Silvia Regina Zomer

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Sílvia Regina Zomer A CONSTITUIÇÃO DA NORMA DE LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO: UMA ANÁLISE LÓGICO-SEMÂNTICA MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2011

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TRIBUT ZOMER

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Sílvia Regina Zomer

A CONSTITUIÇÃO DA NORMA DE LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO:

UMA ANÁLISE LÓGICO-SEMÂNTICA

MESTRADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Sílvia Regina Zomer

A CONSTITUIÇÃO DA NORMA DE LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO:

UMA ANÁLISE LÓGICO-SEMÂNTICA

MESTRADO EM DIREITO Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE EM DIREITO TRIBUTÁRIO, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Professora Doutora Fabiana Del Padre Tomé.

SÃO PAULO

2011

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BANCA DE EXAMINADORA

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por me permitir uma existência tão repleta de bênçãos e possibilidades;

Aos meus pais, José e Iracema, pela vida e pelos exemplos de honestidade, de

perseverança e de humildade;

Aos meus filhos, Pedro Henrique e Bárbara, minhas melhores contribuições para a

humanidade, pela oportunidade constante de aprender o significado e a dimensão

de “amor incondicional”;

Ao meu marido, Francisco, pelo apoio em mais uma empreitada na busca do saber;

À minha querida orientadora, Fabiana Del Padre Tomé, por ter me acompanhado de

perto, mesmo vivendo um momento tão especial, lindo e particular da sua vida;

Aos meus mestres (todos), que tanto contribuíram para o meu crescimento, exigindo

sempre o meu melhor;

A todos os amigos e companheiros desta jornada (foram tantos e seria imperdoável

um descuido esquecendo alguém, razão pela qual me furto do risco de citar nomes),

por cada palavra de incentivo, por cada minuto de atenção, por cada risada no dia a

dia, tornando-o mais leve e produtivo;

Minha profunda gratidão!

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“Poucas coisas são, verdadeiramente, importantes na vida. Lembro-me de duas em especial: o amor, em suas várias formas de manifestação, e o aprendizado, cujo processo nos permite crescer e nos torna aptos para amar.”

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RESUMO

Considerando que o conhecimento está condicionado pelo meio envolvente que o

informa, o objeto deste estudo – a análise da norma de incidência tributária – realiza-

se no contexto do Direito Positivo, assim considerado o conjunto de normas jurídicas

válidas (positivadas) de uma sociedade, tendo como pano de fundo os valores por

ela pretendidos, em determinado tempo e lugar. Parte da observação do

ordenamento jurídico, sob o viés do Direito Tributário, como um sistema dinâmico,

estruturado por unidades normativas hierarquicamente organizadas e percorrendo

os caminhos da incidência, da abstração das normas gerais à concretude das

normas individuais, busca entender como se dá a constituição da norma de

lançamento, utilizando o método analítico-hermenêutico, alicerçado nas premissas

do construtivismo lógico-semântico, como um método científico de aproximação do

sistema Jurídico. Ao final, se analisa a constituição da norma do lançamento

segundo as exigências do sistema, considerando os planos semióticos, a saber: o

sintático, o semântico e o pragmático, como forma de interpretação e

reconhecimento das “falhas” formais e materiais na sua elaboração.

Palavras-chave: Tributário. Lançamento. Construtivismo. Semiótica.

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ABSTRACT

Whereas knowledge is conditioned by the environment that informs it, the object of

this study – the analysis of standard tax incidence – is done in the context of Positive

Law, considered as the set of valid legal norms (positive) of a society, whose values –

had as a background – it intends, at any given time and place. Part of the

observation of the legal system, under the bias of the Tax Law, as a dynamic system,

structured by hierarchically organized regulatory units and through the roads of

incidence, of the general rules abstraction to the concreteness of the individual

norms, seeks to understand how is the assessment rule, using the hermeneutic-

analytical method, based on the assumptions of the logical-semantic constructivism,

as a scientific method to approach the Legal system. Finally, we analyze the

constitution of the assessment rule as required by the system, considering the

semiotic planes, namely the syntactic, the semantic and pragmatic, as a means of

interpretation and recognition of formal and material "failures" in its development.

Keywords: Tax. Assessment. Constructivism. Semiotics.

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LISTA DE ABREVIATURAS

DP – Direito positivo

RMIT – Regra-matriz de incidência tributária

NGA – Norma geral e abstrata

NIC – Norma individual e concreta

NGC – Norma geral e concreta

NIA – Norma individual e abstrata

STF – Supremo Tribunal Federal

STJ – Superior Tribunal de Justiça

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 10

PRIMEIRA PARTE – O SISTEMA JURÍDICO TRIBUTÁRIO

1 SISTEMA E ORDENAMENTO ........................................................................................ 15

1.1 A NORMA JURÍDICA TRIBUTÁRIA DE COMPETÊNCIA ........................................ 18

1.2 A NORMA JURÍDICA TRIBUTÁRIA DE CONDUTA ................................................. 23

1.3 A NORMA JURÍDICA E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ............................... 24

1.3.1 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS GERAIS ................................................. 27

1.3.2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS TRIBUTÁRIOS ....................................... 28

1.4 A NORMA JURÍDICA E A IMUNIDADE .................................................................... 30

1.5 A NORMA JURÍDICA E A VALIDADE ...................................................................... 31

2 A NORMA JURÍDICA ..................................................................................................... 35

2.1 A ESTRUTURA LÓGICA DA NORMA JURÍDICA ...................................................... 36

2.2 A NORMA JURÍDICA COMPLETA ........................................................................... 37

2.2.1 A NORMA PRIMÁRIA E NORMA SECUNDÁRIA .......................................... 39

3 A CLASSIFICAÇÃO ESTRUTURAL DAS ESPÉCIES NORMATIVAS ........................... 42

3.1 A NORMA ABSTRATA E GERAL ............................................................................. 43

3.2 A NORMA CONCRETA E GERAL ............................................................................ 43

3.3 A NORMA ABSTRATA E INDIVIDUAL ..................................................................... 44

3.4 A NORMA CONCRETA E INDIVIDUAL .................................................................... 44

4 FONTES DO DIREITO .................................................................................................... 46

SEGUNDA PARTE – O PROCESSO DE POSITIVAÇÃO

1 OS PRESSUPOSTOS DA INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA ................................................... 52

2 A INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA ......................................................................................... 53

2.1 A INCIDÊNCIA ANALISADA PELOS PLANOS DA SEMIÓTICA.............................. 56

2.1.1 Plano Lógico ou Sintático .............................................................................. 58

2.1.2 Plano Semântico ........................................................................................... 61

2.1.3 Plano Pragmático .......................................................................................... 63

2.2 A DISTINÇÃO ENTRE EVENTO E FATO JURÍDICO ................................................ 64

3 A NORMA JURÍDICA DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA .................................................... 67

3.1 O FATO JURÍDICO TRIBUTÁRIO ............................................................................ 67

3.1.1 TEMPO “NO FATO” E TEMPO “DO FATO” ................................................... 70

3.2 A RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA ..................................................................... 71

3.2.1 A RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA E SEUS ELEMENTOS ...................... 73

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TERCEIRA PARTE – A NORMA INDIVIDUAL E CONCRETA DE INCIDÊNCIA VEICULADA PELO LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO

1 O LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO .................................................................................... 77

1.1 O VOCÁBULO “LANÇAMENTO” ............................................................................ 79

1.2 O LANÇAMENTO: ATO, PROCEDIMENTO E/OU NORMA? ................................... 82

1.2.1 ESTRUTURA DO ATO ADMINISTRATIVO .................................................... 84

1.2.2 O LANÇAMENTO COMO NORMA ............................................................... 86

1.2.3 A NORMA JURÍDICA QUE CONSTITUI O CRÉDITO TRIBUTÁRIO ............. 86

1.3 A CONSTITUIÇÃO DA NORMA DE LANÇAMENTO ANALISADA PELOS PLANOS DA SEMIÓTICA ........................................................................................ 91

1.3.1 PLANO SINTÁTICO ...................................................................................... 93

1.3.2 PLANO SEMÂNTICO .................................................................................... 98

1.3.2.1 DO ERRO DE FATO E ERRO DE DIREITO .................................... 103

1.3.3 PLANO PRAGMÁTICO ............................................................................... 107

1.3.3.1 DA ALTERAÇÃO DO CRITÉRIO JURÍDICO .................................... 110

1.4 AS NOVAS TECNOLOGIAS E A CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO ...................... 113

SÍNTESE CONCLUSIVA ................................................................................................... 120

REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 127

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INTRODUÇÃO

Um trabalho científico, qualificado como jurídico, está afeto à Ciência do

Direito e, como tal, busca compreender e descrever seu objeto de estudo – o Direito

Positivo, aqui considerado como “um complexo de normas jurídicas válidas num

dado país voltado para a disciplina do comportamento humano, no quadro de suas

relações de intersubjetividade”1.

A Ciência do Direito utiliza-se de uma linguagem descritiva, amparada por

uma lógica alética (lógica das ciências) para compreender o seu objeto, enquanto o

Direito Positivo utiliza-se de uma linguagem prescritiva, amparada por uma lógica

deôntica (lógica do dever-ser)2 para construí-lo. São duas camadas paralelas de

linguagem que se debruçam sobre o mesmo universo – as normas jurídicas, aqui

consideradas como “significações construídas a partir dos textos positivados e

estruturadas consoante a forma lógica dos juízos condicionais”3.

Dispostas numa relação de coordenação e subordinação, as normas

jurídicas se inter-relacionam formando um sistema hierarquizado e dinâmico – o

sistema jurídico ou ordenamento jurídico.

Este estudo parte da observação do ordenamento jurídico, sob o viés do

Direito Tributário, como um sistema dinâmico, estruturado por unidades normativas

hierarquicamente organizadas, destinadas a regular a própria produção de normas e

a conduta das pessoas (normas de estrutura e de comportamento, respectivamente).

Destaquem-se dois pontos importantes: (i) entende-se ordenamento e

sistema jurídicos como sinônimos, de acordo com a linha adotada por Paulo de

Barros Carvalho4; (II) toma-se o sistema jurídico como sistema de referência,

delimitando o campo epistemológico sobre o qual transitaremos neste trabalho.

A delimitação metodológica é fundamental para qualquer estudo científico,

como ensina aquele doutrinador: “Decididamente, a não-identificação do elo que

prende o enunciado científico ao sistema de que faz parte aparecerá como sério

1 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 2.

Também, VILANOVA, Lourival. Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2010, p. 265: “O Direito Positivo tem a pretensão de modificar o mundo; a ciência jurídica tem a pretensão de conhecer os módulos normativos de modificar o mundo.”

2 CARVALHO, op. cit., p. 3. 3 Ibid., p. 9. 4 Ibid., p. 11 et seq.

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transtorno no desenvolvimento do discurso, trancando o pensamento e retirando,

com isso, a potencialidade que a linguagem há de ter para cumprir sua proposta

cognoscente”. Mais adiante, “[…] a idéia de sistema de referência toma posição

dominadora em todo conhecimento humano. Sem sistema de referência, o

conhecimento é desconhecimento”5.

Justifica-se, assim, a necessidade da identificação do sistema de

referência como condição de possibilidade do conhecimento, sem o qual jamais se

poderá saber da verdade de uma proposição, uma vez que um objeto só adquire

significado quando se conhece a sua posição em relação aos demais elementos do

mesmo sistema ou de outro diferente6; bem como do método, que é a forma de

aproximação do objeto que se pretende conhecer.

Cumpre-nos, nesta etapa, delimitar ainda mais o foco de interesse deste

trabalho, fazendo novo corte metodológico em torno do processo de positivação da

norma jurídica. Importante ressaltar, porém, que o sistema jurídico é uno e

indivisível, tendo tal delimitação caráter puramente metodológico7.

O objetivo específico do estudo é trazer à baila pontos relevantes

atinentes à constituição da norma de incidência tributária plasmada pelo ato de

lançamento. Estabelecemos, portanto, como ponto de partida, o sistema do Direito

Positivo, mais especificamente o subsistema do Direito Tributário e seus elementos –

as normas jurídicas, sob as perspectivas estática (como proposição normativa) e

dinâmica (considerando o processo de positivação).

Para alcançar tal objetivo, utilizamos o método analítico-hermenêutico,

propugnado pelo construtivismo lógico-semântico8.

5 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência. 7. ed. São

Paulo: Saraiva, 2009, p. 1-2. 6 TOMÉ, Fabiana Del Padre. A Prova no Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2008, p. 8. 7 VILANOVA, Lourival. Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. 4. ed. São Paulo: Noeses,

2010, p. 141: “A unidade de um sistema de normas é decorrente de um superior fundamento-de-validade desse sistema – a Constituição positiva, ou, em nível epistemológico, a Constituição em sentido lógico-jurídico, ou seja, a norma fundamental. A unicidade decorre da possibilidade também gnosiológica de se poder conceber todo o material jurídico dado como um só sistema. No pluralismo dos sistemas (estatais), cada sistema é sistema porque repousa num único fundamento-de-validade.”

8 Construtivismo lógico-semântico é um método científico de aproximação do sistema Jurídico que se preocupa com a sintática e a semântica do direito para melhor interpretá-lo. Tem por base o Direito como um corpo de linguagem, razão pela qual o método analítico é apropriado para aproximação do seu objeto. Diz-se “Lógico” porque se utiliza da Lógica como sobrelinguagem do discurso do direito, formalizando-o, dele retirando todo conteúdo semântico, substituindo as palavras por símbolos isentos de ambiguidades e vaguidades, no intuito de investigar possíveis contradições do discurso, bem como analisar as relações lógicas do sistema normativo (relações

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O Direito Positivo, sabidamente um objeto cultural, repleto de

subjetividade e valores, permite várias formas de aproximação do ser cognoscente.

Fabiana Del Padre Tomé9 discorre sobre a importância da escolha do método,

advertindo que o descaso pelo método acaba impedindo o conhecimento. Daí a

nossa opção pelo método analítico-hermenêutico, por entendermos o Direito Positivo

não só como uma construção cultural, mas também como um fenômeno

comunicacional alicerçado nos fundamentos da linguagem. Assim, o construtivismo

lógico-semântico, como análise epistemológica, parece ser a forma mais adequada

de aproximação para o que pretendemos conhecer: o processo de construção da

norma jurídica do lançamento tributário, investigado pelos planos da semiótica –

semântico, lógico e pragmático10.

O tema – lançamento tributário – é denso e complexo, portanto não

pretendemos esgotá-lo na sua integridade. A Ciência do Direito, representada por

eminentes doutrinadores, debruça-se sobre ele dada a sua relevância tanto para o

Poder Público quanto para o administrado, que sofre a investida do Estado sobre o

seu patrimônio.

Nesta busca, descrevemos, inicialmente, o percurso de positivação do

direito – da norma geral e abstrata à norma individual e concreta, evidenciando os

mecanismos da subsunção e incidência tributária como forma de concretização do

direito, com foco na aplicação das normas tributárias, por meio de um contínuo

estruturais ou sintáticas); “Semântico” porque, em seguida, desformaliza a linguagem lógica, imputando conteúdo semântico (valor) aos termos lógicos da proposição normativa, construindo um significado.

9 TOMÉ, Fabiana Del Padre. A Prova no Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2008, p. XXII. 10 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 99:

“Se fixamos o pressuposto de que o direito positivo é uma camada lingüística, vazada em termos prescritivos, com um vetor dirigido ao comportamento social, nas relações de intersubjetividade, nada mais natural que apresentarmos a proposta de interpretação do direito como um sistema de linguagem. E o conhecimento de toda e qualquer manifestação de linguagem pede a investigação de seus três planos fundamentais: a sintaxe, a semântica e a pragmática. Só assim reuniremos condições de analisar o conjunto de símbolos gráficos e auditivos que o ser humano emprega para transmitir conhecimentos, ordens, emoções ou formular perguntas. E a linguagem do direito positivo é transmissora de ordens, substanciadas em direitos e deveres garantidos por sanções. O plano sintático é formado pelo relacionamento que os símbolos lingüísticos mantêm entre si. O semântico diz respeito às ligações dos símbolos com os seus significados. E o pragmático é tecido pelas formas segundo as quais os utentes da linguagem a empregam na comunidade do discurso e na comunidade social para motivar comportamentos.”

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processo empírico-dialético11 estabelecido entre a realidade social e a realidade

jurídica.

Sabemos que o sistema jurídico escolhe os fatos e os efeitos que

pretende juridicizar por um critério de valoração; como resultado dessa interação

jurídico-social surge a mensagem prescritiva do direito, como única linguagem

competente capaz de regular as condutas intersubjetivas, ao verter os

acontecimentos sociais em fatos jurídicos12, qualificados segundo as exigências do

direito positivo; estes, sim, sujeitos à incidência normativa. Ressalte-se, entretanto,

que a incidência está irremediavelmente atrelada a pressupostos, que lhe conferem

validade: sujeito competente e procedimento autorizado para este fim, dentro dos

limites de sua competência. É o que abordamos na segunda parte do trabalho.

Finalmente, na terceira parte, que se consubstancia na questão específica

do estudo, analisamos a constituição da norma do lançamento segundo as

exigências do sistema, considerando os planos semióticos, a saber: o sintático, o

semântico e o pragmático, propostos para análise da norma jurídica, apontando as

possíveis “falhas” formais e materiais na sua elaboração.

11 VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. 4. ed. rev. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2000, p. 139 et seq.: “Dialética norma-fato: um fato é jurídico na medida em que uma norma a ele vincule efeitos. De um fato complexo total, somente o que é retido em norma é fato jurídico. [...] Do ponto de vista dinâmico, dos fatos provêm normas e de normas advêm os fatos jurídicos. [...] Do ponto de vista dinâmico, a relação norma/fato é dialética. Um fato F é fonte de normas porque outras normas do sistema lhe conferiram essa possibilidade criadora.”

12 Ibid., p. 132: “Um sistema de normas é direito positivo porque se projeta no mundo dos fatos. Positivar-se é factualizar-se: é a conjunção norma/fato. As normas têm incidência na multiplicidade de fatos que o sistema reputou juridicamente relevantes e que ocorrem ligados a pessoas, a tempo, e espaço.”

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PRIMEIRA PARTE

O SISTEMA JURÍDICO TRIBUTÁRIO

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1 SISTEMA E ORDENAMENTO

Para que se empreenda um estudo de caráter tributário, faz-se necessário

entender o que seja o sistema jurídico tributário. Antes, porém, há que se explicar

em que sentido se utiliza o termo sistema, uma vez que o termo abriga ambiguidade.

De forma genérica, “sistema” diz respeito a um conjunto de elementos (ou

partes) que se aglutinam em torno de um fundamento comum (critério unificador)

que lhes sirva de referência.

Para a lógica, esse conjunto ou sistema é representado por uma “classe”

à qual serão pertinentes somente os elementos que satisfizerem as exigências

desse critério unificador. Esses elementos, porém, não se encontram estaticamente

posicionados no sistema; eles se relacionam entre si e se justapõem de acordo com

as formalidades de cada sistema. Assim, pode-se observar o mesmo sistema, de

forma mais específica ou estrita, pela forma como se comportam esses elementos.

Nesse sentido, Tercio Sampaio Ferraz Junior13 propõe que um sistema harmônico e

coerente se compõe de “repertório” (conjunto de elementos que integram o sistema)

e “estrutura” (conjunto de regras que informa o relacionamento entre tais elementos).

Com vistas às premissas do construtivismo lógico-semântico,

consideramos “sistema” como um conjunto de elementos revelados pela linguagem,

que se inter-relacionam com base em um fundamento comum, objetivando a

organização da realidade, de forma que cada realidade se conforme a um sistema.

Chegamos, assim, à realidade do direito positivo como um sistema

composto por normas jurídicas (elementos) constituídas de acordo com as

exigências do próprio sistema, dispostas numa estrutura hierarquizada e em

constantes relações de coordenação e subordinação entre si, de forma a imprimir

operacionalidade a esse sistema.14

13 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p.

165. Também VILANOVA, Lourival. Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2010, p. 171: “Um sistema S tem elementos e relações constituintes. Os elementos de um sistema proposicional são as proposições, que têm de satisfazer a consistência no interior do conjunto para pertencer ao sistema.”

14 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2008, p. 214: “O sistema do direito oferece uma particularidade digna de registro: suas normas são dispostas numa estrutura hierarquizada, regida pela fundamentação ou derivação que se opera tanto no aspecto material quanto no formal ou processual, o que lhe imprime possibilidade dinâmica, regulando, ele próprio, sua criação e suas transformações. Examinando o sistema de baixo para cima, cada unidade normativa se encontra fundada, material e formalmente, em

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Considerando, também, que existam dimensões diferentes de linguagem

(realidades diferentes) debruçando-se sobre o mesmo objeto, admitimos a

possibilidade de haver “sistemas” em cada uma dessas dimensões, versando sobre

o mesmo objeto. É o que acontece com a realidade jurídica, em que encontramos o

“sistema do direito positivo”, que se ocupa, objetivamente, da linguagem prescritiva

do direito, e o “sistema da ciência do direito”, que se ocupa de uma linguagem

descritiva (metalinguagem) acerca do direito positivo (seu objeto).

Daí o nosso posicionamento quanto à possibilidade de falarmos em

“sistema” tanto no direito positivo quanto na ciência do direito, corroborando a lição

de Paulo de Barros Carvalho e Lourival Vilanova.15 Tomando como referência o

direito positivo, entendemos, ainda, “sistema” como sinônimo de “ordenamento

jurídico”, em detrimento da posição de outros pensadores, a exemplo de Gregorio

Robles Morchón16 e Tárek Moysés Moussallem17 que apontam diferenças entre os

dois termos. Para o primeiro, “ordenamento” é o conjunto de textos brutos do Direito

Positivo produzidos pelo legislador, ou seja, conjunto de enunciados prescritivos

positivados; enquanto “sistema” é a organização proposta pela Ciência do Direito

acerca do ordenamento, de tal forma que as normas jurídicas, consideradas como

proposições prescritivas, encontram-se no sistema, não no ordenamento18; para o

segundo, emprega-se a expressão sistema do direito positivo ao conjunto de normas

jurídicas estaticamente consideradas, e ordenamento jurídico à sequência de

conjuntos de normas inserida no sistema. Dito de outro modo, o “ordenamento” seria

a visão dinâmica dos vários sistemas-temporais do direito positivo.

normas superiores. Invertendo-se o prisma de observação, verifica-se que das regras superiores derivam, material e formalmente, regras de menor hierarquia.”

15 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2008, p. 213: “Sistema é o discurso da Ciência do Direito, mas também é o domínio finito, mas indeterminável, do direito positivo.” Nesse mesmo sentido, Lourival Vilanova (Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2010, p. 137, 140): “Não só o Direito Positivo tende à forma-limite de sistema, como também a ciência que o tem por objeto. Há, pois, um sistema sobre outro sistema: um meta-sistema e um sistema objeto. O que facilmente se compreende, tendo em conta que a linguagem é componente nos dois níveis de sistema. [...] Temos tomado o sistema como forma sintática de união de proposições dentro de um conjunto, quer na Ciência do Direito, quer no Direito positivo.”

16 MORCHÓN, Gregorio Robles. O Direito como texto: quatro estudos de teoria comunicacional do direito. São Paulo: Manole, 2005, p. 6 et seq.

17 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Revogação em matéria tributária. São Paulo: Noeses, 2005, p. 128 et seq.

18 Enunciado prescritivo é tido como suporte físico, texto bruto; já a proposição prescritiva é a significação construída pelo intérprete a partir do suporte físico.

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Lembramos que as normas jurídicas, como elementos fundamentais do

sistema jurídico, ocupam posição de destaque neste estudo, levando-nos a estudá-

las com mais acuidade.

Podemos considerá-las, (i) em sentido amplo, como quaisquer

enunciados prescritivos19 ou frases isoladas do Direito Positivo, dotadas de

prescritividade, mesmo que não traduzam uma mensagem deôntica completa, por

exemplo: a alíquota é de 18%, e, (ii) em sentido estrito, como a significação

construída pelo intérprete, a partir dos enunciados prescritivos, capaz de traduzir o

conteúdo completo da mensagem deôntico-jurídica, articulada na forma hipotético-

condicional D(H�C)20, ou seja, dada a hipótese, então o consequente. Nas palavras

de Paulo de Barros Carvalho, as unidades normativas stricto sensu são “expressões

irredutíveis de manifestação do deôntico.”21

As normas jurídicas podem, também, ser classificadas, quanto ao objeto

que pretendam regular, em normas de estrutura (competência) e normas de conduta

(comportamento): aquelas regulam a criação, modificação e extinção das normas

jurídicas; estas regulam diretamente a conduta das pessoas, nas relações de

intersubjetividade.22

Segundo, Márcio Severo Marques23, “as normas jurídicas de estrutura

podem prescrever exigências formais (concernentes ao procedimento – processo de

produção) e/ou materiais (relativas à delimitação da competência da autoridade) que

condicionem a sua válida instituição”.

A Constituição Federal, Lei Maior do ordenamento jurídico, veicula

normas de estrutura, entre elas as concernentes à ordem tributária, por meio das

quais outorga competência e impõe limites ao exercício dos entes tributantes

19 Consideramos aqui “enunciado” como suporte físico capaz de provocar uma significação na mente

do intérprete; no universo do direito positivo “enunciado prescritivo” é o suporte físico manifestamente deôntico (dimensão do dever-ser) que veicula as situações ônticas (dimensão do ser) escolhidas pelo legislador para serem juridicizadas; e, “proposição” como a significação já elaborada pelo intérprete, podendo ser empregada tanto pelo direito positivo (proposição prescritiva), quanto pela Ciência do Direito (proposição descritiva). Esta concepção para o termo proposição diverge daquela apregoada por Kelsen, para quem proposição deveria ser empregada somente pela Ciência do Direito.

20 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2008, p. 128-129.

21 Ibid., p. 21. 22 BARRETO, Paulo Ayres. Contribuições: Regime Jurídico, Destinação e Controle. São Paulo:

Noeses, 2006, p. 7. 23 MARQUES, Márcio Severo. Curso de Especialização em Direito Tributário: Homenagem a Paulo

de Barros Carvalho. 1. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 42.

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(normas positivas e negativas de competência), prescreve princípios informadores

da matéria tributária, além de consignar os tributos e suas espécies.

1.1 A NORMA JURÍDICA TRIBUTÁRIA DE COMPETÊNCIA

A norma jurídica tributária de competência, segundo Tácio Lacerda

Gama24, é aquela que descreve, no seu antecedente, um fato – o processo de

enunciação necessário à criação do tributo; no consequente, prescreve uma relação

jurídica, que tem como objeto a permissão outorgada aos entes tributantes para

instituírem determinados tributos, resguardados os limites formais e materiais

estabelecidos constitucionalmente para tal.

Os limites formais são os relativos à enunciação descrita no antecedente

(procedimento); os limites materiais são os relativos ao enunciado (conteúdo da

norma instituída)25, informado pelo conjunto de princípios, imunidades e enunciados

complementares que regulam a matéria.

A norma de competência é, portanto, uma norma de estrutura que atribui

a determinado ente político a faculdade de produzir, criar normas jurídicas

tributárias, inovando o sistema jurídico, de acordo com o procedimento prescrito

(enunciação)26 e respeitando os contornos materiais (enunciado) estabelecidos por

normas constitucionais (normas de competência, princípios e imunidades), ou seja,

somente aquele ente político detentor da competência que foi atribuída pela

24 GAMA, Tácio Lacerda. Contribuições de Intervenção no Direito Econômico. São Paulo: Quartier

Latin do Brasil, 2003, p. 73. Segundo o mesmo autor (Competência Tributária: Fundamentos para uma Teoria da Nulidade. São Paulo: Noeses, 2009, p. XXVII): “O sistema de direito tributário não é exceção: todas as normas que o integram são jurídicas porque foram editadas de acordo com o que prescrevem outras normas, e assim sucessivamente, até que todas elas tenham um único fundamento de validade. Aplicar uma norma de competência faz surgir novas normas no sistema de direito positivo. Noutras palavras, a norma de competência determina que específico sujeito pode, mediante a realização de um procedimento adequado, inserir nova norma jurídica para disciplinar coercitivamente a conduta humana em sociedade.”

25 Ibid., p. 315: “Uma norma de competência, em sentido estrito, fundamenta a validade de duas outras normas jurídicas: o instrumento introdutor e a norma introduzida. Há licitude quando as normas criadas se ajustam ao que prescreve a norma de competência. Sob esta perspectiva, a de existirem dois tipos de normas introduzidas, é possível a existência de dois tipos de incompatibilidade, sendo uma delas entre o instrumento introdutor com o antecedente da norma de competência, e outra a da norma introduzida com o conseqüente da norma de competência. Para um caso e outro, a doutrina convencionou empregar os termos vício de forma e vício de matéria ou, como preferem alguns, invalidade formal e invalidade material.”

26 Os termos enunciação e enunciado, neste caso, são concernentes à nomenclatura utilizada para descrição de partes específicas dos enunciados prescritivos do direito, conforme veremos mais atentamente no capítulo “Fontes do Direito”.

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Constituição Federal pode legislar, em sentido estrito27, sobre tributos, desde que

não viole implícita ou expressamente as limitações impostas, também, pela Magna

Carta. Nesse sentido, Aliomar Baleeiro28: “A lei criadora do tributo é a da pessoa

jurídica constitucionalmente competente para decretá-lo e só ela.”

É assim, por meio da norma de competência, que o direito regula a sua

própria criação, permitindo a exclusão de normas produzidas em desalinho a esta

norma de estrutura. É o que leciona Tácio Lacerda Gama29:

Percebemos se uma norma N1 foi ou não produzida como deveria mediante o confronto entre suas proposições e as proposições da norma de competência N2. Se as proposições de N1 e N2 são compatíveis, em todas as suas dimensões, sabemos que N1 foi criada licitamente e que, portanto, é proposição válida, devendo ser aplicada na regulação de comportamentos sociais. Pelo contrário, se N1 não for compatível com N2, podemos afirmar que N1 foi criada ilicitamente, ajustando-se aos casos em que o direito prescreve a invalidade da norma, impedindo sua aplicação ao caso concreto e, com isso, afirmando que a juridicidade de N2 deve prevalecer sobre as normas inferiores ilícitas.

Não há que se confundir, entretanto, “fundamento de validade” com

“validade”30 da norma no sistema. Esta diz respeito à pertinência da norma ao

sistema; aquele é pressuposto da validade e diz respeito à produção da N1

conforme os critérios determinados para a sua produção pela N2 (fundamento de

validade); se produzida de acordo com N2, então, poderemos afirmar que foi

produzida licitamente; caso tenha sido produzida em desconformidade com os

critérios estabelecidos por N2, então terá sido produzida ilicitamente, ou seja,

teremos uma norma impregnada por um vício (formal ou material), que pode levar a

N1 a ser expulsa do sistema. Ressalvamos, aqui, o nosso posicionamento quanto à

necessidade de que outra norma retire do sistema a norma produzida em desacordo

com a norma que lhe deu fundamento de validade31.

27 “Legislar em sentido estrito” significa inovar a ordem jurídica; no campo do direito tributário

significa criar, efetivamente, um tributo. 28 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. atualizada por Mizabel Abreu Machado

Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 64. 29 GAMA, Tácio Lacerda. Competência Tributária: Fundamentos para uma Teoria da Nulidade. São

Paulo: Noeses, 2009, p. XXIX-XXX. 30 Trabalhamos com a validade como sinônimo de existência no sistema, ou seja, como relação de

pertinência ao sistema. O tema será abordado especificamente no item 1.5 deste capítulo. 31 CARVALHO, Paulo de Barros. Derivação e Positivação no Direito Tributário. São Paulo: Noeses,

2011, p. 123: “Uma regra, enquanto não ab-rogada por outra, continua pertencente ao sistema e, como tal, reveste-se de validade. A despeito de tais esclarecimentos, continua pertinente a

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Atente-se que a inobservância ou violação de qualquer dos limites

estabelecidos constitucionalmente pelas normas de competência, sejam eles formais

e/ou materiais, acarretará vício de inconstitucionalidade da norma produzida.

Em obra recente, Gregorio Robles Morchón32 propõe uma reflexão acerca

dos diferentes tipos de regras que compõem o ordenamento jurídico, comparando-as

às de um jogo. Utiliza-se da análise lógico-linguística para abordar o tema e, ao final,

apresenta uma nova classificação das regras, em que a “competência” situa-se no

âmbito ôntico-prático, ou seja, faz parte das regras ônticas (assim consideradas

aquelas que criam elementos ônticos do sistema). Trata-se, mais especificamente,

de uma norma potestativa (para o autor, aquela que estabelece ou confere poderes).

Significa dizer que o autor, diferentemente do nosso posicionamento, entende que a

competência está fora do âmbito jurídico ou deôntico, precedendo-o.

Gabriel Ivo33 explica que o “vício de inconstitucionalidade” decorre de uma

desconformidade em relação às normas de produção normativa (normas de

estrutura), podendo se manifestar quanto à forma (enunciação enunciada) ou quanto

à matéria (enunciado-enunciado)34. Destacamos alguns desses vícios, citados pelo

autor:

afirmação segundo a qual u’a norma só tem sua validade cortada mediante outra norma que o determine.”

32 MORCHÓN, Gregorio Robles. As regras do direito e as regras dos jogos: ensaio sobre a teoria analítica do direito. São Paulo: Noeses, 2011, p. 245: “As normas potestativas são regras de competência e, portanto, constituem um tipo de regras ônticas. São regras cuja função reside em atribuir autoritariamente a determinados sujeitos a qualidade de capacidade ou competência para realizar determinado tipo de ações pertencentes ao âmbito. Supõem a existência prévia dos sujeitos aos quais são atribuídas as competências. As regras competenciais estão relacionadas com as regras criadoras dos sujeitos da ação, as quais são logicamente prévias. Uma regra competencial pode ser expressa da seguinte maneira: ‘atribui-se a competência C ao sujeito S’; ou também ‘a competência se S é C’. [...] No Direito, todas aquelas regras que se referem à capacidade jurídica e à capacidade de exercício das pessoas, assim como as que criam as competências dos órgãos, são regras ônticas.”

Ressalte-se que o autor chega a esta classificação, partindo da análise dos enunciados considerados como suporte físico (frases ou estruturas “soltas” dotadas ou não de significação deôntica completa). Assim, conclui que nem todas as normas (como enunciados) são dotadas de prescritividade na sua estrutura lógica. Já a classificação proposta por Paulo de Barros Carvalho, a qual adotamos neste trabalho, parte da análise da norma jurídica como significação estruturada pelo intérprete, segundo os planos semióticos de interpretação - S1 a S4. A diferenciação entre “enunciado” e “norma jurídica” alicerça a classificação de Paulo de Barros Carvalho, enquanto Gregório Robles trabalha com a mesma significação para os termos, justificando os diferentes resultados propostos pelos dois eminentes doutrinadores.

