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2 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n6, 2010
[-] Sumrio # 6
EDITORIAL 3
ARTIGOS APROXIMAES DO CASTELO DE KAFKA Cludio R. Duarte 5 O VELHO MUNDO PRECISA SUCUMBIR Mito e histria em Berlin Alexanderplatz Rapahel F. Alvarenga 17
A FRATURA DA FORMA Constituio e implicaes da representao da metrpole em Berlin Alexanderplatz Gabriela Siqueira Bitencourt 69
LOUIS-FERDINAND CLINE Voyage au bout de la nuit e a crise do realismo Daniel Garroux 98
DA CENTRALIDADE DE CANUDOS Csar Takemoto 123
JOO TERNURA Um livro revelia do prprio autor Helena Weisz 131
OTIMISMO E SEBASTIANISMO NA HISTRIA RECENTE DA TROPICLIA Carlos Pires 146
O DIA-A-DIA COLONIZADO Lacan, Lefebvre e os eventuais discursos cotidianos Nils Gran Skare 162
TRADUES LITERRIAS VARIANTE DA ABERTURA DE O CASTELO Franz Kafka 181
A BAILARINA E O CORPO Alfred Dblin 184
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Editorial
A edio n 6 de Sinal de Menos gira em torno das seguintes questes: como a
literatura tem representado a cultura dos marginalizados na sociedade moderna? Como o
que est margem da sociedade, incluindo a o inconsciente de seus sujeitos, irrompe nas
relaes sociais?
A seo de ARTIGOS abre com um ensaio de CLUDIO R. DUARTE sobre O Castelo
de Franz Kafka. O autor esboa as linhas fundamentais de sua construo e mostra por que
este talvez o romance mais complexo de Kafka, sintetizando momentos fundamentais de
sua obra, pois alm da dominao e da alienao, ele introduz de forma poderosa a
irredutvel no-identidade da figura de K.
A seguir, temos dois ensaios sobre o romance Berlin Alexanderplatz de Alfred
Dblin. O primeiro, de RAPHAEL F. ALVARENGA, procura integrar explicao
materialista a dimenso mtico-religiosa deste que um romance de formao de um
marginal, inscrevendo a obra no conturbado contexto poltico e cultural da Repblica de
Weimar, a cujo destino est enredado o de suas personagens. O texto de GABRIELA S.
BITENCOURT busca, a partir da anlise de alguns elementos formais da representao do
espao urbano no livro, discutir quais os desdobramentos do uso da montagem e como, por
meio dela, a configurao da metrpole literria afeta a forma do romance.
Em seguida, DANIEL GARROUX faz uma leitura de Voyage au bout de la nuit, de
Louis-Ferdinand Cline, sob o ponto de vista da ruptura da forma realista tradicional. Ao
colocar seu leitor diante de um fluxo discursivo no-linear que emana de uma conscincia
cindida a narrativa subverte alguns dos pressupostos de que o gnero do romance havia se
servido at ento. O ensaio desenha a experincia social de fundo sedimentada no romance.
No prximo artigo, CSAR TAKEMOTO tenta repensar a centralidade do evento da
guerra de Canudos para a configurao artstica de duas obras importantes da literatura
brasileira do sculo XX: Os Sertes de Euclides da Cunha e Grande Serto: Veredas de
Guimares Rosa. Para tal, o autor se utiliza de uma crnica de Machado de Assis para da
avanar alguns pontos na interpretao de uma determinada constelao histrica
brasileira.
Em seu artigo, HELENA WEISZ acompanha a trajetria do mais ambicioso projeto
do escritor brasileiro Anbal Machado. Um livro que comeou a ser escrito ainda no
primeiro Modernismo, acompanhou todos os percalos e contradies desse movimento e
s foi terminado em 1964.
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Fechando a sesso brasileira, CARLOS PIRES analisa um balano histrico da
msica popular e das transformaes do Brasil, desde o final da dcada de 1960, feito por
Caetano Veloso, em 1993. Essa reconstruo da histria recente do pas reposiciona
o tropicalismo como um evento sem certas linhas de fora, que so centrais para entend-
lo. A anlise busca compreender qual o sentido desses apagamentos pontuais, que
aparecem quase como sintomas no discurso de Veloso.
O ltimo ensaio, da autoria de NILS GRAN SKARE, pensa a cotidianidade, no
sentido de Henri Lefebvre, sob o ponto de vista da teoria lacaniana do discurso, em suas
modalidades fundamentais (a do mestre, a do universitrio, a da histrica, a do analista e,
por fim o dialeto do capitalista). Se o cotidiano o lugar potencial do acontecimento, o
capitalismo, segundo o autor, seria um sistema que busca administr-lo e, no limite,
evacu-lo do cotidiano.
A seo de TRADUES LITERRIAS traz uma variante da abertura de O Castelo
de Kafka, que lana certa luz sobre o carter da luta de K. no romance, e um pequeno conto
de ALFRED DBLIN (A Bailarina e o corpo), ambos traduzidos diretamente do alemo.
Lembramos que a revista vem aceitando contribuies. O prximo nmero trar uma
entrevista com Robert Kurz, repensando temas de seu livro seminal, O colapso da
modernizao, aps 20 anos de sua publicao.
DEZEMBRO de 2010
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Aproximaes dO Castelo de Kafka
Cludio R. Duarte*
1. Como nas grandes obras, a abertura de Das Schlo (1922) nos pe imediatamente diante
de uma clula de seu princpio de construo:
Era tarde da noite quando K. chegou. A aldeia jazia na neve profunda. Da encosta [Schloberg, colina do castelo] no se via nada, nvoa e escurido a cercavam, nem mesmo o claro mais fraco indicava o grande castelo. K. permaneceu longo tempo sobre a ponte de madeira que levava da estrada aldeia e ergueu o olhar para o aparente vazio.1
A primeira viso das terras do conde Westwest esta: o vazio aparente na paisagem em
preto e branco. K. fica por longo tempo parado sobre a ponte observando a presena-
ausncia da aldeia e do castelo, envoltos na bruma e na neve. Eles no s no se oferecem
perspectiva enquanto paisagem, como K. parece nada saber sobre eles. O que aqui fica
pressuposto a indistino de aldeia e castelo.
2. Isto que nos pe imediatamente diante do enigma de K.: no s ele aparentemente
desconhece que chegou a seu destino, a uma aldeia e a um castelo (Em que aldeia eu me
perdi? Ento existe um castelo aqui?, DS, 8/10), como ignora o tal conde e suas
propriedades o que torna impossvel, como j apontava Adorno, que ele tenha sido
chamado at l, isto , que ele seja de fato um agrimensor, com seus ajudantes, que tenha
se adiantado a eles durante a noite e tenha lhes confiado aparelhos de medio.2
Certamente por isso que ele no reconhece os ajudantes, Artur e Jeremias, quando estes
chegam hospedaria no dia seguinte, enviados pelo castelo (DS, 31/32). Quem K., afinal?
Um impostor? Um comediante (Chega de comdia, diz ele, DS, 9/11)? O que veio fazer
ali? O que ele quer? Como a personagem se desenvolve na trama desde o incio obscura?
* Bolsista CNPq, doutorando DG-FFLCH/USP. 1 KAFKA, Franz. Das Schlo [1922]. (Kritische Ausgabe. Herausgegeben von Malcom Pasley). Frankfurt a. M.: S.
Fischer, 1982, p. 7. (Trad. Modesto Carone: O Castelo. 2 ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 9). Doravante, cito o texto diretamente no corpo do texto sob a abreviao DS, seguido do nmero das pginas em alemo e em portugus, respectivamente.
2 ADORNO, Theodor W. Anotaes sobre Kafka [1953] in:__. Prismas. (Crtica cultural e sociedade) [1955]. So Paulo: tica, 1998, p. 242. Marthe ROBERT tambm apontou a impostura deste incio (Simbolismo y crtica de los smbolos in:__. Acerca de Kafka/Acerca de Freud [1967]. Barcelona: Anagrama, 1970, p. 42-3).
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3. Como se sabe, longe de responder claramente tais questes, o romance de Kafka constri
um mundo cerrado e enigmtico, que tende a suscitar mltiplas interpretaes. O narrador
em terceira pessoa baixa ao horizonte das personagens e tende a se reduzir viso de fora,
com um acesso limitado ao seu mundo interior. Ele se centra na tica de K.: o texto se
condensa e se fecha nos primeiros dias de sua permanncia na aldeia e opera como uma
contnua apresentao, multiplicao e destruio de aparncias e de imagens positivas. Da
a vulnerabilidade e a fragilidade de muitas interpretaes da obra, que somente ganham
alguma consistncia quando se dispem pacientemente a ler os detalhes do ponto de vista
da totalidade da composio (mesmo inacabada).
4. Se K. no simplesmente um estrangeiro, mas um falso agrimensor (Landvermesser) (o
qual, Schwarzer pretende reduzir a um reles e mentiroso vagabundo [Landstreicher], em
um momento de fria, DS, 12/13) um intruso que se v nitidamente como um agressor
, o castelo aceita e alimenta a luta com outra impostura. De fato, aps o primeiro
telefonema de Schwarzer, que dava sinal negativo ao suposto agrimensor, K. espera apenas
que os aldees se atirem sobre si e o expulsem do territrio do conde. Mas, aps o
inesperado segundo telefonema que o confirma como agrimensor (o prprio chefe do
escritrio quem telefona), ele reflete o seguinte:
Ento o castelo o havia designado agrimensor. Por um lado isso era desfavorvel a ele, pois indicava que no castelo se sabia tudo o que era preciso a seu respeito, as relaes de fora tinham sido pesadas e aceitavam a luta sorrindo. (DS, 12/14, grifos meus).
Se os camponeses levam as leis e as tradies risca, o castelo sustenta a impostura de K. e
indiretamente confirma-se tambm como farsa. Por isso, na seqncia deste mesmo trecho,
K. sente tambm certa liberdade e certo destemor em relao a seu adversrio:
Mas por outro lado isso tambm era propcio, pois a seu ver provava que o subestimavam e que ele teria mais liberdade do que de incio podia esperar. E se acreditavam com esse seu reconhecimento [Anerkennung] como agrimensor do ponto de vista moral, sem dvida superior conserv-lo num estado de medo contnuo, ento eles se enganavam: isso lhe dava um leve tremor, mas era tudo. (DS, 12-3/14)
Nessa chave, novos problemas se colocam: onde a lei tem sua verdadeira sede ou ponto de
sustentao? Qual a diferena entre a aldeia e o castelo? O que h por trs daquele vazio
aparente?
