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20 anos ENTREVISTA Paulo Bonavides: “Os reacionários a combatem. Pior para eles”. Nº 22 Maio de 2008 Constituição & Democracia C&D Caso Isabella: a atuação da mídia Aborto: o direito penal deslegitimado Medidas provisórias: o abuso do direito Cidades: Cidades: o espaço par o espaço par a o e a o e xer xer cício das conquistas. cício das conquistas.

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Boaventura de Sousa Santos

Entende-se por bifurcação a si-tuação de um sistema instávelem que uma alteração mínima

pode causar efeitos imprevisíveis ede grande porte. Penso que o siste-ma judicial brasileiro vive neste mo-mento uma situação de bifurcação.O Brasil é um dos países latino-ame-ricanos com mais forte tradição dejudicialização da política. Há judi-cialização da política sempre que osconflitos jurídicos, mesmo que titu-lados por indivíduos, são emergên-cias recorrentes de conflitos sociaissubjacentes que o sistema políticoem sentido estrito (Congresso e Go-verno) não quer ou não pode resol-ver. Os tribunais são, assim, chama-dos a decidir questões que têm umimpacto significativo na recomposi-ção política de interesses conflituan-tes em jogo.

Neste momento, o país atravessaum período alto de judicialização dapolítica. Entre outras acções, trami-tam no STF a demarcação do territó-rio indígena da Raposa Serra do Sol,a regularização dos territórios qui-lombolas e as acções afirmativas vul-garmente chamadas quotas. Muitodiferentes entre si, estes casos têmem comum serem emanações damesma contradição social que atra-vessa o país desde o tempo colonial:uma sociedade cuja prosperidade foiconstruída na base da usurpação vi-

olenta dos territórios originários dospovos indígenas e com recurso à so-bre-exploração dos escravos que pa-ra aqui foram trazidos. Por esta ra-zão, no Brasil, a injustiça social temum forte componente de injustiçahistórica e, em última instância, deracismo anti-índio e anti-negro. Detal forma, que resulta ineficaz e mes-mo hipócrita qualquer declaraçãoou política de justiça social que nãoinclua a justiça histórica. E, ao con-trário do que se pode pensar, a justi-ça histórica tem menos a ver com opassado do que com o futuro. Estãoem causa novas concepções do país,de soberania e de desenvolvimento.

Desde há vinte anos, sopra nocontinente um vento favorável à jus-tiça histórica. Desde a Nicarágua, emmeados dos anos oitenta do séculopassado, até à discussão, em curso,da nova Constituição do Equador,têm vindo a consolidar-se as seguin-tes ideias. Primeira, a unidade do pa-ís reforça-se quando se reconhece adiversidade das culturas dos povos enações que o constituem. Segunda,os povos indígenas nunca foram se-paratistas. Pelo contrário, nas guer-ras fronteiriças do século XIX deramprovas de um patriotismo que a his-tória oficial nunca quis reconhecer.Hoje, quem ameaça a integridadenacional não são os povos indígenas;são as empresas transnacionais, coma sua sede insaciável de livre acessoaos recurso naturais, e as oligarquias,

quando perdem o controlo do gover-no central, como bem ilustra o casode Santa Cruz de la Sierra na Bolívia.Terceira, dado o peso de um passadoinjusto, não é possível, pelos menospor algum tempo, reconhecer aigualdade das diferenças (intercultu-ralidade) sem reconhecer a diferençadas igualdades (reconhecimentosterritoriais e acções afirmativas).Quarta, não é por coincidência que75% da biodiversidade do planeta seencontra em territórios indígenas oude afro-descendentes. Pelo, contrá-rio, a relação destes povos com a na-tureza permitiu criar formas de sus-tentabilidade que hoje se afiguramdecisivas para a sobrevivência do

planeta. É por essa razão que a pre-servação dessas formas de manejodo território transcende hoje o inte-resse desses povos. Interessa ao paísno seu conjunto e ao mundo. E pelamesma razão, o reconhecimento dosterritórios tem ser feito em sistemacontínuo, pois doutro modo desapa-recem as reservas e, com elas, a iden-tidade cultural dos indigenas e a pró-pria biodiversidade.

