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Emilio Gennari

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Emilio Gennari

Sindicato e organizao de base: histrias, dilemas e desafios.

Ao reproduzir, cite a fonte.

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ndice

Apresentao

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Introduo

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1. Das primeiras reaes operrias ao nascimento dos sindicatos

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2. Do fim da escravido ecloso da Primeira Guerra Mundial

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3. A greve geral de 1917

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4. Os 72 dias da greve dos grficos de So Paulo e os dilemas da elite

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5. A nova estrutura sindical e as respostas do movimento

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6. Do governo Dutra ao golpe militar de 1964 7. O milagre econmico e o nascimento das oposies sindicais

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8. Os desafios dos anos 80

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9. A dcada de 90 e os dilemas do novo sculo

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Bibliografia

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Apresentao.J faz parte do senso comum a idia de que os sindicatos esto em crise. Alguns estudiosos atribuem s transformaes implementadas no mundo do trabalho tanto a origem como a razo de ser das dificuldades enfrentadas pelo movimento sindical; outros preferem sublinhar as responsabilidades de suas direes ou vem o que est acontecendo no Brasil como a manifestao local da fase de refluxo das lutas operrias, comum a todos os pases. A sensao que toma conta de quem se aproxima destas teses flutua entre a impotncia e o gosto amargo das seguidas derrotas que imobilizam a classe e levam grande parte de seus membros a se conformar com a realidade. Disposta a aproveitar de nossas fragilidades, a elite confirma estas percepes e apresenta as lutas do passado como a busca insensata de algo que desafia as leis da natureza e, de conseqncia, s pode destinar ao fracasso os esforos empreendidos. Ao sonho de uma sociedade da qual seja banida toda forma de explorao, seus intelectuais contrapem a idia de que qualquer proposta, para vingar, deve ser viabilizada respeitando os limites da ordem existente. Reafirmando veladamente os interesses dos de cima, estas intervenes procuram apagar a memria da classe trabalhadora e desqualificar sistematicamente a luta para viabilizar os projetos de mudana que tentam romper as relaes de propriedade existentes. Na contramo das posies dominantes e cientes dos desafios impostos pelo presente, ns decidimos olhar para trs. Nosso gesto no est procura de um refgio seguro em saudosos momentos do passado e, muito menos, visa criar termos de comparao para lamentar as derrotas do presente. Ao olhar para trs pretendemos tentar compreender como e porque os setores combativos do sindicalismo urbano brasileiro vieram a ser o que so. O esforo de resgatar algumas formas de organizao que permearam a histria da classe trabalhadora busca ajudar a visualizar nossos erros e acertos, colocar o dedo nas feridas que procuramos esconder de ns mesmos e, sobretudo, aprimorar os instrumentos com os quais afirmamos a necessidade de continuar lutando para que o cotidiano de sofrimento seja pelo menos um passo mais prximo do futuro de liberdade e justia que pretendemos construir. Nesta longa jornada, nos propomos a resgatar os esforos dos que vieram antes de ns, a fazer tesouro de suas experincias e reflexes, a perceber o alcance e os limites de suas lutas deixando emergir os elementos que podem aprimorar os caminhos da nossa resistncia. Aqui, voc que nosso leitor ou leitora no vai encontrar uma seqncia detalhada de datas, fatos e personagens, tpica dos livros de histria. A preocupao em resgatar o cenrio em que ganham vida as experincias de organizao de base no passa do necessrio para permitir a compreenso e o alcance de cada momento de luta que estas tornaram possvel. Para facilitar ainda mais a leitura, voltamos a lanar mo de um artifcio literrio j utilizado em outras ocasies. No lugar de longas explanaes, teorizaes e detalhadas notas de rodap, a coruja Ndia, assume a tarefa de reconstruir os acontecimentos dialogando com o secretrio encarregado de redigir suas palavras. Como o mundo das aves sabe que o rigor acadmico impede s pessoas comuns de terem acesso ao saber, e nelas que ns estamos pensando ao redigir as pginas que seguem, o cuidado com a pesquisa e a reconstruo dos fatos foi usado como elemento que possibilita traduzir em linguagem simples e direta o que os livros de histria no relatam, o que a elite faz questo de fazer esquecer e o que ns, trabalhadores e trabalhadoras, precisamos urgentemente recuperar para segurar as rdeas do presente e definir os rumos do futuro. Brasil, 1 de maio de 2008.

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Introduo.Noite de sbado. O violento temporal que desaba sobre a cidade deixa os bairros da periferia na mais completa escurido. Entre um raio e outro, as pessoas tateiam em busca de uma luz que alivie a angustia trazida pelo sbito irromper das trevas. Os planos de lazer, cuidadosamente alimentados na dura semana de trabalho, acabam de ir, literalmente, por gua abaixo. A frustrao e o desconcerto predominam sobre o que ainda possvel remediar tmida luz das velas. Em poucas horas, porm, at este tnue fio de esperana vai esmorecendo com o apagar de suas chamas. A vida parece mergulhar num sono profundo. So poucos os lares onde ainda h algum que teima em se manter acordado. Num deles, os olhos so atrados pelo frentico tremular de uma pequena chama. As sombras que se projetam nos vidros pontilhados pela chuva deixam entrever que h algum discutindo. Curiosas, as pernas se aproximam da janela. Mais alguns passos e os sentidos so surpreendidos por uma cena inesperada. Frente a frente, uma coruja protege com suas asas a chama que um homem corpulento procura apagar. - Voc no vai fazer isso!, ordena o pequeno ser em voz firme e forte. - Vou sim!, retruca o humano elevando o tom de voz. No h porque ficarmos acordados quando todos dormem!. - Que maravilha! responde a ave em tom irnico. No lugar de resistir, voc prefere ser como o gado que, seguindo o berrante, baixa a cabea e vai direto para o matadouro!. - Mas, Ndia, esto todos dormindo e com esta luz fraca no d pra enxergar quase nada. Por que justo eu devo agentar seu relato sobre a histria dos sindicatos? Ficar no escuro j difcil, mas preencher a falta de luz com questes de poltica um porre que ningum merece!. Um longo instante de silncio evidencia o abismo que separa a coruja do que aparenta ser o seu secretrio. Sem desfazer o abrao com o qual as asas protegem cuidadosamente a chama da vela, a ave pisca os olhos, estufa o peito e diz: - Querido bpede, o fato da maioria desistir da luta no algo que me espanta. Assim como um punhado de fermento faz crescer uma massa bem maior, a organizao de base tem condies de voltar a pr em movimento uma classe que parece paralisada. O que sua cabea de vento no quer entender que, ao deixamos de agir, os problemas se avolumam, as contradies que os alimentam se tornam maiores e, no lugar de sairmos do sufoco, mergulhamos na apatia e nos tornamos vtimas do prprio desenrolar dos acontecimentos. Enquanto o povo dorme, a elite tece a trama que aprimora sua submisso e proporciona o cotidiano realizar-se dos interesses de classe que lhe permitem viver s custas do nosso suor. Como a maior parte das pessoas, voc espera que algum resolva os problemas sociais, torce para que as coisas se ajeitem com o simples passar do tempo e no percebe que o seu dia-a-dia depende de decises polticas das quais os de cima fazem questo que voc e os demais se mantenham afastados. Assim como a luz eltrica no vai voltar se ningum consertar os estragos do temporal, de nada adianta os trabalhadores aguardarem sentados as solues que eles precisam moldar para que a vida possa brilhar para todos. Trabalhar na escurido no fcil, mas necessrio. O risco de tropear grande, as dificuldades se multiplicam, mas no corao da noite que somos chamados a preparar os passos de um novo amanhecer. Vencido e ainda inconformado, o ajudante arruma a resma de papel sobre a qual se projeta a sombra cinzenta da coruja. Ajeitados os culos, os dedos distrados deixam a caneta cair repetidamente no branco lenol das folhas. Certa da vitria, Ndia recolhe as asas que, momentos antes, serviam de abrigo pequena chama da vela. Entre os gestos frenticos em que ave e homem parecem continuar sua contenda, o silncio da noite rompido pelas palavras que marcam o incio dos trabalhos: - Escreva! Captulo Primeiro...

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1. Das primeiras reaes operrias ao nascimento dos sindicatos.- Para podermos entender as respostas iniciais da classe trabalhadora s investidas da explorao que vai se consolidando no interior das fbricas diz a coruja ao apontar a asa para a luz trmula que brilha diante dela precisamos voltar no tempo e reconstruir em grandes linhas as mudanas que ocorrem na produo da riqueza. - Isso vai longe... resmunga o secretrio sem esconder sua irritao. - Vai responde a ave sem perder a compostura. Na Europa do sculo V, a quase totalidade da populao mora em reas rurais. As famlias vivem do que suas roas conseguem produzir e do que seu trabalho cria para dar conta das necessidades dirias. As principais preocupaes esto voltadas para o consumo pessoal e no para a compra e venda em amplas relaes de mercado. A maior parte das horas gasta na produo de alimentos sendo que, durante o inverno, a impossibilidade de lavrar a terra faz com que as famlias dediquem grande parte do tempo a produzir tecidos, roupas, utenslios domsticos, mveis e tudo o que precisam para um mnimo de conforto. Em breves palavras, cada campons tambm um pequeno arteso na medida em que se arranja como pode para garantir o bem-estar de sua famlia. Cinco sculos depois, devido ao crescimento da populao, expanso das pequenas cidades que ganham vida no mbito da sociedade feudal e s exigncias do clero e dos nobres, a produo no-agrcola passa a ser realizada por mestres artesos independentes que contam com a ajuda de dois ou trs empregados. Donos das matrias-primas e das ferramentas, eles conhecem e realizam cada parte do processo de trabalho, cuidam da distribuio das tarefas entre os aprendizes, decidem os modelos, preos e prazos de entrega das mercadorias produzidas, atendem diretamente aqueles que procuram seus servios e defendem o seu ofcio atravs de corporaes que atuam em nvel local com regras e proibies zelosamente respeitadas pelos seus integrantes. Este sistema de produo que perdura durante toda a idade mdia, funciona sem grandes sobressaltos enquanto o mercado a ser atendido pequeno e estvel. Apesar da aparente ausncia de conflitos, vrias contradies comeam a marcar presena. Ao limitar a criao de novas oficinas com o objetivo de impedir a concorrncia com os artesos j instalados, as corporaes acabam transformando os ajudantes que cresceram na profisso no em futuros mestres artesos, mas em eternos aprendizes que, para abrir seu negcio, so obrigados a se transferir para regies distantes onde no h regras a cumprir e o mercado pouco promissor. Na medida em que o comrcio ganha novos horizontes, a crescente demanda de produtos pelos mercadores entra em choque com a forma de produzi-los. Comerciantes e intermedirios j no podem conviver com os limites impostos pelas corporaes de ofcio. Para driblar as normas locais que impedem a expanso das oficinas, a manufatura comea a ser transferida das cidades para as regies onde no vigoram as regras estabelecidas nos grandes centros. Com esta mudana, o arteso mantm a posse das ferramentas necessrias, mas perde o controle sobre a matria-prima que passa a ser fornecida por um empreendedor que tambm serve de elo com o consumidor final. Parece pouca coisa, mas j o bastante para minar o poder de barganha de quem produz. Agora, quem fornece os materiais a ditar os modelos, a exigir as quantidades e a fixar os prazos, do contrrio, este pode sempre entregar o servio a outros artesos deixando os primeiros a ver navios. Na medida em que as mudanas vo ganhando corpo, a necessidade de dar conta da produo exigida tende a introduzir certa diviso das tarefas, ainda que todos os envolvidos no processo de trabalho saibam atuar em cada uma de suas etapas. - Quer dizer, ento, que, por enquanto, o arteso continua mandando j que em sua oficina ele pode ir fazendo as coisas do seu jeito..., conclui o homem na tentativa de apressar os tempos da exposio. Impermevel presso do ajudante, Ndia balana a cabea em sinal de afirmao e, sem perder o fio da meada, acrescenta: - Mas isso por pouco tempo. De fato, do sculo XVI ao XVIII, a crescente ampliao dos mercados e, de conseqncia, da demanda de mercadorias, levam implantao do sistema fabril. Mais do que falar em grandes galpes com chamins e centenas de empregados, as primeiras

