SOARES, Carmen. Nomos, Anomia e Thanatos Nas Histórias de Herôdoto. (Humanitas 59, 2007)

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Artigo: SOARES, Carmen. Nomos, Anomia e Thanatos Nas Histórias de Herôdoto (Humanitas 59, 2007)

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    Nomos, Anomia e Thanatos nas histrias de HerdotoAutor(es): Soares, CarmenPublicado por: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Instituto de EstudosClssicosURLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/27837

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  • Vol. LIX

    IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS

  • HVMANITASVol. LVIX MMVII

  • NOMOS, E THANATOS NAS HISTRIAS DE HERDOTO*

    Carmen SoaresUniversidade de Coimbra

    Abstract: Nomos, Anomia and Thanatos in the Histones of Herodotus. In the Histones of Herodotus the word nomos occurs several times. It means a code of values and attitudes, responsible for the creation of a cosmic order. Breaking those rules is to produce acts known as anomia or acts qualified by anomoi and, in most cases, this implies the severest punishment of the transgressor, i. e., death (thanatos).

    By combining these three notions (nomos; anomia and thanatos), the historian from Halicamassos confers some sense of unity to his work. In fact, in all situations the transgressor is inevitably punished. This narrative pattern, being common to dramatic discourse, underlines the idea that Herodotus' world vision is based on principles similar to the dramatic poetry of his own time.

    Key-words: rule, death, breaking-rules, hapiness, Herodotus, Cambyses, Croesus, Solon.

    Reflectir, nos alvores do sc. XXI, sobre palavras que contriburam para a fundao de conceitos que tm estruturado a forma de o homem pensar o mundo desde a Grcia Antiga aos nossos dias uma tarefa a que, na qualidade de docentes e investigadores em dilogo com a sociedade em

    * Este trabalho corresponde, com ajustes pontuais, verso portuguesa da conferncia apresentada em espanhol no X Encuentro Internacional de Estudios Clsicos: "La palabra fundante" (4-7 de Setembro de 2006), Faculdade de Letras da Universidade do Egeu (Izmir, Turquia).

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    que vivemos, somos chamados diariamente. Habitumo-nos, pois, desde muito cedo - desde que despertmos para a descoberta dos estudos filo- lgicos, histricos e/ou filosficos - a determos a nossa ateno em e a rodearmos dos maiores cuidados algumas palavras.

    O que nos tem feito eleger umas para objectos privilegiados da nossa reflexo e deixar outras na sombra? Gostos pessoais, sem dvida, mas, mais do que a tirania das preferncias que desenham a nossa singularidade de indivduos, as escolhas que temos feito so, em minha opinio, impostas pelo papel fulcral que os conceitos que encerram ocupam na histria da huma- nidade. O relevo atribudo a determinadas palavras/ conceitos, os prismas sobre os quais so perspectivados tm variado ao longo dos tempos que nos separam dos Gregos do sc. V a.C., aqueles que verbalizaram e concepta- lizaram os termos que elegi para a minha reflexo: nomos, anomia e thanatos.

    Imortalizado por Ccero com o epteto distintivo de pater historiae (De legibus 1.1.5.), Herdoto fascina os amantes da literatura grega antiga (grupo em que me incluo) por inmeras razes, de que me limitarei a destacar uma, por ter sido para mim a determinante na escolha das Histrias para objecto da minha dissertao de doutoramento: a forte presena no seu discurso de elementos de forma e contedo tpicos do logos dramtico1. A construo de enredos prximos das intrigas a que o pblico do teatro estava habituado, com as figuras dos poderosos monarcas brbaros e dos grandes tiranos gregos a serem confrontadas com as fraquezas da sua contingncia de mortais e com o poder supremo dos deuses e do destino, constitui, ainda hoje, factor de atraco inegvel do pblico leitor da obra de Herdoto.

