de estar no mundo, que segue os
elementos que caracterizam o que sejam a confeco literria universal, particularizada por aspectos da
experincia do viver?
Para quem cria e para qu escreve o autor atrelado a uma ideia de Literatura Negra ou
Marginal/Perifrica? Quais os efeitos que suas criaes possuem? E quem no se atrela aos elementos
formais daquelas ideias, embora pertena ao mesmo grupo social de origem: que relaes mantm com
a tica criativa e poltica? Sua criao literria est num registro diferente? No possui os mesmos
efeitos e intenes? Quais so suas condies sociais de produo, ao longos dos anos? Como os
fatores externos se internalizam nas narrativas dos mundos ficcionais, plasmando realidades?
Questes debatidas ao longo de um trabalho que comeou pelo fim. O que interessava discutir
no projeto inicial era por qu, contemporaneamente, se tratava tanto da Literatura Marginal. E se
haveria ligao com alguma ideia de Literatura Negra e a histria desse grupo social no Brasil, j que
vrios escritores ditos marginais ou perifricos eram autoreferenciados como negros. O ttulo original
do projeto era, portanto, Do Quarto de Despejo para a Cidade de Deus: o estigma da marginalidade
como bem simblico.
Nele, existem proposies que se foram desenvolvendo e ampliando-se por fatores decorrentes
da prtica da pesquisa emprica e da reflexo terica. Propunha-se um arco histrico, contido na
primeira parte do ttulo. Haveria uma certa recorrncia em aspectos das trajetrias e consagrao de
Carolina Maria de Jesus e Paulo Lins? Como escritores indubitavelmente negros e exitosos foram
tratados pelo sistema literrio e a recepo miditica ao longo de quarenta anos? A preocupao,
portanto, estava nas formas de recepo de dois autores cujas trajetrias sociais eram bastante
prximas e/ou aproximveis, distinguindo-se, aparentemente, nas formas de relacionamento com um
mercado de bens culturais, em funo dos tempos distintos de aparecimento e maturao.
Todavia, o princpio era o mesmo. E por qu era pouco mencionado que, em meio a este arco,
havia uma produo contnua de escritores, chamada Cadernos Negros? Que relaes eles poderiam ter
com os outros dois autores, j que alcanavam o fim de Carolina (e poderiam t-la lido e conhecido os
membros mais velhos, em suas adolescncias ou fase adulta) e o comeo de Lins e dos autores
perifricos? Entretanto, eram os menos notrios, fora de alguns meios acadmicos e militantes. Por
qu? Propunha-se ainda discutir o fato de autores negros e perifricos particularmente, favelados,
habitantes ou oriundos de reas e grupos socialmente negativizados chamarem ateno de editoras,
jornais, institutos culturais, nacionais e estrangeiros. Seus estigmas sociais, comumente depreciados, de
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alguma maneira, passavam a ser positivamente valorados, como se portadores de bens de alta
significncia simblica. Mas no eram todos valorados igualmente. Tratava-se de uma discusso
pensada a partir dos estudos de Erving Goffmann e Pierre Bourdieu, que deveria ser posta em prtica
analiticamente.
Conduziu-se, assim a pesquisa para as fontes secundrias, procura de trabalhos que j
tivessem debatido o assunto, em particular sobre a histria da Literatura Negra. Aparecendo ao longo
de toda a tese,esse esforo est mais concentrado na primeira parte, dos Balanos, Polmicas e
Interrogaes e seus dois primeiros captulos. Lidas essas fontes conduziu-se a outras questes,
mudando-se significativamente o projeto original. Quanto mais estudada a histria da imprensa e
ativismo negros, mais parecia interessante e conjugado o papel desempenhado pela Literatura de
autores e ativistas, quase indissocivel. O mesmo se repetia com os escritores perifricos, quase todos
criadores de algum movimento cultural e ativistas na cena pblica. Assim, haveria possibilidades de
conexes de sentidos entre aspectos da histria da literatura negra e da recente literatura perifrica.
Associada esta ltima, porm, por vezes sem maior rigor, a uma espcie de reedio do surto de
literatura marginal dos anos 1970, fez-se necessrio discutir, no segundo captulo, em que medida ela
se afastaria daquele concepo literria particular e se aproximaria de outra.
A pesquisa, foi-se abrindo para novas perspectivas, propiciadas por, nesta ordem, aspectos das
leituras feitas, entrevistas realizadas e documentos encontrados. Por exemplo: por qu os cientistas
sociais esto, em diferentes momentos, ligados histria da literatura negra brasileira, seja como
analistas de sua produo ou aliados interessados? Que interesses, por outro lado, teriam ativistas e
escritores negros nas pesquisas desenvolvidas pelos cientistas sociais, entre os anos 1940 e 1960? O
protagonismo poltico-literrio desses sujeitos sociais criaria um horizonte de possibilidades comum s
anlises sociolgicas? Essas discusses aparecem no terceiro e quarto captulos da segunda parte,
Literaturas, Sociologias & Processos Sociais. Por outro lado, se anlise sociolgica e o protesto
literrio organizado em torno do ativismo negro testam a realidade social brasileira e seus limites, isso
criaria uma srie de problemas.
O primeiro deles que a realidade social tambm testaria os limites dessas anlises, projetos e
literaturas para se efetivarem, explicando o desfecho trgico de sua alianas entre 1964-1978, no
retomada plenamente depois disso. O segundo, que no somente em meio ao ativismo poltico e
cultural negro existiria a potncia para se criar um texto literrio, de alto impacto e capaz de questionar
as promessas da integrao e equalizao social, suscitadas pelos processos abolicionista e
republicanos. O trabalho e condio social dissonantes de Carolina Maria de Jesus impem uma srie
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de desafios para diferentes sujeitos sociais, longamente discutidos, onde a autora posta em contexto,
em relao seus pares escritores negros de ento, os ativistas e intelectuais da Associao Cultural do
Negro, bem como a problemas que lhes so contemporneos.
A terceira parte, tenta articular Obras, Autores & Ideias, discutindo o intervalo entre 1960 e
2000, naquilo que aproximvel e afastvel em relao aos problemas levantados por escritores negros
e perifricos. Existem recorrncias e invenes, retomadas e negativas de temas; bem como,
independente de estar atrelado a uma tica criativa e/ou poltica, variaes sobre as mesmas questes
do escritor negro e perifrico, dada sua especifidade no Brasil e mormente as condies sociais de sua
produo, ter de lidar com o fato de ser um sujeito fora de lugar, que nega o espao scio-cultural que
lhe naturalizado, no senso comum e pela histria social do pas. Por outro lado, raras so s vezes que
encontra facilmente um lugar entre seus pares e afins, de grupo social e poltico. As alianas entre
projetos, pouco claros muitas vezes, no se efetiva e as proposies se isolam, gerando a tendncia ao
fracasso contnuo e derrota aparente, face aos desafios sociais, dos grupos subalternizados.
possvel dizer que se est diante, assim, de um dilema do escritor e intelectual negro e
perifrico no Brasil. E, neste processo, tambm o seu dilaceramento contnuo, um pouco na senda do
apontado por Florestan Fernandes [A Integrao Negro na sociedade de classes], Harold Cruse [The
Crisis of the Negro Intellectual], Abdias do Nascimento, Frantz Fanon, Cornel West [The Dilema of
the Black Intellectual], bell hooks [Black Women Intellectuals], entre outros. Fora de lugar, negando
adversidades vrias, construindo com dificuldades um caminho autnomo em que seja protagonista.