6 fbricas no passam de um cmodo que de propriedade do comerciante e no qual so reunidas tanto as mquinas como as matrias-primas com as quais vai comandar a produo. diferena do perodo anterior, o processo de trabalho passa a ser controlado pelo dono que, por sua vez, fixa um horrio a ser cumprido, impe metas dirias, paga de acordo com a quantidade produzida e disciplina os empregados com a imposio de multas, implacavelmente descontadas do ordenado. Num primeiro momento, por utilizar as ferramentas tpicas de qualquer oficina artesanal, operrios e operrias ainda contam com o conhecimento do ofcio para se defenderem dos abusos de seus novos patres. Ao saber lidar com todas as fases do processo de produo, os artesos recm-transformados em tarefeiros assalariados no podem ser substitudos de uma hora pra outra e, em caso de descontentamento, no hesitam em vender seus servios a outro comerciante. Sob as presses da crescente demanda de produtos e do descontentamento gerado pelas mudanas nas relaes de trabalho, os empresrios comeam a dividir o processo de produo em operaes distintas a serem realizadas sempre por um ou pelo mesmo grupo de trabalhadores. Desta forma, matam dois coelhos com uma pancada s. De um lado, na medida em que o operrio desempenha sempre o mesmo conjunto limitado de tarefas, a sua produo cresce ao mesmo tempo em que, de outro, ele pode ser mais facilmente substitudo por algum que, querendo ocupar o seu lugar, pode ser treinado num perodo de tempo bem mais curto. Ou seja, alm de no ter a propriedade dos meios de produo, o assalariado amplia sua submisso ao empregador na medida em que perde o controle sobre o trabalho e v reduzidas suas possibilidades de resistir ao aumento da explorao. Apesar de estarmos a mais de um sculo da administrao cientfica do trabalho, introduzida por Taylor no incio do sculo XX, as mudanas nos processos de produo j trazem em si parte dos elementos que os futuros administradores de empresa iro aperfeioar para elevar a produtividade e enfraquecer as lutas operrias. - O que no consigo entender, aonde os patres acham tanta gente para trabalhar e, ao mesmo tempo, para fazer chantagens com quem no se submete s suas ordens..., indaga o secretrio ao coar a cabea. - Simples!, responde imediatamente a ave ao apoiar o queixo na ponta da asa. Enquanto as mudanas nos processos de produo ampliam a riqueza que sai das fbricas, outros elementos aumentam a disponibilidade de fora de trabalho para a indstria. Em primeiro lugar, bom no esquecer que o volume cada vez maior de mercadorias produzidas no mesmo espao de tempo faz os preos carem. Por quanto se esforcem, os mestres artesos e seus auxiliares dificilmente conseguem reunir as condies necessrias para colocar no mercado produtos que podem competir com os que saem das fbricas. Ainda que uma parte deles consiga sobreviver por longo tempo, muitos se vem obrigados a fecharem as oficinas por falta de compradores. Um segundo elemento dado pela expulso do homem do campo em funo da concentrao das terras nas mos dos grandes proprietrios. Como os camponeses contam com um direito de posse extremamente limitado, a expulso deles depende apenas de uma deciso do nobre para o qual trabalham uma parte da semana em troca do acesso ao terreno cultivado para a prpria sobrevivncia. Na medida em que a demanda de l pelas indstrias faz da criao de ovelhas um negcio bem mais rentvel do que a produo de comida obtida pelo trabalho gratuito dos camponeses, uma grande quantidade de famlias expulsa das terras de cultivo e destinada a alimentar as massas humanas que perambulam de um lado pra outro na tentativa de conseguir os meios de se manterem vivas. Como estas pessoas tambm conhecem vrios ofcios e os processos de produo se tornam cada vez mais simples com a diviso em tarefas, o antigo campons se transforma em fora de trabalho a ser aproveitada pela indstria nascente. Ou seja, ao cercar as terras para criar rebanhos de ovelhas que permitam ampliar seus lucros, os latifundirios alimentam, sem querer, o nmero de desempregados dispostos a trabalharem por qualquer salrio. Se isso no bastasse, a introduo em larga escala da mquina a vapor, na segunda metade do sculo XVIII, eleva ainda mais a produo por operrio, proporciona uma reduo do nmero de atividades essenciais do processo de trabalho e leva falncia tanto boa parte dos artesos que ainda

7 resistem como um nmero significativo de empresas que no tm condies de introduzir os novos maquinrios. - Ento, vejamos: produo em alta... Lucro dos proprietrios subindo ainda mais... E os trabalhadores? O que deles?!?, questionam os lbios com a desconfiana tpica de quem no espera receber boas notcias. - Para alguns autores diz Ndia ao andar de um lado pra outro da mesa - basta uma nica frase para descrever as dramticas condies de vida e de trabalho em que se encontra a famlia operria: viver apenas no morrer. E no faltam motivos para que cheguem a esta concluso. Nas fbricas, via de regra abafadas, mal iluminadas e sem as menores condies de higiene, homens, mulheres e crianas se esfolam durante 15-16 horas de trabalho dirio. No se pra nem para comer e qualquer pequeno deslize punido com multas severas. Na medida em que a principal preocupao com as mquinas, ou seja, com o retorno de seus investimentos, e h gente sobrando sempre pronta a ocupar o lugar de quem morre, se acidenta ou demitido, os salrios so extremamente baixos. Com eles tudo o que se consegue comprar no passa de po, bolachas, batatas, alguns ovos ou peixe defumado, quase nunca carne fresca e leite. Com a introduo dos novos maquinrios e a possibilidade dos mesmos serem operados por um nmero maior de mulheres e crianas, a fora de trabalho masculina, mais cara, passa a ser crescentemente substituda pela feminina e a infantil. Mas, mesmo nos casos em que todos os membros da famlia so empregados, o salrio to baixo que sua dieta alimentar no registra nenhuma melhora significativa. No por acaso, na Inglaterra de 1878, uma pesquisa realizada pela British Association revela que as crianas de 11 a 12 anos que vivem no meio operrio so cera de 12 centmetros mais baixas dos filhos dos burgueses que tm a mesma idade.1 Sob a presso das transformaes que ocorrem na produo rural e industrial, as cidades crescem de forma rpida e desordenada. Em seu desenvolvimento, as reas urbanas proporcionam um crescente processo de segregao que empurra a classe trabalhadora para os bairros pobres das zonas industriais, longe tanto dos centros de negcios e de governo como das reas residenciais da burguesia. Nas regies onde se concentram as famlias operrias, a limpeza das ruas, o abastecimento de gua e os demais servios sanitrios so praticamente inexistentes. As condies de moradia so as piores possveis e o elevado preo dos aluguis leva a uma superlotao dos espaos existentes. Em 1860, na cidade inglesa de Manchester, no raro encontrar at 15 pessoas de sexos e idades diferentes dividindo o mesmo cmodo no qual, a depender do turno de trabalho, uma parte dos moradores dorme de dia e outra de noite. A soma de salrio baixo, condies de vida precrias e excesso de trabalho tem como resultado a exploso de inmeros casos de tuberculose, asma, clera, tifo, raquitismo e alergias aos quais deve ser acrescentada uma longa lista de doenas do trabalho. As epidemias de tifo e de clera que varrem os bairros operrios s comeam a preocupar as elites depois de 1848, quando saem deste ambiente e comeam a fazer vtimas entre os ricos. Se isso no bastasse, as desgraas das quais falamos so agravadas pelo alcoolismo em massa, pela prostituio, pelo infanticdio, pelos abortos, pelos suicdios, pelo ambiente de violncia e criminalidade que toma conta dos bairros operrios e pelos crescentes casos de demncia. Na quase totalidade das vezes, estas distores do comportamento social so tentativas de escapar do destino de serem trabalhadores pobres e humilhados ou, na melhor das hipteses, de esquecer ou tentar aceitar a prpria condio social. - E... o Estado no se sensibiliza diante de tamanha situao de misria?!?. - Logo o Estado..., retruca a coruja ao olhar detidamente para o homem sentado sua frente. - Sim. O Estado!, insiste o secretrio com ares de quem procura resgatar um elemento da histria propositalmente esquecido. - O que o seu crebro no consegue entender que nesta poca no h espao na mquina estatal para algo que no esteja estritamente voltado aos interesses da elite.

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Dados publicados em Rioux (60), pg. 155.