    A, como na tragdia ateniense contempornea do historiador, assistimos construo das fundaes de conceitos que, no obstante as naturais metamorfoses provocadas pelo passar do tempo, ao longo da histria tm constitudo alicerces da concepo que o Homem faz do mundo. Norma (nomos), transgresso (anomia) e morte (thanatos) so as trs palavras/conceitos que enformam um trptico, a meu ver estrutural, dos nove livros das Histrias de Herdoto. Conforme procurarei sublinhar ao longo da minha anlise, a forma como o autor correlaciona todos eles permite construir uma mensagem universal e intemporal sobre a condio humana. Da a pertinncia de, volvidos mais de 2500 anos sobre a compo

    1 Obra de referncia sobre o papel que as narrativas com caractersticas dramticas desempenham nas Histrias de Herdoto continua a ser o livro deS. Flory (1987), The archaic smile of Herodotus. Detroit.

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    sio do texto do escritor da antiga Halicarnasso, procurarmos na sua escrita palavras fundacionais da nossa expresso verbal e conceptual.

    Magistralmente assinalado por W. Burkert o respeito que Herdoto demonstra face aos particularismos tnicos das diversas etnias que povoam as HistHas2, importa determo-nos na expresso lapidar com que o historiador reconheceu ao nomos o estatuto de princpio universal da organizao do mundo. Esse trecho ocorre no final do clebre passo em que Dario pergunta a alguns Gregos por que preo seriam capazes de prestar aos seus pais as honras fnebres praticadas pelos Indianos Calatinos e vice-versa. De ambas as partes recebe uma rejeio peremptria, desfecho que provoca em Herdoto a seguinte afirmao: Esta , pois, uma crena geral (tauta nenomista). Bem andou Pindaro, em meu entender, ao afirmar que "a tradio (nomon) a rainha (basilea) de todas as coisas (3. 38. 4). Neste passo, o sentido do vocbulo grego nomos, como vimos pela traduo, genrico e abrangente, correspondendo definio que dele j deu J. de Romilly ao afirmar que a palavra aplica-se a toda a espcie de regras, em todos os povos"3. O que as Histnas demonstram, atravs de numerosssimos exemplos, que Pndaro, na leitura que dele faz o historiador, d facto tinha razo4. Ou seja, o nomos constitui um elemento formador da identidade individual e colectiva dos sujeitos.

    Na verdade, o que Herdoto demonstra ao longo da sua obra que o nomos deve ser visto como princpio de causalidade histrica, uma vez

    2 Vd. "Herodot als Historiker fremder Religionen", in Hrodote et les peuples non grecs. Entretiens Hardt, 35 (Genve 1990) 1-32.

    3 Veja-se o seu artigo La loi dans la pense grecque (Paris 1971) 54. Importa, no entanto, acrescentar que o termo nomos sofreu uma transformao semntica decor- rente da prpria evoluo da plis grega. Assim, ao seu entendimento primordial, etnogrfico (abrangendo as prticas e crenas transmitidas de gerao em gerao, constitutivas do legado tico de cada povo), acrescentou-se o sentido poltico. Ou seja, ao significado costume7 juntou-se o sentido 'lei'. Num estudo em que aborda tambm estas questes, M. Giraudeau demonstrou que, em termos quantitativos, o nmero de ocorrncias em que nomos significa costume' sensivelmente o dobro daquele em que assume o sentido de lei' (vd. Les notions juridiques et sociales chez Hrodote. Etudes sur le vocabulaire, Paris 1984,51-71).

    4 A relao entre o passo de Pndaro e o texto de Herdoto j foi alvo dediversas reflexes pormenorizadas, para as quais remeto: M. Ostwald, Nomos and thebeginnings of the Athenian democracy (Oxford 1969) 37-38; Romilly, op. cit., 58-71; S. C.Humphreys, Law, custom and culture in Herodotus", Arethusa 20 (1970) 212-213.

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    que a presso que este exerce sobre as pessoas leva-as a agir de determinada maneira5. Porque se transforma em princpio de conformidade, orientando a actuao humana, o nomos est na origem de comportamentos caracters ticos, logo previsveis, entre individuos que se regem pelo mesmo cdigo de regras. Esta concepo de urna dinmica intrnseca ao nomos, capaz de permitir explicar determinados actos, adquire particular importancia do ponto de vista do logos das Histnas, pois, como bem observou S. C. Humphreys, esta urna das maneiras de Herdoto lidar com o eterno problema do historiador: como fazer o imprevisvel parecer compreensvel"6.