Estes são os ventos da história eda justiça social no actual momentodo continente. Ao longo do séculoXX não foi incomum que instânciassuperiores do sistema judicial actu-assem contra os ventos da história, equase sempre os resultados foramtrágicos. Nos anos trinta, o ST dosEUA procurou bloquear as políticasdo New Deal do Presidente Roose-velt, o que impediu a recuperaçãoeconónimca e social que só a segun-da guerra mundial permitiu. No iní-cio dos anos setenta, o ST do Chileboicotou sistematicamente as políti-cas do Presidente Allende que visa-vam a justiça social, a reforma agrá-ria, a soberania sobre os recursos na-turais, fortalecendo assim as forças eos interesses que ganharam com oseu assassinato.

Em momento de bifurcação his-tórica, as decisões do STF nunca se-rão formais, mesmo que assim seapresentem. Condicionarão decisi-vamente o futuro do país. Para o bemou para o mal.

24 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | MAIO DE 2008

Bifurcação na Justiça

2200 aannoossENTREVISTA

Paulo Bonavides:“Os reacionários a combatem. Pior para eles”.

Nº 22Maio de 2008 Constituição & DemocraciaC&DCaso Isabella:

a atuação da mídiaAborto: o direito

penal deslegitimadoMedidas provisórias:

o abuso do direito

Cidades:Cidades: o espaço paro espaço para o ea o exerxercício das conquistas.cício das conquistas.

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Entre minutos e identidadesEDITORIALOObbsseerrvvaattóórriioo ddaa CCoonnssttiittuuiiççããoo ee ddaa DDeemmooccrraacciiaa

Qual o potencial democrático da Constituição de 1988? Em que medida ela permite a conscienti-zação sobre a democracia participativa, a soberania e a cidadania? Essas e outras indagaçõessão respondidas pelo constitucionalista Paulo Bonavides, em entrevista concedida a José Geraldo

de Sousa Junior, especialmente para este número do Observatório da Constituição e da Democracia.Em reflexão sobre os vinte anos da “Constituição Cidadã”, o Professor Bonavides identifica o papel dopovo no desenvolvimento da Carta de 1988, sob a perspectiva de uma democracia participativa.

Em edições anteriores, afirmamos a premissa de enfocar o sentido do direito a partir da experiên-cia democrática da Constituição, que exige, por sua vez, uma constante problematização e reconstruçãono âmbito da sociedade. Neste número, reforçamos esse pressuposto, ao abordar um dos aspectosmais relevantes de nossa vivência constitucional e democrática: as cidades. As cidades representam oespaço público de construção e afirmação de identidades, liberdades, autonomias, direitos, enfim, daprópria cidadania. Janaína Penalva observa que a oportunidade de circular livremente, viver com dig-nidade e igualdade, ser respeitado, em suma, a chance de se estar na cidade, é o que realiza a cidada-nia. Gilsely Santana trata do problema dos quilombos urbanos e sua demanda por reconhecimento. Sãoenfocadas também questões suscitadas pelas ocupações irregulares de terras urbanas.

O Observatório do Judiciário traz uma reflexão sobre a acusação, no Mato Grosso do Sul, de quasetrês mil mulheres pela prática do crime de aborto. Beatriz Vargas mostra como um direito penal queserve ao espetáculo da “eficiência criminal” conduz exatamente à deslegitimação do direito. NoObservatório do Legislativo, Leonardo Barbosa e Menelick de Carvalho Netto voltam sua atenção paraas discussões na Câmara dos Deputados sobre a mudança na forma de tramitação das medidas pro-visórias. Nosso correspondente na Alemanha, Juliano Benvindo, aborda um evento histórico: o discursoproferido pela chanceler alemã, Angela Merkel, no Parlamento israelense.

