Soberania, Tecnologia e Vigilância...Instrumentalismo; Substantivismo e; Teoria Crítica. A...
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Soberania, Tecnologia e Vigilância:
considerações sobre a atividade de Inteligência
Jorge M. Oliveira Rodrigues1
Camila Gomes de Assis2
Ícaro Silva Melo3
RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar os efeitos do desenvolvimento
tecnológico na relação do Estado com a sociedade civil a partir da análise das atividades de
inteligência – aqui compreendidas como a coleta de informações por parte das agências
governamentais responsáveis. Entendemos que o cada vez maior progresso no campo das
tecnologias de comunicação e vigilância afetam de forma fundamental as relações sociais em
si, bem como as relações da sociedade civil com seus respectivos governos. Com isso em mente,
fornecemos uma compreensão teórica inicial acerca da tecnologia que considere, mas não se
limite, à sua vertente instrumental. Em seguida, analisamos a prática de inteligência no Brasil,
observando as agências responsáveis e as problemáticas inerentes à tal atividade, dando especial
atenção ao surgimento de uma nova dimensão criada pelo desenvolvimento tecnológico, qual
seja o ciberespaço. O intuito é obter inferências quanto as relações entre o governo e sociedade
civil e a modificação que se estabelece nesta relação a partir do incremento tecnológico. Por
fim, discutimos a relação entre Democracia, Inteligência e Vigilância, buscando ressaltar as
problemáticas que envolvem a questão.
1 Mestrando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).
Pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Grupo de Grupo de Estudos
Críticos sobre Política de Defesa, Cooperação, Segurança e Paz (COOP&PAZ) 2 Mestranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).
Pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Núcleo de Análises e
Estudos Internacionais (NEAI). 3 Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Pesquisador do Grupo de
Estudos Críticos sobre Política de Defesa, Cooperação, Segurança e Paz (COOP&PAZ).
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INTRODUÇÃO:
Os desenvolvimentos científico e tecnológico têm alterado profundamente as relações
sociais. Nas mais diversas instâncias, as relações de indivíduos entre si e destes com as diversas
instituições existentes, governamentais ou não, têm sido pautadas pelas mudanças nos padrões
tecnológicos vigentes. Tais mudanças se fazem notar de maneira exemplar no âmbito da
comunicação, do transporte, do mercado financeiro, dentre outros, podendo se afirmar que o
processo comumente referido por globalização tem suas raízes lançadas no desenvolvimento
de tais tecnologias. Por certo, as distâncias entre povos foi gravemente reduzida com o advento
da aviação, assim como as trocas comerciais e operações financeiras se dão em ritmo tal que
enquanto um operador da BOVESPA está dormindo, em Tóquio, as operações de compra e
venda estão à pleno vapor.
Nesse contexto, as dinâmicas existentes entre Estado e sociedade civil se desenrolam de
tal forma que sua compreensão, no marco de regimes democráticos, demanda o questionamento
dos parâmetros históricos pelos quais se entende o papel do Estado. Se em suas origens caberia
ao Estado zelar pela ordem e estabilidade interna, garantindo aos seus cidadãos sua segurança
e fazendo valer sua autoridade a partir de suas leis e de suas forças, com o advento de novas
tecnologias de monitoramento, controle e vigilância tal atividade se torna ainda mais intensa,
nos levando a questionar os limites do controle estatal na vida social.
Às atividades realizadas pelos mecanismos de vigilância e monitoramento se dá o nome
de Inteligência. Tal atividade pode ser compreendida, de maneira simplificada, pela coleta de
dados e informações úteis à condução das atividades governamentais, sejam tais informações
relativas ao âmbito externo ou interno, sendo essencial para a garantia da segurança dos
Estados. Trata-se, em essência, da coleta do conhecimento necessário à tomada de decisão, daí
ser denominada de atividade de inteligência (BRASIL, [s.d]). Além disso,
A Inteligência pode apresentar natureza estratégica, ligada à formulação de
políticas públicas, de diretrizes nacionais ou de elaboração de instrumentos
legais. Pode adquirir caráter mais tático, na assessoria ao planejamento de
ações policiais, militares ou de fiscalizações. Pode ainda ser mais operacional,
no apoio a ações efetivas de combate militar, perseguição e busca por
criminosos, enfrentamento e prevenção de ilícitos (BRASIL, [s.d]).
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Guiada pela abstrata noção de “interesse nacional” a atividade de inteligência encontra-
se coberta por um manto de obscuridade. Por sua natureza, envolta em segredo, tende a escapar
à compreensão da população em geral. Suas características nos levam a questionar sua sujeição
e adequação ao ordenamento democrático, notadamente no tocante ao seu exercício doméstico.