8 - Mas como isso possvel se, por exemplo, na Frana, a revoluo que percorre as ruas de Paris exige liberdade, igualdade e fraternidade?!?. - Uma coisa o que se diz, outra a que se faz e outra ainda a histria que sai desta relao. Se verdade que, em 1789, os revolucionrios franceses proclamam estes ideais contra os abusos da nobreza e do clero, tambm verdade que, aps as agitaes populares, a burguesia a colher os frutos das mudanas iniciadas. Derrotada a ordem feudal, desqualificados os valores nos quais se sustentava, potencializadas as possibilidades da nova classe que disputa os centros do poder, o povo que ocupou as ruas e praas da capital francesa volta s suas casas de mos abanando. Por outro lado, menos de 20 anos depois, Napoleo Bonaparte promulga um conjunto de normas que legalizam e do novo alento s aspiraes burguesas. Em seus mais de 2000 artigos, o cdigo napolenico institui a propriedade privada como a conhecemos hoje e garante a proteo legal do Estado para que a burguesia possa extrair dela a maior quantidade possvel de benefcios e privilgios. No por acaso, a legislao recm-aprovada tem apenas 7 artigos que tratam do trabalho enquanto mais de 800 estabelecem as garantias propriedade privada. Greves e agremiaes operrias so proibidas, ao passo que as organizaes empresariais so permitidas em todo o territrio nacional. Em caso de disputas sobre salrios, o direito determina que o depoimento do patro, e no do empregado, que deve ser levado em considerao pelo juiz. Nas poucas situaes em que h uma interveno favorvel ao operariado, os preceitos legais ou no so cumpridos ou isso s ocorre bem depois da sua aprovao. Por exemplo, a Lei Guizot, de 1841, que visa proteger o trabalho infantil nunca foi aplicada e s em 1893 que se conseguiu o reconhecimento da jornada mxima de 12 horas para as crianas. Ou seja, as mudanas sociais conduzidas pela burguesia acabam dando origem a normas escritas pelos proprietrios com o intuito de proteger suas propriedades e os negcios que estas vm possibilitar. Na Inglaterra, as coisas no so diferentes. Durante mais de 25 anos, a lei considera ilegal qualquer tentativa dos trabalhadores darem vida a associaes que visem defender seus interesses. Em 1816, na cidade de Stockport, nove chapeleiros so condenados a 2 anos de priso por conspirarem contra a ordem social. Na sentena, o juiz William Garrow observa: neste feliz pas onde a lei coloca o menor sdito em igualdade com a maior personagem do reino, todos so igualmente protegidos e no pode haver necessidade de se associar. A gratido nos devia ensinar a considerar um homem como o Sr. Jackson, que emprega de 100 a 130 pessoas, como um benfeitor da comunidade.2 Para os operrios, que procuraram se unir, dois anos de cadeia. Para o dono da firma que, de acordo com o juiz, to generosamente os emprega, uma meno honrosa. O comportamento do Parlamento ingls no se distancia muito da atitude que acabamos de descrever. A explorao amplamente tolerada pela lei e os nobres parlamentares s aprovam s pressas algumas medidas que beneficiam os de baixo somente quando os abusos gritantes dos patres ameaam fazer explodir a clera dos trabalhadores. Ou seja, quando falta pouco para a panela de presso ir pelos ares, o Estado procura esvaziar o descontentamento social que ameaa a ordem com o reconhecimento de alguns direitos para cuja aplicao, porm, no destina os meios necessrios. assim que, em 1819, o Parlamento britnico aprova uma lei que fixa em 9 anos a idade mnima das crianas destinadas ao trabalho nas fbricas de algodo e reduz a 12 horas dirias a jornada mxima a ser por elas cumprida. Doze anos depois, uma nova lei probe o trabalho noturno de menores de 18 anos e, em 1833, estes no podem cumprir uma jornada superior s 48 horas semanais. O problema que todas estas normas so bem pouco aplicadas. Para voc ter uma idia, a legislao que define o princpio da semana inglesa (36 horas de descanso continuado entre sbado e domingo) data de 1825, mas necessrio esperar at 1890 para que as presses do movimento sindical levem sua implantao. Longe de garantir qualquer tipo de assistncia aos que trabalham, em geral, o Estado deixa livre o caminho que leva ampliao do nmero de desempregados, aprimora os instrumentos que permitem controlar e reprimir qualquer agitao operria e passa longe de definir patamares mnimos de salrio e de condies de trabalho. Esta postura, que garante a permanncia das situaes degradantes que j descrevemos, oficialmente justificada por um conjunto de idias que2

Texto extrado de Hubermann (40), pg. 192.

9 procuram levar os assalariados a se conformarem com a ordem estabelecida. Alguns exemplos vo nos ajudar a compreender melhor este ambiente no qual a explorao se aprofunda e exime os empresrios de qualquer responsabilidade. No debate sobre o fato da jornada de 14 horas no permitir s crianas a menor possibilidade de aprender a ler e a escrever, setores do empresariado ingls no tm pudores em dizer que o turno das 6.00 da manh s 8.00 da noite vai fortalecer a moralidade dos futuros operrios na medida em que, desde cedo, incute na classe trabalhadora a disciplina do trabalho, a subordinao e a necessidade do esforo pessoal. Quanto proposta de criar escolas para os pobres, o argumento de que os operrios comeariam a desprezar o trabalho braal e, o que pior, poderiam ler o material impresso que os incita revolta, perdendo assim todo respeito para com seus superiores. Alguns representantes da elite, mais ligados ao ambiente religioso, no titubeiam em afirmar que elevar o salrio significaria elevar o alcoolismo, o que prejudicaria ainda mais a moral dos pobres. Alm disso, s a frugalidade produzida pela pobreza que, no entender deles, gera uma profunda sensao de contentamento. Trata-se de um privilgio do qual os ricos no podem desfrutar, pois este prazer genuno e profundo algo que se perde em meio abundncia onde no h sensao nenhuma em contar com recursos imensos para dar conta das necessidades vitais. Outros recriminam aos pobres o fato de casarem cedo (o que imprescindvel em pocas que apontam uma esperana mdia de vida no superior aos 35-40 anos) e, por isso mesmo, de terem muitos filhos. Em outras palavras, as condies de misria da maior parte da populao teriam como nico responsvel o comportamento irracional dos prprios miserveis. Entre os economistas, encontramos figuras como a de Nassau Snior para o qual a reduo da jornada de trabalho seria algo penoso para os prprios trabalhadores na medida em que o lucro empresarial produzido justamente na ltima hora de cada turno. Por isso, a reduo do horrio na fbrica levaria automaticamente diminuio dos lucros, ao fechamento das empresas e a uma misria ainda maior dos prprios operrios. Diante das presses por aumentos salariais, vrios expoentes do pensamento econmico sustentam a idia de que cada empresrio s pode pagar um determinado ordenado a seus funcionrios porque j reservou um fundo destinado a esse fim. Qualquer aumento s poderia acontecer se as empresas conseguissem produzir a mesma quantidade de mercadorias com um nmero menor de trabalhadores ou se as indstrias fossem desobrigadas de pagarem os impostos. Como um espelho que reflete as imagens vindas das camadas mais baixas da pirmide social, o conjunto de idias que os patres procuram veicular trata de inverter a realidade cotidianamente vivenciada nas empresas. No o trabalho a produzir a riqueza, mas sim o capital; no so os trabalhadores que enriquecem os patres, mas sim so estes a alimentarem e sustentarem as massas empobrecidas e sem iniciativa dando-lhes a oportunidade de trabalhar; a elite no pode ser responsabilizada pelos problemas sociais existentes, pois o nico culpado da degradao moral, social e econmica da classe trabalhadora o seu prprio comportamento. Some agora todos estes elementos e ver que o operariado chamado, desde cedo, a aprender uma dura lio: s ele pode fazer vento a seu favor. S a sua luta econmica e ideolgica pode abrir caminhos que forcem a elite a reconhecer algum direito. - Pelo jeito, as primeiras reaes de trabalhadores e trabalhadoras devem ter sido violentas..., comenta o ajudante ao vislumbrar os possveis desdobramentos da revolta coletiva que se prepara. - Exatamente!, confirma a ave ao menear a cabea. Na Inglaterra de 1779, encontramos os fiadores de algodo de Lancashire enviando peties Cmara dos Comuns para obter a interdio das novas mquinas que esto sendo introduzidas na indstria local. A revolta que cresce em surdina to grande e o silncio das autoridades to profundo que, para fazer ouvir sua voz, operrios e operrias arremetem contra os novos equipamentos. A dar origem ao movimento um trabalhador chamado Ned Lud que se atira contra um tear mecnico e incita os colegas a fazer o mesmo. Do seu sobrenome nasce o termo luddismo com o qual, a partir de agora, ser identificada toda ao que visa destruir as mquinas como forma de se rebelar contra as relaes de trabalho que ganham corpo na cidade e no campo. - Voc... poderia ser um pouco mais clara...?.

10 - Acontece que, neste momento histrico, tanto os artesos (obrigados a fecharem suas oficinas em funo dos baixos preos dos produtos industriais), como os recm-assalariados, (todos eles ex-artesos e ex-camponeses que se esfolam durante longas jornadas de trabalho sem conseguir um mnimo de sustento para suas famlias), vem na introduo das mquinas e nas relaes de produo que estas permitem implementar a razo de ser da misria, hoje companheira inseparvel de suas vidas. Por isso, diante da impossibilidade de pensar um futuro diferente no qual a tecnologia resolve boa parte da luta humana pela sobrevivncia, a destruio dos novos equipamentos vista como uma medida essencial para que trabalhadores e trabalhadoras possam voltar ao passado, ou seja, a condies de vida mais dignas. Ao se deparar com a ameaa deste movimento atingir a produo da l, o governo reage atualizando a lei que probe a formao de coalizes operrias e construindo quartis da cavalaria em todos os centros industriais com o objetivo de proporcionar a imediata conteno das desordens. Ou seja, diante do progressivo empobrecimento da populao que aumenta o risco de convulso social, a opo do Estado no pela distribuio da riqueza produzida, mas sim pela represso e pelo aprimoramento dos meios legais que justificam o uso da fora contra a revolta das maiorias. Pressionados e coagidos por todos os lados, os luddistas recuam at que, em 1811, operrios e trabalhadores a domiclio se unem para responder piora das condies de vida provocada pelas guerras nas quais a Inglaterra esta envolvida. Em Nottinghamshire, os artesos chapeleiros quebram centenas de ferramentas e saqueiam as casas de seus mestres. A revolta atinge as manufaturas e, em pouco tempo, se espalha pelas regies vizinhas. Assustado, o Estado s consegue restaurar a ordem graas a uma vigorosa interveno militar e a aprovao de uma lei que pune os destruidores de mquinas com a pena de morte. Na Frana, as revoltas operrias percorrem o mesmo caminho sem atingir, porm, a extenso e a coordenao que se registra em solo ingls. As principais manifestaes de descontentamento ocorrem em Falaise, em 1788. Nos anos seguintes, eventos espordicos so registrados tambm em Saint-Etienne, Lille, Aude, Tarn, Clermont-LHerault, Vienne, Mortange e Lyon, acompanhados de greves e at mesmo de algumas negociaes entre patres e representantes dos trabalhadores. Nestas cidades, homens e mulheres de todas as idades quebram as mquinas enfiando seus tamancos de madeira nas engrenagens que as fazem funcionar. Deste gesto de rebeldia nasce a palavra sabotagem que vem de sabot, tamanco, em francs. Via de regra, trata-se de aes de curta durao, mal-coordenadas e rapidamente esvaziadas ora pela interveno da polcia, ora pela demisso dos rebeldes ou por pequenas concesses dos empresrios. S mais de quatro dcadas depois, em Lyon, o operariado d vida a um movimento insurrecional que assusta a elite. Em 1831, cerca de 9.000 assalariados de indstrias, comrcios e oficinas artesanais do vida a uma associao que, sem quebrar uma nica mquina e contando com o apoio do prefeito, bloqueia a produo e fixa o pagamento de um nvel mnimo de salrio como condio para a retomada do trabalho. A recusa dos empregadores em aceitar as tabelas preparadas pelos funcionrios faz a revolta explodir. A Lyon trabalhadora levanta a cabea contra a explorao sem atos violentos e aprimorando a ajuda mtua entre os participantes do movimento. Apesar disso, a elite no pode permitir que sua ordem seja questionada por simples operrios. Dias depois, o Marechal Soult e seus 26.000 homens restabelecem com a fora o poder dos patres. Nas respostas s aes que do cor e forma ao incio do processo de conscientizao da classe trabalhadora, milhares de homens e mulheres consumidos pela fome experimentam na prpria carne o que Adam Smith escrevia anos antes no seu livro sobre a riqueza das naes: O governo civil, na medida em que institudo para a segurana da propriedade, na realidade institudo para a defesa do rico contra a pobre, ou dos que tm propriedade contra os que nada tm.3 - Um duro e amargo aprendizado, sobretudo se levamos em considerao que operrios e operrias lutam apenas para conseguir condies mnimas de sobrevivncia..., diz o secretrio surpreso e desconcertado.3

Idem, pg. 188.

