SINOPSE -...

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1 Ficha de Leitura Quando as girafas baixam o pescoço de Sandro William Junqueira Publicação: 2017 Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Carnaxide Dinamização: Josefina Melo 17 de junho 2019 SINOPSE Quase todas as personagens deste romance fragmentário habitam o lote 19 neste prédio duma rua numa cidade qualquer, onde “o silêncio é demasiado ruidoso”. E estão todas, vítimas e carrascos, suspensas num tempo que insiste em torturá-las devagarinho, ao mesmo tempo que lutam para sobreviverem com a alma esburacada e alguns resquícios de humanidade: a Mulher Gorda que gosta de jacintos, o Velho que dá nomes de filhos às rosas, Vera que tem um filho atravessado na barriga, o Adolescente Musculado que não consegue falar com a mãe morta, a Mulher dos Lábios Vermelhos que adota um chimpanzé bebé. É a crónica de uma crise anunciada. PALAVRAS-CHAVE SOLIDÃO, SOBREVIVÊNCIA, INCAPACIDADE DE COMUNICAÇÃO, DESENCANTO, VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, ANORÉXIA TEMPO E ESPAÇO Lote 19 duma rua numa cidade qualquer. PERSONAGENS O VELHO Mora no 1º B embora preferisse um rés-do-chão para não dar trabalho aos homens da funerária.

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Ficha de Leitura

Quando as girafas baixam o pescoço

de Sandro William Junqueira

Publicação: 2017

Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Carnaxide

Dinamização: Josefina Melo

17 de junho 2019

SINOPSE

Quase todas as personagens deste romance fragmentário habitam o lote 19 neste

prédio duma rua numa cidade qualquer, onde “o silêncio é demasiado ruidoso”. E

estão todas, vítimas e carrascos, suspensas num tempo que insiste em torturá-las

devagarinho, ao mesmo tempo que lutam para sobreviverem com a alma esburacada e

alguns resquícios de humanidade: a Mulher Gorda que gosta de jacintos, o Velho que

dá nomes de filhos às rosas, Vera que tem um filho atravessado na barriga, o

Adolescente Musculado que não consegue falar com a mãe morta, a Mulher dos

Lábios Vermelhos que adota um chimpanzé bebé. É a crónica de uma crise anunciada.

PALAVRAS-CHAVE

SOLIDÃO, SOBREVIVÊNCIA, INCAPACIDADE DE COMUNICAÇÃO, DESENCANTO,

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, ANORÉXIA

TEMPO E ESPAÇO

Lote 19 duma rua numa cidade qualquer.

PERSONAGENS

O VELHO

Mora no 1º B embora preferisse um rés-do-chão para não dar trabalho aos homens da

funerária.

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É o primeiro a levantar-se no lote 19. E o último a aceitar a cama.

Traz a carne usada demais, e as raízes bem firmes na vida, para que o descanso lhe

sirva de aconchego e alívio. (p. 63)

Debruça-se no parapeito da marquise. Monitoriza as rosas: Magda, Matilde, Hermínio

José. Às rosas deu nome de filhos. (p. 91)

A MULHER GORDA

Mora no 5ºC. Vítima de violência doméstica.

Não consegue avistar a ponta dos sapatos.

É uma mulher indiscreta. Abre a boca para respirar. Os joelhos articulam-se mal. Os pés

raspam o chão. Sabe bem que aspeto tem. Uma pétala na idade murcha. (p. 16)

A Mulher Gorda vive no quinto andar. Leva uma vida disciplinada. Apesar disso, todos

os dias acorda tomada por uma sensação de desamparo. Enquanto prepara o pequeno

-almoço chora. Por motivos vários chorar faz parte da sua dieta. (p. 18)

A RAPARIGA MAGRA

Anorética.

Não quer é transformar-se naquilo. Isso nunca.

Sempre que tem uma instabilidade no apetite, saca o álbum de fotografias da terceira

gaveta da cómoda. Compara a imagem da mãe quando rapariga com a imagem da

mãe que transbordou dessa mesma rapariga. O efeito é imediato: passa-lhe a vontade

de comer bolas-de-berlim. (p. 20)

O HOMEM QUE GOSTA DE LIVROS

Mora no 2º A

Esconde, debaixo da camisa abotoada até ao colarinho, um livro. Uma frase:

«Viver é viver como viveríamos de vivêssemos».

Esta frase não lhe larga o peito. Ele gostaria de desabotoar a camisa, abrir o livro. Ler o

coração em voz alta. Se ao menos Ema o compreendesse. Se ao menos Ema o ouvisse.

Ele queria ler-lhe, para assim poder tocá-la. Há outra forma de tocar em alguém? (p.

22)

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EMA

Mulher do Homem que Gosta de Livros

Ema está farta que ele lhe dê palavras, quer afetos. O toque sapiente do amor.

Ao jantar, ele dissera-lhe: «Quero ser uma veia dentro da tua árvore». (p. 76)

O HOMEM DESEMPREGADO

O quarto tem apenas uma janela sem cortinas. Através dela, deitado na cama o

Homem Desempregado assiste, todas as manhãs, quando as nuvens o permitem, à

subida do sol para o nada, de novo. Depois, quando o sol abandona o campo de visão,

sente-se tão só e desamparado que não lhe resta alternativa: levanta-se. Veste-se.

