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    Graphos. Joo Pessoa, Vol 10, N. 2, Dez./2008, Vol 11, N. 1, Jun./2009 ISSN 1516-1536 223

    BOM CONSELHO

    Silviano Santiago1[...] porque eu, no quero, porque eu no devo explicarabsolutamente nada.Caetano, contra-capa do disco R765.026L.

    RESUMO

    Em decorrncia do golpe militar de 1964, instituiu-se no Brasil um regime de represso e censura,

    que afetou as formas de manifestao artstica em que o corpo do artista se agiganta e se tornapblico. o caso dos happenings, em artes plsticas, e dos shows, em MPB. Atravs da anlise do

    gnero entrevista, onde se espera a sinceridade do artista, o autor analisa os recursos retricos de

    que ele se vale para dar um bom conselho subversivo e pessoal, passvel de ser transmitido e

    ouvido. O texto foi escrito e publicado no calor da hora, em 1973.

    Palavras-chave: Censura; Msica Brasileira; gnero entrevista

    ABSTRACT

    As a consequence of the 1964 military coup dtatin Brazil, a repression and censorship regime was

    established, affecting forms of artistic manifestation in which the artists body becomes gigantic

    and public. Such is the case with the happenings, in visual arts, and in shows, in respect to popular

    music. By analyzing the interview genre, in which one expects the artist to be sincere, the author

    analyzes the rhetoric sources the artist uses to give a sound, subversive and personal advice, that

    might be transmitted or listened to. The text was written and published at the peak moment, in 1973.

    Keywords: Censorship; Brazilian music; interview genre

    1.

    A ausncia de pergunta num determinado e especfico momento da realidadecultural de um pas pode assinalar muitas coisas, mas principalmente pouco casoterico-especulativo. Tal desinteresse passa a ser a caracterstica dominante de umperodo em que ou bem no se pode, ou bem no se quer manter abertamente umdiscurso crtico sobre ou em torno de problemas julgados importantes pelo farocanino da inteligncia. A pergunta e a resposta correspondente democratizam asemoes, as sensaes individuais, nivelam num nico conceito reaes e anseios

    1 Doutor pela Universidade de Paris Sorbonne. Ensasta e escritor.

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    diversos e sempre dspares. Instalam uma margem de identidade onde s se contavaa multiplicidade rebelde. A pergunta, sem dvida alguma, traduz por parte de quema faz um desejo de intelectualizar a problemtica que ela levanta, de saber como

    proceder racionalmente em serto bravio, de abrir uma vereda para perceber demaneira conceitual o objeto que ela questiona. Na resposta, quem perguntou pre-tende fazer do objeto analisado um objeto do conhecimento - um objeto cultural.

    Assim sendo, podemos compreender porque, num perodo como o atual dacultura brasileira, faz sentido dizer que o artista jovem no quer perguntar. Eenfatizamos o verbo querer, pois julgamos que, caso ele quisesse, poderia pergun-tar. A pergunta, no entanto, mesmo a menos interessada, a mais gratuita, a menoscomprometida com o status quo, quando tem por fim o conhecimento de um objetoque ser classificado por ela de artstico, visa a recuperar tal objeto, extra-lo doespao em que consumido como simples entretenimento, como simples acon-

    tecimento (happening), para poder situ-lo dentro do terreno estreito, com-prometedor e terico da arte, passando, portanto, a fazer parte integrante do acervoda cultura nacional. O silncio terico se encontra nas palavras de Caetano, no seudesejo de no-falar sobre o que faz, sobre o que ocupa seu tempo consagrado msica popular, tanto no passado como no presente ou no futuro:

    ainda mais difcil falar do que estou fazendo agora do quedaquilo que fiz no passado. [...] No posso dizer o que poder vira ser o meu trabalho (Rolling Stone, n 7).

    No-perguntar significa, pois, deixar o objeto no limbo em que criado,encenado e consumido, sem arremess-lo para o altar da arte. Perguntar esacralizar, dentro da cultura ocidental, so irms gmeas, nascidas da mesmacuriosidade e do mesmo desejo de estudar, catalogar, codificar, interpretar, salvardo acaso o acontecimento que assim se tornar significativo em termos propria-mente culturais. Nossa civilizao no acredita no (ou tem medo do) objeto queno significa nada mais do que ele prprio; por isso o rodeamos de camadas e maiscamadas de interpretao, no s porque acreditamos que ele prprio, fundamen-talmente, j interpretao, como tambm porque em estado puro ele se encon-traria incompleto, seria apenas um escndalo. Como diz muito bem MichelFoucault em artigo sobre a problemtica da interpretao dentro do corte episte-molgico da nossa poca (isto , aquele instaurado pelas obras de Freud, Nietzschee Marx), somos sempre levados a crer que a linguagem nas culturas indo-europiasno diz exatamente o que ela diz:

    O significado que apreendemos, e que imediatamentemanifesto, talvez na realidade apenas um significado menor,que protege, fecha, e apesar de tudo transmite um outrosignificado,

    significado este, latente, que considerado mais forte do que o outro, omanifesto. A procura, portanto, de um significado mais forte, que se esconde, que

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    se encontra por debaixo do outro, ao mesmo tempo a atitude que nos leva aoconhecimento (em termos ocidentais) e que, por seu turno, aprisiona o objetoprimeiro dentro das amarras da interpretao, dentro da ordem do discurso, para

    usar de outra expresso do citado autor.Portanto, os textos sobre cultura jovem devem comear por um mea culpa:porque pergunto, procuro interpretar; porque procuro interpretar, estou recupe-rando. E no processo de recuperao, estou sacralizando um objeto (a msicapopular, por exemplo) que melhor seria se existisse apenas como transgresso sem estas nossas linhas circulares, excessivas.

    2.

    Da mesma forma, diremos que abrigando um objeto num museu que se estchamando de artstico a este objeto. Fora do museu e do catlogo, ele foi apenas oponto de encontro, de reunio, entre diversos seres humanos, que sentiram seuefeito, mas que no precisaram falar desse efeito em termos conceituais. JKinaston McShine, no ensaio em que justifica (?) a mostra feita no Museu de ArteModerna de Nova York, sob o ttulo geral de Information (1969), se dava contade que o lugar museu e a atividade colecionar mais e mais perdiam a sua razo deser diante da diversidade geogrfica onde se realizavam os novos objetos de arte, eperguntava (sem esperar resposta, evidentemente), perplexo apenas:

    Por exemplo, toda a natureza do ato de colecionar talvez esteja setornando obsoleta, e o que o museu tradicional vai fazer com umtrabalho no fundo do mar de Sargao, ou no deserto de Kalahi,ou na regio Antrtica, ou no fundo de um vulco? (p. 141).

    Se certa nfase dada hoje participao do espectador na construo dotrabalho do artista, porque, na ausncia do museu, apenas o lugar geogrfico doacontecimento (no sentido tambm de conglomerao humana) que muitas vezesjustifica sua existncia. Tanto o museu como o discurso crtico so culpados de umdesejo de sacralizao e de institucionalizao, que visa a impedir o livre trnsito ea morte rpida de objetos de transgresso. Num recente e elucidativo estudo sobreas vanguardas dos anos 60, The new avant-garde (Praeger, 1972), Grgoire Mllerpde tambm comentar o desaparecimento do lugar-sagrado-museu e o papel daarte na realidade diria tanto do artista como do espectador:

    Se a arte tiver que existir, ela o far na medida em que forsuficientemente eficaz para encontrar o seu lugar na vida real (p.6).

    No qualifiquemos, pois, to apressadamente os jovens de superficiais quan-do manifestam total desinteresse pelo jargo conceitual, seja o do discurso crticoespecializado, seja o do discurso filosfico. Inscrever um projeto, um objeto, seu

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    ou alheio, dentro das normas da conceitualizao constitui o primeiro e maisperigoso sinal de que tal projeto, tal objeto, recupervel. Num perodo como opresente faz sentido toda uma esttica do precrio, do transitrio, do perecvel (cf.

    Haroldo de Campos, A Potica do Precrio, inA Arte no Horizonte do Provvel).Vite fait, vite disparu. O espocar de um foguete, o acender e o apagar de um spot-light. Essa esttica do precrio, que se encontrava ontem exemplificada pela obrade Kurt Schwitters, se encontra hoje no centro de todo um processo dedesmaterializao do objeto artstico, segundo a expresso sugestiva de LucyLippard.

    Um artista como Hlio Oiticica chegou a propor mesmo, numa confernciarealizada na Albright-Knox Gallery de Buffalo, slides as documents showingforms of experimental activity no compromised with art as display (Slides comodocumentos, mostrando formas de atividade experimental no comprometidas com

    a arte enquanto mostra, 1973) Assim que apenas a fotografia pode surpreender oobjeto e armazen-lo. Colecionam-se slides, e o museu se abre no momento daprojeo. Sem a respectiva fotografia o objeto teria ficado sem abrigo. Sem adocumentao o objeto existiu apenas no momento em que existiu. A fotografiapassa a ser o signo que substitui o objeto, signo que nos dado em lugar do objeto,do acontecimento.