11 - Mas h bem mais do que enfrentamentos e derrotas, intervm Ndia com um tom de voz preocupado em regatar elementos que podem ser esquecidos nas dobras do tempo. No longo caminho que leva os trabalhadores de um determinado ofcio a perceberem a necessidade de se unirem para defender os seus interesses, de superar os limites do ambiente em que trabalham, de se tornarem classe e de lutarem por uma sociedade sem explorados e sem exploradores, encontramos aqui os passos essenciais que, com formas e intensidade diferenciada, marcam a histria do movimento sindical de todos os pases. Na medida em que o operariado sente a necessidade de organizar a resistncia coletiva para dar flego s suas lutas, comea a fazer do companheirismo e da solidariedade duas peas-chave para comear a superar o individualismo e a competio estimulados pelos patres no interior da prpria classe. Estou me referindo, por exemplo, aos inmeros casos em que trabalhadores e trabalhadoras das mais variadas empresas usam parte dos limitados recursos de que dispem para dar vida a organizaes de ajuda recproca que procuram oferecer um mnimo de proteo em caso de doena, acidente e morte de um de seus membros. Sem poder contar com nenhum tipo de apoio por parte dos empresrios ou do Estado, a classe busca sadas para, de incio, no deixar as famlias totalmente desamparadas e, em seguida, poder ampliar sua capacidade de resistncia diante dos abusos sofridos. assim que, alm de passar o chapu na coleta de fundos, o operariado comea a organizar cooperativas com o propsito de derrotar a prtica patronal de pagar parte dos salrios com gneros alimentcios de primeira necessidade a serem comprados em armazns mantidos pelas prprias empresas. De qualidade ruim e preos bem mais elevados do que os praticados pelos demais comerciantes, as mercadorias vendidas diretamente pelas empresas so, de fato, uma forma de ampliar os lucros das indstrias com a fome de seus funcionrios. Surgidas na Inglaterra ao longo da segunda dcada do sculo XIX, as cooperativas j so 400 em 1833 e, em 1880, contam com nada menos do que 1000 armazns e 550.000 scios.4 Ao lado deste esforo, o prolongamento das greves e as dificuldades impostas pela sobrevivncia quando de sua ecloso exigem que operrios e operrias se cotizem para alimentar suas caixas de resistncia. ajuda solidria, acrescenta-se agora o compromisso de juntar recursos para sustentar e ampliar o poder de barganha dos movimentos grevistas. Obrigadas a nascer e a crescer na informalidade e, no poucas vezes, na clandestinidade, estas atividades acabam constituindo a base sobre a qual, a partir da lei de 1825 que autoriza sua constituio, vo despontar os primeiros sindicatos oficialmente reconhecidos. Ou seja, no uma norma criada pelo Estado a dar vida s organizaes sindicais, mas sim um intenso trabalho de base, silencioso e subterrneo que, ao poder manifestar abertamente seus resultados, d sustentao s novas formas pelas quais a classe vai fortalecer suas fileiras. A velocidade com a qual este movimento vai se consolidar em cada pas depende tanto do desenvolvimento do prprio capitalismo e das contradies por este alimentadas, como da tradio de luta e das presses que aliados e adversrios exercem sobre a prpria classe trabalhadora. O fato que a formao dos que podemos chamar de militantes sindicais se d inicialmente no mbito de uma organizao corporativa que busca defender seus integrantes contra as ameaas trazidas pelas pssimas condies de vida e de trabalho a que esto submetidos. neste contexto que, entre inmeras dificuldades, a conscincia poltica da classe ensaia seus primeiros passos na medida em que o prprio operariado vai descobrindo sua capacidade de organizao, sua fora e, entre mil incertezas e dificuldades, vai moldando sua recusa a se submeter a uma ordem social que o exclui da riqueza produzida pelo seu trabalho. Em outras palavras, o sindicato no nasce quando a elite reconhece a possibilidade da sua existncia, mas sim quando os explorados praticam coletivamente o significado do termo que expressa agora um dos instrumentos pelos quais a classe trabalhadora rejeita a possibilidade de se resignar com a espoliao qual est sendo submetida. Ser sindicato significa justamente exercer coletivamente a funo de sndico, ou seja, daquele que o defensor (syn, em grego) da justia (dik).

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Dados publicados em Rioux (60), pg. 168.

12 - Quer dizer, ento, que o jeito fazer com que a luta acontea entre os muros da fbrica?, deduz o homem ao tirar concluses apressadas. - No isso que eu quis dizer, rebate imediatamente a coruja para evitar possveis confuses. Uma coisa propor que tudo se restrinja ao ambiente de trabalho e outra, bem diferente, afirmar que o sindicato nasce no interior das fbricas, mas com uma atuao que no pode permanecer presa nos limites estabelecidos por seus muros. Como j vimos, alm das ocasies em que os movimentos nascidos no ambiente fabril atingem outros setores sociais h outras em que a exploso da revolta fora dele acaba envolvendo os operrios e se ampliando nas demais atividades econmicas da regio. o que ocorre, por exemplo, no condado de Mayo, na Irlanda, onde Charles Cunningham Boycott administra os negcios do Conde Erne. Diante da truculncia com a qual trata os empregados e de sua recusa em negociar qualquer melhoria nas condies de trabalho, estes respondem convidando os moradores dos povoados a no consumirem os produtos vindos das propriedades ou negcios do Conde. A adeso popular conseguida pelos trabalhadores provoca um grande prejuzo aos cofres do nobre que acaba afastando o seu administrador. Em pleno sculo XIX, camponeses e operrios das manufaturas do vida a uma forma de luta que supera os estreitos limites do ofcio e, daquele momento em diante, passa a ser conhecida, justamente, pelo nome de boicote. Alm disso, na Inglaterra, os enfrentamentos travados com a polcia e os governos dos patres no perodo anterior do vida a um movimento que busca estender o direito de voto a todos os cidados. A idia tem como ponto de partida a constatao de que se o governo pode proteger os lucros dos patres locais da concorrncia comercial promovida por outros pases e faz leis para garantir suas propriedades e privilgios em prejuzo das maiorias, deve ser possvel usar a lei para aumentar os salrios, garantir a reduo da jornada de trabalho e assegurar direitos que melhorem as condies de vida dos de baixo. Mas, como no d pra esperar isso dos legisladores que j atuam no Parlamento, a nica possibilidade de conseguir esta faanha passaria pela conquista do direito de voto com o qual os trabalhadores poderiam escolher parlamentares comprometidos em aprovar normas que os beneficiem. assim que, em 1838, ganha corpo um movimento conhecido pelo nome de cartismo. - Car... o que? - Cartismo, nome que vem da Carta do Povo, o documento no qual seus formuladores reivindicam o sufrgio universal para os homens, a eleio anual do Parlamento, a eliminao da exigncia de qualquer ttulo de propriedade como condio para as pessoas se candidatarem, o pagamento de salrios aos membros eleitos para a Cmara dos Comuns (o que possibilitaria aos pobres poderem desempenhar as funes legislativas), a eleio por voto secreto para evitar as intimidaes de patres e latifundirios e a igualdade de condies nos distritos eleitorais. O movimento integrado por grupos de vrias orientaes ideolgicas que incluem de representantes interessados e favorveis ao progresso e desenvolvimento da indstria a lderes de associaes contrrias introduo das mquinas na manufatura. Em pouco tempo, graas a seus vnculos com o meio operrio, o setor radical do movimento, encabeado por Fergus OConnor, tem a melhor sobre as tendncias moderadas e, alm das mudanas na ordem poltico-eleitoral, reivindica, como objetivo da mesma luta, o direito ao trabalho, a socializao da terra e o controle dos trabalhadores sobre os meios de produo. Greves e enfrentamentos se espalham por vrias regies da Inglaterra e culminam com a greve geral de um ms, realizada em 1842. Com suas manifestaes duramente reprimidas e as reivindicaes recusadas, o cartismo comea a declinar. Em 1848, por conta dos acontecimentos que sacodem a Frana, o movimento conhece uma pequena retomada das atividades. Novamente atingido pela represso, acaba sucumbindo de vez em 1849. - Ao que tudo indica, trabalhadores e trabalhadoras lutaram muito, ganharam pouco e, se bobear, agora esto pior do que antes de comear seus movimentos..., diz o secretrio sem esconder sua decepo. - Nisso voc est redondamente enganado! rebate a ave ao apontar a asa esquerda para a cabea do homem entretido a escrever as ltimas palavras do relato. Por duras que tenham sido, as

13 lutas da classe trabalhadora do passos importantes tanto na tarefa de pr limites explorao como de abrir perspectivas para o futuro. Apesar de violentamente reprimidas, muitas greves e manifestaes conquistam aumentos salariais, conseguem pequenas melhorias nas condies de vida dentro e fora das fbricas, ajudam a desmascarar a ao dos patres e do governo, alm de colocar em evidncia quais so os interesses sociais defendidos pela polcia e pelo exrcito de seus pases. Na medida em que este processo avana, suas formas de organizao ganham consistncia, sua capacidade de ler a realidade se amplia e novos objetivos comeam a ser traados pelos tortuosos caminhos que levam trabalhadores e trabalhadoras a tomarem conscincia de sua condio operria, da impossibilidade de voltar ao passado artesanal e da necessidade de intervir em vrias frentes para garantir o seu espao nas decises que orientam a vida em sociedade. Ora tmida, ora impetuosa, ora assustada, ora desafiadora, a classe comea a perceber o tamanho da explorao a que est submetida, a buscar caminhos para sair do conformismo e ensaiar os primeiros gritos de liberdade. A seu modo e com a insegurana tpica de quem d os primeiros passos, os enfrentamentos dentro e fora das fbricas comeam a colocar questes incmodas como a que Percy Bysshe Shelley, morto em 1822, expressa neste poema: Homens da Inglaterra, por que arar para os senhores que vos mantm na misria? Por que tecer com esforo e cuidado as ricas roupas que vossos tiranos vestem? Por que alimentar, vestir e poupar, do bero at o tmulo, Esses parasitas ingratos que exploram nosso suor, que bebem nosso sangue? Por que, abelhas da Inglaterra, forjar muitas armas, cadeias e aoites Para que esses vagabundos possam desperdiar o produto forado de vosso trabalho? Tendes acaso cio, conforto, calma, abrigo, alimento, o blsamo gentil do amor? Ou o que que comprais a tal preo com vosso sofrimento e com vosso temor? A semente que semeais, outro colhe. A riqueza que descobris fica com outro. As roupas que teceis, outro veste. As armas que forjais, outro usa. Semeai mas que o tirano no colha. Produzi riqueza mas que o impostor no a guarde. Tecei roupas mas que o ocioso no as vistas. Forjais armas que usareis em vossa defesa.5 Terminada a declamao, Ndia emite um longo suspiro e deixa que o silncio tome conta da sala teimosamente iluminada pela fraca luz da vela. Na escurido da noite, os versos do poeta parecem ecoar insistentemente entre as paredes frias para sublinhar que ainda h tudo por fazer e que aqueles que deram vida ao passado entregam agora o basto aos que, seguindo seus passos, herdam seus dilemas, anseios e esperanas. Mergulhados nesta estranha e contraditria mistura de dor e alegria, os ouvidos captam um novo convite: - Muito bem, est na hora de dirigir a nossa ateno ao Brasil. Por isso, vamos continuar o nosso passeio pela histria do movimento sindical tratando do perodo que vai...