33 IVO, Gabriel. Norma Jurídica: Produção e Controle. São Paulo: Noeses, 2006, p. 202-209. 34 As expressões enunciação enunciada e enunciado-enunciado dizem respeito (i) à forma: processo

de elaboração do veículo introdutor (norma geral e concreta) e (ii) ao conteúdo: matéria regulada pelo veículo introdutor (normas gerais, individuais, concretas e abstratas). Nesse sentido, Gabriel Ivo (ibid., p. 75): “Da enunciação enunciada é construída a norma concreta e geral. Já do

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21

(i) Vício de incompetência – pode ser (i.a) aquele produzido por órgão incompetente para produzir normas (sujeito completamente incompetente; órgão que se encontra fora do sistema jurídico) ou (i.b) aquele onde o sujeito é competente, mas não para produzir aquele específico instrumento introdutor de normas, ou seja, o vício se dá na própria enunciação-enunciada (por exemplo, o Presidente da República edita uma lei ordinária);

(ii) Vício de iniciativa – é relativo ao procedimento, não à competência; é aquele produzido por agente competente para a produção do instrumento normativo, porém, a iniciativa não lhe cabia;

(iii) Vício de procedimento – aquele produzido por sujeito competente, porém há desalinho entre a enunciação-enunciada e as normas procedimentais exigidas para produção daquele veículo introdutor; não diz respeito ao enunciado-enunciado, porque o vício está ligado à forma como o enunciado prescritivo foi elaborado (por exemplo, quorum inadequado para aprovação de uma emenda constitucional);

(iv) Vício material, pode ser quanto à (iv.a) possibilidade de a matéria ser veiculada ou não por determinado instrumento introdutor de normas (embora o ente seja competente para regular a matéria, há uma desconformidade entre a enunciação-enunciada e o enunciado-enunciado, atingindo este último diretamente; o vício diz respeito à veiculação do conteúdo por instrumento normativo inadequado; por exemplo, a União cria um imposto residual, por decreto) ou (iv.b) quanto à pessoa política poder ou não regular determinada matéria (a pessoa é competente para produzir o instrumento, porém não lhe cabe regular a matéria, atingindo o próprio enunciado-enunciado; por exemplo, um Estado-membro cria norma sobre prazo prescricional, por meio de lei complementar – o ente é competente para produzir este instrumento normativo, porém não pode regular a matéria “prescrição”).

Conclui referido autor: “Assim, pode-se dizer que a inconstitucionalidade

formal é problema da enunciação-enunciada. Já a inconstitucionalidade material

investiga-se no sítio do enunciado-enunciado.”35 Equivale a dizer que a primeira

decorre de uma inadequação quanto ao sujeito e/ou procedimento; enquanto a

segunda decorre de um desalinho entre o conteúdo propriamente dito, da norma

produzida, em relação aos contornos materiais estabelecidos pela norma de

competência.

enunciado-enunciado são construídas as normas gerais, individuais, concretas e abstratas. Forma, uma; conteúdo, as outras. A norma geral e concreta pertence, tomando como norte a divisão do direito em ramos, ao âmbito do direito constitucional, porquanto positiva um específico instrumento introdutor de normas, previsto nas normas de produção normativa. Por outro lado, as normas construídas com fulcro nos enunciados-enunciados podem veicular normas de direito penal, civil, administrativo, processual, trabalhista etc.” “no conflito que chamamos formal não é o conteúdo do documento normativo que entra em testilhas com a norma constitucional. Mas na enunciação foi desatendida a norma constitucional que regulava a elaboração do veículo introdutor. No conflito material a questão é diversa. Há uma contradição entre o conteúdo do documento normativo e a Constituição.” (p. 155).

35 IVO, Gabriel. Norma Jurídica: Produção e Controle. São Paulo: Noeses, 2006, p. I.

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22

Por certo que discutir as normas de competência requer, também, que se

elucide o que é “competência”. Paulo de Barros Carvalho36 a define da seguinte

forma: “competência tributária é uma das parcelas entre as prerrogativas legiferantes

de que são portadoras as pessoas políticas, consubstanciada na possibilidade de

legislar para a produção de normas jurídicas sobre tributos”.

Roque Antônio Carrazza37 denota as características da competência

tributária: (i) privaticidade, (ii) indelegabilidade, (iii) incaducabilidade, (iv)

inalterabilidade, (v) irrenunciabilidade e (vi) facultatividade do exercício.

Paulo de Barros Carvalho38 tece críticas à subsistência de algumas

destas características, entre elas: à privaticidade, por entender que o artigo 154, II,

da Constituição Federal não traduz uma exceção, mas uma permissão para que a

União legisle sobre impostos “extraordinários” (de sua competência ou não),

reduzindo a privaticidade somente à competência do Poder Público Federal; à

inalterabilidade, uma vez que o poder constituinte derivado está autorizado a

promover modificações competenciais, respeitados os limites impostos pelo princípio

federativo e pelo princípio da autonomia dos municípios; à facultatividade do

exercício, posto que, embora os entes políticos tenham a faculdade para exercer ou

não as suas competências, os Estados e o Distrito Federal não podem esquivar-se

de legislar sobre o ICMS, dado o seu caráter nacional e a iminência de causar uma

guerra fiscal, comprometendo todo o sistema tributário, caso não o fizessem.

Infere-se, portanto, que competência tributária é o poder intransferível,

conferido pela Constituição Federal aos entes tributantes – União, Estados, Distrito

Federal e Municípios –, para inovarem a ordem jurídica tributária, por meio do

adequado processo legislativo, respeitados os limites formais e materiais aos quais

estão submetidos, no exercício de suas respectivas prerrogativas legiferantes.

36 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.

235. 37 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 24. ed. São Paulo:

Malheiros, 2008, p. 339 et seq. 38 CARVALHO, op. cit., p. 240 et seq.

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23

1.2 A NORMA JURÍDICA TRIBUTÁRIA DE CONDUTA

A norma jurídica tributária em sentido estrito é denominada regra-matriz

de incidência tributária. Segundo ensinamentos de Paulo de Barros Carvalho39, “é

uma norma geral e abstrata, de conduta, que guarda em si todos os elementos

essenciais para a determinação da incidência de uma figura tributária específica”.

Sua estrutura lógica (ou formal), considerada pelo autor como um

desdobramento aplicativo do “construtivismo lógico-semântico”, compõe-se de

hipótese (também denominada de antecedente, suposto, pressuposto ou descritor) e

tese (consequente ou descritor), unidas pelo dever-ser (deôntico), assim

representada: D (H�C).

A hipótese, descrição abstrata de um evento econômico de “possível

ocorrência no mundo real”, é composta pelos critérios material (verbo +

complemento), temporal e espacial, possibilitando a identificação de um

acontecimento no tempo e no espaço, de forma que a sua ocorrência implicará uma

relação jurídico-tributária. O consequente, prescrição de uma conduta (obrigatória,

permitida ou proibida), determina a relação jurídica decorrente da concretização do

evento, devidamente vertido em linguagem competente, entre determinados sujeitos

de direito envolvidos por um vínculo abstrato – obrigação tributária; é composto pelo

critério pessoal (sujeito ativo e passivo) e critério quantitativo (base de cálculo e

alíquota).

Havendo a subsunção do evento ocorrido concretamente à hipótese

descrita na norma geral e abstrata, deverá ser constituído, portanto, o fato jurídico

tributário (evento ocorrido no mundo real e vertido em linguagem competente), no

antecedente da norma individual e concreta, instaurando-se a relação jurídico-

tributária prescrita no consequente desta norma, representada pelo vínculo

obrigacional entre os sujeitos de direito – um, com o direito subjetivo de cobrar o

cumprimento da prestação (sujeito ativo), e outro, com o dever de cumpri-la (sujeito

passivo).

Cabe aqui considerar que entendemos que a relação jurídica tributária

prevista no consequente da norma individual e concreta constitua também um fato

39 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência. 7. ed. São

Paulo: Saraiva, 2009, p. 42.

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24

jurídico, porém, de caráter relacional; assim, para fins metodológicos, consideramos

o fato jurídico do antecedente da norma – composto pelos critérios material, espacial

e temporal – como fato jurídico tributário em sentido estrito, e aquele do

consequente – composto pelos critérios pessoal e quantitativo – como fato jurídico

tributário relacional.

Ressalte-se que o mecanismo da incidência (ou aplicação), envolvendo a

subsunção e, consequentemente, a imputação jurídica, somente surgirá com a

interferência do homem, ao verter esse evento ocorrido no mundo fenomênico para

a linguagem competente do Direito, quando da construção da norma individual e

concreta. Daí dizer-se que a incidência não se dá automática e infalivelmente; o que

se dá automática e infalivelmente é a instauração da relação jurídico-tributária que

se segue, como uma consequência lógica à constituição do fato jurídico-tributário.

Frise-se, ainda, que a construção da regra-matriz de incidência tributária

não se dá, simplesmente, pela interpretação de um único enunciado prescritivo. O

intérprete deve, muitas vezes, debruçar-se sobre vários enunciados prescritivos, de

forma sistemática, para que possa preencher o conteúdo semântico das proposições

estruturais lógicas da regra de incidência. Neste sentido, Andréa M. Darzé:

Alcança-se a regra-matriz de incidência a partir da conjugação de todas as proposições que interferem na estrutura lógico-semântica que acabamos de descrever, o que inclui não apenas as disposições diretas sobre alíquota, sujeito passivo, materialidade etc., como as indiretas, tais como os princípios, as regras de isenção, de responsabilidade, dentre outras.40

Ressalte-se que o conteúdo semântico é que conferirá especificidade à

norma jurídica tributária em sentido estrito41, e, para a construção da norma, há que

se respeitar os contornos estabelecidos pelas normas de estrutura. É o que veremos

a seguir.

1.3 A NORMA JURÍDICA E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

A norma jurídica produzida pelos entes políticos a partir da competência

que lhes foi outorgada pela Constituição está, irremediavelmente, sujeita aos limites

40 DARZÉ, Andréa Medrado. Responsabilidade tributária: solidariedade e subsidiariedade. São

Paulo: Noeses, 2010, p. 26. 41 Ibid., p. 24.

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25

formais e materiais estabelecidos pela Carta Magna, fundamento de todo o

ordenamento jurídico.

Entre esses elementos que estabelecem os contornos para a instituição

da norma jurídica estão os princípios constitucionais que, pela sua magnitude e seu

caráter mandamental estabelecem, segundo Robert Alexy42, “deveres de otimização,

cuja eficácia ficará adstrita às possibilidades dos contextos normativo e fático”, ou

seja, os princípios como normas jurídicas carreadoras de alta carga valorativa e,

constitucionalmente determinados, deverão ser aplicados considerando-se o

contexto jurídico que envolve determinada situação fática sobre a qual se debruça o

intérprete.

Geralmente insertos na Constituição, atrelam-se às normas gerais e

abstratas que servem de fundamento de validade para construção de outras normas

do sistema. Nem sempre, porém, nos deparamos com enunciados expressos

informadores dos princípios. Como norma (no sentido de construção mental do

intérprete ou proposição normativa), muitas vezes, derivam da interpretação de

vários enunciados.43

Estevão Hovarth44 manifesta-se acerca da aplicação dos princípios da

seguinte forma:

Em sendo princípio de obrigatória aplicação – por menos que se saiba quais os limites de seu alcance e mesmo qual seja o seu conteúdo – o legislador infraconstitucional deve respeitá-lo ao criar o tributo (ou majorar algum já existente). Mais que isso, o produto legislado deve, por sua vez, estar sujeito a apreciação judicial toda vez que, via controle de constitucionalidade concentrado ou difuso, entender-se necessário.

Na lição de Paulo de Barros Carvalho45, o signo princípio, em Direito,

pode ser utilizado como “valor” ou como “limite objetivo”. Como valor, tais

enunciados prescritivos estão afetos à Axiologia (Teoria dos Valores) e apresentam

características subjetivas, como: (a) bipolaridade – onde houver um valor haverá

como contraponto, o desvalor; (b) implicação recíproca – os valores positivos e

42 ROBERT ALEXY apud BARRETO, Paulo Ayres. Contribuições: Regime Jurídico, Destinação e

Controle. São Paulo: Noeses, 2006, p. 14. 43 GAMA, Tácio Lacerda. Competência Tributária: Fundamentos para uma Teoria da Nulidade. São

Paulo: Noeses, 2009, p. 240. 44 HOVARTH, Estevão. O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário. São Paulo: Dialética, 2002,

p. 28. 45 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.

158-163.

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26

negativos implicam-se mutuamente; (c) referibilidade – o valor requer uma tomada

de posição em relação a um objeto; (d) preferibilidade – indica a direção da tomada

de decisão; (e) incomensurabilidade – os valores não são passíveis de medição;

(f) tendência à graduação hierárquica – tendência a se acomodarem

hierarquicamente quando se confrontam em relação a um mesmo objeto;

(g) objetividade – os valores são qualidades que o ser humano credita a um objeto

(real ou ideal); (h) historicidade – constroem-se de acordo com a evolução histórico-

social; (i) inexaurabilidade – o valor não se esgota com a sua atribuição a um objeto;

(j) atributividade – o valor é sempre atribuído a um objeto por um sujeito.

São exemplos de princípio como valor: a Justiça, a Certeza do Direito, a

Segurança Jurídica, a Igualdade, a Dignidade da Pessoa Humana.

“Princípios” como limite objetivo buscam atingir metas determinadas e são

mais facilmente identificáveis, podendo ser comprovados por meio de linguagem

competente, a exemplo dos princípios da Anterioridade, da Legalidade, da

Irretroatividade das Leis.

Ainda, segundo o ilustre doutrinador, os princípios podem ser expressos

ou implícitos e

[…] aparecem como linhas diretivas que iluminam a compreensão de setores normativos, imprimindo-lhes caráter de unidade relativa e servindo de fator de agregação num determinado feixe de normas. Eles exercem uma reação centrípeta, atraindo em torno de si regras jurídicas que caem sob seu raio de influência e manifestam a força de sua presença46.

Para Roque Antônio Carrazza47, um princípio jurídico

[…] é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do Direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam.

Das lições destes doutrinadores conclui-se, portanto, que os princípios

constitucionais informam não somente a produção de normas de estrutura, como

também a produção de normas de conduta. Evidencia-se, também, que tais normas

devem guardar compatibilidade vertical com os princípios constitucionais (uma vez 46 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.

143-149. 47 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 24. ed. São Paulo:

Malheiros, 2008, p. 35.

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27

que estes são hierarquicamente superiores às normas infraconstitucionais), sob

pena de padecerem, estas, de inconstitucionalidade formal ou material.

Quanto à aplicabilidade, partilhamos da corrente doutrinária que apregoa

que a aplicação dos princípios não seja excludente entre si, ou seja, não se exige a

exclusão de um princípio em detrimento de outro quando esses se relacionam entre

si, como na aplicabilidade de normas, devendo o intérprete do direito analisar, no

caso concreto, quais critérios deverão ser observados, para que possa “dosar” as

medidas da aplicabilidade de cada um dos princípios eleitos.

1.3.1 Princípios constitucionais gerais

A observância dos princípios constitucionais é obrigatória, conforme

leciona Celso Antônio Bandeira de Melo48, e a sua desobediência resulta em afronta

a todo o sistema jurídico.

Dentre os muitos princípios constitucionais que informam a produção das

normas jurídicas, destacamos aqueles que orientam diretamente a incidência

tributária:

(i) Princípio da justiça – verdadeiro sobreprincípio que pressupõe a

implementação de vários outros, de forma a permear a conformação de

todo o ordenamento.

(ii) Princípio da certeza do direito – traduz a garantia de que a todos é

assegurado o direito de socorrer-se do Sistema do Direito na solução dos

conflitos.

(iii) Princípio da Segurança Jurídica – trata-se da previsibilidade quanto ao

tratamento normativo frente à conduta juridicizada.

(iv) Princípio da Igualdade – expresso no artigo 5º, caput, da Constituição

Federal, garante a igualdade de tratamento a todos pelo Estado.

48 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Elementos de Direito Administrativo. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 1980, p. 230: “Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma, a desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.”

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28

(v) Princípio da Legalidade – expresso no artigo 5º, II da Carta Magna,

garante que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão

em virtude de lei.

(vi) Princípio da Irretroatividade das Leis – artigo 5º, XXXVI, da Constituição

Federal, prescreve que as leis não podem retroagir para alcançar o direito

adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito.

(vii) Princípio da Ampla Defesa e o Devido Processo Legal – artigo 5º, LV,

Constituição Federal, garante às partes, na composição do litígio,

liberdade para defender a pretensão articulada, bem como a

instrumentalização necessária na busca da tutela jurisdicional.

(viii) Princípio da Supremacia do Interesse Público – implícito, está

intimamente ligado ao regime jurídico-administrativo, apregoando que o

interesse público (coletivo) prepondera sobre o interesse do particular na

realização dos objetivos sociais do Estado.

(ix) Princípio da Indisponibilidade do Interesse público – também implícito,

preconiza que os interesses públicos são inapropriáveis, de forma que o

órgão administrativo não tem poder de dispor, no exercício de suas

atividades, de qualquer interesse do Estado, devendo cumprir sua

competência sob estrito comando legal.

1.3.2 Princípios Constitucionais Tributários

Além dos princípios constitucionais gerais que apresentamos, aplicam-se

outros específicos ao exercício da competência tributária. Entre eles:

(i) Princípio da Estrita Legalidade – art. 150, I da Constituição Federal,

vinculado ao princípio constitucional da legalidade (art. 5º, II, CF), este

comando constitucional aplica à seara tributária uma vedação específica e

expressa acerca da impossibilidade da instituição ou aumento de tributos

sem lei que o estabeleça.

(ii) Princípio da Tipicidade Tributária – o tipo tributário, ou a conduta

juridicamente eleita para produzir efeitos tributários, deve ser

exaustivamente descrita pela lei, ou seja, deve conter todos os critérios

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29

que compõem a regra-matriz de incidência tributária (tipificando não só o

fato jurídico, como também a relação jurídica tributária).

(iii) Princípio da Anterioridade – artigo 150, III, b, da Constituição Federal,

impossibilita a cobrança de tributos no mesmo exercício financeiro em que

tenha sido publicada a lei que os instituiu, com o objetivo de evitar

surpresas ao administrado.

(iv) Princípio da Anterioridade Nonagesimal – artigo 150, III, c, da Constituição

Federal veda aos entes políticos a cobrança de tributos antes de

decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que

instituiu ou aumentou o tributo, observado o disposto na alínea b deste

mesmo comando normativo.

(v) Princípio da Irretroatividade da Lei tributária – artigo 150, III, a, da

Constituição Federal, corrobora o mandamento do artigo 5º, XXXVI, do

mesmo diploma, proibindo que os entes tributantes cobrem tributos em

relação a fatos geradores que ocorreram antes do início da vigência da lei

que os instituiu ou aumentou.

(vi) Princípio da Vedação do Tributo com Efeito de Confisco – artigo 150, IV,

da Constituição Federal, “proíbe” a tributação confiscatória, porém não

estabelece um limite objetivo para que se defina o que é, de fato,

confiscatório relativamente à tributação. Tal princípio simplesmente alerta

os entes tributantes de que existe um limite para a exigência tributária,

embora haja uma alta carga de subjetividade para definição do que seja

ou não confiscatório.

(vii) Princípio da Vinculação da Tributação – diz sobre a imperativa vinculação

à lei a que está submetida a Administração Pública no exercício de suas

competências, não lhe cabendo a prática de atos discricionários relativos

à tributação.

Não é nossa pretensão esgotar o rol dos princípios que regem o direito

tributário; citamos apenas alguns para caracterizar a importância da sua aplicação

na esfera tributária e na própria conformação do sistema jurídico tributário, posto que

veremos adiante que a construção da norma do lançamento submete-se, também, a

tais comandos.

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30

1.4 A NORMA JURÍDICA E A IMUNIDADE

Mais uma vez, socorremo-nos das lições de Paulo de Barros Carvalho49,

no intuito de elucidar o instituto da “imunidade tributária”. Após um longo percurso,

no qual este mestre analisa várias posições doutrinárias acerca do tema, chega,

finalmente, ao seguinte conceito de imunidade:

Classe finita e imediatamente determinável de normas jurídicas, contidas no texto da Constituição da República, e que estabelecem, de modo expresso, a incompetência das pessoas políticas de direito constitucional interno para expedir regras instituidoras de tributos que alcancem situações específicas e suficientemente caracterizadas”, ou como ele mesmo conclui “entre as regras competenciais estão as imunidades, como preceitos delimitadores negativos do exercício legiferante.”

Seriam as imunidades, portanto, espécie de regras jurídicas do gênero

das regras competenciais, delineando negativamente o campo impositivo dos entes

legiferantes. Como leciona o mestre50:

São normas de conduta, entre outras, as regras-matrizes de incidência dos tributos e todas aquelas atinentes ao cumprimento dos deveres instrumentais ou formais, também chamadas de “obrigações acessórias”. E são tipicamente regras de estrutura aquelas que outorgam competências, isenções, procedimentos administrativos e judiciais, as que prescrevem pressupostos etc. Entre as normas que estipulam competências, incluamos as regras de imunidade tributária.

Marcelo Paulo Fortes de Cerqueira51, ao diferençar as normas de conduta

(comportamento) das normas de estrutura, refere-se à imunidade como uma norma

de estrutura, cujo vetor deôntico “proíbe obrigar”. Vejamos:

Nas normas de comportamento o dever-ser intraproposicional se apresenta sempre modalizado em permitido, obrigatório e proibido. As normas de estrutura, por seu turno, aparecem modalizadas ou não. Ordinariamente, as regras de estrutura apresentam dever-ser intraproposicional neutro, visto que não são normas diretamente reguladoras das condutas interpessoais; não têm esse objetivo imediato, conquanto por vezes podem ostentar a justaposição de dois modais deônticos, como nos casos das normas de competência e de imunidade, em que o núcleo normativo é “proibido obrigar”; ou

49 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Noeses,

2008, p. 341. 50 Ibid., p. 43. 51 CERQUEIRA, Marcelo Paulo Fortes de. Repetição do Indébito Tributário. São Paulo: Max

Limonad, 2000, p. 82-83.

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31

seja, as pessoas políticas competentes para instituir tributos serão proibidas, pelas normas de imunidade, de obrigar determinadas pessoas a pagar tributos.

Torna-se claro, portanto, que a imunidade é regra de estrutura

determinada constitucionalmente, hierarquicamente superior a qualquer outra norma

jurídica infraconstitucional que venha a instituir um tributo. Justifica-se,

consequentemente, a obrigatoriedade da sua observância no instante da elaboração

de comandos inovadores da ordem tributária, sob pena de inconstitucionalidade da

nova norma inserida no sistema.

Ressalte-se que abordagem do tema “imunidade” restringiu-se somente à

delimitação do campo de competência tributária, uma vez que o recorte

metodológico proposto neste trabalho tenha seu foco voltado à produção da norma

de incidência veiculada pelo lançamento, relacionando-se, portanto, intimamente à

sua produção de forma lícita. Não pretendemos, por esse motivo, a abordagem

acerca de imunidade em outros dos tantos aspectos que o tema comporta (por

exemplo: sujeito competente, diferença entre imunidade e isenção, hipóteses de

imunidade, imunidade de taxas e contribuições etc.).

1.5 A NORMA JURÍDICA E A VALIDADE

Estudar o sistema jurídico implica, necessariamente, estabelecer o

significado de “validade”. Isto porque o “sistema”, tomado como um conjunto de

elementos que se agregam em razão de um fundamento ou critério comum, requer a

legitimação da entrada destes elementos no sistema.

Nosso sistema de referência, neste estudo, é o jurídico, mais

especificamente o sistema do Direito Positivo, tomado como um conjunto de normas

jurídicas válidas. Interessa-nos, portanto, entender a validade considerando seus

elementos – as normas jurídicas válidas.

Sabemos que um sistema (ou conjunto) pode existir sem nenhum

elemento – neste caso, estaríamos falando de um conjunto vazio. O Direito Positivo

objetivando regular as condutas sociais, entretanto, é formado por um conjunto de

normas jurídicas válidas (positivadas), em determinado tempo e lugar, que se

movimentam em torno de um fundamento comum, imprimindo dinamicidade ao

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32

sistema. É este direito posto que nos interessa; trata-se do nosso objeto. Daí a

necessidade da atenção ao binômio norma/validade.

Uma breve retrospectiva histórica nos permite afirmar que o próprio

“direito” submete-se às transmutações conceituais no decorrer do tempo, sob a

influência das várias escolas, cada qual com seu referencial teórico próprio.

Aurora Tomazini de Carvalho52 discorre sobre a concepção do Direito sob

a ótica de algumas dessas escolas, apontando as características que levam à

construção da realidade jurídica de cada uma delas: para o Jusnaturalismo, por

exemplo, o “direito natural” é pressuposto da ordem posta; para a Escola da

Exegese, o Direito encontra-se na ordem positivada, não havendo direito fora do

texto legal; a Escola Histórica do Direito (Historicismo) contrapõe-se às duas

primeiras, com fundamento na evolução histórica da sociedade, ou seja, nos

costumes de cada povo, em detrimento da racionalização do legislador; o Realismo

Jurídico, com uma concepção empírico-social do Direito, volta-se à sua efetivação; o

Positivismo, com suas vertentes – Positivismo Sociológico, que concebe o Direito

como um fenômeno social, e o Positivismo Jurídico, que concebe o Direito como um

conjunto de normas jurídicas postas –, afasta o Direito Natural e reconhece o Direito

Positivo como aquele vigente em determinada sociedade; o Culturalismo entende o

Direito como um bem cultural, constituído pelo homem objetivando determinados

valores; o Pós-Positivismo, apesar de pautar o contexto jurídico na ordem positivada,

considera valores principiológicos para estabelecer a concepção do Direito,

imprimindo-lhe um tom culturalista. Finalmente, a autora discorre sobre o

Construtivismo Lógico-Semântico, escola à qual nos filiamos, fundada nos

ensinamentos de Lourival Vilanova, que concebe o Direito como o resultado da

construção normativa a partir dos textos positivados, objetivando os valores

pretendidos pela sociedade.

Mas, o que a concepção do Direito tem a ver com o significado de

“validade”?

Por óbvio, percebe-se que os dois termos estão intrinsecamente ligados,

uma vez que a forma como se pensa o Direito determinará, inexoravelmente, como

ele deva ser construído e o que ele considera como válido.

52 CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de Teoria Geral do Direito: o Construtivismo Lógico-

Semântico, São Paulo: Noeses, 2009, p. 66 et seq.

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33

É uma das premissas do Construtivismo Lógico-Semântico que o direito

construa a sua própria realidade. Essa construção, entretanto, deve ser erguida

sobre sólidas bases conceituais que convivam harmonicamente entre si e sustentem

a estrutura do ordenamento, resistindo às argumentações que possam desestabilizar

o sistema. Dito de outro modo, o sistema jurídico, sob a ótica da Ciência do Direito,

não deve apresentar contradições53. Assim, buscamos responder o significado de

validade de acordo com as premissas estabelecidas ao longo deste trabalho,

segundo preconiza a nossa escola.

Vimos, no item 1.1, que o sistema estabelece a forma como a norma

jurídica ingressa no ordenamento; os enunciados prescritivos não são autorizados a

entrar no sistema por si próprios. Isto porque não valem por si mesmos54.

A validade é a relação de pertinencialidade de seus elementos – no caso

os enunciados prescritivos – ao sistema, de acordo com exigências ou “critérios-de-

pertinência” estabelecidos pelo próprio sistema: a norma somente será admitida no

sistema jurídico, (i) se houver outra norma que lhe sirva de fundamento de validade

e (ii) se for produzida conforme o procedimento prescrito. A validade não é, portanto,

um atributo da norma, mas uma relação entre a norma e o sistema55; relação esta

que pressupõe um fundamento de validade e um procedimento autorizado para que

a norma possa “existir” juridicamente.

Entendemos validade, nestes termos, como a relação de pertinência da

norma ao sistema, conforme as lições do ilustre doutrinador pernambucano, Lourival

Vilanova.56 Dizemos que a norma é válida se ela pertencer ao sistema. A validade

53 VILANOVA, Lourival. Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. 4. ed. São Paulo: Noeses,

2010, p. 149: “Qualquer que seja a proposição jurídica, qualquer que seja o conteúdo de uma proposição descritiva do Direito positivo, ela e sua recíproca contraditória, dentro de um só sistema científico, destroem a estrutura formal de sistema, confirmando-se a impossibilidade da conjunção de enunciados contraditórios.”

54 IVO, Gabriel. Norma Jurídica: Produção e Controle. São Paulo: Noeses, 2006, p. 116. 55 CARVALHO, Paulo de Barros. Derivação e Positivação no Direito Tributário. São Paulo: Noeses,

2011, p. 123. 56

VILANOVA, op. cit., p. XXXIV: “a validade das normas é relação-de-pertinência ao sistema, validade sintática quando se põem em evidência, por abstração formalizadora, suas variáveis e constantes, compondo estruturas.” Corroborando tal entendimento, Paulo de Barros Carvalho (Direito Tributário: Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2008, p. 403-404): “E ser norma válida quer significar manter relação de pertinencialidade com o sistema “S”, ou que nele foi posta por órgão legitimado a produzi-la, mediante procedimento estabelecido para esse fim. A validade não é, portanto, atributo que qualifica a norma jurídica, tendo status de relação: é o vínculo que se estabelece entre a proposição normativa e o sistema do direito posto, de tal sorte que, ao dizermos que u’a norma “N” é válida, estaremos expressando que ela pertence ao sistema “S”. [...] é intuitivo crer que a validade se confunde com a existência, de sorte que afirmar que u’a

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34

corresponde, portanto, à própria existência da norma no sistema57. Deste modo,

validade e existência se confundem, ou seja, dizer que a norma é válida significa

que ela existe no sistema58 e a sua produção será lícita quando o processo de

enunciação respeitar, formal e materialmente, o que prescreve a norma de

competência, no seu antecedente e consequente, respectivamente (conforme

descrito no item 1.1).

Gabriel Ivo59 diz que não há um “existir absoluto, aplicável a qualquer

campo objetal” e discorre sobre os vários significados de “existir”: “Há um existir da

realidade física. Há um existir do mundo psíquico. Há um existir matemático. O

existir do mundo jurídico é a validade de seus elementos. Valer é o modo especial de

existência de seus elementos. [...] A norma existe, logo vale.” Assim, a questão da

invalidade é posterior à existência; primeiro ela vale, depois se questiona se foi

produzida em conformidade com as normas de produção jurídica.

norma existe implica reconhecer sua validade, em face de determinado sistema jurídico. Do que se pode inferir: ou a norma existe, está no sistema e é, portanto, válida, ou não existe como norma jurídica.”

57 Nosso posicionamento acerca de validade como existência da norma no sistema confronta-se com o entendimento de eminente jurista Pontes de Miranda, para o qual a norma existe antes de ser válida para o sistema. Vejamos: “Para que algo valha é preciso que exista. Não tem sentido falar-se de validade ou de invalidade a respeito do que não existe. A questão da existência é questão prévia. Somente depois de se afirmar que existe é possível pensar-se em validade ou invalidade. Nem tudo que existe é suscetível de a seu respeito discutir-se se vale, ou se não vale. Não há de afirmar nem de negar que o nascimento, ou a avulsão, ou o pagamento valha. Não tem sentido. Tão-pouco, a respeito do que não existe: se não houve ato jurídico, nada há que possa ser válido ou inválido. Os conceitos de validade ou de invalidade só se referem a atos jurídicos, isto é, a atos humanos que entraram (plano da existência) no mundo jurídico e se tornaram, assim, atos jurídicos.” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Parte Geral. t. 2. Rio de Janeiro: Borsói, 1954, p. 7).

58 IVO, Gabriel. Norma Jurídica: Produção e Controle. São Paulo: Noeses, 2006, p. 120: “A pertinencialidade é o conjunto de condições de forma ou de conteúdo, ou de forma somente, para uma proposição jurídica existir, isto é, ser válida – pertencer a um sistema jurídico “S”.”

59 Ibid., p. 122 e 123.

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35

2 A NORMA JURÍDICA

Até aqui falamos de sistema jurídico e da relação dos seus elementos

entre si – as normas jurídicas na constituição desse sistema. Mas, o que é norma

jurídica? Qual á sua estrutura? Como se classificam as normas jurídicas? Estes são

questionamentos relevantes para que possamos compreender o processo de

positivação do próprio Direito.

Seguindo a linha do construtivismo lógico-semântico, firmamos a

premissa de que a linguagem não se trata de simples instrumento para

compreensão da realidade, mas de condição de possibilidade para sua constituição.

Neste trabalho, tratamos da realidade jurídica, portanto interessa-nos somente

aquela linguagem competente que possa constituir tal universo – o jurídico.

Paulo de Barros Carvalho60 afirma: “ali onde houver direito haverá sempre

normas jurídicas, e onde houver normas jurídicas haverá, certamente, uma

linguagem que lhe sirva de veículo de expressão”.

Norma jurídica, porém, é uma expressão ambígua e, mesmo tendo por

base a premissa apresentada, pode ser utilizada em diferentes sentidos – ora como

enunciados prescritivos, ora como conteúdo de significação destes enunciados etc.

Aurora Tomazini de Carvalho61 propõe que tais diferenças relacionam-se

aos diferentes planos de expressão (S1 a S4) sobre os quais o sistema do direito

positivo pode manifestar-se linguisticamente, ou seja: no plano (S1) – plano físico ou

dos enunciados –, encontram-se as normas jurídicas como enunciados

prescritivos62, limitados à sua literalidade textual. É a base material sobre a qual o

intérprete construirá as significações jurídicas; no plano (S2) – no plano das

60 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência. 7. ed. São

Paulo: Saraiva, 2009, p. 19. 61 CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de Teoria Geral do Direito: o Construtivismo Lógico-

Semântico, São Paulo: Noeses, 2009, p. 266. 62 Ibid., p. 332. A autora distingue os termos enunciado e proposição: “[...] o primeiro é entendido

como parte integrante do plano da literalidade textual, componente do dado material em que se expressa o direito positivo; o segundo é o sentido atribuído aos símbolos que compõem o campo de expressão do primeiro. O enunciado na linguagem escrita, obedecendo as regras gramaticais de certo idioma, materializa a mensagem produzida pelo legislador, e serve como base para a mensagem construída pelo intérprete, num contexto comunicacional. Neste sentido, ele aparece sempre de forma objetiva, como dado físico do direito positivo. Já a proposição não, ela é um dado imaterial e apresenta-se como juízo construído na mente daquele que interpreta o suporte físico no qual se materializa o direito positivo.”

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36

proposições isoladas (na forma “S é P”) –, o intérprete vai elaborando a construção

de sentido a partir dos textos jurídicos; encontram-se aí as normas jurídicas já como

proposições jurídicas, porém ainda sem sentido deôntico completo – são as normas

jurídicas em sentido amplo. Por exemplo: a alíquota é de 2%; no plano (S3), ou

plano das significações estruturadas (na forma hipotético-condicional – D(H�C),

encontram-se as normas jurídicas como significações deônticas com sentido

completo – normas jurídicas em sentido estrito – e, finalmente, no plano (S4) ou

plano da contextualização das significações estruturadas, encontram-se as normas

jurídicas em relações de coordenação e subordinação entre si, formando o sistema

ou ordenamento jurídico.

Paulo de Barros Carvalho63 diferencia norma jurídica em sentido amplo e

em sentido estrito:

(i) norma jurídica em sentido amplo como qualquer enunciado prescritivo do direito posto, sem sentido deôntico completo e (ii) norma jurídica em sentido estrito como significações construídas a partir dos textos positivados e estruturadas consoante a forma lógica dos juízos condicionais, compostos pela associação de duas ou mais proposições prescritivas, com sentido deôntico completo.