5. Como no conto Diante da lei, estamos o tempo todo Diante do castelo, mas o castelo
a lei ou a sede da lei no est simplesmente ausente. Muito pelo contrrio, o castelo est
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presente demais l embaixo, na aldeia. O paradoxo inicial de O Castelo que apesar de seu
ttulo ele se passa o tempo todo na aldeia. Talvez porque o castelo , de certa forma, nada
mais que a aldeia. Como ensina o professor da aldeia: No h diferena entre os
camponeses e o castelo (DS, 20/21). As autoridades judiciais escreve Wilhelm Emrich
no esto fora, mas habitam em pleno centro da vida terrena, ou mais ainda, elas so a
vida mesma. (...) A lei desconhecida segue sendo desconhecida ainda que incessantemente
esteja presente e opera em todas as relaes da vida e do pensamento.3 A fantasmagoria do
castelo manifesta-se na aldeia, na vida dos aldees, na sua conscincia e na sua prtica
reificadas; no limite, ele se confunde com eles e idntico a eles. Em lugar nenhum K.
tinha visto antes, como ali, as funes administrativas e a vida to entrelaadas de tal
maneira entrelaadas que s vezes podia parecer que a funo oficial e a vida tinham
trocado de lugar (DS, 94/92-3).
6. Kafka nos insere num mundo ficcional em que h e no h distino entre as coisas e os
seres. Pensando na dona do Albergue da Ponte (Gardena = guardi) e talvez em Frieda e
nos ajudantes, K. se pergunta: o que significava, por exemplo, o poder at agora apenas
formal que Klamm exercia sobre o ofcio de K., comparado com o poder que Klamm tinha
em toda a sua efetividade no quarto de dormir de K.? (DS, 94/93). Essa indistino entre
as ordens do mesmo e do outro a coero da identidade que aliena e esmaga as
particularidades tende a ser a forma predominante do livro. Como runa desse mesmo
processo social efetivo, ele prprio restou como torso monumental de exposio do
problema da reificao e do poder alienado, na sociedade moderna.
7. O romance foi lido diversas vezes como uma espcie de metafsica da ausncia, de busca
impossvel do santo Graal ou da morada do deus absconditus, ou mais simplesmente como
a busca da integrao na vida da aldeia ou do castelo (K. sendo o prottipo do judeu,
segundo alguns, para outros uma espcie de messias), nesse caso, vale dizer, uma
integrao no seio da mais completa alienao. Na verso alucinada de Gnter Anders, por
exemplo, a vida de K. consistiria nas tentativas e esforos mil vezes repetidos para ser
3 EMRICH, Wilhelm. Protesta y promesa [1960]. Barcelona/Caracas: Alfa, 1985, p. 128-9. Este ponto foi reforado
por IEK, Slavoj. Eles no sabem o que fazem. O sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 187. Para anlises especficas de O Castelo, beneficiei-me de comentrios de: ROBERT, Marthe. Le dernier messager in:__. L ancien et le nouveau. De Don Quichotte Franz Kafka. Paris: Grasset, 1963; EMRICH, Wilhelm. Der menschliche Kosmos: der Roman Das Schloss in:__. Franz Kafka. Frankfurt a. M./Bonn: Athenum, 1958; KRAFT, Herbert. Being There Still: K., Land Surveyor, Stable-Hand, ... in:__. Someone like K. (Kafkas Novels). (Trad.: R. J. Kavanagh e H. Kraft). Wrsburg: Knigshausen & Neumann, 1991; BOA, Elizabeth. The Castle in: Preece, J. (ed.). The Cambridge Companion to Kafka. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
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aceito na aldeia do castelo, em que se esforaria para atender a todas as prescries,
apropriar-se interiormente delas e justificar at mesmo as pretenses imorais dos
governantes! Kafka se torna, assim, um moralista do nivelamento e da obedincia.4 No
entanto, desde o incio K. confessa que no poderoso e que seu respeito pelos poderosos
uma estratgia ou artimanha (DS, 16/17). Por certo, trata-se de uma busca obstinada, mas
com um sinal desde o incio negativo: impossvel imaginar que K. leve realmente a srio
o que se passa no castelo a partir da admisso de sua impostura, muito menos que ele
atribua um carter natural ou divino a ele ou um sinal positivo sua busca, s prescries
do castelo etc. Mediante o estranhamento deliberado, Kafka cria um universo que escapa
clareza, coerncia, previsibilidade e distino precisa, ao mesmo tempo em que busca
trilhar o que escapa aos poderes obscuros o caminho aportico e circular de K. entre a
aldeia e o castelo. Numa variante do incio do romance, K. diz que veio para lutar (Zum
Kampf bin ich ja hier) e, segundo uma camareira, todos na aldeia estariam cientes da
chegada de um forasteiro.5 Dessa perspectiva, salvo engano no continuada e no
incorporada pelas diversas outras passagens da verso final do romance, trata-se de forma
ainda mais explcita de uma luta radical entre o sistema e um indivduo, o seu resduo.
8. Um equvoco comum da crtica julgar que a obra de Kafka no contm qualquer espcie
de desenvolvimento em seu ncleo, como se o autor fizesse um finca-p arbitrrio numa
simples paralisao do tempo, em que os acontecimentos consistem em imagens
isoladas, por onde ele se torna o glorificador do compromisso e do ritualismo em geral,
isto , o apologista da mera repetio de formas sociais vazias.6 Contudo, um
desenvolvimento bloqueado e interrompido no absolutamente um no-desenvolvimento.
preciso aqui distinguir, no plano analtico, o movimento da forma e o do contedo. Em
certo sentido, temos um movimento de reiterao da forma e um movimento de
diferenciao e de decomposio do contedo. Pode-se pensar esse duplo movimento em O
Castelo como imposio coercitiva da identidade, sempre pressuposta na aldeia; mas uma
identidade nunca realizada at o fim, pois negada precisamente pela ao e a interao de
K. com as outras personagens. Esse desdobramento leva de estranhamento a
estranhamento, destruindo as suposies do heri (e do leitor). O estranhamento
4 ANDERS, Gnter. Kafka: pr e contra Os autos do processo [1951]. 2 ed. So Paulo: Perspectiva, 1993, p. 26 e
33. 5 KAFKA, Franz. Das Schlo. Apparatband. (Herausgegeben von Malcom Pasley). Frankfurt am Maim: S. Fischer,
2002, p. 116. 6 Onde s h repetio, no h progresso do tempo. Todas as situaes do romance de Kafka so, de fato, imagens
paralisadas. (ANDERS, op. cit., p. 30, 83 e 39.)
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funciona como desnaturalizao das referncias realistas tradicionais e, ao mesmo tempo,
como apresentao das contradies sociais reais: as deformaes da perspectiva realista
no so uma mania do autor nem de uma mera figura de estilo, mas se tratam precisamente
de traos produzidos pela violncia social da identidade. Esta conduzida pelo escritor at
o absurdo a fim de poder nome-la de modo mais radical, ao mesmo tempo em que expe,
assim, o sofrimento e as deformaes sociais por ela produzidos.
9. Se K. sofre de certa ingenuidade nos primeiros dias, esta vai sendo minada pelos
acontecimentos e transformada num processo crtico que esclarece no obviamente o
castelo, desde o incio fechado e inacessvel interpretao, mas alguns pressupostos cegos
e absurdos de sua autoridade, na aldeia. Em contraste com o ritualismo burocrtico mais
estrito que zela pela identidade, a no-identidade ganha relevo. Ela fica sob permanente
controle e ao final tem ser neutralizada. Os aldees sempre esto vigiando o forasteiro K.,
que no pode pernoitar no albergue dos senhores; Momus o inquire e registra todos os seus
passos; os ajudantes so enviados por um funcionrio do castelo (Galater) em nome de
Klamm, supostamente para diverti-lo (e confundi-lo); o prefeito o rebaixa a servente da
escola; os professores da escola o vigiam e humilham; ele expulso do corredor do albergue
dos senhores etc. O ponto mximo desse poder panptico quando Erlanger ordena o
retorno de Frieda sua funo de atendente no balco: nosso dever vigiar o bem-estar de
Klamm, diz o secretrio, de tal forma que mesmo incmodos que no so nada para ele
e provvel que no exista absolutamente nenhum ns os eliminamos quando nos
chamam a ateno como possveis perturbaes (DS, 428/402). A normalidade do
tempo social se realiza pelo rgido controle do espao da aldeia. nesse sentido que todas
as autoridades do castelo, segundo o prefeito da aldeia, so nada mais que autoridades de
controle (DS, 104/103). Um sistema que, em sua fantasia, funciona como uma mquina
impessoal sem falhas.
10. As relaes impessoais de dominao se materializam em relaes interpessoais e,
como tais, esto sujeitas a toda ordem de contingncias e arbitrariedades. o que aparece,
por exemplo, na forma de relaes de propriedade sobre as coisas, os lugares e as prprias
pessoas. Se em Der Proze tudo pertence ao tribunal, no condado, de maneira anloga,
tudo propriedade do conde Westwest. Como logo informa Schwarzer a K.: Esta aldeia
propriedade do castelo, quem fica ou pernoita aqui de certa forma fica ou pernoita no
castelo. Ningum pode fazer isso sem permisso do conde (DS, 8/10). O caso mais extremo
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deste poder coisificador a propriedade exercida sobre as mulheres da aldeia. Na verdade
diz Olga, tendo em mente o episdio da carta de Sortini a Amlia consta que todos ns
pertencemos ao castelo, que no existe distncia e portanto nada para transpor (DS,
309/293). Deste modo, Klamm sem dvida como um comandante sobre um exrcito de
mulheres, ordena ora esta, ora aquela, para ir at ele. (ib.). A prpria Frieda tambm
concebe sua relao com K. como sendo uma relao de propriedade (DS, 245/235) e no
deixa nunca de se subordinar s injunes do castelo. E assim o abandona no final.
11. Ao contrrio do que geralmente se afirma, O Castelo no analisa o poder de um
despotismo arcaico a exemplo da monarquia austro-hngara.7 Como apontou Lwy, a
alienao burocrtica moderna o metro fundamental das relaes sociais no romance,
ganhando at mesmo, numa fala do prefeito da aldeia (DS, 110/107-8), a forma metafrica
de uma mquina autnoma, que dispensa a participao humana.8 possvel ver na
base social, porm, algo como uma economia mercantil simples, tpica de uma sociedade
agrria9, subordinada burocracia de uma grande empresa ou de um Estado tipicamente
modernos. O aparelho administrativo do castelo cobra os seus tributos, os aldees tm os
seus negcios isolados ou funes particulares, como camponeses, artesos, hospedeiros e
funcionrios, enquanto K. espera tornar-se, de incio, uma espcie de assalariado
contratado pelo castelo. Assim, Kafka parece mesclar no romance as formas de dominao
mais modernas e abstratas e as mais tradicionais e imediatas. O interesse esttico dessa
mescla a nfase no poder social reificado da identidade e de sua reproduo. A dominao
social se infiltra e se dissemina desde a famlia patriarcal camponesa tradicional at os
grupos mais amplos e abstratos, nos albergues e nos escritrios da maquinaria burocrtica.
