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Rua Gay-Lussac, 10 de

maio de 1968Fonte das imagens: October n. 91,

Cambridge: MIT Press, 2000

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Afinal de contas, fora a poesia modernados últimos 100 anos que nos trouxeraali. Éramos um pequeno grupo que pen-sava ser necessário aplicar seu programana realidade e mais nada dever fazer.

Guy Debord, Panégyrique1

In Girum Imus Nocte et Consumimur Igni(Andamos em círculos pela noite e somosconsumidos pelo fogo) – o longo palíndromoutilizado por Guy Debord como título deum de seus últimos filmes também serve paracaracterizar a tática de jogo da InternacionalSituacionista.2 Como o grande historiadorholandês Johan Huizinga observou – em umlivro que foi fundamental para o grupo, mascujo papel tem sido completamente ignora-do em recentes textos históricos –, opalíndromo é de fato antiga forma lúdica que,como a charada e o enigma, “ultrapassa qual-quer possível distinção entre brincadeira eseriedade”.3 Debord parece consciente dis-so quando observa, de modo quase cifrado,que seu título “é construído letra por letra,como um labirinto cuja saída não se podeachar, de tal maneira que reproduz perfeita-mente a forma e o conteúdo da perdição” –observação passível de diversas interpreta-

Táticas de jogo da Internacional Situacionista

Libero Andreotti

O autor examina o elemento de jogo na atuação de três protagonistas da Interna-

cional Situacionista, movimento que alcançou lugar vital na arte e política nos últi-

mos 40 anos. O espírito iconoclasta do grupo é mais bem compreendido no fenô-

meno de “perder-se no jogo” que Johan Huizinga descreveu muito bem. Guy Debord,

Giuseppe Gallizio e Constant Nieuwenhuys radicalizaram a teoria do jogo de Huizinga

numa ética revolucionária que eliminou efetivamente qualquer distinção entre brin-

cadeira e seriedade ou entre arte e cotidiano.

Internacional Situacionista; Guy Debord (1931-1994); Pinot Gallizio (1902-1964); Constant Nieuwenhuys (1920-2005).

ções, mas que remete ao fenômeno de “seperder no jogo”, tão bem descrito pelo pró-prio Huizinga.4 Certamente, de todos osdétournements5 pelos quais Debord é –com justiça, aliás – famoso, esse parece sero mais adequado para transmitir o espíritoiconoclasta da Internacional Situacionista (da-qui em diante IS), movimento de grandeambição e influência, cujas reflexões sobre acidade, o espetáculo e o cotidiano lhe têmgarantido lugar vital na arte e na política dosúltimos 40 anos.

Neste texto gostaria de explorar o elemen-to lúdico nas atividades de três protagonis-tas-chave na época da fundação do grupo,1957, a saber o próprio Debord, o artistaambiental italiano Giuseppe Gallizio e o pin-tor holandês Constantin Nieuwenhuys, cujosmodelos para uma cidade no futuro cha-mada Nova Babilônia expressavam clara-mente os princípios de “urbanismo unitá-rio” inerentes ao grupo. Mais especificamen-te, e no espírito do palíndromo, eu gostariade mostrar como cada um deles radicalizoua teoria do jogo de Huizinga em ética revo-lucionária que efetivamente aboliu qualquerdistinção entre brincadeira e seriedade ouentre arte e cotidiano.

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Lettrist International

leaflet, 1954

Uma das formas favoritas de jogo utilizadaspela IS e pela organização que a precedeu, aInternacional Letrista, era a arte de vagar peloespaço urbano, denominada dérive,6 cujoestado de espírito está bem sintetizado nosignificado sombriamente romântico dopalíndromo de Debord. Os precedentesculturais mais próximos da dérive teriam sidoas excursões dadaístas e surrealistas organi-zadas por Breton em 1925, como aquela feitaà Igreja de Saint-Julien-le-Pauvre. Entretan-to, Debord teve o cuidado de distinguir adérive de tais precedentes, enfatizando seucaráter ativo como “um modo de compor-tamento experimental” que se conectariaessencialmente ao Romantismo, ao Barrocoe à era da cavalaria, com sua tradição da longaviagem empreendida com espírito de aven-tura e descoberta. Em Paris esse tipo deperambulação urbana era característico daboemia da Rive Gauche, onde a arte de va-gar era uma das maneiras prediletas de culti-var o sentimento de se estar “juntos separa-dos” que Huizinga descreveu como caracte-rístico do jogo.7 Um registro vívido dessetempo e lugar é o livro de fotografias de EdVan der Elsken, que coleta alguns dos refúgi-os favoritos dos letristas.8 Mais tarde algu-mas dessas imagens reapareceriam na poe-sia e nos filmes de Debord.

