Silvana Rubino_perriand_lina Bo Bardi

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cadernos pagu (34), janeiro-junho de 2010:331-362. Corpos, cadeiras, colares: Charlotte Perriand e Lina Bo Bardi* Silvana Rubino ** Resumo O artigo investiga, a partir de duas fotografias, os pontos de encontro entre as trajetórias de duas profissionais ligadas à produção do espaço: a arquiteta italiana Lina Bo Bardi, que atuou no Brasil, e a designer francesa Charlotte Perriand. Tomando as imagens como mote, comparamos a atuação dessas duas profissionais de renome, os momentos de exclusão, desclassificacão e também de sucesso de suas carreiras. Como Lina e Charlotte tiveram trajetórias longas e diversificadas, flagramos apenas dois momentos, o da produção de cadeiras emblemáticas que elas exibiram usando, ainda que de modo pretensamente anônimo, seus corpos como medida ergonométrica. Palavras-chave: Lina Bo Bardi, Charlotte Perriand, Modernismo, Espaço Doméstico, Design. * Recebido para publicação em julho de 2009, aceito em março de 2010. ** Professora do Departamento de História do IFCH/Unicamp. [email protected]

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cadernos pagu (34), janeiro-junho de 2010:331-362.

Corpos, cadeiras, colares:

Charlotte Perriand e Lina Bo Bardi*

Silvana Rubino**

Resumo

O artigo investiga, a partir de duas fotografias, os pontos de

encontro entre as trajetórias de duas profissionais ligadas à

produção do espaço: a arquiteta italiana Lina Bo Bardi, que atuou

no Brasil, e a designer francesa Charlotte Perriand. Tomando as

imagens como mote, comparamos a atuação dessas duas

profissionais de renome, os momentos de exclusão,

desclassificacão e também de sucesso de suas carreiras. Como

Lina e Charlotte tiveram trajetórias longas e diversificadas,

flagramos apenas dois momentos, o da produção de cadeiras

emblemáticas que elas exibiram usando, ainda que de modo

pretensamente anônimo, seus corpos como medida

ergonométrica.

Palavras-chave: Lina Bo Bardi, Charlotte Perriand, Modernismo,

Espaço Doméstico, Design.

* Recebido para publicação em julho de 2009, aceito em março de 2010.

** Professora do Departamento de História do IFCH/Unicamp.

[email protected]

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Corpos, cadeiras, colares

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Bodies, Chairs, Necklaces: Lina Bo Bardi and Charlotte Perriand

Abstract

The article explores the crossroads of the trajectories of two

professional women linked to the production of space: the Italian

architect Lina Bo Bardi, who worked in Brazil, and the French

designer Charlotte Perriand. The article begins by comparing two

photographs and then investigates the performance of these

two well-known professionals, their moments of exclusion,

disqualification as well as success throughout their careers. As they

both had long and diversified careers, we capture two moments

when they produced the emblematic chairs, that they exhibited

using their own bodies, albeit in a quite anonymous way, as an

ergonometric measure.

Key Words: Lina Bo Bardi, Charlotte Perriand, Modernism,

Domestic Space, Design.

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Silvana Rubino

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A inquietação ocasionada pela semelhança de postura

corporal e da relação entre corpo e objeto – no caso, duas

cadeiras – em duas fotografias provocou uma reflexão que deu

início a uma nova pesquisa e a este texto. Posadas, estudadas e

controladas, as imagens mostram duas mulheres sentadas em

cadeiras por elas desenhadas. Nas respectivas fotografias, estas

mulheres vinculadas ao modernismo arquitetônico usam seus

corpos como medida ergonométrica para suas obras. Embora

ocultem os rostos, como se quisessem se tornar anônimas,

sabemos de quem se trata e em diversas ocasiões as fotografias

foram utilizadas como assinaturas, como imagem-símbolo que

remetia à autoria. Essas semelhanças aparentes começam a se

dissipar se notamos a indumentária das mulheres retratadas,

certamente um primeiro sinal da distância que separa 1929, com a

jovem Charlotte Perriand de vestido e sapatos femininos posando

para mostrar sua cadeira em uma exposição, de 1951 com a já

reconhecida arquiteta Lina Bo Bardi, de calça comprida e sapatos

fechados, mostrando, em diversas poses a versatilidade de sua

cadeira. De qualquer modo, uma relação corporal que remete a

repouso e feminilidade, além de um lembrete de autoria que

assina as fotos e coloca duas cadeiras como obras únicas: pontos

de similitude que nos convidam a ensaiar uma aproximação a

qual, trazendo momentos das trajetórias das duas artistas, aliadas

à cultura material e visual, nos permite especular a respeito de

relações entre gênero e produção cultural.

Para além das semelhanças encontradas nos dois retratos, a

proposta de analisar esses dois casos de trajetórias bem-sucedidas,

com carreira, obra e visibilidade, pretende argumentar que, mais

do que as mulheres que ficaram à margem, aquelas que

freqüentaram o centro de seus respectivos campos podem dizer

algo de novo a respeito da silenciosa divisão de trabalho por

gênero no interior da prática arquitetônica do século XX, assim

como revelar um modernismo no feminino. Afinal, quando nos

perguntamos sobre a participação feminina nos grupos de

arquitetos modernos, seus nomes se impõem (ao lado de outros

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Corpos, cadeiras, colares

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como Eileen Gray, Ray Eames, Alison Smithson) como se suas

meras presenças e o sucesso que obtiveram não pudessem indicar

e indiciar formas sutis de sujeição e auto-sujeição cujas tensões

aparecem inclusive em suas obras e no modo como elas foram

exibidas – por isso a centralidade das fotos. Afinal, a história da

arquitetura, comumente surda a indagações de gênero, poderia se

perguntar se há algo a mais no conhecido aforismo de Walter

Gropius – que se tornou uma auto-representação do campo para

quem, da colher à cidade, tudo poderia ser tarefa do arquiteto.

Nesse espectro talvez algumas escalas tenham ficado a cargo de

arquitetas, no feminino, ou de mulheres cuja formação

complementava as realizações dos arquitetos do assim chamado

movimento moderno. A fala do fundador da Bauhaus, sobre

escalas que parecem equivalentes, oculta uma hierarquia de

gêneros, nos dois sentidos, que era praticada nos ateliês da escola

desde sua fundação em Weimar em 1919.

Lina Bo Bardi e Charlotte Perriand lograram construir um

nome reconhecido, mas por isso mesmo é preciso desmistificar o

sucesso dessas heroínas solitárias e ver como de certo modo

trajetórias e obras se articulam a saberes e práticas que tiveram

lugar no século XIX e começo do XX. O registro da

excepcionalidade só faz sentido se a situarmos numa exceção mais

ampla do que suas qualidades singulares: em um conjunto de

circunstâncias que se combinaram de modo pouco comum.

Nessas circunstâncias, é imperativo levarmos a sério alguns

momentos de demarcação de fronteiras de gênero nas trajetórias

de Bardi e Perriand. Quando Lina, ao se formar em arquitetura

recebeu de Marcello Piacentini o veredicto de que se casaria, bella

ragazza, para não exercer a profissão, temos um momento

simétrico à recepção que Le Corbusier deu à jovem Charlotte que

batia à porta de seu ateliê em busca de trabalho: “aqui não

bordamos almofadas”. Nesses rituais de não investimento o

mundo doméstico aparece como o destino feminino ao mesmo

tempo em que estabelece uma hierarquia: o lugar para onde elas

deveriam retornar não era dos mais desejados pelo mundo dessas

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profissões masculinas. Ou seria? Segundo Beatriz Colomina nada

distinguiu mais a arquitetura do século XX do que o papel crucial

da casa privada, com idéias importantes de Adolf Loos, Le

Corbusier e outros, sendo elaboradas por meio dos projetos de

residência – casas que os tornaram conhecidos, tenham ou não

sido construídas, especialmente aquelas que foram projetadas

para mostras, publicações e concursos.

