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45 Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Supersimetria A física contemporânea descreve os fenômenos naturais em termos de quatro interações fundamentais que, para efeitos de compreensão em um contexto mais próximo da física newtoniana, po- demos pensar como sendo descritas por campos de forças. A força gravi- tacional e a eletromagnética são as interações fundamentais que se fazem sentir no mundo macroscópico, inclu- sive em escala humana. As outras duas, a força nuclear forte e a força nuclear fraca, não se revelam em escala macroscópica. Aparecem ape- nas em escala subatômica - na verda- de, como o nome indica, nas escalas nuclear e subnuclear, portanto a dis- tâncias tão pequenas ou ainda meno- res que o décimo do trilionésimo do centímetro, o que corresponde ao cen- tésimo de milésimo da escala atômica ou à milionésima parte da nanoescala. A força gravitacional é a respon- sável pelos movi- mentos planetários e pela organização da estrutura em larga escala de nos- so Universo. A for- ça eletromagnética é a interação que re- sponde pela forma- ção dos átomos, pelas ligações mole- culares e pelos processos biológicos fundamentais, por exemplo. Já a for- ça nuclear forte responde pela coesão dos prótons e dos nêutrons no inte- rior dos núcleos atômicos e pela li- gação dos quarks no interior dos hádrons; finalmente, a interação nu- clear fraca é a responsável pelos processos radioativos, em que núcleos atômicos instáveis decaem e emitem partículas. Cada um destes campos de força é descrito por uma teoria. A força gravitacional, em sua escala macros- cópica, é descrita pela mecânica new- toniana, sempre que as velocidades envolvidas forem baixas se compa- radas à velocidade da luz; ainda em escala macroscópica, e mesmo cosmo- lógica, mas no regime em que fenô- menos relativísticos começam a operar, a descrição do campo gravita- cional fica a cargo da teoria da relati- vidade geral. A descrição microscópica da gravitação, que constitui o que se chama na literatura de gravitação quântica, é um campo de investigação com várias questões ainda em aberto. De fato, abordagens mais recentes como a das teorias de Supercordas são novos encaminhamentos no sentido de, entre outras questões, resolver os problemas da gravitação quântica. Já a eletrodi- nâmica quântica descreve os fenôme- nos que envolvem a força eletromagné- tica. Foi desenvol- vida a partir do início da década de 1940 e ajudou a en- tender o mundo das chamadas partícu- las elementares - ou seja, partículas ‘indivisíveis’. Trabalhos publicados entre 1961 e 1968 ajudaram a formu- lar a teoria que unificou tanto os fenô- menos eletromagnéticos quanto aqueles regidos pela força nuclear fraca. A teoria eletrofraca ou o Modelo de Salam-Weinberg-Glashow - como ficou conhecido - mostrou, portanto, Neste artigo, procura-se ressaltar e elucidar o papel central das simetrias na construção de modelos e teorias para as interações fundamen- tais. neste cenário, introduz-se a supersimetria, discute-se o seu conceito, apresentam-se as suas conseqüências e se esclarece o seu papel primor- dial no programa de unificação dos campos de força da natureza. José Abdalla Helayël-Neto Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF/MCT) e Grupo de Física Teórica José Leite Lopes (GFT - JLL) e-mail: [email protected] Quatro interações fundamentais descrevem todos os fenômenos naturais que observamos. Duas são observáveis no mundo macroscópico (gravitacional e a eletromagnética) e duas apenas em escala subatômica (nuclear forte e nuclear fraca)

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45Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Supersimetria

Afísica contemporânea descreveos fenômenos naturais emtermos de quatro interações

fundamentais que, para efeitos decompreensão em um contexto maispróximo da física newtoniana, po-demos pensar como sendo descritaspor campos de forças. A força gravi-tacional e a eletromagnética são asinterações fundamentais que se fazemsentir no mundo macroscópico, inclu-sive em escala humana. As outrasduas, a força nuclear forte e a forçanuclear fraca, não se revelam emescala macroscópica. Aparecem ape-nas em escala subatômica - na verda-de, como o nome indica, nas escalasnuclear e subnuclear, portanto a dis-tâncias tão pequenas ou ainda meno-res que o décimo do trilionésimo docentímetro, o que corresponde ao cen-tésimo de milésimo da escala atômicaou à milionésima parte da nanoescala.