Esta edição conta, ainda, com um texto especial, na verdade, um texto sobre justiça: a carta escri-ta pelo sociólogo Herbert de Sousa, o Betinho, para a turma “Herbert de Sousa” de formandos do cursode Direito da UnB do ano de 1993. O texto foi resgatado e gentilmente cedido pelo Prof. José CarlosMoreira da Silva Filho, da Unisinos, um dos graduandos da turma de 93.

O caso Isabella Nardoni também é enfrentado neste número, mas sob um enfoque peculiar: o papelda mídia. Cristiano Paixão e Renato Bigliazzi mostram como a cobertura dada ao evento pela mídia fezcom que a investigação policial e o processo penal fossem considerados socialmente desnecessários.Por fim, o Professor Boaventura de Sousa Santos, em texto especialmente preparado para o Seminário“Terra Indígena, Soberania e Estado”, realizado na UnB pelo Observatório da Constituição e daDemocracia e pelo Fórum de Defesa dos Direitos Indígenas (FDDI), comenta a atual situação de bifur-cação do sistema judicial brasileiro. Preocupados com a realização social e democrática da Constituição,damos continuidade, portanto, às reflexões comemorativas dos vinte anos da Carta de 1988.

GGrruuppoo ddee ppeessqquuiissaa SSoocciieeddaaddee,, TTeemmppoo ee DDiirreeiittooFFaaccuullddaaddee ddee DDiirreeiittoo –– UUnniivveerrssiiddaaddee ddee BBrraassíílliiaa

02 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | MAIO DE 2008 CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | MAIO DE 2008 UnB – SindjusDF | 23

CCaassoo IIssaabbeellllaa:: oo ppaappeell ddaa mmííddiiaaCCrriissttiiaannoo PPaaiixxããoo -- Professor da Faculdade de Direito da UnB. Integrante dos grupos de pesquisa Sociedade,Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua. Procurador do Ministério Público do Trabalho em BrasíliaRReennaattoo BBiigglliiaazzzzii -- Mestre em Direito pela UnB. Integrante do grupo de pesquisa Sociedade,Tempo e Direito 0033

CCiiddaaddeess ee CCiiddaaddaanniiaaJJaannaaíínnaa LL.. PPeennaallvvaa ddaa SSiillvvaa -- Doutoranda em Direito, Estado e Constituição pela UnB.Integrante do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito 0044

RReegguullaarriizzaaççããoo ffuunnddiiáárriiaa ee ddeessaaffiiooss ppaarraa oo ddiirreeiittoo uurrbbaannííssttiiccooLLeettíícciiaa BBoorrttoolloonn -- Arquiteta urbanista pela UnB e especialista em Direito Urbano pela PUC Minas 0066

OOccuuppaaççõõeess iirrrreegguullaarreess ddeevveemm sseerr rreegguullaarriizzaaddaass?? MMáárrcciioo LLuuííss ddaa SSiillvvaa -- Advogado, mestre em Direito pela UnB, especialista em Direito do Estado pela UFU,especialista em Administração Pública municipal para gestores políticos pela PUC/MG 0088

OOBBSSEERRVVAATTÓÓRRIIOO DDOOSS MMOOVVIIMMEENNTTOOSS SSOOCCIIAAIISSQQuuiilloommbbooss uurrbbaannooss:: aallgguummaass nnoottaass ee ppoossssíívveeiiss ddeessllooccaammeennttoossGGiillsseellyy BBaarrbbaarraa BBaarrrreettoo SSaannttaannaa -- Advogada, mestre em Direito (UnB), consultora do Centro pelo Direito a Moradia contra Despejos (COHRE) 1100

EENNTTRREEVVIISSTTAA:: PPaauulloo BBoonnaavviiddeessDDeemmooccrraacciiaa,, ssiimm,, mmaass ddoo cciiddaaddããoo ppaarrttiicciippaattiivvooJJoosséé GGeerraallddoo ddee SSoouussaa JJuunniioorr -- Professor da Faculdade de Direito da UnB, membro dos grupos de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua, da UnB e da Comissão de Defesa da República e da Democracia, do Conselho Federal da OAB 1122