    Contudo, no obstante o papel modelador exercido pelo nomos sobre os individuos, diversas so as situaes em que aqueles o desrespeitam, incorrendo naquilo a que os Gregos chamaram de anomia. O facto de, no extenso texto de Herdoto, encontrarmos apenas duas ocorrncias deste substantivo, nenhuma delas, alis, com o significado 'desrespeito pelos costumes', no deve ser entendido como indicador da pouca importncia que a temtica da transgresso das normas assume na construo da obra7. Antes pelo contrrio! Conforme tive ocasio de tratar longamente num estudo mais desenvolvido sobre o papel determinante dos actos de anomia em muitas das mortes relatadas nas HistHas, vasta a galeria de autores de infraces ao nomos que pagam com a vida as suas faltas. A ttulo meramente exemplificativo, permito-me destacar apenas figuras que na morte expiam vrias anomiai, por isso mesmo passveis de qualificar de verdadeiros hybristai. So eles: os soberanos persas, Ciro e Cambises; o strapa Oretes; os tiranos gregos, Periandro de Corinto e Polcrates de Samos; o rei de Esparta, Cleomenes I8.

    5 J. A. S. Evans destacou a importncia que o nomos tem na obra de Herdoto enquanto princpio de causalidade histrica, no seu estudo "Despotes Nomos", Athenaeum 43 (1965) 142-153.

    6 Op. cit., 218.7 Em ambos os passos (1. 96. 2 e 1. 97. 2), o termo anomia cinge-se ao seu

    sentido jurdico, devendo ser traduzido por injustia'. Pelo que no dicionrio Greek- -English Lexikon. With a revised supplement de H. G. Liddell e R. Scott (Oxford 1996) o antnimo registado para o termo seja precisamente dikaiosyne.

    8 No cap. III do meu livro A morte em Herdoto: valores universais e particu- larismos tnicos. Fundao Calouste Gulbenkian e Fundao para a Cincia e Tecno- logia (Lisboa 2003), intitulado "kaks thnatos: morte e anomia" (pp. 239-463), analisei em pormenor as figuras referidas (pp. 399-463).

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    Mas na primeira short story" da obra (para utilizar a termi- nologia de T. Long9), dedicada intriga palaciana que esteve na origem da deposio de Candaules e ascenso de Giges ao trono da Ldia, que o historiador d corpo a um drama cuja encenao se baseia no dilogo entre os trs conceitos nomos, anomia e thanatos. Note-se que, se somarmos prpria localizao deste quadro entre os captulos de abertura do Livro I das Histrias (caps. 8-12) o facto de nele estarem contidos elementos que sero repetidos nas narraes seguintes das vidas dos monarcas brbaros, percebemos de imediato que a fabula de Candaules e Giges encerra um evidente valor programtico. Ou seja, aqui encontramos as linhas mestras do pensamento tico que atravessa as Histrias e lhes confere unidade.

    De facto, a actuao das personagens envolvidas nesta intriga pala- ciana gira em torno de um princpio do cdigo de honra comum aos Ldios e a quase todos os Brbaros. Antes de considerarmos o princpio em si, importa esclarecer que a funo de um cdigo reside, precisamente, em determinar um conjunto de regras. S respeitando esses nomoi, o indivduo constri a sua imagem social de pessoa honrada, ou seja, possuidora daquilo a que os Gregos chamavam a time. Note-se que, no obstante nenhuma das palavras usadas por Herdoto na narrao do episdio em apreo corres- ponder s evocadas nomos e time, ambos os termos e respectivos conceitos esto indirectamente implicados na histria, uma vez que o cenrio dese- nhado corporiza os seus reversos, a saber: um acto de transgresso das regras (respectivamente qualificado de anomos, 1.10.3) e a vergonha de quem o comete (no texto apelidada de "grande": aischyne megale, ibidem). Porm, como comecei por adiantar, de acordo com o texto de Herdoto, a morte (thanatos) correlaciona-se com a norma (nomos) e o seu desvio (anomia). Realmente o fim de Candaules e a ameaa que paira sobre a vida de Giges ilustram que um acto de infraco ao nomos no pode ficar impune. Em suma, se no o autor moral da anomia, pelo menos o seu executor ter de morrer (apollysthai, 1. 11. 3 e 4; apothneskein, 1. 11. 3; apollenai, 1. 12. 1). No caso em anlise, estamos, assim, perante a relao directa entre anomia e morte. Os exemplos considerados mais adiante, de Telo de Atenas e dos Argivos Clobis e Bton, permitiro compreender a articulao que tambm pode haver entre nomos e morte.