12. A marca histrica do romance pode parecer apagada e diluda, mas no indefinida.
Em um ponto da construo ela central: a forma burocrtica que em geral molda a
linguagem protocolar (Anders) do romance, principalmente dos discursos dos
funcionrios (Prefeito, Brgel, Momus, Erlanger, Professor). Desde o incio, com
Schwarzer, K. comprova a formao de certo modo diplomtica da gente mida do
castelo (DS, 11/13). Mas esse estilo protocolar se espraia tambm pela fala de Gardena
(dona do Albergue da Ponte), de Olga, de Pepi e do prprio K.10
7 Cf. a boa leitura de: LWY, Michael. Franz Kafka, sonhador insubmisso. So Paulo: Azougue, 2005, Cap. 5 (O
castelo despotismo burocrtico e servido voluntria), p. 163. 8 Idem, ibidem, p. 165. 9 ADORNO, op. cit., p. 254. 10 Cf. CARONE, Modesto. Psfcio in: O Castelo, op. cit., p. 479.
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13. A forma histrica torna-se inteligvel tambm na descrio da arquitetura do castelo,
que frustra toda expectativa do leitor. Depois de seus contatos telefnicos, somente o
agrimensor K. no se espanta com a aparncia prosaica do suposto castelo, to parecida
com a morfologia da aldeia e de sua prpria cidade natal, em algum lugar da Europa do
incio do sculo XX. O imaginrio feudal desaba:
No conjunto o castelo, tal como se mostrava da distncia, correspondia s expectativas de K. No era nem um burgo feudal nem uma residncia nova e suntuosa, mas uma extensa construo que consistia de poucos edifcios de dois andares e de muitos outros mais baixos estreitamente unidos entre si; se no se soubesse que era um castelo seria possvel consider-lo uma cidadezinha. (DS, 17/18)
De fato, quando chega mais perto o agrimensor se decepciona: na verdade era s uma
cidadezinha miservel, um aglomerado de casas de vila, que se distinguiam por serem todas
talvez de pedra, mas a pintura tinha cado havia muito tempo e a pedra parecia se esboroar
(ib.). Kafka toma o processo de destruio da imagem ao p da letra.
14. A modernidade do romance kafkiano vem indicado ainda no nome do conde algo
como Oesteoeste , o qual sugere a onipotncia mundial do ocidente capitalista, bem
como a decadncia da sociedade que o suporta ( no extremo ocidente o ponto de ocaso do
sol, da o ambiente frio e tenebroso do romance). O contexto imediato da obra, o ps-
Primeira Guerra Mundial, no outro que o do mundo dominado de ponta a ponta pela
ordem do capital, segundo o modelo mesclado j referido ( 11).
15. O nome Westwest sugere tambm a contigidade e a identidade forada do Castelo-
aldeia um nome que apenas o incio de uma longa srie de duplos que moldam o
romance (dois albergues, dois ajudantes, duas garonetes, dois professores, casteles e
subcasteles, senhores e seus secretrios, Sordini e Sortini, Klamm e K. etc.). O molde
estrutural destas duplicidades a contraposio entre o castelo e a aldeia, ou ainda, a lei e a
ordem e o seu avesso obsceno a desordem e a contradio imanentes.
16. O ncleo dialtico do romance a mediao de campos opostos: a ordem que aparece
como desordem, o sistema como contradio, a exceo como regra, a essncia (Wesen)
como monstruosidade (Unwesen). Assim, o segredo da mais rgida burocracia algo da
ordem do capricho, da incoerncia e da loucura a ridcula embrulhada [lcherliche
Gewirre] que, conforme as circunstncias, decide sobre a existncia de uma pessoa (DS,
102/101). Esse movimento irnico e produz o humor corrosivo do livro, que adentra no
reino do inverossmil. Os criados dos senhores do castelo so to selvagens e dominados
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por impulsos insaciveis (DS, 348/328) quanto os seus senhores. A noite no albergue dos
senhores transforma-se numa espcie de prostbulo. A verdade do bom funcionrio Sordini
o obsceno Sortini; ou ainda, por trs da seriedade funesta do castelo esconde-se a
infantilidade, o escrnio e a impostura. O clima de comdia domina o subtexto. Assim, j no
incio, Schwarzer aparece com trajes de cidade, rosto de ator (DS, 7/9).
17. O figurino tipicamente burgus de Klamm (gorducho, dorminhoco, casaca preta,
fumando charuto, com tudo a seu dispor) se contrape aos farrapos de K., tal como as
excelentes e modernas instalaes do albergue dos senhores contrastam com a pobreza e a
doena nas casas campesinas. Porm, no se trata apenas da desigualdade social entre as
condies de vida de senhores, funcionrios e aldees, mas sobretudo da igualdade de um
sistema que captura a todos na mesma hierarquia cega e coisificada de sua dominao. Para
alm da desigualdade, trata-se de reconhecer o sistema que articula todos os sujeitos como
carcaas mortas como suportes de sua identidade fundamental. Nesse sentido, o romance
parece criar um mundo que mimetiza as contradies da forma do valor e da ciso de
gneros da sociedade moderna. nesse sentido, ainda, que a dona do Albergue da Ponte
tanto objeto feminino de Klamm quanto se corporifica como sujeito da dominao
patriarcal de Frieda. Nesse ncleo de contradies, ficam postas ou pelo menos
pressupostas, ainda, formas irredutveis de negao nas figuras de K. e de Amlia (a firme
recusa da proposta indecente de Sortini) e at certo ponto de Olga e Barnabs (a sua
abnegao em favor da famlia, apesar de seu lamentvel conformismo diante da
autoridade), de Pepi (a menina sonhadora que pensa em incendiar o castelo!) e do menino
Hans (que parece se contrapor ao professor e ao pai).
18. Para alm do inalcanvel Klamm e do etreo conde Westwest deve haver um rei
jamais dito e muito menos nomeado no romance uma sugesto da instncia totalmente
abstrata, impessoal e fetichista da lei. Mas o vazio do poder opera plenamente na aldeia, em
cada funcionrio, posto ou cargo desejado e ocupado pelo mais simples e indiferente
aldeo, que sonha em obter alguma distino social ou compensao imaginria galgando
os degraus irrisrios da hierarquia social do condado.
19. O castelo no tem nada de divino ou de diablico em si, mas o pleno resultado do
processo social moderno encantado por uma aura sagrada. Nesse sentido, o moderno
entrelaa-se ao mtico, mas no deixa de dar sinais de sua obsolescncia e decomposio,
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embora se sustente no ar com uma gargalhada diablica. Klamm no l nenhum protocolo,
a eficincia administrativa dos funcionrios mais que duvidosa, s os dominados
sustentam a sua legitimidade quase sagrada. As interpretaes teolgicas foram o texto
para materializar o metafsico.11 Mais vlido seria dizer que o romance trata da dominao
moderna recoberta pelo terror e pela mstica das prerrogativas senhoriais. Tal como a
ordem se entrelaa desordem, o moderno se entrelaa ao arcaico e o histrico ao
metafsico.
20. O trabalho compulsivo dos funcionrios do castelo potencialmente idntico
petrificao do movimento da vida na aldeia. Ao mesmo tempo, o movimento petrificado de
funcionrios e aldees para resguardar a identidade de seu modo de vida, comandado pelos
senhores do castelo, idntico ao sono, negligncia e ao desprezo de Klamm em relao
ao empenho burocrtico ou ertico de seus subordinados.
21. Em vez do uso autnomo do tempo, o tempo dos camponeses se subordina ao do
castelo e, por isso mesmo, em vez de referidos aos valores de uso, eles se subordinam s
tarefas terrivelmente abstratas do aparelho administrativo. Isso iluminado pelo caso de
Barnabs, que, apesar de excelente sapateiro, torna-se um mensageiro do absurdo social, s
podendo se dedicar residualmente sua atividade.
22. Esta a distino fundamental dos camponeses em relao a K.: o seu objetivo declarado
no ocupar um cargo superior no condado ou simplesmente se alojar na aldeia, mas de
incio distinguir-se como trabalhador livre e independente do castelo. Nessa chave, K. pode
ser lido como alegoria do proletariado moderno. O agrimensor tem por volta de trinta anos
e aparece como um homem bastante esfarrapado, com uma minscula mochila,
empunhando um cajado cheio de ns (DS, 11/12), que, claro, se apresenta como
agrimensor, trocando o seu tempo por dinheiro e aparentemente s desejando trabalhar no
condado. Seu confronto com o castelo, que o coloca como agressor, visa multiplicar a sua
relao com outras foras que no conhecia (DS, 92-3/92). Por isso ele apoia-se em
Frieda e em Barnabs e na experincia de Olga, Amlia, Hans e Pepi. De forma ardilosa, ele
gere e executa o poder contra o poder existente. como se podem compreender todas as
11 As interpretaes gnsticas, como a de Erich Heller, so to insustentveis quanto as teolgicas: O castelo do
romance de Kafka , por assim dizer, a guarnio muito bem armada de uma companhia de demnios gnsticos que sustentam com xito um posto avanado contra as manobras de uma alma impaciente. Nenhuma idia concebvel de divindade pode justificar os intrpretes, que vem no Castelo a residncia da lei e da graa divinas (HELLER, Erich. Kafka. So Paulo: Cultrix, 1976, p. 116).
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suas relaes. Mas como mantm a luta de forma isolada, ele inevitavelmente cai na
condio de misria e abandono.
23. K. representa o homem abstrato, annimo, arrancado de referncias histricas e da
plenitude de uma existncia cotidiana.12 No percurso de sua luta contra o castelo, ele recebe
uma srie de determinaes, que em parte so mscaras (usadas de forma estratgica):
segundo o resumo de Gardena, ele no do castelo nem da aldeia, um nada que est
sobrando e fica no meio do caminho e que traz aborrecimento comunidade (DS,
80/80), um estrangeiro que ignora e perturba os costumes do condado. Seu desejo de
aproximao de Frieda o desejo de permanecer na aldeia at ser rebaixado ao posto
insignificante de servente da escola. Nessa luta, ele pode se passar casualmente por pai de
famlia (num dilogo inicial com o dono do albergue a respeito do pagamento dos servios
no condado, mas uma referncia abandonada) ou por antigo ajudante do agrimensor
(Josef, num telefonema para o castelo) e, claro, por amante e noivo de Frieda, que, tudo
indica, no passaria de uma ttica para se aproximar de Klamm e do castelo. Fica claro na
trama que seu objetivo ao se unir a Frieda no Klamm, mas sim passar por ele, ir em
frente rumo ao castelo (DS, 176/169).
24. H aqui o sentido social fundamental do protagonista, muito pouco observado pela
crtica standard, nesta srie de atributos negativos: de forma objetiva e segundo a letra do
romance, K. menos o estrangeiro em geral que o moderno indivduo sem propriedade, um
sujeito sem objeto, i.e., um proletrio mobilizvel pelo castelo.13 Nessa luta em plena
areia movedia, ele degringola para a condio de pria social e mantido margem mais
que exilado, um homo sacer exterminvel, como ele mesmo diz, em situao de
emergncia (Notlage, DS, 198/191). Mas K. tambm, justamente por causa desta
condio negativa, o homem capaz de dizer no (DS, 84/84). Temos aqui um indivduo
proletarizado contraposto comunidade tradicional dos aldees, fixados propriedade e
anexados ao castelo. O seu no reforado pelo no dado por Amlia proposta srdida
de Sortini.