Pontos de aproximação à parte, é preciso assinalar que a

tarefa de rever alguns cânones dessa história, como o papel crucial

dos grandes nomes, não diz respeito apenas à presença feminina.

O papel dos ateliês, cooperativas, grupos, escolas, agremiações

etc. é crucial. Charlotte Perriand não foi a única figura nublada do

ateliê de Le Corbusier, e recuperar seu papel é trazer à luz nomes

como Pierre Jeanneret e Alfred Roth, para citar apenas alguns.

Lina Bo Bardi, por sua vez, pode ter em sua condição feminina

apenas uma parte da explicação de seus vôos solo – afinal, era

uma italiana trabalhando em São Paulo no período pós-1956,

momento em que a arquitetura moderna brasileira concentrava-se

no Rio de Janeiro e ainda elaborava em diversos tons um discurso

de brasilidade. Ainda assim, tanto no Museu de Arte de São Paulo

(MASP) como no Museu de Arte Moderna da Bahia (MAMB),

trabalhava em grupo, e as nuances de sua parceria com Pietro

Maria Bardi ainda não foram suficientemente avaliadas.

Instaurar gênero como um dos condicionantes da ação

dessas artistas é pensar relacionalmente, confrontando duas

ordens de hierarquias: gênero e gênero artístico. E colocar essas

personagens em relações onde essas demarcações podem

aparecer. Não se trata apenas da glamurosa Charlotte num ateliê

masculino ou de Pietro Maria Bardi definindo o conhecido museu

projetado por sua esposa como “um sonho de mulher”. Seria

preciso lembrar como a literatura tratou Sonia Delaunay e sua

presumida relação maternal e instintiva com as cores (recordando

que ela evidenciou sua pesquisa numa colcha para o filho recém-

nascido) se comparada à abordagem intelectual e lógica de

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Corpos, cadeiras, colares

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Robert1

; a relação de Anni Albers (1889-1994) com a tapeçaria

enquanto Joseph (1888-1976) dedicava-se à teoria das cores2

; a

bem formada e vanguardista Ray (Kaiser) Eames (1912-1988)

passando a braço direito de Charles (1907-1978).3

Os exemplos

são inúmeros e interessam especialmente por remeterem a

divisões culturalmente constituídas que, repetidas e reiteradas na

longa duração, ganharam quase um caráter de dualidade

universal.4

1 A ucraniana Sonia Terk chegou em Paris em 1905 aos vinte anos e conheceu

Robert Delaunay em 1908, iniciando uma intensa parceria pessoal e artística. A

partir de 1910 o trabalho de cada um deles começou a tender à abstração, que

Robert denominava “desconstrução” enquanto Sonia a experimentava em

superfícies têxteis. Sonia tornou-se particularmente conhecida pelas roupas que

desenhou e quando a obra de Robert tornou-se mais consistente em relação aos

debates estéticos dos anos 1910, a obra de Sonia voltou-se para colagens,

pastéis, tecidos e objetos domésticos. A respeito do trabalho do casal Delaunay,

ver Chadwick (1993).

2 O casal Albers se conheceu em 1922 na Bauhaus. Ele foi um dos mais

influentes professores de pintura da escola, autor de uma teoria das cores,

enquanto ela, cujo nome de solteira era Annelise Fleischmann, dedicou-se à

tecelagem e a escritos sobre design. Em 1933 – Anni era judia – o casal migrou

para os Estados Unidos, de onde empreenderam uma série de viagens pela

América Latina.

3 Charles Eames abandonou o curso de arquitetura no segundo ano,

trabalhando como fotógrafo e também com diversas modalidades de artesanato

como cerâmica e impressão. Sua adesão ao design moderno deu-se em grande

medida por sua proximidade com o designer Eliel Saarinen e sua esposa Loja, e

posteriormente seu filho Eero. Em 1941 casou-se com Ray Kaiser, pintora e

escultora formada em Nova York e militante do grupo AAA (American Abstracts

Artists). Pat Kirkham observa o quanto a comum dualidade que em parcerias

artísticas vincula a mulher ao universo do artesanato e o homem ao da abstração

era inversa no momento em que o casal iniciou sua parceria amorosa e artística.

(Kirkham, 1998:21)

4 A própria pedagogia da Bauhaus trabalhava nessa dualidade. A herança

histórica européia, vista como opressora era vista como “feminina” e “maternal”,

enquanto que a admirada indústria norte-americana era percebida como

masculina. Herbert Bayer(1900-1985) trabalhava com esses opostos: os gostos

da cultura popular e de massa, irracionais e femininos deveriam ser disciplinados

pela tipografia e pelo desenho, equivalentes ao pai racional e regulador da teoria

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Contudo, para limitar a circunscrição desse texto, trataremos

dos momentos em que Lina Bo Bardi e Charlotte Perriand

desenharam suas cadeiras e as exibiram publicamente com seus

corpos. Não se trata de construir a trajetória das duas artistas e sim

de flagrar dois momentos de suas carreiras, situados nos dois pós-

guerras do século XX, nos quais gênero e produção estiveram

especialmente emaranhados.

CHARLOTTE PERRIAND

Nascida em 1903, em Paris, filha de um alfaiate e uma

modista, Charlotte Perriand cresceu nas redondezas do Marché

Saint-Honoré, onde seus pais residiam e trabalhavam, observando

o ambiente da alta-costura da perspectiva do pequeno artesão

(McLeod, 2003:11). Se na Paris posterior às intervenções de

Haussmann manteve-se ainda o espaço das manufaturas, o

crescente consumo dos bens de decoração e vestimenta reservou

à mulher, desde os escritos dos irmãos Goncourt, um papel de

guardiã da graça, estilo e embelezamento.5

Os pais e, em especial

a mãe de Charlotte, estavam no pólo do pequeno produtor dessa

freudiana. “Esses limites são ecoados na dicotomia estabelecida por Bayer entre

a cultura popular e o design „funcional‟, entre a história (regressiva) o futuro

(progressista) e entre o estilo (feminino) e sua rejeição (masculina)” (Mills,

2009:50).

5 No final do século XIX, escritor e colecionador Octave Uzanne denunciava a

simplicidade das femmes nouvelles como prejudicial para as artes decorativas

francesas, que careciam da forma e do adorno femininos. Esse pioneiro em uma

escrita que reintegrava artes e crafts preconizava uma aliança entre a graça

feminina, o espaço interior e o refinamento artesanal, desde o século XVIII. Seu

trabalho La femme à Paris, nos contemporaines, de 1894 dizia que essa

sobriedade minava um tipo de mulher parisiense orgânica, decorativa, e discutiu

as implicações dessa nova postura às ordens urbana e doméstica. Ele celebrava a

habilidade feminina de adornar seu próprio corpo e os espaços interiores aos

quais ela naturalmente pertencia, mesclando mulheres decorativas e

decoradoras, cujo modelo era a mulher aristocrática artesã, e delegando às

esposas burguesas decorarem não apenas as paredes de suas casas, mas também

cultivar luxo e artisticidade em suas “roupas de baixo”. Ver Silverman (1992:71).