IIddeennttiiddaaddeess ee CCiiddaaddaanniiaaJJooeellmmaa MMeelloo ddee SSoouussaa -- Mestranda em Direito pela UnB 1144

OOBBSSEERRVVAATTÓÓRRIIOO DDOO JJUUDDIICCIIÁÁRRIIOOOO ““SSuuppeerrddiirreeiittoo PPeennaall”” nnããoo éé ddiirreeiittooBBeeaattrriizz VVaarrggaass -- Professora da Faculdade de Direito da UFMG, doutoranda na Faculdade de Direito da UnB, advogada 1166

OOBBSSEERRVVAATTÓÓRRIIOO DDOO LLEEGGIISSLLAATTIIVVOOMMeeddiiddaass PPrroovviissóórriiaass:: nnoovvoo rriittoo,, vveellhhooss pprroobblleemmaassMMeenneelliicckk ddee CCaarrvvaallhhoo NNeettttoo -- Doutor em Direito (UFMG) e coordenador da Pós-Graduação em Direito daUniversidade de Brasília.LLeeoonnaarrddoo AA.. ddee AAnnddrraaddee BBaarrbboossaa -- Mestre e doutorando em Direito, Estado e Constituição (UnB),membro do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito da UnB e advogado 1188

OOBBSSEERRVVAATTÓÓRRIIOO DDOO MMIINNIISSTTÉÉRRIIOO PPÚÚBBLLIICCOOEEssccrraavviiddããoo ccoonntteemmppoorrâânneeaa:: ddaa rreeffoorrmmaa iinnssttiittuucciioonnaall àà iimmpplleemmeennttaaççããoo eeffiicciieennttee ddaass nnoorrmmaass RRaaqquueell EElliiaass FFeerrrreeiirraa DDooddggee -- LL.M. Harvard, pesquisadora visitante e Global Advocacy Fellow - Harvard Law School, procuradora Regional da República 2200

CCaarrttaa ddoo BBeettiinnhhoo -- MMeeuuss qquueerriiddooss ffoorrmmaannddooss ddaa ttuurrmmaa ddee DDiirreeiittoo ddaa UUnnBBHHeerrbbeerrtt ddee SSoouussaa -- Sociólogo. Anistiado em 1979, ajudou a fundar o Instituto de Estudos da Religião (ISER),presidiu a Associação Brasileira Interdissiplinar de Aids (ABIA) e coordenou o Instituto Brasileiro de Análises Sócio-Econômicas (Ibase) 2222

CCOORRRREESSPPOONNDDEENNTTEEEEnnttrree MMiinnuuttooss ee IIddeennttiiddaaddeessJJuulliiaannoo ZZaaiiddeenn BBeennvviinnddoo -- Doutorando em Direito Público pela Universidade Humboldt de Berlim em co-tutela com a UnB. Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB. Membro do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito 2233

BBiiffuurrccaaççããoo nnaa JJuussttiiççaaBBooaavveennttuurraa ddee SSoouussaa SSaannttooss -- Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra 2244

EXPEDIENTE

Caderno mensal concebido, preparado eelaborado pelo Grupo de PesquisaSociedade, Tempo e Direito (Faculdade de Direito da UnB – Plataforma Lattes do CNPq).

CoordenaçãoAlexandre Bernardino CostaCristiano PaixãoJosé Geraldo de Sousa JuniorMenelick de Carvalho Netto

Comissão executivaJanaina Lima Penalva da SilvaPaulo Rená da Silva SantarémRicardo Machado Lourenço FilhoSilvia Regina Pontes LopesSven Peterke

Integrantes do ObservatórioAdriana Andrade MirandaAline Lisboa Naves GuimarãesBeatriz Cruz da SilvaDamião AzevedoDaniel Augusto Vila-Nova GomesDaniela Diniz