A consciência de explorar maneiras de viverradicalmente externas à ética capitalista dotrabalho era central para a dérive, como vis-to no famoso grafite de incitação Ne travaillezjamais (Não trabalhe nunca), feito porDebord em 1953 e reproduzido no jornalda IS com a legenda “programa mínimo domovimento situacionista”. Outro exemplopreciso dessa filosofia de rua é o panfletoletrista que mostra Debord e seus amigosao lado do slogan revolucionário de Saint-Just, La Guerre de la Liberté doit être faiteavec Colère (A Guerra pela Liberdade Deveser Travada com Raiva). Ambos remetemà exaltada descrição de Huizinga sobre os

sofistas itinerantes da Roma Antiga, cujapropaganda sediciosa levaria o imperadorVespasiano a banir todos os filósofos dacidade.9

Fonte-chave de informação sobre a dérive éum livro de poesia intitulado Mémoires, com-posto por Debord e pelo pintor Asger Jornem 1957, que evocava as atividades da In-ternacional Letrista.10 A técnica predominan-te, constituída de respingos e manchas decor de Jorn, sobre os quais Debord espalha-va seus próprios fragmentos literários e vi-suais, era evidentemente planejada paraminimizar a quantidade de trabalho e arte-sanato característicos de um trabalho “sé-rio”. Nesse sentido Mémoires é um traba-lho radicalmente antiprodutivista ou, melhor,um antitrabalho, cuja forma discursivaantivocal1 1 refletia a ênfase da dérive na açãocoletiva (deve ser observado que Jorn já haviaexperimentado técnicas similares em suaspalavras-pinturas com Christian Dotremont,no final dos anos 40, e que, entre os traba-lhos dos Letristas Gil Wolman e Isidore Isouencontra-se algo similar, a carta-poesia12 ).

A eloqüente improvisação com fragmentosde texto que compõem a primeira página –na qual alusões a alguns dos temas favoritosde Debord, tais como a passagem do tem-po, amor, guerra e embriaguez,13 são subli-nhadas pela espirituosa declaração pro-tocolar “je vais quand même agiter des

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Guy Debord, The

Naked City, 1957

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évènements et émettre des considérations”(de qualquer maneira, vou discutir aconteci-mentos e emitir considerações) – é típicado tom lírico que flutua constantementeentre farsa e seriedade, descrito por Huizingacomo característico do espírito do jogo.

Pelo uso de imagens recicladas, as páginasseguintes de Mémoires exemplificavam umasegunda tática de jogo teorizada por Debordno início dos anos 50: détournement ou apilhagem criativa de elementos preexisten-tes.14 Mais ou menos na metade do livro, nooutono de 1953, fragmentos de mapas ur-banos começam a aparecer. Numa página,várias partes do mapa de Paris são muitoprovavelmente ligadas ao relato de umadérive publicado no jornal belga Les LèvresNues.15 Em outra, o foco é a região daConstrescarpe,16 celebrada pelos letristas porsua “aptidão para brincar e esquecer”.17

Ambas as páginas exemplificam a propen-são à criação de mitos descrita por Huizingacomo típica do jogo.18 Nela se inclui a ten-dência a exagerar e enfeitar a experiênciareal e imprimir personalidade aos ambien-tes, como visto na expressão “une villeflottante”. (uma cidade flutuante), provávelalusão à Île de la Cité.19 A tendência a exa-gerar o autolouvor é também característi-ca, como na frase “Rien ne s’arrête pournous. C’est l’état qui nous est naturel ... nousbrûlons de désir de trouver” (nada nos de-

tém, esse é o nosso estado natural... nós ar-demos de desejo de encontrar), assim comoa pretensão de serem heróis e guerreiros.De fato, um dos traços mais marcantes des-sas páginas é o tom agonístico, como nasobreposição de um mapa da região deConstrescarpe a uma superfície idêntica inver-tida representando uma cena de batalha nasAméricas, os fragmentos literários incluindo“le siège périlleux” (o cerco perigoso) e “Onbalayerait le vieux monde” (varreríamos ovelho mundo), com outros comentários queprovavelmente se referem aos projetos dereforma urbana denunciados pelos Letristas.20