2. Do fim da escravido ecloso da primeira guerra mundial.Compenetrada, Ndia comea a se movimentar de um lado pra outro. As expresses que desenham o seu rosto revelam o esforo de reunir os dados que marcam a histria deste perodo.5

Poema publicado em Hubermann (40), pg. 193-194.

14 Sem pronunciar palavra, o secretrio acompanha os passos da coruja apoiando a mo esquerda nos papis que aguardam a continuidade do relato. Momentos de espera permitem a ave e homem recuperar o que precisam para enveredar em mais uma etapa de sua longa jornada. De repente, o pequeno ser pra, gira o corpo e com voz firme anuncia: - O que as pessoas no sabem ou nem sempre levam na devida considerao que a formao da classe operria no Brasil ocorre enquanto o escravo empregado nas fazendas ainda constitui a fora de trabalho que produz a quase totalidade da riqueza destinada exportao. Como j tratamos dos quilombos e do processo que levou assinatura da Lei urea em outro estudo, aqui vamos nos limitar a resgatar o fato de que, entre 1850 e 1920, s o estado de So Paulo recebe mais de um milho e meio de trabalhadores estrangeiros.6 Atrados pelas promessas de uma vida melhor, milhares de italianos, espanhis, portugueses, alemes, poloneses, entre outras nacionalidades, deixam sua terra natal em busca de condies mais dignas de vida e de trabalho. O que move a quase totalidade dos emigrantes que desembarcam em solo brasileiro o sonho de fazer a Amrica, ou seja, de conseguir rapidamente recursos suficientes para voltar s naes de origem e montar l as atividades econmicas que garantiriam o seu sustento. Ainda que parte deste contingente tenha se unido ao fluxo de migrantes para escapar da perseguio policial a suas atividades polticas na Europa, a bagagem da quase totalidade das pessoas que responde aos convites dos recrutadores de fora de trabalho est repleta do sonho de ter acesso a um enriquecimento tido como rpido e certo. O problema que as fazendas de caf nas quais se destinam a substituir o negro escravo transformam suas vidas num verdadeiro pesadelo. Diante da dura realidade, mais do que a conscincia de classe trazida de seus locais de origem, a frustrao da esperana de fazer o prprio p-de-meia a dar vida s primeiras revoltas. - Sendo assim diz o secretrio ao coar a cabea -, deve ter gente que vai fazer o impossvel para deixar os cafezais e procurar a sobrevivncia em outros lugares.... - Exatamente!, confirma a ave franzindo a testa. Cumpridas as obrigaes com os fazendeiros que haviam contratado seus servios, homens e mulheres de todas as idades se dirigem ora em direo ao interior, em busca de um pedao de terra, ora para o trabalho nas fbricas que, pouco a pouco, vo se instalando nos grandes centros urbanos. Graas a este fluxo migratrio, a cidade de So Paulo que, em 1892, conta com 31.385 habitantes, v sua populao saltar para 239.820, em 1910, um aumento de 764% em 18 anos.7 Pressionado por este crescimento, o municpio conhece um rpido proliferar dos loteamentos. Quem dispe de alguma economia ou de certo poder aquisitivo tem a possibilidade de morar decentemente, mas no esta a perspectiva que se desenha para a grande maioria das pessoas. Apesar da lei n. 468, de 14 de dezembro de 1900, isentar de impostos as casas dos operrios, permitir a utilizao de materiais de qualidade inferior para a sua construo e abrir mo de uma srie de exigncias na execuo das obras, os custos dos 30 metros quadrados mnimos de rea construda somados ao preo do lote perfazem um total no inferior a 2:500$000 Ris. Sabendo que, neste perodo, um operrio ganha em mdia 5$000 Ris e que, alm do aluguel, ele deve gastar com comida, roupas, remdios e demais etceteras, a possibilidade de acesso casa prpria no passa de uma iluso. A desgraa de muitos, porm, acaba fazendo a riqueza de poucos. De fato, a lei que deveria facilitar aos pobres o acesso moradia, acaba sendo uma mo na roda para os ricos que vem na construo das vilas operrias em loteamentos desvalorizados a possibilidade de erguer ambientes a serem alugados pelos funcionrios das indstrias em condies que garantem um retorno elevado sobre o dinheiro investido.8 Por outro lado, a descrio da relao entre os salrios ganhos nas empresas e o custo de vida, publicada no jornal A terra livre, de So Paulo, em 24 de maro de 1906, nos d uma idia do drama vivido pelos operrios. No artigo publicado sob o ttulo, O trabalho na fbrica, lemos: A fbrica do Ipiranguinha emprega, das 5.30 da manh s 6.30 da tarde com uma hora para o6

Estamos falando do texto produzido e divulgado pela internet em 2005 sob o ttulo Em busca da liberdade traos das lutas escravas no Brasil, ainda em fase de publicao. 7 Dados publicados em Carone (14), pg 38. 8 Idem, pg. 37.

15 almoo, perto de 500 operrios, os mais novos dos quais esto l h uns trs anos. Na fiao, a maioria dos operrios oscila entre 10 e 30$000 Ris mensais; e note-se que as crianas mantidas na priso naquela idade, em que o ar e a luz so to necessrios em vez de serem auxiliares da famlia, so aproveitadas pela indstria como concorrentes aos adultos, cujos salrios elas fazem rebaixar. Na tinturaria, os operrios trabalham 11 horas dirias em cima da tina cheia de gua a 50 graus, e com cidos! Muitas vezes os tintureiros so obrigados a ficar em casa, porque tm as mos cozidas cozidas o termo! Tudo isso por $300 Ris por hora. A tecelagem numa sala com 4 janelas e 150 operrios. O salrio por obra. No comeo da fbrica, os teceles ganhavam em mdia 170$000 Ris mensais. Mais tarde, no conseguiam ganhar mais do que 90$000; e pelo ltimo rebaixamento a mdia era de 75$000! E se a vida fosse barata! Mas as casas que a fbrica aluga, com dois quartos e uma cozinha, so a 20$000 Ris por ms; as outras so de 25 a 30$000 Ris. Quanto aos gneros de primeira necessidade, em regra, custam mais do que em So Paulo. E h muito pior. O armazm da fbrica leva mais caro ainda do que fora, e desconta no salrio a despesa feita durante o ms! s vezes o salrio fica l todo! Se por isso o operrio precisa de dinheiro para pagar a casa, a fbrica empresta-lhe, ficando com crdito sobre o futuro salrio. Este engenhoso sistema de explorao mltipla, com a casa, com a venda de gneros e com a oficina, - quase toda a explorao burguesa reunida iremos encontr-la noutras penitencirias industriais e agrcolas deste abenoado pas! A tudo isso juntemos as pssimas condies higinicas do presdio e o feroz autoritarismo a reinante. Se, por exemplo, um operrio est mais de 5 minutos na latrina, o guarda comea a dar pontaps na porta. 9 Bastam estas linhas para entender porque, freqentemente, mesmo com as mulheres e crianas trabalhando ininterruptamente, as famlias operrias devem se conformar em morar nas favelas ou curtios onde, em um nico quarto sem luz e sem gua, no raro encontrar dezenas de pessoas que se amontoam no pouco espao disponvel. - E, pelo visto, a vida nas fbricas deve ser tambm muito dura.... - Neste caso diz a coruja ao apontar a asa para o peito do secretrio basta o relato de Jacob Penteado em Belenzinho 1900, para termos uma idia do que acontece no interior dos galpes. Ao falar da Cristaleria Itlia, o autor escreve: o ambiente era o pior possvel. Calor intolervel dentro de um barraco coberto de zinco, sem janelas nem ventilao. Poeira micidial, saturada de miasmas, de p de drogas modas. Os cacos de vidro espalhados pelo cho representavam outro pesadelo para as crianas, porque muitas trabalhavam descalas ou com os ps protegidos apenas por alpercatas de corda, quase sempre furadas. A gua no primava pela higiene nem pela salubridade. Acrescentem-se a isso os maus tratos dos vidreiros, muito comuns naquele tempo. Havia mais, porm. Os meninos deviam estar na fbrica quase uma hora antes dos oficiais, porque tinham de encher de gua os lates e tinas, onde os vidreiros mergulhavam as canas e os ferros de fazer bocas, quando necessitavam de arrefec-los, e, tambm, deviam acender os forninhos onde as peas eram reaquecidas para o acabamento. Assim, em dias normais, as horas de trabalho dos meninos eram dez e, quando a fuso do vidro retardava, aumentavam para onze, doze e at quinze. Muitos deles moravam distante da fbrica e no tinham tempo de irem para casa almoar ou jantar, nem de buscar o lanche tarde. E a aflio das pobres mes, que jamais poderiam saber o que estaria acontecendo! Os lates de gua ou as tinas pesavam, em geral, de 20 a 30 quilos. Os pobres meninos levavam-nos junto ao peito, com a orla do recipiente colada ao rosto. Devido ao peso, andavam a passos incertos, tropeando a cada instante, e a gua, ento, sacudida, transbordava e ensopava as mseras roupinhas, que acabavam secando no corpo. Os coitadinhos, na maioria, vestiam apenas uma camiseta de malha e calas at os joelhos.9

Idem, pg. 52.