Das proposições dos autores, ousamos inferir que norma jurídica é a

significação construída a partir dos suportes físicos do Direito Positivo (enunciados

prescritivos do Direito), assim considerados aqueles no plano S1(literalidade), e que

podem apresentar-se (i) como enunciados prescritivos nas formas de proposições

isoladas – assim considerados aqueles no plano S2 – ditos normas jurídicas em

sentido amplo, ou (ii) enunciados prescritivos que permitem a construção de um

sentido deôntico completo (plano das significações estruturadas na forma hipotético-

condicional D(H�C) – assim considerados aqueles nos planos S3/S4 – ditos normas

jurídicas em sentido estrito.

2.1 A ESTRUTURA LÓGICA DA NORMA JURÍDICA

A norma jurídica, considerada em seu sentido estrito – significação

construída a partir dos textos positivados e estruturada consoante a forma lógica dos

63 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Noeses,

2008, p. 129.

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37

juízos hipotético-condicionais, composta pela associação de duas ou mais

proposições prescritivas – é a construção de um juízo hipotético-condicional, na

forma lógica D (H�C)64, capaz de transmitir uma mensagem positivada do direito,

com sentido deôntico completo.

Esta é a fórmula lógica (construída em linguagem formalizada)65

constante de qualquer norma jurídica, independentemente do conteúdo semântico

que lhe seja atribuído pelo legislador, ao escolher os acontecimentos que pretenda

juridicizar.

A hipótese da norma possibilita a identificação de tal acontecimento no

tempo e no espaço; o consequente prescreve uma conduta deonticamente

modalizada (obrigatória, permitida ou proibida) entre determinados sujeitos,

determinada pela concretização de tal evento no mundo, vertido em linguagem

competente.

Temos representada, assim, a homogeneidade sintática66 da norma

jurídica, ou seja, a sua estrutura lógica é constante, embora possa traduzir múltiplos

conteúdos semânticos – heterogeneidade semântica das normas jurídicas.

2.2 A NORMA JURÍDICA COMPLETA

Vimos, até aqui, que a norma jurídica apresenta-se em linguagem

formalizada67, sob uma estrutura lógica constante, D (H�C), composta por uma

64 D (H�C): deve ser que uma hipótese implique uma consequência. 65 VILANOVA, Lourival. Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. 4. ed. São Paulo: Noeses,

2010, p. 7: “Para chegar-se, pois, à proposição como tal, é preciso ir-se ao tema com o tipo de experiência que Husserl denominou abstração (lógica), ou reflexão lógica. Isola-se tematicamente a forma, faz-se a formalização. [...] Formalizar não é conferir forma aos dados, inserindo os dados da linguagem num certo esquema de ordem. É destacar, considerar à parte, abstrair a forma lógica que está, como dado, revestida de linguagem natural. E destaco, por abstração lógica, a forma, desembaraçando-me da matéria que tal forma recobre.”

66 A homogeneidade da qual falamos se refere à estrutura sintática (lógica) da norma jurídica, conforme lição de Paulo de Barros Carvalho (Direito Tributário: Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2008, p. 136): “Há homogeneidade, mas homogeneidade sob o ângulo puramente sintático, uma vez que nos planos semântico e pragmático o que se dá é um forte grau de heterogeneidade, único meio de que dispõe o legislador para cobrir a imensa e variável gama de situações sobre o que deve incidir a regulação do direito, na pluralidade extensiva e intensiva do real-social.”

67 VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. 4. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 245: “A abstração formalizadora da lógica só nos dá o mínimo estrutural das relações, independentemente dos subdomínios de objetos e fatos ou situações que enchem as formas estruturais.”

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38

hipótese (H), também denominada suposto, prótase, antecedente ou descritor; um

consequente (C), também denominado prescritor, apódese ou mandamento; um

operador neutro (D) ou functor-de-functor e um operador implicacional (�),

estabelecendo a causalidade jurídica, de maneira que a hipótese implica a

consequência.

A norma jurídica, porém, não é constituída por uma estrutura única; é uma

estrutura dual, na sua completude, formada por duas estruturas ou partes: norma

primária e norma secundária68.

Esta bimembridade da estrutura da norma jurídica é requisito, condição

necessária para constituição da norma jurídica completa.69

Norma jurídica completa é aquela constituída pela norma primária – que

prescreve uma conduta, estabelecendo uma relação jurídica entre dois sujeitos – e

pela norma secundária – que prescreve uma sanção (a ser aplicada pelo Estado-

juiz) pelo não cumprimento de tal conduta.

Considerando a norma em sentido estrito, ou seja, aquela construída pelo

intérprete a partir dos enunciados prescritivos inseridos no sistema, com sentido

deôntico completo, não há norma jurídica sem sanção no Direito Positivo. Ressalte-

se que a construção da norma jurídica completa – norma primária e secundária –

pode ser resultado da interpretação de vários enunciados do sistema; não

necessariamente as normas primárias e secundárias serão construídas a partir de

um único enunciado ou de um único instrumento normativo.

68 VILANOVA, Lourival. Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. 4. ed. São Paulo: Noeses,

2010: “Seguimos a teoria da estrutura dual da norma jurídica: consta de duas partes, que se denominam norma primária e norma secundária. Naquela, estatuem-se as relações deônticas direitos/deveres, como conseqüência da verificação de pressupostos, fixados na proposição descritiva de situações fácticas ou situações já juridicamente qualificadas; nesta, preceituam-se as conseqüências sancionadoras, no pressuposto do não-cumprimento da conduta juridicamente devida. Dizemos que há uma relação-de-ordem não-simétrica, a norma sancionadora pressupõe, primeiramente, a norma definidora de conduta exigida. Também, cremos, com isso não ser possível considerar a norma que não sanciona como supérflua. Sem ela, carece de sentido a norma sancionadora. O Direito-norma, em sua integridade constitutiva, compõe-se de duas partes. Denominemos, em sentido inverso do da teoria Kelseniana, a norma primária a que estatui direitos/deveres (sentido amplo) e a norma secundária a que vem em conseqüência da inobservância da conduta devida, justamente para sancionar seu inadimplemento (impô-la coativamente ou dar-lhe conduta substitutiva reparadora). As denominações adjetivas ‘primária’ e ‘secundária’ não exprimem relações de ordem temporal ou causal, mas de antecedente lógico para conseqüente lógico.”

69 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Lançamento Tributário. 2. ed. rev. São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 41: “O ser norma jurídica pressupõe bimembridade constitutiva. O primeiro membro denominamos norma primária; o segundo, norma secundária.”

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39

2.2.1 A Norma Primária e Norma Secundária

“Norma primária (endonorma/Cossio70) é aquela que prescreve um dever

caso se concretize o fato descrito na hipótese normativa, e norma secundária

(perinorma/Cossio) é aquela que prescreve uma providência sancionatória, a ser

aplicada pelo Estado-juiz, caso haja descumprimento da conduta prescrita na norma

primária”.71

A posição deste ilustre doutrinador diverge da posição de Kelsen, que

considerava como norma primária a estrutura sancionadora e, como norma

secundária, a estrutura que prescreve o dever jurídico.72

Eurico Marcos Diniz de Santi73 propõe um modelo de norma jurídica

completa (norma primária mais norma secundária), subdividindo a norma primária

em (i) dispositiva – aquela que tipifica, na hipótese, a descrição de um ato ou fato

lícito – e (ii) sancionadora – aquela que prescreve uma sanção de direito material,

caso haja descumprimento da norma primária dispositiva. Ex.: multa pelo não

pagamento de um tributo.

Apesar da integridade da norma jurídica na sua estrutura formal, a sua

feição dúplice se evidencia pela natureza diversa das suas estruturas, conforme

lição de Fabiana Del Padre Tomé74: a hipótese da norma primária descreve um fato

70 COSSIO, Carlos. La teoría egológica del derecho y el concepto jurídico de libertad. 2. ed. Buenos

Aires: Abeledo-Perrot, 1964, p. 661. Para Cossio, a norma jurídica completa se desmembra em endonorma - aquela que descreve a conduta objetivada pelo direito ou “conceptuación de la prestación”; perinorma - aquela que prescreve uma sanção pelo descumprimento da endonorma ou “conceptuación de la sanción”. Nas palavras do autor: “La conducta efectiva, en tanto que intuición que verifica este concepto, es decir, en tanto que dato que llena este esquema, no puede estar, por lo tanto, sino en una u otra de sus mitades, según se ve en estos esquemas donde ponemos el concepto jurídico y, grisada, la conducta que él menciona: la norma jurídica completa, que en cuanto concepto adecuado al objeto ha de ser disyuntiva para referirse a la posibilitad de posibilidades y no solo a la posibilidad que se da, tiene dos miembros, a los que proponemos llamarlos endonorma (conceptuación de la prestación) y perinorma (conceptuación de la sanción), no sólo para terminar con el caos de las designaciones de normas primarias y secundaria que los diferentes autores usan con sentido opuesto, sino para subrayar que se trata de una norma única y no de dos normas, punto indispensable para entender el concepto de la norma jurídica como un juicio disyuntivo.”

71 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 34, citando a classificação de Carlos Cossio acerca de norma primária e secundária.

72 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006 73 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Lançamento Tributário. 2. ed. rev. São Paulo: Max Limonad, 1999,

p. 43 et seq. 74 TOMÉ, Fabiana Del Padre. Contribuições para a Seguridade Social à Luz da Constituição Federal.

Curitiba: Juruá, 2002, p. 46 et seq.

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de conteúdo econômico de possível ocorrência no mundo real, enquanto a hipótese

da norma secundária descreve o descumprimento da conduta prescrita na

consequência da norma primária. Com relação aos consequentes: na norma

primária, o consequente prescreve direitos e deveres, frente à concretização da sua

hipótese; o consequente da norma secundária prescreve uma providência

sancionadora, a ser aplicada pelo Estado-Juiz, frente ao descumprimento do

consequente da norma primária.

Diante disso, conclui-se que a norma primária estabelece uma relação

jurídica de direito material ou substantivo e a norma secundária, uma relação jurídica

processual ou adjetiva. Em linguagem formalizada teremos:

(i) norma jurídica primária – D [H�R’(S’, S’’)] – dado que se revele

determinada hipótese, instaurar-se-á uma relação jurídica entre o sujeito

S’ e o sujeito S”;

(ii) norma jurídica secundária – D [-R’ (S’, S’’)�R’’(S’, S’’’)] – dado o não-

cumprimento da relação prescrita entre S’ e S’’, na norma primária, então,

uma nova relação jurídica nascerá, agora entre S’ e S’’’;

(iii) norma jurídica completa – D {[H�R’(S’, S’’)] v [-R(S’, S’’)� R’’’(S’, S’’’)]} –

a junção da norma primária e da norma secundária, de forma que aquela

descreva uma conduta a ser cumprida e esta prescreva uma sanção pelo

seu descumprimento.75

Lourival Vilanova76, corroborando a teoria egológica de Cossio (proposta

jusfilosófica de compreensão do Direito que considera as relações de

intersubjetividade em detrimento do puro normativismo mecânico), diz que na norma

primária estatuem-se as relações deônticas direitos/deveres, como consequência da

verificação in concreto das situações descritas na hipótese normativa, enquanto, na

norma secundária, preceituam-se as consequências sancionadoras do não

cumprimento do dever prescrito na norma primária. Assim, a norma sancionadora

75 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência. 7. ed. São

Paulo: Saraiva, 2009, p. 35, esclarece: “As duas entidades que, juntas, formam a norma completa, expressam a mensagem deôntico-jurídica na sua integridade constitutiva, significando a orientação da conduta, juntamente com a providência coercitiva que o ordenamento prevê para seu descumprimento. [...] Ambas são válidas no sistema, ainda que somente uma venha a ser aplicada ao caso concreto. Por isso mesmo, empregamos o disjuntor includente (“v”), que suscita o trilema: uma ou outra ou ambas. A utilização desse disjuntor tem a propriedade de mostrar que as duas regras são simultaneamente válidas, mas que a aplicação de uma exclui a da outra.”

76 VILANOVA, Lourival. Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2010, p. 105.

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pressupõe o descumprimento da norma primária. Este é o entendimento ao qual nos

filiamos.

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3 A CLASSIFICAÇÃO ESTRUTURAL DAS ESPÉCIES NORMATIVAS

“Classificar é distribuir em classes […] é separar os objetos em classes de

acordo com as semelhanças que entre eles existam mantendo-os em posições fixas

e exatamente determinadas com relação às demais classes.”77

As classes mais extensas nas suas semelhanças – chamadas de gênero

– contêm subclasses, que apontam diferenças específicas dentre os seus elementos

– chamadas de espécies. O número de classes será consequência do número de

critérios (variáveis) estabelecidos pelo autor, permitindo a variação qualitativa e

quantitativa das classificações.

É o que acontece com relação à classificação das espécies normativas,

onde encontramos uma diversidade de classificações doutrinárias, segundo os

critérios adotados por cada autor.

Trabalharemos com as classes “abstrata” e “concreta”, quando nos

referirmos ao modo como se trata o fato descrito no antecedente, de tal forma que a

tipificação (conotativa) do fato previsto na hipótese normativa, qualificará uma

previsão abstrata (de possível ocorrência, ou seja, dirige-se ao futuro), e a descrição

(denotativa) de um evento ocorrido, especificado no tempo e no espaço, no

antecedente da norma a qualificará como concreta (reporta-se, portanto, ao

passado); e, com as classes “geral” e “individual”, quando nos referirmos a quem se

dirige à norma produzida78: geral, quando se dirigir a sujeitos indeterminados, e

individual, quando se puder identificar o indivíduo ou grupo ao qual se dirige a

norma.

Adotamos, portanto, a classificação das normas quanto à sua estrutura,

de acordo com os critérios estabelecidos, em quatro espécies: (i) abstrata e geral; (ii)

concreta e geral; (iii) abstrata e individual; e (iv) concreta e individual, como

examinaremos a seguir.

77 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Noeses,

2008, p. 117 et seq. 78 Ibid., p. 140 e CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Fundamentos Jurídicos da

Incidência. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 35.

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43

3.1 A NORMA ABSTRATA E GERAL

A norma abstrata e geral, comumente chamada de norma geral e abstrata

(NGA), descreve in abstrato um fato de possível ocorrência em sua hipótese

(antecedente), projetando-se, portanto, hipoteticamente para o futuro, ao estabelecer

os critérios que permitirão identificar tal evento, caso venha a concretizar-se; e

prescreve, em seu consequente, a regulação da conduta de forma geral, sem

individualizar os sujeitos, apenas determinando os critérios que qualificarão os

indivíduos a serem envolvidos na relação jurídica que se estabelecerá, caso se

concretize o acontecimento previsto na hipótese.

Assim, o antecedente desta norma é um enunciado conotativo, que se

compõe das notas que um acontecimento ou indivíduo, necessariamente, deve ter

para compor a classe de acontecimentos (ação)/indivíduos (estado) passíveis de

juridicização; o consequente normativo, por seu turno, trará a conduta determinada

em termos gerais, voltada para um conjunto indeterminado de pessoas envolvidas

na relação jurídica deonticamente regulada.79

3.2 A NORMA CONCRETA E GERAL

A norma geral e concreta (NGC) é a norma veículo-introdutor, ou seja,

aquela capaz de inserir no sistema normas individuais, gerais, concretas e abstratas.

De acordo com a teoria das fontes, é necessário que um veículo introdutor faça a

inserção da regra no sistema. Isto significa que nenhuma norma entra no sistema

sem outra norma que a introduza.80

Tal norma traz, no seu antecedente, um acontecimento identificado no

tempo e no espaço, que se refere à pessoa competente para expedi-la; no

79 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Noeses,

2008, p. 141. 80 Ibid., p. 143: “Seguindo o degrau das estruturas normativas, perceberemos que tanto a norma

geral e abstrata quanto a norma individual e concreta pressupõem um ato ponente de norma, juridicizado pela competência jurídica de inserir norma no sistema que lhe prescreve o direito positivo. Torna-se preciso, como pede a teoria das fontes do direito, que um veículo introdutor (ato jurídico-administrativo do lançamento, por exemplo) faça a inserção da regra no sistema. Significa dizer: unidade normativa alguma entra no ordenamento sem outra que a conduza. [...] Lembremo-nos de que a regra incumbida de conduzir a prescrição para dentro da ordenação positiva é de fundamental importância para montar a hierarquia do próprio sistema jurídico.”

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44

consequente, expressa a prática da conduta autorizada àquele sujeito competente

para inovar a ordem jurídica, produzindo determinado instrumento (lei, decreto etc.)

e que deverá ser obedecida por todos, daí o caráter geral.

Serve para introduzir normas no sistema, bem como para arquitetar a

hierarquia desse sistema.

3.3 A NORMA ABSTRATA E INDIVIDUAL

A norma individual e abstrata (NIA) é aquela que tem um fato

abstratamente descrito no antecedente, porém o consequente dirige-se a

destinatário(s) determinado(s), perfeitamente identificado(s) na relação jurídica que

se estabelece. Como exemplo, a resposta a uma consulta fiscal: trata-se de uma

norma individual e abstrata, uma vez que o antecedente, que é o próprio objeto da

consulta, estabelecerá os critérios para que se possa determinar conduta futura

como sendo jurídica; quanto ao consequente, uma vez que se podem determinar os

sujeitos e o objeto da relação veiculada pela consulta, considerar-se-á, desde já,

individualizado.

3.4 A NORMA CONCRETA E INDIVIDUAL

A norma individual e concreta (NIC) opera, efetivamente, o fenômeno da

incidência, com a descrição denotativa, no seu antecedente, de um acontecimento

do mundo físico-social (evento), ocorrido em condições determinadas de tempo e

espaço (portanto, pretérito), que guarda estrita consonância com os critérios

estabelecidos conotativamente na hipótese da NGA; no seu consequente, veicula

outro enunciado protocolar denotativo, de caráter relacional, como sequência lógica

(não cronológica), do fato jurídico descrito no antecedente dessa norma.

Na esfera tributária, é aquela norma plasmada no ato-administrativo de

lançamento e que, efetivamente, prescreve que determinado sujeito esteja obrigado

ao pagamento do tributo por se enquadrar na previsão descrita na hipótese da

norma geral e abstrata (regra-matriz de incidência tributária).

Page 46: Silvia Regina Zomer

45

Nesse sentido, a afirmação de Aurora Tomazini de Carvalho de que existe

uma relação de subordinação entre as normas gerais e abstratas e individuais e

concretas, sendo que aquelas servem de fundamento para a criação destas.81

81 CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de Teoria Geral do Direito: o Construtivismo Lógico-

Semântico, São Paulo: Noeses, 2009, p. 344.

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46

4 FONTES DO DIREITO

Antes de abordarmos, efetivamente, o tema “fontes do direito”, é

importante relembrar algumas premissas firmadas no início deste trabalho.

Temos como ponto basilar deste estudo o Construtivismo Lógico-

Semântico; consequentemente, a linguagem assume função relevante não somente

como condição de possibilidade para o conhecimento, mas para a própria

constituição da realidade.

A realidade sobre a qual nos debruçamos é a realidade do Direito

Positivo, portanto, somente da linguagem jurídica poderemos nos socorrer para o

estudo de qualquer tema jurídico.

Um passo adiante nessa empreitada e nos depararemos com duas

camadas distintas de linguagem jurídica: a linguagem descritiva da Ciência do

Direito (sobrelinguagem), que opera com os valores de verdade e falsidade; e a

linguagem do Direito Positivo (linguagem objeto), que opera com os valores da

validade e não validade. São duas camadas distintas e irredutíveis que falam acerca

do Direito, porém somente a linguagem do Direito Positivo pode inová-lo, restando à

linguagem da Ciência do Direito interpretá-lo, compreendê-lo.

Ao tratarmos, então, do tema “fontes do direito”, falaremos,

obrigatoriamente, de Direito Positivo (considerado como Direito válido), pois não

cabe à Ciência do Direito constituir qualquer fonte do Direito, senão compreendê-la.

Com lastro em tais premissas, de pronto nos afastamos do que,

tradicionalmente, a doutrina aponta como fontes do direito, ou seja, a lei, a doutrina,

a jurisprudência e os costumes.

Aurora Tomazini de Carvalho82, ao discorrer brilhantemente sobre este

assunto, sintetiza o pensamento de eminentes doutrinadores quanto às fontes do

direito, de forma a demonstrar o entendimento divergente sobre “fontes do direito” na

Ciência do Direito.

Cita Hans Kelsen, para quem as fontes do Direito tanto caracterizam o

fundamento de validade das normas jurídicas (de forma que o direito regule a sua

82 CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de Teoria Geral do Direito: o Construtivismo Lógico-

Semântico, São Paulo: Noeses, 2009, p. 622 et seq.

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47

própria criação, tendo todas as normas fundamento de validade em outra norma do

sistema), como também se referem aos conceitos que influenciam a criação do

Direito, como as normas morais e a doutrina, por exemplo: Luis Recasens Siches,

para quem todo direito tem como fonte a vontade do Estado; Antônio Bento Betioli,

que entende que a fonte do direito consiste num poder capaz de optar por uma

determinada solução normativa com características de objetividade e

obrigatoriedade; Norberto Bobbio, que considera que as fontes do direito são os

fatos ou atos indispensáveis, pelo ordenamento jurídico, para a produção de normas

jurídicas; Maria Helena Diniz, que divide as fontes do Direito em materiais e formais,

sendo aquelas os fatos que dão o conteúdo das normas jurídicas – as verdadeiras

fontes do direito por determinarem de onde ele provém – e estas, os meios em que

as primeiras se apresentam revestidas no meio jurídico, a exemplo da lei, dos

costumes, da jurisprudência etc.; Miguel Reale, que define fontes do Direito como os

processos ou meios em virtude dos quais as regras jurídicas se positivam com

legítima força obrigatória (vigência e eficácia); Tércio Sampaio Ferraz Jr., para o qual

as fontes apontam os modos de criação das normas jurídicas (apesar de acatar a lei,

os costumes, a jurisprudência e o negócio jurídico como fontes formais do direito, faz

uma ressalva de que tais termos podem referir-se tanto às fontes do direito como às

normas jurídicas); e Lourival Vilanova, que se refere às fontes formais como as

normas que regulam a produção normativa e às fontes materiais, os fatos produtores

de normas jurídicas.

Nossa visão sobre o tema parte da reflexão sobre os termos da expressão

fontes e direito. Primeiro, utilizaremos “direito” como o próprio “direito positivo”, ou

seja, como o conjunto de normas jurídicas válidas que regulam as relações

intersubjetivas, em determinado tempo e lugar, objetivando os valores que a

sociedade pretenda realizar.

Esta escolha, entre tantos significados possíveis para o direito, busca

integrar-se às premissas estabelecidas no início deste trabalho, afetas ao

construtivismo lógico-semântico, privilegiando a linguagem como elemento

imprescindível para a constituição da realidade – neste caso específico, da realidade

jurídica.

Nesta esteira de raciocínio, as normas jurídicas que compõem o direito

positivo são as significações construídas pelo intérprete a partir dos textos

positivados do direito.

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48

O que seriam então as fontes do direito? Qual a relevância do estudo das

fontes para o direito?

Seguimos a proposta de Paulo de Barros Carvalho83, que apregoa as

fontes do direito como os “focos ejetores de regras jurídicas, isto é, os órgãos

habilitados pelo sistema para produzirem normas numa organização escalonada,

bem como a própria atividade desenvolvida por essas entidades, tendo em vista a

criação de normas”. Reforça, ainda, o autor que não basta a previsão no

ordenamento, do órgão competente, mas também previsão da atividade por ele

desenvolvida.

Tal posição doutrinária está em consonância com a definição proposta por

Lourival Vilanova84, para quem fontes do direito “são fatos jurídicos criadores de

normas: fatos sobre os quais incidem hipóteses fácticas, dando em resultado normas

de certa hierarquia.”

Como evidenciamos no início deste trabalho, interessa-nos somente a

realidade jurídica, ou seja, aquela constituída pela linguagem jurídica. Assim, entre

tantas definições para os termos fontes e direito, buscamos aquelas afetas à

linguagem do direito, de modo que, ao conjugá-las, possamos chegar,

coerentemente, a um resultado jurídico.

As fontes do direito são, na verdade, o processo de produção das normas

jurídicas pelo órgão competente, de acordo com as regras estabelecidas pelo próprio

sistema. Deste “processo de produção” é que emanam as normas. Eis aí está a

fonte do direito.

O estudo das fontes do direito é relevante para que se possa determinar o

que é, verdadeiramente, norma jurídica, bem como o que é válido para o sistema.

Vimos no item 1.5 deste trabalho que validade é a relação de pertinência da norma

jurídica ao sistema. Sendo assim, norma jurídica válida será aquela, e somente

aquela, emanada das fontes legitimadas e de acordo com as normas de produção

impostas pelo sistema. Este processo de produção da norma, porém, é um evento

que se perde no tempo, e somente com a investigação retrospectiva acerca do

Direito produzido (linguagem prescritiva ou linguagem competente que descreve

83 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 47. 84 VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. 4. ed. rev. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2000, p. 56.

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49

esse evento) poderão ser conhecidas as fontes do Direito, revelando, assim, as

normas jurídicas consideradas válidas pelo sistema.

Por isso, as normas (lei, em sentido lato) não podem ser fontes de

normas, posto que sejam produtos, não processo. Daí entendermos, também, que

os costumes, a jurisprudência e a doutrina não possam ser considerados “fontes do

direito”; os costumes não criam normas – podem suscitar, influenciar socialmente a

necessidade da elaboração de normas; a jurisprudência, como a lei, é produto, não

processo de criação; e a doutrina é ciência do direito, é metalinguagem que tem por

objeto o direito positivo – não está sequer na mesma dimensão deste. Costumes,

doutrina e jurisprudência nada criam; não podem, portanto, ser fontes do direito.

Mas, como o intérprete pode descobrir ou percorrer o caminho do

processo de produção da norma jurídica (fonte do direito)?

Tárek Moysés Moussallem85 diz que a atividade produtora de normas

jurídicas denomina-se atividade de enunciação; e o resultado desta atividade, o

conjunto de enunciados que formam o direito positivo. Esta atividade, porém, se

perde no tempo e só poderá ser identificada pelas marcas pronunciadas no produto

da enunciação, ou seja, no texto jurídico produzido (suporte físico – enunciado).

Nele estão contidas as marcas da enunciação – informações sobre o processo de

produção das normas jurídicas –, tais como: o órgão competente (sujeito), o

procedimento, o tempo e o espaço em que se deu o processo. Esses dados são

chamados de enunciação-enunciada. Daí que “todo enunciado pressupõe

enunciação”86.

85 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do direito tributário. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de

(Org.). Curso de Especialização em Direito Tributário: estudos analíticos em homenagem ao Professor Paulo de Barros Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 100.

Gabriel Ivo descreve o processo de produção normativa da seguinte forma: “A (i) enunciação, como dito, é o ato que produz o enunciado. Constitui o enunciado. Sem enunciação não há enunciado, por isso ela antecede-o sempre. O (ii) enunciado é o produto, o resultante da enunciação. O enunciado, no entanto, além de comportar o enunciado propriamente dito, suporta as marcas da enunciação. É a (iii) enunciação enunciada. O simulacro da enunciação, que não se confunde com a própria enunciação. [...] Da conseqüência (enunciação enunciada) investiga-se a causa (enunciação). O enunciado também contém o (iv) enunciado enunciado, que é a seqüência enunciada sem as marcas da enunciação. O enunciado enunciado é o conteúdo do texto, abstraído o seu processo. O enunciado sem a enunciação enunciada. [...] a enunciação jurídica deixa marcas no texto produzido que permitem a sindicância de seu processo de produção. Os dêiticos de pessoa, espaço e tempo remetem para a enunciação, permitindo a sua reconstrução.” (IVO, Gabriel. Norma Jurídica: Produção e Controle. São Paulo: Noeses, 2006, p. XLV-XLVI).

86 MOUSSALLEM, op. cit., p. 107 et seq.

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50

A parte do texto jurídico sem as marcas da enunciação denomina-se

enunciado-enunciado (aquilo que foi produzido pela enunciação-enunciada), ou seja,

a parte do instrumento que contém os enunciados prescritivos (conteúdo da

mensagem prescritiva) e que objetiva produzir uma significação na mente do

intérprete – normas propriamente ditas.

O mesmo autor, baseando-se na doutrina de Norberto Bobbio, na qual

afirma que o ordenamento, ao lado de regular o comportamento das pessoas,

prescreve também o modo de produção normativa (normas de comportamento e

normas de estrutura, respectivamente), propõe a classificação das normas em: (i)

normas de produção jurídica, (ii) normas de revisão sistêmica e (iii) normas de

conduta, considerando o efeito do ato de aplicação de uma norma. Diz, ainda:

São as normas de produção normativa e as normas de revisão sistêmica que outorgam o caráter de auto-referência ao sistema do direito positivo, funcionando como regras gramaticais do sistema lingüístico do direito positivo que, da mesma forma que os demais sistemas lingüísticos, possuem regras de formação e transformação de enunciados.87

Os argumentos e premissas adotadas neste estudo nos permitem refutar,

portanto, as definições doutrinárias que apontam os “produtos de produção

normativa”, a exemplo das leis e da jurisprudência como fontes do direito, bem como

da doutrina e dos costumes.

As leis e a jurisprudência apesar de integrarem o direito positivo, não

criam o direito, são o direito; tampouco a doutrina integra o direito positivo

(linguagem prescritiva), pois pertence a outra dimensão linguística (linguagem

descritiva que fala da linguagem prescritiva do direito); os costumes, por mais que

sirvam de motivação para a elaboração de normas, pertencem ao mundo social

(mundo do ser), diferentemente do direito positivo (mundo do dever-ser).

87 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do direito tributário. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de

(Org.). Curso de Especialização em Direito Tributário: estudos analíticos em homenagem ao Professor Paulo de Barros Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 101.

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SEGUNDA PARTE

O PROCESSO DE POSITIVAÇÃO

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1 OS PRESSUPOSTOS DA INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA

Vimos até aqui que o Direito Positivo é o conjunto de normas jurídicas

válidas que regula as relações intersubjetivas, objetivando os valores que a

sociedade pretenda realizar, em determinado tempo e lugar. Esse corpo normativo

tem como elemento fundamental a norma jurídica, que entendemos ser a

significação construída pelo intérprete a partir dos textos positivados do direito, com

o intuito de atingir as condutas humanas, regulando-as deonticamente. Trata-se de

um corpo de linguagem prescritiva, elaborado pelo homem e condicionado a certos

valores culturais, por isso considerado, também ele, um objeto cultural. É, portanto, o

Direito Positivo, um objeto cultural que tem o homem como cerne da sua criação e

que se concretiza pela linguagem.

Vimos, ainda, que as normas jurídicas submetem-se aos procedimentos

prescritos pelo próprio direito no que diz respeito à sua criação, alteração e

aplicação. Somente os sujeitos competentes podem criar o direito, mediante

procedimento autorizado para este fim, dentro dos limites de sua competência. Uma

vez inseridas no sistema jurídico, as normas passam a regular, então, as condutas

intersubjetivas.

Este processo, porém, não acontece de forma automática e infalível;

requer um ato de vontade do homem no sentido de promover a incidência das

normas sobre os fatos88 – é o que chamamos de processo de positivação do

direito89 –, a movimentação do sistema, mediante um ato de vontade do homem,

com o objetivo de aplicar, fazer incidir o direito.90

88 IVO, Gabriel. Norma Jurídica: Produção e Controle. São Paulo: Noeses, 2006, p. 47: “Mas, essa

fenomenologia da juridicização, a incidência, não se dá fora do homem. Não é algo absolutamente objetivo. A observação humana integra a incidência, que é (re)feita na mente do aplicador do direito. Dentro da ontologia dos objetos, o direito ocupa lugar na região dos objetos culturais, aqueles produzidos pelo homem para o atingimento de uma finalidade desenhada, também, pelo homem.”

89 CARVALHO, Paulo de Barros. Derivação e Positivação no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2011, p. XIX: “Positivação é a seqüência de atos ponentes de normas no quadro da dinâmica do sistema. [...] Da norma hipotética fundamental (Kelsen), atravessando o domínio até chegar às normas terminais do sistema, nas imediações das condutas intersubjetivas, há extenso caminho a ser percorrido.”

90 Nesse sentido, Gabriel Ivo: “O momento de aplicação não significa uma mera adequação com a incidência que ocorreu, mas a concreção da incidência. Não há uma incidência passada que seja incompatível com a aplicação. [...] é a aplicação, portanto, que dá o sentido da incidência. Separar

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53

2 A INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA

O verbo incidir significa “cair sobre”. Tomando-se a realidade jurídica

como contexto e a linguagem como elemento essencial para a constituição desta

realidade, poderemos pensar no significado de incidência como a projeção da

linguagem jurídica sobre a linguagem social, no sentido de regular as condutas

intersubjetivas.

Lourival Vilanova91, ao falar sobre as fontes do direito, explica como os

fatos sociais tornam-se fatos jurídicos, ou seja, como são alcançados pela

linguagem do direito:

As normas de organização (e de competência) e as normas do “processo legislativo”, constitucionalmente postas, incidem em fatos e os fatos se tornam jurígenos. O que denominamos “fontes do direito” são os fatos jurídicos criadores de normas: fatos sobre os quais incidem hipóteses fácticas, dando em resultado normas de certa hierarquia. Assim, as normas, potencialmente incidentes sobre a classe dos fatos que delinearam, resultam em fatos que, por sua vez, são qualificados como fatos jurídicos por outras normas do sistema.

Tárek Moysés Moussallem92, referindo-se ao ilustre professor

pernambucano, Lourival Vilanova, diz:

Na esteira de seu pensamento, as normas não derivam de normas. O processo de criação do direito não é um processo inferencial-dedutivo do qual de uma norma N1 sacamos a N2. Pelo contrário, o direito positivo, como sistema nomoempírico-prescritivo, dirige-se à [linguagem da] realidade social para torná-la jurídica e criar norma.

Mas, se tratamos de duas realidades diferentes, duas dimensões

diferentes, como se processa essa projeção da realidade jurídica à realidade social,

a fim de juridicizá-la?

os dois momentos como se um, o da incidência, fosse algo mecânico ou mesmo divino que nunca erra ou falha, e o outro, o da aplicação como algo humano, vil, sujeito ao erro, é inadequado. É pensar que nada precisa de interpretação. E mais, a incidência automática e infalível reforça a idéia de neutralidade do aplicador. Assim, a incidência terá sempre o sentido que o homem lhe der. Melhor: a incidência é realizada pelo homem. A norma não incide por força própria: é incidida.” (IVO, Gabriel. Norma Jurídica: Produção e Controle. São Paulo: Noeses, 2006, p. 61-62).

91 VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. 4. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 24.

92 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do direito tributário. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de (Org.). Curso de Especialização em Direito Tributário: estudos analíticos em homenagem ao Professor Paulo de Barros Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 104.

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54

Tendo como referência o Direito Positivo e este tomado como um objeto

cultural, conclui-se que o homem encontra-se no centro do processo de criação do

direito, constituindo-o pela linguagem. Sabemos que o direito constitui-se por uma

linguagem prescritiva sustentada por uma lógica deôntica (mundo do dever-ser),

pretendendo regular condutas intersubjetivas de uma determinada sociedade,

visando implementar determinados valores eleitos por essa sociedade.

O homem não pode, porém, promover a incidência arbitrariamente. Há

que respeitar os comandos normativos que determinam quais acontecimentos

deverão ser juridicizados e a forma como se dará o fenômeno da juridicização.