    9 In Repetition and variation in the short stories of Herodotus. Beitrge zur klassichen Philologie 179 (Frankfurt am Main 1987).

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    Retomemos, ento, a forma como o historiador verbaliza o cdigo de conduta que Giges desrespeita. Como se l em 1.10. 3:

    De facto, tanto entre os Ldios como entre quase todos os outros Brbaros, ser visto nu, mesmo que se trate de um homem, tido por profunda desonra.

    Mas Candaules, qual protagonista de uma tragdia, a quem na verdade era necessrio que a desgraa sobreviesse (1. 8. 2), parece ignorar os perigos da proposta que faz ao sbdito, espreitar a rainha nua no tlamo conjugal10. O que o rei pretende to s satisfazer o capricho de ver comprovada, por um homem da sua confiana, a vaidade pessoal de possuir a mais bela das esposas (1. 8. 1). Na argumentao usada por Giges para recusar o plano engendrado pelo seu senhor, encontramos a ideia clara de que as regras estabelecidas so justas', isto , coisas belas (ta kal, 1. 8. 3) - logo, palavras que sugiram a sua transgresso s podem merecer o apelido de 'discurso insensato' (logon ouch hygiea, ibidem). O Lidio remata a sua interveno com uma splica que importa transcrever, pois a encontramos a afirmao inequvoca de que o que se lhe pede vem identificado como acto mpio, isto , 'contrrio s regras' (anomn):

    10De facto, devido arrogncia manifestada pelo facto de julgar possuir um bem que mais ningum tem, pois considerava a mulher a mais bela de todas, Candaules integra a vasta galeria de hybstai das Histnas. Da que A. Tourraix o tenha aproximado de Creso (vd. "La femme et le pouvoir chez Hrodote. Essai d' histoire des mentalits antiques", DHA 21, 1976, 370). Como j notou tambm T. Long, a principal semelhana entre a fabula de Giges e a tragdia reside em princpios filosficos e morais (op. cit., pp. 179). Permito-me destacar os seguintes, para alm do domnio exercido pelo Destino sobre os seres humanos: principio da retribuio, correspondente necessidade de os indivduos pagarem pelas culpas cometidas (Candaules salda com a vida o seu acto de anomia); a passagem de um estado de suprema felicidade para a mais profunda das desgraa (considerando-se particularmente afortunado por possuir a mais bela das esposas, o rei lidio acabar assassinado s mos do seu homem de confiana, Giges); a chamada "cegueira trgica", que, contra todos os apelos sensatez, impele a personagem para a realizao de actos insanos (surdo s apreenses de Giges quanto imponderao da empresa que lhe prope, Candaules teima em perpetrar o atentado contra o nomos estabelecido).

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    "Faz j muito tempo que os homens estabeleceram as atitudes honestas, de que preciso ter conhecimento. Entre elas h uma,, que a seguinte: que cada um observe aquilo que lhe pertence. Pela minha parte estou convencido de ser ela a mais bela das mulheres; suplico-vos, pois, que me no demandeis transgresses aos costumes (anomn)

    (1.8.4)

    De igual modo a soberana, que se apercebeu do acto de "voyeurismo" de que foi vtima, declara, na ameaa de morte com que persuade Giges a aliarselhe para eliminar o marido, a aco dos dois homens de 'actos contrrios s leis' (poiesanta ou nomizomena, 1.11. 3). Acrescente-se, ainda, que todas as trs personagens envolvidas na trama que conduziu ao assassnio de Candaules tinham conscincia do elevado preo a pagar pela violao do cdigo de valores da saciedade em que se inseriam. De acordo com este, assistia parte ofendida o direito de se vingar. No entanto, a este propsito curioso observar que, tal como sucede ainda hoje em muitos contextos, mais importante do que o "ser" o "parecer".