A força gravitacional é a respon-sável pelos movi-mentos planetáriose pela organizaçãoda estrutura emlarga escala de nos-so Universo. A for-ça eletromagnéticaé a interação que re-sponde pela forma-ção dos átomos,pelas ligações mole-culares e pelos processos biológicosfundamentais, por exemplo. Já a for-ça nuclear forte responde pela coesãodos prótons e dos nêutrons no inte-rior dos núcleos atômicos e pela li-gação dos quarks no interior doshádrons; finalmente, a interação nu-clear fraca é a responsável pelosprocessos radioativos, em que núcleos

atômicos instáveis decaem e emitempartículas.

Cada um destes campos de forçaé descrito por uma teoria. A forçagravitacional, em sua escala macros-cópica, é descrita pela mecânica new-toniana, sempre que as velocidadesenvolvidas forem baixas se compa-radas à velocidade da luz; ainda emescala macroscópica, e mesmo cosmo-lógica, mas no regime em que fenô-menos relativísticos começam aoperar, a descrição do campo gravita-cional fica a cargo da teoria da relati-vidade geral. A descrição microscópicada gravitação, que constitui o que sechama na literatura de gravitaçãoquântica, é um campo de investigaçãocom várias questões ainda em aberto.De fato, abordagens mais recentescomo a das teorias de Supercordas sãonovos encaminhamentos no sentidode, entre outras questões, resolver osproblemas da gravitação quântica.

Já a eletrodi-nâmica quânticadescreve os fenôme-nos que envolvem aforça eletromagné-tica. Foi desenvol-vida a partir doinício da década de1940 e ajudou a en-tender o mundo daschamadas partícu-

las elementares - ou seja, partículas‘indivisíveis’. Trabalhos publicadosentre 1961 e 1968 ajudaram a formu-lar a teoria que unificou tanto os fenô-menos eletromagnéticos quantoaqueles regidos pela força nuclearfraca. A teoria eletrofraca ou o Modelode Salam-Weinberg-Glashow - comoficou conhecido - mostrou, portanto,

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Neste artigo, procura-se ressaltar e elucidar opapel central das simetrias na construção demodelos e teorias para as interações fundamen-tais. neste cenário, introduz-se a supersimetria,discute-se o seu conceito, apresentam-se as suasconseqüências e se esclarece o seu papel primor-dial no programa de unificação dos campos deforça da natureza.

José Abdalla Helayël-NetoCentro Brasileiro de Pesquisas Físicas(CBPF/MCT) e Grupo de Física TeóricaJosé Leite Lopes (GFT - JLL)e-mail: [email protected]

Quatro interaçõesfundamentais descrevem

todos os fenômenos naturaisque observamos. Duas são

observáveis no mundomacroscópico (gravitacionale a eletromagnética) e duas

apenas em escalasubatômica (nuclear forte e

nuclear fraca)

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que essas duas forças, apesar de se nosapresentarem com característicasmarcadamente distintas, têm umaorigem comum, sendo possível pro-por para elas um cenário de unificaçãoque ilustra como ambas se separamno regime da natureza em que faze-mos as nossas observações.

A cromodinâmica quântica (QCD)é a teoria física que incorpora o co-nhecimento experimental e a fenome-nologia das interações nuclearesfortes; a sua formulação ficou estabe-lecida em 1973, com os trabalhos deGross e Wilczek, e independente-mente, de Politzer, o que valeu a estestrês autores o Prêmio Nobel de Físicade 2004. Esta é uma teoria que aindaocupa uma parte considerável dacomunidade dos teóricos e apresentadesafios estimulantes a serem escla-recidos, como por exemplo a resoluçãodo problema do confinamento dosquarks e glúons no interior dos há-drons, o desenvolvimento de técnicasmatemáticas e computacionais paraos chamados cálculos não-perturba-tivos e a compreensão da teoria in-cluindo efeitos de temperatura finita,a fim de compreender o seu rico dia-grama de fases.

Neste cenário das quatro intera-ções fundamentais devidamente orga-nizadas em termos de teorias micros-cópicas, que incorporam tanto as leisdo mundo quântico quanto a teoriada relatividade especial, percebe-se queo conceito-chave para a formulaçãodas mesmas é o conceito de simetria,e, ao lançar mão da idéia de simetria,as teorias de Yang-Mills, propostas em1954, estabelecem o referencial teóricopara a formulação de todas as teoriasacima mencionadas. Do ponto de vistamatemático, cada interação tem asso-ciado a si um grupo de simetria,estrutura matemática que obedece aum conjunto de regras bem específi-cas; no que diz respeito às caracterís-ticas de cada campo de força, o grupode simetria organiza e sistematizagrandezas de natureza física como ascargas e as correntes envolvidas nainteração. Os fenômenos eletromag-néticos são descritos em termos de umgrupo de simetria designado por U(1),associado à carga elétrica; a fenome-nologia das interações fracas acomo-

da-se na estrutura imposta pelo gru-po SU(2), que responde pelo chamadoisospin fraco; a QCD é formulada emtermos do grupo SU(3), que descrevea carga de cor e, finalmente, o gruposubliminar à gravitação é o SO(1,3),conhecido como o grupo de Lorentz,associado a uma grandeza intrínsecadas partículas elementares, a que nosreferimos como spin.