12 Neste ponto podemos seguir ANDERS, op. cit., p. 50. Cf. tambm ROSENFELD, Anatol. Letras e leituras. So
Paulo: Perspectiva, 1994, p. 47-51. 13 Na sociedade burguesa, o trabalhador, p. ex., existe de um modo puramente no objetivo, subjetivo; mas a coisa
que se pe diante dele se tornou agora a verdadeira comunidade que ele tenta devorar, mas que o devora. (MARX, Karl. Grundrisse der Kritik der politschen konomie (1857-1858). Berlin: Dietz, 1953, p. 396.)
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25. Entre as alternativas do contrato de trabalho ou da simples anexao aldeia/castelo,
K. no hesita em escolher a primeira condio: S como trabalhador da aldeia, o mais
distante possvel dos senhores do castelo, ele era capaz de conseguir alguma coisa l (DS,
42/43). Neste momento de afirmao, K. no quer favores e parece exigir apenas os seu
direito (DS, 119/116): estabelecer-se na aldeia para se tornar um trabalhador. Mas isso faz
parte de seu jogo com o castelo. O seu objetivo no simplesmente trabalhar, mas
confrontar as autoridades do castelo. E menos penetr-lo que afinal parecia um alvo
fcil (DS, 50/51) durante o dia, perodo em que se tornava supostamente um local de
trabalho frentico, tal como sondado pela manh no Albergue dos Senhores , do que
desmascarar o seu encanto e a sua impostura. Nas palavras de K., ao pensar no
comportamento do prefeito e do professor, tudo ali no passa de um embuste oficial (DS,
235/225).
26. Como a crtica j observou, a profisso de K. alegrica. A agrimensura seria, assim,
uma investigao sobre o significado das relaes de propriedade e da propriedade da terra.
Seria um ato revolucionrio.14 Ele o Agrimensor, aquele que mede a terra, mas o
Agrimensor de um mundo que no quer deixar repor em causa as suas medidas, o
Agrimensor de um mundo sem medida. Por isso a sua qualidade de agrimensor no
reconhecida por ningum. (...) O seu olhar, unicamente, faz voltar as coisas sua medida.
Desde que aparece, o cenrio rasga-se e por detrs do fausto das aparncias e da lenda
revela-se a realidade irrisria.15 Assim, a fragilidade do poder exposta por K. tanto
quanto isso tolerado pelo castelo como uma espcie de jogo cmico (segundo, por
exemplo, as duas cartas de Klamm).
27. O agrimensor alegrico questiona a propriedade, as leis, os poderes do castelo. Ao
mesmo tempo capaz de medir a deformao da particularidade de cada um frente
coao da identidade. Kafka assinala literalmente o peso deste domnio: nas costas
curvadas dos funcionrios, na doena e no envelhecimento que grassa por todos os lados,
tal como nos rostos literalmente torturados dos camponeses, cujos crnios pareciam ter
sido achatados em cima e os traos da face formados na dor da pancada (DS, 39/40). Os
aldees so como animais domesticados pela lei do castelo. A prpria escola fica ao lado do
celeiro e Frieda comeou no posto mais baixo, como criada de estrebaria no Albergue da
Ponte. Por isso, tambm, ela manda literalmente os servidores do castelo para a estrebaria,
14 EMRICH, Wilhelm. Der menschliche Kosmos: der Roman Das Schloss, op. cit., p. 300. 15 GARAUDY, Roger. Um realismo sem fronteiras [1963]. Lisboa: Dom Quixote, 1966, p. 173-4.
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no albergue dos senhores, a golpes de chicote. K. percebe esse poder como histrico-natural
e em parte como uma espcie de servido voluntria: A reverncia diante da autoridade
inata em vocs, continuar a ser incutida durante a vida toda das formas mais variadas e
por todos os lados; at vocs ajudam nisso como podem (DS, 288/274).
28. nesse sentido tambm que K. assume o carter de um mestre para Hans, para Olga e
para Pepi. Ele mesmo se oferece como mdico para a me de Hans. Se os aldees e os
funcionrios aparecem na posio de objeto ou de instrumento do Castelo (tal como
Momus, DS, 183/176: Werkzeug) , ento, no fundo, a sua funo virtualmente o de
encarnar uma lei simblica que barra o gozo desse Outro absoluto e impostor.
29. Dessa perspectiva, K. busca a ruptura no s do pacto mtico que subordina os aldees
como servos dos senhores do castelo partes anexadas propriedade do conde, mas
tambm tenta romper a fora concreta da idia de contrato moderno, desnaturalizar a
prpria categoria do ser como mero trabalhador de uma potncia alienada. Ele percebe
criticamente a carta jocosa de Klamm, que no s o admitia como agrimensor, como dizia
que lhe interessava ter trabalhadores satisfeitos (DS, 40/41). Ele percebe que sua
admisso como simples trabalhador abstrato era um sinal de perigo com isso, pensa ele,
o castelo o punha alegremente no seu devido lugar, numa condio aparentemente
inelutvel: Se K. queria ser trabalhador, podia faz-lo, mas to-somente com a mais
completa seriedade, sem qualquer outra perspectiva. K. sabia que no se ameaava com
uma coero real, essa ele no temia e aqui muito menos (DS, 43/43). O que K. v como
maior problema o ambiente desencorajador dos aldees. Eles representam o principal
suporte do poder do castelo. Em sua reificao, eles so o verdadeiro castelo.
30. A forma social da identidade prevalece: o fim da obra projetado por Kafka (segundo
Brod) era irnico: K. morreria de extenuao, enquanto o castelo admitiria, por fim, a sua
permanncia condicional na aldeia, territorializando-o no posto que o poder moderno,
enfim, pode melhor administrar os homens: o posto de meros trabalhadores.
(Novembro/Dezembro de 2010)
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O velho mundo precisa sucumbir
Mito e histria em Berlin Alexanderplatz
Raphael F. Alvarenga*
[] wenn die Welt so finster wird, da man mit den Hnden an ihr herumtappen mu, da man meint, sie verrinnt wie Spinnengewebe. Ach, wenn was is und doch nicht is! [] Wenn alles dunkel is, und nur noch ein roter Schein im Westen, wie von einer Esse: an was soll man sich da halten?1
A que deve se agarrar o indivduo quando colapsam ao seu redor todos os
referenciais, quando tudo lhe parece turvo, obscuro, confuso? Haver sada, ou uma
qualquer esperana de salvao, para aquele que tudo perdeu, que se perdeu a si mesmo no
seio da desumana e impessoal cidade grande? E poder nos tempos modernos, num
universo completamente dessacralizado, um homem arruinado ser dotado de
exemplaridade trgica? Do ponto de vista da produo artstica, como organizar, traduzir
em forma, o estado de generalizadas desorientao, cegueira, confuso? Como expor, em
seu conjunto, relaes e dinmicas que parecem se dar revelia dos homens, que em geral
no as compreendem? Berlin Alexanderplatz2, a grande obra pica de Alfred Dblin (1878-
1957), cuja inteno de essencializar questes e matrias histricas por assim dizer
manifesta desde o prlogo valer a pena para muitos que [...] habitam uma pele
humana3 , a princpio parece ter sido composta para responder a perguntas como as
acima. Se, quando publicado em 1929, o livro causou rebulio nos meios literrios e
militantes alemes, suscitando, esquerda e direita, de ataques veementes a elogios
* Ps-doutorando, bolsista da Faperj. 1 Wozzeck, Libretto von Oper in 3 Akten, 15 Szenen, Musik von Alban Berg [1922], Text von Georg Bchner [1837],
Bruxelles, La Monnaie, 2008, ato I, cena 4. Em traduo livre: [...] quando o mundo fica sombrio a ponto da gente ter que tate-lo com as mos, da gente achar que ele desmorona feito teia de aranha. Ah, quando algo e no entanto no ! [...] Quando t tudo escuro, e s resta no poente um luzir rubro, como que sado duma fornalha: a que deve a gente se agarrar?
2 Faremos uso da seguinte edio: Berlin Alexanderplatz. Die Geschichte vom Franz Biberkopf (1929), Mnchen, Deutscher Tachenbuch, 2009, doravante BA. A traduo citada no corpo do texto a mais recente, de Irene Aron (So Paulo, Matins Fontes, 2009), cujas pginas em nota seguiro sempre as do original. Tratando-se de um alemo um tanto especial, o do livro, que mistura com frequncia num mesmo pargrafo, s vezes numa mesma frase, norma culta e citaes potico-literrias clssicas com linguagem coloquial popular, dialeto, gria de rua etc., achamos melhor, para uma maior apreciao e para evitar leituras enviesadas de certos trechos, reproduzir em p-de-pgina as citaes no original.
3 BA, 12/10: wird sich fr viele lohnen [...] in einer Menschenhaut wohnen.
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entusiasmados um pouco como aconteceria na Frana, trs anos depois, com a publicao
do Voyage au bout de la nuit de Cline , a principal razo reside no fato de, como nas
maiores criaes da arte moderna, ser forte neste romance, se ainda for possvel cham-lo
assim, a dissonncia produzida pela tenso entre a forma esttica avanada e o material
deteriorado, decadente, atrasado, quando no arcaico, captado no turbilho da metrpole
moderna, mais precisamente no bairro proletrio em torno da Alex, a famosa praa do
leste de Berlin, smbolo maior da modernizao da cidade, no muito longe da qual o Dr.
Dblin mantivera durante muitos anos um consultrio mdico. Tal tenso, que no se pode
eliminar da obra sem que se perca em qualidade artstica, reveladora tanto do estado da
sociedade em seu conjunto como da situao diga-se j: monolgica, demandando
tratamento pico dos sujeitos, no livro condensada na figura de uma personagem
protagonista marginal e, por assim dizer, irredimvel. Uma e outra, personagem e
sociedade, no caso, a berlinense e de modo mais geral a alem dos anos 1920, por sua vez
inseridas no contexto global do capitalismo em crise, aparecem no livro como que deriva,
sem rumo definido, atravessando sucessivas crises sem no entanto se desenvolverem, no
logrando atingir nveis mais elevados de conscincia, maturidade e autonomia; impotentes,
dependem de circunstncias e fatores externos sobre os quais no tm controle.