16 Fazia-se fila junto torneira, na maior aflio. Cada qual ansiava por desobrigar-se quanto antes, porque, ao chegarem os vidreiros, se a gua no estivesse no lugar apropriado, os meninos apanhariam feio. Havia sempre os infelizes, os menores de 7 ou 8 anos, que ficavam por ltimo, pois no podiam enfrentar os maiores, que empregavam a fora, tomando-lhes a dianteira na bica. Era a lei do mais forte. Os meninos sempre foram indispensveis na fbrica de vidro. Muitas tarefas auxiliares s eles podiam executar, sem contar que representavam mo-de-obra a preos dos mais vis. Ganhvamos apenas $700 Ris por dia. Comevamos por levar a pea de vidro, j acabada, para a arca de recozimento (...). Usavam uma p de cabo de ferro, comprido, para colocarem a pea bem no fundo da arca, com a ponta em forma de telha, forrada de papelo mole, onde pousavam a garrafa ou o frasco. (...) Outros cuidavam dos moldes onde os oficiais punham o vidro j elaborado, para tomarem a forma adequada. Esses eram denominados fechadores de formas. Ficavam metidos num buraco, abaixo do nvel do solo, na mais completa imundcie, e seu trabalho consistia em fechar as duas partes do molde, quando o vidreiro ali pusesse o vidro. Depois, segurar bem forte os dois cabos do molde, enquanto o oficial soprava a plenos pulmes. Hoje, h aparelhos mecnicos que introduzem o sopro, mas, quele tempo, era tudo executado no bafo. E ai do coitado se, cedendo violncia do sopro, deixasse abrir os moldes, ficando a pea perdida. O vidreiro, l de cima, metia o p, sem d, na cabea do menino. Vi, certa vez, um vidreiro furioso porque a pea ficara inutilizada, despeda-la na cabea do malaventurado aprendiz, que berrava feito louco, pois os pedaos de vidro, ainda quente, penetravamlhe pela camiseta adentro. E o monstro ainda ria, ao ver sua vtima pulando de dor... 10 - Meu Deus! Isso chega a dar arrepios!, prorrompe o homem enquanto a mo, cansada, solta a caneta. - Na verdade, o que acabamos de apresentar apenas um exemplo de uma realidade muito comum nas fbricas que vo se instalando nas periferias das grandes cidades. Diante do crescente exrcito de desempregados, a preocupao com o ser humano que trabalha cai em segundo plano. Baixos salrios, trabalho infantil, longas jornadas, pssimas condies de higiene, nenhum cuidado com a segurana e a preveno de acidentes, presses constantes da chefia e a frustrao do sonho de fazer a Amrica no produzem somente a pobreza da classe operria, mas o seu prprio embrutecimento. Some a isso as condies de moradia, descritas anteriormente, e no ter dificuldades em entender tanto o proliferar das doenas e infeces que matam milhares de trabalhadores, como as situaes de violncia, alcoolismo, prostituio e demais problemas que agravam o cotidiano da vida fora do ambiente fabril. em meio a este clima de precariedade e incertezas que, sem poder contar com nenhum tipo de assistncia por parte do Estado e dos patres, os trabalhadores so chamados a construir sua resposta situao de desespero e abandono em que se encontram. - Construir a unio entre os condenados a este inferno no deve ter sido fcil... - E no foi confirma Ndia ao piscar os olhos. A primeira resposta que os operrios vo forjando ao longo do sculo XIX busca proporcionar um mnimo de ajuda financeira aos colegas, ou s suas famlias, quando alguma desgraa vem aumentar ainda mais a carga de sofrimento e humilhao a que esto submetidos. Estou me referindo, especificamente, s associaes de mtuo socorro que, longe de lutar para melhorar as condies de vida e de trabalho, tm como objetivo nico proporcionar algum auxilio toda vez que seus associados so vtimas de acidentes, doenas, mortes ou acabam presos pela polcia aps qualquer manifestao de revolta no interior dos galpes. Entre as primeiras organizaes das quais temos notcia, est a Imperial Sociedade dos Artistas Mecnicos e Liberais de Pernambuco, fundada em 1836, por dez carpinteiros que se juntam para criar um caixa comum, alimentado por uma cotizao mensal. Desafiando a lei que proibia qualquer forma de associao por parte dos trabalhadores, os fundadores so obrigados a agir s10

Idem, pg. 54-55.

17 escondidas e, apesar disso, no poucas vezes alguns de seus membros acabam nas delegacias sob a acusao de tentar subverter a ordem. Sero necessrios cinco anos de atividade informal antes que a associao possa se tornar pblica, mas s 46 anos depois da sua fundao, em 1882, que seus scios podero ter os estatutos oficialmente reconhecidos. Desde logo, os trabalhadores aprendem que qualquer movimento para somar foras ser visto pela elite como ameaa sua ordem na medida em que uma das formas de garantir a explorao passa, necessariamente, pelo fortalecimento do individualismo que abandona cada trabalhador sua prpria sorte e transforma o colega em concorrente a ser derrotado. Alm disso, o reconhecimento institucional do que por eles criado s pode vir como resultado de um rduo esforo de organizao no qual a fora da unio construda por debaixo dos panos, dia aps dia, num compromisso invisvel de proteger seus associados e abrir caminhos para que, ao se tornar fato consumado, possa ter condies de ampliar o seu alcance. - O que no entendo diz o ajudante entre a dvida e o desconcerto por que a elite demonstra tanta preocupao diante de algo que tem carter meramente assistencial.... - Pelo visto, as grossas lentes dos seus culos no conseguem enxergar o que qualquer mope da minha espcie v com clareza cristalina. Na medida em que o companheirismo e a solidariedade vencem as barreiras impostas pela diviso e o embrutecimento que reinam entre os operrios, criam as condies que, ao fortalecer laos de confiana recproca, possibilitam que trabalhadores e trabalhadoras apontem objetivos maiores. O auxlio obtido nas desventuras da vida forja o ambiente no qual a reflexo coletiva comea a ver as reaes individuais diante da explorao como algo que no deve ser condenado, mas que precisa sim ser ampliado para derrotar as condies de trabalho impostas e das quais dependem os males que as associaes de socorro mtuo procuram minorar. Alm dessas sociedades se espalharem pelo Brasil inteiro, elas comeam a ganhar um carter de resistncia diante dos patres. assim que, por exemplo, em 1853, a Imperial Associao Tipogrfica Fluminense, da cidade do Rio de Janeiro, passa a entender a ajuda solidria no s como prestao de servios assistenciais aos associados, mas sim como uma fora que deve ser capaz de apresentar as exigncias destes a seus empregadores. Cinco anos depois, ser ela a comandar a greve dos tipgrafos que, em 1858, vai paralisar as oficinas grficas do Dirio do Rio de Janeiro, do Correio Mercantil e do Jornal do Comrcio para exigir aumentos salariais. Mais do que resolver os problemas da sobrevivncia operria, os 10 tostes a mais conseguidos pelo movimento demonstram que a classe pode organizar novas respostas aos desmandos patronais. O exemplo da capital fluminense seguido, em 1863, pelos operrios da estrada de ferro Dom Pedro II; em 1866, pelos comercirios e caixeiros do Rio de Janeiro que entram em greve para exigir o fim do trabalho noturno e aos domingos; em 1877, pelos carregadores do porto de Santos que conseguem aumentar seus salrios; e, em 1881, pelos jangadeiros do Cear que, ao paralisarem o transporte dos escravos, contribuem, de quebra, para a abolio da escravatura naquele estado. Longe de poder falar de um fenmeno amplo e ameaador, pois a classe operria propriamente dita extremamente pequena, o que temos uma espcie de ensaio de resposta do trabalhador coletivo que, entre 1890 e 1910, vai marcar presena cada vez maior na vida das cidades. - Quer dizer, ento que daqui que nascem os sindicatos?. - Ainda que nem sempre o processo histrico acompanhe a evoluo que vou delinear, podemos dizer que, at 1901, predominam as associaes de carter assistencial e beneficente. As relaes de solidariedade por elas criadas do origem a um sentimento de coletividade que permite o desabrochar das primeiras Ligas de Resistncia. Entre 1903 e 1905, a cidade de So Paulo, principal centro industrial do pas, conhece um grande proliferar destas formas de associao que vo somando foras em torno da Federao Operria nascida no estado. Deste fervilhar de agremiaes, nascem os primeiros sindicatos que, em seus primrdios, se definem como organismos de resistncia e de luta pelos interesses profissionais e econmicos dos trabalhadores, organizados, orientados e mantidos pelos trabalhadores sem que haja interferncia por parte do Estado e dos patres. Dirigidos em sua maioria por militantes anarquistas de vrias procedncias, os

18 sindicatos recm-fundados tm como objetivo imediato a conquista de melhores condies de trabalho e, como meta de longo prazo, a derrocada do capitalismo. Unidos em volta da identidade criada pela defesa dos interesses corporativos ou de ofcio, as entidades sindicais de algumas categorias buscam seu prprio fortalecimento organizando nos locais de trabalho conselhos de representantes que sirvam de elo entre a base e o sindicato. A necessidade de ouvir e debater constantemente as idias que marcam presena entre o operariado encurta as distncias entre as bases e suas direes, alimenta a participao ativa e contribui significativamente para que operrios e operrias assumam progressivamente a responsabilidade de decidir o futuro da luta. Isso faz com que, neste perodo, o sindicato no seja uma estrutura alheia ao cotidiano da classe, mas possa ser definido como trabalhador organizado em seu local de trabalho. Graas a esta insero, a violenta represso policial que invade e fecha as sedes das organizaes operrias, no consegue impedir que a luta continue sem grandes sobressaltos. Apesar de terem suas razes fincadas no interior das fbricas, no podemos dizer que a ao sindical limita-se ao mbito da categoria. Na medida em que as mobilizaes e os enfrentamentos ganham corpo, estabelecem-se relaes com sindicatos de outros setores ou de cidades prximas. Pouco a pouco, este movimento leva criao de intersindicais e de federaes que renem trabalhadores da mesma ou de outras profisses em nvel local, regional e estadual. Neste processo pelo qual a classe vai forjando as organizaes que buscam ampliar e dar alento s suas lutas, em 1906, o 1 Congresso Operrio realizado no Brasil d o pontap inicial criao da Confederao Operria Brasileira (COB) que, desde logo, conta com a adeso de dezenas de sindicatos e federaes estaduais e cujo trabalho efetivo vai se desenvolver a partir de 1908, ano em que tambm comea a circular o jornal A Voz do Trabalhador, rgo da confederao. Entre as principais concluses do congresso, encontramos a recomendao de que as organizaes operrias sejam independentes do Estado e dos patres, no esperem pela ajuda de polticos e no permitam que os sindicatos se tornem o mbito em que se inserem as disputas partidrias, pois isso acabaria criando inimizade e desunio entre os prprios trabalhadores. Os delegados reafirmam que o objetivo dos sindicatos resistir ao capitalismo, reivindicar os direitos da classe e no proporcionar qualquer tipo de assistncia beneficente a seus associados. Embora as cooperativas e as associaes de mtuo socorro atraiam muitos trabalhadores para as fileiras do sindicato, elas acabam desviando a entidade de seu verdadeiro papel e, na medida em que aliviam os sofrimentos dos operrios, levam a base a se acomodar, abrindo assim caminhos para ampliar a explorao. Por isso mesmo, o congresso recomenda que as caixas de mtuo socorro sejam separadas dos sindicatos que, por sua vez, devem criar fundos para sustentar as greves e as demais lutas reivindicatrias. Para no criar inimizades e afastar interesseiros e aproveitadores, as organizaes sindicais no deveriam ter funcionrios pagos. S em casos de extrema necessidade que estas contratariam algum por uma remunerao no superior que seria paga se este militante estivesse trabalhando numa fbrica, em sua profisso. Alm desta restrio, os delegados apontam que os sindicatos devem contratar, preferencialmente, companheiros invlidos, acidentados ou afastados por doena profissional aos quais no seria concedido o direito de votar e serem votados. As resolues recomendam tambm a criao de sindicatos femininos; que as organizaes de resistncia no admitam em seu quadro de scios patres, mestres, contramestres ou qualquer trabalhador que explore por conta prpria o trabalho de outros operrios ou de aprendizes; que as diretorias no ajam ou decidam por si prprias, separadas da massa, mas que se criem comisses das quais os associados podem participar assumindo, de igual para igual, a responsabilidade de tomar decises e o poder de encaminh-las; que greves, sabotagens, boicotes e demais formas de protesto se concentrem na luta pelo fim do salrio por pea, pela jornada de 8 horas sem reduo dos salrios, contra o militarismo, as guerras e a interveno das foras armadas nos enfrentamentos entre patres e trabalhadores. A partir destas definies, o movimento sindical no Brasil cresce e se desenvolve, aprimora suas formas de organizao e o eixo de sua interveno dando alento s lutas que vo pipocando em vrias regies do pas.