No Brasil, a situação se torna ainda mais nebulosa dada a tendência ao desinteresse por parte
da sociedade a temas que fujam às suas necessidades emergenciais – daí a ausência de robusto
debate em âmbito público acerca de assuntos como política externa e defesa.
É messe contexto que nos propomos a compreender como se desenvolvem as relações
entre Estado e sociedade civil no marco do desenvolvimento de novas tecnologias voltadas à
lógica da vigilância, monitoramento e controle. Tomando por foco a atividade de inteligência
no Brasil buscamos auferir os efeitos do desenvolvimento tecnológico em tal dinâmica.
Partimos da hipótese que o desenvolvimento de novas técnicas de vigilância e controle levaram
ao aprofundamento do abismo existente entre sociedade e Estado e à situações cada vez mais
corriqueiras de violação dos direitos individuais em nome de uma suposta segurança.
Para tanto, o trabalho se divide em três seções, para além desta introdução e das
considerações finais. Na primeira seção discutimos as compreensões existentes sobre a
tecnologia e seu desenvolvimento. Buscamos estabelecer uma compreensão teórica que vá além
da perspectiva instrumental corrente, levando em conta, dentre outros fatores, os efeitos da
tecnologia nas dinâmicas sociais, notadamente no que diz respeito ao exercício do controle pelo
Estado. Em outras palavras, na compreensão aqui apresentada a tecnologia não é apenas
“sujeito” passivo da vontade humana, senão que se tem sua própria agência na realidade social.
Em seguida, passamos à observação da atividade de inteligência no Brasil, considerando as
agências responsáveis por sua condução e os objetivos por elas almejados. Por fim, discutimos
a relação entre Democracia, Inteligência e Tecnologia, buscando discutir, de maneira ainda
incipiente, as consequências do progresso tecnológico para a relação entre Estados e entre estes
com as sociedades civis de seus respectivos países.
TECNOLOGIA PARA ALÉM DO INSTRUMENTALISMO:
A compreensão geral sobre a tecnologia tende a estar pautada por uma visão
instrumentalista. A partir desta perspectiva a tecnologia seria tomada por manuseável, uma
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mera ferramenta à nossa disposição a ser empregada numa lógica de adequação entre meios (a
tecnologia, a ferramenta) e fins (o que se pretende com elas). Nesse sentido, haveria uma
neutralidade inerente à tecnologia, uma vez que esta só adquiria significado em função do uso
que lhe é dado. Esta concepção é de comum aceitação na área de Relações Internacionais e nos
estudos de Defesa. Em ambos os casos, a tecnologia é comumente percebida a partir do uso
humano que lhe é dado: a produção e utilização de novos sistemas de armas; o desenvolvimento
tecnológico aplicado à comunicação; a cibernética enquanto novo campo de atuação etc. Assim,
o entendimento dos estudos das relações internacionais e da defesa quanto ao fenômeno do
desenvolvimento tecnológico é limitado, uma vez que ignora outras vertentes interpretativas
possíveis.
Partimos do pressuposto de que tal restrição analítica impossibilita a compreensão da
complexidade que se desenha a partir do progresso tecnológico e seus efeitos cotidianos. É
necessário, portanto, que adotemos uma abordagem que amplie tal visão, indo além da
concepção instrumentalista prevalente. Nesse sentido, a contribuição de Andrew Feenberg se
faz essencial.
Em texto de 2011, o autor se propõe a discutir a relação entre modernidade e tecnologia,
a partir de debate teórico em relação à noção de racionalidade. O autor propõe, nesse sentido, a
noção de “racionalidade social” em contraposição à racionalidade instrumental. Por razão
instrumental, entende-se aquela estritamente voltada à lógica de meios e fins. Seria, portanto,
análoga à concepção de Horkheimer (2015) de razão subjetiva. Nas palavras deste autor, a razão
subjetiva
está essencialmente preocupada com meios e fins, com a adequação de
procedimentos para propósitos tomados como mais ou menos evidentes e
supostamente autoexplicativos. Dá pouca importância à questão de se os
propósitos em si são razoáveis. Se, de algum modo, faz referências a fins,
aceita como evidente que eles também sejam razoáveis no sentido subjetivo,
isto é, que sirvam ao interesse subjetivo relativo à autopreservação – seja do
indivíduo singular, seja da comunidade de cuja manutenção depende a do
indivíduo (HORKHEIMER, 2015, p. 11-12, grifo nosso).