Em Berlin Alexanderplatz, ento, embora mediante um sem nmero de referncias
mtico-religiosas o processo scio-histrico seja algo ofuscado, veremos que longe de ser ou
servir de mero pano de fundo para as aes das personagens, por detrs de tais referncias,
e como que camuflado por elas, o conturbado contexto social e poltico da Repblica de
Weimar, quando no aparece de forma explcita no entrecho, est o tempo todo
pressuposto, os altos e baixos do anti-heri coincidindo, pode-se dizer, com os trmites da
nao alem. Tudo se passa como se Dblin, na poca prximo de Brecht e Piscator, tivesse,
de certa maneira, intentado epicizar o perodo ps-revolucionrio, os tempestuosos anos
iniciais (ocupao franco-belga da Ruhr, hiperinflao, misria, insurreies operrias,
tentativa de putsch delinquente etc.) e principalmente os de falsa bonana (estabilizao
monetria e modernizao recuperadora proporcionadas pelo Plano Dawes) e que
antecedem o que viria a ser a verdadeira tempestade (crise financeira global e resistvel
asceno de Hitler ao poder), que j se anunciava no horizonte. Mais precisamente, apesar
da forma fragmentada, nota-se no livro como que um movimento totalizante, abarcando
um perodo que, forando um pouco a nota, poderamos denominar, por um lado, ps-
pseudo-revolucionrio, por outro, vista do que viria a se produzir, pseudo-pr-
revolucionrio, ou seja, os anos que sucedem revoluo trada e malograda de 1918-1919
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que deu origem Repblica sem que se alterassem, fundamentalmente, as relaes de
poder oligrquicas pr-existentes e que precedem o grande desastre, mas durante os
quais, sob a luz da recente experincia sovitica, ento ainda muito intensa e (aos olhos dos
donos do poder) ameaadora, pressentia-se, premente, a possibilidade de um novo
despertar revolucionrio, da instaurao, para falar como Benjamin, de um verdadeiro
estado de emergncia.
Sem perder de vista a tenso entre forma e material, tentaremos recompor e, at
onde for possvel, expor, por um lado, as constelaes formadas pelas matrias,
experincias e configuraes extra-artsticas, vale dizer, tanto as histricas, sociais e
polticas como tambm as subjetivas, e por outro, a passagem na mediao literria.
***
Uma rpida recuperao, o homem est outra vez l onde estava, nada aprendeu, nada assimilou.4
Brumm, brumm, moureja o bate-estacas a vapor diante do Aschinger na Alex. Tem altura de um andar e crava as estacas no cho como se nada fossem. [...] Na avenida, esto pondo tudo abaixo, pem abaixo prdios inteiros junto linha urbana [...] Demoliram Loeser e Wolff com a placa de mosaicos, vinte metros adiante, ele se reergue outra vez, do outro lado, diante da estao, j existe outro.5
Voc no perdeu tanto quanto J de Hus, Franz Biberkopf, as coisas recaem lentamente sobre voc. [...] Voc suspira: onde buscar abrigo, a desgraa se abate sobre mim, onde me agarrar? [...] Voc no perder riqueza, Franz, voc mesmo ser queimado at o fundo da alma! Veja como a prostituta j se regozija! A prostituta Babilnia! [...] A mulher est embriagada do sangue dos santos. Agora voc a percebe, sente-a. Voc ser forte, no se perder?6
O tempo outonal, no cinema Tauentzienpalast passa o filme Os ltimos dias de Francisco, cinquenta belas bailarinas esto no salo de dana Jgerkasino, podes beijar-me por um buqu de lilases. Ali, Franz conclui: minha vida acabou, estou liquidado, para mim chega. / Os eltricos percorrem as ruas, cada um vai numa direo, no sei para onde devo ir. O 51, Nordend, Schillerstrasse, Pankow, Breite-strasse, Bahnhof Schnhauser Alle, Stettiner Bahnhof, Potsdamer Bahnhof, Nollendorfplatz, Bayrischer Platz, Uhlandstrasse, Bahnhof Schmargendorf, Grune-wald, vamos l. Bom dia, aqui estou eu, podem me levar para onde quiserem. E Franz comea a observar a cidade como um co que perdeu o rastro. Que cidade esta, que cidade gigantesca, e que vida j levou nesta cidade. Desce na Stettiner Bahnhof, segue ao longo da Invalidenstrasse, l est o Rosenthaler Tor. Confeco Fabish, j fiquei parado ali, apregoando prendedores de gravatas, Natal passado. Em direo a Tegel,
4 BA, 163/183: Eine rasche Erholung, der Mann steht wieder da, wo er stand, er hat nichts zugelernt und nichts
erkannt. 5 BA, 165-66/185-86: Rumm rumm wuchtet vor Aschinger auf dem Alex die Dampframme. Sie ist ein Stock hoch,
und die Schienen haut sie wie nichts in den Boden. [] ber den Damm, si legen alles hin, die ganzen Huser an der Stadtbahn legen sie hin [] Loeser und Wolff mit dem Mosaikschild haben sie abgerissen, 20 Meter weiter steht er schon wieder auf, und drben vor dem Bahnhof steht er nochmal.
6 BA, 380/436-37: Du hast nicht soviel verloren wie Hiob aus Uz, Franz Biberkopf, es fhrt auch langsam auf dich herab. [] Du seufzt: wo krieg ich Schutz her, das Unglck fhrt ber mich, woran kann mich festhalten. [] Du wirst keine Gelder verlieren, Franz, du selbst wirst bis auf die innerste Seele verbrannt werden! Sieh, wie die Hure schon frohlockt! Hure Babylon! [] Das Weib ist trunken vom Blut der Heiligen. Du ahnst sie jetzt, du fhlst sie. Und ob du stark sein wirst, ob du nicht verloren gehst.
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pega o 41. E quando surgem os muros vermelhos, os pesados portes de ferro, Franz fica mais calmo. Isto faz parte da minha vida e preciso observar, observar.7
Quem esse que est aqui na Alexanderstrasse e move devagarinho uma perna atrs da outra? Seu nome Franz Biberkopf, o que ele andou aprontando, vocs j sabem. Vagabundo, criminoso da pesada, pobre-diabo, homem derrotado, agora a vez dele. Malditos punhos que o abatem! Punho terrvel que o atingiu! Os outros punhos bateram e soltaram, ficou uma ferida, s ficou ele, a ferida sarou, Franz ficou do jeito que era e pde seguir em frente. Agora, o punho no larga, o punho incrivelmente grande, envolve-o de corpo e alma, Franz anda a passos pequenos e sabe: minha vida no me pertence. No sei o que devo fazer agora, mas acabou-se para Franz Biberkopf e fim.8
As passagens acima, escolhidas mais ou menos ao acaso, do uma ideia geral,
embora ainda um pouco vaga, do que se pode encontrar no grande romance de Dblin, o
qual, como indica o subttulo, conta a histria de Franz Biberkopf, um homem do povo, pau
para toda obra, a bem dizer um brutamontes infantil, inocente e bonacho, mas que em
determinadas situaes si perder a cabea, tornando-se violento como uma fera. Foi assim
que, num acesso de raiva e cimes, matou acidentalmente a noiva, Ida, de quem era cften,
a pancadas, indo parar atrs das grades. Num breve prlogo, o narrador resume o que
acontecer com aquele homem, anunciando que no fim da histria, aps muito apanhar da
vida, o encontraremos muito mudado, maltratado, mas enfim endireitado9. Trata-se de
um procedimento pico, anti-ilusionista, propositalmente alienante, reiterado em seguida
nas prolepses que abrem cada uma das nove sees (ou livros), e que visa a anular no
leitor, de antemo, a criao de expectativas, a fim de que se mantenha atento a motivaes,
relaes e movimentos mais amplos, sem deixar-se levar aleatoriamente pelo drama
individual de uma personagem particular, como se o curso da mundo ainda fosse em
essncia o da individuao, como se o indivduo alcanasse o destino com suas emoes e
7 BA, 387/444-45: Es ist herbstlich, im Tauentzienpalast spielen sie die Letzten Tage von Franzisko, fnfzig
Tanzschnheiten sind im Jgerkasino, fr einen Fliederstrau darfst du mich kssen. Da findet Franz: Mein Leben ist zu Ende, mit mir ist es aus, ich habe genug. / Die Elektrischen fahren die Straen entlang, sie fahren alle wohin, ich wei nicht, wo ich hinfahren soll. Die 51 Nordend, Schillerstrae, Pankow, Breitestrae, Bahnhof Schnhauser Alle, Stettiner Bahnhof, Potsdamer Bahnhof, Nollendorfplatz, Bayrischer Platz, Uhlandstrae, Bahnhof Schmargendorf, Grunewald, mal rin. Guten Tag, da sitz ick, die knnen mir hinfahren, wo sie wollen. Und Franz fngt an, die Stadt zu betrachten, wie ein Hund, der eine Fuspur verloren hat. Was ist das fr eine Stadt, welche riesengroe Stadt, und welches Leben, welche Leben hat er schon in ihr gefhrt. Am Stettiner Bahnhof steigt er aus, dann zieht er die Invalidenstrae lang, da ist das Rosentaler Tor. Fabisch Konfektion, da hab ick gestanden, ausgerufen, Schlipshalter vorige Weihnachten. Nach Tegel roten Mauern, die schweren Eisentore, ist Franz stiller. Da ist von meinem Leben, und das mu ich betrachten, betrachten.
8 BA, 398/456: Wer ist es, der hier auf der Alexanderstrae steht und ganz langsam ein Bein nach dem andern bewegt? Sein Name ist Franz Biberkopf, was er betrieben hat, ihr wit es schon. Ein Ludewig, ein Schwerverbrecher, ein armer Kerl, ein geschlagener Mann, er ist jetzt dran. Verfluchte Fuste, die ihn geschlagen haben! Schreckliche Faust, die ihn ergriffen hat! Die andern Fuste schlugen und lieen ihn los, da war eine Wunde, da war er blo, die konnte heilen, Franz blieb, wie er war, und konnte weitereilen. Jetzt, die Faust lt nicht los, die Faust ist ungeheuer gro, sie wiegt ihn mit Leib und Seele ein, Franz geht mit kleinen Schritten und wei: mein Leben ist nicht mehr mein. Ich wei nicht, was ich jetzt tun mu, aber mit Franz Biberkopf ist es aus und Schlu.
9 BA, 11/9: Wir sehen am Schlu den Mann wieder am Alexanderplatz stehen, sehr verndert, ramponiert, aber doch zurechtgebogen.
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sentimentos, como se o ntimo do indivduo ainda pudesse alguma coisa sem mediao10.