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Corpos, cadeiras, colares

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manufatura de bens de luxo, vivendo a transição entre a profusão

dos pequenos ateliês e oficinas no centro de Paris nas últimas

décadas do século XIX e a ascensão dos grands magasins de

nouveautés que arrancaram as mercadorias dos quartiers

parisienses jogando-as em espaços que eram também de

entretenimento (Clark, 2004:97-101). A filha, seguindo de modo

mais estudado no ramo de atividades dos pais, completou tal

transição. Em 1920, com dezessete anos, ela ingressou como

bolsista no programa de quatro anos da Ecole de l`Union

Centrale des Arts Decoratifs, uma escola feminina e feminista6

embora muitas das moças tivessem origem nas elites parisienses e

a expectativa de um bom casamento. Quando da passagem de

Charlotte pela escola, sua direção estava a cargo de mulheres,

exceto pelo diretor artístico, Henri Rapin (1873-1939). Mas essa

aparente peculiaridade tinha sua origem nas reformulações que a

instituição sofreu por volta de 1890, dentre as quais ecoava a visão

desenvolvida em círculos oficiais, de que haveria um papel à

mulher na regeneração das artes aplicadas nacionais, e a partir de

então a escola envolveu-se em campanhas para a liderança das

mulheres na produção e consumo de um artesanato de luxo.

Nesse momento, mulheres como Eileen Grey, Sonia Delaunay,

Hélène Henry, dentre outras, ganhavam proeminência crescente

no panorama da arte decorativa francesa (Costa Meyer, 2003:22).

Uma vez formada, Charlotte recebeu de Rapin o conselho

de que buscasse a todo custo expor – afinal, ninguém a conhecia.

O aconselhamento profissional nesse momento assinala o perfil de

que não havia freqüentado o curso por diletantismo, mas em

6 A Union Centrale des Arts Decoratifs foi fundada em 1864 como União Central

das Belas Artes aplicadas à Indústria. Ficava na Place Royale (hoje Place des

Vosges), bem no bairro de artesãos que era o Marais. Seus membros incluíam

manufatureiros de papel de parede, tapetes, pianos, ourives etc. A mudança de

nome veio com outras alterações em 1890. O termo “indústria” foi suprimido e

os objetivos transformados: por volta de 1889, a idéia de vulgarizar o senso de

beleza e democratizar a arte foi substituída por uma busca de purificação da

beleza e aristocratização do artesanato. Ver Deborah Silverman (1992:111).

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busca de uma qualificação para o trabalho, o que a distinguia de

algumas amigas como Dora Maar e Marianne Clouzot, filha do

crítico de arte e diretor de museu Henri Clouzot. Charlotte buscou

uma segunda formação nos ateliês de pintura de Bernard Boulet

de Montvel e posteriormente de André Lohte. Na Paris posterior à

Primeira Guerra, as grandes lojas de departamento francesas

instituíram seus próprios estúdios de design, e ela frequentou as

aulas de Maurice Dufrene7

nas Galeries Lafayette e de Paul Follot8

no Bon Marché, que ofereciam atividades mais práticas do que as

da escola, que era quase um ateliê familiar. Um dos fundadores

da Société des Artistes Décorateurs, Dufrene havia trabalhado

com nomes importantes como Victor Horta e Henry van der

Velde, e foi com ele que Charlotte desenhou cortinas para um

quarto exibido no Salão de Artes Decorativas de 1926, decoração

produzida por La Maitrise, do ateliê Lafayette, peça a partir de

então exibida diversas vezes nas vitrines da loja (Costa Meyer,

2003:23).

Dufrene e Follot trabalhavam para grandes lojas, o que os

colocava diante da questão da produção em massa e do mercado,

e o que se esperava deles era que fizessem cenários para a classe

média, em forma e preço, mas eles mantinham o foco no cliente

abastado – Dufrene afirmando que a partir do rico se poderia

atingir a burguesia e depois o povo, enquanto Follot, muito mais

resistente às mudanças, opunha arte serial à própria idéia de arte,

antagonizando qualidade e quantidade, como uma banda de jazz

com setenta negros em oposição a um quarteto – este último, sem

dúvida, sua opção. Em 1925, Maurice Dufrène coordenou uma

“rua das lojas”, para a exposição internacional das artes

decorativas e industriais modernas, projetada, entre outros por

7 Maurice Dufrene (1876-1955) era presidente do Salon des Artistes Décorateurs

e diretor artístico da Maïtrise das Galeries Lafayette.

8 Paul Follot era diretor artístico do estúdio Pomme, o ateliê de arte do Bon

Marché.

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Corpos, cadeiras, colares

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Gabriel Guévrékian9

, René Herbst10

e Francis Jourdan sobre a

ponte Alexander III. E Charlotte apresentou Le Neuf Muses, um

painel art déco para um salão de música.

Em 1926, a jovem designer apresentou pela primeira vez um

ambiente completo no Salão Anual da Societé des Artistes

Decorateurs de Paris. Financiada por seus pais, a composição

intitulada Coin de Salon, foi recebida como juvenil e criticada por

mesclar madeira e vidro. Costa Meyer nota que o trabalho ficava

distante daqueles produzidos pelos professores de Charlotte, e

buscava aproximar-se dos trabalhos mais vanguardistas

apresentados na mesma ocasião, como um quarto que Georges

Djo-Bourgeois11

fez para uma villa modernista projetada pelo

arquiteto Robert Mallet Stevens na Cote d`Azur. O conjunto Coin

de Salon foi adquirido por um comerciante inglês de tecidos,

Percy Schlonfield, para mobiliar sua garçonière.12

Scholenfield,

vinte anos mais velho do que Charlotte e amigo de sua família, foi

o financiador de um conjunto de luminárias (que ela

possivelmente vendeu para a estilista Jeanne Lanvin) (Ruegg,

2004:10) e um armário para prataria finalizado em 1926; também

ofereceu cursos de arquitetura, matemática, inglês e de condução

de automóvel. Em dezembro do mesmo ano eles se casaram, para

surpresa de todos e contra a vontade paterna, devido à religião

9 Arquiteto turco que se formou em Viena, em 1919, e mudou-se para Paris,

onde trabalhou, entre outros, com Robert Mallet-Stevens, André Luçart e Le

Corbusier. A convite deste último, passou a atuar fortemente nos Congressos

Internacionais da Arquitetura Moderna (CIAMs).

10 Arquiteto parisiense nascido em 1891 estudou em Londres e em Frankfurt.

Estabeleceu-se em Paris onde atuou como arquiteto de interiores. Foi um dos

fundadores da Union des Artistes Modernes.

11 Georges Djo-Bourgeois (1898-1937) nasceu em Bezons e formou-se em

arquitetura em 1922. Integrou a equipe de criadores do Studium Louvre, ligado

ao Grands Magazins du Louvre.

12 A poltrona do conjunto foi exposta na exposição anual de arte aplicada do

museu Galliera, dirigido por Henri Clouzot, no inverno de 1926-7.

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protestante, à nacionalidade e aos 20 de diferença de idade.13

Charlotte usou um vestido de veludo vermelho, casou-se sem festa

e no final de sua vida definiu o casamento como o único caminho

possível para romper com algumas determinações.

É interessante a narrativa da transformação pessoal,

espacial, corporal desses anos: para decorar seu apartamento de

mansarda, Charlotte sentia-se livre dos constrangimentos da

escola e das lojas, pois criava para ela mesma. Nesse momento ela

viu Josephine Baker em Revue nègre, “uma Josephine negra,

nua, ao ritmo descadenciado, com o pescoço adornado por

bananas, uma mulher selvagem, autêntica” (Perriand, 1998:23). É o

momento da descoberta do jazz, do charleston, da literatura

inglesa. Ela cortou os cabelos à la garçonne e mandou fazer um

colar de bolas de cobre cromado, “um símbolo e uma provocação

que marcava meu pertencimento à época mecânica do século XX”

(idem), ao mesmo tempo em que se iniciou no alpinismo e outros

esportes de montanha. Passou a personificar a imagem da mulher

moderna descrita por Le Corbusier14

: uma mulher de cabelos

curtos, que se veste em cinco minutos e é bela, seduz por sua

13 Segundo sua autobiografia, o vestido vermelho era para evitar rendas e

adereços, e o casamento a possibilidade da lagarta virar borboleta, ao que

acrescentou: mas “a borboleta voa” (Perriand, 1998:22).