Daniele Maranhão CostaDouglas Antônio Rocha PinheiroEneida Vinhaes Bello DutraFabiana GorensteinFabio Costa Sá e Silva Giovanna Maria FrissoGuilherme ScottiJan Yuri AmorimJean Keiji UemaJorge Luiz Ribeiro de MedeirosJudith KarineJuliano Zaiden BenvindoLeonardo Augusto Andrade BarbosaLúcia Maria Brito de OliveiraMariana Siqueira de Carvalho OliveiraMarthius Sávio Cavalcante LobatoPaulo Henrique Blair de OliveiraRamiro Nóbrega Sant´AnaRenato BigliazziRosane Lacerda

Projeto editorialR&R Consultoria e Comunicação Ltda

Editor responsávelLuiz Recena (MTb 3868/12/43v-RS)

Editor assistenteRozane Oliveira

DiagramaçãoGustavo Di Angellis

IlustraçõesFlávio Macedo Fernandes

[email protected]

Sindicato dos Bancáriosde Brasília

Assine C&[email protected]

Juliano Zaiden Benvindo

Foram poucos intensos minutos. A visita, fortementecarregada de um passado sempre presente, cami-nhava em seu ritmo habitual e era acompanhada de

uma voz que nos guiava com muita emoção. Detalhes, aolado do trágico acontecimento, nos ligavam mais direta-mente ao terror: a proximidade da casa do diretor, que lámorava com seus filhos, em relação ao local onde aindahoje se podem ver as câmaras de gás e o crematório; ros-tos que se diluem em fotografias inumeráveis; nomes edatas que aparecem nas malas; fios dos cabelos cortados;posição e inclinação das “camas”; o trilho do trem. Está-vamos no complexo Auschwitz-Birkenau, o mais conhe-cido e temido campo de extermínio nazista, localizadoem Oswiecim, nas proximidades de Cracóvia na Polônia.O Memorial e Museu Auschwitz-Birkenau, invejável emsua organização, apresentava a seguinte simples regra:não eram permitidas, salvo sob autorização, fotos do inte-rior dos edifícios.

Mas os minutos - aqueles poucos - iriam ocorrer. Derepente, um grupo de israelenses apareceu no museu, fa-cilmente identificáveis pelo uso, por seus integrantes, dabandeira israelense amarrada no pescoço. Porém, dife-rentemente de nosso grupo, embora fortemente reprimi-dos por nosso guia, mantinham-se intocáveis no propósi-to de tirar fotos e mais fotos de tudo que ali dentro se en-contrava. “É o nosso passado, as vítimas são nosso povo”- eis a resposta que lhes retirava qualquer vinculação ànorma. Sua identidade e a tragédia a ela ligada os liberta-ram, pelo menos naqueles poucos minutos que presenci-ei, da normatividade. As bandeiras ostensivas, as respos-tas, a apropriação do passado, tudo estava ali a nossafrente: o querer afirmar-se identidade e o passado comopertencente a essa identidade.

Outros minutos, históricos por seu ineditismo e sim-bolismo. Angela Merkel, primeira chanceler alemã a dis-cursar diante do Parlamento israelense, assume a respon-sabilidade alemã pelo holocausto. “O Schoa - termo he-braico para holocausto - enche os alemães de vergonha.Curvo-me perante as vitimas; curvo-me perante os sobre-viventes e todos que os ajudaram a sobreviver”, disse ela.Suas palavras, em alemão, não se isentaram de reaçõesenérgicas. Alguns políticos sequer compareceram aoevento e Ariel Edad, político nacionalista, chegou mesmoa declarar, após abandonar o recinto, que se recusava aouvir um discurso “na língua dos nazistas, que assassina-ram [seus] avós”. O passado impedia que se aceitasse opedido de desculpas em alemão. Seria, ao menos para al-guns, uma ofensa ao trágico passado do povo judaico.

São minutos, separados por meses no presente, sepa-rados por décadas na história. Minutos de identidades,que se repetem quase que como um ciclo. O passado énosso passado; o perdão, em alemão, não perdoa o quefizeram com nossa história. Bandeiras, gestos, declara-ções. E vai-se, ainda que sempre presente, a esperançade um nosso que seja de todos.