    Por outro lado, num momento marcadamente criativo como o por quepassamos (em especial o ano de 1972), a pergunta viria inibir o criador, visto queteria de passar de um determinado registro, que o da inveno, para outro, que oda crtica. Em perodos de sensibilidade aguda como o nosso (cf. Os Abutres, emUma literatura nos trpicos), a interveno racional serve apenas para castrar otexto potico, para situ-lo num nvel de apreenso, de consumo, que no oalmejado pelo criador e muito menos pelo ouvinte ou pelo espectador. Como emtodos os perodos em que a nfase colocada na criao (e me lembro do auge doFuturismo, do Surrealismo, do Modernismo, etc.), se existe um discurso paralelo aoda inveno, este visa apenas a explicitar o poema, o romance e o quadro.Explicitar aquilo que, muitas vezes, o romance, o poema e o quadro comunicam demaneira mais eficaz e completa, para no dizer mais complexa. Consegue apenasconceitualizar e de maneira bem pouco formal, bem pouco crtica, pois o

    prprio criador que o responsvel pelo discurso crtico o texto inventivo. Odiscurso crtico manifesto.Ora, no caso presente da cultura brasileira, o texto terico paralelo ao da

    criao, visto que o artista no quer e no pode questionar o objeto que lhe delega aposio de artista dentro da sociedade, se encontra transformado e adaptado a umgnero que se tornou bastante popular ultimamente: a entrevista. Basta folhearrevistas comoRollingStone,Bondinho, ou ento o Caderno B doJornal do Brasil.Tambm compreendendo o fenmeno da entrevista que se poder entender acurta vida que levam as citadas revistas. Esgotado o nmero das verdadeiraspersonalidades que podem ser entrevistadas, a revista no tem mais razo de ser, j

    que de modo algum desejam seus redatores se dedicarem a exerccio terico.

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    Seria interessante analisar algumas das caractersticas da entrevista parapoder melhor se compreender o problema da pergunta terica, da sua ausncia, e dasua substituio por outro tipo de pergunta, para melhor caracterizar a tcnica do

    que Chico Buarque chamou de bom conselho.

    3.

    De incio, notamos que, na entrevista, a pergunta sempre prope a discussoterica, mas o entrevistado evita cuidadosamente o objeto que justifica a prpriaentrevista. Assim, Caetano recusa categoricamente a responder objetivamente apergunta que lhe fazem:

    Tem voc conscincia do papel que desempenha nos nveis maisvariados neste vasto continente chamado Brasil?

    Sua resposta lacnica, ou melhor dito, negativa:

    Agora, eu no vou querer aqui explicar por que isso teria deacontecer na msica popular, e mais particularmente, comigo(Rolling Stone, n 7).

    Desse modo, evita fazer uma anlise do papel que representou dentro do que

    poderamos chamar a arte brasileira a partir do movimento Tropiclia. De maneirasimilar, numa outra entrevista, escamoteado, no dilogo, evitado, o tpico sobre osucesso como compositor de Gilberto Gil. O interesse do texto-entrevista se centrana sua personalidade atual de artista. Percebemos dessa maneira que gentilmenteo bate-papo se prolonga por pargrafos e mais pargrafos com graa e brilho, masao invs de pedir ao artista que fale do estado atual da msica brasileira, de se pedira opinio abalizada do cantor e compositor, ao invs de se falar da posio do autorde letras no presente momento da realidade artstica nacional, lemos ainda narevista Rolling Stone uma srie de explicaes sobre os infindveis labirintos dacomida macrobitica, seguidas de teorias de carter mstico-esotricas que a nosso

    ver tm pouco em comum, ou quase nada, com o projeto criador de Gil, mas que descobriremos mais tarde parte integrante do bom conselho que o artista daos seus ouvintes.

    O desvio temtico, portanto, enfatiza, pe em relevo a personalidade, o com-portamento dirio, em lugar de colocar em questo as idias daqueles que se encon-tram na berlinda. Falam de tudo, menos daquilo que espervamos que falassem.Com isso, a pergunta antes de ser um meio (o mais antigo, o mais conhecido, pelomenos desde Scrates) para o conhecimento, para o parto das idias, tem comoresposta uma espcie de cardpio de bons conselhos comportamentais.

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    4.