Arrasta os chinelos apáticos pelo chão imundo. Sem recordar o último dia em que teve

força. (p. 24)

No terceiro andar, o Homem Desempregado cospe nos livros de filosofia da sua

biblioteca pessoal. (p. 25)

O PAI

Mora no 7º D e sonha com a vizinha de cima, A Mulher dos Lábios Vermelhos.

Um pai é pouco. A mãe é tudo. Um pai tenta ser mais, quando a Mãe se ausenta para

trabalhar por turnos, 12 horas por dia, e feriados e fins de semana e bem longe de

casa. (p. 26)

Terminadas as lides domésticas e a confeção das refeições, e como lhe sobravam horas

desocupadas, e a monotonia é animal com dentes, o Pai inventava narrativas para

decorar a infância do Filho de cores garridas. (p. 87)

VERA

Vera deita as mãos sobre a camisola de algodão de gola alta. Sobre o ventre. Tem um

filho atravessado na barriga. E tem o pai do filho atravessado na garganta. Debaixo da

camisola não se veem. Mas ela sabe que não pode ter as duas coisas atravessadas ao

mesmo tempo. (p. 31)

E foi assim. Vera foi escolhida, arrombada por aquele que trazia a certeza no

enchumaço das calças ruças e a segurança da camisa aberta até ao esterno. Matias

deitou-se em cima dela e arfou. A respiração dele cheirava a vinho. E aquele quarto

pouco iluminado estremeceu.

Vera atravessava a correr a estrada, de noite, como a lebre em direção ao carro. O

carro era Matias. Vera, a lebre.

O amor é assim como uma colisão. (p. 145)

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MATIAS

Quando entrou na carruagem espalhou o hálito a água-de-colónia francesa. Trazia a

certeza no enchumaço das calças ruças e a segurança na camisa aberta até ao esterno.

O fio de ouro só rutila no peito cabeludo daqueles que nasceram para conquistar o

mundo. (p. 32)

Matias era um mulherengo boçal, preguiçoso, esperto, bruto, vaidoso. (p. 89)

A MULHER DOS LÁBIOS VERMELHOS

A mulher que habita o oitavo andar é bela da carne ao cheiro. Do cheiro ao gosto.

Ninguém tem o direito de ter uma pele daquelas. Tudo é bom, ali. (p. 83)

Ao espelho, a Mulher dos Lábios Vermelhos agasalhou a boca com batom. Sentia frio

nos lábios. Uma aragem de silêncio que entrava e depois saía. Deitara-se com dúzias

de homens, mas não falava com ninguém havia 13 dias. Pelo menos aquela cor de

romã gordurosa sempre a aconchegava. (p. 35)

O ADOLESCENTE MUSCULADO

Mora no 6º andar

O apartamento está sujo, desarrumado. Cotão e cabelos e migalhas velhas e aparas de

lápis e caroços de tangerinas. Roupa suja amontoada com jornais amarelos e sacos de

plástico rotos. Os vidros das janelas engordurados de dedos.

O Adolescente Musculado, em tronco nu, levanta pesos. Está no meio da sala que

também é cozinha. Tresanda a peixe frito. Está sozinho. Sente-se mais feliz quendo o

pai não está em casa. (p. 37)

A mãe está morta. E o mundo ficou menos mundo.

Deita-se no chão e encosta o ouvido à terra dura. Na esperança de, ainda assim, ouvir

o que a mãe tinha para lhe dizer. (p. 182)

O VIÚVO

O Viúvo não é propriamente um homem exemplar. Sai de manhã, cedo, todos os dias,

para lavar pratos e grelhar febras no tasco onde trabalha. (p. 37)

CÁTIA COM C DE CÃO

Nasceu tal como a irmã gémea Katia com K, em Krasnodar, na Rússia.

Trabalha na retrosaria que fica no número 91.

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Cátia com C de Cão tem um metro e setenta e dois e a cara oval. Tem pele de ruiva,

sardas de ruiva e cabelo de ruiva mascarado de louro. Tem o nariz pontiagudo e olhos

cor de noz.

Cátia pinta os olhos, os lábios, levanta as pestanas com rímel e arranja as

sobrancelhas. É bonita pintadinha e sem estar pintadinha também. E a maior parte do

tempo está caladinha. Quando fala, acusa dificuldades. Não domina bem a língua. (pg.

40)

Cátia anda à procura do seu homem. Não sabe onde é que ele está. Para onde é que

ele fugiu. (p. 98)

IRMÃS MÓVEL E QUIETA

4º B

Duas irmãs. A mais velha é a Irmã Móvel. A mais nova, a irmã Quieta.

A irmã Quieta permanece sentada, todo o dia, no sofá bege da sala de estar. Devido a

um problema de tensão arterial e coisas dos nervos, os seus movimentos reduzem-se

ao essencial: uns passos lentos e arrastados da sala de estar para a casa de banho, da

casa de banho para o quarto, do quarto para a sala de estar. A mais velha, a Irmã

Móvel, afadiga-se com todos os afazeres para cuidar do apartamento e da Irmã

Quieta. (p. 42)

KÁTIA COM KAPA

Trabalha na retrosaria com o número 83.