CORRESPONDENTE

PPrreeççoo aavvuullssoo:: RR$$ 22,,0000

Angela MerkAngela Merkel,el, primeirprimeira ca chanceler alemã a discursarhanceler alemã a discursardiante do Parlamento isrdiante do Parlamento israelenseaelense,, assume aassume a

rresponsabilidade alemã pelo holocaustoesponsabilidade alemã pelo holocausto..

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CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | MAIO DE 2008 UnB – SindjusDF | 0520 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | MAIO DE 2008

tornando-os invisíveis. Diminuídospor circunstâncias como raça, gêne-ro, etnia, religião, opção sexual,condições econômicas, que impõ-em diferenças muitas vezes sub-stantivas na forma de apresentaçãosocial, esses indivíduos perdem apossibilidade de interferência nacomunidade e, assim, perdem seulugar na cidade.

Para circular dignamente na cida-de, para ser um cidadão é preciso oreconhecimento prévio e concretodessa condição. Do contrário, só res-tam as margens longínquas, esque-cidas e violentas das cidades.

A periferia, os subúrbios, os en-tornos, as zonas norte, as cidades-sa-télites são espaços não identificadoscomo cidade. Concentram a vidaque não encontrou expressão cidadãsuficiente nas cidades a que estão li-gadas, explodindo às suas margens.

É também no final da cidade, lon-ge do centro, que estão os presídios,os manicômios, as indústrias polui-doras, os cemitérios, os motéis, as in-vasões, os lixões todos os nossos in-cômodos, todos os nossos outros, to-da a nossa diferença.

Em um fenômeno recente, embo-ra por razões opostas, também estãolonge dos centros das cidades osgrandes condomínios residenciais,os melhores shopping centers, as so-fisticadas clínicas de tratamento ouhospitais privados, as universidadesparticulares, os clubes.

Essas margens são, contudo,opostas. Uma, à esquerda, que secompõe dos excluídos e marginali-zados e a outra, à direita, onde estãoos que são tão incluídos que a di-mensão mesma da cidade se tornainsuficiente para o exercício dessainclusão.

A margem à esquerda estão aque-les a quem se negou a cidade, aque-les para quem a cidadania é um di-reito a se efetivar.

A diferença precisa caber no cen-tro da cidade. Só assim a cidadaniapode ser mais que um mero atributodaqueles que residem em um espaçourbano e não só seu sentido, mas suavivência pode ser atualizada. Não sónas cidades, que por sua configura-ção facilitam a captura de seus limi-tes, mas no centro do mundo a dife-rença precisa circular e compartilharde todos os espaços sociais.

Nas nossas cidades, nas tantas ci-dades brasileiras, precisamos cabertodos nós. Ainda que as dificuldades

para se compartilhar o mundo sejamdas mais diversas origens e que as si-tuações sejam complexas face às li-mitações de todos, a idéia de que so-mos iguais precisa superar as evi-dências do contrário.

Estar na cidade é estar visível e in-visível. É poder circular, trocar e parti-cipar, assim como se esconder e esco-lher por espontânea vontade, quandonecessário. Na movimentação impos-ta pela vida, as possibilidades preci-sam estar igualmente garantidas a to-dos, na medida de cada diferença.

Na rapidez das cidades grandes,na calmaria das pequenas ou nos es-paços distantes da urbanização de-vem existir lugares tantos quantostantos somos. E como somos dife-rentes, os espaços que compartilha-

mos, as histórias que dividimos e avida que construímos precisam serfrutos de uma cidadania que nãodeixe ninguém fora do centro.

A única saída para inclusão da di-ferença e para efetivação de uma ci-dadania de centro é a eliminação ou aconstante diminuição da margem.Nesse sentido, os espaços considera-

dos periféricos precisam receber amesma atenção pública e social queos centros. A descentralização dasperspectivas que considera todos oslugares sociais igualmente importan-tes pode transformar todos os espa-ços da cidade em centros da cidade e,assim, transformar todos os sujeitosdas cidades em verdadeiros cidadãos.