Recorrendo memria precria que possui e fabula, no mais das vezes, de aspectos de seu grupo social
e de uma ancestralidade ligada ao universo africano, muitas vezes desconhecido concretamente. Muitas
vezes, esse percurso que procura construir com os instrumentos e condies que lhe so possveis, se
faz entre lacunas, seja de crtica literria, anlise histrica e de biografias individuais/coletivas. Por esta
razo, h um captulo isolado na tese que prope um esboo de Sociologia da Lacuna, como questo
sociolgica a ser enfrentada. Em verdade, a lacuna no somente isso, mas tambm pode ser pensada
como uma questo social.
A tese teve seu ttulo alterado para A Descoberta do Inslito. Errnea e apressadamente ele
pode ser lido como se o pesquisador em questo fosse/quisesse ser o descobridor de algo. Ao contrrio:
o inslito o resumo da pergunta frequente feita ao surgimento de cada um dos ativistas, intelectuais,
escritores e processos histrico-sociais estudados aqui, por diferentes autores, crticos, jornalistas e
intelectuais. Na histria literria brasileira, passou-se ver o escritor negro como uma espcie de avis
rara. Dadas as condies sociais de produo e surgimento dos autores, no raras vezes se questionou
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como foi possvel a criao literria ter aparecido em cenrios to inspitos ou deslocados. O inslito
opera no como um elemento do universo fantstico; mas sim, como uma via de mo dupla do
quotidiano. Pauta-se, por um lado, pela histria e condies sociais a que negros e perifricos
majoritariamente se encontram e vivenciam; por outro, a negao da negao, o princpio de afirmao
do eu e do sujeito social, que faz com que o ativismo poltico e a criao literria de autores negros e
perifricos se tornem possveis. Contudo, o inslito se apresenta assim tambm porque se constroem
prejulgamentos sobre os lugares naturais e naturalizados para sujeitos nascidos e socializados em
determinadas condies sociais. Quando ocorre a negao da negao, gera-se a pergunta de espanto. O
inslito existe, portanto, porque, apesar de tudo existe a Histria e nela se desvelam horizontes de
possibilidades, que se confirmam ou no.
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CAPTULO 1: LITERATURA NEGRA E MARGINAL/PERIFRICA: IDEIAS E SEUS PROBLEMAS1
As Literaturas Negra e Marginal sero tratadas aqui como ideias. No so confeces literrias
suficientemente sistematizadas e sobre as quais haja um consenso analtico razovel para serem
denominadas por conceitos, embora muito citadas, defendidas ou atacadas. Todavia, tambm so mais
que categorias explicativas de anlise, como ferramentas que sirvam apenas para elucidar um problema
maior. Elas, em si, j se constituem em problemticas historicamente consistentes.
Sendo ideias portanto, menores que conceitos e maiores que ferramentas categricas elas se
apresentam como problemas de flego, que se exigem pensar continuamente e, ainda, so detentoras de
estatuto material (livros, autores, coletneas etc. bem como crticas e anlises) e imaterial (memria
coletiva, afetiva, cones e cnones etc). Como ideias em movimento2, historicamente condicionadas,
ser a maneira que as analisarei. Podem ser vistas tambm enquanto emblemas, referentes, que
abriguem diversas obras e posies histricas distintas; dialoguem com e sejam submetidas a diversos
conceitos e ideaes: esteretipo, estigma, negritude; mobilidade social, integrao social; racismo,
marginalidade, excluso, periferia; quilombo, quilombismo, dispora negra; frica, Brasil, africanidade
e brasilidade etc.
As dificuldades de conceituao so semelhantes ao problema em se definir o qu seja
Literatura3. Entretanto, a Literatura Negra e a Marginal possuem agravantes particulares: o que faz
dessas literaturas serem negra ou ligadas condio social marginal/perifrica? Tratam-se de pontos
nevrlgicos e sob os quais o consenso igualmente difcil. E as respostas mais simples, como a de que
a Literatura Negra aquela escrita por um autor auto-referenciado ou identificado; ou, ainda, um eu-
lrico/narrador que se queira negro, o mesmo valendo para a questo marginal ou perifrica, tambm
1A primeira parte deste captulo(1940-1980) foi apresentada, com modificaes, no XIII Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia, em Recife, maio de 2007, no GT de Pensamento Social, sob o ttulo de Esboo de Anlise Sociolgica da Ideia de Literatura Negra no Brasil. Este mesmo texto foi publicado em novembro de 2007, na revista eletrnica Baleia na Rede, da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita UNESP, cmpus Marlia (http://www.marilia.unesp.br/index.php?CodigoMenu=343&CodigoOpcao=343). Agradeo aos Profs. Drs. Clia Maria Tolentino (Unesp), Andr Botelho (UFRJ), Milton Lahuerta(Unesp) e Glucia Villas-Bas(UFRJ), bem como a Alexandro Henrique Paixo e Elisngela da Silva Santos por aquelas oportunidades.2Entenda-se por ideia em movimento o fato de que estas confeces literrias estarem permanentemente em trnsito de definio, podendo nomear e significar coisas distintas para diferentes obras, autores, crticos em diferentes momentos, como se ver a seguir, tendo como eixo o negro e o perifrico representante ou representado na literatura.3 Anatol Rosenfeld, no livro A Personagem de Fico, confere a esta questo uma primeira abordagem bastante interessante: Geralmente, quando nos referimos literatura, pensamos no que tradicionalmente se costuma chamar de belas letras ou beletrstica. Trata-se, evidentemente, s de uma parcela da literatura[...] Dentro deste vasto campo das letras, as belas letras representam um setor restrito. Seu trao distintivo parece ser menos a beleza das letras do que seu carter fictcio ou imaginrio. Cf. ROSENFELD, Anatol. Literatura e Personagem. In: CANDIDO, Antonio et alli. A Personagem de Fico, So Paulo: Perspectiva, 10a. ed. 2004, pp. 11-12.
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abrem brechas significativas para divergncias. No entanto, a recorrncia da histria literria dessas
confeces estticas de que, com raras excees, nenhum autor que no se tenha autodenominado
negro ou perifrico assumiu o rtulo de ter escrito algo chamado de Literatura Negra ou Perifrica.
***
No que diz respeito ao primeiro caso, historicamente, o problema da Literatura Negra tem sido
tratado no Brasil, seja por especialistas nacionais, brasilianistas ou militantes de movimentos sociais
polticos, culturais ou jornalsticos negros das seguintes maneiras: A)No que tange anlise de
esteretipos contidos na construo de personagens negras em romances, peas de teatro, contos etc.
sejam de autores negros, mestios ou no-negros; B) Quando se trata da forma potica, qual se
concedeu primazia analtica, observaram-se os sinais de distino do eu-lrico negro e o grau de
conscientizao ideolgica e tnica quanto a sua condio de ser-negro-no-mundo (o que pode ser
entendido como uma das acepes de negritude)4.