O tom de guerra é, de fato, um modo dediscurso recorrente em Mémoires.21

As psicogeografias de Paris, os mais conhe-cidos e reproduzidos trabalhos de Debord,também datam desse período e pertencemà família de Mémoires, devendo ser analisa-das sob o mesmo viés. Ambas promovemoscilação entre registros espaciais e tempo-rais: os fragmentos isolados formam entida-des completas e fechadas, enquanto osvetores vermelhos, muito como os respin-gos de Jorn, sugerem forças de movi-mento e atração “passional”. Esse tipo detemporalização do espaço era tática-chavedo Situacionismo e qualidade característicada dérive, que procurava resistir à tendênciareificadora de espacializar o meio físico pelapostura antiobjetivante do jogador.22 As im-plicações eróticas dos dois títulos, dos quaiso segundo, Discours sur les Passions del’Amour, foi apropriado de um famosoensaio atribuído a Pascal, sublinhavam airredutibilidade da dérive, e do prazer emgeral, em relação aos imperativosprodutivistas da vida burguesa.

Uma fonte que Debord oferecia para adérive era Carte du pays de Tendre, repre-sentação imaginária da Terra do Amor, ar-quitetada como um passatempo aristocráti-co para Madeleine de Scudéry, nobre do

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século 17. Como Cidade Nua, tambémmapeava um “terreno passional” – o temaerótico sugerido por sua estranha semelhan-ça aos órgãos reprodutores femininos.23 Nocaso de Debord, entretanto, a elaboradanarrativa que acompanha Carte du pays deTendre é substituída pela necessidade mui-to mais realística de fazer o levantamentode localidades urbanas concretas, incluindo,como ele diria, “seus principais pontos depassagem, saídas e defesas.24

Essa revolucionária idéia de prazer era umtraço constituinte da “pesquisa” psicogeo-gráfica que esses mapas deviam supostamen-te ilustrar, os quais, como observado porKristin Ross, registravam “cuidadoso levan-tamento dos espaços residuais e intersticiaisda cidade pela procura sistemática de ele-mentos passíveis de serem protegidos daação da cultura dominante, podendo ser,uma vez isolados, reutilizados numa recons-trução utópica do espaço social”.25 A com-preensão do espaço da cidade como terre-no controvertido em que novas formas devida não tinham lugar próprio e só se po-deriam afirmar de modo provisório tam-bém pode ser observada no folheto queanunciava “Um Novo Teatro de Operaçõesna Cultura”, que justapunha novos métodosde vigilância aérea militar a uma sucessão determos programáticos relacionados com opropósito mais elevado de “construir situa-ções”. Aqui faz-se necessário mencionar astransformações sociopolíticas de Paris duran-te esses anos, que testemunharam o aumen-to no policiamento da cidade sob De Gaullee o fenômeno mais abrangente conhecidocomo “colonização interna”, visto no deslo-camento massivo das populações pobrespara novos cinturões de casas popularesdesagradavelmente funcionalistas a uma dis-tância segura do Centro da cidade. Não poracaso, muitas das áreas incluídas naspsicogeografias de Debord eram locais debatalha política, entre elas a vizinhança pre-

dominantemente norte-africana de LaHuchette, quartel-general da IS.

A primeira tentativa real de construir umasituação foi Caverna antimatéria, de PinotGallizio. Feita inteiramente das chamadas Pin-turas Industriais de Gallizio – longos rolosde tecido pintados coletivamente com oauxílio de rudimentares “máquinas de pin-tar” e vendidos a metro na praça do merca-do – esse microambiente completo foi de-senhado em colaboração com Debord, queteve papel maior do que geralmente se pre-sume (de fato, o evento foi orquestrado porDebord com Gallizio, às vezes espectadorincompreensivo). O propósito de Cavernaera fundir arte e vida diária num movimentocomplementar à elevação das realidadescotidianas do espaço urbano empreendidapela dérive. A origem dessa idéia era, maisuma vez, a descrição de Huizinga sobre a“supervalorização” da arte, que ele via comoa principal causa de seu crescentedistanciamento das preocupações cotidia-nas.26 Caverna propunha processo opostode “desvalorização”, imersão da arte no co-tidiano, simbolizada pelo uso da pinturacomo vestuário e decoração urbana. O fatode Gallizio ser um amador que improvisavatanto na área de arqueologia quanto na dequímica só servia para intensificar o ataquede Caverna ao profissionalismo e ao espaçoinstitucionalizado da galeria de arte.