Raquel Elias Ferreira Dodge

Adificuldade de erradicar a es-cravidão contemporânea noBrasil continua a ser imputa-

da a um desenho institucional defi-ciente. Justamente quando se encer-ra uma espera de vinte anos pelaafirmação da competência federalpara processar e julgar ações penaispor práticas de escravidão que ca-racterizem crime contra a organiza-ção do trabalho, o debate sobre acompetência é tardiamente reabertopara atribuir competência criminal à

Justiça do Trabalho, por lei ordinária.Infelizmente, a proposta é tambémuma inconstitucionalidade e umequívoco.

Nas democracias em transiçãofreqüentemente investe-se commais intensidade na reforma institu-cional do que na implementação dasnormas, porque é razoável imputar aum desenho institucional defeituosoum estado indesejável de coisas co-mo ausência de liberdades e alta cri-minalidade. Justamente por isso,uma fase de reformas manteve-seefervescente em torno da Constitui-

ção de 1988, enquanto leis comple-mentares e ordinárias redefiniam asinstituições do País.

É razoável supor que, concluída atransição democrática, salvo tópicascorreções para aprimoramento ins-titucional, passe-se a exigir mais in-tensamente a aplicação da lei e aprestação de contas. Afinal, contro-lar o impulso reformador é condiçãopara que a experiência contribuapara aquilatar o valor das reformasempreendidas. A competência daJustiça Federal para julgar práticasde escravização, afirmada pelo Su-

premo Tribunal Federal em 30 denovembro de 2006 (RE 398041), estáentre as mais importantes decisõesda Corte desde o fim da transiçãodemocrática no Brasil. No entanto, ainiciativa de destituir a competênciada Justiça Federal visa alterar pre-maturamente essa norma, antes queseus efeitos possam ser medidos demodo eficiente.

A proposta é inconstitucionalporque a competência constituci-onal não pode ser alterada por leiordinária. A repartição de compe-tência criminal entre a União e os

Escravidão contemporânea:da reforma institucional à implementação eficiente das normas

Estar na cidade é estar visível e invisível. Estar na cidade é estar visível e invisível.

É poder cirÉ poder circularcular,, trocar e participartrocar e participar,, assimassim

como se esconder e escolher por espontâneacomo se esconder e escolher por espontânea

vontadevontade,, quando necessárioquando necessário. .

OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

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Janaína L. Penalva da Silva

Acidade é nosso principal es-paço de circulação. Diferenteda forma como as relações

ocorrem em um meio rural, no qualprevalece o familiar, o conhecido,onde são menos freqüentes as sur-presas e as possibilidades do inespe-rado, as relações nas cidades, pormenores que sejam, são essencial-mente diversas.

A cidade é um ambiente de visibi-lidade. É a circulação que ali aconte-ce que permite nossos encontros. É apossibilidade que a cidade propiciade que todos se vejam no exercíciodiário de seus papéis e funções, cir-culando com formas e acessos diver-sos pelo mesmo espaço que a tornaum lugar de trocas.

As cidades surgem para cumprir

uma função econômica e política in-capaz de se realizar em espaços me-nos organizados e concentrados eaté hoje, embora a importância doespaço urbano não seja a mesma emtodos os Estados, as cidades aindasão peças indispensáveis para a cir-culação do capital e para o exercíciodo poder político.

O cidadão, inicialmente, é o mo-rador da cidade. Na Grécia antiga, oatributo da cidadania garantia ao su-jeito o direito político de participa-ção nas definições sobre a polis. Essedireito de participação era um direi-to de liberdade, chamado posterior-mente de “liberdade dos antigos”. Ostatus de cidadão garantia participa-ção, uma manifestação da liberdade.

Posteriormente, no século XIX,há um deslocamento de sentidos naidéia de cidadania e o foco principal

passa a ser a proteção das liberdadesdo indivíduo contra o arbítrio do po-der do Estado, o que se denominou“liberdade dos modernos”.

Hoje, nossa idéia de cidadania in-clui as duas dimensões de direitos.Ao cidadão, é assegurada a participa-ção nas decisões sobre os destinosde sua comunidade, da mesma for-ma em que lhe é garantida liberdadede definição dos rumos de sua pró-pria vida.