14 “A mulher nos precede. Ela realizou a reforma de seu traje. Ela encontrava-se

num impasse: seguir a moda e então renunciar à contribuição das técnicas

modernas, à vida moderna. Renunciar ao esporte e, problema mais material, não

poder aceitar empregos que lhe permitiriam ter uma participação fecunda na

atividade contemporânea e ganhar sua vida. Seguir a moda: ela não podia

pensar em guiar; não podia nem o metrô, nem o ônibus, não podia sequer agir

com desenvoltura em seu escritório ou na loja. Para poder realizar a construção

cotidiana de sua toalete – pentear-se, calçar o sapato, abotoar o vestido – ela não

tinha mais tempo para dormir. Então a mulher cortou seus cabelos, suas saias e

suas mangas. Agora está com a cabeça descoberta, os braços de fora e as pernas

livres. Veste-se em cinco minutos. E é bela, seduz com o encanto de suas graças,

das quais os modistas resolveram tirar partido.” (Le Corbusier, 2004 [1930]:112).

Adiante,no mesmo texto, ele volta ao tema, mas dessa vez enfatizando

discretamente um atributo de sedução: “A mulher moderna cortou os cabelos.

Nossos olhares conheceram a forma de suas pernas.” (idem:125)

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Corpos, cadeiras, colares

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graça, coragem com seu espírito de invenção que operou a

revolução na indumentária, um milagre dos tempos modernos.

Segundo o depoimento de sua amiga Marianne Clouzot, seu

marido Scholenfield exibia sua parisiense moderna como um

trunfo.

Seja por conta das críticas recebidas, pelo casamento ou

pelo contraste com a obra mais arrojada de Djo-Bourgeois, o que

sabemos é que seu trabalho se alterou. Em 1927 no Salon

d`Automne, Charlotte apresentou um Bar sous le Toit, sob o teto,

título que pode ter implicações sociais (Costa Meyer, 2003:26) se

pensamos que destinava-se à mansarda de um edifício parisiense,

ainda que a obra não fosse endereçada aos mais pobres. Além

disso, era um bar, com mesa de jogo – ambiente masculino –

desenhado por uma mulher que era autora, cliente e usuária: o

bar de mansarda foi desenhado para o apartamento que ela

dividia com o marido no lado mais boêmio de Paris. Mais do que

a ruptura com a ideia de genius loci, assinalada por Costa Meyer

(2003:30), foi sua ruptura – e aqui sou eu a dizer – com idéias pré-

concebidas de domesticidade. O apartamento chamou a atenção

da imprensa e foi publicado na Révue de la Femme como um

espaço que seduzia por sua coqueteria.

Se o casamento lhe assegurava condições de trabalho, a

mudança estética veio com relação profissional com um homem

que se colocava no centro do campo da arquitetura moderna –

Charles Edouard Jeanneret, mais conhecido como Le Corbusier.

Foi o joalheiro Jean Foquet quem emprestou a Charlotte os

programáticos e panfletários Vers une Architecture e L`art

decoratif d`aujourd`hui. A leitura significou uma alternativa ao

art-déco ao mencionar o papel da indústria na casa, na famosa

máquina de morar.

Aparentemente, a visita frustrada – Le Corbusier a rejeitou

dizendo que ali não se bordavam almofadas – de Perriand ao

ateliê da rue de Sèvres aconteceu poucos dias depois da

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Silvana Rubino

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exposição Weisennhof Siedlungen de Stuttgart.15

Nessa exposição

de habitações de fato construídas, a cozinha foi o centro das

atenções, com as regras gerais definidas por uma Associação de

Donas de Casa de Stuttgart e pelo livro Der neue Haushaut, livro

de 1926 da feminista Erna Meyer sobre a “nova casa” que vendeu

vinte e nove edições em dois anos, e que vinha ilustrado com

casas construídas por arquitetos ligados ao Neues Bauen e com

equipamento projetado pela Bauhaus. A casa apresentada por

J.J.P. Oud era um exemplo desse novo ideal de casa eficiente.

Confiante em seu charme e seus desenhos, Perriand ouviu que

naquele ateliê não se bordavam almofadas, mas ao visitar o Salon

d’automne, Le Corbusier visitou o Bar sous le toit e reconsiderou

sua grosseira recepção, convidando-a para desenvolver o desenho

de mobiliário que ele preconizava desde o pavilhão Esprit

Nouveau de 1925.

A nouvelle femme de 23 anos que Corbusier aceitou sem

remuneração, mas com o status de associada16

se apresentava

então como “Perriand-Scholenfield, Meubles, 74, rue de

Bonaparte” e seu apartamento tornou-se um grande laboratório,

uma oportunidade de se distinguir das criações em madeira,

tapeçaria e outros saberes artesanais. Ela concluiu em 1928 uma

sala de jantar, recriada e exibida no Salon des artists décorateurs

do mesmo ano, junto a um salão de Djo-Bourgeois (1898-1937) e

15 Exposição dirigida pelo arquiteto Mies van der Rohe que consistia em trinta e

uma edificações projetadas por dezessete arquitetos, incluindo blocos de

apartamentos do próprio Mies, de J.J.P. Oud e de Mart Stam, e diversas casas,

sendo duas de Le Corbusier e de seu primo e parceiro Pierre Jeanneret. Segundo

Mary McLeod (2003:37), os interiores das casas alemãs eram elegantes,

enquanto Le Corbusier não dava conta de equipar suas casas à altura de seus

projetos arquitetônicos. Nesse caso, no último momento, seu parceiro Alfred

Roth desistiu de esperar os projetos de equipamento que não chegavam e

improvisou, com um resultado que contrastava muito com o interior do

apartamento de Mies, projetado em parceria com Lilly Reich – outra designer que

precisa ser estudada. Le Corbusier foi severamente criticado pelos alemães.

16 Ela tinha o status de associada e ao mesmo tempo tinha aulas particulares de

arquitetura com Alfred Roth, atividade financiada por seu marido.

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Corpos, cadeiras, colares

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um fumoir de René Herbst (1891-1982). O grupo decidiu expor

junto para produzir o que denominaram “unidade de choque” e

Elisa Djo-Bourgeois desenhou as cortinas e os tapetes da sala do

marido. As cadeiras da sala de Perriand eram visivelmente

inspiradas por cadeiras de escritório e a revista, L`Architeture,

considerou o trabalho do grupo de extrema esquerda e um artigo

publicado pela revista feminina Maison pour Tous, descreveu o

projeto como adequado a uma existência ativa, sem grandes

períodos de repouso, enfatizando ser de autoria de uma mulher

que usava colares de metal e cabelos curtos – não era a sala de

jantar da tradicional femme au foyer. McLeod enfatiza que parte

do sucesso pode se dever a uma atenção de Perriand aos

detalhes, elegância e outros atributos tradicionalmente femininos,

observação que ela faz a partir dos adjetivos usados pela imprensa

para qualificar o trabalho: charmoso, jovem, gaï: uma feminilidade

em termos modernos, que pode ter facilitado a recepção de uma

agenda renovadora (McLeod, 2003:44). A sala de jantar era

composta de uma cadeira pivotante (siège tournant) e de uma

mesa extensível coberta de borracha, que ao contrário da cadeira,

nunca recebeu a assinatura tripla Corbusier-Jeanneret-Perriand. A

aceitação e a associação não apagaram totalmente a tensão

inicial, sem dúvida atravessada por questões de gênero: quando

Charlotte convidou Corbusier e seu primo Jeanneret para uma

visita ao seu apartamento, na qual os surpreendeu com algumas

cadeiras prontas, ouviu do primeiro: “Ils sont coquets”.