Kátia com Kapa tem umas olheiras enormes. Um ar exausto. Acabado. Kátia veste-se

todos os dias de preto. Está de luto pela morte do seu sono. (p. 44)

(…)

Kátia com Kapa veio para esta cidade atrás da irmã. Quer fugir da irmã mas não

consegue. Kátia com Kapa e Cátia com C de Cão estão ligadas por um fio de alma.

Onde uma vai a outra segue atrás. E tudo por causa da bruxa de Kropotkin. (p. 107)

TEO

Vive no quinto andar.

Tem 33 anos no cabelo e nas veias. Uma vida desarrumada. Pouca coisa. Não tem

conselhos a dar a ninguém. (pg.47)

Ela apaixonara-se pelas mãos dele. Por aqueles dedos imprevisíveis cheios de fome. (…)

Mãos que agora descascavam delicadamente a pera. Mãos inesperadas; também a

tinham esmurrado num instante de fúria: olhos, boca, barriga, costas, pernas. A

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totalidade do corpo da mulher. Amontoando o sangue em nódoas negras. Nódoas

difíceis de tirar.

E tudo por causa de umas malditas cebolas. (p. 171)

O PROFETA

O Profeta perde cabelos todos os dias enquanto entoa obscenos fins de mundo a troco

de algumas moedas e restos de comida. Atoardas atrás de atoardas sobre a

aproximação vertiginosa do Armagedão.

Diz em voz alta o que lhe vem à tola. O demónio fala pela sua boca. Não tem medo da

polícia, nem de nenhum insulto terrestre. Sabe entoar de cor, numa ladainha de

tabuada, a canção obscena da escalada dos terrores.

(…)

O Profeta atingiu o ponto mais baixo na escala da sobrevivência. E alegra-se por essa

conquista: o fundo. (p. 51)

OLEG

Entre um refrão e outro, agudo ou grave, o cantor de rua de olhos semicerrados,

concentra a sua atenção no chão. Raramente ergue a cabeça para admirar os rostos de

quem passa. Compreende homens e mulheres pelos sapatos. Os sapatos carregam a

vida, pressagiam a morte.

Altos, rasos, salto agulha, verniz, camurça, borracha, desportivos, engraxados, puídos.

(…)

Ele imagina a vida dos outros ao observar como entregam o peso à planta dos pés. E a

planto dos pés às solas. E as solas ao chão imperturbável. (p. 55)

Oleg sentava-se numa cadeira desdobrável. Todos os dias. Fizesse sol, chuva ou noite.

Era um homem, alto, forte, com mãos grandes, maus dentes, orelhas em forma de

coração e olhos como faróis sem idade. De sandálias nos pés, Oleg cantava numa voz

suave. Numa língua estrangeira. A raiz da sua voz permanecia intacta. Sem

interferência das estações. (p. 112)

O HOMEM EXEMPLARMENTE VESTIDO

Nos arredores, um Homem Exemplarmente Vestido com um fato às riscas arrendou um

armazém bastante promissor. Uma gaiola de grandes proporções, semelhante a um

pequeno circo. Adquiriu aves canoras de diferentes espécies. (p. 56)

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DMITRI BARAMASOV

Oriundo de uma meiga família pertencente à elite burguesa – os Baramasov -, Dmitri

tem por hábito mentir quando necessita e ser sincero quando pode. Porém, desde que

foi vítima do abalroamento por parte de Cátia com C de Cão, ficou roxo, num repente.

Nunca mais voltou a ser o que era. (p. 114)

Mas qual amor! Dmitri sabe lá o que é o amor. Mas que fazer quando se tem um

desejo ilimitado pelo belo! Houve uma eleição. E Dmitri perdeu. Cátia com C de Cão

escolhei ficar com Oleg. (p. 115)

EXCERTOS

Pontualmente, todas as manhãs, sentada, com a mesa ainda posta, depois de o marido

ter saído sem ter tocado na chávena com o café que entretanto arrefeceu, apetece-lhe

largar um grito. Acordar a casa inteira, o prédio, assustar as gaivotas e os arrabaldes.

Não sabe por que razão não o faz. Não interessa. Há gritos que têm de ficar guardados

na garganta. E depois engolidos, de volta à procedência. Há que guardar o grito certo

para o momento único. Não o desperdices. Organiza-te. Os gritos deitam cheiro. São

moradas. Postais com remetente.(p. 19)

O saco abriu-se e aconteceu: o vento livre chiou desgovernado; percorreu o corredor e

todas as divisões da casa, até se cansar: pestanas, folhas de outono, palavras perdidas

pentearam móveis, paredes, tapetes, rodapés. (p. 29)

A girafa é um mamífero ruminante da família dos giraffidae. Os machos chegam a

atingir seis metros de altura e as suas línguas de 50 centímetros são capazes de

capturar as folhas de acácias por entre os pontiagudos espinhos dos galhos mais altos.