O evento inaugural lembrava uma demons-tração científica prematura, com apresenta-ções de explosões que expunham as possi-bilidades pirotécnicas das resinas recente-mente inventadas por Gallizio. O tom lúdicode todo o processo também podia ser vistono convite, que prometia ilustrar “o encon-tro entre matéria e antimatéria”, e cujo tompseudocientífico remetia a Huizinga e suadefinição do elemento lúdico da ciênciacomo tendência a teorizações “perigosas”.27

Nesse caso, a referência era às teoriasantimatéria desenvolvidas pelo físico inglês

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Guy Debord e

Asger Jorn, página de

Mémoires, 1959

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Paul Adrien-Maurice Dirac e o matemáticoitaliano Enrico Severi. O tom neofuturista deCaverna também estava presente no uso demáquinas sonoras que lançavam um somagudo quando alguém se aproximava dasparedes da sala, assim como na utilização deperfumes e luzes em movimento. A rever-são lúdica da tecnologia, sugerida pela pró-pria idéia de pintura industrial, refletia fépositiva no potencial liberador da indústria,bastante similar à descrição de Benjamin so-bre a perda de aura como resultado da re-produção mecânica. De qualquer forma, opoder e o destino da tecnologia de se tor-nar um instrumento para a emancipação dohomem eram afirmados contra a realidadede seu uso para fins opostos. De acordo coma colocação de Debord, “esta sociedade émovida por forças absurdas que tendem,inconscientemente, a satisfazer suas verda-deiras necessidades”.28

O ataque de Caverna à instituição da galeriade arte teria ido mais longe e dado talvezuma virada imprevisível, se a IS tivesse tidopermissão para montar a exposição coletivaplanejada para o Stedelijk Museum deAmsterdam, alguns meses depois. A instala-ção, como pode ser visto no diagrama queé a única evidência sobrevivente, teria trans-formado uma das alas do museu em pista

de obstáculos com duasmilhas de comprimento,terminando em um tú-nel de pintura industrial.Ao mesmo tempo, umasérie de dérives opera-cionais deveriam ocorrerde fato na área central deAmsterdam, onde equi-pes de situacionistasperambulariam durantetrês dias, comunicando-se entre si e com o mu-seu por transmissoresde rádio.29

Contudo, em nenhum outro lugar a mira-gem de uma civilização liberada do trabalhoera mais evidente do que em Nova Babilônia,de Constant, cujo título, atribuído a Debord,evocava tanto a abundância material possi-bilitada pela automação, como a moralidadeanticristã que motivava o grupo.30 Essa ten-tativa única de pôr em prática os contornostécnicos, estruturais e sociopolíticos de umaarquitetura situacionista teve sua origem naevolução do próprio Constant de pintor aescultor. Esse processo começou com a gran-de e impressionante Ambience de Jeu (1954),em que houve, pela primeira vez, um movi-mento para o plano horizontal, passando adirigir-se a questões do espaço tridimensional,continuou com uma série de explorações ge-ométricas como Structure with Curved Pla-nes (1954), cujos suportes de canto desloca-dos já indicavam uma procura de leveza e di-namismo, e culminou na série dos dinâmicostrabalhos neoconstrutivistas como EndessLine (1958) e Nebulose Méchanique (1958),cujo sistema tênsil de cabos e elementos deaço ofereceu a sintaxe básica para a primei-ra aplicação prática de Constant em NomadicEncampment (1958). Este último era umabrigo flexível com elementos leves e por-táteis que supostamente deveria servir a umacomunidade cigana da qual Constant se apro-ximara durante uma estada no norte da Itá-lia. Dali ele partiu diretamente para o de-senvolvimento de suas grandes estruturas demetal e plexiglas, elevadas do chão e usan-do sistema de construção multifuncional epotencialmente expansível. O primeiro foichamado Yellow Sector, título que reflete aaversão de Constant às conotações maiscaseiras e burguesas de “bairro”. Como amaioria dos outros modelos, era organizadoem torno de campos de elementos pré-fa-bricados móveis, arranjados ao acaso paraenfatizar sua adequação às necessidadesmutantes. A idéia motriz era o que Constantchamava de “princípio de desorientação” –

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deliberada confusão da hierarquia espacialatravés de obstáculos, geometrias incomple-tas e elementos translúcidos. Além de de-signar certas áreas como especialmente ade-quadas para atividades lúdicas, a ausência dequalquer zoneamento funcional ou separa-ção entre espaço público e privado refletiaum desejo de multiplicar a variabilidade doespaço – algo como o que Cedric Price fariaalguns anos depois com Fun Palace (1964),cujas paredes, bem como o chão e o teto,aliás, deveriam ser totalmente móveis.31