Charlotte Perriand expunha nos salões refinados, saudados

pela imprensa e não no Salon des Arts Menagers, fundado em

1923 por Jules-Louis Breton, um engenheiro socialista

simpatizante da aplicação dos princípios tayloristas ao mundo

doméstico. Tal debate a respeito da racionalização das tarefas

cotidianas foi levado a cabo pelas alemãs no mesmo período,

resultando no projeto da cozinha de Frankfurt, de 1926-7. Por

conta da situação da indústria francesa, se comparada à

americana e alemã, não é seguro falarmos em um desenho

industrial, especialmente se tomarmos as anotações de Charlotte a

Page 15: Silvana Rubino_perriand_lina Bo Bardi

Silvana Rubino

345

respeito dos artesãos que deveriam executar seus desenhos. Nesse

momento, ainda menos comprometida com os aspectos sociais

daquilo que desenhava, ela se projetava como uma mulher

moderna em seu corpo e seus projetos de mobiliário – a

diferenciação em relação a Corbusier, especialmente no que toca

opções políticas viria apenas na década seguinte.

Chegamos assim à cadeira mencionada no início do artigo,

na qual Charlotte se fez fotografar, a chaise-longue que permite

várias posições, inspirada em cadeiras de balanço em madeira e

também em uma cadeira médica para repouso patenteada como

Surrepos. Esta obra foi a culminação dos anos em que trabalhou

em parceria com Corbusier e Jeanneret: na foto vemos Charlotte

deitada em sua chaise-longue em foto concebida por ela e clicada

por Pierre Jeanneret na ausência de Corbusier, que estava no

Brasil. Suas pernas erguidas contrastam com a delicadeza dos

sapatos boneca, seu colar-manifesto em bolotas de metal é uma

afirmação de modernidade – ela usou essa foto para ilustrar um

manifesto ao qual voltaremos – enquanto candidamente esconde

seu rosto. Já no final de sua vida, a leitura feminista que a

historiadora da arquitetura Beatriz Colomina fez dessa imagem,

sugerindo que ela olhava a parede e nada enxergava, negando

sua visão e autoria (Colomina, 1992:106-7), deixou Perriand, já

mais do que consagrada, especialmente zangada, argumentando

que tudo que ela queria era enfatizar a cadeira, que poderia ser

usada por qualquer um. Mas, nota McLeod, com suas pernas para

o alto, seu vestido, sim, ela era coquete, ao exibir um móvel que,

como sua imagem, tinha um charme ligado à sedução. A foto tem

duas versões, com roupas diferentes. Foi tirada por Pierre

Jeanneret enquanto Le Corbusier visitava a América do Sul17

, e

ilustrou o segundo volume da Oeuvre do arquiteto, assim como o

artigo “Wood or metal?” que Charlotte publicou na revista inglesa

17 Na sua décima conferência em Buenos Aires, em 19 de outubro de 1929, Le

Corbusier creditou à Charlotte a importância da revolução do mobiliário, dizendo

que enquanto ele ali falava, ela demonstrava no Salão de Outono o princípio do

equipamento de uma casa moderna (2004 [1930]:118).

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Corpos, cadeiras, colares

346

Studio defendendo o metal, que segundo ela realizaria no

mobiliário a mesma revolução que o cimento havia logrado na

arquitetura. O artigo, que a apresentava como uma “campeã de

idéias novas”, concluía pedindo transparência, azuis, vermelhos,

espaço, luz, e antecipando a má sorte daqueles que não se

mantêm em boa forma física e mental – em outras palavras,

daqueles que não fossem homens do século XX. Contido, de certo

modo, e contrastando com a irreverência do texto, o artigo trazia

Charlotte fotografada em outra posição, com as pernas abaixadas;

de resto, a foto é semelhante: rosto virado contra a câmera, braços

inertes ao lado do corpo, mas há sem dúvida um pudor maior do

que na foto com as pernas, embora cruzadas, erguidas. Ainda que

as duas fotos possam ter sido produzidas para mostrar a

versatilidade da cadeira – expediente também utilizado por Lina –

a escolha em cada situação diz muito.

Charlotte desempenhou um papel central no ateliê da rue

de Sèvres, especialmente nos períodos em que Le Corbusier se

ausentava em razão de suas viagens – como as conhecidas para o

Brasil, em 1929 e 1936. Nessas ocasiões, cabia a ela e a Jeanneret

a responsabilidade por projetos, como por exemplo, o pavilhão

Temps Nouveaux de 1937. Na mesma mostra, ela construiu com

Ferdinand Léger o Pavillon de l’Agriculture, totalmente afinado

com a esquerda francesa e o Front Populaire. Durante os dez anos

em que trabalhou com Le Corbusier e Pierre Jeanneret, foi

responsável pelo equipamento interior de todas as construções da

dupla de arquitetos (Benton, 2005:15). Em 1937 ela seria convidada

a se retirar do ateliê, por sua presença disruptiva, um elemento

perturbador – foi a justificativa que recebeu de Corbu. Até que

ponto suas opções políticas, a proximidade afetiva que ela,

divorciada de Scholenfield, mantinha com Pierre Jeanneret teriam

prevalecido nessa decisão? O fato é que Le Corbusier nesse

momento parecia ideologicamente mais próximo de quem

trabalharia em Vichy, enquanto Jeanneret se lançaria na

resistência francesa e Charlotte viajaria para o oriente,

Page 17: Silvana Rubino_perriand_lina Bo Bardi

Silvana Rubino

347

desdobramentos – no Japão ela redesenhou a chaise em bambu –

que apenas assinalo para tratar oportunamente.

Page 18: Silvana Rubino_perriand_lina Bo Bardi

Corpos, cadeiras, colares

348

LINA BO BARDI

Acchilina di Enrico Bo nasceu em 1914, em um bairro

burguês residencial de Roma. Diferente de Charlotte, de família

mais modesta e que se fez batizar aos 18 anos, foi batizada muito

próxima de sua casa: no Vaticano. Seu pai era um engenheiro

civil, empreendia construções e era pintor de domingo. Foi Enrico

Bo que ensinou sua primogênita a desenhar e o empenho familiar

era no sentido de que após o término do Liceu Artístico ela

cursasse Belas-Artes. Na Roma tomada pelo fascismo,

aconselhada pelo pai, Lina, como a chamavam, cursou o Liceu

por quatro anos e ao mesmo tempo contrariando e confirmando a

disposição familiar, ingressou na Università degli studi di Roma,

onde era uma das duas mulheres – e a pesquisa jamais descobriu

quem era a outra.18

Em pleno fascismo, eram arquitetos de

renome e vinculados ao regime que dirigiam o curso: Marcello

Piacentini, o autor da cidade universitária de Roma e Gustavo

Giovanonni, o teórico maior da restauração naquele período.

Para se formar em arquitetura em Roma, Lina Bo

apresentou como trabalho final de curso, um hospital-maternidade

de arquitetura moderna. Além da nota relativamente baixa, foi

desqualificada pelo diretor da escola, Marcello Piacentini, que teria

dito que uma bella ragazza como ela terminaria se casando, e

portanto estaria fora do exercício da arquitetura. A violência

simbólica desse ato é simétrica à desqualificação sofrida por

Charlotte no episódio do “bordar ou não almofadas”, uma

enunciação da norma de gênero que desqualifica e desinveste.

Formou-se em 1939, com 25 anos.