Para poder pastar a girafa tem de afastar as pernas dianteiras uma da outra. A girafa

possui pernas longas, sendo as dianteiras mais altas que as traseiras. E o pescoço mais

comprido de todo o reino animal. Na girafa, devido ao comprimento do seu

intransigente pescoço. O coração situa-se demasiado longe da cabeça. Só quando a

girafa se baixa para beber água é que a cabeça se aproxima do coração. E só devido a

um excecional e complexo sistema vascular é que a cabeça não se lhe rebenta quando

volta a erguer o pescoço. (p. 70)

O ovo é um milagre mal guardado, diz a Irmã Móvel, enquanto segura na pega da

frigideira.

Parte-se a fina casca e ele escancara-se perante os olhos.

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Mexido, perde absolutamente o interesse.

Cozido, exige o desembaraço de um striptease.

Mas estrelado, estrelado, sim: é como ter o sol por cima de um tapete de nuvens.

Espeta-se o pão e o sol derrete, derrama-se. E nós podemos molhar o pão no sol. E

comer o sol, com pão num simples prato de vidro. E podemos mastigar o sol.

E encher a barriga de realidade. (p. 100)

Não somos feitos de presentes. Somos feitos de passados. Trazemos mantas de

passados às costas. Mantas que, como a gravidade, nos fazem pesados.

O futuro é um passado que vem a caminho e ela com cinquenta e dois anos e cento e

dezoito quilos. (p. 128)

Paraíso. A Mãe repetia muitas vezes esta palavra, das poucas vezes em que estava em

casa. Escolhia sempre a hora da refeição. A mesa era também palco da linguagem. A

Mãe servia os pratos enquanto servia a memória. Dizia a palavra paraíso e depois

espalhava o sorriso como se de facto já nele tivesse vivido e dele conhecesse os

segredos mais íntimos.

O Paraíso era lá.

Ficou lá.

Naquele país de onde viemos. (p. 139)

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NOTA BIOGRÁFICA SOBRE O AUTOR

Sandro William Junqueira nasceu em 1974 em Umtali, na Rodésia.

Experimentou a música, escultura, pintura. Foi designer gráfico. Diz poesia e trabalha

regularmente como ator e encenador. Leciona expressão dramática. É autor de

projetos e ateliês de promoção do livro e da leitura.

Publicou O Caderno de Algoz (Caminho, 2009), Um Piano para Cavalos Altos (Caminho

e Leya Brasil, 2012). Foi um dos onze escritores da novela policial O Caso do Cadáver

Esquisito (Associação Cultural Prado, 2011) e autor de um dos contos da coletânea Dez

Contos para Ler Sentado (Caminho, 2012). Em 2012 foi considerado um dos escritores

para o futuro pelo semanário Expresso.

OUTROS TÍTULOS NAS BIBLIOTECAS DE OEIRAS

Literatura infanto-juvenil

As palavras que fugiram do dicionário (2018)

A cantora deitada (2015)

Ficção

Um piano para cavalos altos (2012)

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ENTREVISTAS E RECENSÕES

Miguel Real no Jornal de Letras

http://visao.sapo.pt/jornaldeletras/2018-02-15-Sabdro-William-Junqueira-lido-por-

Miguel-Real

Sandro William Junqueira lido por Miguel Real

JORNAL DE LETRAS 15.02.2018 às 16h46

Autor de três romances, O Caderno do Algoz (2009), Um Piano para Cavalos Altos

(2012) e No Céu não há Limões (2014), subindo fortemente de qualidade literária do

primeiro para os dois restantes, Sandro William Junqueira (SWJ) publicou agora

Quando as Girafas Baixam o Pescoço este Outono.

Nos dois últimos romances, prenunciadas já no primeiro, SWJ criou sociedades

claustrofóbicas, ditatoriais, verdadeiras distopias, desprovidas dos clássicos

sentimentos humanos positivos, substituídos pela ferocidade racional e tecnocrática

de um universo concentracionário. Exemplo: em Um Piano para Cavalos Altos, os

chefes de uma sociedade fortemente hierarquizada, rodeada de muros, sustentada

pelo medo, alimentam a população com empadas confecionadas da carne

transformada dos mortos. Como já escrevemos: “SWJ evidencia-se, na sua ainda

diminuta obra, como um mestre na criação de mundos reclusos, ditatoriais,

despóticos, socialmente apodrecidos, ainda que virtuosamente perfeitos, mundos à

beira do fim, frios”. Este seu novo romance narra a aplicação destes mundos tirânicos

à vida individual das personagens, ou, dito de outro modo, de como o todo influencia,

desorienta e perverte cada elemento constituinte do conjunto.

Assim, após dois romances distópicos, SWJ apresenta-nos agora os destroços soltos,

avulsos, daquelas sociedades totalitárias. Se os anteriores romances possuíam uma

unidade temática e uma estrutura coesa, este, ora publicado, vive, no presente, dos

seus restos, uma espécie de ruínas da decadência e desagregação do todo social. Por

isso, não é organizado por capítulos. Limita-se a reunir um conjunto variadíssimo de

textos (cerca de cem) descrevendo episódios os mais banais dos habitantes de um

bairro em torno da projetada construção do edifício, o lote número 17. Porventura, o

autor quererá indiciar que já hoje, aqui, o racionalismo tecnocrático conduziu a uma

sociedade autoritária, mesmo despótica, a que se opõe de um modo firme a atitude do

“Velho”, depositando no buraco do estaleiro sementes de flores (p. 15). Porém,

conhecendo-se a obra anterior do autor, pode – outra hipótese - entender-se o todo

de Quando as Girafas Baixam o Pescoço como vestígios, destroços avulsos ou ruínas

perturbadores das sociedades anteriormente descritas.