Adverte Paulo de Barros Carvalho93,

[…] a incidência requer, por um lado, a norma jurídica válida e vigente; por outro; a realização do evento juridicamente vertido em linguagem que o sistema indique como própria e adequada. Em tal acepção, quando se fala em incidência jurídico-tributária estamos pressupondo a linguagem do direito positivo projetando-se sobre o campo material das condutas intersubjetivas, para organizá-las deonticamente.

Partimos daí, então, para entender e descrever o processo da incidência.

O homem (aplicador do direito), inicialmente, observa os dois planos: do direito e do

social. Do primeiro plano (do dever-ser), a partir dos enunciados prescritivos,

constitui as normas jurídicas gerais e abstratas, em que, na hipótese normativa, se

concentram os critérios conotativos que lhe permitem, ao observar o plano social (do

ser), identificar a classe de eventos, que, por corresponder àqueles critérios, deva

ser juridicizada (subsunção – inclusão de classes). Neste momento, avaliando a

linguagem das provas, constrói outra norma jurídica – individual e concreta, em que,

no antecedente, constitui o fato jurídico tributário (evento vertido em linguagem

competente do direito). Deste modo, traz para a realidade do direito aquilo que

pertencia à realidade social, por meio de uma nova linguagem – a linguagem

jurídica.

Como consequência lógica, por força da imputação, instaura-se um fato

jurídico relacional, ou seja, uma relação jurídica que representa o vínculo abstrato

que enlaça dois sujeitos de direito – um com o direito subjetivo de exigir o

93 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Noeses,

2008, p. 826.

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55

cumprimento de determinada prestação, e outro com o dever subjetivo de cumpri-la.

É este o fenômeno da incidência ou aplicação do Direito94.

Diante deste processo pode-se inferir que a incidência apresenta duas

características: a infalibilidade e a inesgotabilidade95. A infalibilidade, em razão da

imputação: uma vez constituído o fato jurídico na hipótese normativa, ocorre a

incidência, infalivelmente, fazendo nascer a relação jurídica no consequente da

norma; a inesgotabilidade, porque sempre que ocorra um evento, no mundo

fenomênico, que corresponda à situação descrita conotativamente na hipótese

normativa, haverá incidência promovida pelo homem por meio de linguagem

específica. Dito de outra maneira: a incidência é “produto do homem”96, ou seja, é

produzida a partir da interpretação de um enunciado prescritivo pelo homem, que

constituirá outra norma, por meio de nova linguagem competente posta no sistema.

Por isso, podemos dizer que a norma não incide; é incidida.

Percebe-se que a linguagem permeia todo o Direito: seja para constituir

os fatos (lembremo-nos de que o fato só o é quando vertido em linguagem

competente), apreendendo-os no tempo e no espaço, seja para torná-los jurídicos,

realizando-se a aplicação do direito97. Não há, definitivamente, Direito sem

linguagem.

94 CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de Teoria Geral do Direito: o Construtivismo Lógico-

Semântico, São Paulo: Noeses, 2009, p. 418. 95 IVO, Gabriel. Norma Jurídica: Produção e Controle. São Paulo: Noeses, 2006, p. 46. 96 Ibid., p. 52-53: “O que incide, portanto, é o produto da interpretação. E como o produto da

interpretação é a norma jurídica, construída pelo intérprete, juiz ou alguém a quem interessa a regra jurídica, o senhor da incidência não é algo físico ou metafísico. O senhor da incidência é o homem concreto; o construtor do sentido das palavras. O gerador de sentido do texto. [...] Por isso, antes da presença humana não pode haver incidência. A incidência, portanto, não se situa fora da consciência humana. É produto do homem.”

97 TOMÉ, Fabiana Del Padre. A Prova no Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2008, p. 31: “É

pelo ato de aplicação do direito que se tem o processo de positivação a que nos referimos no subitem antecedente. [...] Convém esclarecer que a aplicação do direito não dista da própria produção normativa. ‘A aplicação do Direito é simultaneamente produção do Direito’. Trata-se de ato mediante o qual se extrai de regras superiores o fundamento de validade para edição de outras regras, cada vez mais individualizadas. E é somente por meio dessa ação humana que se opera o fenômeno da incidência normativa em geral, assim como da incidência tributária, em particular. Sem que um sujeito realize a subsunção e promova a implicação, expedindo novos comandos normativos, não há que falar em incidência jurídica.”

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56

2.1 A INCIDÊNCIA ANALISADA PELOS PLANOS DA SEMIÓTICA

Dado o aspecto irrenunciável98 da linguagem para a constituição do

Direito, como também da própria incidência, mostra-se a semiótica como uma teoria

apropriada para conduzir a investigação do fenômeno da juridicização.

Clarice von Oertzen de Araujo99 aborda o tema da incidência

relacionando-o à semiótica100, segundo as teorias de Charles Sanders Peirce e do

eminente jurista brasileiro Pontes de Miranda.

A autora parte da premissa que o direito positivo é uma das

manifestações intersubjetivas, entre outras de natureza diversa, que compõem a

cultura – “sistema simbólico de significações” – e, como objeto cultural, está inserido

numa “realidade constituída de signos e códigos, de natureza verbal ou não

verbal”.101

A semiótica (Peirce), ciência dos signos, estuda os fenômenos da

representação, mostrando-se eficaz para o estudo da incidência, vista como um

fenômeno da linguagem jurídica (constituída por signos) na aplicação do direito,

regulando as condutas intersubjetivas decorrentes da constituição de um fato

jurídico.

De acordo com a teoria semiótica, o signo representa o seu objeto, porém

o faz de forma parcial. Esta incompletude da representação acontece porque o

objeto dinâmico (aquele que se pretende interpretar) está na realidade, e esta é

intangível; pode-se somente representá-la por meio dos signos (objeto imediato), 98 CARVALHO, Paulo de Barros. O legislador como poeta do direito. In: BERNARDO, Gustavo

(Org.). A filosofia da ficção de Vilém Flusser. São Paulo: Annablume; Rio de Janeiro: Faperj, 2011, p. 314, 315: “Sobre essas premissas penso que nos dias atuais seja problemático tratar do jurídico sem atinar a seu meio exclusivo de aparição: a linguagem. [...] E o pressuposto do cerco inapelável da linguagem nos conduzirá, certamente, a uma concepção semiótica dos textos jurídicos, em que as dimensões sintáticas ou lógicas, semânticas e pragmáticas funcionam como instrumentos preciosos do aprofundamento cognoscitivo.”

99 ARAUJO, Clarice von Oertzen de. Incidência Jurídica: teoria e crítica. São Paulo: Noeses, 2011. 100 VOLLI, Ugo. Manual de Semiótica. Tradução de Silva Debetto C. Reis. São Paulo: Loyola, 2007.

Diz o autor: “Há algumas décadas usa-se chamar de semiótica a disciplina que se ocupa dos signos, do sentido e da comunicação. Pelos assuntos que trata tem raízes muito antigas: ocuparam-se com os signos e com a linguagem os pré-socráticos, Platão, Aristóteles, os estóicos, Agostinho e a escolástica, além de toda a filosofia moderna, de Descartes em diante. […] Em seus aspectos de ciência moderna, a semiótica foi fundada duas vezes, mais ou menos contemporaneamente, entre o final do século XVIII e o início do século XIX: por um grande lingüista europeu, Ferdinand Saussure, que a via como disciplina-mãe da lingüística e como parte da “psicologia social”; e pelo filósofo americano Charles Sanders Peirce, que a concebia como uma disciplina essencialmente filosófica, aparentada com a lógica e a fenomenologia.”

101 ARAUJO, op. cit., p. 7.

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segundo a percepção do intérprete, e esta é sempre limitada. Por isso, o signo não

esgota o seu objeto. Neste sentido, Clarice von Oertzen de Araujo102:

A incompletude do signo em relação ao objeto constitui um verdadeiro estímulo à contínua interpretação e autogeração de signos. O objeto signo inaugura uma dimensão da alteridade dentro da compreensão da tradução. O objeto, ao se instalar em seu lugar lógico, que é o da realidade, somente permite o seu acesso mediante a representação sígnica.

Justifica-se, portanto, a adoção da semiótica para o estudo da incidência

jurídica, uma vez que o direito positivo, como objeto cultural, manifesta-se pelas

normas jurídicas, consideradas unidades sígnicas que regulam as condutas

intersubjetivas, estruturando o sistema jurídico. Dizer que o direito é um objeto

cultural significa dizer que não deriva da natureza, mas que é resultado de uma

convenção, de um acordo, assim como a própria linguagem. Ambos são construções

do homem, produto da sua vontade.

Gregorio Robles Morchón103, filósofo do direito, diz que o acordado é

linguagem: “a natureza do acordado não é outra que a da linguagem, já que não se

pode acordar senão mediante linguagem.” Como fruto de uma convenção, direito e

linguagem manifestam-se pela forma e pelo conteúdo: a “forma” da convenção

refere-se à estrutura lógica das proposições linguísticas e à maneira como se

relacionam entre si, e o “conteúdo” refere-se ao significado das proposições

linguísticas.

Outro fator que corrobora a relação da semiótica à aplicação do direito é a

abertura semântica do sistema, especialmente quando tratamos da incidência.

Sabemos que a estrutura lógica ou sintática da norma jurídica é responsável pelo

fechamento do sistema, ou seja, só será permitida a entrada no ordenamento

102 ARAUJO, Clarice von Oertzen de. Incidência Jurídica: teoria e crítica. São Paulo: Noeses, 2011, p.

19. 103 MORCHÓN, Gregorio Robles. As regras do direito e as regras dos jogos: ensaio sobre a teoria

analítica do direito. São Paulo: Noeses, 2011, p. 24 et seq.: “O caráter convencional do Direito indica que é produto da vontade dos homens, que tem uma origem artificial e que, por conseguinte, não deriva da natureza das coisas. [...] O acordado é linguagem. Que o acordado é linguagem significa que a natureza do acordado não é outra que a da linguagem, já que não se pode acordar senão mediante linguagem. Da mesma maneira que a linguagem, a convenção tem forma e conteúdo, isto é, sintaxe e semântica. A forma da convenção é a estrutura lógica das proposições lingüísticas que a compõem bem como a forma em que tais proposições se inter-relacionam. Portanto, a forma da convenção é a forma da linguagem que a constitui. Exatamente o mesmo acontece com o conteúdo da convenção, isto é, com o seu significado. O significado da convenção é o significado das proposições lingüísticas que a compõem.”

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jurídico daquela prescrição veiculada segundo determinada estrutura sintática

exigida pelo sistema.

O direito, porém, é dotado de dinamicidade, permitindo a sua própria

evolução de acordo com os valores da sociedade da qual ele emerge. Isto é,

alcançado por meio da abertura semântica do sistema, que possibilita múltiplas

interpretações acerca de seus enunciados prescritivos, de acordo com a seleção dos

aspectos sociais que interessam ao direito pela linguagem competente, no caso, a

jurídica.

Vejamos, então, o fenômeno da incidência sob os planos da semiótica.

2.1.1 Plano Lógico ou Sintático

A sintaxe, conforme Clarice von Oertzen de Araujo104, se detém na

estrutura lógico-gramatical da linguagem, ou seja, nas regras que orientam as

combinações sígnicas e nas relações formais que os signos mantêm entre si; no

Direito, portanto, dir-se-á que este plano se ocupa das regras que orientam as

normas e nas relações formais que elas mantém entre si. Dito de outra forma pela

mesma autora105: “definimos o aspecto sintático do sistema de Direito Positivo como

sendo o feixe de relações que se estabelece entre as várias unidades do sistema: as

normas.”

A análise da incidência sob esta perspectiva, portanto, volta-se para (i) o

estudo da estrutura lógica da norma jurídica e (ii) da forma como as normas se

relacionam entre si no sistema.

Quanto ao primeiro ponto, sabemos que a norma jurídica estrutura-se na

forma lógica hipotético-condicional: uma hipótese que implique um consequente

D(H�C), em razão da imputação deôntica (dever-ser nas formas: obrigatório,

permitido e proibido)106. Trata-se do fechamento sintático do sistema, ou seja, o

104 ARAUJO, Clarice von Oertzen de. Incidência Jurídica: teoria e crítica. São Paulo: Noeses, 2011, p.

167. 105 Id. Semiótica do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 25. 106 FERRAGUT, Maria Rita. Responsabilidade Tributária e o Código Civil de 2002. 2. ed. São Paulo:

Noeses, 2009, p. 62: “O functor presente no conseqüente normativo vem sempre modalizado por um dos três modais da lógica deôntica: obrigatório (O), permitido (P) e proibido (V). Por força do princípio do quarto excluído, inexiste uma quarta possibilidade de modalização, sendo que o facultativo pode ser reduzido ao permitido e ao não-permitido (p e –p, respectivamente).”

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sistema só autoriza a entrada das normas jurídicas107 que se apresentem sob esta

estrutura lógico-formal.

Quanto ao segundo ponto, podemos dizer que a incidência é o resultado

do mecanismo de subsunção – uma operação de inclusão de classes (relação entre

as classes da norma geral e abstrata e da norma individual e concreta).

Ocorrem, portanto, neste plano, dois mecanismos: da subsunção e da

imputação, ou seja, o aplicador ao identificar um acontecimento localizado no tempo

e no espaço, que apresente elementos que correspondam aos critérios conotativos

estabelecidos na hipótese da norma geral e abstrata, realiza a subsunção deste fato

à norma, constituindo o fato jurídico, que ingressará no sistema pelo antecedente da

norma individual e concreta; no mesmo instante, automática e infalivelmente, por

força da implicação deôntica ou causalidade normativa, imputa a relação jurídica,

que deverá subsumir-se, integralmente, aos critérios conotativos estabelecidos no

consequente da norma geral e abstrata, realizando outra operação de subsunção,

conferindo efeitos jurídicos à norma inovadora.

Em síntese, será constituído o fato jurídico tributário no antecedente e,

automática e infalivelmente, a relação jurídica no consequente da norma individual e

concreta, de acordo com os critérios conotativos estabelecidos na hipótese e no

consequente da norma geral e abstrata, respectivamente.

Destacamos aqui a diferença fundamental entre as teorias da incidência

defendidas por Pontes de Miranda e Paulo de Barros Carvalho: para o primeiro, a

incidência acontece automática e infalivelmente com a ocorrência do evento (suporte

fáctico) no mundo fenomênico, por tratar-se de uma operação mental do

intérprete108, como se um raio disparasse da mente do intérprete, no exato instante

da manifestação do evento, juridicizando-o (um processo vertical de incidência). Já a

aplicação, para este eminente doutrinador, diz respeito a outro processo, apartado

da incidência, e ocorrerá somente quando o homem (aplicador do Direito), por meio

de procedimento autorizado pelo sistema, produzir uma norma jurídica objetivando

107 Norma jurídica no sentido de enunciado prescritivo (suporte físico). 108 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Parte Geral. t. 2. Rio de

Janeiro: Borsói, 1954, p. 16: “A incidência da lei, pois que se passa no mundo dos pensamentos e nele tem de ser atendida, opera-se no lugar, tempo e outros “pontos” do mundo, em que tenha de ocorrer, segundo as regras jurídicas. É, portanto, infalível. [...] A incidência ocorre para todos, pôsto que não a todos interesse: os interessados é que têm de proceder, após ela, atendendo-a, isto é, pautando de tal maneira a sua conduta que essa criação humana, essencial à evolução do homem e à sua permanência em sociedade, continue a existir.”

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maior individualização e concretude no ciclo de positivação do Direito. Para o

segundo, o que ocorre automática e infalivelmente é a imputação, ou seja,

constituído o fato jurídico no antecedente da norma individual e concreta (evento

vertido em linguagem jurídica), então, por consequência lógica, será instaurada a

relação jurídica no seu prescritor (um processo horizontal). Por este motivo, não há

como separar a incidência da aplicação, sendo que, somente no momento em que o

homem produza a norma individual e concreta, a partir dos critérios estabelecidos no

antecedente e consequente da norma geral e abstrata, acontecerá o fenômeno da

incidência.

Daí o dizer de Paulo de Barros Carvalho109 que “a hipótese tributária está

para o fato jurídico tributário assim como a conseqüência tributária está para a

relação jurídica tributária”.

Ressalte-se que a implicação deôntica é uma operação lógica, não

cronológica, porquanto inexista intervalo de tempo entre a constituição do fato

jurídico e a instauração da relação jurídica. É o que assevera Paulo de Barros

Carvalho110: “Inexiste cronologia entre a verificação empírica do fato e o surgimento

da relação jurídica, como se poderia imaginar; da mesma forma entre o momento da

incidência e aquel’outro de aplicação do direito”.

Portanto, vertendo-se o evento para a linguagem competente do direito,

constitui-se o fato jurídico e, concomitantemente, instaura-se a relação jurídica, por

força da imputação111.

Nestes termos, Aurora Tomazini de Carvalho112,

O fato jurídico inexiste sem os efeitos normativos a ele imputados e os efeitos jurídicos inexistem sem os fatos. Nestes termos, dizemos que a imputação é automática e infalível ao fato jurídico, porque, constituído este, devido à causalidade deôntica, instantaneamente, instaura-se o vínculo jurídico relacional entre sujeitos.

109 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.

282. 110 Ibid., p. 281. 111 VILANOVA, Lourival. Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. 4. ed. São Paulo: Noeses,

2010, p, 127: “O que confere homogeneidade a todas as regras de Direito Positivo é a sua normatividade. O ponto de partida é normativo: a norma fundamental, para tomarmos o modelo kelseniano de explicação. Consiste esta homogeneidade estrutural no modo constante de relacionar os dados ou elementos (fatos e condutas) da experiência. Se o relacionamento segue o esquema causa/efeito, temos natureza; se o nexo é de dever-ser (dado A, deve ser B), temos a imputação.”

112 CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de Teoria Geral do Direito: o Construtivismo Lógico-Semântico, São Paulo: Noeses, 2009, p. 448.

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Clarice von Oertzen de Araujo113 tece comentários acerca da abertura ou

fechamento do sistema jurídico (o qual ela denomina ordenamento): refere-se à

abertura como a possibilidade de ingresso de novos fatos sociais eleitos pelo

legislador para serem juridicizados, de acordo com os critérios estabelecidos pelo

antecedente (hipótese) das normas gerais e abstratas – abertura sintática das

hipóteses das normas gerais; quanto ao fechamento, considera as exigências

procedimentais que o sistema impõe para a tradução do social para o jurídico. Atenta

para a característica da complementaridade do binômio “abertura/fechamento”, de

forma que não sejam excludentes entre si na composição do sistema; pelo contrário,

coexistem como aspectos de um mesmo sistema.

2.1.2 Plano Semântico

Tomaremos “semântica” como a relação dos signos com os objetos que

eles representam, de modo que a incidência analisada por este plano revela uma

operação de denotação114 de conteúdos normativos dos enunciados (conceitos) da

norma geral e abstrata para que se elabore a norma individual e concreta. Dito de

outra forma, os enunciados denotativos protocolares das normas individuais e

113

“Em verdade, a abertura semântica ou cognoscitiva e o fechamento sintático ou clausura operacional não são características mutuamente excludentes que não possam conviver como aspectos de um mesmo sistema. Estas características podem ser vistas como complementares uma à outra. [...] O fechamento dos ordenamentos jurídicos não implica negar a possibilidade da ocorrência de relações entre estes e outros sistemas sociais como a economia, a política, a cultura, ou mesmo com outros Estados.” Nesse sentido manifesta-se, também, Paulo de Barros Carvalho (Direito Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 139): “Os sistemas autopoiéticos ostentam a chamada “clausura organizacional”: são fechados no plano operacional, mas abertos em termos cognitivos. Isto quer dizer que o direito se comunica com outros subsistemas sociais, mas de forma, exclusivamente, cognoscitiva. [...] Na semiótica se diz que o sistema é fechado sintaticamente e aberto em termos semânticos e pragmáticos.”

114 “Denotação”: do latim denotatione, propriedade do termo que corresponde à extensão do conceito; “conotação”; propriedade que tem um termo tem de designar um ou mais seres, dando a conhecer alguma coisa de suas propriedades. (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996, s.v. denotação). Tácio Lacerda Gama (Competência Tributária: Fundamentos para uma Teoria da Nulidade. São Paulo: Noeses, 2009, p. 173-174) diferencia a definição denotativa da conotativa: “Precisar o sentido de um termo mediante a indicação dos seus critérios é o que se chama definição conotativa ou intencional. Já a determinação de sentido feita pela indicação dos objetos significados pela palavra é uma definição do tipo extensional ou denotativa. [...] Num caso e outro, as definições precisam o significado das palavras, delimitando as circunstâncias de uso dos termos e contribuindo para aperfeiçoar aquilo que Charles Morris indicou ser objeto da semântica: identificar as regras pelas quais uma palavra pode ser aplicada a um objeto ou circunstância.”

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concretas são elaborados a partir da interpretação dos enunciados conotativos das

normas gerais e abstratas que lhe dão fundamento.

Os enunciados gerais e abstratos devem ser interpretados para que o

aplicador do direito115, mediante a linguagem das provas, possa constituir o fato

jurídico no antecedente da norma individual e concreta, de acordo com os conceitos

descritos na norma geral e abstrata, instaurando-se a relação jurídica. É

imprescindível, nesta operação, que a constituição do fato jurídico reflita exatamente

o conceito do enunciado geral e abstrato para que possa irradiar os efeitos

pretendidos pelo direito.

Trata-se de uma operação “semântica” de subsunção, aquela em que o

aplicador do direito “preenche” a estrutura lógica/sintática da norma jurídica

imprimindo-lhe conteúdo material, de acordo com a linguagem das provas. Trata-se

de uma operação de interpretação entre a linguagem jurídica e a linguagem

social.116

Daí dizer-se da abertura ou heterogeneidade semântica do sistema;

apesar de fechado sintaticamente, o sistema permite inúmeras hipóteses de

incidência, segundo a conduta que o legislador pretenda regular a partir do fato

juridicizado. É o que claramente explica Clarice von Oertzen de Araujo117:

O aspecto semântico dos signos diz respeito à suas relações com os objetos que denotam. O caráter semântico das normas jurídicas diz

115 Utilizamos, aqui, os termos intérprete e aplicador com o mesmo significado – agente competente

ou credenciado pelo direito para produzir novos enunciados prescritivos a partir dos fundamentos albergados na norma geral e abstrata; aquele que promove a positivação do direito. Neste mesmo sentido, Aurora Tomazini de Carvalho: “O aplicador traduz a linguagem do direito, dizendo-a do seu modo. O sistema lhe atribui competência para positivar o sentido construído, de modo que sua interpretação configura-se como autêntica, até que outro sentido, produzido por pessoa cujo sistema atribua grau de competência maior, o substitua. É por isso que, por mais absurda que uma interpretação nos pareça, se ela for positivada, só uma nova linguagem competente é suficiente para retirá-la do ordenamento. Realiza interpretação autêntica todo e qualquer aplicador, desde que inove o sistema, com a produção de uma linguagem jurídica competente. [...] Para manter-se no ordenamento, no entanto, a interpretação autêntica deve ter como base enunciados jurídico-positivos. Isto significa que o aplicador, ao objetivar suas escolhas, deve relacionar os conteúdos significativos construídos a enunciados prescritivos do sistema, ou seja, deve fundamentar sua decisão na ordem vigente” (Curso de Teoria Geral do Direito: o Construtivismo Lógico-Semântico, São Paulo: Noeses, 2009, p. 465).

116 CARVALHO, Paulo de Barros. O legislador como poeta do direito. In: BERNARDO, Gustavo (Org.). A filosofia da ficção de Vilém Flusser. São Paulo: Annablume; Rio de Janeiro: Faperj, 2011, p. 323: “Claro está que no processo de produção normativa os aplicadores lidam com os materiais semânticos ocorrentes na cadeia de positivação, pois não teria cabimento prescindir dos conteúdos concretos, justamente aqueles que se aproximam das condutas interpessoais, predicando implementar valores e as estimativas que a sociedade elegeu.”

117 ARAUJO, Clarice von Oertzen de. Incidência Jurídica: teoria e crítica. São Paulo: Noeses, 2011, p. 175.

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respeito às relações entre normas (signos) e as condutas intersubjetivas ou relações (objeto). A linguagem prescritiva, portanto, é semanticamente aberta, cognoscente, uma vez que o significado dos signos é dialógico.

Assim, o intérprete, a partir da redução da classe de notas (conotação)

trazida pela hipótese e consequente da norma geral e abstrata, constitui,

respectivamente, o fato jurídico e a relação jurídica da norma individual e concreta

(denotação).

2.1.3 Plano Pragmático

A incidência analisada sob esta ótica resulta da operação de interpretação

que envolve a linguagem das provas: comprovação da ocorrência do evento no

mundo social, fundamentando a produção do fato jurídico (no antecedente da norma

individual e concreta), gerando efeitos jurídicos.

A pragmática é a dimensão significativa dos textos jurídicos; desprende-

se do suporte físico, assumindo significados diferentes de acordo com as

configurações com que os fatos se apresentam em determinado tempo. É o que

possibilita a concepção de diferentes significados emanados das manifestações

jurisprudenciais ao longo de um período histórico.118

Aurora Tomazini de Carvalho119 analisa a incidência, sob o ponto de vista

pragmático, como resultado de duas operações: (i) interpretação e (ii) constituição

de nova linguagem jurídica.

Frise-se que a construção do significado da norma limita-se ao contexto

do sistema jurídico para que seja válida e possa produzir efeitos. É o que revela

118 CARVALHO, Paulo de Barros. O legislador como poeta do direito. In: BERNARDO, Gustavo

(Org.). A filosofia da ficção de Vilém Flusser. São Paulo: Annablume; Rio de Janeiro: Faperj, 2011, p. 325: “A oscilação das manifestações jurisprudenciais e o caminho estratégico da modulação dos efeitos são assuntos debatidos em todos os níveis da comunicação jurídica. Os tribunais superiores se encontram premidos diante de opção difícil, qual seja a de realizar os valores que a Constituição prevê, expressa ou implicitamente, ao mesmo tempo em que não podem permanecer alheios às evidentes mudanças de uma sociedade que se transforma a cada passo, com imensa riqueza de configurações que desconcertam o mais atento e bem informado observador. O sistema jurídico que aí está foi forjado na prática das nossas instituições.”

119 CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de Teoria Geral do Direito: o Construtivismo Lógico-Semântico, São Paulo: Noeses, 2009, p. 444.

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Clarice von Oertzen de Araujo120 acerca do pensamento de Peirce sobre esse plano

semiótico: “Em verdade, a concepção semântica de um signo, separada de seu

contexto de ação, nunca foi proposta por Peirce, que notadamente associava o

significado à intencionalidade, e, portanto, à dimensão pragmática.”

Lembramos que os planos semióticos constituem um método para a

análise da incidência, e este método não propõe que a análise se desenvolva pela

relevância da análise sob um aspecto (ou plano) em detrimento dos demais; pelo

contrário, é relevante que o intérprete analise o fenômeno na sua integralidade

(plano sintático, semântico e pragmático), considerando a positivação do direito num

contexto estritamente jurídico.

Quanto à dimensão pragmática, pode-se afirmar que seja a que mais se

aproxima da aplicação do direito propriamente dito ou da sua concretude121.

Vejamos: depois de percorrer os planos lógico e semântico em busca do fundamento

jurídico de validade para a incidência da norma (geral e abstrata), o aplicador do

direito introduzirá no sistema uma nova norma (individual e concreta), provocando

efeitos jurídicos imediatos, inovando a ordem jurídica.

É o direito positivo operando a regulação das condutas intersubjetivas

(seu objeto), atingindo as suas finalidades (produzindo efeitos), de modo a promover

os valores que determinada sociedade pretenda ver realizados.122

2.2 A DISTINÇÃO ENTRE EVENTO E FATO JURÍDICO

Para uma análise construtivista, que privilegia a linguagem, é

extremamente significativa a diferença entre evento e fato jurídico, no estudo da

incidência. Falar em evento e fato jurídico é falar em dois planos distintos de

realidade, em dimensões e tempos diversos. O primeiro – o evento – ocorre no

plano da realidade fenomênica (plano do ser), enquanto o segundo – o fato jurídico –

120 ARAUJO, Clarice von Oertzen de. Incidência Jurídica: teoria e crítica. São Paulo: Noeses, 2011, p.

178. 121 Ibid., p. 179: “Chegando ao exame da dimensão pragmática da ordem jurídica, estamos nos

dirigindo ao seu aspecto mais positivo, concreto. O estudo da incidência não deixa de possuir uma dimensão pragmática, a qual será tanto maior quanto maior for o grau de concretude das normas examinadas. A dimensão pragmática de uma ordem jurídica cresce na razão direta de sua positivação.”

122 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Teoria da norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 4.

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encontra-se no plano da realidade do direito (plano do dever-ser). Apesar de se

dirigirem ao mesmo acontecimento, constituem-se de forma diversa. Então vejamos:

Evento – é algo que ocorre no mundo fenomênico, que se esvai no tempo

e espaço, restando apenas os vestígios acerca do acontecimento, que, por sua vez,

sustentarão a constituição do fato jurídico123. Há, porém, um obstáculo para que o

evento possa penetrar no mundo jurídico: somente será autorizado a entrar no

sistema aquilo que for vertido em linguagem competente (ou linguagem autorizada).

Isto se deve ao fato de que toda e qualquer realidade se constitui pela

linguagem; nada existe antes dela e, cada sistema constitui uma realidade própria,

parte de uma cultura124. Para que um acontecimento passe a integrar um sistema,

portanto, deve ser vertido em linguagem competente, de acordo com os códigos e

programas (mecanismos de seleção)125 daquele sistema. Desta forma, o evento

traduzido em linguagem social integrará o sistema social (fato social); se traduzido

em linguagem econômica, integrará o sistema econômico (fato econômico); se

traduzido em linguagem jurídica, integrará o sistema jurídico (fato jurídico), etc.

Fato jurídico – na lição de Paulo de Barros Carvalho:

Fato jurídico é aquele, e somente aquele, que puder expressar-se em linguagem competente, isto é, segundo as qualificações estipuladas pelas normas do direito positivo” ou como diz o ilustre doutrinador mais adiante, “fato jurídico é a parte do suporte fáctico que o legislador, mediante a expedição de juízos valorativos, recortou do universo social para introduzir no mundo jurídico.”126

123 TOMÉ, Fabiana Del Padre. A Prova no Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2008, p. 32. 124 ARAUJO, Clarice von Oertzen de. Incidência Jurídica: teoria e crítica. São Paulo: Noeses, 2011, p.

7: “A cultura, como sistema simbólico de comunicações, é um vasto mosaico em que estão inseridas todas as manifestações intersubjetivas, sejam elas de cunho social, econômico, jurídico, ético, moral, religioso, artístico, científico, político ou tecnológico. A realidade na qual o direito está inserido constitui uma verdadeira malha de signos e de códigos, sejam eles de natureza verbal ou não verbal.”

125 TOMÉ, op. cit., p. 41: “Com base na teoria da sociedade de Niklas Luhmann, tomamos o direito como um sistema comunicativo funcionalmente diferenciado e dotado de programas e códigos próprios, apresentando uma forma especial de abertura e fechamento com relação ao ambiente. Esclarece Gustavo Sampaio Valverde que, não obstante a sociedade se apresente como um grande sistema, compreendendo todas as formas possíveis de comunicação, na modernidade encontra-se dividida em subsistemas parciais, dos quais são exemplos os sistemas político, jurídico, econômico e científico. Esses sistemas possuem códigos de comunicação próprios e específicas operações de reprodução de elementos, que lhes conferem um fechamento operativo e também uma forma peculiar de abertura cognitiva do ambiente.”

126 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2008, p. 825.

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Estas lições levam à intuição de que o evento deverá revestir-se de

linguagem competente, ou seja, de linguagem jurídica, sustentada pela linguagem

das provas, para que possa penetrar no mundo do direito e produzir efeito jurídico.

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3 A NORMA JURÍDICA DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA

Quando falamos de norma jurídica de incidência tributária, estamos

falando do enunciado prescritivo protocolar, elaborado segundo os preceitos

jurídicos que lhe dão fundamento, por ato de vontade do homem quando da

aplicação do direito. Em outras palavras, falamos da norma individual e concreta

(veiculada pelo ato administrativo do lançamento tributário), capaz de trazer para o

mundo jurídico uma situação ocorrida no mundo fenomênico.

Trata-se de um enunciado protocolar denotativo que opera, efetivamente,

o fenômeno da incidência. Protocolar porque inova a ordem jurídica, e denotativo

porque aponta, objetivamente, os elementos do evento previstos na norma geral e

abstrata que o juridiciza.

A norma individual e concreta que documenta a incidência tributária

apresenta-se na forma lógica das normas jurídicas, ou seja, D(H�C). Descreve em

linguagem jurídica, no seu antecedente, um acontecimento do mundo fenomênico

(evento pretérito), ocorrido em condições determinadas de tempo e espaço, que

guarda estrita consonância com os critérios conotativos estabelecidos na hipótese

da norma geral e abstrata de incidência tributária (regra-matriz de incidência

tributária/RMIT), constituindo o fato jurídico tributário; no seu consequente,

prescreve um vínculo entre dois ou mais sujeitos de direito em torno de uma

obrigação – instaura a relação jurídica tributária ou fato jurídico relacional, como

consequência lógica (não cronológica), do fato constituído no antecedente dessa

norma.

3.1 O FATO JURÍDICO TRIBUTÁRIO

Conforme discorremos anteriormente, a incidência é a projeção da

linguagem jurídica sobre a linguagem social, no sentido de regular as condutas

intersubjetivas, ou seja, no sentido de torná-la jurídica.

Tal processo é fruto de duas operações lógicas: a subsunção, na qual se

constitui o fato jurídico e a implicação, na qual, por força da imputação normativa,

uma vez constituído o fato jurídico, instaurar-se-á a relação jurídica.

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Tendo ocorrido um evento que mantenha estrita correspondência aos

conceitos conotativos revelados na hipótese da norma geral e abstrata (em

consonância ao princípio da legalidade e da tipicidade tributária e, ainda, de acordo

com a linguagem das provas)127 e vertido tal evento em linguagem competente,

constituindo-se o fato jurídico por um ato de vontade do homem, então, por força da

imputação normativa (propagação dos efeitos jurídicos), instala-se, automática e

infalivelmente, o liame ou vínculo abstrato que une dois sujeitos de direito em torno

de uma prestação.

O homem, ao promover a incidência ou aplicação do direito, portanto,

elabora uma nova linguagem jurídica, representada pelos enunciados prescritivos da

norma individual e concreta que individualizam uma situação do mundo fenomênico,

delineada sob determinadas condições de espaço e tempo.

Mas, o que é fato jurídico tributário? Qual a sua conformação?

No item 2.2.3, estabelecemos a diferença entre evento e fato jurídico,

restando claro que cada qual pertence a um plano distinto da realidade: o evento é o

acontecimento no mundo fenomênico; o fato jurídico stricto sensu é a versão, em

linguagem jurídica, deste evento. Ambos se referem ao mesmo acontecimento, mas

representam recortes de realidades diversas. Para o direito, interessa somente o fato

jurídico, porque somente ele pode penetrar no universo jurídico, produzindo

efeitos.128

Não podemos dizer, entretanto, que o fato jurídico esteja contido na

hipótese de incidência da RMIT; lá encontramos apenas as notas (ou critérios) que

127 TOMÉ, Fabiana Del Padre. A Prova no Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2008, p. 30. “A

fundamentação das normas individuais e concretas na linguagem das provas decorre da necessária observância aos princípios da estrita legalidade e da tipicidade tributária, limites objetivos que buscam implementar o sobreprincípio da segurança jurídica, garantindo que os indivíduos estarão sujeitos à tributação somente se for praticado o fato conotativamente descrito na hipótese normativa tributária.”