    Essa a impresso que transparece das palavras com que Candaules, perante as objeces de Giges em perpetrar a transgresso proposta, procura minimizar a importncia da mesma, argumentando que o importante que a mulher no veja que est a ser vista (1. 9). Tambm a actuao da rainha aponta no mesmo sentido. De facto, ao poupar a vida de Giges, mediante a contrapartida de este matar o rei, o autor moral da anomia, e de casar consigo (1. 11. 2), a soberana est a comprar o silncio de Giges. Porque Giges no deixa, efectivamente, de ser um dos autores da 'transgresso', mas que v a sua vida poupada, podemos concluir que, desde que a desonra no seja divulgada, i.e., desde que parea no existir, no h lugar para a punio esperada em semelhantes casos, a morte.

    Complementar do episdio acabado de considerar a histria de Cambises, rei dos Medo-Persas, pois aqui encontramos maximizada a relao de causa-efeito entre anomia e thanatos. As ofensas feitas aos nomoi alheios e aos do seu prprio ethnos so de tal forma significativas que at merecem da parte do historiador uma explicao do foro mdico. Conforme esclarece o autor, a demncia que imputa ao filho de Ciro fora-lhe diagnosticada nascena, sob o nome de 'mal sagrado' (3. 33)11.

    11Sobre o papel da loucura no retrato que Herdoto apresenta de Cambises, vd.: M. F. Silva, Cambises no Egipto. Crnica de um rei louco", Historiografia y

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    No que se refere aos 'desvios' s normas herdadas, realizam-se na transgresso do cdigo de valores e prticas denominados por philia.12 Habitualmente traduzida por um termo redutor em portugus, 'amizade', a palavra grega, formada da mesma raiz do substantivo philos, tem um sentido que, no essencial, corresponde a toda a relao de inter-ajuda, quer esta seja motivada por afectos ou simples pragmatismo. Os ataques de Cambises queles que devia proteger e de quem espera apoio aparecem, antes de mais, no crculo mais estreito das suas relaes. De facto, no seio da famlia mais prxima que Cambises inicia um percurso de eliminao dos que, sob o efeito da sua mania, considera rivais. Os primeiros a serem vtimas mortais da loucura do soberano foram os familiares mais chegados, o irmo Esmrdis, a irm-esposa e o filho que esta carregava no ventre.13 O mesmo temor infundado de eventuais detractores da sua imagem de monarca respeitado lev-lo- a cometer diversas atrocidades (adikemata) contra sbditos persas e aliados. Mas ser perante a violao das crenas religiosas dos Egpcios, isto , face anomia das 'coisas sagradas' (hiera), que o autor de Halicarnasso no conter a confirmao da conta de louco em que tinha Cambises14:

    Por todas estas razes me parece evidente que Cambises estava completamente louco (emane megals). Se assim assim no fosse, no ousada troar (katagelan) de coisas sacras (hiroisi) e consagradas pela tradio (nomaiois). Pois se se propusesse, fosse a quem fosse, que escolhesse, de entre todas as tradies culturais, as melhores (nomous tous kallistous), cada um, depois de reflectir maduramente, escolhea a sua prpa, convencido que est de que a tradio (nomous) em que nasceu de longe a

    bibliografia, J. A. Sanchez Marn, J. Lens Tuero, C. L. Rodrguez (edd.), Madrid 1997, 1-14; T. S. Brown, "Herodotus' portrait of Cambyses", Historia 31 (1982) 367-403.

    12 Sobre o tema da philia, vd.: D. Konstan, Friendship in the classical world (Cambridge 1997); M. Scott, "Philos, philots and xenia" AC 25 (1982) 1-19; A. W. H. Adkins, "Friendship and self-suffiency in Homer and Aristotle", CQ 13 (1963) 30-45;F. Oliveira, conceito de philia de Homero a Aristteles", Humanitas 25-26 (1973- -1974) 217-235.

    13 Leiamse as palavras de Herdoto em 3. 33: "Esses foram os actos de loucura que Cambises cometeu contra os familiares."

    14 Traduo de Maria de Ftima Silva, in Herdoto, Histrias. Livro 3. Introduo, verso do grego e notas de Maria de Ftima Silva e de Cristina Abranches (Lisboa 1994).