É a autonomia privada dos cida-dãos que os capacita para uma cor-reta intervenção na esfera pública.Os cidadãos, então, são submetidosà normas que eles mesmos criaram,ou seja, estão vinculados e obrigadospor sua vontade. É, portanto, essaautoria que justifica a obediência detodos às leis da cidade.

Essa cidadania de dupla dimen-

são é testada no espaço da cidade. Acidade possibilita uma observaçãosobre quem exerce seus direitos decidadão e em que medida as poten-cialidades garantidas pela cidadaniasão, de fato, efetivadas. É a chance dese estar na cidade, ou seja, de circu-lar livremente, de viver dignamente,de ser respeitado, de conviver emigualdade de condições que realiza acidadania.

É nos espaços de encontros me-diados por circunstâncias econômi-cas, sociais, políticas, psíquicas di-versas que nossa imagem de cida-dão, quando consistente, se reflete.

A cidadania nas margens das cidadesAs exclusões do espaço da cidade

levam à falta de reflexo social. O apar-tamento das relações sociais retira ossujeitos dos espaços de circulação,

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | MAIO DE 2008 UnB – SindjusDF | 2104 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | MAIO DE 2008

Cidades e Cidadania

Estados é feita na Constituição, demodo que são crimes federais ape-nas os que são especialmentemencionados como de atribuiçãoda Justiça da União (Justiça Fede-ral, Justiça Militar e Justiça Eleito-ral). A Constituição não atribuicompetência criminal à Justiça doTrabalho. Se a lei ordinária o fizer,estará logicamente subtraindocompetência criminal de quem atem, ou seja, ou da justiça estadu-al; ou da Justiça Federal. A Consti-tuição é clara e direta em duascláusulas simples: primeiro, aodispor que aos juízes federais com-pete processar e julgar os crimescontra a organização do trabalho,sem exceção; ou contra bens, ser-viços ou interesse de entidades fe-derais (União, autarquias e empre-sas públicas), com exceção dos cri-mes de competência da Justiça Mi-litar e da Justiça Eleitoral. Essacompetência não pode, portanto,ser atribuída por lei à Justiça doTrabalho. Segundo, a Constituiçãoincumbe ao Ministério Público Fe-deral (MPF) promover privativa-mente a ação penal perante os Juí-zes Federais, a teor da Lei Comple-mentar n. 75/93. Como titular pri-vativo da ação penal por crime daJustiça Federal, o MPF tem exerci-do com zelo a sua atribuição de le-var a julgamento os que reduzemtrabalhadores à condição análogaà de escravo, falsificam documen-tos, ou prestam declarações falsasem juízo sobre a relação de traba-lho, por exemplo.

O equívoco da proposta decorrede não reconhecimento do esforçoque o Ministério Público Federal temfeito em prol da erradicação da escra-vidão no Brasil, que inclui: 1) obterno STF a definição da competênciada Justiça Federal para julgar o crimede escravidão; 2) ajuizar centenas deações penais, mesmo no período deindefinição da competência; 3) sedi-ar o Fórum Nacional contra a Violên-cia do Campo, no qual defendeu du-as providências essenciais: a) criar oGrupo Móvel para a Erradicação do

Trabalho Escravo, no Ministério doTrabalho, b) criar o programa de pro-teção a testemunhas; 4) liderar a re-dação da parte substantiva do PlanoNacional para Erradicação do Traba-lho Escravo, aprovado pelo Presiden-te da República em 2003, e propor ocompromisso de erradicar, ao invésde apenas combater, o trabalho es-cravo; 5) sugerir a criação da CONA-TRAE - Comissão Nacional para Erra-dicação do Trabalho Escravo, comofórum permanente de entidades pú-blicas e da sociedade civil para acom-panhar a execução do Plano Nacio-nal contra o Trabalho Escravo.

Em suma, desde a decisão do STFque firma a competência federal, em2006, a hora é de aprimorar o exercí-cio das atribuições de cada institui-ção, e não de mudar o desenho insti-tucional.

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