Ao mesmo tempo, a narrativa visa a anular, ou a quebrar, a tranquilidade contemplativa do
leitor, a possibilidade de uma observao totalmente desinteressada do curso catastrfico
do mundo, que haviam tornado-se escrnio com a Primeira Guerra. A distncia esttica ,
como j em Proust e em Kafka, o tempo todo encurtada a fim de que o plano superficial e
naturalizado dos acontecimentos quotidianos seja atravessado e, para alm dele, aparea,
nua e crua, a negatividade subjacente positividade dos fatos: ora o leitor deixado de
fora, ora guiado, atravs do comentrio, at o palco, para trs dos bastidores, para a casa de
mquinas11. Por isso a combinao mediadora de registro mimtico realista e princpios de
construo no-realistas, necessrios para dar conta da matria, que opaca, constituda
por relaes sociais alienadas objetivadas, engessadas, e que pede um novo alheamento,
uma segunda alienao. Paradoxalmente, o encurtamento da distncia, que revela o horror
sob a pedra da cultura, a brutalidade da existncia quotidiana, produz estranhamento,
distanciamento. O que Brecht diz do novo teatro vale tambm, nesse sentido, para a Nova
Msica e para o romance modernista:
A resposta reside no estilo alienante da representao. Nesta, o fio da histria um fio fragmentado; o todo isolado constitudo de partes independentes que podem e devem ser comparadas com os incidentes das partes correspondentes na vida real. Este modo de representar extrai toda a sua fora de comparaes com a realidade; em outras palavras, est a todo instante dirigindo a ateno para a causalidade dos incidentes reproduzidos. [...] A platia no totalmente arrebatada; no precisa amoldar-se psicologicamente, adotar uma atitude fatalista para com o destino representado.12
Com isso em mente, voltemos ao livro. A histria comea com a sada de Franz
Biberkopf da priso de Tegel, bairro de Berlim situado no noroeste da cidade, em 1927, aps
ter cumprido ali quatro anos de sua pena, e a partir da acompanhamos sua tortuosa e
custosa reinsero na sociedade. Desde o incio, esta, e acima de tudo a cidade, em
permanente transformao, dividem com a personagem o primeiro plano. Apesar da
dificuldade em se arrumar trabalho em tempos de crise e desemprego em massa, der
Franz promete a si mesmo manter-se decente, mas, ingnuo, enganado e passado para
trs com facilidade. O nome Biberkopf, alis, literalmente cabea de castor, no dialeto
10 Theodor W. Adorno, Standort des Erzhlers im zeitgenssischen Roman (1954), in Noten zur Literatur,
Frankfurt/M., Suhrkamp, 1981, pp. 41-47, aqui p. 42, trad. Modesto Carone: Posio do narrador no romance contemporneo, in Benjamin, Adorno, Horkheimer & Habermas, Textos escolhidos, So Paulo, Abril (col. Os Pensadores), 1980, pp. 269-73, aqui p. 270.
11 Ibid., p. 46, trad., p. 272. 12 Bertolt Brecht, Dirio de trabalho, vol. I: 1938-1941, trad. R. Guarany e J. de Melo, Rio de Janeiro, Rocco, 2002,
pp. 100-01, entrada do dia 3.8.40.
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local significava ento algo como cara de burro, ou coisa parecida. O prenome Franz, por
sua vez, parece ser uma aluso a Francisco de Assis, mas tambm, ou principalmente, a
Franz Woyzeck, o famoso anti-heri proletrio recriado por Georg Bchner a partir do fait
divers de um soldado que, tomado de cimes, assassinara a amante13. Trata-se, em suma,
de um simples de esprito, que fala aos passarinhos e em momentos crticos, de alucinao e
delrio, comunica com coelhos, camundongos, intropatiza com as plantas, a terra, ouve
apelos no vento... Um dos traos que sobressaem durante a leitura que, como j dizia
Adorno, no h vida reta num mundo torto: apesar da promessa que fizera de permanecer
honesto aps sair da priso, Franz Biberkopf vive iludido e se iludindo, trapaceado e
acaba sem querer envolvendo-se em novos crimes; mesmo resistindo com unhas e dentes,
mesmo no querendo, obrigado a querer, est acima dele, ele tem de querer14. Atravs
do livro, como costumam dizer alguns crticos, acompanhamos os inmeros altos e baixos
13 A comparao mereceria um desenvolvimento a parte. No se pode ignorar o fato de os fragmentos da pea de
Bchner, inacabada quando de sua morte em 1837, terem permanecido durante muito tempo ignorados precisamente por estar a obra frente de seu tempo, fazendo uso de procedimentos picos que viriam a ser empregados e desenvolvidos na Rssia e na Alemanha, mais ou menos a partir da encenao de Mistrio-Bufo, de Maiakvski, por Meyerhold, em 1918. Numa palavra: em Woyzeck, o que est em jogo a destruio da pea bem feita, do drama realista burgus, atrelado s unidades clssicas de ao, tempo e lugar, alm de restrito esfera privada da vida, concentrado na dinmica e na riqueza psicolgicas, na profundidade interior das personagens, assim como no dilogo, na tenso e na resoluo de conflitos interindividuais. No toa, a pea de Bchner fora ressuscitada, tirada do esquecimento, quase um sculo depois, aps a Primeira Guerra, quando tudo aquilo (profundidade subjetiva, totalidade harmnica e significativa, continuidade e desenvolvimento progressivo) j soava mais do que falso, justamente por Alban Berg, cuja forma operstica modernizada pelas descobertas da Nova Msica, longe de fornecer, como era comum na pera clssica tanto quanto o seria no cinema, um mero fundo musical psicolgico, que sugerisse a cada etapa os estados de nimo, os sentimentos ou as impresses das personages, visava ao contrrio expor as lacunas deixadas pelas palavras, no o que est nas personagens, mas antes aquilo que se passa entre elas, vale dizer, o estado de alienao, desumanizao e absurdidade, que se encontra objetivado para alm das personagens (a este respeito, veja-se Theodor W. Adorno, Berg. Der Meister des kleinsten bergangs, in Gesammelte Schriften, Bd. 13, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1997, pp. 428-29, trad. M. Videira: Berg. O mestre da transio mnima, So Paulo, Unesp, 2009, pp. 179-80). Com a pera de Berg, terminada em 1922 e encenada em Berlim em 1925, a modernidade da msica fazia enfim justia modernidade daquele texto. Simplificando ao extremo, digamos que, embora Berg no tenha rejeitado de todo a tonalidade clssica, combinando-a ao contrrio, de maneira muito a propsito, com a tcnica schnberguiana, a no-hierarquizao dos tons na construo musical dodecafnica (as doze notas da gama cromtica tendo todas igual importncia) condizia com a fragmentao da narrativa, a no-linearidade causal e a autonomia relativa das cenas da pea de Bchner. A este respeito, citemos o bom comentrio de Anatol Rosenfeld, Teatro moderno, So Paulo, Perspectiva, 1977, pp. 64-65: Um dos aspectos da obra de Buechner que nos toca particularmente como moderno a solido de suas personagens. J no se trata da solido romntica, mas da solido da lonely crowd, concebida como fato humano fundamental num mundo que, tendo deixado de ser um todo significativo de que todos participam, se transforma em caos absurdo em que cada um , forosamente, isolado. [...] A imagem do homem apresentada por Buechner desqualifica a do heri trgico que denunciada como falsa. Surge, talvez pela primeira vez, o heri negativo que no age, mas coagido, o indivduo desamparado, desenganado pela histria ou pelo mundo [...] Woyzeck um caso extremo, verdadeiro drama de farrapos: um fragmento; mas uma obra que s como fragmento poderia completar-se. Ela cumpre a sua lei especfica de composio pela sucesso descontnua de cenas sem encadeamento causal. Cada cena, ao invs de funcionar como elo de uma ao linear, representa um momento em si substancial que encerra toda a situao dramtica ou, melhor, variados aspectos do mesmo tema central o desamparo do homem num mundo absurdo. grande a semelhana com a histria de Franz Biberkopf: em ambos os textos, no de Bchner e no de Dblin, alm da situao monolgica, h grande destaque para o lado grotesco, para a reduo zoolgica do homem (enquanto Woyzeck incapaz de controlar o msculo constritor, Biberkopf pesa quase cem quilos, come feito um gluto e copula maneira de um animal selvagem) e para o automatismo de suas aes (os dois assassinam as amantes como se fossem autmatos guiados por foras que se manifestam despeito de suas vontades).
14 BA, 163 e 314/183 e 359: er will nicht, er wehrt sich, es geht ber ihn, er mu mssen.
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desta personagem a um tempo comum e incomum mas, como previne o narrador: Ser
um mendigo comum e um homem rico incomum?15 , a luta com o destino e consigo
mesmo, as iluses e os desenganos, os remorsos e os pensamentos mrbidos, a propenso
ao alcoolismo e a perdio no submundo do crime e da prostituio, e, sobretudo, seu total
esmagamento por foras obscuras e poderes que no domina. Tal esmagamento, todavia, s
pode ser apreendido suficientemente se no se perder de vista que aquele movimento
negativo de sobe e desce na situao da personagem, o vaivm entre fortitude e fastio,
autossuficincia e afogamento no lcool, que parece no conduzir a lugar algum, cada novo
episdio comeando como que do zero, como que repetindo a sequncia de acontecimentos
do anterior, vem sempre conjugado ao movimento vertiginoso da cidade, com suas
incessantes demolies e (re)construes.
De modo muito explcito, pelo menos o que aparenta numa primeira leitura, Dblin
tenta dar um sentido ao ritmo ensandecido da metrpole e s sucessivas quedas e
adversidades sofridas por seu heri atravs da referncia a mitos bblicos e helnicos
relacionados loucura, obedincia e a rituais de sacrifcio, com destaque para as
tribulaes de J, o holocausto de Isaac e os remorsos de Orestes, trs personagens que tm
em comum o fato de serem meros joguetes de foras que escapam a elas, sendo salvas, por
interveno divina, no derradeiro momento, quando j tudo parece perdido. Se
considerarmos com Lvi-Strauss que o mito antes de tudo uma soluo imaginria para
tenses, conflitos e contradies reais, sociais e histricas, ento tal soluo, que no mais
das vezes assume contornos edificantes e complacentes, parece estar de fato muito
claramente presente no livro em questo. Ali, a experincia de impotncia do sujeito em
busca de um lugar ao sol no seio da monstruosa metrpole moderna, sem controle sobre o
que lhe advm, sobre a prpria histria ou o sobre o conjunto de foras sociais agindo sobre
ele, ganha no somente apoio em explicaes mitolgicas como tambm uma conotao de
exemplaridade. Trata-se, primeira vista ao menos, de uma tentativa, longe de ser
excepcional na arte modernista do incio do sculo, de outorgar um sentido arcaico-
mitolgico ao curso desprovido de sentido do mundo da mercadoria fetichizada. Na clebre
justificao de T. S. Eliot, num texto sobre Joyce: simplesmente uma maneira de
controlar, ordenar, dar forma e significncia ao imenso panorama de futilidade e anarquia
que a histria contempornea.16 No que concerne a Dblin, entretanto, como veremos,
15 BA, 394/453: Ist ein Bettler gewhnlich und ein Reicher ungewhnlich? 16 Thomas Stearns Eliot, Ulysses, Order and Myth (1923), in Selected Prose, ed. Frank Kermode, London, Faber
and Faber, 1975, p. 177: It is simply a way of controlling, of ordering, of giving a shape and a significance to the immense panorama of futility and anarchy which is contemporary history.