19 - Isso devia ser fcil para eles que pensavam todos do mesmo jeito e no havia tendncias disputando espao dentro e fora dos sindicatos..., comenta o secretrio ao tentar marcar as diferenas entre o passado e o presente. - a que voc se engana!, retruca imediatamente a coruja ao caminhar em direo do seu ajudante. Uma simples anlise dos documentos, jornais e panfletos desta poca revela a existncia de um intenso debate de idias que passa bem longe do consenso que voc supe. Entre os prprios anarquistas, cuja orientao poltica predomina no meio operrio, h pelo menos dois grandes grupos que apostam em estratgias de ao diferenciadas. Os partidrios de uma sociedade anrquica (ou seja, sem governo), via de regra, apontam para a necessidade de construir relaes de completa igualdade entre todos os cidados a serem alcanadas no pela luta eleitoral, partidria ou pela interveno de algum iluminado, mas sim pela ao direta das massas. Ora violenta, ora pacfica, seria por meio dela que trabalhadores e trabalhadoras assumiriam as rdeas da vida na nova sociedade rumo qual os sindicatos so apontados como os principais instrumentos de luta. O aparente consenso em volta desta definio geral no deixa transparecer duas orientaes bem diferentes. De um lado, a dos anarquistas evolucionistas, que negam o Estado, denunciam a opresso capitalista, prevem que o processo em direo a uma sociedade igualitria ser lento, porm inevitvel, apostam na ao da classe trabalhadora para levar o regime a ceder, sendo que a transio da sociedade capitalista anrquica no seria necessariamente violenta. Por outro lado, h uma corrente anarco-sindicalista que, ao ver na ao direta o nico caminho pelo qual possvel pr fim sociedade de classes, proclama a necessidade de responder violncia burguesa com a violncia proletria, no descarta o assassinato de personalidades de destaque do regime, a realizao de uma greve geral revolucionria capaz de se apossar dos meios de produo, derrubar a elite no poder e destruir o sistema burgus. Setores desta corrente vo demonstrar certo receio quanto luta sindical propriamente dita por temer que os movimentos por melhorias imediatas e as conquistas obtidas acabem acomodando os trabalhadores e se sobrepondo preparao das condies para a revoluo social que poria fim ao capitalismo. Apesar das diferenas, os dois grupos condenam a participao de operrios na poltica institucional, denunciam a doutrina da igreja como malfica aos interesses operrios e os padres como instrumento a servio da dominao burguesa, afirmam que a caridade crist no passa de um artifcio para ocultar a explorao e acusam a elite de usar o patriotismo em proveito prprio. Atuando freqentemente junto aos anarquistas, encontramos os militantes socialistas. Favorvel greve toda vez que fracassa qualquer possibilidade de acordo amigvel, este grupo acredita que, atravs da luta poltica e do acesso dos trabalhadores aos cargos de governo, possvel aprovar leis que garantam melhores condies de vida e de trabalho e o controle imediato da explorao capitalista. Por isso, alm da ao sindical, esta corrente aposta na criao de um partido operrio capaz de levar alguns de seus membros a ocupar cargos parlamentares. As reformas por estes promovidas aliviariam os sofrimentos da classe, elevariam sua influncia na poltica nacional e encurtariam o caminho para a implantao futura do socialismo. Ao lado deles, encontramos os representantes da que tem sido definida por alguns estudiosos de tendncia sindical. Nos estatutos e declaraes de objetivos de suas organizaes, no h nenhuma expresso que aponte para a necessidade de uma mudana radical na ordem social existente. Em geral, seus documentos revelam o compromisso de lutar pelos interesses econmicocorporativos dos associados, pela regulamentao e a melhoria das condies de trabalho, pelo desenvolvimento moral, material e intelectual da classe, pela defesa dos associados nos limites da ordem e do direito, pelo fortalecimento dos laos de solidariedade das organizaes sindicais do mesmo setor, pela implantao da instruo primria e de bibliotecas nas sedes destas associaes, para fornecer ajuda financeira aos scios atingidos por doenas, acidentes, ou que porventura venham a falecer, e para criar fundos que garantam a defesa da categoria, a sustentao das greves prolongadas e a luta contra qualquer imposio que amplie a explorao dos trabalhadores. Depois de 1920, tendo como base a viso social da igreja veiculada pela encclica Rerum Novarum, em algumas regies do pas, comea a marcar presena tambm o sindicalismo catlico, do qual falaremos mais adiante.

20 A seu modo, e nos limites impostos pela realidade local, o movimento sindical trava o debate poltico que j est presente entre os operrios de vrios pases: centrar esforos para derrubar o sistema capitalista ou lutar apenas para que a classe trabalhadora viva nele em condies aceitveis? Cada corrente poltica, cada sindicato, cada associao vai realizar este debate entre os seus dirigentes e com a prpria massa. Via de regra, todos os grupos apontados tm jornais, informativos e promovem atividades culturais pelas quais as idias centrais e as divergncias com as demais faces do movimento so apresentadas, discutidas e esmiuadas diante de um operariado que, em sua maioria analfabeto. A formao poltica da base se d ao ouvir um companheiro discursar, lendo uma notcia, assistindo a peas de teatro ou participando dos saraus e das comemoraes que marcam os calendrios da histria. Atravs destas atividades, a militncia trava uma disputa acirrada pelos coraes e mentes de uma classe que rene tanto imigrantes cujo nico objetivo juntar dinheiro para voltar terra natal, como brasileiros natos, sem cultura, vindos das fazendas e, no raras vezes, portadores de resqucios da escravido recm-abolida. A necessidade de despertar os trabalhadores da apatia, de convenc-los a lutar por seus direitos, vencendo a falta de unio, as rivalidades e o desapego s questes sociais, faz com que as vrias correntes encontrem sua unio nas lutas dentro e fora das fbricas que, em sua grande maioria, tm por objetivo a conquista de benefcios econmicos imediatos. Aps esta longa apresentao, Ndia pra e recosta o corpo numa pilha de livros prxima da vela. A voz calma e o tom sereno com o qual encerra esta parte do relato convidam o secretrio a formular uma pergunta j esperada: - E, como que os patres e o Estado reagem diante das agitaes operrias que do vida a este perodo da histria?. Apoiada na parede improvisada, a coruja limpa a garganta e, sem titubear, responde: - Tratando qualquer demonstrao de descontentamento como caso de polcia!. - Como assim? - Neste perodo, a resposta do Estado e dos empresrios tem na represso violenta a marca registrada de uma elite que se nega a reconhecer a simples existncia da questo operria. Direitos bsicos, benefcios sociais e uma legislao que freie os abusos cometidos pelos patres nos locais de trabalho, onde os funcionrios assistem ao descumprimento dirio dos contratos estabelecidos verbalmente com cada um deles, so vistos como absurdos por uma burguesia que no se dispe a repartir a menor parte da riqueza produzida. Prova disso que, no incio de 1904, o deputado Adolfo Gordo apresenta e leva aprovao uma norma que concede polcia poderes especiais para invadir e fechar as sedes das associaes de trabalhadores, prender os lderes que nelas se encontram, reprimir a bala as desordens operrias, premiar a ao de delatores e espies, e institui a pena de expulso do pas para os estrangeiros e de exlio para os seringais do Amazonas ou o serto nordestino para os brasileiros condenados por envolvimento em atividades sindicais, bastando para isso a simples acusao apresentada por um patro ou um fura-greve. No campo da disputa ideolgica, setores ligados ao governo procuram dar vida a sindicatos alinhados aos partidos no poder que sirvam de trampolim para a carreira poltica ou a obteno de privilgios pessoais por seus supostos lderes e fundadores. Em novembro de 1912, o deputado Mario Hermes, filho do ento presidente da Repblica, o Marechal Hermes da Fonseca, patrocina, em conluio com algumas lideranas sindicais, a realizao do 4 Congresso Operrio Nacional. Ningum sabe ao certo porque foi chamado de 4, pois, at quele ano, o nico congresso realmente operrio e nacional havia sido o de 1906, mas o fato que autoridades e imprensa do todo apoio ao evento que se apresenta como um divisor de guas na defesa dos interesses dos trabalhadores. Diante da origem do convite, a maior parte das organizaes operrias se nega a participar. Apesar dos pesares, porm, 33 sindicatos, atrados pelas benesses oferecidas pelo governo, decidem enviar seus representantes. Entre as concluses do congresso, encontramos a incorporao de parte das reivindicaes do movimento (como a jornada de 8 horas, o direito aposentadoria, a regulamentao do trabalho