O conceito de simetria e a estru-tura algébrica a ela correspondenteorganiza as leis de conservação asso-ciadas a um dado tipo de interação,sistematiza a classificação das partí-culas e dos estados físicos da teoriaem termos de especificações bem pre-cisas - os chamados números quân-ticos - e estabelece mecanismos paraa compreensão das relações existentesentre as massas e cargas das partículasenvolvidas na interação considerada.Entretanto, estas relações de massaenvolvem exclusivamente bósons(partículas de spin inteiro) ou férmi-ons (partículas com spin semi-inteiroe que obedecem ao chamado Princípioda Exclusão de Pauli); as simetriasusuais não inter-relacionam, contudo,os setores bosônico e fermiônico. Éexatamente neste ponto, a comparti-mentação bóson-férmion, que aSupersimetria faz a sua entrada nacena das interações fundamentais.

E, muito interessante também, ése observar que foi exatamente em1973, quando as teorias específicaspara cada interação ficaram estabe-lecidas, que se inaugurou a era daSupersimetria como conceito funda-mental no projeto de construção deuma teoria de unificação dos quatrocampos de força da nature-za, tendo o propósito, inclu-sive, de viabilizar umambiente teórico para aconsolidação de uma teoriaquântica para a gravitação.

A Supersimetria colocaférmions e bósons no mes-mo patamar, e, na propostade ser uma simetria do es-pectro de partículas físicas(entretanto, é preciso deixarclaro que ainda não foidetectada experimentalmen-te), propõe que bósons e fér-mions possam figurar no

mesmo grupo de partículas degene-radas em massa, ou que, caso venhama ter massas muito próximas, queesta diferença possa ser reproduzidaem termos de um mecanismo deviolação da Supersimetria. Em ummundo regulado pelas leis da Super-simetria, a cada bóson de uma certamassa corresponderia um férmioncom a mesma massa. Não é esta a si-tuação que encontramos no mundoa nós acessível das partículas verda-deiramente elementares. Mas a idéiaé que isto deva ocorrer em uma escalade altíssimas energias, ainda muitoafastadas do regime de energia a quetemos acesso experimental.

A partir da premissa de que existeum princípio de simetria segundo oqual bósons e férmions possam serdegenerados em massa é que se de-senvolveu fortemente a Supersimetriana comunidade da física teórica dealtas energias; em 1975, já eramconhecidas as ditas extensões supersi-métricas da eletrodinâmica quânticae das teorias de Yang-Mills, em cujocontexto são descritas as interaçõesnucleares fortes e fracas. Em 1976,conseguiu-se chegar à formulação su-persimétrica da gravitação, em umateoria denominada Supergravidade,que trouxe uma compreensão maisaprofundada de como deve ser a inte-ração gravitacional no mundo mi-croscópico.

Em todas estas teorias, a idéia deque a interação seja mediada por umbóson intermediário fica, agora coma Supersimetria, acrescida da presençade férmions parceiros dos bósonsmediadores, também conhecidos

Supersimetria

Visão artística dos eventos dentro de uma câmara debolhas.

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como bósons de gauge. No caso daeletrodinâmica, o fóton é acompanha-do do férmion neutro denominadofotino; no contexto das interações fra-cas, os bósons carregados W e o bósonneutro Z são acompanhados dos fér-mions chamados W-inos e Z-ino. Osparceiros supersimétricos dos glúonsda QCD são conhecidos como gluinose, como parceiro do gráviton, partí-cula de massa nula e spin -2 (o quan-tum da interação gravitacional)aparece o gravitino, férmion eletrica-mente neutro com spin -3/2. Ne-nhum destes parceiros supersimétri-cos é degenerado em massa com o bó-son que acompanha; por exemplo, ofotino e o gravitino não são partículasde massa de repouso nula, como ofóton e o gráviton.