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O homem é um ser altivo, digno, criador, psíquica e eticamente tão “alto” quanto as

girafas, mas, como estas, tem, para sobreviver em certos períodos e em certas

organizações sociais, de baixar o pescoço (notas sobre a girafa, p. 70). As personagens

de Quando as Girafas Baixam o Pescoço sobrevivem ora um estado de letargia, como o

“Homem Desempregado”, em estado de “inércia e desânimo” (p. 24), ora em estado

de sonho, de ilusão, como o “Homem Que Gosta de Livros”, obcecado pela frase alheia

"Viver é viver como viveríamos se vivêssemos" (p. 22).

A realidade é demasiado abjeta, atormentadora e sofredora para que seja vivida, todos

tentam escapar-lhe, como as relações falaciosas entre o Pai e o Filho (pp. 28/29) ou

entre Vera e Matias (pp. 30/34), ou o desejo ilusório, vão, de um futuro esperançoso

do “Adolescente Musculado” ou o desejo absurdo da “Rapariga Magra” (pp. 67/68), ou

a luta interminável (“guerra” escreve o narrador) entre as irmãs “Kátia com Kapa” e

“Cátia com C de Cão” (pp. 104/106).

Assim prosseguem as inúmeras histórias deste romance, desenhando a vida “normal”

das personagens, vida tecida, devido ao todo social, de verdadeira “anormalidade”. Os

desejos não se realizam, a realidade (o tempo, a idade, a profissão, a família…), sempre

enviesada, é um permanente obstáculo. Mesmo quando o cenário é de “beleza” e a

atmosfera ridente, algo de torcido acontece que frustra o desejo e enraivece a

multidão: “o Adolescente Musculado não estava satisfeito. Queria mais. Queria mais.

Quero mais.” (pp. 58/59).

Ler Quando as Girafas Baixam o Pescoço é penetrar num universo de escuridão, de

ruínas e escombros, de sombras que furtam a luz, onde “o tédio é lugar confortável”

(p. 77) e o desejo máximo, “para finalmente alcançar a paz” (id.), consistiria em “ter

aprendido na escola o método de fazer parar o coração apenas com a vontade”.

Universo de escuridão não como anormalidade social, mas como profunda e tensa

normalidade, subterrânea, que só a Literatura desvenda e revela: destroços de uma

humanidade que se prometeu a si própria o paraíso e hoje habita entre as fogueiras do

inferno.

Nota importante: é preciso revestir a mente de uma proteção especial antes de se

começar a leitura. Caímos no perigo de entramos em depressão, prevendo a negridão

do futuro. JL

Isabel Lucas no Ípsilon

https://www.publico.pt/2018/03/28/culturaipsilon/noticia/gosto-mais-de-me-perder-

do-que-de-saber-o-caminhoa-minha-escrita-e-a-resposta-aos-socos-que-a-vida-da-

1807773

SANDRO WILLIAM JUNQUEIRA

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“A minha escrita é a resposta aos socos que a vida dá”

Quando as Girafas Baixam o Pescoço sai da cabeça de um autor que faz suas as

palavras de uma personagem: “O ódio é o motor da literatura”.

Isabel Lucas 28 de Março de 2018, 10:20

Há uma lucidez na solidão tal como a escreve Sandro William Junqueira. A subtileza de

saber que chegar ao outro é impossível, mas ainda assim ir tentando. É uma

disponibilidade próxima do instinto de sobrevivência. Comovente, porque se sabe que

a falha é inevitável. Mas é precisamente no comportamento de cada personagem

perante a falha que cada uma se vai definindo. E as personagens deste livro são

homens e mulheres banais a viver um momento de pausa, “em contraciclo à

velocidade do mundo moderno”, como refere o escritor. “Não há aqui gente estranha,

mas uma gente que por circunstâncias diferentes foi obrigada a parar. Estão a

contrariar a voragem do mundo, em reflexão dolorosa”, diz. E nessa contradição

revelam-se em toda a sua solidão, aqui um sinónimo de incapacidade de comunicar,

seja por inépcia ou falta de intenção. É gente caída no chão. “Caídos no chão, a

sangrar, refugiamo-nos de imediato na autocomiseração, no rol de lamentos

infindáveis e queixas frágeis. E como a nossa mente se recusa a acreditar no que

aconteceu, tem início a formulação de um cortejo de interrogações...” Entre elas a

inevitável: “Porque estou sozinho?”

Esta gente habita o lote 19, prédio onde se passa a acção de Quando As Girafas Baixam

o Pescoço, quarto romance de Sandro William Junqueira, narrativa fragmentária

assente na rotina de existências comuns cuja singularidade é terem sido obrigadas a

parar. O Velho, o Desempregado, a Mulher Gorda, a Irmã Quieta, o Adolescente

Musculado... Estes são os nomes pelos quais o leitor as vai conhecendo. São vizinhos,

mas pouco sabem acerca uns dos outros. Só imagens e os ruídos quotidianos que se

interceptam. “Nunca fomos tantos, nunca vivemos tão próximo uns dos outros, mas

não existe muita comunicação. Só os sons das vidas que se intrometem como numa

infiltração”, sublinha o autor numa conversa sobre este romance próximo da poesia,

tanto na mancha gráfica como no estilo. E tem contágio forte do teatro.