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    melhor. Portanto, no normal que algum - a menos que tenha perdido 0 juzo (mainmenon), meta a ridculo (gelta) semelhantes questes.

    (3. 38.1-2)

    Apelidado de fratricida (adelfeoktonos, 3. 65. 4), Cambises possui sobretudo um carcter intolerante, ou seja, incapaz de suportar qualquer tipo de concorrncia e de admitir os seus erros. Porque, na sequncia de um sonho pressago, erradamente interpretado, imagina que o irmo pretendente ao seu trono, manda execut-lo (3. 30). Porm os desvios' da norma persa em matria de laos familiares haviam comeado antes, com a adopo de uma 'lei' que no existia entre as tradies do seu povo (ouk ethota, 3. 31. 2): o matrimnio entre irmos. Contudo tambm este amor proibido acabar manchado de sangue, quando Cambises, cego de raiva diante do que imagina ser uma recriminao da esposa pela morte de Esmrdis, pe termo vida da companheira grvida (3. 32).

    As malhas da demncia do monarca vo progressivamente esten- dendo-se a um crculo mais alargado de colaboradores. Varar o corao do filho do seu homem de confiana, Prexaspes, assume para o rei o carcter de exerccio prtico, ilustrativo da sanidade mental de que se gaba. Dentro da lgica de uma mente perturbada, possuir a pontaria que lhe permite acertar no corao do jovem escano constitua a prova acabada do juzo perfeito de que, contrariando a voz popular corrente, gozava.15 O catlogo das baixas provocadas no seio da corte prossegue, desta vez com a ordem de execuo de um homicdio em massa de nobres persas. Tambm esse foi um crime aparentemente gratuito, pois mandou enterrar, de cabea para baixo, sem culpa formada, doze persas da melhor sociedade (3. 35. 5)16.

    Para ltimo lugar deixei os atentados cometidos por Cambises contra a religio egpcia, uma vez que nestes crimes que Herdoto radica a causa que tem por efeito a morte do infractor. Corolrio de inmeras transgresses aos nomoi sagrados das terras do Nilo17, a imolao do boi sagrado pis, encarnao teriomrfica do deus Ptah, exige o mais elevado pagamento pela

    15 Como se l em 3. 35. 4: "Prexaspes, fica assim bem provado que no sou eu que estou louco; pelo contrrio, os Persas que perderam 0 juzo".

    16 Traduo de Maria de Ftima Silva, op. cit.17 Violao de tmulos (com destaque para o ultraje da mmia de Amsis

    - cf. 3.16) e blasfmia dos deuses (escamecimento das imagens de Ptah e da sagrada famlia do templo dos Cabiros - cf. 3. 37)

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    falta cometida. De facto, quando, na sequncia de um ferimento provocado acidentalmente, morre vtima de um golpe na coxa, tal como acontecera com o deus dos Egpcios, o rei reconhece "Aqui cumpre-se 0 destino, morre (teleutan) Cambises, filho de Ciro" (3. 64.5).

    Embora o texto no contenha qualquer comentrio ao sofrimento que acompanha a morte por gangrena (3. 66. 2), semelhante fim, somado ao percurso de vida acabado de recordar, permite ao receptor das Histrias considerar Cambises mais uma das figuras que termina os seus dias coberto de oprbrio. imagem do que sucedeu ao seu vassalo e conselheiro, Creso da Ldia, est-lhe assim a ser negada a distino mxima que um indivduo pode alcanar. Tambm ele no preenche o requisito determinante na conquista do ttulo de 0 mais feliz (1olbiotatos) dos homens: ter uma morte consi- derada honrosa. Conforme ilustrou longamente no episdio conhecido por entrevista de Slon e Creso (1. 30-33), Herdoto faz-se porta-voz da viso grega tradicional arcaica e dos incios da poca clssica, segundo a qual nesta vida, e no no Alm, que se tem a sorte de gozar a felicidade. E esta afere-se no pela posse de tesouros materiais, mas de bens' que o dinheiro no pode comprar: sade (mental e fsica), posse de uma descendncia modelar, boa aparncia e uma morte digna (teleutesai ton bion eu)18.