128 Ibid., p. 320: “O sistema jurídico apresenta-se como um conjunto comunicacional peculiar, funcionalmente diferenciado e dotado de códigos e programas próprios, que lhe conferem fechamento operativo e forma específica de abertura cognitiva. Sua função consiste, em termos gerais, na estabilização das expectativas normativas. Para atingir tal desiderato, o direito possui determinações estruturais, denominadas código e programa; (i) o código caracteriza um esquematismo binário na forma lícito/ilícito, fundamentando a identificabilidade do sistema jurídico, permitindo selecionar as comunicações que o integram; (ii) os programas determinam de que maneira o código deve ser utilizado, estabelecendo em que hipóteses a comunicação jurídica qualificará como lícito um fato social qualquer e em que situações o identificará como ilícito, regulando a alocação dos valores do código binário segundo a relação “se...então” (programa condicional).”

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69

permitirão ao aplicador do direito identificar os elementos que se enquadram

integralmente à descrição da situação a ser juridicizada.

Constitui-se, portanto, o fato jurídico no antecedente da norma individual e

concreta, a partir da individualização rigorosa e, devidamente comprovada, de uma

situação escolhida pelo legislador para integrar o mundo jurídico.

O fato capaz de irradiar efeitos jurídicos é somente o fato jurídico129; não

interessa ao direito o fato social, o fato econômico, o fato contábil etc., mesmo que

referentes ao mesmo evento, porque cada um deles vertido em linguagem

específica, que não a do direito, estará impedido de ingressar no sistema jurídico.

Daí a sua relevância para o direito e a imperiosa necessidade de que seja

constituído nos estritos contornos traçados pelos critérios da norma geral e abstrata,

mediante a linguagem das provas.130

Os critérios material, temporal e espacial estabelecidos na RMIT devem

ser rigidamente analisados no caso concreto, tendo ainda, o aplicador do direito que

considerar como fundamento a linguagem das provas, para que possa promover a

incidência.

O fato jurídico é constituído pelos elementos característicos do evento

que se subsumam aos critérios da hipótese de incidência da norma geral e abstrata.

Assim, o elemento material da norma individual e concreta (correspondente ao

critério material da RMIT) será o comportamento/estado da pessoa capaz de

deflagrar a tributação, qualificado por um complemento que o especifique. Por

exemplo: João é proprietário de imóvel urbano em 1º de janeiro de 2011. O estado

em que se encontra o sujeito – ser (é) –, qualificado pelo complemento – proprietário

de um imóvel.

Some-se a este elemento, para a constituição do fato jurídico, outros dois,

que são o local (correspondente ao critério espacial da RMIT) onde ocorreu o evento

– no exemplo apresentado, o local onde está situado este imóvel, e o exato

momento da prática daquele comportamento/estado (correspondente ao critério

temporal da RMIT), ou seja, a data legalmente estipulada para que ocorra a

incidência.

129 VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. 4. ed. rev. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2000, p. 52: “Juridicamente relevante é o fato do mundo (natural e social) que se torna suporte de incidência de uma norma, norma que lhe atribui efeitos, que não os teria sem a norma.”

130 TOMÉ, Fabiana Del Padre. A Prova no Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2008, p. 33.

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70

Desta forma, o fato jurídico descrito no antecedente da norma individual e

concreta será o seguinte: João é proprietário de um imóvel urbano, no município “X”,

em 1º de janeiro de 2011. Somente a partir daí, da constituição deste fato, serão

irradiados os efeitos jurídicos, instaurando-se o vínculo obrigacional entre os sujeitos

envolvidos na relação jurídica. Na explicação de Paulo de Barros Carvalho131:

A construção do fato jurídico nada mais é que a constituição de um fraseado normativo capaz de justapor-se como antecedente normativo de uma norma individual e concreta, dentro das regras sintáticas ditadas pela gramática do direito, assim como de acordo com os limites semânticos arquitetados pela hipótese da norma geral e abstrata.

3.1.1 Tempo “No Fato” e Tempo “Do Fato”

A norma geral e abstrata traça os critérios para identificação dos

elementos específicos de um evento, apenas de forma genérica, a fim de que possa

ser constituído o fato jurídico. Isto porque a hipótese desta norma projeta-se para o

futuro; não há individualização de um caso concreto, localizado no tempo e no

espaço, quando se fala em norma geral e abstrata.

Ocorrendo o evento, constituir-se-á o fato jurídico com a elaboração da

norma individual e concreta (enunciado prescritivo protocolar e denotativo)

apontando, com precisão, todos os elementos necessários à constituição do fato.

Além da materialidade, vimos que integram o fato jurídico o elemento temporal e o

espacial indicando, respectivamente, quando e onde o fato foi constituído.

Há que se diferençar, porém, o tempo e o local onde ocorreu o evento, do

tempo e do local onde o fato foi constituído. São dois “tempos” diferentes.

Paulo de Barros Carvalho132 denomina “tempo do fato” aquele em que o

enunciado protocolar denotativo (norma individual e concreta), produzido por pessoa

competente, conforme procedimento previsto em lei ingressa no sistema jurídico,

validamente, irrompendo efeitos jurídicos, ou seja, o momento em que foi produzida

a norma jurídica de incidência tributária (ato administrativo do lançamento), e “tempo

no fato” aquele da ocorrência concreta de um evento, no mundo fenomênico.

131 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.

270. 132 Id. Direito Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 171

et seq.

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71

Essa diferenciação é relevante, uma vez que a cada um desses episódios

será aplicada determinada legislação: (i) ao “tempo do fato” – ou seja, à

configuração do fato jurídico serão aplicadas as regras de direito formal em vigor na

data de sua realização, e sua eficácia será constitutiva; (ii) ao “tempo no fato” – ou

seja, àquele que se relaciona a um acontecimento pretérito (evento) serão aplicadas

as regras de direito material vigentes na data em que se deu a sua ocorrência, com

eficácia declaratória. Em tempo: aplicam-se, também, as regras de direito formal à

competência exigida para a elaboração da norma individual e concreta, e a todos os

atos administrativos de fiscalização e arrecadação de tributos.133

Frise-se que não haverá coincidência dos “tempos” mencionados; o

enunciado protocolar que constitui o fato jurídico refere-se sempre a um evento

pretérito, ou seja, primeiro ocorre o evento – “tempo no fato” –, depois se constitui o

fato jurídico – “tempo do fato”.

Quanto ao elemento espacial, denomina-se “local do fato” aquele em que

foi produzida a norma individual e concreta e “lugar no fato” aquele em que ocorreu o

evento, podendo haver coincidência entre eles, caso o local de produção do fato

seja o mesmo da ocorrência do evento.

3.2 A RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA

Conforme discorremos no item anterior, somente com a constituição do

fato jurídico tributário (stricto sensu) instaurar-se-á a relação jurídica tributária (fato

jurídico relacional).

Mas, o que compõe o fato jurídico tributário relacional? Quais os critérios

de identificação da relação jurídica tributária? Quais são os seus elementos?

133 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência. 7. ed. São

Paulo: Saraiva, 2009, p. 174. O autor ressalva a importância quanto à formalização do lançamento: “Por isso mesmo, deve ser recebido com muito cuidado o asserto segundo o qual o lançamento teria eficácia, seja constitutiva, seja declaratória. Ambas estão presentes nessa figura do direito administrativo: a eficácia declaratória com relação ao conteúdo do enunciado de fato e a eficácia constitutiva em face dos direitos e deveres que faz desabrochar. [...] Na verdade, os efeitos declaratórios e constitutivos coexistem, manifestando-se ambos com grande estabilidade no ato-administrativo do lançamento. De um lado, terá ele, invariavelmente, a eficácia declaratória: como enunciado de fato se refere a uma situação que já se consumou no tempo, expressa em verbo sempre no pretérito, não pode deixar de ser declaratório desse evento. Por outra parte, o aspecto constitutivo também o acompanha a cada passo, visto que é pelo ingresso do ato no ordenamento que nascem os direitos subjetivos e os deveres subjetivos contrapostos.”

Page 73: Silvia Regina Zomer

72

Sabemos que o fato relacional é delineado, logicamente, no consequente

ou prescritor da regra-matriz de incidência tributária (RMIT). A nomenclatura,

prescritor, traduz exatamente a função do consequente, prescrever uma conduta, a

partir dos critérios que estabelecem a relação jurídica tributária. Estes critérios são

anunciados na norma geral e abstrata (RMIT); o surgimento da relação jurídica se

dará, entretanto, no consequente da norma individual e concreta, como resultado da

constituição do fato jurídico.

Isto porque somente a constituição do fato jurídico (fato-causa ou fato

jurídico stricto sensu) poderá irradiar efeitos (pela imputação ou causalidade

jurídica134), estabelecendo o vínculo jurídico modalizado deonticamente em permitido

(P), obrigatório (O) e proibido (V), entre as pessoas de direito envolvidas na relação

jurídica (fato-efeito)135. Neste sentido, Lourival Vilanova136:

O que uma norma de direito positivo anuncia é que, dado um fato, seguir-se-á uma relação jurídica, entre sujeitos de direito, cabendo, a cada um, posição ativa ou passiva. Mais. Que, nessa relação jurídica primária, define-se o conteúdo da conduta, modalizando-a como obrigatória, permitida ou proibida.

Eis aí a diferença entre “critérios” e “elementos” da relação jurídica: os

critérios compõem os enunciados conotativos da norma geral e abstrata (regra-

matriz de incidência); os critérios do consequente referem-se às propriedades que a

relação jurídica deve apresentar quando for constituído o fato e se projetam para o

futuro. Os elementos são, efetivamente, as partes que integram a relação jurídica;

referem-se às pessoas de direito, à base de cálculo e alíquota determinados no

consequente na norma individual e concreta.

Acolhemos a definição de relação jurídica sugerida por Paulo de Barros

Carvalho137: “vínculo abstrato, segundo o qual, por força da imputação normativa,

uma pessoa, chamada de sujeito ativo, tem o direito subjetivo de exigir de outra,

denominada sujeito passivo, o cumprimento de certa prestação.”

134 VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. 4. ed. rev. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2000, p. 108: “A causalidade jurídica é construída normativamente.” 135 A terminologia fato-causa e fato-efeito é utilizada por Paulo de Barros Carvalho, em Direito

Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência (7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 180). 136 VILANOVA, op. cit., p. 101. 137 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.

317.

Page 74: Silvia Regina Zomer

73

Defini-la como vínculo entre pessoas138 ou como uma relação de direito

estabelecida entre pessoas pressupõe o fundamento da bilateralidade das relações

e permite que se estabeleçam algumas características intrínsecas à relação jurídica:

(i) as relações jurídicas devem ser irreflexivas, de modo que o mesmo sujeito não

possa ocupar, simultaneamente, os dois polos da relação (ativo e passivo); (ii)

devem ser assimétricas, ou seja, um dos sujeitos tem o direito, e outro, a obrigação;

(iii) podem ser ou não transitivas, de acordo com a vontade do legislador, quando da

juridicização do fato social; se transitivas, estando o sujeito “A” em relação com “B”,

e este, em relação com “C”, então estabelecer-se-á o vínculo entre o primeiro e o

último.139

3.2.1 A relação jurídica tributária e seus elementos

São elementos do consequente da norma individual e concreta: o

subjetivo e o prestacional. O primeiro denota os sujeitos da relação – ativo e passivo;

o segundo denota a conduta a que está obrigado o sujeito passivo da relação,

especificando seu objeto (quantia a ser paga, resultante da operação entre

elementos – base de cálculo e alíquota).140

Vejamos agora mais atentamente os elementos que compõem a relação

jurídica tributária estabelecida no consequente da norma individual e concreta.

(i) Sujeito ativo: é aquele que detém o direito subjetivo de exigir a

prestação pecuniária. Pode ser pessoa jurídica pública (na esfera tributária pode ser

qualquer ente político detentor da competência tributária) ou privada (no exercício de

funções de interesse público). A possibilidade de um ente privado assumir tal

condição é revelada pela interpretação de outras normas do sistema, inclusive

constitucionais, que permitem a transferência da capacidade ativa (do ente público 138 CARVALHO, Paulo de Barros. O legislador como poeta do direito. In: BERNARDO, Gustavo

(Org.). A filosofia da ficção de Vilém Flusser. São Paulo: Annablume; Rio de Janeiro: Faperj, 2011, p. 318: “Lembremo-nos de que a norma só adquire sentido pleno quando se refira à ação entre sujeitos.”

139 id. Direito Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 194.

140 CARVALHO (ibid., p. 188 et seq.) explica que os civilistas distinguem o objeto imediato da relação jurídica – prática do ato positivo (dar ou fazer) ou negativo (não fazer) consubstanciado na prestação – do objeto mediato (representado pelo complemento do dar, fazer ou não fazer). Por exemplo, o comportamento de pagar o valor do aluguel seria o objeto imediato, e a quantia paga em dinheiro, o objeto mediato.

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74

para o privado), embora o artigo 119, do Código Tributário Nacional, preceitue que o

sujeito ativo da obrigação seja a pessoa jurídica de direito público titular da

competência para exigir seu cumprimento.

(ii) Sujeito passivo: aquele que tem o dever de cumprir a prestação

pecuniária (na esfera tributária pode ser pessoa física ou jurídica, pública ou privada,

na posição de contribuinte ou responsável).

A doutrina não é unânime quanto à definição dos conceitos de

contribuinte e responsável. Alguns autores definem “contribuinte” como aquele que

pratica o fato jurídico tributário141; responsável tributário, segundo Andréa M.

Darzé142, “é a pessoa, em regra detentora de personalidade, de quem se exige

juridicamente o pagamento do tributo e que mantém relação de outra natureza que

não pessoal e direta com o suporte factual da incidência.”

Outros autores, a exemplo de Maria Rita Ferragut143, consideram que não

basta realizar o fato jurídico tributário para que o sujeito possa ser chamado de

“contribuinte”; é necessário que, cumulativamente, esse sujeito ocupe o polo passivo

da relação jurídico-tributária para adquirir tal qualificação; já, “responsável” poderá

ser “qualquer terceiro, desde que pertencente ao conjunto de indivíduos que estejam

indiretamente vinculados ao fato jurídico tributário, ou indiretamente vinculados ao

sujeito que o praticou.”144

Entendemos que as definições desta autora são as que melhor traduzem

os significados dos conceitos de “contribuinte” e “responsável” (tomando-se por base

os enunciados prescritivos da seara tributária), seja pela sua abrangência

semântica, seja pela sua consistência pragmática.

141 Nessa linha, Renato Lopes Becho: “Por contribuintes temos as pessoas que realizam a

materialidade descrita na regra-matriz de incidência tributária.” (BECHO, Renato Lopes. Sujeição passiva e responsabilidade tributária. São Paulo: Dialética, 2000, p. 85).

142 DARZÉ, Andréa Medrado. Responsabilidade tributária: solidariedade e subsidiariedade. São Paulo: Noeses, 2010, p. 86.

143 FERRAGUT, Maria Rita. Responsabilidade Tributária e o Código Civil de 2002. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2009, p. 29-30: “Contribuinte é a pessoa que realizou o fato jurídico tributário, e que cumulativamente encontra-se no pólo passivo da relação obrigacional. Se uma das duas condições estiver ausente, ou o sujeito será o responsável, ou será o realizador do fato jurídico, mas não o contribuinte. Praticar o evento, portanto, é condição necessária para essa qualificação, mas insuficiente.”

144 Ibid., p. 38.

Page 76: Silvia Regina Zomer

75

(iii) Base de cálculo: o elemento quantitativo compõe-se pelo binômio

“base de cálculo” e “alíquota”; o resultado desta composição determinará o valor

pecuniário a ser pago como “tributo”, ou seja, o objeto da prestação.

A base de cálculo é a base econômica do fato jurídico tributável,

representada pela grandeza a ser considerada no cálculo do tributo. Por esse

motivo, encontra-se em estreita relação com a hipótese de incidência do tributo. A

análise dessa relação confirmará, infirmará ou afirmará o critério material da

hipótese, determinando a própria natureza jurídica do tributo. Confirmará, se houver

consonância com o critério material; infirmará, se houver incompatibilidade com

aquela materialidade; e afirmará, caso haja obscuridade quanto à materialidade do

tributo.145

Alfredo Augusto Becker atribui a esta grandeza o predicado de “núcleo” da

hipótese de incidência, dada a sua relevância na distinção da natureza jurídica dos

negócios jurídicos.146

Alguns autores utilizam as denominações base de cálculo e base

calculada; a primeira referindo-se à grandeza trazida pela norma geral e abstrata, e

a segunda referindo-se à grandeza veiculada pela norma individual e concreta.147

(iv) Alíquota: é um dos fatores que compõem o elemento quantitativo da

norma de incidência, cuja função é calcular o quantum debeatur correspondente à

obrigação tributária. Geralmente representada por um percentual sobre a base de

cálculo, algumas vezes pode vir representada, também, por valor monetário fixo ou

variável, determinado pelo ente tributante.

145 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Noeses,

2008, p. 546-547. 146 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 5. ed. São Paulo: Noeses, 2010, p.

351. O autor se refere à base de cálculo da norma geral e abstrata (norma essa à qual denomina “hipótese de incidência”), diferentemente de Paulo de Barros Carvalho que trabalha com a fórmula lógica D(H�C) da norma jurídica e, deste modo, utiliza a nomenclatura “hipótese de incidência” para referir-se diretamente ao antecedente da norma geral e abstrata; não à própria norma, como Becker.

147 CARVALHO, op. cit., p. 221 et seq. e BARRETO, Aires. Base de cálculo, alíquota e princípios constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 46.

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76

TERCEIRA PARTE

A NORMA INDIVIDUAL E CONCRETA DE INCIDÊNCIA VEICULADA PELO

LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO

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77

1 O LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO

Estudamos, até este ponto, a norma jurídica como elemento essencial do

sistema jurídico, nos seus aspectos estático (proposição normativa) e dinâmico

(processo de positivação), abordando questões intimamente relacionadas à sua

estrutura, natureza, classificação, bem como o processo de positivação do direito,

para que pudéssemos explorar o lançamento como norma jurídica, mais

especificamente como norma individual e concreta, constitutiva do crédito tributário.

Neste sentido, as palavras de Paulo de Barros Carvalho148:

Pensar no lançamento e no feixe de poderes que dispõe o Estado-administração para realizá-lo, é pensar no problema da aplicação do direito ao caso concreto, equivale a dizer, cogitar da incidência jurídica e de todas as vicissitudes que lhe são inerentes. É considerar o instante mesmo em que a norma jurídica, por virtude de uma ocorrência factual, fere decisivamente a conduta intersubjetiva, para regrá-la como obrigatória, proibida ou permitida, orientando-a, desse modo, em direção aos valores que a sociedade pretende ver objetivados.

Lembramos que todo esse percurso parte da premissa de que o Direito se

constitui pela linguagem, criando sua própria realidade e que somente podem

integrar o sistema jurídico os fatos juridicizados pela linguagem competente exigida

pelo Direito. Assim, “lançamento” será abordado segundo os mesmos fundamentos.

No ordenamento jurídico pátrio, a definição do conceito de lançamento

tributário vem expressa no artigo 142, do Código Tributário Nacional (CTN):

Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo o caso, propor a aplicação da penalidade cabível. Parágrafo único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória sob pena de responsabilidade funcional.

Pretendeu o legislador definir com este enunciado, não só o conceito de

tributo – um procedimento administrativo –, como também a legitimidade quanto ao

148 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Noeses,

2008, p. 430.

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78

seu exercício – exclusivo da autoridade administrativa – e a sua finalidade –

constituir o crédito tributário.

Não alcançou, porém, o seu intento de defini-lo dissipando controvérsias

de entendimento. Doutrina e jurisprudência, até hoje, discutem a definição do

conceito de lançamento, apregoando significados diferentes para o termo. Esta

controvérsia em torno da acepção semântica de “lançamento” deve-se ao emprego

do termo em vários dispositivos daquele diploma, ensejando, objetivamente,

significados diversos, a exemplo do artigo 150, que, ao tratar do lançamento por

homologação, atribui-lhe tanto o sentido de “ato” (ao invés de procedimento, como

dito no artigo 142 do mesmo instrumento) como de “norma individual e concreta”,

expedida pelo particular que constitui o crédito tributário. Resta ao intérprete,

portanto, elucidar o significado do uso do vocábulo, visto que essa definição

implicará efeitos jurídicos diversos.

Consideramos o “lançamento” como o veículo introdutor de uma norma

individual e concreta que inova o ordenamento jurídico, elaborada a partir dos

elementos conotativos trazidos pela regra-matriz de incidência tributária (RMIT),

fazendo nascer a obrigação tributária149, independentemente de quem a tenha

produzido – a Administração ou o particular – (lançamento ou autolançamento,

respectivamente). Daí a importância de termos abordado anteriormente os temas da

incidência e da aplicação do direito no ciclo de positivação da norma jurídica (da

norma geral e abstrata à norma individual e concreta).

Por ser um tema amplo, denso e polêmico no direito tributário, não

pretendemos esgotar todos os ângulos que o envolvem, mas focar um de seus

aspectos: a norma jurídica constitutiva do crédito fiscal, plasmada no lançamento

tributário.

149 Consideramos que a obrigação tributária, como vínculo, envolve os sujeitos da relação jurídica,

bem como o crédito e o débito tributários que nascem no mesmo átimo temporal em que surge a obrigação.

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79

1.1 O VOCÁBULO LANÇAMENTO

Por se tratar de um termo ambíguo, como vimos, “lançamento” abriga

várias acepções. Veremos a seguir, algumas posições da doutrina, a partir do artigo

142, do Código Tributário Nacional.

Aliomar Baleeiro150 descreve os institutos correspondentes ao lançamento

no direito comparado: a) accertamento, no Direito Fiscal italiano, b) determinación,

na lei tributária argentina, c) rôle nominatif, no Direito Francês, d) liquidación, no

Direito Espanhol e) ato tributário, em Portugal etc. Com referência ao direito pátrio,

alega que o Código Tributário Nacional (CTN), no art. 142, o define como

procedimento administrativo que objetiva verificar a ocorrência de fato gerador,

determinar a matéria tributável e o montante do tributo devido, identificar o sujeito

passivo e aplicar a penalidade, se cabível.

Para o autor, porém,

[…] lançamento é o ato jurídico administrativo vinculado e obrigatório, de individuação e concreção da norma jurídica tributária ao caso concreto (ato aplicativo), desencadeando efeitos confirmatórios-extintivos (no caso de homologação do pagamento) ou conferindo exigibilidade ao direito de crédito que lhe é preexistente para fixar-lhe os termos e possibilitar a formação do título executivo. […] Estando assentado que lançamento é ato jurídico administrativo, não procedimento.151

Para Alfredo Augusto Becker152,

150 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. atualizada por Mizabel Abreu Machado

Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 781. 151 Ibid., p. 784. 152 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 5. ed. São Paulo: Noeses, 2010, p.

382. Convém a ressalva de que o autor parte de premissas diferentes daquelas estabelecidas neste trabalho, ou seja, para ele a incidência é automática e infalível (acontece a partir da ocorrência do evento). Nas palavras do autor, p. 374: “Uma vez constatada a realização da hipótese de incidência, conclui-se que ocorreu a incidência infalível (automática) da regra jurídica no instante lógico posterior ao acontecimento do último fato que, ao acontecer, completou a integralização da hipótese de incidência”. Desta forma, incidência e aplicação são momentos diversos no ciclo de positivação da norma jurídica; primeiro ocorre a incidência, depois a aplicação. Assim, antes do lançamento o direito existe, mas não é exigível. Partilhamos da visão antropocêntrica da aplicação do direito, apregoada por Paulo de Barros Carvalho em Direito Tributário: linguagem e método (2. ed. São Paulo: Noeses, 2008, p. 431): “[…] não se dará a incidência se não houver um ser humano fazendo a subsunção e promovendo a implicação que o preceito normativo determina. As normas não incidem por força própria. Elas requerem o homem, como elemento intercalar, movimentando as estruturas do direito, extraindo de normas gerais e abstratas outras regras, gerais e abstratas, gerais e concreta, individuais e abstratas, ou individuais e concretas.” Aqui, incidência e aplicação ocorrem no mesmo instante.

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80

Lançamento, (“accertamento”) tributário consiste na série de atos psicológicos e materiais e/ou jurídicos praticados pelo sujeito passivo (contribuinte), ou pelo sujeito ativo (Estado) da relação jurídica tributária, ou por ambos, ou por um terceiro, com a finalidade de investigando e analisando fatos pretéritos: a) constatar a realização da hipótese de incidência e a incidência infalível (automática) da regra jurídica […]; b) captar o fato que realizou o núcleo (base de cálculo) daquela hipótese de incidência […]; c) proceder a transfiguração daquele núcleo (base de cálculo) em uma cifra aritmética […]; d) calcular a quantidade aritmética do tributo, mediante a aplicação da alíquota.

Adota, portanto, o entendimento de lançamento como procedimento.

Alberto Xavier153 tece críticas à redação do artigo 142, do CTN, fundadas

pelo que ele denomina de “quatro defeitos capitais”: (i) o primeiro consiste no

equívoco de definir-se lançamento como procedimento, quando em rigor é um ato

jurídico, mais precisamente um ato administrativo que conclui aquele mesmo

procedimento; (ii) o segundo radica no caráter meramente descritivo do enunciado,

não se tratando de uma definição, acompanhado de uma enumeração

exemplificativa de operações lógicas relacionadas ao processo de aplicação da lei

tributária; (iii) o terceiro pela afirmação de que o lançamento tem por objeto “propor a

aplicação de penalidade cabível”, pois, ao colocar as penalidades no mesmo plano

da norma tributária material, causa inúmeros equívocos na construção jurídica do

auto de infração (conflito entre o art. 142 e o art. 3º do CTN); (iv) por último, a

menção de que o lançamento tem por fim “constituir o crédito tributário”, conferindo

ao ato administrativo caráter de constitutivo, quando tem caráter apenas declaratório

da obrigação tributária.

Paulo de Barros Carvalho154 também tece críticas ao disposto pelo

referido comando legal, entre elas: a) ao optar pela acepção de lançamento como

procedimento administrativo vinculado e obrigatório, imprime-lhe caráter privativo,

isto é, tal atividade somente poderá ser praticada pela Administração,

desincumbindo o particular da execução de tal tarefa, razão pela qual o legislador

“cria” o lançamento por homologação (admitindo que o particular produza também

153 XAVIER, Alberto. Do Lançamento no Direito Tributário Brasileiro. 3. ed. reformulada e atualizada.

Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 24 et seq. 154 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 407

et seq.

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81

norma individual e concreta tributária). Ressalva o autor155 que “vinculado é o

processo, não o produto. É o ato-fato, não o ato-norma que, uma vez expedido,

ingressa no sistema como uma regra jurídica qualquer, apenas discriminada em

função do instrumento que a introduziu no conjunto.”; b) o dispositivo em comento

faz distinção entre a obrigação tributária (que nasceria com a ocorrência do fato

gerador) e crédito tributário (que nasceria com a constituição do lançamento),

distinção esta improcedente, uma vez que o crédito é um dos elementos que

constituem a obrigação e, por óbvio, nascem no mesmo momento (constituição do

fato jurídico tributário e, por consequência lógica, a instauração da relação jurídica

tributária).

Estas críticas vêm ressaltar a dificuldade em se delimitar semanticamente

o vocábulo a partir do referido enunciado prescritivo.

Mary Elbe Gomes Queiroz Maia156 aponta a variedade de acepções que o

termo encerra e a peculiaridade multidisciplinar de que se reveste (tema afeto ao

direito tributário material, direito tributário formal, direito processual, direito

administrativo), como causas das controvérsias doutrinárias sobre a fenomenologia

do lançamento tributário, mesmo se considerando a unicidade do sistema jurídico.

Eurico Marcos Diniz de Santi157 lista as acepções do termo lançamento e

propõe que a significação deve ser precisada exatamente em função do contexto

histórico-científico em que foram empregadas:

(i) ação, (ii) efeito de escriturar uma verba em livros de escrituração, (iii) a própria verba que se escritura, (iv) efetuar o cálculo, conferir liquidez a crédito ou débito, (v) procedimento administrativo da autoridade competente (art. 142 do CTN), processo com o fim de constituir o crédito tributário mediante a postura de (vi) um ato-norma administrativo, norma individual e concreta (art. 145 do CTN, caput), produto daquele processo, (vii) como procedimento administrativo que se integra com o ato-norma administrativo de inscrição da dívida ativa, (viii) lançamento tributário como o ato-fato administrativo derradeiro da série em que se desenvolve um procedimento com o escopo de formalizar o crédito tributário, (ix) como atividade material do sujeito passivo de calcular o montante do tributo devido, juridicizada pela legislação tributária, da qual resulta uma (x) norma individual e concreta expedida pelo particular que constitui o crédito

155 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.

410. 156 MAIA, Mary Elbe Gomes Queiroz. Do Lançamento Tributário – Execução e Controle. São Paulo:

Dialética, 1999, p. 13. 157 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Lançamento Tributário. 2. ed. rev. São Paulo: Max Limonad, 1999,

p. 145-146.

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tributário no caso dos chamados “lançamentos por homologação” (art. 150 do CTN e §§).

Enfim, a escolha entre as possíveis acepções dependerá das premissas

das quais parta o intérprete, considerando, ainda, o momento ao qual se refere o

lançamento. Caberá ao intérprete, portanto, definir semanticamente o uso que

pretende para o termo, a fim de estabelecer objetivamente a sua finalidade.

Utilizaremos o termo lançamento como veículo introdutor de norma

constitutiva do crédito tributário, inserida no sistema mediante procedimento

prescrito e por agente competente, ou seja, adotamos a acepção de lançamento

como ato-norma – “ato”, por ser veículo introdutor (norma geral e concreta;

enunciação-enunciada) que traz ao universo jurídico a “norma” introduzida (norma

individual e concreta que constitui o crédito tributário; enunciado-enunciado),

resultante da positivação do direito, podendo ser produzida tanto pela Administração,

quanto pelo particular. Este posicionamento nos permite concluir que o “lançamento”

é um ato imprescindível para a constituição do crédito tributário, porém não

necessariamente vinculado, conforme prescreve o artigo 142, do CTN.

Quanto à natureza jurídica do lançamento, entendemos que seja

declaratória, em relação ao fato jurídico tributário descrito no antecedente da norma

jurídica, e constitutiva, quanto à relação jurídica tributária que se estabelece no

consequente da norma jurídica, corroborando entendimento do ilustre doutrinador

Paulo de Barros Carvalho158 acerca do tema.

1.2 O LANÇAMENTO: ATO, PROCEDIMENTO E/OU NORMA?

A doutrina se divide quanto à natureza jurídica e os efeitos do lançamento

tributário, fundada na discussão em torno de ser o lançamento tributário um ato, um

procedimento ou uma norma. Vimos que o ordenamento jurídico brasileiro define o

lançamento tributário como um procedimento administrativo, haja vista o enunciado

do art. 142, do CTN.

Neste sentido, lançamento como “procedimento administrativo” será

aquele composto por uma série de atos a serem praticados de forma vinculada pelos

158 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência. 7. ed. São

Paulo: Saraiva, 2009, p. 290 et seq.

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agentes competentes, para que seja constituído o fato jurídico tributário, apurado o

quantum devido a título de tributo e identificado o sujeito passivo da relação jurídica

tributária. Tal posição implica admitir que, uma vez instaurado o procedimento, a

contar do primeiro ato praticado pela autoridade administrativa, configurado está o

lançamento, começando a correr, a partir daí, o prazo prescricional.159

Já, se pensarmos em “ato de lançamento”, o prazo prescricional se

iniciará a partir de sua conclusão. Percebe-se, com isso, a importância de se definir

o conceito de lançamento, uma vez que importarão efeitos jurídicos diferentes.

Seguindo os ensinamentos de PAULO DE BARROS CARVALHO160,

[…] acto é, sempre, o resultado de um procedimento. Tanto acto como procedimento hão de estar, invariavelmente, previstos em normas de direito posto; torna-se intuitivo concluir que norma, procedimento e acto são momentos significativos de uma e somente uma realidade. […] norma, com referência aos dispositivos que regulam o desdobramento procedimental do acto; procedimento, como a sucessão de actos praticados pela autoridade competente, na forma da lei; e acto, como resultado da atividade desenvolvida no curso do procedimento.”

Estevão Horvath161 enfrenta o problema de ordem terminológica,

propondo a utilização da expressão procedimento de apuração para designar a

sequência encadeada de atos tendentes a apurar o quantum debeatur, praticada

tanto pelo particular quanto pela Administração (lançamento em sentido amplo), e

lançamento para designar o ato resultante desse procedimento (lançamento em

sentido estrito).

159 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.

412. 160 Id. Direito Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.

286. 161 HORVATH, Estevão. Lançamento Tributário e “Autolançamento”. 2. ed. revista e ampliada. São

Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2010, p. 47-49: “A nosso ver, duas realidades distintas ocultam-se sob um único nomem juris – o lançamento. Parece inequívoco que existe um procedimento – no sentido de uma seqüência de atos juridicamente encadeados visando a desembocar num ato final, ambos chamados pela legislação e por parte da doutrina de lançamento. [...] Poderíamos atribuir ao vocábulo “lançamento” um sentido amplo e um sentido estrito. No primeiro deles estaria compreendida toda a atividade prévia necessária para determinar-se a quantia a pagar. Em sentido estrito, é o ato que fixa a quantia da obrigação nascida com a realização do fato imponível. [...] Em outras palavras, preferimos denominar procedimento de apuração dos tributos ao “procedimento de lançamento” (quando, por óbvio, este exista ou seja necessário), deixando o termo lançamento para identificar o ato em que culmina esse procedimento, ou é praticado independentemente da existência deste último.”

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José Souto Maior Borges162 diferencia os conceitos procedimento e ato:

“o primeiro (procedimento) seria o caminho percorrido pela Administração para

produzir o segundo (ato)”.

Conclui-se que procedimento e ato são aspectos de uma mesma

realidade, ou seja, são momentos diferentes de um mesmo fenômeno, de tal forma

que o procedimento está para o processo, assim como o ato está para o produto. O

procedimento será a forma legalmente prevista para o desenvolvimento adequado

do processo da tributação163; o ato será o produto resultante daquele procedimento,

plasmado em norma geral e concreta (veículo introdutor) de norma introduzida

(norma individual e concreta) de constituição do crédito tributário.

1.2.1 Estrutura do ato administrativo

O lançamento, como ato jurídico de natureza administrativa deverá

apresentar os elementos estruturais do ato jurídico administrativo. Cabe aqui uma

ressalva sobre a divergência de classificação e nomenclatura dos componentes do

ato administrativo encontrados na doutrina.

Adotamos aquela proposta por Cláudia Magalhães Guerra164, que

identifica a estrutura do ato administrativo considerando os vícios que possam levar

à invalidação do lançamento tributário e, para isso, trabalha com as categorias:

“elementos” e “pressupostos”.