“Cambaleante, o Velho sai do lote 19 e desce a rua. Detém-se. À sua direita, um

buraco, uma caixa rectangular ainda por erigir: o lote 17. Uma caixa que, depois de

levantada, terá muitos casulos; é quanto basta: caixas pequenas, divisões pequenas,

janelas pequenas. As pessoas, tão parecidas umas com as outras, poderão esconder-se

com muita sinceridade.” São quase as primeiras palavras de Quando as Girafas Baixam

o Pescoço a dar corpo à imagem inaugural. “É sempre assim que tudo começa, com

uma imagem”, salienta Sandro. No caso deste romance, foi a de um velho e ficou

materializada assim: “O Velho retira do bolso do casaco um pequeno pacote de

sementes. Abre. Lança. A mão trémula. Olha para cima como um vencedor. O céu bem

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vestido de nuvens. Agora é aguardar que a chuva antiga cumpra as sementes na terra

daquele buraco.”

É um romance urbano, num bairro como qualquer outro de uma qualquer cidade do

mundo que trata de problemas contemporâneos transversais. “Interessa-me esse tom

universal, a ideia que de isto pode ser de qualquer lado”, justifica o escritor, uma

opção que é o reflexo de um sentido muito pessoal de desenraizamento, por um lado,

e de atenção ao que o rodeia.

Junqueira nasceu na então Rodésia em 1974, viveu em Setúbal, Caldas da Rainha,

Portimão e finalmente em Lisboa. Nunca morou noutro local a não ser num

apartamento, imaginando as vidas de quem partilhava o mesmo prédio, a mesma rua,

o mesmo bairro e, nesse olhar, sabedor da impossibilidade de aceder à intimidade a

não ser através da fantasia. O escritor não está alheado da sua circunstância pessoal.

“Quando terminei o livro, comecei a pensar no que me terá levado a construí-lo em

altura, num prédio... É verdade que sempre vivi em cidades e sempre vivi em prédios,

com pessoas por cima e por baixo e ao lado, e, como os meus pais sempre foram

muito ciosos da sua privacidade, nunca houve muita relação com os vizinhos... E é

verdade, o resultado é um romance citadino.”

Não foi deliberado, porque quase nada é quando Sandro William parte para a escrita.

Obedece a um impulso, visceral, físico, avesso a planos. “Tenho uma abordagem muito

ingénua em relação à escrita. Parto para ela como uma criança que se quer espantar

com as coisas. Por isso não faço planos. E tenho de estar em estádio de espanto

perante as coisas. Vou em busca dessa pulsão. É uma coisa muito sanguínea, muito do

corpo, da carne.”

Segue o ímpeto, nega qualquer esquema. “Não quero controlar, deixo o instinto tomar

conta de mim e, quando sinto que está lá o material, sigo e vem então a razão e vou

depurar. Gosto mais de me perder do que saber o caminho”, confessa. Por isso

escreve, escreve e muito depois limpa, ou esculpe, como gosta de dizer. Há quem

chame a isso ir ao osso. Ele não rejeita a metáfora. Refere exemplos: Cormac

McCarthy, William Faulkner, Dostoiévski, Beckett... Todos sem palavras a mais, todos

capazes de suscitar o incómodo que ele também procura, sendo leitor ou na literatura

que faz. “A literatura tem de mexer com o corpo inteiro, o livro tem de me

desassossegar, quando leio, gosto de apanhar porrada. Os livros que me dão porrada

são os que alteram a minha forma de pensar, me fazem sentir coisas”, sintetiza.

Uma das suas personagens, O Homem Que Gosta de Livros, diz: “Sem ódio não haveria

literatura.” Sandro William Junqueira acredita nisso, que o impulso criativo tem pouco

que ver com felicidade. Na conversa, ele precisa: “O primeiro impulso de escrita não é

uma coisa feliz e é sempre um movimento de resposta a qualquer coisa que me está a

perturbar. Não consigo ir para a escrita tranquilo. Uma vez perguntaram ao Reinaldo

Arenas [escritor cubano, 1943-1990] porque escrevia, e ele deu uma resposta muito

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corajosa: ‘Escrevo por vingança.’ A minha literatura é a resposta aos socos que a vida

dá. Mas quanto estou embrenhado, a escrever, não sinto isso. É o primeiro momento,

de descarga.”