Em outras palavras: Geralmente analisa-se o negro como personagem literrio ou dramatrgico
(construdo, majoritariamente por autores no-negros) e as caracterizaes que ele recebe nessa
condio. Ou, quando se trata do negro como autor, privilegia-se a forma potica para a anlise,
observando-se, para alm de suas qualidades e inovaes formais (colocadas em segundo plano ou nem
destacadas), o contedo de sua poesia. No caso desta tese, o interesse, neste ponto, reside em direo
relativamente oposta: Interessa-se prioritariamente pelo sujeito autorreferenciado negro e perifrico
como autor e narrador de sua construo artstica na forma de prosa (dirios, romances e contos), bem
como sua viso social de mundo, poltica e culturalmente construda, empregando o conceito do
socilogo Lucien Goldmann:
Une vision du monde, cest prcisment cet ensemble daspirations, de sentiments et dides qui
runit les membres dun groupe (le plus souvent, dune classe sociale) et les oppose aux autres
groupes.[...]toute grande oeuvre littraire ou artistique est lexpression dune vision du monde.
Celle-ci est un phnomne de conscience collective qui atteint son maximum de clart conceptuelle
ou sensible dans la conscience du penseur ou du pote.5
4 Grosso modo, negritude significa a percepo e assuno de ser negro; e, Negritude, significa o movimento poltico histrico em torno daquela percepo, criado em final dos anos 1930, em Paris, por Leopold Sedar Senghor, Leon Damas e Aim Csaire.. Cf.: BERND, Zil. Negritude e Literatura na Amrica Latina, Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987. Um dos trabalhos mais sistematizados sobre o assunto, no Brasil, o de Kabengele Munanga, Negritude: usos e sentidos, So Paulo: tica, 1986. Em lngua portuguesa h ainda a anlise sociolgica de Maria Carrilho, Sociologia da Negritude, Lisboa: Edies 70, 1975.5GOLDMANN, Lucien. Le Tout et Les Parties. Le Dieu Cach: tude sur la vision tragique dans les Penses de Pascal et dans le thtre de Racine, Paris: ditions Gallimard, 1959, pp.26 e 28. Uma viso de mundo, precisamente este conjunto de aspiraes, de sentimentos e de ideias que renem os membros de um grupo (o mais corrente, de uma classe social) e os opes a outros grupos[...] toda grande obra literria ou artstica a expresso de uma viso de mundo. Este um fenmeno
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Autoria e narrativa, entes literrios distintos, pouco discutidos sociologicamente em conjunto,
como se ver a seguir. A confeco literria permite a anlise da construo de uma viso social de
mundo do grupo ao qual o autor pertence ou recusa? O trabalho se preocupa igualmente com as formas
produtivas e distributivas da Literatura Negra e Marginal/Perifrica, situando-as nas ltimas dcadas ,
em relao sua recepo junto a um pblico (ideal, idealizado, especializado e em geral). E, no limite,
discutir tambm a identidade construda para e sobre esse negro/marginal/perifrico, por vezes
excessivamente automatizada nas anlises j efetuadas. Colocadas em escala de processo histrico e em
situao, com seus autores demonstrando, muitas vezes, menos homogeneidade que os termos podem
supr.
Literatura Negra & Escravido no Brasil: Representaes Estticas das Formas Sociais
O primeiro ponto a se notar, no que diz respeito anlise histrica da Literatura Negra
Brasileira, que ela foi abordada por autores cuja formao ou campo de estudos no se dava
primordialmente na rea de Crtica Literria6; mas, sim nas Cincias Sociais e Histria. Portanto, na
grande maioria das anlises, o negro como autor ou personagem literrio tratado tambm como um
objeto sociolgico e histrico.
Destarte, a histria literria do negro no Brasil est associada intimamente formao social
que o trouxe a este pas: a escravido. Contudo, como ressaltam algum autores, nos primeiros
momentos da Histria Literria Brasileira, o que menos importante enquanto um tema do negro o
sujeito social escravo. O que se sobressai o sistema social que o conforma, servindo aquela literatura
como uma ferramenta justificativa para tal situao abominvel, em grande parte dos casos, fosse na
prosa ou no teatro.7 Mas tambm serviu para sua negao: vejam-se os Abolicionistas do perodo
romntico. Contudo, mesmo entre eles, o sujeito social colocado em segundo plano. De acordo com o
historiador Jean M. Carvalho Frana, Apesar de compor uma longa parcela da populao colonial,
os africanos[...] no mereceram durante os trs primeiros sculos que sucederam ao descobrimento,
de conscincia coletiva que atinge seu mximo de clareza conceitual ou sensvel na conscincia do pensador ou do poeta.. Traduo minha.6Ressalta-se isto porque o que chama ateno qual seria o motivo do silncio da crtica literria, quando ela se constitui, no Brasil do sculo XX, em ofcio especializado, acerca do tema. No mximo, Machado de Assis, Lima Barreto ou Cruz e Sousa so objetos de anlise para a crtica, sendo que o fato social de ser mestio, no primeiro caso, raramente observado.7Cf. BASTIDE, Roger. Estudos Afro-Brasileiros, So Paulo: Perspectiva, 1973; MENDES, Mriam Garcia. A Personagem Negra no Teatro Brasileiro (entre 1838 e 1888), So Paulo: tica, Col. Ensaios, vol. 84; 1982; MENDES, Mriam Garcia. O Negro e o Teatro Brasileiro (entre 1889 e 1982), So Paulo: HUCITEC/ Rio de Janeiro: IBAC/ DF: Fundao Cultural Palmares, 1993; GOMES, Helosa Toller. O Negro e o Romantismo Brasileiro, So Paulo: Atual, 1988; FRANA, Jean M. Carvalho. Imagens do Negro na Literatura Brasileira (1584-1890), So Paulo: Brasiliense, 1998, entre outros.