Os elementos relacionam-se aos aspectos internos essenciais à estrutura

do ato, ou “partes componentes do ato”, conforme descreve a autora:

(I) Suporte físico – “é o modo como se revela o ato”. Como qualquer ato administrativo, o lançamento segue uma formalidade, prescrita pelo sistema, imprimindo-lhe caráter de juridicidade e conferindo-lhe validade. No caso do lançamento, o suporte físico traz a lume a enunciação-enunciada e o enunciado-enunciado;

(II) Motivação – é a “enunciação dos motivos” que ensejam a expedição do ato, declarando, no antecedente da norma

162 BORGES, José Souto Maior. Lançamento Tributário. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 120. 163 Esclarecemos que “processo de tributação” neste contexto significa o que deverá ser realizado ou

quais etapas deverão ser realizadas para a aplicação da regra-matriz de incidência tributária e, sob nenhum aspecto se refere à composição de conflitos na esfera administrativa ou judicial; enquanto “procedimento” significa como estas etapas deverão ser desenvolvidas.

164 GUERRA, Cláudia Magalhães. Lançamento Tributário & sua invalidação. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008, p. 68-85.

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individual e concreta, que ocorreu um evento no mundo fenomênico que se subsume ao enunciado da hipótese da norma geral e abstrata; integra o enunciado-enunciado da norma inserida no sistema. Motivação, portanto, é a linguagem competente que, por meio das provas, descreve o evento (motivo – pressuposto do ato), constituindo o fato jurídico tributário. Reforça a autora que a motivação não é o fato jurídico tributário, mas contém o fato.

(III) Conteúdo – ou parte dispositiva, é a veiculação prescritiva (parte do enunciado-enunciado) do ato administrativo de lançamento tributário, ou seja, a norma individual e concreta que estabelece a relação jurídica tributária. Abrange, portanto, dois sujeitos diversos, – um é o sujeito ativo, detentor do direito ao crédito, e outro chamado de sujeito passivo, obrigado ao cumprimento da prestação e o objeto, definido pela autora como a enunciação da prestação determinada no conseqüente da norma de lançamento.

Os pressupostos relacionam-se aos fatores externos que lhe garantem a

validade e são, na sua maioria, anteriores à expedição do lançamento:

(I) Sujeito produtor do ato administrativo – é o agente público que produz o ato; sua identificação pode ser encontrada na enunciação-enunciada. A validade da norma individual e concreta, neste quesito, diz respeito à competência que, obrigatoriamente, deve ter o agente para produzi-la, conforme estabelecido pela norma geral e abstrata.

(II) Motivo – é o evento ocorrido no mundo fenomênico que deverá ser vertido em linguagem competente de acordo com a linguagem das provas para que se constitua o fato jurídico tributário. Precede, portanto, a produção da norma individual e concreta, uma vez que serve apenas de suporte fático para a constituição do fato jurídico.

(III) Requisitos procedimentais – são aqueles determinados pelo próprio sistema como necessários para a produção do ato; a enunciação-enunciada pode indicar quais são estes procedimentos prévios à produção do ato, de modo que o intérprete possa verificar se foram cumpridos de acordo com a legalidade.

(IV) Vontade – a autora pondera que, como o lançamento é ato vinculado, a vontade do agente é irrelevante, sobrepondo-se, nesse caso, a vontade normativa – aquela determinada pela lei (tipicidade normativa); daí a autora ressaltar que nos atos vinculados o que importa, na verdade, é a tipicidade normativa, não a vontade do agente (que inexiste).

(V) Causa – é a relação estabelecida entre o suporte fático (evento), tomado como motivo do ato, e a sua enunciação (motivação), ou, entre o motivo declarado e o seu conteúdo. Envolve, portanto, a subsunção, ou a pertinência do motivo à motivação; daí a autora afirmar que se trata de algo externo ao ato (pressuposto) que pode ser aferido pelo enunciado-enunciado.

(VI) Finalidade – aquilo que se pretende atingir com a expedição do ato, ou seja, o objetivo do ato administrativo, ou o fim público a que se destina o ato, de forma que a cada ato corresponda um

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fim específico, e este fim só poderá ser alcançado mediante aplicação de ato específico, determinado pela tipicidade.

1.2.2 O lançamento como norma

A opção por este corte metodológico – lançamento como norma – requer

uma breve revisão acerca da nossa perspectiva de norma jurídica.

Conforme disposto anteriormente, entendemos norma jurídica, em sentido

amplo, como qualquer enunciado prescritivo do direito posto; em sentido estrito,

como as significações construídas a partir dos enunciados prescritivos, que

possibilitem um sentido deôntico completo (permitido, obrigatório, proibido) para a

regulação das condutas intersubjetivas.

Neste sentido, do enunciado prescritivo do art. 142 do CTN podemos

construir duas normas jurídicas:

(I) uma norma geral e concreta (norma veículo introdutor, veiculada pela

enunciação-enunciada) que informa o modo de produção do ato-norma

administrativo e a competência para sua produção165;

(II) uma norma individual e concreta (norma introduzida, veiculada pelo

enunciado-enunciado), que constitui o crédito tributário ao individualizar o fato

jurídico tributário no tempo e no espaço, os sujeitos ativo e passivo da relação

jurídica e o valor do tributo.

Destacamos a segunda como a norma de lançamento que constitui

regularmente o crédito tributário e sobre a qual discorreremos a seguir.

1.2.3 A norma jurídica que constitui o crédito tributário

A estrutura lógica da norma jurídica, na forma D (H�C), permite a análise

detalhada dos elementos que compõem a norma jurídica. Temos, na norma

individual e concreta, a hipótese (H) constituída pelos elementos material, espacial e

temporal, e o consequente (C), constituído pelos elementos pessoal e quantitativo,

165 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Lançamento Tributário. 2. ed. rev. São Paulo: Max Limonad, 1999,

p. 157.

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que devem subsumir-se aos critérios relativos à hipótese e ao consequente da

norma geral e abstrata, respectivamente.

O sistema jurídico aceita, como norma em sentido estrito, somente aquilo

que for traduzido para o mundo jurídico na conformidade desta estrutura lógica, daí

dizer-se que se trata de um sistema fechado sintaticamente. Admite, porém, que tal

estrutura seja preenchida, semanticamente, por diferentes conteúdos que levarão,

consequentemente, a diferentes resultados; trata-se da abertura semântica e

pragmática do sistema.

Quando falamos de uma norma jurídica tributária em sentido estrito,

temos que preencher a hipótese e o consequente da estrutura normativa, de forma a

permitir a construção de um sentido deôntico completo, estabelecendo uma conduta

permitida, obrigatória ou proibida, plasmada na relação jurídica tributária.

A regra-matriz de incidência tributária – RMIT (norma geral e abstrata) – o

faz de forma conotativa, isto é, estabelece os critérios que deverão ser observados

quando da individualização do fato jurídico para fins de tributação. A incidência,

entretanto, somente ocorrerá mediante a ação do homem pela aplicação da norma

que acontece de acordo com o processo de positivação da norma.166 Ou seja, a

incidência não é um fenômeno automático e infalível em relação ao evento

observado; requer a ação do homem para constituir o fato jurídico, vertendo o evento

em linguagem autorizada pelo sistema.

Isto se dá com a introdução no sistema de uma norma individual e

concreta, que denotará os elementos que se subsumam àqueles critérios apontados

na norma geral e abstrata.

Referimo-nos, portanto, ao lançamento como norma de conduta que, ao

constituir o fato jurídico tributário, individualizando-o no tempo e no espaço, instaura

automática e infalivelmente a relação jurídica tributária. No seu antecedente

(hipótese), traz o fato jurídico sujeito à tributação, o momento e o local em que ele

ocorreu; no seu consequente, a relação jurídica de conteúdo patrimonial

estabelecida entre os sujeitos de direito (ativo e passivo) e o valor do tributo

(calculado a partir dos elementos relativos à base de cálculo e alíquota).

166 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência. 7. ed. São

Paulo: Saraiva, 2009, p. 247: “E isto se faz com o processo de positivação das normas jurídicas, numa trajetória que vai da mais ampla generalidade e abstração, para atingir níveis de individualidade e concreção”.

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Convém salientar que, quando falamos de crédito tributário, interessa-nos

particularmente, a relação jurídica tributária, pois aí estão determinados os

elementos que compõem este liame obrigacional: sujeito ativo, sujeito passivo e

objeto da obrigação, atrelados a um dever e um direito, que se relacionam da

seguinte forma: o sujeito ativo tem o direito subjetivo de exigir o objeto da prestação

– a este direito chamamos crédito; o sujeito passivo tem o dever jurídico de prestá-lo

– a este dever chamamos débito167.

Nas palavras de Paulo de Barros Carvalho168, crédito tributário “é o direito

subjetivo de que é portador o sujeito ativo de uma obrigação tributária e que lhe

permite exigir o objeto prestacional, representado por uma importância em dinheiro.”

Vimos, portanto, que o crédito tributário nasce no mesmo instante em que

se constitui o fato jurídico tributário, pois “o conseqüente da norma individual e

concreta é o próprio efeito jurídico do acontecimento fáctico previsto no antecedente

[…] a sucessão não é cronológica; é simplesmente lógica”.169

No mesmo sentido, Roque Antonio Carrazza170, partindo da premissa de

que lançamento é ato administrativo de aplicação da norma material ao caso

concreto, diz que a obrigação tributária somente produzirá os efeitos jurídicos que

lhe são próprios, se for produzida uma norma individual e concreta por agente

competente, determinando todos os elementos exigidos por lei, para a instituição do

tributo.

Para Paulo de Barros Carvalho171, entendimento ao qual nos filiamos, o

ato de lançamento introduz no sistema jurídico uma norma individual e concreta; é, o

ato, veículo introdutor (instrumento) que permite a construção da norma jurídica em

sentido estrito, norma esta que constitui não somente o fato jurídico, mas também o

crédito tributário.

Ressalte-se que, quando falamos de lançamento como ato/norma, veículo

introdutor (norma geral e concreta) da norma individual inserida no sistema jurídico

constituindo o crédito tributário, não fazemos distinções entre as nomenclaturas

167 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.

399. 168 Ibid., p. 398. O autor ressalva a diferença entre objeto da obrigação (conduta prestacional de

entregar uma porção de moeda) e objeto da prestação (valor pecuniário pago ou exigido). 169 Ibid., p. 443. 170 CARRAZZA, Roque Antonio. Reflexões Sobre a Obrigação Tributária. São Paulo: Noeses, 2010, p.

280. 171 CARVALHO, op.cit., p. 445.

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distintas propostas pela doutrina, conforme o sujeito que a realiza (pela

Administração, lançamento, ou pelo sujeito passivo, autolançamento); tampouco as

fazemos quanto às modalidades de lançamento – por declaração, por homologação

e de ofício. Abstraímos para esta análise somente a forma (veículo

introdutor/enunciação-enunciada) e o conteúdo (enunciado-enunciado) do ato-norma

de lançamento.

Assim, temos que o ato do lançamento ou veículo introdutor (norma geral

e concreta), introduz no ordenamento uma norma jurídica, válida e eficaz,

estruturada logicamente na forma D(H�C), que se classifica como norma concreta e

individual e realiza o fenômeno da incidência ao descrever, no seu antecedente, um

acontecimento do mundo físico-social (evento), ocorrido em condições determinadas

de tempo e espaço, guardando estrita consonância com os critérios conotativos

estabelecidos na norma geral e abstrata (regra-matriz de incidência tributária –

RMIT); no seu consequente, prescrevendo outro enunciado protocolar denotativo,

desta feita relacional, como sequência lógica e não cronológica, do antecedente da

norma.

Apoiados na lição de Paulo de Barros Carvalho172, não admitimos a

veiculação da norma sancionatória pelo lançamento. Além da impossibilidade lógica

da aplicação de duas normas de conteúdos diferentes num mesmo ato de aplicação,

o artigo 3º, do CTN, prescreve que o tributo decorre de ato lícito, o que, de pronto,

afasta a aplicação da sanção por meio do mesmo ato administrativo.

Conforme Estevão Horvath173, o ato jurídico administrativo do lançamento

tributário é norma jurídica individual e concreta cuja edição decorre da existência de

outra norma, geral e abstrata, que o autoriza. É ato administrativo subordinado à lei

(princípio da legalidade):

[…] em obediência à norma jurídica tributária que “cria” a obrigação tributária in abstrato, dirá em seu suposto que ocorreu no mundo fenomênico, aquele fato jurídico tributário, no momento e no âmbito espacial previamente estatuído na lei e conseqüentemente alguém –

172 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.

465: “O legislador não diversificou a atividade de aplicação da regra que prevê a incidência tributária e a que descreve a infração, cominando sanções. Operou a equiparação, contrariando o que prescrevera no art. 3º e, principalmente, a fenomenologia que o sistema consagra. Não há como aplicar duas normas de conteúdos diferentes num único ato administrativo que deve conter motivo, objeto e finalidades específicas.”

173 HORVATH, Estevão. Lançamento Tributário e “Autolançamento”. 2. ed. revista e ampliada. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2010, p. 31-32.

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o sujeito passivo tributário, por haver praticado aquele fato, deve recolher aos cofres públicos a quantia “x”, perfeitamente determinada, precisada, a título de tributo.

Aliomar Baleeiro174 afirma que o “lançamento é um ato jurídico de

aplicação da lei ao caso concreto, norma individual e pessoal de realização do

Direito”, por declarar formalmente a ocorrência do fato jurídico no tempo e no

espaço, fato esse que se subsume ao conceito abstrato e genérico da hipótese

normativa tributária. Além disso, identifica o sujeito passivo, apura a quantia a ser

paga e define prazos e condições de pagamento do tributo.

Considerando-se que a linguagem constitui a realidade jurídica,

repisamos, somente a partir da incidência promovida pelo homem mediante o ato de

aplicação da norma jurídica o direito se realiza e, consequentemente, ousamos

afirmar que o crédito tributário somente se constitui com a aplicação da norma de

lançamento. Antes deste momento de formalização em linguagem competente, nada

existe para o Direito; o evento ocorrido no mundo fenomênico, por si só, nada

constitui. É necessário que seja convertido em linguagem competente de acordo

com os códigos e programas175 aceitos pelo sistema do direito para que possa

ingressar no ordenamento jurídico produzindo efeitos.

O evento deve ser relatado em linguagem jurídica para que se constitua o

fato jurídico tributário (este, sim, apto a produzir efeitos), instaurando-se, imediata e

infalivelmente a relação jurídica tributária – um liame obrigacional constituído pelos

sujeitos de direito (ativo e passivo) envolvidos pelo direito subjetivo de exigir o objeto

da prestação (crédito) e pelo dever jurídico de prestá-lo (débito), “nascendo” desta

forma, a obrigação tributária.

Por esta razão, não se justifica a constituição da obrigação tributária de

outra forma que não seja pela produção da norma individual e concreta do

lançamento, seja ele emitido pela autoridade competente ou pelo sujeito passivo,

174 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. atualizada por Mizabel Abreu Machado

Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 786. 175 TOMÉ, Fabiana Del Padre. A Prova no Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2008, p. 41-

42. “O sistema jurídico diferencia-se funcionalmente dos demais subsistemas sociais exatamente por estar incumbido de garantir a manutenção de expectativas normativas, ainda que estas venham a ser frustradas em virtude da adoção de comportamentos divergentes daquele normativamente previstos. O cumprimento dessa função, porém, só é possível mediante determinações estruturais, chamadas código e programação.”

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nas suas várias modalidades propostas pela doutrina – lançamento de ofício, por

declaração ou por homologação.

Tal norma, de acordo com a exposição acerca da Teoria Geral disposta na

primeira parte deste trabalho, deve, necessariamente, submeter-se às exigências do

sistema para que seja considerada válida e possa produzir efeitos jurídicos.

Assim, a norma individual e concreta veiculada pelo “lançamento” deve: (i)

encontrar fundamento de validade em outra norma do sistema – norma geral e

abstrata (RMIT); (ii) ser produzida de acordo com as normas de competência

estabelecidas para sua elaboração (procedimento, sujeito competente, limitações ao

poder de tributar, princípios); (iii) obedecer aos princípios constitucionais gerais e

específicos que lhe informam; (iv) ser constituída de acordo com a linguagem das

provas que fundamentam a motivação do ato/norma do lançamento. Os dois

primeiros requisitos dizem respeito aos limites formais; os demais, aos limites

materiais que devem ser observados para a sua constituição.

Trata-se, portanto, de uma norma primária (regula o direito material) que

descreve uma conduta no seu antecedente, estabelecendo uma relação jurídica

entre dois sujeitos no seu consequente, como resultado do fenômeno da incidência.

1.3 A CONSTITUIÇÃO DA NORMA DE LANÇAMENTO ANALISADA PELOS

PLANOS DA SEMIÓTICA

Consideramos “lançamento” como o veículo introdutor de uma norma

individual e concreta que inova o ordenamento jurídico, elaborada a partir dos

elementos conotativos trazidos pela regra-matriz de incidência tributária, fazendo

nascer a obrigação tributária, independentemente de quem a tenha produzido – a

Administração (lançamento, com base no art. 142, do CTN) ou o administrado

(autolançamento, com base no art. 150 do mesmo diploma).176

Desta forma, entendemos que seja um ato-norma, imprescindível para a

constituição da obrigação tributária, embora não seja necessariamente um ato com

caráter vinculado, dado a possibilidade de ser elaborado pela Administração ou pelo

particular, ambos legitimados à sua produção. Como “ato”, insere no sistema uma

176 Vide capítulo 1, da terceira parte do trabalho.

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norma geral e concreta que nos diz acerca do agente produtor e do procedimento

para a sua produção (enunciação-enunciada); como “norma”, inova o ordenamento

com a introdução de norma individual e concreta (enunciado-enunciado) que

constitui a obrigação tributária, promovendo, efetivamente, a positivação do Direito.

O que se seguirá é uma análise sintática, semântica e pragmática (planos

semióticos) deste ato-norma, sob a ótica do construtivismo lógico-semântico, uma

vez que a relação sígnica entre os três planos se encontra numa área de intersecção

da semiótica, da linguística, da lógica e, por que não dizer, do próprio Direito,

assentado sobre os alicerces da filosofia da linguagem, esta como condição de

possibilidade do conhecimento.177

O Direito Positivo, construído pela linguagem (como um sistema

convencionado de signos), estabelece seu objeto que é a conduta intersubjetiva

prescrita pela lei (norma), regulando deonticamente (permitindo, obrigando ou

proibindo) as relações sociais que lhe interessem, com o intuito de alcançar

determinado fim. Dito de outra forma, é a lei (signo para Peirce; suporte físico para

Husserl) imprimindo uma conduta à sociedade (objeto para Peirce; significado para

Husserl), mediante a construção da norma pelo homem (interpretante para Peirce;

significação para Husserl). Eis aí a natureza semiótica do Direito Positivo, que

possibilita o seu conhecimento sob o prisma das dimensões da Semiose178.

O objetivo desta análise, puramente didático, é permitir que o estudo

destes aspectos possa favorecer a correta elaboração da norma de lançamento,

bem como evidenciar possíveis “erros” na sua construção.

177 ARAUJO, Clarice von Oertzen de. Incidência Jurídica: teoria e crítica. São Paulo: Noeses, 2011, p.

163. 178 Semiose, estudo da ação dos signos, segundo a nomenclatura de Charles Morris (ibid., p. 165): “A

segmentação do processo semiótico ou semiose (ação ou efeito gerado pelos signos) em três aspectos ou dimensões que podem ser abstraídos para o propósito de serem estudados separadamente, e a denominação dos planos de investigação em “sintático”, “semântico” e “pragmático” foi inicialmente proposta em 1938, por Charles William Morris (1901 – 1979), ao elaborar uma monografia (Foundations of the Theory of Signs) que deveria compor a International Encyclopedia of Unified Science, publicação integrante de um extenso projeto de unificação das ciências, o que era um ideal fundamental do positivismo lógico.”

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1.3.1 Plano Sintático

No item 2.1, 2ª parte (a incidência analisada pelos planos da semiótica),

vimos que esta dimensão (sintaxe) está relacionada à estrutura lógico-gramatical da

linguagem.

No Direito, tal plano ocupa-se da conformação da norma jurídica, que

deve submeter-se às regras que orientam as combinações estruturais desta norma,

bem como das relações que as normas mantêm entre si, dentro do sistema. Assim,

vimos que as normas jurídicas constituem-se de uma estrutura lógica (composição

sintática) constante: H�C, ou seja,

[…] um juízo condicional, em que se associa uma conseqüência à realização de um acontecimento fáctico previsto no antecedente. [...] Vê-se que os enunciados prescritivos ingressam, na estrutura sintática das normas, na condição de proposição-hipótese (antecedente) e de proposição-tese (consequente).179

Quando estudamos o lançamento sob este plano, voltamos, então, nosso

interesse para duas questões essenciais: (i) o fundamento de validade (tanto em

relação à norma geral e concreta – veículo introdutor revelado pela enunciação-

enunciada, quanto em relação à norma individual e concreta – norma introduzida

revelada pelo enunciado-enunciado)180; e (ii) a estrutura lógica da norma de

lançamento.

No primeiro caso, o que se verifica, inicialmente, é se a NIC – “norma” de

lançamento ou norma de incidência – encontra fundamento de validade em outra

norma do sistema: NGA (norma geral e abstrata a ser incidida), obedecendo à

subsunção, que necessariamente deve existir entre os elementos apontados por

aquela e os critérios estabelecidos por esta. Não pode ser produzido, por exemplo,

lançamento (NIC) sem que haja uma NGA anterior àquela instituindo o tributo.

Ainda, deve-se observar se a NGC ou “ato” de lançamento obedece

àquilo que prescrevem as normas de estrutura, por exemplo, as normas de

competência e normas procedimentais. Trata-se das relações de subordinação,

179 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Noeses,

2008, p. 190. 180 Conforme discutido no item 1.5 deste trabalho, quando discorremos acerca da validade da norma

jurídica e dos seus pressupostos: fundamento de validade e procedimento autorizado pelo sistema, produzido por quem detenha competência para tal.

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94

envolvendo os processos de fundamentação e derivação, existentes entre as

normas do sistema – no plano S4, ou plano de sistematização das normas jurídicas,

do percurso de interpretação proposto por Paulo de Barros Carvalho181. Não há

falar-se em lançamento válido (NIC), caso o agente produtor não detenha

competência para produzi-lo ou, mesmo que detenha competência, não obedeça às

normas de produção do ato (vide, por exemplo, no item 1.1, os “vícios” de

inconstitucionalidade propostos por Gabriel Ivo).

Quanto à estrutura lógica, busca-se a forma como foi elaborado o “ato-

norma” de lançamento: (i) a “norma” de lançamento (NIC) apresenta, por exemplo,

todos os elementos exigidos para a constituição do fato jurídico tributário (elementos

material, espacial e temporal)? E, para a instauração da relação jurídica tributária

(elementos pessoal e quantitativo)? Sabidamente, a operação de imputação decorre

da possibilidade lógica de o antecedente implicar (deonticamente) o consequente

(causalidade normativa), ou seja, aplica-se ao fato jurídico tributário, constituído no

antecedente, os efeitos jurídicos definidos no consequente. Isto, porém, só será

possível se todos os elementos, relativos ao fato e à relação jurídica tributária, forem

perfeitamente determinados, compondo a correta estrutura lógica da norma.

Imprescindível, então, que o lançamento válido aponte todos esses elementos182:

material, espacial, temporal, pessoal e quantitativo (respeitando, inclusive, o

princípio da tipicidade estrita); (ii) considere-se, ainda, que também o “ato” de

lançamento (NGC) deve obedecer ao modelo de estrutura lógica constante das

normas jurídicas: H�C183, ou seja, dado o fato de um sujeito/órgão, legitimado pelo

sistema (dotado de competência), ter realizado um procedimento autorizado, em

certa data e local (condições de espaço e tempo), então deve ser a observância de

uma norma individual e concreta que estabelece, no antecedente, um fato jurídico

tributário e, no consequente, uma relação jurídica tributária. Deste modo, também o

181 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Noeses,

2008, p. 183. 182 O termo elemento foi utilizado aqui como dado colhido do suporte fático para compor o

antecedente e o consequente da NIC, correspondendo cada um deles aos critérios elencados na hipótese e tese da RMIT.

183 Ibid., p. 406: “Os veículos introdutores são igualmente normas jurídicas, com a mesma organização lógica de todas as demais (princípio da homogeneidade sintática das proposições prescritivas conjugado com o cânone da uniformidade que o objeto da ciência deve ostentar), apenas assinalando que tais regras serão sempre do tipo das gerais e concretas.”

Page 96: Silvia Regina Zomer

95

“ato” deve conter todos os elementos que confiram autenticidade ao preceito, bem

como validade à norma introduzida184.

A ausência de qualquer desses elementos inviabiliza, portanto, a

constituição do crédito tributário pelo lançamento, a exemplo desta manifestação

jurisprudencial:

PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS PREVIDENCIÁRIAS. SUBSTITUTOS TRIBUTÁRIOS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA (DE 1996 A 1998). RESPONSABILIDADE PESSOAL DO TOMADOR DO SERVIÇO DE EMPREITADA DE MÃO-DE-OBRA (A PARTIR DA LEI 9.711/98, NO EXERCÍCIO DE 1999). SÚMULA 7/STJ. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO COMPROVADA. ARTIGO 255 RISTJ. 1. O sujeito passivo da obrigação tributária, que pode ser o contribuinte ou o responsável, nos termos do art. 121 do CTN, compõe o critério pessoal inserto no conseqüente da regra matriz de incidência tributária e integra a obrigação fiscal, com o dever de adimplir o crédito tributário, sofreram a incidência da decadência. [...] O território de eleição do sujeito passivo das obrigações tributárias e, bem assim, das pessoas que devam responder solidariamente pela dívida, está circunscrito ao âmbito da situação factual contida na outorga de competência impositiva, cravada no texto da Constituição. A lembrança desse obstáculo sobranceiro impede que o legislador ordinário, ao expedir a regra-matriz de incidência do tributo que cria, traga para o tópico do devedor, ainda que solidário, alguém que não tenha participado da ocorrência do fato tópico. Falta a ele, legislador, competência constitucional para fazer recair a carga jurídica do tributo sobre a pessoa alheia ao acontecimento gravado pela incidência. Diante de óbice de tal porte, incontornável sob qualquer pretexto, devemos entender que os devedores solidários, instituídos pela lei, e estranhos ao evento

184 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Noeses,

2008, p. 199: “Não há qualquer exagero ao afirmar que os problemas relativos à validade das normas jurídicas, à constitucionalidade de regras do sistema são questões que têm um lado sintático e, em parte, podem ser estudadas no plano da gramática jurídica.” e “É sintática a relação entre a norma da Constituição e aquela da lei ordinária, assim como puramente sintático é o vínculo entre a regra que estipula o dever e a outra que veicula a sanção. De ordem sintática, também, a estrutura intranormativa e, dentro dela, o laço condicional que une antecedente (hipótese) e consequente.” (p. 211). No mesmo sentido, Cláudia Magalhães Guerra: “A validade ou invalidade, é verificável somente quando, já de posse da norma produzida, o intérprete volta-se para a enunciação-enunciada ou para o enunciado-enunciado, e assim poderá, então, construir o modo como se dera o processo gerativo (se correspondente ao direito formal) e evidenciar os comandos prescritivos, relacionados com o pressuposto de fato ensejador de sua produção e pertinência com a finalidade estabelecida pela lei (se de acordo com o direito material). [...] O que aqui se quer evidenciar é que qualquer espécie de vício, seja ele decorrente de inobservância do direito material ou violação ao direito formal, sempre há de ser verificável no corpo da norma individual e concreta produzida, no enunciado-enunciado ou na enunciação-enunciada, respectivamente.” (Lançamento Tributário & sua invalidação. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008, p. 112).

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jurídico-tributário, não são, na verdade, componentes daquele liame obrigacional.185

Ainda, com relação ao “ato-norma” de lançamento (NIC), vejamos,

brevemente, os elementos e pressupostos que lhe são inerentes186:

• ELEMENTOS

a) Suporte Físico: veículo introdutor, ou instrumento normativo que

contém os traços da enunciação-enunciada (NGC) e enunciado-enunciado (NIC);

por exemplo, o Auto de Infração e Imposição de Multa (AIIM);

b) Motivação: é a linguagem competente por meio da qual é constituído

o fato jurídico tributário ou a “enunciação dos motivos” que levaram à constituição do

fato jurídico, conforme disposição da NGA (não é o fato jurídico tributário em si, mas

a linguagem que o constitui, envolvendo a descrição do evento em determinado

tempo e local). Faz parte do enunciado-enunciado, correspondendo ao antecedente

da NIC do lançamento.

c) Conteúdo: é a linguagem competente que prescreve o pagamento do

tributo, em decorrência da relação jurídico-tributária que se instaura no consequente

da NIC do lançamento (lembremo-nos de que a relação jurídico-tributária é o vínculo

que une dois sujeitos de direito – ativo e passivo – em torno do objeto da prestação;

logo, este elemento envolve o sujeito ativo, o sujeito passivo, o direito de exigir a

prestação e o dever de cumpri-la), compondo, também, o enunciado-enunciado.

• PRESSUPOSTOS

a) Sujeito produtor do “ato-norma” de lançamento187: é o agente

competente para sua produção, evidenciado na enunciação-enunciada da NIC.

185 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial 916914/RS.

Relator: Min. Luiz Fux. Julgamento: 23 jun. 2009. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJe 06 ago. 2009 (grifos nossos).

186 Seguimos a proposta de Cláudia Magalhães Guerra (Lançamento Tributário & sua invalidação. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008, p. 100 et seq.), com base nos elementos e pressupostos do ato administrativo, explorados no item 1.2.1, 3ª parte deste trabalho. Mesmo que o nosso entendimento seja no sentido de que a NIC possa ser produzida também pelo particular (ato não vinculado, portanto), acreditamos que deva submeter-se aos elementos e pressupostos do ato administrativo, dada a necessidade deste instrumento para formalizar o crédito tributário.

187 Convém ressaltar que nosso entendimento diverge daquele descrito por Cláudia Magalhães Guerra quanto ao agente produtor do lançamento. Justifique-se: não consideramos o “lançamento” como um ato vinculado, consoante entendimento daquela autora, posto que possa ser produzido também pelo particular, embora seja imprescindível para a constituição do crédito tributário.

Page 98: Silvia Regina Zomer

97

b) Motivo: é o evento em si, que, uma vez descrito em linguagem

competente, constituirá, de acordo com a linguagem das provas, o fato jurídico

tributário (motivação) no antecedente da NIC. Frise-se que o fato jurídico tributário

constituído no antecedente da NIC deve corresponder integralmente ao evento

ocorrido no mundo fenomênico, sob pena de invalidação do lançamento. A

constituição de um fato que não corresponda ao suporte fático, por exemplo, o furto

de uma mercadoria ser declarado como circulação para efeitos de incidência da

regra-matriz do ICMS (considerado um erro de fato pela não correspondência do

evento à NGA), pode levar à invalidação do ato.

c) Requisitos procedimentais: são aqueles determinados pelo sistema

jurídico como sendo necessários à produção do ato e que podem ser identificados

pela enunciação-enunciada.

d) Causa: é a relação que, necessariamente, deve existir entre o suporte

fático (evento) e a sua descrição no antecedente da NIC (fato jurídico tributário –

motivação), fazendo nascer a relação jurídica tributária no consequente desta

norma, ou seja, entre o motivo declarado e o seu conteúdo, podendo ser verificado

pela análise do enunciado-enunciado. Por exemplo, por ter ocorrido a circulação de

mercadoria, constituiu-se o fato jurídico tributário no antecedente da NIC,

instaurando-se, obrigatoriamente, a relação jurídica tributária, no consequente, que

prescreve o pagamento do ICMS.

e) Finalidade: embora não conste expressamente da NIC, pode ser

verificada pela análise do enunciado-enunciado da RMIT, NGA que serve de

fundamento de validade para a produção da NIC (motivo legal) pelo qual pode ser

exigido o tributo.

Do exposto, conclui-se que possíveis falhas identificadas neste plano de

observação resultem em vícios decorrentes de desajustes na conformação estrutural

da norma ou na operação de subsunção. Tais vícios são chamados, pela doutrina,

de “formais” ou “materiais”188. Vejamos: (i) “formais” – são aqueles relativos às

188 GAMA, Tácio Lacerda. Competência Tributária: Fundamentos para uma Teoria da Nulidade. São

Paulo: Noeses, 2009, p. 315: “Uma norma de competência, em sentido estrito, fundamenta a validade de outras duas normas jurídicas: o instrumento introdutor e a norma introduzida. Há licitude quando as normas criadas se ajustam ao que prescreve a norma de competência. Sob tal perspectiva, a de existirem dois tipos de normas introduzidas, é possível falar em dois tipos de incompatibilidade, sendo uma delas entre o instrumento introdutor com o antecedente da norma

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98

normas de produção normativa, identificados na enunciação-enunciada, por

exemplo, os vícios relativos à competência ou aos requisitos procedimentais; e/ou

(ii) “materiais” – aqueles relativos às normas de conteúdo189, identificados no

enunciado-enunciado, por exemplo, os vícios relativos à motivação (ausência ou

deficiência dos motivos que levaram à tributação, ou seja, na motivação descrita no

antecedente da norma de lançamento; são ligados à constituição do fato jurídico

tributário), ao conteúdo (desajuste identificado na instauração da relação jurídica

tributária, geralmente ligado ao próprio objeto da obrigação ou à indicação dos

sujeitos da relação), à causa (desajuste entre a motivação enunciada no

antecedente e o conteúdo prescrito no consequente, da NIC, visando alcançar a

finalidade do lançamento – à causa (embora esta não se revele expressamente no

enunciado-enunciado, pois resulta da interpretação dos comandos normativos do

antecedente e consequente da norma produzida) – e à finalidade (desajustes entre a

finalidade do lançamento e a os preceitos da NGA).

1.3.2 Plano Semântico

Esta dimensão diz respeito à relação dos signos com o seu objeto (ou

àquilo que se pretende representar). No Direito Positivo, é a relação entre a norma

(signo) e a conduta a ser regulada (objeto)190 ou a relação entre a linguagem

prescritiva e a conduta por ela regulada, analisada do ponto de vista do seu

conteúdo de significação. Aqui se discute o conteúdo propriamente dito da norma

jurídica (tida como proposição normativa), sob vários aspectos: (i) ambiguidade e

vaguidade (possibilidade de mais de uma acepção para o mesmo termo e inexatidão

de competência, e outra a da norma de competência com o consequente da norma de competência. Para um caso e outro, a doutrina convencionou empregar os termos vício de forma e vício de matéria ou, como preferem alguns, invalidade formal e invalidade material. [...] Quando a antinomia é entre instrumento introdutor e antecedente da norma de competência, há vício de forma. A incompatibilidade com o sistema compromete o próprio veículo introdutor, atribuindo a mesma sorte a todos os elementos que forem inseridos pelo instrumento introdutor. De outra parte, naquilo que é de cunho exclusivamente material, o vício de invalidade poderá ser imputado apenas ao enunciado prescritivo conflitante, sem prejuízo dos demais elementos que integram o texto em harmonia com a competência.”

189 Conteúdo, no sentido de conteúdo da norma prescritiva (enunciado-enunciado). 190 ARAUJO, Clarice von Oertzen de. Incidência Jurídica: teoria e crítica. São Paulo: Noeses, 2011, p.