O exótico Oriental Sector que se seguiu qua-se imediatamente e, junto, Ambiance deDépart exploravam a amplitude dos efeitosambientais que podiam ser alcançados comessa sintaxe formal básica. Ambos os traba-lhos remetem à visão hedonista de uma cida-de situciacionista já antevista por Gilles Ivainem 1952: uma série de bairros nomeados deacordo com estados de espírito diferentes, enos quais a principal atividade de seus habi-tantes seria a contínua dérive.32 Constant des-creveu esses modelos como exemplos de“urbanismo projetado para trazer prazer”. Emsignificante ensaio intitulado Outra Cidade paraOutra Vida, ele observou:

Ansiamos por aventura. Não a encon-trando na Terra, alguns foram procurá-lana Lua. Preferimos apostar em uma mu-dança na Terra em primeiro lugar. Pro-pomos a criação de situações ali; novassituações. Contamos com a infração deleis que impedem o desenvolvimento deatividades afetivas na vida e na cultura.Estamos no amanhecer de uma nova erae já estamos tentando esboçar a ima-gem de uma vida mais feliz.33

A temática de ficção científica aqui sugeridapode ser mais bem observada na série deunidades espaciais com o formato de ostraschamadas Spatiovore, que expressamvigorosamente a vida nômade e sem raízes

dos “novos-babilônios”, livres para perambulare trocar de vizinhança à vontade. Liberadosdo trabalho, não mais atados a lugares fixosde habitação, aliviados das opressões da es-trutura familiar, os cidadãos dessa nova co-munidade estariam livres para se abandonarà dérive e ao espírito de jogo.34

Em escala maior, Nova Babilônia se apre-sentava como uma rede, descentrada e aber-ta, para a conexão de setores, sobreposta aum sistema de rápidas rotas de transporte.Como Ohrt observa, o precedente maispróximo a esse esquema teria sido o proje-to que Alison e Peter Smithson apresenta-ram na competição para o Centro de Berlimem 1958, com um arranjo semelhante deplataformas e passarelas elevadas para pe-destres. Ao mesmo tempo, Nova Babilôniadeu forma à noção de tecido urbano desen-volvida pelo filósofo Henri Lefebvre em suasutópicas descrições de uma civilização urba-na que ultrapassaria a velha distinção entrecidade e campo.

As semelhanças entre Nova Babilônia e ou-tras fantasias megaestruturais dos anos 60,tais como Archigram35 e Metabolism,36 me-recem ser investigadas. Sem dúvida NovaBabilônia compartilhava com eles fascinaçãopela tecnologia e fé positiva no poder daarquitetura como estímulo para novos com-portamentos — dois aspectos que se tor-naram alvo fácil para crítica, especialmentetendo em vista a eventual assimilação doaspecto megaestrutural pela especulaçãoimobiliária dos anos 70 e 80. Além disso,como muitos situacionistas tiveram a sagaci-dade de observar, sua própria natureza comoprefiguração romântica indicava que seriacertamente “recuperada” e transformada emmera compensação para as deficiências dasociedade.37

Contra essa eventualidade, a assim chamada“segunda fase” da IS, que se seguiu ao desli-

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gamento de Constant em maio de 1960,mostrou que outra direção se encontravaaberta para a ampliação de táticas de jogonum comportamento mais intensamentepolitizado, como pode ser observado napoesia urbana do graffitti, na arquitetura re-belde das barricadas, e no détournement deruas inteiras em maio de 68.38 Apesar de opapel da Internacional Situacionista nesteseventos ser ainda questionado, parece claroque muitos deles foram inspirados por seuespírito lúdico e sua capacidade, nas pala-vras de Huinziga, de “expressar uma formi-dável seriedade através da brincadeira”.39

Para concluir, três observações de carátergeral. Primeiro, a filosofia lúdica de Huizingafoi apenas um dos muitos elementos quealimentaram as práticas urbanas da Interna-cional Situacionista; deve-se também levarem consideração sua crítica à cultura de con-sumo do pós-guerra e suas múltiplas cone-xões com outras manifestações culturais epolíticas na França e em outros lugares —tema estudado por Simon Sadler, entre ou-tros, em seu livro The Situacionist City.40 Emsegundo lugar, é igualmente importanteelucidar as complexas relações da IS com ateoria marxista, especialmente a leitura deDebord sobre a teoria da reificação deLukács.41 Uma teorização da estruturafenomenológica do jogo pode, nesse senti-do, ajudar a preencher a brecha entre as cha-madas “primeira” e “segunda” fases da IS, umadivisão ainda clara e infelizmente presenteno foco excludente sobre dimensões artísti-cas ou políticas do movimento de recentestextos históricos.41 Em terceiro lugar e final-mente, é essencial enfatizar o impulsoagonístico que animava a teoria e práticasurbanas da IS. Isso sugere leitura mais amplado palíndromo latino com o qual abri esteensaio, que vá além de sua função comoforma literária lúdica e figura poética da