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quase nenhuma ateno dos nossos homens de letras. Pode-se dizer, no entanto, que muito ou pouco,
nossos escritores no se deixaram de a ele se referir.8
Essa viso corroborada pela bibliografia quando se pensa no romance urbano surgido no Rio
de Janeiro e at mesmo do aparecimento do teatro na vida nacional. Mriam Garcia Mendes fornece um
dado importante sobre a participao do negro nos primrdios da dramaturgia nacional, que est
diretamente ligado sua condio degradada e socialmente desrespeitada de escravo:
Como conseqncia da construo das casas de espetculos, comearam a surgir, tambm, as
companhias com elencos permanentes. A mais antiga de que se tem registro, foi criada no Rio em
1780, e era constituda por cantores, danarinos e cmicos, provavelmente negros ou mulatos, na
maioria, segundo o costume e conforme se depreende de depoimentos de viajantes estrangeiros
ilustres que nos visitaram desde fins do sculo XVIII e comeo do XIX (Bougainville, 1767, Von
Martius, 1818, St. Hilaire, 1819), todos unnimes em afirmar que os espetculos a que tinham
assistido eram representados por elencos de cor, os brancos s raramente, em papis de
personagens estrangeiros.[...]Essa predominncia de negros e mulatos nos elencos teatrais da
poca se devia, provavelmente, ao preconceito generalizado contra a profisso de ator, julgada
desprezvel pelas camadas sociais superiores. Apelava-se, ento, para o negro ou mulato, escravo
ou liberto, j por si de condio degradada, indiferentes, portanto, ao preconceito.[...]9
Segundo a autora, a partir de 1808, com a vinda da famlia real portuguesa, h uma valorizao,
pelas classes abastadas, do teatro, uma vez que ao menos D. Joo VI e D. Pedro I gostavam desta arte
e/ou de suas atrizes. Destarte, O ator negro desaparece dos palcos fluminenses, pelo menos os que
representavam papis importantes.10. Mendes, no entanto, no menciona quem eram esses autores ou
se haviam, porventura, dramaturgos negros. Helosa Toller Gomes se ocupou de perodo histrico
semelhante, referente ao romantismo, entre os fins do sculo XVIII e ao longo do XIX. Para ela, o tema
do negro foi subaproveitado pela literatura nacional, em contrapartida do que ocorria em outras naes
que conviveram com a escravido. Aquele tema foi substitudo, como j sabido, pelo da mitificao
do indgena como bom selvagem. [...] o romantismo brasileiro deixou em palco secundrio a figura
do negro, elegendo outros assuntos como de maior interesse. O ndio, por exemplo. Para que o tema
8FRANA, Jean M. C. Imagens do Negro na Literatura Brasileira. Op. Cit., p. 08. Ressalve-se, no entanto, que um sistema literrio no Brasil, propriamente dito (com produtores, distribuidores e receptores), somente se inicia no perodo do Arcadismo, no sculo XVIII, como o demonstrou Antonio Candido, em Formao da Literatura Brasileira: momentos decisivos.9MENDES, Mriam Garcia. A Personagem Negra no Teatro Brasileiro, Op. Cit., pp. 02-03, grifos meus.10Idem, ibidem, p. 03.
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do negro suplantasse o do ndio, foi preciso esperar pelo realismo e pelo debate inicial que envolveu a
intelectualidade brasileira nas trs dcadas do sculo.11
Suplantado pelo problema da escravido, que passa a se tornar um incmodo a certa altura das
relaes comerciais internacionais e dos conflitos internos(o que ocorre particularmente no sc. XIX, a
partir de 1850, com o fim do trfico de escravos), o negro continua a ser visto socialmente de forma
negativa. O sujeito social escravo passa a ser um entrave, ocupando de maneira perigosa as respostas ao
qu fazer consigo dentro da sociedade brasileira. Jean Carvalho Frana, no estudo que empreende,
afirma que na forma literria urbana carioca deste perodo, [...] no qual heronas e heris se
confrontavam com ndoles ms e viciosas, o negro quase sempre ingressou nas fileiras do segundo
grupo. Ele representou no Rio de Janeiro construdo nas pginas de fico, um toque de barbrie
numa sociedade que se queria ordeira e moralizada, que se queria na poca, civilizada.12
No que diz respeito ao texto teatral13, no seu aspecto formal e de contedo, a perspectiva
semelhante. Analisando as peas escritas entre 1838 e 1888, de Lus Carlos Martins Pena, Joaquim
Manuel de Macedo, Jos de Alencar, Agrrio de Menezes, Castro Alves, Frana Jnior, Visconde de
Taunay, entre outros, Mriam Garcia Mendes afirma que a personagem teatral negra est sempre ligada
ao cativeiro e seu aparecimento em peas, dado que no despertava interesse por sua histria prpria,
foi usado de duas formas no teatro do sculo XIX: A) como elemento de comdia, presente na
sociedade da poca; ou B) como representativo de um drama social. Contudo, em ambas perspectivas,
[...] o negro, geralmente escravo, quando se tornou se no personagem, pelo j figurante, fosse ainda
encarado pelo autor dentro de um enfoque que o via apenas como algum cuja convivncia poderia
perturbar a paz de um lar ou trazer prejuzos morais famlia de seu senhor.14 Neste aspecto, sempre
como personagem de segunda ordem, o mesmo valendo para a sua posio no espao social15.
11GOMES, Helosa T. O Negro e o Romantismo Brasileiro, So Paulo: Atual, 1988, p. 01. Vale observar que esta supervalorizao do ndio como cone nacional funciona tambm, no momento histrico, como uma espcie de inveno de tradio, de linhagem do autntico homem brasileiro, distinta da tradio lusitana, da qual a separao poltica seria necessria.12FRANA, Jean M. Imagens do Negro na Literatura Brasileira. Op. Cit., p. 08. Este debate sobre o grupo social negro como um entrave ao progresso e civilizao recorrente e e retornar, ao menos, em So Paulo, no incio do sculo XX, como se analisar no terceiro captulo desta tese.13 Cabe observar que no se ignora que o teatro, enquanto forma literria e representativa, possui especificidades no procedimento artstico. Entretanto, no que diz respeito discusso estabelecida, de natureza da histria social, os problemas de construo textual dos personagens teatrais, do papel social dos autores e a relao com o pblico (seja leitor ou espectador) podem ser equiparados ideia do sistema literrio, como aventada por Antnio Cndido em Formao da Literatura Brasileira: momentos decisivos e que foram levadas adiante por Mriam Garcia Mendes, enquanto analista da histria do negro no teatro brasileiro.14MENDES, Mriam G. A Personagem Negra no Teatro Brasileiro (entre 1838 e 1888), So Paulo: tica, Col. Ensaios, vol. 84; 1982, pp. 21-22.15Mesmo, como afirma a autora, que[...] A partir de 1850, entretanto, cessado o trfico de escravos, o negro comeou a ser encarado pela literatura e pela dramaturgia, dentro de uma nova perspectiva, embora sempre ligada ao cativeiro. Apesar das limitaes que o tolhem, j gente, pode ser personagem, ainda que de pouca importncia[...] Cf. MENDES, Mriam G. A
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Esta discusso inicial leva a outro problema que ocupou a bibliografia sobre o negro na
literatura brasileira, enquanto personagem de fico, de forma central: a questo das construes de
esteretipos literrios acerca deste sujeito social. O aspecto degradado, ocupado por sculos no espao
social, atinge a construo ficcional, caracterizando o negro como elemento potencialmente perigoso,
entrave, lascivo, maligno, estpido, interesseiro etc. Resultados do perodo escravocrata e de suas
decorrncias na vida social brasileira, os esteretipos literrios associados ao negro, segundo vrios
autores, cumpririam a funo16 de delimitar espaos, melhor dizer, barreiras sociais e literrias, em suas
mais amplas acepes. E sobre isto que se dever refletir a partir de agora.
A Funo Social do Esteretipo na e em torno da Literatura Negra (1940 1980)
Trs estudos originais do socilogo francs Roger Bastide inauguram uma perspectiva analtica
que se demonstrar rica em aspectos centrais na compreenso e denncia do papel social do negro na
sociedade (o qual ele exerce, como observado, sobre quem pesam as mais diversas perspectivas,
contra o qual ele luta e o que pensa de si mesmo): A Poesia Afro-Brasileira (1943), A Imprensa Negra
do Estado de So Paulo (1951) e Esteretipos de Negros Atravs da Literatura Brasileira (1953)17.
possvel dizer que uma hiptese com a qual Bastide trabalha, ainda que no seja explcita, se
torna padro de pensamento para analistas posteriormente, mesmo sem enunci-lo claramente como o
pioneiro: a decorrncia da forma social da escravido, no que tange ao sujeito escravo,
essencialmente, um conjunto de atribuies socioculturais negativas para aquele sujeito numa ordem
formalmente livre e capitalista. E essas atribuies sociais tero ressonncia nas representaes
coletivas sobre e para o prprio negro. Cumpriro a funo de lhe demarcar um lugar, socialmente
inferior.