175: “O aspecto semântico dos signos diz respeito à suas relações com os objetos que denotam. O caráter semântico das normas jurídicas diz respeito às relações entre as normas (signos) e as condutas intersubjetivas ou relações (objetos).”

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99

quanto ao significado dos termos jurídicos, respectivamente); (ii) construção da

linguagem competente com base na linguagem das provas; (iii) conotação e

denotação dos termos jurídicos no processo de positivação do Direito;

(iv) intertextualidade (ou dialogismo que existe entre os textos jurídicos);

(v) inesgotabilidade na construção de sentido para as normas jurídicas (a

interpretação é a valoração que o intérprete atribui aos signos; no Direito Positivo, às

normas. Por ser o direito um objeto cultural, essa valoração é passível de mudanças

relativas à significação ou mutações semânticas, de acordo com a própria evolução

das relações intersubjetivas no tempo); (vi) heterogeneidade semântica da norma

jurídica (conteúdos de significação da norma podem variar, segundo a vontade do

legislador, ao escolher as condutas que pretenda regular, para compor as hipóteses

normativas), entre tantos outros.

Todos esses fatores demonstram a necessidade de o indivíduo lidar com

a interpretação (valoração atribuída aos signos/normas) ao trabalhar com o plano

semântico, revelando o meio pelo qual o Direito Positivo se relaciona com a

realidade social.191

É o que se percebe, por exemplo, acerca dos princípios constitucionais da

irretroatividade e anterioridade com relação à vigência (tomada como atributo da

norma, apta para qualificar os fatos irradiando efeitos jurídicos); ambos permitem

estreita correspondência semântica à definição do conceito de vigência. O primeiro

protegendo o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, cuja

interpretação permite afirmar que a lei tributária não pode retroagir para alcançar

fatos ocorridos antes da vigência da nova lei. O lançamento tributário não pode, por

exemplo, alcançar fatos anteriores à vigência da lei que instituiu ou majorou o

tributo; o segundo, visando proteger o contribuinte da surpresa de uma nova

tributação, garante que a nova lei que institua ou majore o tributo incida somente a

partir do próximo exercício financeiro da sua publicação192, de forma que o

191 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Noeses,

2008, p. 212: “Semântica jurídica é o campo das significações do direito. É o meio de referência que as normas guardam com relação aos fatos e comportamentos tipificados. Essa relação é justamente a ponte que liga a linguagem normativa à conduta do mundo social que ela regula. O aspecto semântico nos leva ao tormentoso espaço das acepções dos vocábulos jurídicos, às vezes vagos, imprecisos e multissignificativos.”

192 ARAUJO, Clarice von Oertzen de. Incidência Jurídica: teoria e crítica. São Paulo: Noeses, 2011, p. 176. No mesmo sentido, Paulo de Barros Carvalho (op. cit., p. 408 et seq.).

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100

lançamento só poderá ser lavrado sobre fatos juridicizados a partir da vigência da lei

nova.

Como nosso recorte metodológico limita-se à análise da norma de

lançamento tributário, sob o enfoque do construtivismo lógico-semântico, afastamos

de imediato a pretensão de discorrer mais demoradamente sobre cada um dos

aspectos apontados, focando nosso estudo para dois deles, essenciais à análise

neste plano semiótico: (i) o mecanismo de conotação e denotação no processo de

elaboração da NIC; e (ii) a construção da linguagem competente com base na

linguagem das provas. Vejamos:

1. Conotação e Denotação

Vimos, no estudo da incidência (plano sintático), que a subsunção é uma

operação de inclusão de classes envolvendo os conceitos conotativos da NGA

(hipótese e consequente) e os conceitos denotativos da NIC (fato jurídico e relação

jurídica), de tal forma que o fato jurídico ocupe a posição sintática da hipótese,

enquanto a relação jurídica ocupa a posição do consequente, ambos na NIC

(doravante chamaremos de antecedente e consequente, quando nos referirmos à

NIC). A partir, então, de uma classe que contém vários elementos conotativos

(hipótese da NGA), constrói-se a classe denotativa, que aponta para um elemento

específico que corresponda àquele conceito conotativo, incluindo-o na posição lógica

de antecedente na NIC. Daí dizer-se que “a subsunção é uma operação de inclusão,

que se dá entre classes de extensão diferentes.”193

Esta mesma operação lógica pode ser estudada, também, pelo plano

semântico194; desta feita, serão analisados outros aspectos relativos à subsunção,

voltados à análise do conteúdo da linguagem prescritiva.

Considera-se, neste plano, portanto, não a posição lógica em si a ser

ocupada, mas quais requisitos (características) apresentam os elementos que a

193 CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de Teoria Geral do Direito: o Construtivismo Lógico-

Semântico, São Paulo: Noeses, 2009, p. 445. 194 ARAUJO, Clarice von Oertzen de. Incidência Jurídica: teoria e crítica. São Paulo: Noeses, 2011, p.

158: “Com efeito, a conotação e a denotação foram propriedades atribuídas por Peirce aos signos simbólicos, como é o caso das leis jurídicas. A conotação define a profundidade, enquanto a denotação define a extensão dos símbolos. Os símbolos são a forma mais perfeita de signos porque contêm em si outras formas sígnicas: enquanto a conotação define o caráter icônico do símbolo, a denotação marca seu aspecto indicial. [...] Não há como se positivar o direito sem a semiose, sem a geração sucessiva de camadas de linguagem produzidas em função metalingüística prescritiva.”

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101

ocupam. Trata-se de uma operação de denotação dos conteúdos da NIC (conceito

concreto), a partir daqueles definidos pela NGA (conceito abstrato), ou seja, somente

aquele conceito que se subsume, integralmente, aos conteúdos de significação da

hipótese da NGA poderá ingressar no antecedente da NIC. Isto se dá pela incidência

ou aplicação promovida pelo homem, pressuposto da passagem da abstração à

concretude do direito.

Se pensarmos no lançamento tributário teremos, então, que o aplicador

do Direito, ao analisar o evento ocorrido no mundo fenomênico e ao identificar a

perfeita correspondência de suas características àquelas contidas no preceito

normativo em abstrato – NGA (em obediência ao princípio da tipicidade) –, lavrará

um instrumento normativo (NIC), em cujo antecedente constituirá o fato jurídico

tributário (sustentável pela linguagem das provas), instaurando-se, imediata e

infalivelmente, a relação jurídica tributária capaz de irradiar os efeitos jurídicos

previstos na NGA. Exemplo: a autoridade administrativa, ao verificar a ocorrência de

circulação de mercadoria, de acordo com a linguagem das provas e com

fundamento na NGA, deverá produzir o “ato-norma” de lançamento, em que, por

meio de linguagem competente, constituirá o fato jurídico tributário – circulação de

mercadoria em determinadas condições de tempo e lugar; como decorrência deste

fato, instaurar-se-á, imediata e infalivelmente, a relação jurídica entre os sujeitos de

direito, determinando que João deve pagar o ICMS ao Estado de São Paulo. Não

poderá, entretanto, lavrar lançamento sobre a simples transferência de bens de uma

unidade a outra da mesma empresa, caso em que não se configura o fato jurídico

tributário. Nesse sentido, a decisão do STJ:

PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C, DO CPC. ICMS. TRANSFERÊNCIA DE MERCADORIA ENTRE ESTABELECIMENTOS DE UMA MESMA EMPRESA. INOCORRÊNCIA DO FATO GERADOR PELA INEXISTÊNCIA DE ATO DE MERCANCIA. SÚMULA 166/STJ. DESLOCAMENTO DE BENS DO ATIVO FIXO. UBI EADEM RATIO, IBI EADEM LEGIS DISPOSITIO. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC NÃO CONFIGURADA. 1. O deslocamento de bens ou mercadorias entre estabelecimentos de uma mesma empresa, por si, não se subsume à hipótese de incidência do ICMS, porquanto, para a ocorrência do fato imponível é imprescindível a circulação jurídica da mercadoria com a transferência da propriedade. (Precedentes do STF: AI 618947 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 02/03/2010. […] 2. "Não constitui fato gerador de ICMS o simples

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102

deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte." (Súmula 166 do STJ).195

Ressalte-se que, para que seja constituído o lançamento, todos os

critérios elencados na RMIT (NGA) devem ser apontados como elementos da NIC

(denotação), ou seja, devem ser identificados no antecedente desta norma, o

elemento material – circular mercadoria; o elemento temporal – data da ocorrência

do evento (reportando-se a um tempo do passado ou tempo no fato); o elemento

espacial – local onde ocorreu o evento; no consequente, o elemento pessoal –

sujeito ativo, o Estado de São Paulo, e sujeito passivo, aquele que deverá cumprir a

prestação; o elementos quantitativo – representado pela base de cálculo e alíquota,

que determinarão o valor a ser pago como tributo.

2. A construção da linguagem competente com base na linguagem das

provas

Tão importante quanto a estrutura lógica da NIC que constitui o crédito

tributário, deve ser, também, a linguagem que preenche esta estrutura (linguagem

competente). Uma das premissas do nosso estudo é de que o Direito Positivo se

constitui pela linguagem, mais especificamente pela linguagem competente do

Direito. Significa dizer que só ingressa no sistema jurídico aquilo que for vertido em

linguagem jurídica196. Não interessam para o Direito Positivo os acontecimentos

(fatos sociais) ocorridos no mundo fenomênico, uma vez que se perdem no tempo.

Além disso, um acontecimento pode interessar a outros segmentos alheios ao

Direito, por exemplo, à Sociologia, à Economia, à Antropologia etc.

O que interessa ao Direito deve ser vertido em linguagem específica, de

forma a relatar os aspectos jurídicos daquele acontecimento (evento), perpetuando-o

no tempo. Reporta-se, portanto, sempre ao passado, descrevendo algo já

195 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 1068651/SC.

Relator: Min. Eliana Calmon. Julgamento: 05 mar. 2009. Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação: DJe 02 abr. 2009, grifos nossos).

196 TOMÉ, Fabiana Del Padre. A Prova no Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2008, p. 34: “É o sistema do direito que determina o que nele existe ou não. Para tanto, elege uma forma lingüística específica, que denominamos linguagem competente. Somente por meio dela é que a realidade jurídica se constitui, o que, por si só, revela a importância das provas no ordenamento como um todo, inclusive na esfera tributária.” No mesmo sentido, Aurora Tomazini de Carvalho (Curso de Teoria Geral do Direito: o Construtivismo Lógico-Semântico, São Paulo: Noeses, 2009, p. 505): “Não se pode esquecer que é a linguagem do direito, e somente ela, que constitui a realidade jurídica. A incidência normativa (como já vimos) não se dá com a mera ocorrência do evento, sem que este adquira expressão em linguagem competente.”

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103

acontecido. Esse relato em linguagem competente constituirá o que chamamos de

“fato jurídico” e deve fundar-se, indubitavelmente, em outra linguagem: a linguagem

das provas197, também esta, regulada pelo sistema. Daí dizer-se sobre “as provas

em direito admitidas”. Provas serão aquelas indicadas pelo sistema jurídico, a

exemplo das notas fiscais no Direito Tributário, comprovando que houve,

efetivamente, uma venda, permitindo, então, a constituição do fato jurídico tributário

sobre o qual recairá a tributação.198

Mais que isso, o sistema, além de indicar as provas que deverão

sustentar a constituição do fato jurídico, determina (como já vimos) o procedimento e

o agente competente para a sua produção.

Assim, o que entra validamente para o sistema é o produto da incidência,

(promovida pelo homem), conforme os preceitos de competência e procedimento

autorizados pelo sistema. Na seara tributária é o “ato-norma” de lançamento que

imputa os efeitos jurídicos ao fato jurídico tributário (sustentado pela linguagem das

provas), produzido conforme o procedimento prescrito e agente competente.

1.3.2.1 DO ERRO DE FATO E ERRO DE DIREITO

Com relação ao “erro de fato” e “erro de direito”, pode-se dizer que ambos

decorrem de uma falha de interpretação da linguagem normativa – exclusivamente

da NIC, no primeiro caso, e entre a NGA e a NIC, no segundo.

O erro de fato é uma falha na constituição do fato jurídico tributário (na

construção da linguagem competente), resultado de uma inadequação da

interpretação dos conceitos denotativos da NIC, quando da elaboração da motivação

(no antecedente da NIC), frente às provas apresentadas, ou seja, é a constituição de

um fato jurídico que não se sustenta pela linguagem das provas (seja pela

insuficiência de dados probatórios, seja pela constituição indevida da linguagem

frente às provas existentes). É um “defeito” que se apresenta no interior da NIC

197 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Noeses,

2008, p. 824: “Fato jurídico é aquele, e somente aquele, que puder expressar-se em linguagem competente, isto é, segundo as qualificações estipuladas pelas normas do direito positivo. [...] Transmitido de maneira mais direta: fato jurídico requer linguagem competente, isto é, linguagem das provas, sem o que será mero evento, a despeito do interesse que possa suscitar no contexto da instável e turbulenta vida social.”

198 TOMÉ, Fabiana Del Padre. A Prova no Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2008, p. 35.

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104

(portanto, intranormativo199), que se demonstra mais facilmente pela análise do

lançamento no plano semântico. Exemplos: (i) a constituição do fato jurídico

tributário diz que o IPTU deve ser pago ao Município X ao invés do Município Y, por

um erro na avaliação das provas (escritura do imóvel) – houve um “erro” quanto ao

critério espacial do fato jurídico; (ii) a constituição de um fato jurídico – circulação de

mercadoria – sem as notas fiscais que comprovem que tal evento realmente ocorreu.

Em ambos os casos, houve uma interpretação errada acerca dos elementos

probatórios que sustentam a constituição do fato jurídico tributário. Atente-se que o

“erro de fato” pode, também, estar relacionado à constituição inadequada do

consequente da norma introduzida, como a indicação equivocada do sujeito passivo

do fato relacional. Exemplo: é atribuída ao locatário a tributação do IPTU, quando

deveria ter sido ao dono do imóvel.

Já, o erro de direito resulta da não coincidência entre a interpretação dos

conceitos conotativos da NGA e os conceitos denotativos da NIC e pode ocorrer

entre a hipótese da NGA e o antecedente da NIC, como também entre os conceitos

que definem os critérios do fato relacional no consequente da NGA e os elementos

apontados no estabelecimento da relação jurídica prescrita no consequente da NIC.

Trata-se de um problema de subsunção entre os dois enunciados prescritivos: da

NGA e da NIC (portanto, internormativo), que se evidencia tanto pela análise do

lançamento, sob a ótica do plano sintático, quanto do plano semântico. Exemplo: por

um erro na interpretação dos critérios da hipótese da NGA, o agente competente

imputa a um fato jurídico que se subsume à RMIT do ISS a tributação relativa ao

ICMS. Houve um erro na interpretação das NGA e NIC, levando à cobrança da

exação sobre um fato jurídico tributário capaz de gerar uma tributação; porém, não

aquela incidida pelo aplicador.

Paulo de Barros Carvalho200 conclui, acerca de erro de fato e erro de

direito, que: (i) se o desajuste de linguagem ocorrer no interior da NIC (antecedente

ou consequente), será um erro de fato; (ii) em se tratando de erro de fato, estaremos

199 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 453

et seq.): “Lembremo-nos que o erro de fato é um problema intranormativo, um desajuste interno na estrutura do enunciado, por insuficiência de dados lingüísticos informativos ou pelo uso indevido de construções de linguagem que fazem as vezes de prova. Esse vício da composição semântica do enunciado pode macular tanto a oração do fato jurídico tributário como aquela do consequente, em que se estabelece o vínculo relacional. Ambas residem no interior da norma e denunciam a presença de erro de fato.”

200 Ibid., p. 455.

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falando, obrigatoriamente, de uma NIC; (iii) quando o desalinho linguístico envolver

uma NGA e outra NIC, estaremos falando de erro de direito; (iv) qualquer desalinho

envolvendo a alíquota ou o sujeito ativo será sempre um erro de direito, posto que

estes dois fatores não são construídos na NIC, mas definidos pela NGA, assim,

necessariamente, haverá o envolvimento das duas normas.

Tácio Lacerda Gama201 ressalva que, embora a expressão erro não seja a

mais adequada para caracterizar esses desajustes linguísticos (haja vista que sua

acepção remete à linguagem descritiva, relacionando-se à ideia de verdade), foi

adotada pela doutrina e pela jurisprudência para “expressar a criação ilícita de

normas”. Afirma, ainda, que a diferença entre o erro de fato e o erro de direito é

relevante para a imputação dos efeitos jurídicos de cada um (possibilidade de

revisão da norma no caso de erro de fato e impossibilidade no caso de erro de

direito, uma vez que o Direito se presume conhecido por todos; assim, a

Administração não pode fundamentar a revisão pelo seu desconhecimento)202 e se

detecta pela forma como se manifesta a incompatibilidade linguística: entre a NIC e

a norma que lhe serve de fundamento de validade, no erro de direito e, entre a NIC e

a linguagem das provas, no erro de fato.

Cláudia Magalhães Guerra203, seguindo a mesma linha de entendimento,

diz que tanto o erro de fato quanto o erro de direito são defeitos encontrados na

motivação do ato: “(i) na enunciação dos motivos que ensejam a aplicação da norma

geral e abstrata no caso concreto (erro de fato); ou (ii) na declaração da ocorrência

da subsunção entre o motivo do ato e o motivo legal (erro de direito).”

201 GAMA, Tácio Lacerda. Competência Tributária: Fundamentos para uma Teoria da Nulidade. São

Paulo: Noeses, 2009, p. 336 et seq.: “Assim, o erro de fato e o erro de direito designam, respectivamente, incompatibilidade da norma individual e concreta com a norma que lhe serve de fundamento; e incompatibilidade da norma individual e concreta com a linguagem das provas. No primeiro caso, a norma viola a competência. No segundo, a violação é indireta, pois a norma constitui fato diverso daquele que era para ser constituído. [...] Esta distinção, mesmo tendo como pano de fundo a violação da competência, é relevante, pois o direito positivo imputa efeitos distintos conforme se reconheça erro de fato ou erro de direito. Como regra, a posterior constatação de erro de direito, em normas criadas pela Administração Pública e que sejam favoráveis ao contribuinte, não ensejam revisão. Porém, caso o erro seja de fato, a norma poderá ser revista com fundamento expresso no que dispõe o art. 149 do CTN.”

202 Estevão Horvath diverge deste entendimento doutrinário. Segundo ele, ambos os erros, de fato e de direito, ensejam revisão por afronta ao princípio da legalidade, ou seja, há “uma inadequação do ato praticado àquilo que abstratamente previu a norma que lhe serviu de fundamento” (Lançamento Tributário e “Autolançamento”. 2. ed. revista e ampliada. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2010, p. 93).

203 GUERRA, Cláudia Magalhães. Lançamento Tributário & sua invalidação. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008, p. 191.

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Trazemos à colação decisões jurisprudenciais que ilustram as situações

de “erro de fato” e “erro de direito”:

a) Erro de fato

AgRg no REsp 30272 / MG AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL 2011/0099600-0 PROCESSO CIVIL. TRIBUTÁRIO. IPTU. DIFERENÇA NO PADRÃO DE ACABAMENTO DO IMÓVEL. REVISÃO DO LANÇAMENTO. POSSIBILIDADE. ERRO DE FATO. CARACTERIZAÇÃO. ART. 149, INCISO VIII, DO CTN. RECURSO REPETITIVO JULGADO. RESP 1130545/RJ. 1. Trata-se de recurso especial interposto contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais que decidiu pela legalidade da revisão de lançamento do IPTU relativo ao exercício de 1998, com fundamento no art. 149, inciso VIII, do CTN. 2. O Tribunal a quo, ao analisar acerca da revisão de lançamento do IPTU, decidiu que "[…] razão não assiste ao apelante, pois o desacerto no cálculo do IPTU decorrente da apuração do padrão de acabamento do imóvel configura erro de fato, podendo o mesmo ser corrigido, de ofício, conforme a regra dos artigos 145 c/c 149, VIII, ambos do Código Tributário Nacional, sem que tal fato implique violação ao princípio da irretroatividade da exação […]". 3. Pela leitura do trecho acima, verifica-se que o lançamento original reportou-se a um padrão de acabamento diferente da realidade, o que ensejou posterior retificação dos dados, hipótese que se enquadra no disposto no artigo 149, inciso VIII, do CTN, razão pela qual conclui-se pela higidez da revisão do lançamento tributário. 4. Dessa forma, como o lançamento complementar decorreu de um verdadeiro erro de fato, qual seja, erro no padrão do acabamento do imóvel, possível a revisão do lançamento tributário (artigo 149, inciso VIII, do CTN). 5. No REsp 1130545/RJ, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 09/08/2010, DJe 22/02/2011, submetido ao Colegiado pelo regime da Lei nº 11.672/08 (Lei dos Recursos Repetitivos), que introduziu o art. 543-C do CPC, reafirmou-se o posicionamento acima exposto 6. Agravo regimental não provido.204

b) Erro de direito:

AgRg no AgRg no Ag 1136182 / SP AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 2008/0281259-8 PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO ESPECIAL. IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. DISCUSSÃO ACERCA DA OCORRÊNCIA DE ERRO DE DIREITO. NECESSIDADE DE REEXAME DE PROVAS. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. REVISÃO DO LANÇAMENTO. SÚMULA 227/TFR.

204 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial 30272/MG. Relator:

Min. Mauro Campbell Marques. Julgamento: 20 out. 2011. Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação: DJe 27 out. 2011, grifo nosso.

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1. O Tribunal de origem proferiu decisão adotando como fundamento o conjunto fático-probatório dos autos, concluindo que não houve erro na declaração do contribuinte a ensejar a revisão do lançamento. Diante desse contexto, mostra-se inviável a reforma do entendimento adotado pelo Tribunal de origem, sob pena de violação da Súmula 7/STJ. 2. Agravo regimental desprovido.205

1.3.3 Plano Pragmático

Como vimos, a incidência analisada sob esta ótica resulta da operação de

interpretação e constituição de nova linguagem jurídica (semântica), dentro de um

determinado contexto206. Daí podermos concluir pela estreita ligação (praticamente

indissociável) entre os planos semântico e pragmático de análise da norma jurídica.

É, também, o plano de investigação semiótica que mais se aproxima da

concretude do direito207, posto que a dimensão significativa dos enunciados jurídicos

resulte de um contínuo processo dialógico entre a sua interpretação e a sua

aplicação208; ou, expressando-se de outra maneira, trata-se da forma como seus

usuários, aqui considerados os “observadores” e “participantes do sistema”209,

entendem e aplicam o direito, respectivamente. Sob este enfoque, a pragmática

interessa aos “observadores” como um fator que preserva o princípio da segurança

205 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo Regimental no Agravo de

Instrumento 1136182/SP. Relator: Min. Denise Arruda. Julgamento: 19 nov. 2009. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJe 10 dez. 2009.

206 ARAUJO, Clarice von Oertzen de. Incidência Jurídica: teoria e crítica. São Paulo: Noeses, 2011, p. 178: “Em verdade, a concepção semântica de um signo, separada de seu contexto de ação, nunca foi proposta por Peirce, que notadamente associava o significado à intencionalidade, e, portanto, à dimensão pragmática.”

207 Ibid., p. 179: “Chegando ao exame da dimensão pragmática da ordem jurídica, estamos nos dirigindo ao seu aspecto mais positivo, concreto. [...] a dimensão pragmática de uma ordem jurídica cresce na razão direta de sua positivação.”

208 Ibid., p. 182: “A pragmática jurídica compreende o direito como um sistema interacional, encarando-o como um discurso em elaboração, em continuidade.”

209 GAMA, Tácio Lacerda. Competência Tributária: Fundamentos para uma Teoria da Nulidade. São Paulo: Noeses, 2009, p. 128 et seq.: “O resultado projetado pela interpretação dos observadores e participantes é radicalmente distinto. [...] Os participantes seriam órgãos do sistema de direito positivo que interpretam e aplicam normas, produzindo, assim, mais normas. Esses sujeitos positivam as suas interpretações. Já os observadores, diversamente, expõem aquilo que entendem da leitura dos textos legais. Fixam conceitos, classificações e sugerem como deve ser entendida a norma. Ao fazer isso, produzem doutrina, ciência jurídica, não direito positivo. [...] esse sujeito participante, por imposições operacionais do próprio sistema, não pode perceber sistemas plurais, incoerentes ou lacunosos. Tampouco pode decidir afirmando que muitas outras poderiam ser as decisões, pelo fato de o sistema ser vago, ambíguo ou, simplesmente, inconsistente. Sua função, como órgão credenciado a produzir o direito, é agir em nome da unidade, coerência e completude. [...] O que é relevante perceber, especialmente para discernir as diferentes posições existentes sobre cada um dos atributos do sistema, é que os discursos dos observadores e dos participantes são distintos, pois cumprem funções pragmáticas que em nada se confundem.”

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jurídica; entender como se comporta a norma jurídica, ou seja, como a norma regula

coercitivamente as relações intersubjetivas, garante estabilidade ao sistema. Quanto

aos “participantes”, interessa a aplicação da norma, ou seja, interessa como o

sistema pretende aplicar o direito positivo para que interfira, efetiva e

coercitivamente, nas condutas que pretenda regular.

Enquanto a sintaxe e a semântica se ocupam da norma jurídica enquanto

processo de produção, privilegiando aspectos relacionados ao seu fundamento de

validade e acepções jurídicas possíveis, respectivamente, a Pragmática volta seu

interesse para a forma como a norma jurídica alcança a sua finalidade, ou seja,

como interfere coercitivamente nas condutas intersubjetivas, a partir do significado

que o sistema do direito positivo (do ponto de vista dos participantes) elege, para

implementar os valores pretendidos, num dado contexto. Assim, podemos analisar a

construção do significado da norma, no plano pragmático, sob dois aspectos:

(I) Da construção da NIC: o significado traduzido pelo comando

normativo, na dimensão pragmática, está intimamente relacionado à eficácia (tanto

técnica quanto jurídica), bem como à vigência da norma. Vejamos: a eficácia técnica

(tida como a qualidade da norma capaz de descrever fatos que possam irradiar

efeitos jurídicos) nos diz qual norma jurídica deva ser aplicada, uma vez que “aplicar

uma norma significa positivar uma das infinitas interpretações possíveis a serem

atribuídas aos textos jurídicos.”210; a eficácia jurídica (tida como qualidade do fato

jurídico apto a desencadear os efeitos previstos pelo ordenamento) nos diz que

somente aos fatos constituídos de acordo com as exigências do sistema, ou seja,

sustentáveis pela linguagem das provas, poderão ser imputados os efeitos

prescritos; e a vigência (tida como qualidade da norma pronta para produzir os

efeitos jurídicos) nos diz da possibilidade daquela norma que foi escolhida produzir

efeitos imediatamente211. Trata-se, portanto, de uma operação de interpretação dos

conceitos da NGA e de constituição do fato jurídico - de produção normativa212

(produção da NIC), conforme se observa da decisão abaixo.

a) ADI 3694/AP

210 CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de Teoria Geral do Direito: o Construtivismo Lógico-

Semântico, São Paulo: Noeses, 2009, p. 464. 211 Seguindo uma das premissas estabelecidas neste trabalho – a de que o direito positivo constitui

sua própria realidade –, não tratamos da pragmática em relação à eficácia social, posto que esta esteja fora do direito positivo, cabendo à sociologia jurídica enfrentar o tema.

212 Ibid., p. 451.

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109

EMENTA: I. Ação direta de inconstitucionalidade: L. 959, do Estado do Amapá, publicada no DOE de 30.12. 2006, que dispõe sobre custas judiciais e emolumentos de serviços notariais e de registros públicos, cujo art. 47 - impugnado - determina que a "lei entrará em vigor no dia 1º de janeiro de 2006": procedência, em parte, para dar interpretação conforme à Constituição ao dispositivos questionado e declarar que, apesar de estar em vigor a partir de 1º de janeiro de 2006, a eficácia dessa norma, em relação aos dispositivos que aumentam ou instituem novas custas e emolumentos, se iniciará somente após 90 dias da sua publicação. II. Custas e emolumentos: serventias judiciais e extrajudiciais: natureza jurídica. É da jurisprudência do Tribunal que as custas e os emolumentos judiciais ou extrajudiciais têm caráter tributário de taxa. III. Lei tributária: prazo nonagesimal. Uma vez que o caso trata de taxas, devem observar-se as limitações constitucionais ao poder de tributar, dentre essas, a prevista no art. 150, III, c, com a redação dada pela EC 42/03 - prazo nonagesimal para que a lei tributária se torne eficaz.213

Se pensarmos, então, que o “ato-norma” de lançamento é a constituição

de uma nova linguagem jurídica (NIC), este aspecto da dimensão pragmática deve

voltar-se à interpretação da linguagem das provas, que levam o aplicador à

constituição do fato jurídico, por exemplo, o exame das notas fiscais, indicando que

houve a venda de um produto; e à interpretação da norma geral a ser aplicada ao

caso concreto. Realizadas as duas operações, então, restará a produção da nova

linguagem normativa (NIC).

(II) Da construção do significado pelo aplicador: a construção do

significado da norma num determinado contexto, sob este aspecto, trata, em

verdade, da escolha de um dentre os vários significados possíveis previstos na

NGA, diante da configuração de um fato, em determinado tempo. Relaciona-se ao

significado imputado a determinado fato, no contexto em que ele está inserido, em

determinado momento histórico. Reflete o dialogismo entre o social e o jurídico,

representado pelo discurso evolutivo do Direito voltado à realização dos valores que

a sociedade pretenda prestigiar. Nesse sentido, podemos citar as construções

jurisprudenciais que apontam o significado da norma jurídica como motivação para a

ação humana de aplicação do Direito. Significa dizer que a norma é aquilo que os

tribunais competentes para interpretá-la em última instância dizem que ela é. São

inúmeros os exemplos na seara tributária, das inferências jurisprudenciais acerca

213 PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Apelação Cível 6975660/PR. Relator: Fabio

Andre Santos Muniz. Julgamento: 16 ago. 2010. Órgão Julgador: Quinta Câmara Cível. Publicação: DJ 456 23 ago. 2010 (grifos nossos).

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dos significados atribuídos às normas jurídicas. Vejamos algumas delas a título

ilustrativo.

a) RESP 157035/SC 18.06.2001 TRIBUTÁRIO - COFINS – VENDA DE IMÓVEIS: INCIDÊNCIA. 1. O fato gerador da COFINS é o faturamento mensal da empresa, assim considerada a receita bruta de vendas de mercadorias e de serviços. 2. A empresa que comercializa imóveis é equiparada a empresa comercial, e, como tal, tem faturamento com base nos imóveis vendidos, como resultado econômico da atividade empresarial exercida. 3. A noção de mercadoria do Código Comercial não é um instituto, e sim um conceito que não pode servir de fundamento para a não-incidência de um segmento empresarial que exerce o comércio. 4. Embargos de divergência conhecidos e recebidos.214

b) RE 592905/SC EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO TRIBUTÁRIO. ISS. ARRENDAMENTO MERCANTIL. OPERAÇÃO DE LEASING FINANCEIRO. ARTIGO 156, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. O arrendamento mercantil compreende três modalidades, [i] o leasing operacional, [ii] o leasing financeiro e [iii] o chamado lease-back. No primeiro caso há locação, nos outros dois, serviço. A lei complementar não define o que é serviço, apenas o declara, para os fins do inciso III do artigo 156 da Constituição. Não o inventa, simplesmente descobre o que é serviço para os efeitos do inciso III do artigo 156 da Constituição. No arrendamento mercantil (leasing financeiro), contrato autônomo que não é misto, o núcleo é o financiamento, não é uma prestação de dar. E financiamento é serviço, sobre o qual o ISS pode incidir, resultando irrelevante a existência de uma compra nas hipóteses do leasing financeiro e do lease-back. Recurso extraordinário a que se nega provimento.215

1.3.3.1 Da alteração do critério jurídico

Embora a doutrina comumente aborde o tema relacionando-o ao estudo

sobre erro de direito, optamos por trazê-lo na discussão do plano pragmático, por

entendermos que, diversamente de um problema de subsunção ou de interpretação

(plano sintático e semântico, respectivamente), trata-se de uma escolha do

214 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Divergência no Recurso Especial 157035/SC.

Relator: Min. José Delgado. Julgamento: 18 jun. 2001. Órgão Julgador: Primeira Seção. Publicação: DJ 10 set. 2001, p. 270, grifo nosso.

215 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Extraordinário 592905/SC. Relator: Min. Eros Grau. Julgamento: 02 dez. 2009. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: Repercussão Geral – Mérito.

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111

participante do sistema acerca da norma a ser aplicada, de acordo com o contexto

jurídico pretendido, diferindo, portanto, do erro de direito.

É o que leciona Alberto Xavier216 ao diferençar o erro de direito e a

alteração de critério jurídico:

O erro de direito ocorre quando não seja aplicada a lei ou a má aplicação desta seja notória e indiscutível. Por sua vez, a mudança de critério jurídico ocorre em duas situações distintas: uma primeira, consiste na substituição, pelo órgão de aplicação do direito, de uma interpretação por outra, sem que se possa dizer que qualquer uma delas seja incorreta; uma segunda, consiste na substituição de um critério por outro que, alternativamente, a lei faculta ao Fisco, como sucede no caso do arbitramento do lucro das pessoas jurídicas.

Apoiada nas lições deste doutrinador, Cláudia Magalhães Guerra217

afirma que, no caso da alteração de critério jurídico, em nenhum momento se

configura algum tipo de erro, seja na constituição do fato jurídico – erro de fato –,

seja na não coincidência entre o motivo legal (NGA) e a motivação (NIC) – erro de

direito –, portanto não há falar-se em invalidação da norma produzida, nesta

hipótese, por qualquer tipo de vício (elemento caracterizador da invalidação da NIC).

Além do que, essa nova interpretação somente poderá ser aplicada a casos futuros;

jamais a fatos jurídicos pretéritos, constituídos sob a égide do sistema vigente

àquela época, uma vez que alteração do critério jurídico significa modificar a própria

norma que irá definir o fato jurídico tributário. Caso retroaja, confrontará, sem dúvida,

o princípio da segurança jurídica que decorre da previsibilidade do administrado, ou

seja, do direito que o contribuinte tem de planejar suas ações, prevendo o montante

216 XAVIER, Alberto. Do Lançamento: Teoria Geral do Ato, do Procedimento e do Processo Tributário.

2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 254. Também na página 259 este autor, assim se refere sobre as distinções entre erro de direito e alteração de critério jurídico: “A nota distintiva entre erro de direito e a modificação dos critérios jurídicos está em que o primeiro tem caráter individual, ou seja, refere-se a uma nova apreciação pela mesma autoridade (ou seu superior hierárquico) de um caso concreto, apreciação essa em relação à qual se constata ter havido defeituosa interpretação ou aplicação da lei; enquanto a segunda tem caráter genérico, no sentido de que a ‘fonte’ da modificação é um ato genérico visando uma pluralidade indeterminada de casos, em relação aos quais se entendeu adotar uma ‘nova interpretação’ da lei.

217 GUERRA, Cláudia Magalhães. Lançamento Tributário & sua invalidação. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008, p. 131: “Intuímos, portanto, que, nas hipóteses em que ocorra alteração de critérios jurídicos, nos afastamos da possibilidade de invalidação da norma individual e concreta por vício, pois, em última análise, a invalidação constitui a retirada de um ato por vício contemporâneo à sua expedição.”