Estamos perante uma prosa cuja força se conquista com frases curtas, diálogos

cirúrgicos, imagens rápidas. As descrições são breves, as personagens, com excepção

para as que vêm de um hipotético Leste da Europa — Ema ou Oleg —, têm o nome da

sua condição física ou da função na vida. Isso reforça o efeito de anonimato, ou, uma

vez mais, de solidão numa teia de vizinhança que é apenas geográfica, visual. Para o

outro cada um é o que parece ser. “Tenho uma grande dificuldade em baptizar as

personagens.” Além disso, não nomear facilita a ideia de universalidade que quer

passar no que escreve, o efeito de estranheza que quer aprofundar. Algumas são

homenagens a livros ou a escritores. Carregam ironia, azedume, mágoa, nostalgia,

num xadrez menos distópico do que o dos romances anteriores de Sandro William

Junqueira, mas mais depurado, ainda mais político, tão ou mais fragmentado; um

puzzle em que cada personagem encaixa na sua falha, com o escritor a modelar a

sensação de precipício, de abismo, de vazio existencial de cada uma; e todas reféns de

um “dicionário próprio” que as torna, por isso mesmo, forçosamente sós.

Que papel é o do escritor neste desvelar impossível de uma intimidade? “Não é pôr-se

no lugar do outro. É fazer perguntas. Procuro sempre a coisa por dentro da vida;

interessam-me muito os nossos dualismos, o nosso combate entre a questão da razão

e o nosso lado animal”, responde. Perguntar e ouvir. “Uma vez vi um documentário

sobre um casal norte-americano. Estavam juntos há 20 anos e perguntaram-lhe o que

os mantinha juntos. Ele respondeu: ‘Eu ainda quero ouvir o que ela tem para me dizer.’

Penso nessa frase quando escrevo. Estar disponível para ouvir o outro, sabendo que no

fundo o que queremos é ter alguém que ouça aquilo que temos para dizer. Todos

queremos ser amados.”

A Mulher Gorda, a que tenta por tudo que a Filha Magra coma, está ciente que é fácil

errar nas palavras. Sandro usa-as com cautelas, arrisca o erro quando insiste em

metáforas. São muitas. “Tentei não abusar”, diz, assumindo a influência da poesia

neste romance, que é essencialmente político, ainda que essa palavra nunca apareça

escrita. “O acto de escrever é um acto político. Não consigo descolar-me do que se

está a passar à minha volta. É quase uma militância, um dever ético, como ser

humano; ver o mal, ver as falhas.”

O título do romance tem que ver com isso, não é mero efeito poético. “A certa altura

distanciámo-nos da natureza, pela procura de bem-estar, medo da imprevisibilidade,

ou também por uma certa altivez de a querer controlar. Pusemos betão entre nós e

ela, mas ela manifesta-se; está sempre a haver pequenas explosões, pulsões de uma

certa animalidade que não conseguimos controlar.” É outra duplicidade que o livro

explora, com o autor sempre a procurar a contenção e quase sempre a conseguir

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aquilo que pretende, o tal incómodo que activa o sangue, naquele que é o seu mais

belo livro. Não lhe chamou romance, como também não se chama a si escritor. “Faz-

me um bocado de confusão”, ri, e podemos seguir num fade out, as personagens a

pairar e uma canção a tocar. Foi escolhida por Sandro William Junqueira e vem no fim

de tudo, na última página: Sometimes I think we are an eagle, de Bill Callahan, e mais

uma vez o sonho de chegar ao outro e a sua impossibilidade.

Sílvia Souto Cunha na Visão

http://visao.sapo.pt/actualidade/visaose7e/livros-e-discos/2017-11-20-Quando-as-

Girafas-Baixam-o-Pescoco-O-retrato-do-Pais-em-crise-por-Sandro-William-Junqueira

Buracos na urbanização, buracos na alma. Partindo de um bairro complicado, o livro

Quando as Girafas Baixam o Pescoço, de Sandro William Junqueira, é o retrato do País

em crise, por dentro e por fora.

A Mulher dos Lábios Vermelhos atira limões pela janela para acertar em aves

intrometidas, ou espreme-os, lascivamente, em partes do corpo. Há uma “luz cor de

limão” na casa onde vivem a Irmã Móvel e a Irmã Quieta, onde o sol é um simples ovo

estrelado. Há um envelope amarelo no apartamento da Mulher Gorda, que é uma

memória, essa “ âncora que nos prende ao Inferno”. Há lombadas amarelecidas na

casa do Homem que Gosta de Livros, com milhares de palavras que o separam da

mulher.

Sob um toldo amarelo, está a retrosaria onde Cátia com C de Cão tem frio e lembra o

seu país longínquo. O ouro de um fio rutila no peito de um pintas, dentro do elétrico. E

há arboricídios nos jardins municipais feitos por funcionários de coletes cítricos. Tudo

isto evoca o título do romance anterior de Sandro William Junqueira: No Céu Não Há

Limões. Aqui, em Quando as Girafas Baixam o Pescoço, nem homens nem árvores

morrem de pé, o paraíso prometido não chega, o coração apodrece de mágoa ou

desistência.

A Rapariga Magra, cheia de rancores à família e às calorias, sabe-o bem, por causa dos

programas sobre a Natureza que a mãe vê: “Na girafa, devido ao comprimento do seu

intransigente pescoço, o coração situa-se demasiado longe da cabeça. Só quando a

girafa se baixa para beber água é que a cabeça se aproxima do coração. E só devido a

um excecional e complexo sistema vascular é que a cabeça não se lhe rebenta quando

volta a erguer o pescoço.”