    Em termos mais precisos e mais esquemticos, diremos que num dilogo

    entre A (reprter) e B (artista) possivelmente sobre X (msica popular), o interesseda conversa deslocado para C (leitor), transformando-se B finalmente no lugar eno repertrio de verdades profundas (ou de algibeira no nos enganemos, poisexiste muito conselheiro accio por a), verdades que distribui ao seu bel-prazerpara obrigar que se esquea com maior eficincia um problema que normalmenteseria o tpico da discusso. A entrevista antes de mais nada uma tomada deposio autoritria por parte do artista com relao ao leitor. Cria o artista, numprimeiro instante, uma fresta de diferena entre ele e o leitor, diferena esta quedesaparece gradativamente, se torna identidade medida que a voz autoritria doartista vai divulgando as peculiaridades do seu comportamento e sugerindo a

    imitao por parte do leitor. No final, ambos se encontrariam em comportamentoidntico.

    A pergunta , pois, feita ao artista, mas este ao invs de responder aoreprter, desliga o fio da comunicao que levaria a resposta de volta, que uniriareprter e artista, e abre um novo e diferente canal, canal que conduz sua vozdiretamente ao leitor. O artista quer que esta ltima ligao seja de tal modo slida,de tal modo resistente, que possa suportar a fora e o domnio da sua voz sobre oleitor. Este recurso se justifica por duas razoes bem claras:

    primeiro, o artista no pode falar do objeto que o faz artista semsacralizar esse objeto, sem retir-lo da rea do acontecimento,sem torn-lo arte;segundo, caso o artista desse uma resposta certinha de volta aoentrevistador, apenas insistiria sobre sua insegurana diante deuma determinada situao (social, poltica, existencial, etc.) queo oprime.

    A situao opressora existe, e porque ela existe que o artista temnecessidade de se exprimir como se exprime, mas da a acreditar que deve exercero comentrio crtico sobre a ideologia dominante esperar dele, artista, sempre

    uma voz plida, apagada, de escravo, que no chegaria a se alar alm dasfronteiras do permitido; desejar para ele o ato suicida. Ou bem sacraliza com suaresposta objetiva e terica o objeto de transgresso (e o torna ineficiente), ou bemse considera no digno de ser responsvel por um objeto de transgresso (e entono artista). Rejeita a ambas as possibilidades para falar francamente ao leitor sobre outras coisas.

    O mecanismo fascinante porque, se de um lado oculta a verdade de umproblema que deveria estar sendo discutido pelo artista, por outro lado opera,graas a um processo de substituio, o deslocamento do primitivo foco autoritrio(opresso social, poltica, existencial, etc.) para dar lugar a outra espcie de

    autoridade, que a do artista. Assim que, se num primeiro movimento se ocultoua verdade, num segundo outra verdade colocada em circulao para substituir

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    aquela que foi obrigada a desaparecer. Na entrevista, o artista apaga a fora que ooprime do exterior (com o seu silncio), para melhor canalizar a fora da suaprpria personalidade, graas a um crdito excepcional legado por ele mesmo a si

    prprio. Por ele mesmo e pelo pblico que aceita seu nmero, seu ato, apenas comoentretenimento, como acontecimento, e no exige dele que teorize, que entronizeseu ato dentro da cultura.

    5.

    Esse gnero de mecanismo que vimos descrevendo ultrapassou ultimamenteas fronteiras da entrevista e se espraiou por algumas canes de Caetano e deChico. Por exemplo, Como Dois e Dois, de Caetano (vagamente reminiscente de

    um poema de Ferreira Gullar, cantado por Nara), e Bom Conselho, de ChicoBuarque.

    Na primeira cano os dois elementos de autoridade, mencionados acima, socolocados em evidente contraste e paralelismo no refro da letra:

    Tudo certocomo dois e dois so cinco.

    O certo e o errado, ligados pelo como, ocasionam um bvio curto-circuitolgico. Curto-circuito que insiste no erro do certo e na possibilidade do certo no

    erro. Em outras palavras, no se coloca dentro do discurso criador objeo algumaao certo, que , antes, valorizado por uma afirmativa autoritria. no como, nacomparao (o recurso mais comum para se instaurar a linguagem potica), que seevidencia o equvoco da primeira situao, e a necessidade de se lhe opor um outrotipo de afirmao que, superficialmente, parece errado, mas que - sempre poroposio, sempre no jogo interno das duas sentenas, dos dois conceitos - passa aser o certo. Se em Caetano, os processos de inveno so na maioria das vezesclaros e ali esto para ser interpretados, indicando ainda uma maior sofisticao nolabor potico, j em Chico o bom conselho mais direto (talvez pela influncia

    marcante do discurso potico de Joo Cabral durante os seus anos de formao) ese encontra menos comprometido com os chamados recursos retricos davanguarda.