No texto acerca da Poesia Afro-Brasileira, Bastide anuncia claramente que trabalhar, como
mtodo analtico, com os pressupostos tericos de Lucien Goldmann para tratar o problema em
questo. Ou seja: valer-se- de uma anlise sociolgica da Literatura, associando a construo literria
Personagem Negra no Teatro Brasileiro (entre 1838 e 1888), Op. Cit., pp. 174-17516Como bem lembra Jean C. Frana: O africano e seus descendentes, figurantes de primeiras horas dessas importantes pginas, no escaparam, como bvio, aos efeitos dessa forja literria. Basta confrontarmos as imagens que foram descritas com as concepes que acerca do negro circulam no senso comum do brasileiro, para rapidamente nos apercebermos do alcance e do poder que tiveram tais construtos. Dos tipos negros criados pela literatura colonial e oitocentista, sobretudo por esta ltima, muitos ainda so moeda corrente no imaginrio nacional. [...] Nunca demais lembrar que os tipos negros de que falamos, as tais moedas gastas, foram elaboradas por escritores que viveram e produziram numa sociedade escravocrata e que tais elaboraes, como no poderia deixar de ser, trazem consigo a marca dessa sociedade. , pois, no mnimo preocupante que tais tipos ainda se mantenham em circulao no universo referencial de que nos servimos Cf. FRANA, Jean M. C. Op. Cit. p 92.17Todos os ensaios, publicados em boletins da Faculdade de Filosofia da USP e jornais, foram reunidos, posteriormente, no livro Estudos Afro-Brasileiros, de 1973, pela Editora Perspectiva.
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com a forma social na qual est imersa, bem como com o grupo social do qual faz parte e/ou com o
qual dialoga o autor da obra e seu pblico. Das suas afirmaes:
Os preciosos estudos de meu saudoso amigo Goldmann, realizados no campo da sociologia da
literatura, confirmam a procedncia de minha posio. Parece-me muito acertada sua opinio
quando afirma que a obra literria caso tomemos como objeto de estudo as obras-primas da
literatura e no (como o faria uma sociologia marxista, ao nvel mais baixo) os frustrados
apresenta a viso do mundo ligada a um determinado grupo social, da qual esse grupo no tem
suficiente conscincia, mas o verdadeiro artista d-lhe estrutura e coerncia demonstrando assim
sua genialidade. Foi a viso do mundo a do mulato em ascenso e a do negro reivindicando que
procurei descobrir, uma vez que a e somente a que se revela ao leitor deslumbrado toda a
beleza secreta da obra.[...]18
Essa primeira afirmao leva a articulao do mtodo de Goldmann para descobrir, dentro de
uma avaliao da histria literria brasileira, a existncia de uma poesia, cuja temtica fosse afro-
brasileira; e que estivesse dialogando assim como a religio africana no Brasil com a memria de
um continente redivivo nas obras. Chama ateno ainda o seu interesse pelas expresses poltico-
culturais do mulato em ascenso e o negro reivindicativo, que do o sentido de contemporaneidade de
suas anlises em relao ao momento das associaes e movimentos nos meios negros organizados,
como ser discutido nos prximos captulos. A noo de pertena e permanncia a um grupo social,
estruturada na produo literria, ganha fora, ainda, quando o autor afirma que:
[...]No existe, na aparncia, diferena essencial nos trabalhos dos brasileiros brancos e de cor.
Mas, justamente no passava de aparncia, que dissimulava no fundo contrastes reais.[...] Deve
ficar na alma secreta um halo desta frica, um trao desta senzala que, penetrando o brasileiro
perdeu toda a sua aspereza dolorosa para se tornar somente uma msica de sonho.19
Contudo, Bastide enunciar no mesmo ensaio, poucas pginas depois, um argumento que
aparentemente contradiz esse primeiro. Ao suscitar uma comparao entre a poesia afro-brasileira e a
estadunidense, o autor afirma que esta ltima floresceu e se tornou potente em razo do sistema
jurdico de distino entre brancos e negros. Desta forma, segundo o autor:
Aos cantos religiosos e aos cantos do trabalho dos negros norte-americanos sucedeu uma poesia
culta que encarna, esplendidamente, o gnio da raa. E ningum contesta que teria sido impossvel
essa poesia, sem a existncia de uma linha de cor, afastando sistematicamente o africano do
convvio dos brancos, e qual ela deve seu extraordinrio poder de seduo. [...] inteiramente 18BASTIDE, Roger. Estudos Afro-Brasileiros, So Paulo: Perspectiva, 1973, p. XVIII.19Idem, Ibidem, pp. 03-04, grifos meus.
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diferente a situao no Brasil onde no existem barreiras legais entre cidados desta ou daquela
cor. Este fato, por isso mesmo justo e louvvel, impede conflitos de que resultariam valores novos,
e poderia ser apontado como um dos principais empecilhos ecloso de uma poesia original afro-
brasileira.20
Este empecilho de que fala o autor, portanto, se constituiria num impedimento para a criao de
uma literatura afro-brasileira com caracteres prprios. Logo, a ligao com o grupo social e a
ressonncia na obra literria no existiriam, de modo pleno. Fica a pergunta, portanto: O que
determinante para a existncia da poesia afro-brasileira: o grupo social do qual ela parte ou uma
separao jurdica que a isole junto com seu grupo e a separe de outras formas literrias, criando assim
um universo literrio parte? Os dois argumentos so estruturalmente opostos, embora sejam mantidos
ao longo do ensaio, bem como junto a outras oposies21. Para o socilogo, entretanto, a literatura,
transparecendo a viso do mulato ou do negro, enquanto autores cumpriria a funo de insero social
do escritor e do sujeito. E isto se acentuaria, a seu ver, no perodo romntico, quando as classes mdias
e baixas ganham vozes mais altas no texto literrio:
Mas exatamente os pretos e os mulatos fazem parte desta classe inferior da populao; alguns
conseguiram elevar-se, penetrar na classe mdias, os mais claros de pele logrando ingressar na
prpria aristocracia.[...] Houve ento oportunidades em que a ascenso cultura e criao esttica
das camadas inferiores da populao teve como conseqncias uma elevao paralela dos africanos
ou mestios que constituam uma parte das ditas camadas. E foi o que realmente aconteceu. O
Romantismo o momento da primeira ecloso da poesia afro-brasileira. Por isso mesmo, ele
muito interessante de estudar, para ver-se em que medida se adquiriu a conscincia de uma
originalidade esttica racial.22
20Idem, Ibidem, p. 10, grifos meus.21Bastide sustenta ainda, no mesmo ensaio, que a poesia afro-brasileira, no perodo que estuda, seria marcada pelo estigma da imitao, sendo isto uma caracterstica positiva, que a faria original. [...] O homem de cor que quer se assimilar cultura dos brancos procurar em bloco, em primeiro lugar antes de encontrar sua prpria originalidade o mais aparente, isto tomar emprestada a cultura ao gosto do dia. Eis porque essa literatura dos homens de cor to interessante para o socilogo: ela lhes fornece uma espcie de repertrio das representaes coletivas da poca.[...] A literatura afro-brasileira est marcada pelo estigma da imitao. Porque as representaes coletivas s existem encarnadas nas conscincias individuais e justamente ao passar atravs da alma de um homem de cor que elas adquirem matiz diferente, se diversificam e se enriquecem. atravs desta imitao que se opera a conquista de uma originalidade saborosa. Cf. BASTIDE, Roger. Estudos Afro-Brasileiros, Op. Cit.,p.12, grifos meus.22Idem, ibidem, p. 26. Contudo, o autor enuncia que mesmo no perodo Romntico, esta porta aberta na literatura pelo mulato visa algo diferente: Ns pensvamos encontrar, comeando este captulo, no movimento literrio do sculo XIX, a aquisio da conscincia de uma poesia originalmente africana. E vemos pelo contrrio que os mulatos chegam cultura, em conseqncia da revogao da antiga estrutura social que se seguiu independncia, procuram no Romantismo no um meio de se distinguir, mas pelo contrrio, um meio de penetrar mais impunemente na grande famlia branca. Cf. BASTIDE, Roger, Estudos Afro-Brasileiros, Op. Cit., p.31, grifo meu.