Mas foi um pouco nos espaços femininos que Lina, recém

formada e trocando sua Roma natal por Milão, começou seu

exercício profissional fazendo ensembles, muito em parceria com

18 A trajetória de Lina Bo Bardi em Roma, Milão, São Paulo e Salvador, até a

inauguração do MASP, em 1968, está detalhada e analisada em Rubino (2002 e

2009).

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Silvana Rubino

349

o colega Carlo Pagani, e ilustrando revistas, ainda que tivesse,

com a ajuda financeira de seu pai, aberto um escritório. Lina foi

trabalhar, sem remuneração, com o camaleônico arquiteto Giò

Ponti: editor, autor de edifícios importantes, designer e promotor

do artesanato italiano, seu escritório dedicava-se, dentre tantas

tarefas, à organização das Trienais de Artes Decorativas. Um

projeto de decoração de interiores, realizado em parceria com

Pagani chegou a ser executado em 1942.19

A revista Quaderni di

Domus, que Lina fundou – também com Pagani – em 1945,

dedicava-se aos problemas da casa moderna – da porta para

dentro, ao que tudo indica – e nela eram publicados os melhores

exemplos, italianos ou não, de mobiliário e equipamento

doméstico (Campello, 22). Em 1946, Lina viajou por toda a Itália

pesquisando artesanato, com o fim de organizar uma exposição

de têxteis para cortinas e estofamentos para uma empresa italiana,

a Rima. Não por acaso, já no MASP, estaria envolvida com a

criação de uma escola de desenho industrial, o Instituto de Arte

Contemporânea (IAC).

Em uma revista que fundou em 1945 com Bruno Zevi – A,

ou Cultura della Vitta – Lina propunha um jogo que ensinava o

leitor a usar a casa e os objetos modernos. Tratava-se sempre da

escolha de um copo, um relógio doméstico, um adorno. A

resposta “errada” era severamente criticada como falta de visão

funcional e estética. No mesmo periódico, que durou apenas nove

meses, ela editou um artigo a respeito da liberdade feminina no

século XX, liberdade solucionada por meio de equipamento

doméstico e de uma cozinha americana. O pós-guerra italiano era

de reconstrução e este país teve um lugar central na redefinição do

modernismo arquitetônico que traria novos temas como

identidade e centros urbanos e culminaria na dissolução dos

CIAMs no final dos anos 1950. E enquanto Charlotte descobria o

19 O “Projeto de ambientação de apartamento em Milão” foi publicado em Lo

Stile, revista dirigida por Ponti, em 1942. Foi seu único projeto executado no

período em que exerceu a profissão na Itália.

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Corpos, cadeiras, colares

350

Japão e trocava o aço pela madeira, Lina migrava para o Brasil

para iniciar sua carreira de architetto, como ela dizia, em italiano e

sem flexionar.

Casada com o jornalista, crítico e comerciante Pietro Maria

Bardi, pode acrescentar a essa sina de ambientadora de cenários

interiores outros ramos da arquitetura. A narrativa posterior a

respeito do casamento de Lina assemelha-se àquela de Charlotte,

algo como “casei, ele era moderno”, sem evidenciar em nenhuma

fala a centralidade desse consórcio na carreira que desenvolveu

posteriormente e pouco enfatizando a potência dessa parceria.

Embora de origens sociais distintas e aparentemente apartados

por posições políticas – Bardi foi uma peça importante na política

cultural de Benito Mussolini enquanto Lina freqüentava mais a

esquerda milanesa – Pietro e Lina Bardi compartilhavam uma

aposta quase irrestrita na arquitetura moderna e um apreço pela

arte popular brasileira, além de editarem juntos a Habitat, revista

do museu. Em 1951, concluiu a própria casa chamada, como

tantas outras, Casa de Vidro20

, seu laboratório de experimentações

conferidas pela autonomia – ela escreveu na Habitat que nessa

casa o cliente era o próprio arquiteto. No mesmo bairro do

Morumbi, projetou posteriormente uma casa para a amiga Valeria

Cirell e, ainda em 1958, iniciou o projeto para a futura sede do

Museu de Arte de São Paulo – cujos interiores ela já havia

ambientado quando de sua fundação em 1948, chegando a

projetar móveis, pois não se satisfez com o que encontrou no

mercado brasileiro.

Assim, de certo modo, Lina enfrentou aqui os mesmos

dilemas de produção com os quais Charlotte havia se deparado

duas décadas antes: a relativa letargia da indústria em relação ao

mobiliário. Se na Paris de 1920-30 não havia quem executasse os

desenhos de Perriand até estes serem, finalmente, assumidos pela

20 Casas de vidro são uma constante. A primeira, Maison de Verre, foi construída

em Paris entre 1928 e 1930, combinando as funções de uma clínica médica e

uma casa particular.

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Silvana Rubino

351

empresa Thonet, em 1948, Lina fundou com Bardi e seu amigo

arquiteto conterrâneo Giancarlo Palanti o Studio Palma e a fábrica

de móveis Pau Brasil, que terminaram por fechar suas portas por

dificuldades de produção. E para sua Casa de Vidro projetou a

poltrona batizada de Bardi‟s Bowl. Como Charlotte, foi modelo de

seu trabalho, emprestou seu corpo, sua imagem à sua obra.

Inclusive para uma propaganda do loteamento Jardim Morumbi,

de 1952, na qual aparece na Casa de Vidro

mirando uma mata

Atlântica inexistente, numa montagem fotográfica.

A Casa de Vidro não foi bem recebida por críticos italianos

por ter dependências de empregada. Giò Ponti disse que havia ali

um segredo, uma vinculação da italiana Lina aos problemas

insuperáveis do Brasil, à aceitação do trabalho servil. O “segredo”

era apenas o desconforto europeu com uma área que, nos

edifícios parisienses haussmanianos, ficava na mansarda dos

empregados domésticos aos quais Le Corbusier se referia no

mesmo estatuto de equipamentos e máquinas.

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Corpos, cadeiras, colares

352

Mas foi pouco depois, em uma Enciclopédia da mulher, na

qual ela aparece como autora de um verbete, que essa exposição

como mulher moderna que sabe usar os espaços modernos

chegou àquele que é talvez, seu ponto máximo. Nesse verbete,

uma cozinha americana (mostrando equipamento ainda não

conhecido no Brasil) exibida era a de sua casa, jamais usada por

serem máquinas muito sofisticadas para os empregados

manejarem. Lina era a mulher moderna, mas seu texto pode ser

inserido numa linhagem de ensinamentos para donas de casa,

como os que ela já escrevia com Carlo Pagani em Milão nos anos

1940, assim como dos manuais da vida doméstica.

Em 1915, nos Estados Unidos, Mary Peterson publicou

Principles of Domestic Engineering e Christine Frederick seu

Scientific Management in the Home. O livro de Frederick baseava-

se nos “Doze princípios do gerenciamento científico” definido pela

Lillian Gilbreth para a mulher que trabalhava em sua própria

residência. A idéia era um seqüencia de atividades na ordem

certa, mas central a ela estava a proposta de que a cozinha

deveria ser um espaço apenas para se cozinhar, e portanto

poderia diminuir de tamanho. Menor, ela exigiria menos

movimentos para a execução das mesmas tarefas. Os arquitetos

europeus logo identificaram essa cozinha como a marca registrada

dos cuidados científicos com o lar – isso em um momento no qual

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Silvana Rubino

353

a arquitetura moderna propunha uma nova casa, uma máquina,

um novo modo de se morar.21

Ao final dos anos 1920 na Alemanha, a divulgação das

idéias do novo modo de se gerenciar uma casa, aliada à atuação

de arquitetos como Bruno Taut gerou como solução a proposta da

casa para uma subsistência, ou existência mínima (Die Wohnung

für das Existezminimum). E a culminação disso tudo foi o projeto

da conhecida Cozinha de Frankfurt, pela arquiteta austríaca Grette

Schütte-Lihotsky22

, exibida na Die neue Wohnung und ihs

Innesausbau, em 1925, e logo incorporada em diversos projetos

residenciais construídos nessa cidade por Ernst May. Trata-se de

uma Kochküche, cozinha para se cozinhar, pequena e com uma

aura de modernidade que vinha do uso da eletricidade. A

novidade atravessou de volta o Atlântico e, em 1934, o livro

Modern Housing, de Catherine Bauer e editado em Nova York

saudava a cozinha de Schütte-Lihotsky como uma das grandes

conquistas da nova arquitetura (Bullock, 1988:188).