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parece mais adequada a explicao de Roberto Schwarz: vrios dos principais escritores
modernistas procuraram dar parentesco mtico a seus episdios contemporneos, para lhes
atenuar a contingncia e lhes emprestar generalidade, dignidade arquetpica, eternidade
etc., mesmo que irnicas, ou para acentuar a sordidez.17
A este respeito, diga-se de passagem, as referncias mtico-religiosas, judeo-crists e
gregas Esther (livro 1), Jeremias (livros 1 e 5), Agamemnon, Clitemnestra, Orestes e as
Ernias (livros 2 e 6), Ado e Eva (livros 2, 3, 4 e 8), Menelau, Telmaco e Helena (livro 4),
J (livros 4 e 8), Aquiles (livro 6), Abrao e Isaac (livros 6 e 7), a prostituta Babilnia e a
Morte ceifeira (livros 6, 8 e 9), Salomo/Eclesiastes (livros 7, 8 e 9), os anjos Sarug e Terah
(livro 8), Macabeus (livro 9) , esto intrinsecamente relacionadas s vicissitudes das
personagens, muitas vezes, com efeito, recebendo tratamento irnico, como por exemplo
quando os adornos e apetrechos de guerra de Aquiles so comparados s roupas surradas e
sujas de Biberkopf18, comparao que tem por efeito um distanciamento, impedindo que o
leitor enxergue no anti-heri moderno e em sua luta contra as foras annimas da
metrpole um qualquer resqucio de nobreza trgica. Salvo engano, algumas daquelas
referncias, em muitos momentos, tambm no deixam de interferir na percepo que se
tem, a cada novo episdio, da cidade de Berlim, como que preparando o terreno para ela,
antecipando-a, ou reforando-a. Sob fundo mitolgico, alm de contrastada explicitamente
com cidades da antiguidade a par de Babilnia, tambm Nnive, Roma, Cartago e
Jerusalm (livros 5 e 6) , a metrpole moderna sucessivamente apresentada como um
universo confuso, estranho, destitudo de todo e qualquer sentido (livro 1), como um grande
organismo burocrtico tendo em si mesmo uma lgica obscura que absorve e devora a todos
(livro 2), como uma gigantesca mquina, perigosa, violenta, mortfera (livro 4), como
entidade sedutora, artimanhosa, incitando ao gozo e volpia do pecado (livro 6), por fim,
como um ser autnomo, que segue indiferente seu curso, sempre igual, automatizado (livro
9). Assim, em contraste com a imagem do espao urbano que aos poucos se constitui, a um
tempo catica, violenta, sedutora e indiferente, aparecem no correr da histria trs
heterotopias, por assim dizer, no seio das quais se encontraria a ordem, a paz, ou antes
ainda, a ausncia do fardo da responsabilidade: a priso (livros 1 e 8), o paraso bblico
(livros 2, 3, 4 e 8) e o asilo de loucos (livro 9). A mensagem parece clara: neste mundo-co
no vivers em paz; esta s existiu no passado mtico/bblico da humanidade; nesta vida s
a encontrars no presdio ou no sanatrio. Sem prejuzo do fato de ser um tanto forado
17 Roberto Schwarz, Altos e baixos da atualidade de Brecht, in Seqncias brasileiras, So Paulo, Companhia das
Letras, 1999, p. 138. 18 Cf. BA, 243/278.
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chamar de pacfica a vida severina de encarcerados e alienados embora, pensando bem,
a imagem no deixe de ser poderosa: comparados vida louca do lado de fora, na inspita
cidade grande, a priso e o manicmio teriam ares mais amenos, tranquilos, qui at mais
salutares , a mensagem pode ser lida de ponta-cabea. Explicando melhor: a violncia
seria, como de fato no capitalismo, o normal, e a paz, a exceo quase inconcebvel,
inimaginvel, que confirmaria a regra geral. Se, na poca em que Dblin compunha seu
romance, a cultura da violncia, o vnculo social perverso do capital, a guerra como
consequncia lgica e incontornvel do mercado, j eram estetizados pela indstria da
cultura do entretenimento, pelo complexo industrial de produo das conscincias, que
opera tanto a legitimao da existncia de um certo grau de violncia, ao torn-la coisa
corriqueira, quanto certa estabilizao na estruturao da barbrie, ento talvez fosse o caso
de afirmar que tambm a arte, em larga medida, acabou participando de tal processo geral
de estetizao, legitimao e naturalizao da violncia19.
Se Dblin no escapa tendncia20, cabe no entanto ressaltar que o recurso ao mito,
no livro de que estamos tratando e na literatura modernista de modo geral, de um ponto de
vista materialista, deve ser encarado antes de tudo como uma maneira de expor a
liquidao do indivduo na sociedade moderna, liquidao das condies da formao da
individualidade autnoma, que no entanto haviam sido postas (pelo menos enquanto
pressupostos) pela prpria sociedade burguesa. Noutras palavras, em razo de a situao
histrica do capitalismo dito tardio, monopolista, assemelhar-se, no nvel das aparncias,
quela, pr-individual, sem sujeito, de pocas remotas, pr-capitalistas, nas quais a
humanidade encontrava-se enredada numa totalidade mtica plena de sentido21, a
referncia ao mito expe o fato de a sociedade capitalista, da mercadoria fetichizada, no
ser to desencantada, esclarecida, racional e civilizada quanto pretente ou aparenta. No
surpreende que a despeito dos supostos propsitos moralizantes de Dblin, to ressaltados
pela crtica, a forma fragmentada, polifnica, hipercomplexa e no fim das contas assaz
19 Estetizao que, com frequncia, vai de par com aquela da vida bandida dos de baixo, ou seja, com a explorao
artstica da atrao sensual da feira, do imundo, do disforme, coisa que se encontra j nos irmos Goncourt (veja-se a respeito o ensaio de Auerbach sobre Germinie Lacerteux, no Mimesis) e que pode ainda ser notada nos dias de hoje, qui mais do que nunca, sobretudo em produes espetaculares como o filme Cidade de Deus. Em literatura, no sculo XX, os romances de Genet constituem possivelmente o exemplo maior de estetizao do sujo, do srdido, da vida do crime.
20 Evocando as descries detalhadas de tortura e morte no romance histrico Wallenstein (1920), um crtico no hesitou em acusar Dblin de fascinao obsessiva com a violncia e de querer transformar a crueldade em experincia esttica. Cf. Wilfried G. Sebald, Der Mythos der Zerstrung im Werk Dblins, Sttutgart, Klett, 1980, pp. 49-51 e 156-60.
21 Cf. Theodor W. Adorno, Standort des Erzhlers, op. cit., p. 47, trad. cit., p. 273.
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dissonante de sua narrativa faa explodir toda impresso de sentido e coerncia globais22.
Com isso em vista, faz-se necessrio integrar a dimenso mtico-religiosa da obra
explicao materialista, isto , ligar o congelamento do tempo histrico e a fragmentao da
forma literria que ali tem lugar expanso do trabalho industrial alienado e subsequente
fragmentao dos processos social e perceptivo no seio disforme da urbs moderna, mas
igualmente, no caso especfico de Berlin Alexanderplatz, persistncia da misria alem
no contexto geral da Repblica de Weimar, a um tempo dependente-independente, incapaz
de superar o multissecular atraso do pas no desenvolvimento desigual e combinado do
capitalismo.
***
De forma resumida, pode-se dizer que o desenvolvimento do capitalismo industrial,
e com ele a expanso vertiginosa das relaes mercantis, isto , a generalizao das formas
capitalistas de trabalho e a colonizao do quotidiano pela mercadoria, constituem um
processo que acaba por tornar a vida, em todos os seus aspectos, no somente morna,
montona e mesquinha algo muito patente nas personagens de um Flaubert, de um
Tchekhov, mergulhadas no tedium vitae e na insignificncia quotidiana , mas
fundamentalmente brutal, desumana. Ao mesmo tempo, o funcionamento normalizado e
quotidiano desta vida social alienada tende cada vez mais a dissimular e a objetificar a
brutalidade e a desumanidade do processo global capitalista. A partir de meados do sculo
XIX, mais precisamente aps o trauma de junho de 1848, a arte de modo geral e a literatura
em particular (pelo menos aquela que interessa) passam a recompor, no nvel da forma, e
assim a elevar condio de experincia esttica, fazendo delas uma evidncia chocante, a
derrocada do curso da experincia, a desvitalizao da vida e a desumanizao das relaes
humanas. No obstante, se, por um lado, banalizao e ao embrutecimento da existncia
corresponde um processo de crescente ofuscamento das relaes sociais, por conseguinte,
da histria e seu sentido geral, por outro lado, o decorrente ceticismo quanto
possibilidade de se apreender as tendncias globais da sociedade e da histria, qui
mesmo a impossibilidade objetiva de tal apreenso, inverte-se, a partir das ltimas dcadas
do sculo XIX, progressiva e quase que inevitavelmente em mstica e metafsica. Com
22 Para uma anlise pormenorizada da estrutura e dos pontos de vista narrativos, da apreenso formal dos percalos
e vicissitudes sofridos pelo protagonista aps a sada de Tegel, assim como da maneira com que a cidade se imiscui e ganha corpo no romance, veja-se a dissertao de Gabriela Siqueira Bitencourt, Fratura da metrpole. Objetividade e crise do romance em Berlin Alexanderplatz, Universidade de So Paulo, 2010, principalmente o captulo III, assim como, da mesma autora, o artigo publicado no presente nmero de Sinal de Menos: A fratura da forma: constituio e implicaes da representao da metrpole em Berlin Alexanderplatz.
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efeito, pelo menos desde Nietzsche e Malthus, o carter histrico da concorrncia
capitalista, da diviso social do trabalho, das relaes de classe e da dominao do capital
dissimulado, dissolvido em explicaes de carter mtico, metafsico, ou ainda
pseudocientfico, como o famigerado darwinismo social, que transforma em lei
sociolgica eterna a luta de morte de todos contra todos pela sobrevivncia na selva do
mercado23, sem falar nas explicaes em termos de superioridade racial, em Thierry, Taine,
Le Bon, Gobineau e, entre ns, Euclydes da Cunha. Segundo Lukcs, tais tendncias
mistificao, que se combinam ento sem problema com o culto positivista dos fatos
particulares, arrancados e isolados de seu verdadeiro contexto, atingiriam seu ponto
culminante na falsificao brbara da histria e sua transformao em mito pelo
fascismo24.