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Ao analisar poetas contemporneos ao seu tempo, o autor sustenta seus dois argumentos. Dado
que est em busca da viso de mundo do mestio, o mulato, isto se faz possvel. A conscincia
ideolgica de uma produo potica especfica, segundo o autor, dependeria tanto de uma lembrana do
passado e da quantidade de sangue africano existente nas veias do escritor23, como simultaneamente
das condies brasileiras das relaes sociais racializadas regradas por um estatuto imaginrio de
mestiagem (imaginrio enquanto condutor a uma pacificao das tenses) ; isto impediria que esta
literatura anunciasse seu carter especfico, com todas as implicaes polticas e culturais que dela
decorrem, pois estaria visando a integrao social24.
Neste ponto, portanto, Bastide apresenta um segundo padro de pensamento que envolver boa
parte da produo subsequente acerca da Literatura Negra no Brasil: o seu carter duplo e tensionado
pelo jogo de integrao ou assimilao na sociedade. O qu, em ltima instncia, estaria de acordo com
a situao do negro (enquanto grupo social e objeto de anlise sociolgica) na realidade brasileira. Este
tensionamento das relaes sociais racializadas explorado pelo autor na produo literria no excerto
a seguir, refletindo sobre ordem de competio capitalista e as posies ocupadas no espao social
pelos antigos sujeitos oriundos do ordenamento jurdico e cultural escravista fossem negros, brancos
ou mestios:
A Literatura um desses meios de ascenso. Sobretudo numa sociedade mista, cosmopolita como
criada pela imigrao europia, sobretudo nas grandes cidades, nas capitais onde todas as raas
se acotovelam, onde no se conhece seno a situao atual de cada um, enquanto se esquece a
origem das pessoas que se encontra, sem jamais se chega a saber dela, em que a mobilidade
extrema, em que o bluff, a aparncia, tm mais valor que a realidade, em que o verniz literrio
abre todas as portas, mesmo as dos sales aristocrticos. O preconceito de cor pode existir no
23[...] Salvo raras excees, os poetas de origem africana parecem ter esquecido seus antepassados e, a julgarmos as suas produes apenas pelos assuntos nelas tratados, parecem nada ter de realmente original. Mesmo os poucos que falaram do passado de sua raa no o fizeram seno tardiamente, depois dos brancos, e sem acrescentar nada de novo ao que os brancos j tinham achado.[...]Seria, entretanto, um erro grave acreditar que no exista uma poesia afro-brasileira, com seus traos prprios, seus sinais distintivos e suas descobertas lricas. Apenas a frica no o assunto aparente. Ela est, como a filigrana, inscrita na transparncia do papel, na textura, na trama da obra escrita, no segundo plano dos sentimentos expressos e sua msica ouvida em surdina, ressonncia longnqua e sutil, a cada pausa do verso ou da estrofe. [...] Bem entendido, ela mais ou menos sutil, segundo a quantidade de sangue africano que o escritor tenha nas veias [...] BASTIDE, Op. Cit. p.93, grifos meus;24[...] o homem de cor no aspira a liberdade seno para melhor se fundir na sua ptria verdadeira, o Brasil. A abolio da escravatura tornar possvel a unidade de um povo em que no haver mais segregao de castas raciais, mas em que todos os homens sero iguais, seja qual for a cor da sua pele.[...]E justamente isso, a ausncia de toda a linha jurdica de cor que faz que no haja uma poesia negra aqui, mas apenas uma poesia brasileira. O descendente de escravos, seja em que grau for, sente-se o irmo mais ainda do descendente dos marinheiros de Cabral, dos bandeirantes e dos primeiros colonos[segundo uma poesia do poeta negro paraibano Perilo DOliveira, de 1925][...] Mas essa igualdade uma igualdade terica, uma igualdade de ponto de partida.[...] A maior parte dos homens de cor permanece nas classes mais baixas, economicamente falando, da populao. Cf. BASTIDE, Roger. Op. Cit., p. 94, grifos meus
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fundo das conscincias, mas no se mostrar, como numa sociedade tradicional, porque seria uma
falta de gosto e porque no se pode saber, alis, o que o futuro nos reserva...25
O impasse para a duplicidade de carter da literatura e poesia afro-brasileira, na viso de
Bastide, que encontraria seu pice em poetas como Gonalves Dias, Gonalves Crespo ou Cruz e
Souza, se explicitaria em autores do incio do sculo XX, poetas negros como Perilo DOliveira,
Hermes Fontes, Bernardino Lopes, Paulo Gonalves e, especialmente, em Lino Guedes. Bastide se
detm neste autor, objetivando demonstrar comparativamente com as produes de outros pases da
Amrica, aquilo que ele chamou de averso soluo marxista26, ou seja: a transformao (literria) do
problema racial em problema de luta de classes, substituindo-o por um problema moral (aspecto
presente na obra potica de Guedes). A literatura, de aspecto ambivalente, explicita tambm um eu
dividido, social e politicamente.27
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Sendo a viso social de mundo do negro e do mulato expressa em sua produo potica
extremamente tensionada, Bastide, no segundo ensaio que dedica ao problema, procede novamente a
uma investigao histrica na Literatura Brasileira para evidenciar, em diferentes momentos, o que ele
chamou de Esteretipos de Negros. Em sua maioria, sempre desfavorveis e sempre ocultos nas
relaes sociais, trazidos tona em momentos de conflitos ou para reafirmar uma posio no espao
social.