O lote 19, onde sobrevivem todos, é uma selva que retrata os esquecidos pela marcha

triunfante do êxito, os alvos da crise − de todas as crises. Um negativo revelado em

capítulos curtos e líricos que quase funcionam como microcontos, entradas em cena à

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medida dos destinos inacabados que ecoam a epígrafe de Manoel de Barros: “A gente

é rascunho de pássaro/ não acabaram de fazer”. No início, o Velho atirará sementes

para a caixa do futuro lote 17 com uma prece: “Que a chuva antiga chegue antes do

novo empreiteiro.” Não será atendida.

Eduardo Pitta na Sábado

https://www.sabado.pt/gps/palco-plateia/livros/detalhe/critica-de-livros-quando-as-

girafas-baixam-o-pescoco

Crítica de livros: Quando as girafas baixam o pescoço

05.11.2017 10:00 por Eduardo Pitta

O novo livro de Sandro William Junqueira foi lançado a 24 de outubro. Eduardo Pitta

atribui-lhe quatro estrelas e fala numa voz distinta da nova literatura portuguesa

Entre os novos ficcionistas, a voz de Sandro William Junqueira (n. 1974) distingue-se

com nitidez. Autor de quatro romances, uma peça de teatro e dois livros para a

infância, o autor manipula com fluência um universo semântico muito pessoal. O livro

mais recente, Quando as Girafas Baixam o Pescoço, é uma alegoria bem escarolada da

não razão de sobreviver: "Naquela urbanização há um buraco. Uma falha no

ordenamento do betão." A linearidade é enganadora. O imaginário do autor dribla o

leitor mais precavido. Os interstícios da prosa vão sendo sinalizados por ecos do

Modernismo.

Montado numa sucessão de sketches, o romance secciona a narrativa em 100

microcapítulos. O sexo é recorrente: "Enfiou dentro de si o maior número de dedos

que conseguiu". Certa ideia de cenografia molda várias passagens. Vera, uma das

protagonistas, "tem um filho atravessado na barriga. E tem o pai do filho atravessado

na garganta. […] Mas ela sabe que não pode ter duas coisas atravessadas no corpo ao

mesmo tempo".

http://asleiturasdocorvo.blogspot.com/2017/10/quando-as-girafas-baixam-o-

pescoco.html

Quando as Girafas Baixam o Pescoço (Sandro William Junqueira)

No lote 19, vivem muitas vidas umas sobre as outras: a Mulher Gorda quer comprar

jacintos e a filha, a Rapariga Magra, aceita tudo menos ficar igual à mãe. O Velho sabe

que não pode deixar que a morte o apanhe a dormir, enquanto o Homem

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Desempregado não sabe como saciar a fome a não ser com a memória de refeições

passadas. E, entre estes e outros, a vida passa: para uns, traz vinganças e ligações de

amor e ódio; para outros, a apatia do que se deixou de sentir. Ao lado, o lote 17 é um

buraco à espera de construção - buraco como o das vidas que o observam ao passar.

Não é propriamente fácil traçar uma linha geral para este livro - e, contudo, ela está lá.

A história nasce de uma multiplicidade de fragmentos, de pequenos momentos das

vidas das várias personagens, como que vistos pelo olhar de alguma entidade distante.

E, ainda assim, é incrivelmente fácil entrar na vida destas pessoas, querer saber mais -

sobre o que as move, sobre o que são, sobre o que perderam. Tornam-se próximas,

talvez precisamente por serem vistas aos poucos - pois o que é a vida senão uma

sucessão de fragmentos entrelaçados na memória?

Também fascinante é a forma como todos estes pequenos momentos estão escritos,

com a brevidade sintética de quem se cinge ao estritamente essencial. Narram-se os

factos, expressam-se os pensamentos e os sentimentos como eles são, sem grandes

elaborações nem divagações extensas. E, no entanto, este estilo sintético e preciso

abre portas a uma mais ampla complexidade: há frases que contém em si mesmas uma

verdade tão vasta que é quase incrível que tenham mesmo tão poucas palavras. E

essas frases que ficam na memória, associadas aos pedaços de vida que, no seu

conjunto, moldam um todo maior que a soma das suas partes, são o que tornam este

mundo de peculiaridades tão real - e tão estranhamente familiar.

E há tantas vidas neste livro... Talvez seja também isso que o torna tão marcante. É

que, ao acompanhar tantas personagens num livro tão breve, o autor realça

precisamente aquilo que as torna únicas - e, ao mesmo tempo, o que nelas mais

desperta interesse e empatia e solidariedade. No fundo, todas estas personagens têm

algo de estranho - mas do tipo de estranheza que existe nos recantos mais cruéis da

realidade. E, sendo certo que a vida não acaba no fim de uma história, também a

história destas personagens não acaba: ficam coisas por dizer, futuros possíveis, bons

ou maus. E este ponto de equilíbrio onde tudo termina - pondo fim a algumas coisas,

mas deixando tantas outras por dizer - faz um estranho sentido nesta história em que

todas as vidas são, por natureza, incompletas.

No fim, fica uma imagem intrigante: a de um livro que marca tanto por

acontecimentos específicos como pela teia de sensações e de impressões que tece em

torno deles. E é isto, aliás, que torna esta leitura tão memorável: um percurso que se

faz vida nas pequenas coisas - e que continua no pensamento depois do fim.