21 de mulheres e crianas, uma legislao que proteja o operrio em caso de acidentes) e demandas que entram em choque com a atuao das principais foras do movimento sindical. Ao propor a criao de um partido poltico que colabore com o governo e a transformao dos sindicatos em rgos de assistncia, beneficncia e cooperativismo, os representantes governamentais e seus aliados no campo sindical procuram esvaziar o potencial contestador e reivindicatrio das associaes de luta e resistncia, que vm ampliando sua influncia no meio operrio, e atrelar qualquer possibilidade de ganho poltica governamental vigente. A tentativa de dividir o movimento avana tambm na medida em que os patres comeam a dispensar um tratamento diferenciado a porturios e ferrovirios. Vinculadas ao transporte e ao carregamento do caf, principal produto de exportao, as duas categorias ocupam um lugar estratgico pelo impacto de suas lutas sobre a economia e pela possibilidade real de paralisar indiretamente as atividades de outros setores. Ao reduzir seu descontentamento e tentar garantir certo grau de confiabilidade, os patres tentam separ-los do operariado fabril com o intuito de reduzir o poder de barganha da classe trabalhadora. Em breves palavras, este perodo, caracterizado pela represso violenta ao movimento, conhece tambm pequenos ensaios pelos quais os de cima buscam levar os sindicatos a incorporar a poltica governamental e a atrelar suas aes s demandas da elite no poder. - Ms notcias para os operrios...., sussurra o ajudante ao desconfiar que nuvens escuras ameaam as tnues esperanas da classe. - Ms notcias sim, mas nada to inesperado a ponto de paralisar a atuao sindical confirma a ave ao levantar a ponta da asa direita para o lustre que pende do teto como um fantasma suspenso no ar. Por forte que seja, a represso no consegue deter a organizao operria. Fechada uma sede, outra aberta poucos dias depois; preso um militante h sempre mais um a ocupar o seu lugar. Esta capacidade de renascer das cinzas deita razes no grau de organizao de base atingido pelos sindicatos e na clareza ideolgica que orienta os setores majoritrios do movimento a partir de uma viso classista da sociedade. So esses elementos que permitem realizar uma intensa campanha de repdio Lei Adolfo Gordo, rejeitar todas as tentativas de controle por parte do Estado e dos patres e criar o clima de mobilizao necessrio para, em 1913, realizar o 2 Congresso Operrio Brasileiro. Alm de reafirmar as decises tomadas em 1906, os delegados apontam a necessidade de lutar por um salrio mnimo nacional, de levar os operrios a distanciar-se do sindicalismo catlico e de preparar uma greve geral revolucionria no caso do pas ser envolvido na guerra que projeta suas sombras de morte nos campos da Europa. - Voc falou em guerra?!?. - Exatamente, querido secretrio. Ao longo de 1913, o aumento das tenses entre as potncias europias e os acordos militares por estas assinados levam a um endurecimento das relaes que possibilitam a ecloso de um conflito de amplas propores. - E... o que que a Primeira Guerra Mundial tem a ver com o operariado brasileiro?. - Pelo visto a sua cabea humana no consegue entender que, para ser atingido pelos efeitos da guerra, o trabalhador daqui no precisa estar nos campos de batalha. A vida dele vai ser afetada pelo aumento do comrcio com a Europa que traz em seu bojo a escassez de mercadorias e um forte aumento dos preos nos mercados locais. - Daria para explicar isso melhor?, pede o secretrio ainda confuso. - Iniciada em 1914, a Primeira Guerra Mundial, impede que a Europa produza o que necessrio para sustentar a sua populao e obriga os governos das naes envolvidas no conflito a comprar alimentos, roupas, armas, matrias-primas e ferramentas onde quer que haja possibilidade de fazer isso. A grande demanda que esta realidade introduz em nvel mundial no compensada pelo forte e imediato aumento da oferta destas mercadorias. Isso faz com que a escassez se instale tanto l como nas economias que podem fornecer os suprimentos desejados. Na medida em que comeam a faltar gneros de primeira necessidade para o consumo interno, a populao brasileira se depara com uma progressiva elevao dos preos destes produtos e com o aumento da explorao da fora de trabalho. Com a desculpa da guerra, os patres engordam os cofres cobrando mais pelos que vendem, aumentando o ritmo e a jornada de trabalho e

22 diminuindo os salrios pagos para que, com a reduo do consumo interno, sobrem ainda mais produtos a serem exportados por preos vantajosos. Esmagados por esta realidade, os sindicatos comeam a se mobilizar para protestar contra o aumento do custo de vida, da jornada de trabalho, do arrocho salarial e o grande nmero de despejos que jogam na rua milhares de famlias pela absoluta impossibilidade destas arcarem com o valor dos aluguis. Ainda que grande parte da classe no tenha conscincia da rivalidade de interesses que leva ecloso do conflito mundial, a penria que marca presena em suas casas transforma a luta contra a guerra num dos temas principais que agitam os protestos e as manifestaes do 1 de maio de 1914. Longe de ser amenizada com o passar do tempo, a escassez de gneros de primeira necessidade ampliada pela continuidade da guerra. Ao longo de 1916, o preo do arroz reajustado em 81%, o do feijo em 74% e o do charque em 78%. Os comerciantes que tm alimentos armazenados aproveitam da situao para vender suas mercadorias por at 10 vezes mais do que valem. No ano seguinte, enquanto o povo passa fome, o governo exporta 22.000 toneladas de arroz, 30.000 de carne e 50.000 de feijo. 11 O custo de vida sobe ainda mais. Excelente negcio para os capitalistas, a guerra torna-se, em todos os sentidos, uma declarao de morte para os operrios. Nos primeiros meses de 1917, no so poucas as fbricas que vem suas atividades paralisadas pela ecloso de uma greve. Apesar da carestia e das maiores dificuldades financeiras que estas lutas trazem aos trabalhadores, no h mais como eles agentarem os sofrimentos impostos pela guerra. - Isso quer dizer que a situao est preste a estourar..., conclui o ajudante ao abrir os braos e fixar o olhar nos movimentos da coruja. - Na mosca!, confirma Ndia com um rpido movimento da asa esquerda que quase apaga a luz da vela. Mas este assunto grande demais para ser tratado aqui. Por isso, mantenha seus olhos e ouvidos bem abertos porque chegou a hora de falar da...

3. A greve geral de 1917.- No dia 10 de julho de 1917, os jornais de So Paulo divulgam a morte de um sapateiro espanhol de 21 anos, Jos Inguez Martinez, atingido por uma bala disparada por policiais durante um confronto com grevistas na porta da tecelagem Maringela. A notcia provoca um forte impacto emocional entre os operrios. O enterro transformado em manifestao de repdio violncia policial e em momento de sensibilizao de todas as categorias a paralisar suas atividade e deflagrar a greve geral. - Mas, como que o assassinato de um operrio pode se transformar no detonador de um movimento destas propores?, pergunta o homem, intrigado com o rpido desenrolar dos acontecimentos. - A resposta sua interrogao pode ser facilmente encontrada no avolumar-se do descontentamento operrio que caracteriza os meses anteriores. J vimos como a piora das condies de vida e de trabalho em funo da guerra mundial eleva a tenso entre patres e trabalhadores. Em 1917, alm dos gneros de primeira necessidade ficarem ainda mais escassos, e isso apesar das comemoraes governamentais pela farta colheita de cereais, os paulistanos se deparam com seguidas situaes de adulterao e falsificao de alimentos. No so poucos os casos em que se verifica a adio de areia ao acar, de caolim farinha de trigo, de gua e polvilho ao leite. O vinagre cido actico diludo em gua e o azeite vendido como legtimo italiano fabricado no interior do Estado com caroos de algodo. Entre maro e abril, Argentina e Estados Unidos deixam de fornecer trigo ao Brasil. Apesar dos estoques serem suficientes para abastecer o mercado por, pelo menos, quatro meses, os preos de seus derivados disparam, agravando ainda mais a carestia.11

Dados publicados em ACO (1) vol. 2, pg. 88 e 94.

23 Os salrios, quando no so reduzidos, no acompanham o aumento dos preos. Em maio de 1917, a alimentao representa, em mdia, cerca de dois teros dos gastos domsticos e o ordenado de um operrio s consegue comprar a terceira parte do que adquiria um ano antes. Com a desculpa da guerra, os empresrios alegam dificuldades financeiras e trocam a fora de trabalho masculina adulta pela de mulheres e crianas. Ao receber, respectivamente, metade e 10% do salrio pago aos homens, as trabalhadoras e seus filhos no conseguem compensar a renda dos maridos hoje desempregados. Nestas condies, a ameaa do desemprego se torna uma arma poderosa para aumentar a sujeio ao trabalho, elevar o ritmo de produo e exigir jornadas no inferiores a 10-12 horas dirias. O resultado no pode ser outro: aumento das doenas provocadas pelo excesso de trabalho e dos acidentes que mutilam ou levam invalidez precoce, quando no morte, um nmero assustador de operrios e operrias de todas as idades. Acrescente a este cenrio a cobrana indiscriminada de multas por supostas falhas e indisciplinas dos funcionrios (cujo desconto, em alguns casos, atinge o mesmo valor dos salrios) e no ter dificuldades em entender o conjunto de fatores que, dia aps dia, acirra a revolta operria. Os primeiros sinais de que falta pouco para o circo pegar fogo aparecem nas manifestaes que marcam o 1 de Maio daquele ano. Fruto de um intenso esforo de agitao desenvolvido entre janeiro e abril de 1917, as comemoraes so marcadas pelos protestos contra a crise do po, cujos preos o haviam transformado em artigo de luxo, e a explorao do trabalho de mulheres e crianas. com estas bandeiras facilmente compreensveis que a militncia anarquista e socialista procura despertar a classe da apatia em que se encontra. - E... basta isso para chegar a uma greve geral?, questiona o ajudante entre a curiosidade e a desconfiana. - Claro que no!, rebate a coruja ao piscar os olhos. O trabalho de agitao sustentado pela organizao de ligas de resistncia que, desde o segundo semestre de 1916, visa estreitar os laos de solidariedade, indispensveis para uma ao coletiva eficaz. Para os militantes da poca, mobilizar os trabalhadores no apenas pronunciar discursos inflamados ou escrever panfletos incitando revolta, mas , sobretudo, agrupar os elementos dispersos da massa que, com seu comportamento, demonstram pelo menos certa simpatia com a causa libertria. Com bases nos contatos assim identificados, os anarquistas incentivam trabalhadores e trabalhadoras a construrem grupos que vo pensar e organizar a resistncia nos bairros onde moram ou trabalham, sem distino de ofcio, raa, sexo ou idade. As discusses e debates que acontecem no interior destas organizaes trazem tona os limites do sindicalismo corporativo e possibilitam pensar na necessidade de uma interveno mais ampla do operariado na ordem social existente. Diante deste desafio, o texto-base para a constituio das ligas operrias de bairro apresenta uma srie de consideraes sobre o regime capitalista de produo, declara abertamente que operrios e patres tm interesses antagnicos e que os empresrios tm a seu servio tanto a magistratura, como os corpos policiais e o exrcito. O estmulo cooperao tem como pressuposto a compreenso de que a emancipao dos trabalhadores s pode ser obra deles prprios e que o proletariado pode vencer a luta de classes na medida em que for capaz de unir, de maneira forte e consciente, o seu esforo para derrubar o sistema que o oprime. Neste longo caminho, as ligas devem trabalhar para que o operariado se dedique com constncia e energia: a) propaganda e ao contra o servio militar obrigatrio; b) a combater a lei de expulso dos estrangeiros; c) a zelar pelo direito de associao, de reunio e de livre propaganda de idias; d) a promover a defesa dos trabalhadores e propagandistas em caso de priso, perseguio e injustias de que sejam vtimas; e) a se transformar pela sua cultura, criando bibliotecas, promovendo conferncias, palestras e excurses; f) a apoiar as escolas baseadas no mtodo racionalista e cientfico e ainda mover uma campanha ativa contra o alcoolismo, vcio arraigado no seio da classe trabalhadora e que tem sido obstculo para a sua organizao. 12

12

Texto extrado de Lopreato (16), pg. 100.

24 Sem abandonar a luta maior contra o capitalismo, as ligas de bairro tm o objetivo imediato de melhorar as condies de vida e de trabalho do operariado, visando manter a coeso e a unio de seus membros atravs da participao destes em movimentos que desmascarem e combatam os aambarcadores e falsificadores de alimentos, protestem contra impostos e tarifas, lutem por aluguis mais baratos e por habitaes que tenham condies mnimas de higiene. Como operrios, os membros da liga so preparados tambm para exigir dos patres tanto o devido respeito, como condies mnimas de segurana e de salubridade para evitar a ocorrncia de acidentes e doenas profissionais. Alem disso, cada militantes deve se comprometer a estimular a luta por aumento de salrio, jornada de 8 horas, pagamento semanal, igualdade de vencimentos para homens e mulheres, fim da contratao de menores de 14 anos, abolio do t