dérive. “Andamos em círculos pela noite esomos consumidos pelo fogo” lembra, defato, a descrição clássica de Renato Poggiolido momento agonístico da vanguarda, oponto de auto-imolação alcançado quando,como ele coloca, “em sua ansiedade febrilde sempre ir além”, alcança um ponto emque ignora até mesmo sua própria “catás-trofe e perdição” acolhendo essa auto-ruínacomo um “sacrifício obscuro para o sucessode movimentos futuros”.43 Esse ponto sópoderia ser mais bem colocado pelo pró-prio Debord, que escreveu, em outra decla-ração que recorre à forma cíclica dopalíndromo: “todas as revoluções entram nahistória, e a história não rejeita nenhumadelas; e os rios da revolução voltam a suaorigem, para fluir uma vez mais”.44

Libero Andreotti é arquiteto, doutor em história da arte eda arquitetura, professor no Georgia Institute of Technology.Com Xavier Costa, foi curador da exposição Situacionistas(1996-1997), no Museu de Arte Contemporânea de Bar-celona, publicando o catálogo Situacionistas. Arte, política,

urbanismo e a antologia Teoría de la deriva y otros textos

situacionistas sobre la ciudad (Barcelona: Actar, 1996). Seusartigos sobre arte e arquitetura do século 20 foram publi-cados em October, Architectural Theory Review, Journal

of Architectural Education e Lotus International. Organi-zou recentemente o livro Le grand jeu à venir: textes

situationnistes sur la ville (Paris: Editions de la Villette, 2008).

Este texto foi originalmente publicado emOctober n. 91, inverno de 2000: 36-58, ten-do sua primeira versão sido apresentada naconferência Reconceptualizind the ModernArchitectural Culture 1945-1968, na HarvardGraduate School of Design, em 24 e 25 deabril de 1998.

Copyright (C) October Magazine, Ltd. eMassachusetts Institute of Technology

Tradução: Ana Linnemann, Ana Cavalcantie Rodrigo Krul

Revisão Técnica: Simone Michelin

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Notas

1 Debord, Guy. Panégyrique. Paris: Gérard Lebovici,1989. Existe edição em português (São Paulo:Conrad, 2002). (N.T)

2 O palíndromo é freqüentemente atribuído ao orador ro-mano Sidonius Apollinare, que o utilizou para descreveros arabescos formados no ar pelas mariposas, insetosnotoriamente cegos, circulando à noite ao redor da cha-ma de uma vela. Os últimos escritos sobre a InternationalSituacionista são muito numerosos para este espaço; omelhor texto de referência geral em inglês é Ken Knabb(ed.). Situationist International Anthology. Berkeley:Bureau of Public Secrets, 1990. Sobre as práticas urba-nas da IS, consultar também Thomas Levin. Geopoliticsof Hibernation, in Libero Andreotti e Xavier Costa (eds.).Situationists: Art, Politics, Urbanism. Barcelona: Actar,1996: 111-63.

3 No original “cuts clean across any possible distinctionbetween play and seriousness” (N.T.). Johan Huizinga.Homo Ludens: A Study of the Play Element in Culture.Boston: Beacon Press, 1990: 110. Embora a importânciados textos de Huizinga para a IS seja frequentementemencionada, nenhum esforço foi ainda feito paraexaminá-la detalhadamente. Dois livros recentes sobrea IS, um de Sadie Plant (The Most Radical Gesture: The

Situationist International in a Postmodern Age. Londrese Nova York: Routledge, 1992) e outro de Anselm Jappe(Debord. Pescara: Edizioni Tracce, 1992), por exemplo,não mencionam Huizinga, uma das poucas fontes reco-nhecidas da IS. Conferir especialmente o texto de GuyDebord Architecture and Play, republicado em LiberoAndreotti e Xavier Costa (eds.). Theory of the Dérive

and Other Situationist Writings on the City. Barcelona:Actar, 1996: 53-54. De acordo com Debord, “o idealis-mo latente e a estrita compreensão sociológica das for-mas superiores de jogo [em Huizinga] não diminuem ovalor básico de sua obra”. De fato, Debord declara que“seria inútil querer encontrar algum outro motivo portrás de nossas teorias da arquitetura e da deriva, alémde uma paixão pelo jogo”, acrescentando que “o quedevemos fazer agora é mudar as regras do jogo, substi-tuindo convenções arbitrárias por regras com base mo-ral”. Um ano antes de esse artigo aparecer em Potlatch

20, maio de 1955, André Breton elogiou o trabalho deHuizinga em Medium 2 e 3 (fevereiro e maio de 1954)e o vinculou a vários jogos surrealistas. Consultar MirellaBandini. La vertigine del moderno: percorsi surrealisti.Rome: Officina Edizioni, 1986, 152p.