21 Um artigo publicado na revista A (depois rebatizada como Cultura della Vitta),

editada em Milão, em 1946, por Lina Bo (futura Bardi) intitulava-se “Puo Il

huomo essere libero si la Donna e uma schiava?”. O artigo, assinado por RGM,

tomava de empréstimo uma frase do poeta romântico P.B. Shelley (Can man be

free if woman be slave?), ressaltando, contudo que não se tratava de tirar a

mulher de sua posição familiar, mas de liberá-la de sua antiga fadiga com ajuda

da educação e das modernas descobertas científicas. O artigo seguinte, no

mesmo número intitula-se “La cucina dell‟avvenire” e menciona uma cozinha

projetada pela empresa norte-americana Libbey Ovens Ford, tão distinta da

cozinha italiana do momento, diz o artigo não assinado, como a abóbora da

carruagem de Cinderela. O artigo trazia imagens de uma mulher bem arrumada e

de avental utilizando batedeira elétrica e outras novidades. Ver A nº 1. Editoriale

Domus, fevereiro de 1946.

22 Margarete Schütte-Lihotsky (1897-2000) foi a primeira mulher a se formar em

arquitetura na Áustria. Estudou com Joseph Hoffman e trabalhou com Adolf

Loos, além de Ernst May, quando ele era o arquiteto responsável pela habitação

na prefeitura de Frankfurt. Grete, como era chamada, equipou com sua cozinha

planejada mais de 10 mil unidades habitacionais. A Cozinha de Frankfurt foi

concebida levando em conta a quantidade de movimentos realizada pelo corpo

no preparo dos alimentos.

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Corpos, cadeiras, colares

354

A casa de Lina e Pietro Bardi, como muitas das projetadas

no século XX por arquitetos reconhecidos, era uma exibição: além

de moradia, era um passe de entrada no campo da arquitetura

brasileira. A Casa de Vidro não foi projetada para nenhuma

mostra, mas há indícios de que ela poderia ter sido um ateliê ou

uma residência para artistas convidados pelo MASP. Se para

Charlotte, seu primeiro apartamento, financiado por seu marido,

era um laboratório, para Lina, sua casa, projetada nas mesmas

circunstâncias de autonomia financiada por seu parceiro, é –

como a Ville Savoye (de Le Corbusier) e outras residências

consagradas – um manifesto “por uma arquitetura”.

E nessa casa, usada como exemplo de um morar moderno

(os outros exemplos são casas projetadas por Vilanova Artigas), as

imagens mostram uma mulher “moderna” que escapa ao padrão

iconográfico do período. Lina está de calças compridas, de

relógio, não porta vestidos ou aventais. A cozinha poderia se

assemelhar à funcional cozinha americana, uma versão mais

espaçosa e mais equipada da cozinha de Frankfurt – afinal era

uma casa burguesa, enquanto a segunda destinava-se a conjuntos

habitacionais – mas ela não representava a dona de casa

suburbana do Kitchen Debate que ocupou a América do Norte no

auge da guerra fria. Os empregados domésticos, mencionados no

texto, não têm suas dependências mostradas nas fotos e desenhos

que ilustram o verbete.

A cozinha era alemã e americana, distante das tradições do

espaço doméstico burguês nas cidades brasileiras. Seu mobiliário,

porém, mesclava chita com madeiras locais – cujos veios a

encantaram e mais tarde viriam a encantar Charlotte Perriand –

ainda que a Bardi‟s Bowl fosse de metal e couro, numa vinculação

com os móveis europeus dos anos 1920 e 1930, mas dialogando

com o que arquitetos e moveleiros modernos faziam então em

São Paulo. E também Lina em algum momento dedicou-se a fazer

um colar para si. O colar de águas marinhas, com o qual

compareceu ao baile do Instituto dos Arquitetos em 1948, recém

chegada a São Paulo, foi um manifesto de naturalização, de

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Silvana Rubino

355

assimilação ao Brasil, ao usar (e enunciar isso) deliberadamente

pedras brasileiras e semi-preciosas, e também um modo de se

diferenciar das mulheres com as quais convivia socialmente no

período de fundação do MASP da rua 7 de abril. Diferente do

colar da jovem Perriand, um manifesto a favor da industrialização

e do metal que ela por muitos anos no início de sua carreira usou,

com seus cabelos tosados para compor sua imagem de mulher

moderna. Com ele deixou-se fotografar em diversas ocasiões,

inclusive em posição de repouso na sua mais conhecida cadeira.

O colar de Lina era uma plataforma por um desenho de jóias

brasileiras, de bronze, prata, quartzos e berilos, algo fora dos

“brilhantões das madames”. Um projeto que era o mesmo para o

design, para os museus, com a diferença de que ela o portava

publicamente em seu colo.

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Corpos, cadeiras, colares

356

Considerações finais

Há uma hierarquia nas artes: a

arte decorativa está embaixo, a

figura humana, no topo.

Ozenfant e Jeanneret (Le

Corbusier”), Depois do cubismo.

Briony Fer observa, em seu trabalho sobre os construtivistas

russos, a presença feminina numa arte “útil”. Mulheres como

Varvara Stepanova trabalhavam em construções que ficavam

entre a indústria, universo masculino, e certos aspectos da arte

popular, como o bordado, que implicavam o feminino. Além de

participar das chamadas artes menores, o trabalho feminino,

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Silvana Rubino

357

naquele espectro advogado por Gropius, redesenhou a casa, o

interior, a vida doméstica, que nunca mais foi a mesma.

Mary McLeod (1996:20) chama a atenção para o conceito de

heterotopia desenvolvido por Foucault em sua palestra “Des

espaces autres”, de 1967. O espaço heterotópico, distinto do

utópico, assim como da paisagem cotidiana, nos fornece uma

percepção nítida da ordem social: prisões, hospitais, igreja, bordel

etc. Ao contrário das utopias, as heterotopias são lugares

identificáveis, que permitem uma relação com o tempo diversa

daquela dos espaços cotidianos. Contudo, argumenta McLeod, a

heterotopia exclui espaços infantis e femininos, lugares nos quais

as mulheres encontraram não apenas opressão como também

conforto e mesmo autonomia. A exclusão da casa, por ser um

“lugar de repouso”, diz a autora, pode ser uma definição de difícil

aceitação para qualquer mãe que ali trabalha. A autora nos

empresta uma chave sugestiva para nos indagarmos, afinal, para

que mulher os interiores modernos foram projetados: para a

mulher que trabalha, para a “rainha do lar”?

Voltemos às fotografias. Dificilmente as fotos de arquitetura

desse período mostram pessoas nos projetos construídos, mostram

usos. Mesmo nos espaços domésticos, salas e cozinhas parecem

passíveis de ocupação, ainda que dificilmente uma figura humana

apareça sugerindo como fazê-lo. Nos desenhos técnicos, o

elemento humano é totalmente ausente, e nos croquis aparecem

para dar sentido de proporção, a conhecida “escala humana”.