De tais tendncias, desnecessrio dizer, participa tambm boa parte da arte da
primeira metada do sculo XX, mesmo (ou sobretudo) a mais avanada. No caso especfico
de Dblin, no deixa de ser sintomtica a progressiva despolitizao pela qual passa a partir
de meados dos anos 1920 (a bem dizer, durante a composio do Berlin Alexanderplatz,
entre 1927 e 1929, o autor oscilava ainda entre a alternativa revolucionria e a
transformao espiritual do mundo). Alemo de origem judia, no custa lembrar, o autor
demonstrava a princpio sensibilidade esquerdista, em suas prprias palavras, fora
socialista atuante25, como se pode alis ver nos artigos que escreveu entre 1919 e 1921, sob
o pseudnimo de Linke Poot (Pata Esquerda), para o jornal Die Neue Rundschau26. Num
deles, de 1919, defendia com entusiasmo a classe operria revolucionria, simpatizando
com os conselhos de trabalhadores e soldados formados no imediato ps-guerra, que em
seguida seriam suprimidos pelo governo social-democrata de Friedrich Ebert:
Uma associao de camaradagem entre homens livres constitui a clula natural e fundamental de toda a sociedade, a pequena comunidade; por a que se deve comear... isso que o prncipe Kropotkin h muito j sabia e ensinava, aquilo que aprendera dos relojoeiros suos na Federao do Jura, em jargo poltico: o sindicalismo, o anarquismo.27
23 A este respeito, cf. Georg Lukcs, Probleme des Realismus III: Der historische Roman, Neuwied/ Berlin, Luchterhand, 1965, p. 212.
24 Ibid., p. 305. 25 Alfred Dblin, Posfcio para a reedio de 1955, anexo ed. da Martins Fontes, p. 527. 26 Cf. Alfred Dblin, Der deutsche Maskenball. Von Linke Poot (1921), Olten/Freiburg, Walter, 1972, e Michel
Vanoosthuyse, Linke Poot: Dblin, les dbuts de Weimar et les intellectuels, in tudes allemandes, n 6, Lyon (janvier 1993).
27 Alfred Dblin, Schriften zur Politik und Gesellschaft, Olten/Freiburg, Walter, 1972, p. 92, apud David B. Dollenmayer, The Berlin Novels of Alfred Dblin, Berkeley/Los Angeles, University of California, 1988, p. 54. Dblin se refere a a um famoso texto de Peter A. Kropotkin, Memoiren eines Revolutionrs, Bd. II, Mnster, Unrast, 2002, p. 319: Die Art wie jeder jeden als Gleichen sah und behandelte, die ich in den jurassischen Bergen fand, die Unabhngigkeit im Denken und im Ausdruck, wie ich sie sich unter den dortigen Arbeitern entwickeln
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Em princpio, ento, rejeita a Repblica, a qual via, no sem razo, como uma traio dos
ideais revolucionrios e sob cuja fachada continuaria viva a antiga estrutura capitalista de
poder imperial. Em 1921, porm, algo resignado, Dblin demonstrava aceitar Weimar, pelo
menos enquanto ideal pelo qual valeria a pena lutar, e clamava pelo suporte dos colegas do
meio artstico, que deveriam espiritualizar a nova Repblica, contribuir para a superao
tanto das arcaicas estruturas, ainda vigentes, de explorao e dominao, quanto das
altercaes partidrias que, aps a guerra, teriam impedido s foras de esquerda
estabelecer uma verdadeira ordem digna do homem. Desapontado cada vez mais com a
incapacidade do novo Estado de renovar a ordem das coisas, Dblin vai aos poucos adotar
uma atitude biologista, por assim dizer, ligada a uma filosofia especulativa da natureza, o
que aparecer explicitamente no tratado Das Ich ber der Natur, de 1927: as antigas
questes polticas so como que esvaziadas, ou simplesmente deixadas de lado; passa para
o primeiro plano a compreenso do universo como dinmica ordenada, onde tudo tem seu
lugar, inclusive as guerras imperialistas, vistas como inevitveis28. preciso ter em mente
que tal viso despolitizada do mundo, calcada numa filosofia da harmonia csmica, divina,
era a de Dblin no momento em que se ps a compor Berlin Alexanderplatz, apesar de o
contato frequente com Brecht fazer com que mantivesse ainda acesa a esperana numa
mudana revolucionria.
Antes de retomarmos a discusso de nosso livro, acrescentemos ainda o fato, que no
deixa de ser revelador, de o autor flertar desde cedo com o exotismo e o esoterismo
orientais. J no romance chins Die drei Sprnge des Wang-lun (1915), publicado em
pleno conflito mundial, a atitude ambgua do nosso autor se deixa ver plenamente. No livro
so consagrados os ensinamentos taostas de Li-zi (sc. V a. C.), pregador da passividade
diante do fluxo inaltervel da vida; ao mesmo tempo, a histria termina com o protagonista
passando ao e morrendo ao liderar uma insurreio. Passividade e aceitao serena
do curso do mundo, por um lado, por outro, engajamento prtico e interveno
transformadora da sociedade: eis os dois polos, antagnicos e inconciliveis, encontrados
em muitas de suas obras, como tambm no prprio curso de sua vida. Continuando o que
sah, und ihre grenzenlose Hingabe an die gemeinsame Sache sprachen meine Gefhle noch viel mehr an; und als ich die Berge nach einer guten Woche Aufenthalt bei den Uhrmachern wieder hinter mir lie, standen meine sozialistischen Ansichten fest: Ich war ein Anarchist. Em traduo aproximada: O modo como cada um visto e tratado, que presenciei nas montanhas do Jura [suo], a independncia de pensamento e de expresso que pude ver entre os trabalhadores l, sua devoo ilimitada causa comum, tocaram profundamente meus sentimentos; e quando, aps uma semana passada junto aos relojoeiros, deixei as montanhas, minhas vises socialistas estavam estabelecidas: eu era um anarquista.
28 Para tudo isso, cf. David B. Dollenmayer, The Berlin Novels of Alfred Dblin, op. cit., pp. 54-59.
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dizamos, a fascinao de Dblin por civilizaes e concepes de mundo no-ocientais em
seguida reaparecem na novela Der berfall auf Chao-lao-s (1921) e em Manas (1927),
longo poema pico concebido em parte para dar conta da crise do romance29 e que,
segundo o prprio autor, deveria servir de base para Berlin Alexanderplatz, sendo este uma
espcie de Manas em dialeto berlinense30. Durante o exlio, a fim de aliviar a sede de
aventuras, escreveria a Amazonas-Trilogie (1937-38), sobre povos e culturas pr-
colombianos, e, voltando-se uma vez mais para a China, The Living Thoughts of Confucius
(1940). Por fim, influenciado por anos de leituras de Espinoza, Pascal e Kierkegaard,
acabaria por se converter ao catolicismo romano em 1941 deciso que Brecht, que
admirava os trabalhos do amigo desde que lera ainda jovem seu Wadzeks Kampf mit der
Dampfturbine (1914/18), no qual se repudiava o herosmo trgico31, teria considerado como
uma dolorosa traio, como atesta o poema Peinlicher Vorfall32. Tal parti pris pelo
irracional no deixaria de envergonhar e incomodar a Brecht, que, aps um discurso
pronunciado por Dblin durante o exlio californiano, por ocasio de seus 65 anos, em 14 de
agosto de 1943, no qual defendia que die Relativitt ist der Tod aller Moral33, notaria em
seu dirio:
29 Die Krise des Romans o ttulo de um famoso texto programtico, escrito por Otto Flake em 1922, e que
mobilizou toda a classe literria alem, de modo que quase todo romance escrito aps esta data teve por meta, por assim dizer, a superao do Bildungsroman clssico, ou pelo menos a renovao do gnero, que aps os horrores da Primeira Guerra havia se tornado, por bvias razes, uma forma caduca. Der Zauberberg (1924), de Thomas Mann, e Der Mann ohne Eigenschaften (escrito entre 1921 e 1942), de Robert Musil, so dois dentre os mais notveis exemplos de tentativas de superao, ou transformao, do romance de formao clssico. Tambm o Doktor Faustus (1947), escrito no exlio, espcie de Bildungsroman ao avesso, no qual o protagonista se forma no momento em que, firmado o pacto com as foras demonacas, d as costas para o mundo e passa a viver isolado da civilizao.
30 Alfred Dblin, Posfcio para a reedio de 1955, cit., p. 527. 31 Cf. Bertolt Brecht, Tagebcher 1920-22, Frankfurt/M., 1978, p. 48, apud Heidi Thomann Tewarson, Alfred
Dblin und Bertolt Brecht: Aspekte einer literarischen Beziehung, in Monatshefte, vol. 79, n 2 (Sommer 1987), pp. 172-85, aqui p. 172, entrada de 4/9/1920: Ich lese heute frh den Schlu von Dblins Wadzeks Kampf und finde darin anklingende Ideen. Der Held lt sich nicht tragisieren. Man soll die Menschheit nicht antragden. Und es steht Herrliches drin ber die Tragdie. (Es wird Schamgefhl gefordert!) Es ist berhaupt ein starkes Buch. Es lt den Menschen schamhaft im Halbdunkel und macht nicht Proselyten. So ist es, steht drinnen auf 300 Seiten. Ich liebe das Buch.
32 Cf. Bertolt Brecht, Peinlicher Vorfall, in Gesammelte Werke, Bd. 10: Gedichte 3, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1967, pp. 861-62: Als einer meiner hchsten Gtter seinen 10 000. Geburtstag beging / Kam ich mit meinen Freuden und meinen Schlern, ihn zu feiern / Und sie tanzeten und sangen vor ihm und sagten Geschriebenes auf. / Die Stimmung war gerhrt. Das Fest nahte seinem Ende. / Da betrat der gefeierte Gott die Plattform, die den Knstlern gehrt / Und erklrte mit lauter Stimme / Vor meinen schweigebadeten Freunden und Schlern / Da er soeben eine Erleuchtung erlitten habe und nunmehr / Religis geworden sei und mit unziemlicher Hast / Setzte er sich herausfordernd einen mottenzerfressenen Pfaffenhut auf / Ging unzchtig auf die Knie nieder und stimmte / Schamlos ein freches Kirchenlied an, so die irreligisen Gefhle / Seiner Zuhrer verletzend, unter denen / Jugendliche waren. / Seit drei Tagen / Habe ich nicht gewagt, meinen Freunden und Schlern / Unter die Augen zu treten, so / Schme ich mich.
33 Apud Harold von Hofe, German Literature in Exile: Alfred Dblin, in The German Quaterly, vol. 17, n 1 (jan. 1944), pp. 28-31, aqui p. 31.
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Dblin fez um discurso contra o relativismo moral e a favor de padres fixos de natureza religiosa, e com isso melindrou os sentimentos irreligiosos da maioria dos convidados. Uma sensao incmoda se apossou dos seus ouvintes mais racionais, algo como o indulgente horror experimentado quando um companheiro de priso sucumbe tortura e fala. [...] Quando Dblin comeou a dizer que, a exemplo de muitos outros escritores, tambm ele era culpado da ascenso dos nazistas (O senhor no disse, Sr. Thomas Mann, que ele como um irmo, ainda que um mau irmo?, perguntou primeira fila) e depois continuou obstinadamente a perguntar por que era assim, por um momento tive a infantil convico de que ele diria porque acoberte