4 Homo Ludens: 12. Sugestiva discussão da posiçãoantiobjetivadora de jogador e jogo de “mediação totalda forma e conteúdo” encontra-se em Hans GeorgGadamer. Truth and Method. Nova York: Crossroad,1986: 91-113. Consultar também Roger Caillois (Les jeux

et les homes – le masque et le vertige. Paris: Gallimard,1967) e Giorgio Agamben (In Playland: Reflections onHistory and Play, in Infancy and History: Essays on the

Destruction of Experience. Londres e Nova York: Ver-so, 1993: 65-88).

5 No original em francês. (N.T.)

6 No original em francês. (N.T.)

7 Homo Ludens: 12.

8 Ed Van der Elsken e Andre Deutsch. Love on the Left

Bank. Haarlem: Verenigde Drukkerijen, s.d. Consultartambém as lembranças de um membro da IL, Jean-MichelMension, em La Tribu. Paris: Allia, 1999.

9 Homo Ludens: 153.

10 Guy Debord e Asger Jorn. Mémoires. Paris: Jean-JacquesPauvert aux Belles Lettres, 1993.

11 No original “antiphonal” (N.T).

12 No original “letter-poetry” (N.T.).

13 “Me souvenir de toi? oui, je veux”, “Le soir, Barbara”, “pleinede discorde et d’épouvante”, “il s’agit d’un sujetprofondément imprégné d’alcool”. (“Lembrar-me de ti?Sim, eu quero”, “ À noite, Barbara”, “cheia de discórdia ede espanto”, “trata-se de um assunto/sujeito profunda-mente impregnado de álcool”)

14 Debord e Wolman, Methods of Détournement, emKnabb: 8, e Détournement as Negation and Prelude,em Internationale Situationniste 3, dezembro de 1959,republicado em Knabb: 55-56.

15 Essa foi uma semana de deriva em torno do Natal de1953. Todos os locais mencionados no relato (incluin-do a Île de la Cité, Les Halles, a loja de departamentosSamaritaine, e a Contrescarpe) são mostrados nessapágina. Consultar Two Accounts of Dérive in Theory of

the Dérive: 28-32.

16 A praça da Contrescarpe, em Paris, localiza-se na proxi-midade do Panthéon e da Rua Mouffetard, no QuartierLatin. (N.T.)

17 Position du Continent Contrescarpe in Les Lèvres Nues,9, novembro de 1956: 40.

18 Consultar especialmente The Elements of Mythopoiesis,Homo Ludens: 136-46.

19 Une Ville Flottante é também o título de um livro de JulesVerne sobre o barco a vapor utilizado para lançar oscabos telegráficos sobre o Atlântico em 1867.

20 Position du Continent Constrescarpe : 40.

21 Debord também criou um jogo de tabuleiro intitulado LeJeu de la Guerre (Paris: Société des Jeux Stratégiques et

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Historiques, 1977). Consultar igualmente suas reflexõessobre a guerra em Commentaires sur la société du

spectacle. Paris: Editions Gérard Lebovici, 1988.

22 Consultar Joseph Gabel. False Consciousness: An Essay on

Reification. Bristol: Blackwell, 1975: 148 passim.; e GeorgLukács. History and Class Consciousness: Studies in Marxist

Dialectics. Londres: Merlin Press, 1990: 89-90.

23 Em Les Lèvres Nues 5, junho de 1955: 28, um escritoranônimo observa a similaridade, a qual deveria ter sidoconsistente com a filosofia naturalista de Madeleine deScudéry. Em Carte du pays de Tendre, o Rio da Inclina-ção conduz da cidade da Brotação da Amizade ao des-conhecido Território do Amor, acima. Separa a Terrada Razão à direita, dominada pelo Lago da Indiferença,da Terra da Paixão, à esquerda, prolongando-se além,em direção à Floresta da Loucura. Sobre a Cidade Nua,consultar também os perceptivos comentários de TomMacDonough em Situationist Space, October 67, inver-no de 1994. Outra provável fonte para a Cidade Nuapoderia ter sido a novela erótica de Jens August Schade(Des êtres se rencontrent et une douce musique s’élève

dans leurs coeurs. Paris: Editions Gérard Lebovici, 1991)descrevendo as inúteis andanças do libertino, apaixo-nando-se e se desapaixonando intermitentemente, in-capaz de manter um rumo fixo. Publicado pela primeiravez em francês em 1947, o romance de Schade foi am-plamente lido no círculo de Debord.