Isto impõe que a maneira de seintroduzir a Supersimetria nas teoriasde interações fundamentais, de formacompatível com a realidade experi-mental de que dispomos, é através doschamados mecanismos de quebra.Propõe-se que a Supersimetria tenhaoperado no Universo em seus instan-

tes iniciais e que, com o resfriamentodo mesmo, esta simetria entre bósonse férmions tenha sido quebrada (exis-tem mecanismos específicos e inde-pendentes para se implementar aviolação da Supersimetria) de talforma que, em seu regime atual, aspartículas introduzidas pela Supersi-metria no espectro físico tenham suasmassas em uma escala acima da escalaacessível aos experimentos atuais dealtas energias. Isto significa que os“inos” devem estar todos localizadosna escala do TeV, ou seja, uma ordemde grandeza acima da escala fixadapara a separação das interações fra-cas dos setores eletromagnético e for-te, o que ocorre na faixa das centenasde GeV. Apenas para efeito de referên-cia, a energia de repouso do próton éde 0.938 GeV.

A Supersimetria também tocouquestões teóricas muito relevantes,como o atenuamento das divergências(quantidades infinitas) no regimeultravioleta (região de altíssimas ener-gias) das teorias quânticas de cam-pos, essenciais para a descrição dasinterações fundamentais, e culminoucom uma teoria de gravitação commais possibilidades de consistência doque a gravitação quântica tradicional;além desta notável realização, aSupersimetria possibilitou a formula-ção da primeira classe de teorias quân-ticas de Yang-Mills livres de qualquertipo de divergência ultravioleta, con-cretizando uma grande expectativa deDirac, que sempre sustentava queuma teoria quântica viável deveria serabsolutamente finita. Também, nasua busca por uma teoria de unifica-ção dos diferentes campos de força, aSupersimetria resolve alguns proble-mas fundamentais de consistência queo programa usual de unificação en-frenta.

Os dez primeiros anos de desen-volvimentos em Supersimetria (1974-1984) foram marcados pela incorpo-ração desta simetria na física departículas, no programa de unificaçãoe no projeto de construção de umateoria matematicamente consistentepara a gravitação. Vários modelos deSupergravidade foram propostos e acélebre Supergravidade- N = 8, comuma série de mecanismos agregados,

figurou, por certo tempo na litera-tura, como o paradigma da teoriamais propícia para a unificação dasinterações fundamentais.

A segunda fase, iniciada em 1985,já nos apresenta a Supersimetria emuma outra perspectiva, colocando-ana qualidade de um ingrediente físicoe matemático necessário para a cons-trução das teorias de Supercordas -nesta visão, genuínas teorias funda-mentais - as quais, se espera, possampropiciar o cenário que viabilize o pro-grama de unificação, incorporando osetor gravitacional, descrito, neste no-vo panorama, por uma teoria quânti-ca consistente para a gravitação. ASupersimetria foi, assim, definitiva-mente incorporada à física de partí-culas e vem sendo, de forma crescente,aplicada também a outros campos daFísica, como a física nuclear, a físicada matéria condensada e, até mesmo,a alguns sistemas biofísicos. Seria bas-tante oportuno ainda mencionar quesistemas quanto-mecânicos muitosimples, como aqueles constituídospor partículas, carregadas ou neutras,e sujeitas a certas configurações decampo magnético externo, exibemcaracterísticas de uma supersimetriaque se revela como uma simetria di-nâmica. Esta é uma indicação de comoa Supersimetria possa ser subjacentea interessantes sistemas quânticosrealísticos. Finalmente, com a entradaem operação do large hadron collider(o LHC), a partir de 2007-2008,espera-se dispor de recursos experi-mentais suficientes para a busca e aidentificação de partículas supersimé-tricas (o que seria um teste direto daSupersimetria) e de outras conseqüên-cias indiretas da presença da Supersi-metria no mundo físico, reforçandoo seu marcante papel na formulaçãodas teorias fundamentais para a des-crição dos campos de força da natu-reza.

Supersimetria

Saiba mais sobresupersimetriahttp://web.mit.edu/afs/athena.mit.edu/use r/ r/ e/ red ing tn/www/ne tadv/ssym.htmlhttp://www.supersymmetry.com/http://www1.imperial.ac.ukhttp://www.ocf.berkeley.edu

A supersimetria, em sua proposta deunificar férmions e bósons, traz natural-mente consigo uma descrição do campogravitacional, e sua versão específica parao mesmo é a supergravidade, onde tempoe espaço se unificam em um cenárioespaço-temporal mais amplo, o chamadosuperespaço.