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da tributação ao qual deverá submeter-se. É o que prescreve o CTN, art. 146218,

conforme, também, entendimento dos tribunais. Vejamos.

a) RECURSO ESPECIAL REsp 881804 / RS 2006/0133960-0 MODIFICAÇÃO DE CRITÉRIO JURÍDICO. LANÇAMENTOS ANTERIORES. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE. CAUÇÃO. CERTIDÃO POSITIVA COM EFEITO DE NEGATIVA. VIABILIDADE. CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. BENEFÍCIO DE ORDEM. 1. O reenquadramento de contribuinte pelo Fisco de autarquia para empresa pública, em decorrência de decisão do Supremo, que examinou a natureza jurídica da entidade, não autoriza a cobrança das diferenças tributárias porventura existentes antes dessa alteração. Incidência do art. 146 do CTN. 2. "A mudança de critério jurídico adotado pelo Fisco não autoriza a revisão de lançamento" (Súmula 227 do extinto Tribunal Federal de Recursos). 3. É lícito ao contribuinte, antes do ajuizamento da execução fiscal, oferecer caução no valor do débito inscrito em dívida ativa com o objetivo de, antecipando a penhora que garantiria o processo de execução, obter certidão positiva com efeitos de negativa. Precedentes da Turma e da Seção. 4. A responsabilidade solidária pelo adimplemento da contribuição previdenciária na contratação de quaisquer serviços por cessão de mão-de-obra somente fica elidida caso o executor comprove o recolhimento prévio das contribuições incidentes sobre a remuneração dos segurados incluída na nota fiscal ou fatura correspondente aos serviços executados no momento da quitação. Precedentes. 5. Recurso especial provido em parte.219

b) AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. REDUÇÃO TARIFÁRIA. REVISÃO DO LANÇAMENTO. ERRO DE DIREITO. SÚMULA Nº 227/TFR. EMENTA - "A mudança de critério jurídico adotado pelo Fisco não autoriza a revisão de lançamento" (Súmula nº 227/TFR). - Precedentes desta Corte. - Agravo regimental improvido.220

c) AC 34164 DF 2001.01.00.034164-5 DESEMBARGADORA FEDERAL MARIA DO CARMO CARDOSO 04/10/2005 PUB. 21/10/2005 DJ p. 86 TRIBUTÁRIO. MUDANÇA DE CRITÉRIOS JURÍDICOS. ART. 146 DO CTN.

218 Art. 146, CTN: “A modificação introduzida, de ofício ou em conseqüência de decisão administrativa

ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto ao fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução.”

219 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 881804/RS. Relator: Min. Castro Meira. Julgamento: 14 fev. 2007. Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação: DJ 02 mar. 2007, p. 288 (grifos nossos).

220 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial 423093/PR. Relator: Min. Francisco Falcão. Julgamento: 27 ago. 2002. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJ 21 out. 2002, p. 290. (grifos nossos).

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1. O lançamento de ofício e sua revisão demandam a presença de uma das hipóteses do art.149 do CTN, o que não se vê no caso concreto. 2. Alegação de presença de fraude, erro e outros fatos não elencados na impugnação aos Embargos é inaceitável, tendo em mira que a apelação não pode aditar a peça inicial de defesa, na qual todos os fundamentos do Embargado devem ser lançados. Além disso estas hipóteses não foram comprovadas. 3. Revisão do lançamento caracterizada por modificação no critério jurídico usado no momento do lançamento, em afronta ao art. 146 do CTN 4. Apelação e remessa oficial improvidas.221

d) Súmula 227 do antigo TFR: "A mudança de critério jurídico adotado pelo fisco não autoriza a revisão do lançamento". No mesmo sentido do RE n° 100.481/SP, Rel. Min. Carlos Madeira, RTJ 122/636.222

1.4 AS NOVAS TECNOLOGIAS E A CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO

Sabemos que o conhecimento científico está condicionado pelo meio

envolvente que o informa – o contexto. O Direito Positivo, considerado como um dos

subsistemas sociais, não pode esquivar-se à evolução cultural desta sociedade na

qual está inserido, de tal forma que, ao regular as condutas intersubjetivas, deve

considerar os meios atuais (instrumentos) pelos quais pode concretizá-lo.

A realização ou positivação do direito – da abstração à concretude –

reveste-se de formalidade, expressando-se pela linguagem jurídica (linguagem

competente do direito), sustentada pela linguagem das provas. Assim, somente

aquilo que for vertido em linguagem competente poderá ingressar no sistema do

Direito Positivo, restando apto a produzir efeitos jurídicos. Em outros termos,

qualquer evento que, porventura, venha a acontecer no mundo fenomênico,

somente alçará a categoria de fato jurídico, se for vertido em linguagem específica. A

partir da constituição do fato jurídico instaura-se uma relação jurídica, automática e

infalivelmente, representando o vínculo que passa a existir entre os sujeitos

envolvidos naquela relação. Este processo, promovido pelo homem, é chamado de

incidência (produção de uma norma individual e concreta a partir de outra, geral e

abstrata que lhe serve de fundamento). É assim que o Direito se move, se constrói.

221 BRASIL. Tribunal Regional Federal da Primeira Região. Apelação Cível 34164/DF. Relator:

Desembargadora Federal Maria do Carmo Cardoso. Julgamento: 04 out. 2005. Órgão Julgador: Oitava Turma. Publicação: DJ 21 out. 2005, p. 86 (grifos nossos).

222 BRASIL. Tribunal Federal de Recursos. Súmula 227. Julgamento: 18 nov. 1986. Publicação: DJ 24 nov. 1986 (grifo do autor).

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114

A constituição desta linguagem normativa, exigência estrutural do sistema

jurídico, pode ser formalizada, no Direito Tributário, tanto pela Administração Pública

(Fisco) quanto pelo administrado (contribuinte ou responsável), de acordo com os

preceitos que regulam tal atividade. Fato é que somente pela constituição da norma

de incidência tributária (ato-norma de lançamento) será possível a exigência do

cumprimento da obrigação tributária – pagamento do tributo.

Tal linguagem, sempre documental (escrita), há muito vem sendo

formalizada por meio de notas e livros fiscais, registros, guias de recolhimento etc.,

não só para a constituição da obrigação tributária, como também para a produção

das provas que sustentará a constituição do fato jurídico tributário. Com a evolução

tecnológica, porém, a Administração rendeu-se à possibilidade de utilização de

meios eletrônicos (suportes físicos) que cumpram tais finalidades: formalizar a

linguagem competente do direito, tanto para a produção de normas individuais e

concretas (normas de incidência), como para a produção de provas.

Atualmente, a validade do ato administrativo eletrônico vem regulada

(i) pela Lei n. 9784/99, art. 22, §1º, que exige que os atos do processo administrativo

sejam produzidos por escrito, com data e local de sua realização e a assinatura do

responsável; (ii) pela Medida Provisória n. 2200-2/2001, que criou a Infraestrutura de

Chaves Públicas Brasil/ICP-Brasil, estabelecendo presunção de veracidade aos

documentos eletrônicos assinados digitalmente e certificados por aquele órgão (ICP-

Brasil); e (iii) também pelo Decreto n. 3505/2000, que instituiu a Política de

Segurança da Informação, estabelecendo os pressupostos223 relativos à segurança:

(i) assegurar a garantia ao direito individual e coletivo das pessoas à inviolabilidade

da sua intimidade e ao sigilo da correspondência e das comunicações, nos termos

previstos na Constituição; (ii) proteção de assuntos que mereçam tratamento

especial; (iii) capacitação dos segmentos das tecnologias sensíveis; (iv) uso

soberano de mecanismos de segurança da informação, com domínio de tecnologias

sensíveis e duais: (v) criação, desenvolvimento e manutenção de mentalidade de

segurança da informação: (vi) capacitação científico-tecnológica do País para o uso

da criptografia na segurança e defesa do Estado: (vii) a conscientização dos órgãos

223 FERRAGUT, Maria Rita; SILVA, Renata Elaine (Orgs.). Direito Tributário Eletrônico. São Paulo:

Saraiva, 2010, p. 29.

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115

e das entidades da Administração Pública Federal sobre a importância das

informações processadas e sobre o risco da sua vulnerabilidade.

Segundo Maria Rita Ferragut e Renata Elaine Silva224, inovações

tecnológicas, desde que garantam o sigilo e a segurança por meio da certificação

digital, podem trazer benefícios, como redução dos custos fiscais e operacionais

para o contribuinte e maior facilidade e eficiência na fiscalização e arrecadação para

o Fisco.

Referida autora alega que, uma vez tomadas todas as providências

necessárias para garantir a autenticidade quanto à produção do ato, por exemplo,

pela assinatura eletrônica (senha) e digital (combinação de códigos públicos e

particulares), não há que se temer pela vulnerabilidade do documento eletrônico.

Ressalte-se que tais garantias devem ser preservadas, inclusive, na utilização dos

meios tradicionais (livros, guias etc.).

Por certo que a mudança quanto ao instrumento (suporte físico) não

significa, necessariamente, maior vulnerabilidade na produção do ato, haja vista as

medidas adotadas no sentido de se preservar a veiculação dos dados por meio

eletrônico. Devem ser superados, porém, alguns obstáculos, como o apartheid digital

(ou seja, o fato de que nem toda população tem acesso às redes de informatização)

e a disponibilização de softwares livres (para que se possa implementar,

efetivamente, a inclusão digital).225

Em relação à normatização referente à utilização de documento

eletrônico, lembremo-nos de que a Emenda Constitucional n. 42/2003 já trazia a

possibilidade da prestação de dados das empresas por meio eletrônico; assim, o

Plano de Aceleração de Crescimento (PAC 2007/2010) trouxe como parte de seu

programa, o SPED – Sistema Público de Escrituração Digital, instituído pelo Decreto

n. 6022/2007 (que tem como bases de dados a Escrituração Contábil Digital – ECD;

a Escrituração Fiscal e a Nota Fiscal Eletrônica)226, como uma novidade tecnológica

224 FERRAGUT, Maria Rita; SILVA, Renata Elaine (Orgs.). Direito Tributário Eletrônico. São Paulo:

Saraiva, 2010, p. 25 225 Ibid., p. 30. 226 Ibid., p. 32: “A Escrituração Contábil digital – ECD, também conhecida por SPED Contábil consiste

na transferência da escrituração tradicional (feita em papel) para a digital [...] já o SPED Fiscal permite a transcrição das escritas fiscais, como, por exemplo, o Livro do Lucro Real- LALUR; informações do IPI na DIPJ; DNF – Demonstrativo de Notas Fiscais; DPC – Declaração do Crédito Presumido do IPI; DE – Declaração de Exportação etc. [...] A Nota Fiscal Eletrônica – NF-e, por sua vez, gerará um arquivo eletrônico contendo informações Fiscais da operação comercial, e que

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116

que integra as três esferas administrativas tributárias e outras instituições, por meio

de recepção, validação, armazenamento e autenticação das sociedades

empresárias, mediante fluxo único computadorizado de informações, representando,

também, uma inovação na relação jurídica entre a Administração e o particular

(Fisco e contribuinte, respectivamente). Além disso, esse sistema, com certificação

digital, é capaz de garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica, por ter

sido produzido segundo as normas da ICP- Brasil.227

Outros diplomas que disciplinam o uso eletrônico para fins tributários na

esfera estadual: a Escrituração Fiscal Digital – EFD, instituída pelo Convênio ICMS

n. 143/2006; a Nota Fiscal Paulista – NFP, instituída pela Lei n. 12685/2007; e a Lei

n. 13457/2009, que disciplina a prova eletrônica no processo administrativo fiscal.

Resta, entretanto, uma dúvida: será, então, o documento eletrônico, um

instrumento válido para a produção da norma que constitui o crédito tributário?

De acordo com as premissas desde logo estabelecidas neste trabalho,

podemos afirmar que o “ato-norma de lançamento” será válido e, portanto, apto a

irradiar efeitos, se for produzido por agente competente, mediante procedimento

específico e autorizado pelo sistema. Isto nos remete tanto às informações

veiculadas pela enunciação-enunciada e reveladas por meio dos dêiticos referentes

ao processo de enunciação quanto ao agente competente e o procedimento, e pelo

enunciado-enunciado, ou seja, pela construção da norma de incidência com base no

conteúdo, ou mensagem introduzida pelo lançamento.

Então vejamos: o documento eletrônico (suporte físico) possibilita a

identificação destes elementos pelos dêiticos de agente emissor (ou sujeito

competente para a produção do ato) e procedimento (aquele autorizado pelo

sistema; no caso, aqueles estabelecidos pela ICP-Brasil), ambos veiculados pela

enunciação-enunciada, contida nos arquivos eletrônicos. O primeiro é facilmente

identificável pela assinatura digital (esta, baseada em códigos privados e públicos

inter-relacionados, garante a autenticidade do documento); o segundo é identificado

pelo certificado digital (que garante a troca de informações válidas somente entre os

deverá ser assinado digitalmente, como forma de garantir a integridade dos dados e a autoria do emissor. Este arquivo deverá ser transmitido pela Internet para a Secretaria da Fazenda de jurisdição do contribuinte, ou para a Secretaria de Fazenda Virtual, que devolverá um protocolo de recebimento, sem o qual não poderá haver o trânsito da mercadoria.”

227 FERRAGUT, Maria Rita; SILVA, Renata Elaine (Orgs.). Direito Tributário Eletrônico. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 31.

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117

sujeitos identificados pela assinatura digital)228. Quanto à NIC, obviamente, revelar-

se-á pelo conteúdo do ato, garantidas, desta forma, a autenticidade, a integridade e

a validade jurídica da produção do documento eletrônico, inclusive como meio de

prova. Nesse sentido, tem se posicionado a jurisprudência:

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 15.597 - CE (2002/015554-3), Rel. MINISTRO HERMAN BENJAMIN/STJ EMENTA TRIBUTÁRIO. ICMS. OBRIGAÇÃO ACESSÓRIA. TRANSMISSÃO ELETRÔNICA DE DADOS. LEGALIDADE. RAZOABILIDADE. VIOLAÇÃO DO SIGILO FISCAL NÃO-COMPROVADA. BENEFÍCIO FISCAL CONCEDIDO A ATACADISTAS. ISONOMIA. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO. Hipótese em que a impetrante, associação que congrega supermercados, impugna a exigência de transferência eletrônica de dados relativos ao ICMS para o Fisco. Argumenta que houve ofensa aos Princípios da Legalidade e da Razoabilidade, além de possibilidade de violação do sigilo fiscal. Ademais, impugna benefício fiscal concedido apenas a empresas preponderantemente atacadistas, o que seria antiisonômico. 2. O dever de registrar e prestar informações ao Fisco, relativas às operações comerciais tributadas pelo Estado, é previsto expressamente pela Lei Estadual 12.670/1996, que delegou ao regulamento a forma e o meio para sua realização. 3. O Decreto 24.569/1997 (com a redação dada pelo Decreto 25.562/1999) simplesmente esclareceu como a escrita fiscal seria apresentada ao Fisco (transferência eletrônica). 4. Inexiste ofensa ao Princípio da Legalidade. 5. O Regulamento deixa claro que a obrigação de transferir dados eletronicamente aplica-se apenas ao contribuinte "que emitir documentos fiscais ou escriturar livros fiscais em equipamento que utilize ou tenha condição de utilizar arquivo magnético ou equivalente" (art. 285, § 1º, do Decreto 24.569/1997). Assim, o pequeno estabelecimento varejista que, à época, não utilizava computadores para escriturar sua movimentação mercantil não seria compelido a cumprir a norma impugnada. 6. O envio de dados eletronicamente, mediante programas de computador fornecidos pelo próprio Fisco, é muito mais célere e menos oneroso que a entrega de livros e documentos em papel. Eventuais dificuldades na utilização do programa pelos contribuintes, noticiadas

228 JANINI, Tiago Cappi. O documento eletrônico como meio de prova no Direito Tributário. In:

FERRAGUT, Maria Rita; SILVA, Renata Elaine (Orgs.). Direito Tributário Eletrônico. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 47: “O contribuinte, para ter seu certificado digital e-CPF ou e-CNPJ, precisa escolher uma das Autoridades Certificadoras listadas pela Receita Federal do Brasil. Assim como para ter o CPF ou CNPJ o contribuinte tem que se dirigir aos órgãos fazendários e, com o preenchimento de certos requisitos, tem o documento expedido pela Receita Federal do Brasil. O procedimento tem como finalidade conferir maior segurança à produção do documento eletrônico, para fins da axiologia das provas. [...] Apresentar qualquer documento eletrônico para convencimento da autoridade administrativa alegando que não ocorreu o fato jurídico tributário não terá o mesmo valor que se utilizar de um modelo que siga as regras da ICP-Brasil. É, entretanto, importante registrar que o sistema jurídico não excluiu a validade dos documentos eletrônicos certificados por outros meios de comprovação de autoria e integridade que não sejam os emitidos pela ICP-Brasil, requerendo, para tanto, que seja admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto (art. 10, § 2º, da MP n. 2200-2/2001).”

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118

genericamente pela impetrante, não podem ser aferidas no âmbito do Mandado de Segurança, pois é impossível dilação probatória. 7. A normatização observa o Princípio da Razoabilidade. 8. O direito ao sigilo fiscal deve ser sempre garantido, qualquer que seja o meio pelo qual os dados fiscais são fornecidos pelo contribuinte (em papel ou por meio eletrônico). Ausência de relação entre a forma de entrega das informações e o direito invocado. 9. A impetrante não aponta caso concreto de violação do sigilo, apenas especula que "é do conhecimento geral da população que a transmissão eletrônica de dados é algo extremamente fácil de ser violado". Inexiste prova de que o direito ao sigilo fiscal tenha sido desrespeitado.229

O que se percebe, portanto, é que o documento eletrônico representa

apenas uma mudança quanto à formalização do fato jurídico tributário, ou seja, na

forma da aplicação/incidência promovida pelo homem. Houve, simplesmente, uma

transmutação do suporte fisco: antes formalizado em papel/tinta; hoje formalizado

em arquivos eletrônicos por meio de uma linguagem telemática. Sujeita-se o Direito

apenas à mudança do contexto comunicacional, migrando, neste caso, de um

contexto gráfico (escrita) para um contexto virtual. Nada, porém, se modifica quanto

às normas que disciplinam a matéria tributária no tocante a sua aplicação; as

normas de incidência tributária, produzidas neste novo contexto, devem respeitar as

exigências impostas pelo sistema para serem consideradas válidas e possam, desta

forma, produzir efeitos jurídicos pretendidos.

Essa nova linguagem formalizadora do lançamento, analisada sob a ótica

dos planos semióticos, também não altera nada do que dissemos até aqui, sobre a

norma de incidência tributária: pelo plano sintático, continua possível a análise do

mecanismo de subsunção da NIC àquela que lhe serve de fundamento; pelo plano

semântico, da mesma forma, podem-se identificar denotativamente os conceitos da

NIC que correspondam aos conceitos conotativos da NGA, tanto na configuração do

fato jurídico tributário como da relação jurídica tributária, e, pelo plano da

pragmática, pode-se chegar à finalidade da produção do ato-norma do lançamento,

a partir da análise (i) da construção da NIC, cujo resultado nos permitirá, por

exemplo, analisar a eficácia, tanto técnica quanto jurídica, bem como à vigência da

norma, e (ii) da construção do significado pelo aplicador, cujo resultado revelará a

construção do significado da norma no contexto em que ele está inserido, em

229 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Mandado de Segurança 15.597/CE. Relator:

Min. Herman Benjamin. Julgamento: 03 mar. 2009. Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação: DJe 24 mar 2009 (grifos nossos).

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119

determinado momento histórico, a exemplo das construções jurisprudenciais que

apontam o acolhimento desta inovação tecnológica pelos tribunais.

Assim, não se prescinde da linguagem competente para a aplicação do

Direito; esta linguagem continua a existir como condição de possibilidade para a

constituição da realidade jurídica, agora, porém, sob um novo paradigma: a

linguagem digital.

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SÍNTESE CONCLUSIVA

1. O objeto da Ciência do Direito é o Direito Positivo, neste trabalho,

considerado como um complexo de normas jurídicas válidas num dado país e

voltado para a disciplina do comportamento humano, no quadro de suas relações de

intersubjetividade.

2. A Ciência do Direito e o Direito Positivo encontram-se em dimensões

diversas: a primeira utiliza-se de uma linguagem descritiva, amparada por uma

lógica alética (lógica das ciências) para compreender o seu objeto, enquanto o

Direito Positivo utiliza-se de uma linguagem prescritiva, amparada por uma lógica

deôntica (lógica do dever-ser), para construí-lo.

3. Considera-se norma jurídica, em sentido estrito, a significação

construída a partir dos textos positivados (enunciados prescritivos) e estruturada

consoante a forma lógica dos juízos condicionais (H�C), capaz de transmitir uma

mensagem deôntica completa, isto é, capaz de regular uma conduta intersubjetiva.

4. Sistema e ordenamento são tomados como sinônimos – um sistema

dinâmico, estruturado por unidades normativas hierarquicamente organizadas,

destinadas a regular a própria produção de normas e a conduta das pessoas

(normas de estrutura e de comportamento, respectivamente).

5. Tomou-se o sistema jurídico como sistema de referência, delimitando

o campo epistemológico sobre o qual se desenvolveu este trabalho; um segundo

corte metodológico permitiu uma visão estática do sistema (norma jurídica) e uma

visão dinâmica (o processo de positivação da norma jurídica).

6. Os elementos (unidades) do sistema são as normas jurídicas. Pode-

se definir a norma jurídica, (i) em sentido amplo, como enunciados prescritivos do

Direito Positivo, e, (ii) em sentido estrito, como a significação construída pelo

intérprete, a partir dos enunciados prescritivos, capaz de traduzir o conteúdo da

mensagem deôntico-jurídica.

7. As normas jurídicas classificam-se em normas de estrutura

(competência) e normas de conduta (comportamento), de acordo com o objeto que

pretendam regular: as primeiras regulam a criação, modificação e extinção das

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121

normas jurídicas; as outras, regulam a conduta das pessoas, nas relações de

intersubjetividade.

8. A norma jurídica produzida pelos entes políticos a partir da

competência que lhes foi outorgada pela Constituição está, irremediavelmente,

sujeita aos limites formais e materiais estabelecidos pela Carta Magna, fundamento

de todo o ordenamento jurídico.

9. Assim como as regras de competência, as imunidades delineiam o

campo impositivo dos entes legiferantes.

10. A norma jurídica é a construção de um juízo hipotético-condicional,

na forma D(H�C). Esta é a fórmula lógica constante de qualquer norma jurídica, em

linguagem formalizada, independentemente do conteúdo semântico que lhe seja

atribuído pelo legislador.

11. A norma jurídica é uma estrutura dual, na sua completude, formada

por duas estruturas ou partes: norma primária e norma secundária.

12. Norma jurídica completa é aquela constituída pela norma primária –

que prescreve uma conduta, estabelecendo uma relação jurídica entre dois

sujeitos – e, pela norma secundária – que prescreve uma sanção pelo não

cumprimento de tal conduta.

13. O sistema ou ordenamento jurídico é formado por normas gerais e

abstratas, gerais e concretas, individuais e concretas, e individuais e abstratas.

14. Seguimos a proposta de Paulo de Barros Carvalho, que apregoa as

fontes do direito como os “focos ejetores de regras jurídicas, isto é, os órgãos

habilitados pelo sistema para produzirem normas numa organização escalonada,

bem como a própria atividade desenvolvida por essas entidades, tendo em vista a

criação de normas”.230

15. Tomando-se a realidade jurídica como contexto e a linguagem como

elemento essencial para a constituição da realidade, podemos pensar no significado

de incidência como a projeção da linguagem jurídica sobre a linguagem social, no

230 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 47.

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122

sentido de regular as condutas intersubjetivas, ou seja, no sentido de torná-la

jurídica.

16. A incidência é fruto de duas operações lógicas: a subsunção, na qual

se constitui o fato jurídico; e a implicação, na qual, por força da imputação normativa,

uma vez constituído o fato jurídico, instaura-se a relação jurídica.

17. Analisamos a incidência pelos planos da semiótica, seguindo a

proposta de Aurora Tomazini de Carvalho: (i) no plano lógico ou sintático, como

subsunção e imputação; (ii) no plano semântico, como denotação dos conteúdos

normativos; e, (iii) no plano pragmático, como interpretação e produção da norma

individual e concreta.

18. Quando falamos em “evento” e “fato jurídico”, estamos falando em

dois planos distintos de realidade, em dimensões e tempos diversos. O primeiro

– “evento” – é o acontecimento que ocorre no plano da realidade fenomênica,

enquanto o segundo – “fato jurídico” – encontra-se no plano da realidade jurídica e é

constituído pela linguagem competente do direito.

19. A vinculação normativa decorre de um evento (acontecimento no

mundo fenomênico) que mantenha estrita correspondência aos conceitos

conotativos revelados na hipótese da norma geral e abstrata. Vertido tal evento em

linguagem competente (mundo jurídico), constituindo-se o fato jurídico, por um ato

de vontade do homem, então, por força da imputação normativa (propagação dos

efeitos jurídicos), instala-se, automática e infalivelmente, o liame ou vínculo abstrato

que une dois sujeitos de direito em torno de uma prestação; uma (sujeito ativo) com

o direito subjetivo de exigir da outra (sujeito passivo) o cumprimento daquela

prestação.

20. O termo lançamento padece de várias acepções semânticas e a

escolha de qualquer das acepções possíveis dependerá do intérprete e do momento

ao qual se refere o lançamento, uma vez que norma, procedimento e ato são

aspectos de uma mesma realidade. Caberá ao intérprete, portanto, definir

semanticamente o uso que pretende para o termo.

21. Consideramos o lançamento como ato/norma que veicula uma

norma geral e concreta (veículo introdutor/enunciação-enunciado) e uma norma

individual e concreta (veículo introduzido/enunciado-enunciado) que inova o

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123

ordenamento jurídico, elaborada a partir dos elementos conotativos trazidos pela

regra-matriz de incidência tributária (RMIT).

22. Analisamos o crédito tributário a partir da relação jurídica tributária,

composta pelos três elementos envolvidos neste liame obrigacional – sujeito ativo,

sujeito passivo e objeto da obrigação –, relacionando-se da seguinte forma: o sujeito

ativo está investido do direito subjetivo de exigir o objeto – a este direito chamamos

crédito; o sujeito passivo está investido do dever jurídico de prestar o objeto – a este

dever chamamos débito.

23. A obrigação tributária somente produzirá os efeitos jurídicos se for

produzida uma norma individual e concreta, determinando todos os elementos

exigidos pela lei que institui o tributo (RMIT), em obediência ao princípio da estrita

legalidade (art. 150, I, da CF/88).

24. Consoante premissa adotada neste trabalho, de que somente a

linguagem jurídica constitui o Direito, o crédito tributário somente se constitui com a

aplicação da norma de lançamento.

25. Não se justifica, assim, a constituição da obrigação tributária de

outra forma que não seja pela elaboração da norma individual e concreta do

lançamento, seja ele emitido pela autoridade competente ou pelo sujeito passivo,

nas suas várias modalidades propostas pela doutrina – lançamento de ofício, por

declaração ou por homologação.

26. O lançamento, como ato jurídico de natureza administrativa deverá

apresentar os elementos estruturais do ato jurídico administrativo. Adotamos a

proposta por Cláudia Magalhães Guerra, que identifica a estrutura do ato

administrativo, considerando os vícios que possam levar à invalidação do

lançamento tributário e, para isso, trabalha com as categorias: “elementos” (suporte

físico, motivação, conteúdo) e “pressupostos” (sujeito produtor, motivo, requisitos

procedimentais, causa, finalidade). Os elementos relacionam-se aos aspectos

internos essenciais à estrutura do ato ou “partes componentes do ato”.

27. A partir do lançamento, podemos construir duas normas jurídicas:

uma norma geral e concreta (norma veículo introdutor, veiculada pela enunciação-

enunciada), que informa o modo de produção do ato-norma administrativo e a

competência para sua produção; uma norma individual e concreta (norma

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124

introduzida, veiculada pelo enunciado-enunciado), que constitui o crédito tributário.

Destacamos a segunda como a norma de lançamento que constitui regularmente o

crédito tributário.

28. O Direito Positivo, construído pela linguagem (sistema

convencionado de signos), estabelece seu objeto que é a conduta intersubjetiva

prescrita pela lei (norma), regulando deonticamente (permitindo, obrigando ou

proibindo) as relações sociais que lhe interessem, com o intuito de alcançar

determinado fim. Dito de outra forma, é a lei (signo para Peirce; suporte físico para

Husserl) imprimindo uma conduta à sociedade (objeto para Peirce; significado para

Husserl), mediante a construção da norma pelo homem (interpretante para Peirce;

significação para Husserl). Eis aí a natureza semiótica do Direito Positivo, que

possibilita o seu conhecimento sob o prisma das dimensões da Semiose.

29. O objetivo da análise da norma de incidência tributária pelos planos

da semiótica, puramente didático, é permitir que o estudo destes aspectos possa

favorecer a correta elaboração da norma de lançamento, bem como evidenciar

possíveis “erros” na sua construção.

30. O plano sintático relaciona-se à estrutura lógico-gramatical da

linguagem; ocupa-se, portanto, da conformação da norma jurídica de incidência

tributária. Quando estudamos o lançamento sob este plano, voltamos, então, nosso

interesse para duas questões essenciais: (i) o fundamento de validade (tanto em

relação à norma geral e concreta – veículo introdutor revelado pela enunciação-

enunciada, quanto em relação à norma individual e concreta – norma introduzida

revelada pelo enunciado-enunciado); e (ii) a estrutura lógica da norma de

lançamento.

31. O plano semântico diz respeito à relação dos signos com o seu

objeto (ou àquilo que se pretende representar). No Direito Positivo, é a relação entre

a norma (signo) e a conduta a ser regulada (objeto) ou a relação entre a linguagem

prescritiva e a conduta por ela regulada, analisada do ponto de vista do seu

conteúdo de significação; essenciais, portanto, neste plano a análise (i) o

mecanismo de conotação e denotação no processo de elaboração da NIC e (ii) a

construção da linguagem competente com base na linguagem das provas.

Page 126: Silvia Regina Zomer

125

32. Com relação ao “erro de fato” e “erro de direito”, pode-se dizer que

ambos decorrem de uma falha de interpretação da linguagem normativa;

exclusivamente da NIC, no primeiro caso, e entre a NGA e a NIC, no segundo.

1. O erro de fato é uma falha na constituição do fato jurídico tributário (na

construção da linguagem competente), resultado de uma inadequação da

interpretação dos conceitos denotativos da NIC, quando da elaboração da

motivação (no antecedente da NIC), frente às provas apresentadas. É um

“defeito” que se apresenta no interior da NIC (portanto, intranormativo),

que se demonstra mais facilmente pela análise do lançamento no plano

semântico.

2. O “erro de direito” resulta da não coincidência entre a interpretação dos

conceitos conotativos da NGA e os conceitos denotativos da NIC, e

podem ocorrer entre a hipótese da NGA e o antecedente da NIC, como

também entre os conceitos que definem os critérios do fato relacional no

consequente da NGA e os elementos apontados no estabelecimento da

relação jurídica prescrita no consequente da NIC. Trata-se de um

problema de subsunção entre os dois enunciados prescritivos: da NGA e

da NIC (portanto, internormativo), que se evidencia tanto pela análise do

lançamento sob a ótica do plano sintático, quanto do plano semântico.

33. A Pragmática volta seu interesse para a forma como a norma jurídica

alcança a sua finalidade, ou seja, como interfere coercitivamente nas condutas

intersubjetivas, a partir do significado que o sistema do direito positivo (do ponto de

vista dos participantes) elege para implementar os valores propostos, num dado

contexto. Assim, podemos analisar a construção do significado da norma, no plano

pragmático, sob dois aspectos: (i) da construção da NIC: o significado traduzido pelo

comando normativo, sob este aspecto, relaciona-se à eficácia, tanto técnica quanto

jurídica, bem como à vigência da norma; (ii) da construção do significado pelo

aplicador: a construção do significado da norma num determinado contexto, sob

este aspecto, trata, em verdade, da escolha de um dentre os vários significados

possíveis previstos na NGA, diante da configuração de um fato, em determinado

tempo. Nesse sentido, podemos citar as construções jurisprudenciais que apontam o

significado da norma jurídica como motivação para a ação humana de aplicação do

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126

Direito. Significa dizer que a norma é aquilo que os tribunais competentes, para

interpretá-la em última instância, dizem que ela é.

34. A alteração de critério jurídico, diversamente de um problema (erro)

de subsunção ou de interpretação (plano sintático e semântico, respectivamente),

trata-se de uma escolha do participante do sistema acerca da norma a ser aplicada,

de acordo com o contexto jurídico pretendido, diferindo, portanto, do erro de direito.

No caso da alteração de critério jurídico, em nenhum momento se configura algum

tipo de erro, seja na constituição do fato jurídico – erro de fato –, seja na não

coincidência entre o motivo legal (NGA) e a motivação (NIC) – erro de direito;

portanto, não há falar-se em invalidação da norma produzida, nesta hipótese, por

qualquer tipo de vício (elemento caracterizador da invalidação da NIC). Além do que

essa nova interpretação somente poderá ser aplicada a casos futuros.

35. As inovações tecnológicas relativas à constituição da norma de

incidência tributária por meio da linguagem digital em nada alteraram as exigências

estruturais do sistema jurídico. No Direito Tributário, pode ser formalizada tanto pela

Administração Pública (Fisco), quanto pelo administrado (contribuinte ou

responsável), de acordo com os preceitos que regulam tal atividade. Fato é que

somente pela constituição da norma de incidência tributária (ato-norma de

lançamento) será possível a exigência do cumprimento da obrigação tributária –

pagamento do tributo.

36. O documento eletrônico (suporte físico) possibilita a identificação

destes elementos pelos dêiticos de agente emissor (ou sujeito competente para a

produção do ato) e procedimento (aquele autorizado pelo sistema; no caso, aqueles

estabelecidos pela ICP-Brasil), ambos veiculados pela enunciação-enunciada,

contida nos arquivos eletrônicos. O primeiro é facilmente identificável pela

assinatura digital (baseada em códigos privados e públicos inter-relacionados,

garante a autenticidade do documento); o segundo é identificado pelo certificado

digital (que garante a troca de informações válidas somente entre os sujeitos

identificados pela assinatura digital). Quanto à NIC, obviamente, se revelará pelo

conteúdo do ato, garantidas, desta forma, a autenticidade, a integridade e a validade

jurídica da produção do documento eletrônico, inclusive como meio de prova.

Page 128: Silvia Regina Zomer

127

Assim, não se prescinde da linguagem competente para a aplicação do

Direito; continua a existir como condição de possibilidade para a constituição da

realidade jurídica, agora, porém, sob um novo paradigma: a linguagem digital.

REFERÊNCIAS

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______. Semiótica do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

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BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Elementos de Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980.

BARRETO, Aires. Base de cálculo, alíquota e princípios constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987.

BARRETO, Paulo Ayres. Contribuições: Regime Jurídico, Destinação e Controle. São Paulo: Noeses, 2006.

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______. ______. Agravo Regimental no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 1136182/SP. Relator: Min. Denise Arruda. Julgamento: 19 nov. 2009. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJe 10 dez. 2009.

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