Porque foi escolhida a Literatura para a descoberta dos esteretipos brasileiros sobre os negros a
pergunta que provavelmente ser formulada. Na verdade, outras formas de pesquisa se ofereciam,
mais seguras primeira vista, como o caso dos questionrios. Mas num pas de democracia racial
como o Brasil, os questionrios podem no refletir fielmente a existncia de imagens mais ou
menos escondidas, que s se revelam verdadeiramente nos momentos de crise.[...] Alm disso, os
25Idem, Ibidem, p. 94, grifos meus.26No Brasil, foi um branco, Jorge Amado, que deu, em Jubiab, ao problema do negro, contra a antiga soluo do Candombl, a soluo marxista. Mas essa soluo no parece agradar ao preto brasileiro [diferentemente de como agradaria ao cubano ou ao estadunidense]. Ela repugna sua sensibilidade crist, ou pelo menos profundamente religiosa, ela repugna sua afetividade feita de amor, de resignao e de bondade inatas. Cf. BASTIDE, Roger. Op. Cit., p. 98, colchetes meus.27 Essa poesia puritana [do poeta paulista Lino Guedes, anos 1920] torna-se altamente interessante quando comparada a outros poetas de regies americanas. Alhures, o processo empregado para passar a linha de cor transformar a luta racial em luta de classe, fazer uma poesia marxista. No Brasil, a ascenso ao padro da moral burguesa que permite tal passagem, porque aqui (e at nas trovas populares), a luta racial assumiu o aspecto de uma oposio entre duas morais, ou entre a moral e a imoralidade. Cf. BASTIDE, Roger, Op. Cit., p.109. interessante lembrar que este debate estava sendo travado tambm no Movimento Negro e na Imprensa Negra Paulistas da poca (1924-1930), dos quais Guedes participava como editor do jornal O Getulino, de Campinas SP. Acerca disto, consultar: LEITE, Jos C. & Cuti. E disse o velho militante Jos Correia Leite So Paulo: Secretaria de Cultura, 1992 e FERRARA, Mriam N. A Imprensa Negra Paulista (1915-1963), So Paulo: FFLCH/USP, 1986.
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questionrios s esclareceriam a situao presente, no nos fazendo assistir evoluo dos
esteretipos que mudaram com a passagem do trabalho servil ao trabalho livre.28
Essa senda aberta pelo socilogo francs em seu pequeno ensaio, apesar das advertncias29,
possibilita formalmente o aparecimento dos trabalhos de autores como Raymond Sayers e Gregory
Rabassa (ambos brasilianistas da Universidade de Colmbia), que escreveriam respectivamente O
Negro na Literatura Brasileira (1958)30 e O Negro na Fico Brasileira: meio sculo de histria
literria (1965)31, bastante influenciados tambm por leituras de Arthur Ramos, Gilberto Freyre e
dison Carneiro. Entre socilogos brasileiros o trabalho de Bastide se faz perceber tambm. Em 1961,
Florestan Fernandes convidado pelo escritor negro Oswaldo de Camargo para prefaciar seu livro, 15
Poemas Negros. O convite, como Fernandes faz questo de aclarar, est associado menos ao seu
conhecimento de crtica literria que sua ligao com os movimentos negros polticos32 e culturais
paulistanos do momento, aos quais Camargo33 pertencia. Neste prefcio, o socilogo objetiva
28BASTIDE, Roger. Estudos Afro-Brasileiros, So Paulo: Perspectiva, 1973, p. 113. Grifos meus.29 Que so as seguintes: verdade que a Literatura apresenta vrios perigos para quem quer, por meio dela, atingir os esteretipos. A poesia lrica s nos mostra uma alma que canta as experincias individuais, enquanto a poesia satrica exagera, caricatura e, por conseginte, ultrapassa o esteretipo banal. Mesmo limitando-nos aos romancistas seria necessrio distinguir os esteretipos do autor dos esteretipos de seus personagens os primeiros sendo caractersticos de uma s pessoa, talvez peculiares a ela, os segundos tendo mais probabilidade de refletir o pensamento coletivo.[...] Esta objeo, que fazemos at a ns mesmos, tem duas faces; pois o escritor, mesmo quando expressa os seus sentimentos, exprime-se sempre em suas relaes com o grupo que vive; num certo sentido, suas experincias so experincias sociais e, se no decorrer de determinado perodo, encontramos repetidas em autores diversos as mesmas imagens do negro, podemos com boas probabilidades dizer que estas imagens so imposies coletivas. Cf. BASTIDE, Roger. Op. Cit., p. 114.30SAYERS, Raymond. O Negro na Literatura Brasileira, Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1958.31 Os trabalhos so complementares. Sayers estuda aspectos da histria literria do negro no Brasil at 1888. Rabassa objetiva analisar o assunto a partir deste ponto, fixando-se especialmente no perodo regionalista. Para este ltimo, a tese da miscigenao seria explicativa para, em seu modo de ver, a inexistncia de movimentos literrios e polticos referentes ao negro no Brasil. Como afirma equivocadamente o autor: O Brasil contemporneo situa-se entre as naes do mundo como um modelo de relaes raciais livres de preconceito. Os ndios que os portugueses encontraram ao chegar em suas praias desapareceram, no atravs de sangrenta exterminao, mas por meio de uma gradual miscigenao[...] O Brasil foi uma das muitas naes americanas que viram a introduo de milhes de negros da frica, na qualidade de escravos. E, embora tenha sido um dos ltimos desses pases a libertar seus escravos a abolio no se consumou antes de 1888 a razo parcial dessa luta reside no fato de que no Brasil os negros eram tratados de um modo que chega a parecer benevolente quando comparado ao tratamento dispensado aos escravos em outras terras.[...] No houve na literatura um movimento negro real como nas naes do Caribe, talvez devido ao fato de que no Brasil o negro est integrado na vida nacional num grau que no encontrado em nenhum outro lugar[...] (sic). Cf. RABASSA, Gregory. O Negro na fico brasileira: meio sculo de histria literria, Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro, 1965, pp.13-14.Grifos meus.32Essa relao ser debatida mais adiante nos captulos terceiro e quarto deste trabalho.33 Escritor e jornalista, Oswaldo de Camargo um nome importante da Literatura e da Imprensa Negra. Estreou na literatura com o livro Um Homem tenta ser Anjo (1959). Liga-se Associao Cultural do Negro nos anos 1960. Torna-se fundador da revista Nger, tambm nesta dcada. Publica os 15 Poemas Negros. Na dcada de 70 publicaria o livro de contos O Carro do xito (1972); em 1977, junto com outros membros do Movimento Negro e a tendncia de esquerda Convergncia Socialista, aliados a Marcos Faermann, editor do jornal alternativo Versus, escreveria a seo Versus Afro-Amrica Latina; seria co-fundador do coletivo de escritores negros paulistanos Quilombhoje e da srie Cadernos Negros (1978). No mesmo ano, publica sua novela A descoberta do frio. Em 1987, publicou o livro analtico O Negro Escrito, acerca do negro na literatura brasileira. Trabalhou como jornalista para os peridicos O Estado de So Paulo e Jornal da Tarde. Atualmente, est ligado ao Museu Afro-Brasil de So Paulo.
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apresentar ao menos dois problemas sobre o negro e a literatura brasileira: A) o da produo esttica
numa sociedade de classes; e, B)o da dupla natureza do impasse na poesia negra.
No que diz respeito ao primeiro caso, o autor afirma que:
Em uma civilizao letrada, o poeta representa um dos produtos mais complicados do
condicionamento educacional, intelectual e moral. um contra-senso pensar-se que o negro
brasileiro encontre na poesia (como em outros campos da arte) veculos fceis de auto-realizao.