24 Theory of the Dérive, republicada em Theory of the

Dérive: 26.

25 French Quotidian, em Lynn Gumpert (ed.). The Art of the

Everyday: The Quotidian in Postwar French Culture. NovaYork e Londres: New York University Press, 1977: 22.

26 Homo Ludens: 158-72.

27 Ibid.: 203-4. Consultar também Mirella Bandini (L’estetico

e il politico: da Cobra all’Internazionale Situazionista 1948-

1957. Roma: Officina Edizioni, 1977: 170-81) e as mui-tas cartas de Debord para Gallizio no arquivo Gallizio,Museo Civico di Torino.

28 Consultar Architecture and Play: 53.

29 Consultar Die Welt als labyrinth in Internationale

Situationniste 4, junho de 1960: 5-7.

30 Sobre Nova Babilônia, consultar Jean-Clarence Lambert.New Babylon Constant: Art et Utopie. Paris: Cercle d’Art,1997; e Mark Wigley. Constant’s New Babylon: The

Hyper-architecture of Desire. Rotterdam: 010 Publishers,1998. Como observa Roberto Ohrt em Phantom

Avantgarde, Eine Geschichte der Situationistischen

Internationale und der modernen Kunst (Hamburgo:Edition Nautilus, 1990), o título foi também uma prová-vel referência ao filme de Kosinzev e Trauberg, Nowi

Wawilon, de 1929, sobre a Comuna de Paris, momento

de transformação utópica que foi apresentado pela IScomo “a única realização de um urbanismo revolucioná-rio até então”. Consultar Internationale Situationniste 12,setembro de 1969: 110.

31 Consultar Levin, Geopolitics of Hibernation: 128.

32 Formulary for a New Urbanism, in Theory of the

Dérive: 14-17.

33 Theory of the Dérive: 92.

34 Consultar Constant, La Révolte de l’Homo Ludens, inNew Babylon Constant: 127-58.

35 Archigram – grupo de arquitetos ingleses formado em1961 com base na Architectural Association School ofArchitecture, em Londres. Suas propostas inspiravam-se na tecnologia como forma de expressão para criarprojetos hipotéticos, na tentativa de resgatar as premis-sas fundamentais da arquitetura moderna (Cf. Archigramn.1, 1961). Seus principais membros foram Peter Cook,Warren Chalk, Ron Herron, Dennis Crompton, MichaelWebb e David Greene [http://pt.wikipedia.org]. (N.T.)

36 Metabolism – grupo de arquitetos e urbanistas japonesesformado em 1959. Sua visão de uma cidade do futurohabitada pela sociedade de massa foi caracterizada pelouso de amplas estruturas flexíveis e extensíveis que per-mitissem um processo de crescimento orgânico. [http://en.wikipedia.org]. (N.T.)

37 Consultar particularmente Critique de l’Urbanisme,Internationale Situationniste 6, agosto de 1961: 6; AndNow, the SI, Internationale Situationniste 4, agosto de1964), republicado em Knabb: 135-36. Outras críticasde Constant estão em Révolte et récupération enHollande, Internationale Situationniste 11, outubro de1967: 66, e L’avant-garde de la présence, Internationale

Situationniste 8, janeiro de 1963: 17.

38 Sobre a IS e Maio de 68, consultar René Vienet. Enragés et

situationnistes dans le mouvement des occupations. Pa-ris: Gallimard, 1968; e Pascal Dumontier. Les Situationnistes

et Mai 68: théorie et pratique de la révolution (1966-

1972). Paris: Editions Gérard Lebovici, 1990.

39 Homo Ludens: 145.

40 Simon Sadler. The Situationist City. Cambridge: MITPress, 1998.

41 Consultar A. Jappe, Debord: 30-48.

42 Consultar meu Leaving the Twentieth Century: TheInternationale Situationniste, in Journal of Architectural

Education, fevereiro de 1996.

43 Renato Poggioli. The Theory of the Avant-Garde.Cambridge e Londres: Belknap Press of HarvardUniversity Press, 1968: 26.

44 Panegyric, v. I. Londres e Nova York: Verso, 1991: 25.

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