Vale a pena nos determos um pouco nesse ponto, não porque nos

desenhos de Lina, posteriores ao seu repouso na Bardi‟s Bowl, há

sempre uma idéia dos usos e ocupações, mas porque a própria

noção de escala, de corpo como medida é particularmente

interessante, pois no século XX foi parte de um “retorno à ordem”

nas artes maiores e menores européias, de uma adaptação das

artes funcionais à indústria e à chamada vida moderna.

Elas usaram corpos, seus corpos, como medida para um

móvel que elas redesenharam e que até então era classificado

como um móvel masculino. A cadeira Surrepos que pode ter

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Corpos, cadeiras, colares

358

servido de modelo para a chaise-longue tinha seu uso

demonstrado por um homem e suas primeiras cadeiras, como já

foi dito, foram inspiradas em cadeiras de escritório. Vania

Carneiro de Carvalho mostra como poltronas são parte dos

espaços masculinos da casa, em oposição aos sofás, exatamente

porque as primeiras permitiam apenas uma pessoa sentada, o

homem da casa, compenetrado ou se recuperando do trabalho no

ambiente exterior, em oposição ao sofá, cujas qualidades eram

mostradas com uma mulher ali sentada com sua prole. Lina Bo

Bardi jamais desenhou um sofá e não havia um na Casa de Vidro,

embora um croqui mostrasse um móvel ou um degrau na sala

onde estão sentados ela – de calças compridas –, Bardi, uma

terceira figura masculina e um gato. Estariam nessas fotos, Lina e

Charlotte tomando posse do móvel destinado ao homem, o

repouso que remete ao trabalho no espaço público, revertendo a

teatralidade do espaço doméstico, propondo uma nova?

O termo teatralidade é intencional. A divulgação da Bardi‟s

Bowl mostrava uma atriz reconhecidamente bela, Odete Lara,

com as pernas cruzadas, elegantemente trajada e calçada, usando

jóias e com o rosto ligeiramente virado, de olhos cerrados. A

cadeira foi capa da revista norte-americana Interiors e traz duas

imagens de Lina, uma como figura e outra como fundo, como

marca d‟água: nas duas imagens Lina está lendo. A de fundo

esconde o rosto e tem os pés no chão; na que sobressai, temos

suas mãos, pernas e um livro, em cor contrastante.

Sentar-se, lembra Carvalho, mais do que mera prática

corriqueira, é um “gesto socialmente significativo e, por isso

mesmo, sexualmente ativo” (2008:195). Os manuais de etiqueta

que a autora analisa, em um período um pouco anterior ao de

nossa primeira foto, dão especial atenção à posição de pernas e

pés femininos. Elas se deixaram fotografar entregues ao conforto

repousante de suas cadeiras, ou ao enredo de um livro em uma

foto onde não temos sequer o rosto das leitoras. Não há rigidez

muscular nas pernas de Lina e Charlotte, como convinha

(convém?) às mulheres. E ao contrário das conhecidas cadeiras

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Silvana Rubino

359

desenhadas pela Bauhaus, essas fazem mais pensar em repouso

do que em trabalho.23

As cadeiras eram inusitadas para o

momento, assim como as que nela sentavam, mostrando-se de

corpo inteiro e ocultando o rosto. Mas, ao posar em suas cadeiras,

a quem dirigiam as respectivas imagens? Ao futuro comprador,

usuário ou ao interlocutor que também era um produtor de

objetos para vida moderna? Se esse último interlocutor esteve em

jogo, é preciso lembrar que, assim como quadros, fotos devem

muito à observação de outras fotos, e estas certamente estão

informadas por uma longa série de imagens em circulação, que

desde os anos 1920 mostravam, em revistas e outras publicações,

o que era a mulher moderna – um espectro que vai das imagens

dos manequins de Poiret até as fotos que o surrealista Man Ray fez

da modelo Lee Miller.

Há sugestões, indícios de que Lina e Charlotte se

conheceram em algum momento no Rio de Janeiro dos anos

1950, e em sua autobiografia a segunda declara sua admiração

pela primeira, ao conhecer o Solar do Unhão em Salvador.

Trabalhando distantes no espaço, com dez anos de diferença, elas

partilhavam do contato com figuras centrais nas tramas do

chamado movimento moderno. Charlotte estava no navio no qual

se realizou o CIAM de 1933, assim como Pietro Maria Bardi, que

também era amigo de Le Corbusier. Em algum momento, ambas

tiveram contato com Lucio Costa. No segundo pós-guerra, as já

um tanto consagradas Charlotte e Lina manifestavam mais

interesse pela cultura popular e pela madeira do que pela

industrialização e por cadeiras de metal. Essa mudança de

perspectiva era em certa medida marcada pelo contato com o

Japão e Indochina, no primeiro caso, e com a Bahia e o Nordeste

brasileiro, no segundo. Mas o encontro físico, situado, entre elas,

tenha ou não acontecido, pouco muda: suas trajetórias se

encontram, se interceptam em pontos, atando nós delicados e

23 Como notou Mary McLeod, as cadeiras de Charlotte não freqüentam tanto os

espaços corporativos como suas equivalentes da escola alemã.

Page 30: Silvana Rubino_perriand_lina Bo Bardi

Corpos, cadeiras, colares

360

sólidos. Seus lugares no campo da arquitetura moderna e das

chamadas vanguardas eram pré-determinados, assim como para

outras arquitetas e artistas modernas. Determinação explícita,

como na Bauhaus de Weimar, onde e quando as mulheres

ingressantes eram diretamente conduzidas para as oficinas de

tecelagem e de cerâmica (Droste, 1990:40); ou sutil, silenciosa,

incorporada. O que nos convida a observar as obras, a procurar

nelas as tensões de gênero que marcaram suas trajetórias, que,

tudo parece indicar, conferiu às mulheres um lugar no menos

valorizado espaço doméstico e no âmbito das chamadas artes

menores. Não por acaso, a engenheira Carmen Portinho foi a

fundadora da Escola Superior de Desenho Industrial no Rio de

Janeiro. Mas Carmen seria tema para outro artigo.

Seria forçar demais a premissa de uma pesquisa em curso

afirmar que cadeiras e móveis foram definidos, internamente ao

mundo dos arquitetos modernos como assunto de mulher.

Bastaria mencionarmos as conhecidas cadeiras produzidas pela

Bahuaus, como a Wassily, do arquiteto Marcel Breuer, para

derrubarmos tal argumento. E sabemos que, confinadas às

oficinas de têxtil e louça, Anni Alpers, Marianne Brandt e outras

contribuíram para borrar as fronteiras entre gêneros artísticos. Por

enquanto, encerramos com uma imagem da cadeira de Breuer, na

qual a modelo, possivelmente aluna da Bauhaus, empresta seu

corpo feminino para exibir as qualidades da cadeira. Não olha

para a parede, como Charlotte, nem se oculta atrás de um livro

como Lina. Usa, sim, uma máscara, como modo de se tornar

anônima. Sabemos apenas quem projetou a cadeira e a máscara –

Oskar Schlemer – mas não quem é a modelo. Por outro lado, o

nome de Charlotte esmaeceu por trás de uma denominação – LC4

– atribuída a Corbusier ou, quando muito, a ele, Jeanneret e

Perriand. Ainda assim, Lina e Charlotte voltaram à cena das

publicações e exposições a partir dos anos 1990 e sua obra passou

a ser estudada e pode ser parcialmente revelada, numa cena

intelectual que mostra, pouco a pouco, que houve vários

modernismos.

Page 31: Silvana Rubino_perriand_lina Bo Bardi

Silvana Rubino

361

Referências bibliográficas

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