[...] O produtor de arte negro , em si mesmo (isto , independentemente da qualidade e da
significao de sua poesia seja l qual fr), uma aberrao de tdas as normas e uma transgresso
rotina, num mundo organizado por e para os brancos. De outro lado, acham-se as fronteiras que
nascem da situao humana do negro na sociedade brasileira. Em conseqncia, os poetas
negros do Brasil caem, grosso modo, em duas categorias extremas. Ou so rplicas empobrecidas
do poetastro branco ou so excees que confirmam a regra, ou seja, episdios raros na
histria de uma literatura de brancos para brancos, o que se poderia exemplificar, em relao
poesia, com uma figura conhecida como a de um Cruz e Souza. No existe uma vitria autntica
sbre o meio. A inteligncia negra tragada e destruda, inapelavelmente, antes de revelar toda
a sua seiva, como se no importasse para o destino intelectual da Nao.34 (sic)
Sujeitos fora de lugar, produo literria dificultada pelas condies sociais, excees que
confirmam a regra: poetas negros como Cruz e Sousa seriam algo como uma subverso interna da
forma pelo contedo. Essas afirmaes, escritas no comeo dos anos 1960, sero vlidas para a
confeco literria negra e perifrica dos prximos cinquenta anos Vale ressaltar, entretanto, que o
texto do poeta catarinense de Broquis e Missal (obras de primeira fase) so diametralmente opostas ao
Emparedado (obra final, pouco estudada no momento em que Fernandes faz estas observaes).
Contudo, Florestan apresenta bem uma dicotomia da produo esttica negra que permanece atual, em
particular no que se refere ligao com a sociedade. Ao explicitar o impasse na produo
contempornea ao seu prefcio, o socilogo pondera que:
Ainda cedo para emitir juzos definitivos sbre essa poesia negra, associada liberao social
progressiva do branco e do negro na sociedade urbana e industrial brasileira de nossos dias. Dois
pontos, todavia, poderiam ser aprofundados. Primeiro, na sua forma atual, fixando o drama moral
do negro de um ngulo meramente subjetivo, ela no transcende nem mesmo radicaliza o grau de
conscincia da situao inerente s manifestaes iletradas do protesto negro. certo que ela
expe as coisas de maneira grandiosa, chocante e pungente. Diante dela, at os relutantes ou os
34FERNANDES, Florestan. Prefcio: A Poesia Negra em So Paulo. In: CAMARGO, Oswaldo de. 15 Poemas Negros, So Paulo: Associao Cultural do Negro, 1961, p. 10. Grifos meus. Este artigo foi reeditado com o ttulo Poesia e Sublimao das Frustraes Raciais no livro O Negro no Mundo dos Brancos, So Paulo: Global Editora, 2 edio revista, 2007.
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indiferentes tero de abrir os olhos e o corao: h torpezas sem nome por detrs dos inquos
padres de convivncia que regulam a integrao do negro ordem social vigente. No entanto,
essa mesma poesia se mostra incapaz de sublimar atitudes, compulses e aspiraes inconformistas,
que a poderiam converter numa rebelio ativa, voltada para o processo de redeno social do negro.
Segundo, ela se divorcia, de modo singular, dos mores das populaes negras brasileiras. Por
enquanto, a poesia que serve de veculo ao protesto negro no se vincula, nem formal nem
materialmente, ao mundo de valores ou ao clima potico das culturas negras do Brasil.[...] Se o
meio negro brasileiro tivesse um mnimo de integrao, os dilemas morais descritos poderiam
ser focados luz de experincias coletivas autnomas. Existiriam conceitos e categorias de
pensamento que permitiriam apreender a realidade sem nenhuma mediao ou alienao, atravs
de sentimentos, percepes e explicaes estritamente calcadas nos modos de sentir, de pensar e de
agir dos prprios negros. Na medida em que o negro, como grupo ou minoria racial, no dispe
de elementos para criar uma imagem coerente de si mesmo, v-se na contingncia de ser entendido
e explicado pela contra-imagem que dle faz o branco.[...] at onde ele [este impasse] perdurar, o
negro permanecer ausente, como fra social consciente e organizada, da luta contra a atual
situao de contacto, sendo-lhe impossvel concorrer eficazmente para a correo das injustias
sociais que ela encobre e legitima.35 (sic)
Fernandes explicita um problema sem enunci-lo claramente (talvez pela natureza da
publicao, financiada pela Associao Cultural do Negro): a natureza de classe da produo literria
negra em contraposio de uma ideia de negritude. A separao entre a produo literria e o grupo
social do qual ela partiria significando uma falta de voz aos anseios do grupo na literatura talvez
residiria no fato de que existe tambm um distanciamento, na maior parte dos casos, entre a classe de
origem dos escritores e o grupo social sobre o qual tratam. Simplificando: escritores pequeno-
burgueses ou de extrao mdia poderiam tratar com propriedade e com conhecimento total de causa
de assuntos e grupos marginalizados, perifricos? Ainda hoje, como se ver, este impasse permanece.
E no uma pergunta fcil de responder. Por outro lado, no fica suficientemente demonstrado que a
organizao conduziria a uma conscientizao capaz de se refletir automaticamente na obra literria.
uma aposta, que se mostrar eficaz ou questionvel em diferentes momentos da histria social literria
do grupo.
Na mesma direo, embora sem tratar de escritores negros propriamente, Tefilo de Queiroz Jr.
e Clvis Moura, ambos socilogos, tentam analisar esteretipos sobre negros presentes em produes
literrias. Queiroz Jr., em sua dissertao de mestrado analisa o Preconceito de cor e a Mulata na
35Idem, ibidem, pp. 18-19. Colchetes meus.
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Literatura Brasileira (1971)36. Moura empreender um ensaio acerca de O Preconceito de cor na
Literatura de Cordel37, em 1976. Ambos os autores seguem um padro monogrfico de trabalho,
observando obras pontuais e seus escritores, tratando do negro como personagem sempre em papel
desfavorvel. Aqui caberia uma crtica a este padro analtico, especialmente ao caso de Queiroz Jr.,
que objetiva claramente realizar uma sociologia da literatura: o vis sociolgico se sobrepe ao
literrio, servindo este ltimo para justificar o primeiro. A anlise das condies sociais propriamente
ditas para a emergncia da obra literria fica secundarizada, em detrimento da discusso e
comprovao das teses sociolgicas acerca do preconceito de cor e da estereotipia social. Moura, por
sua vez, pretendeu realizar seu trabalho sem estudar o cordel em profundidade, enquanto uma forma de
produo artstica e as condies sociais de sua produo, mas apenas discutindo seu contedo em
alguns exemplares. Ambos os autores so devedores de Bastide e Fernandes neste aspecto, mas no
ampliam seus objetos particulares dentro daquele padro de investigao.
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O trabalho que parece ter maior flego na linha analtica iniciada por Bastide o do ensasta
ingls David Brookshaw, Raa & Cor na Literatura Brasileira. Crtico literrio,38 Brookshaw torna seu
esforo analtico importante no ao se dedicar, como os outros, inicialmente para os perodos
abolicionista, naturalista e modernista (1a parte de seu livro), mas tambm literatura produzida pelos
romancistas e contistas negros (e no apenas os poetas) no Ps-Segunda Guerra Mundial (2a parte do
livro).
36Como afirma o autor: Como expre