    Contudo, tal como sucede com as terras, que produzem determi- nados frutos, mas carecem de outros, impossvel ao ser humano, que feito de acidentes (1. 32. 4), satisfazer todos os critrios que permitem rotul-lo de feliz. Da a condescendncia que podemos 1er nas observaes finais que Slon dirige a Creso:

    O (pas) que possuir maior quantidade de recursos, esse ser 0 mais distinto. Do mesmo modo tambm nenhum ser humano se basta a si prprio, pois 0 que um tem, a outro faz falta. Mas aquele que em vida os possuir em maior nmero e ainda

    18 Estabelecendo a comparao entre as vantagens de ser rico, mas infeliz, e as de, apesar de sem recursos materiais, ser bafejado pela felicidade, Slon remata a sua fala dizendo deste ltimo tipo de pessoas que se no capaz de suportar, tal como aquele, a desgraa e 0 desejo, a boa sorte afasta-os dele, que, apesar disso, um homem sem deformaes, sem doenas, sem a experincia de penosos padecimentos, orgulhoso da sua descendncia e detentor de uma bela figura. Se, para alm dessas caractersticas, ainda vier a terminar bem a vida, esse quem procurais, aquele que merece ser chamado feliz. Porm, antes de ele atingir 0 fim, acautelai-vos e no lhe chameis feliz, mas afortunado (1. 32. 6-7).

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  • 59Nomos, Anomia e Thanatos as Historias de Herdoto

    para mais terminar a vida de uma forma feliz, esse, quanto a mim, rei, a quem justo atribuir o referido ttulo.

    (1.32. 8-9)

    Recordemos que, nos retratos que faz dos eleitos para receber a distino de serem os mais felizes, Telo de Atenas e os dois irmos Argivos, Clobis e Biton, o escritor de Halicarnasso enfatiza a noo de morte hon- rada. Do Ateniense, cado em combate, diz que apethane kallista (1. 30. 5) e que teve 0 mais ilustre fim de vida (teleute lamprotate, 1.30.4). A mesma ideia de fim' reaparece, na expresso aplicada a propsito de Clobis e Bton, de quem se diz que tiveram 0 mais honroso fim (teleute aste, 1. 31. 3), quando a deusa, trazendo-lhes a morte durante o sono, os compensou pela dedicao filial em plena akme das suas vidas.

    Em suma, nestes dois casos, a relao entre thanatos e respeito pelo nomos, apesar de no vir claramente equacionada no texto, no passa despercebida ao leitor atento. Por um lado, na histria de Telo, temos uma morte ocorrida no cumprimento do cdigo de honra do cidado-soldado grego, isto , na observncia da Tei' que ditava o sacrifcio da vida em nome da defesa da ptria. Pelo outro, a histria dos Argivos mostra que s uma devoo extrema pelo valor da philia explica que dois filhos, desejosos de viabilizar o cumprimento de um voto materno, puxem um carro de bois e transportem a progenitora at ao templo de Hera. Cumpre-se, assim, a mxima evocada em 1. 31. 3, que dita que para 0 homem melhor morrer do que viver. Ou seja, a morte (thanatos), mesmo que colha o indivduo na juventude, pode ser encarada como um prmio e no uma punio. De acordo com uma filosofia de vida eivada de pessimismo, para a qual a vida uma soma de sofrimentos inevitveis, a morte pode ser encarada como bem. Desde logo por duas razes: ou porque proporciona a libertao das penas ou porque, quando surpreende as pessoas na juventude, reduz o tempo de que dispem para viver infortnios. Neste ltimo caso podemos incluir o destino dos dois Argivos, a quem a divindade concedeu 0 dom mais distinto (to aristn) que0 homem pode ter: morrer no apogeu da time, o mesmo dizer, coberto de glria, distino em grego assinalada pela expresso andres astoi (1. 31.5).

    Em jeito de concluso, cabe-me reiterar a ideia de que, atravs da anlise dos passos acabados de considerar, me foi possvel ilustrar o relevo que nas origens do logos histrico tiveram trs palavras/conceitos funda- cionais do pensamento do homem antigo e, consequentemente, do contem- porneo: norma (nomos), transgresso (anomia) e morte (thanatos).

    Humanitas (2007) 49-60

  • Carmen Soares60

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