    Chico Buarque trabalha de maneira mais precisa o esquema descrito acima. Afonte de autoridade se encontra aparentemente escondida, e por total substituio,ao sublinhar apenas o positivo e o exemplar da sua mensagem de artista, da suavida, que se constri a cano. Como numa entrevista, de incio a personalidadeextraordinria realada, bem como o romantismo da figura, e em seguida que seconvida o ouvinte imitao daquela vida, daquela personalidade, daquela figuraromntica:

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    Faa como eu digofaa como eu faoaja duas vezes antes de pensar.

    Salienta-se ainda o aspecto autoritrio do novo modelo, seja atravs de umalinguagem que lembra a dos provrbios ou mximas populares, seja pelo recurso aomodo imperativo:

    Eu semeio vento na minha cidadeVou pra rua e bebo a tempestade.

    ou:

    Espere sentado ou voc se cansaest provadoquem espera nunca alcana.

    Como recurso propriamente potico, encontramos em Chico um desejo detrabalhar, sob forma de transgresso, com a memria popular, com a verdadecomunitria, com o intuito bsico de apenas provar o equvoco dessa memria edessa verdade, num processo de descondicionamento coletivo, mas essencialmenteoperado no nvel lingstico. Tanto o provrbio, Quem espera sempre alcana,como o outro, Quem semeia vento colhe tempestade, so transportados para o

    lado de l, num movimento de inverso, semelhante ao que encontrvamos nacano de Caetano (dois e dois so quatro!). O primeiro provrbio passa asignificar que est provado que quem espera nunca alcana, enquanto o perigo que indicado pelo segundo provrbio sorvido deliciosamente pelo cantor (bebo atempestade).

    Explicitado assim o mtodo de composio do autor de Bom conselho, noseria intil salientar que podemos precisar, no caso de Chico Buarque, a fonte deautoridade que se encontrava, desde o incio, aparentemente oculta. ela lembradapela nossa memria coletiva que nos dando paralelamente a verso dos provrbiosnos indica tambm o lugar onde sempre foi questo da verdade comunitria, lugar

    este frisemos que est sendo substitudo e ao mesmo tempo ocupado pela vozdo cantor.

    6.

    Por outro lado, tomando apenas como ponto de referncia os trs versos emque Chico prope que se deve agir duas vezes antes de pensar, notamos quemarcariam eles de certa forma, dentro do dilogo intertextual da msica popularbrasileira, uma necessria crtica posio de Roberto Carlos, e de outra maneira,

    indicariam uma ausncia de compromisso seu com as aparncias do cafonismo aceitas pelo grupo baiano. Para justificar o paralelo com Roberto Carlos, basta que

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    nos recordemos da letra de Sua Estupidez (bastante conhecida tambm na versode Gal):

    Conte ao menos at trsse precisar conte outra vezmas pense outra vez...

    O fato de o grupo baiano incorporar, por exemplo, Roberto Carlos, aquelacano de Roberto, no seu repertrio, marca o limite entre o srio e o cafona, entrea responsabilidade e a distncia crtica, entre Chico Buarque e eles. Em Chico, osrio e a responsabilidade se juntam criando uma concepo verdadeiramente ticado fenmeno cantor popular. Letras como Pedro, Pedreiro ou A Construo,para mencionar apenas as mais bvias, pertencem a uma sensibilidade que encontra

    gratificao na mscara triste da tragdia. Tragdia do cotidiano e da misria, semdvida, e que por isso mesmo deseja ultrapassar os limites do acontecimento e damanifestao gratuitos. Saliente-se ainda que a prpria composio rebuscada dosversos e estrofes (as rimas raras de A Construo, por exemplo), a dico poticatradicional, j assinalam a necessidade que tm de serem recuperadas facilmentepelo discurso crtico, de preferncia o universitrio, recuperadas pela explicao detexto (me lembro agora de uma exegese feita por estudantes goianos, publicadameses depois do lanamento da cano).

    J em Caetano e Gil (e tambm em Gal ela, apenas como intrprete) ocafona e a distncia crtica se contradizem para poder o cantor comentar e ao

    mesmo tempo cantar o texto, isto , dizer o texto ipsis litteris, distorcendo, noentanto, sua mensagem. O comentrio em geral feito, no caso especfico deCaetano, atravs do malabarismo vocal (a pardia que faz de Nelson Gonalves nomeio de Onde Andars), ou ainda atravs do fato de que corpo, roupa, trejeitos,maquilagem, tambm so parte do nmero em que diz as letras. J Chico Buarque,dentro da monotonia vocal que caracteriza sua interpretao e ainda em virtude dasua proverbial falta de jeito, timidez e inibio, no conseguiria de modo algumerguer entre sua voz e o texto a distncia irnica necessria para que incorporasse com a mscara sorridente da comdia o cafona no seu repertrio.

    [1973]