Por outro lado, a racionalidade social é fenômeno típico da modernidade e, “embora
tenha certa semelhança com os procedimentos racionais que associamos à matemática e às
ciências [exatas]”, é assim considerada “pois é aplica por organizações à sociedade”
5
(FEENBERG, 2011, p. 865, tradução nossa). Implica, portanto, em processo semelhante ao
processo de reificação, nos termos de Georg Lukács (1971 Apud FEENBERG, 2011),
envolvendo, mesmo que indiretamente, a conformação de sistemas de verdades (FOUCAULT,
2016). No tocante à tecnologia, ainda de acordo com Feenberg (2011), isso representaria a perda
do elemento humano no progresso tecnológico. Restaria, portanto, apenas a máquina, a coisa
pela coisa.
A proposição apresenta por Feenberg (2011) abre espaço para a compreensão de que
tecnologia é, em si, um fenômeno social, não sendo inerentemente neutra, como pretendido por
alguns analistas. Rompe-se, dessa forma, com o paradigma instrumentalista que prevalece nas
ciências sociais no tocante à tecnologia. Em contraposição à tal via interpretativa monolítica,
Feenberg (2013) nos fornece uma via alternativa. A proposta de ampliação do escopo analítico
se dá no marco do entendimento de que
os resultados de todo esse progresso da racionalidade são mistos. Todo avanço
no poder da razão parece ter sido acompanhado por reveses devastadores. O
século XX, que deveria ter sido palco do triunfo da razão, viu tanto o triunfo
quanto o desastre. Guerras, armas nucleares, campos de concentração e a crise
ambiental são parte de sua herança, juntamente com o aumento da riqueza, a
disseminação da democracia, avanços médicos, descolonização e progresso
na igualdade racial e de gênero (FEENBERG, 2011, p. 866, tradução nossa).
Assim, no âmbito da compreensão de que a racionalidade tecnológica não implica,
necessariamente em resultados benéficos para a sociedade, Feenberg (2013) identifica a
existência de quatro correntes interpretativas acerca da Tecnologia, quais sejam: Determinismo;
Instrumentalismo; Substantivismo e; Teoria Crítica.
A primeira implicaria na consideração da tecnologia enquanto elemento neutro,
instrumental, e cujo desenvolvimento se dá de forma autônoma, independente das ações
humanas. Nas palavras de Andrew Feenberg (2013, p. 58-59), o Determinismo, enquanto viés
da Filosofia da Tecnologia, “traduz uma visão amplamente mantida nas ciências sociais desde
Marx, segundo a qual a força motriz da história é o avanço tecnológico”. Segundo o autor
Os deterministas acreditam que a tecnologia não é controlada humanamente,
mas que, pelo contrário, controla os seres humanos, isto é, molda a sociedade
às exigências de eficiência e progresso. Os deterministas tecnológicos
usualmente argumentam que a tecnologia emprega o avanço do conhecimento
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do mundo natural para servir às características universais da natureza humana,
tais como as necessidades e faculdades básicas (FEENBERG, 2013, p. 59).
Em suma, por essa perspectiva a humanidade estaria sujeita às profundas alterações que
a tecnologia impõe a todos os aspectos da vida social. O progresso tecnológico, uma vez
iniciado, foge de controle e passa a um ciclo vicioso em que novas tecnologias geram novas
demandas sociais que, por sua vez, supõem-se ser solucionáveis com ainda mais novas
tecnológicas.
A segunda seria relativa à noção já abordada anteriormente de instrumentalidade da
tecnologia. Trata-se de perspectiva é igualmente recorrente nas ciências sociais, notadamente
na área de Relações Internacionais e nos estudos de Defesa e Segurança4. Implica na
compreensão da tecnologia como neutra e, portanto, não eivada de valores. Por outro lado,
diferentemente da interpretação determinista, afirma que o ser humano detêm controle sobre o
progresso tecnológico, uma vez que este só teria sentido numa adequação de meios e fins
(FEENBERG, 2013).
A terceira via interpretativa, o Substantivismo, entende a tecnologia como elemento
não-neutro, embebido de valores sociais – por exemplo, daqueles que as produziram5.
Acrescenta-se a isso uma visão do progresso tecnológico como autônomo, livre do controle
humano (FEENBERG, 2013). A junção de tais fatores levam os aderentes à tal corrente a
assumir um posicionamento negativo quanto ao futuro da humanidade face ao avanço da
tecnologia. Sobre a concepção substantivista, Feenberg afirma que
Quando você escolhe usar uma tecnologia, você não está apenas assumindo
um modo de vida mais eficiente, mas escolhendo um estilo de vida diferente.
A tecnologia não é, assim, simplesmente instrumental para qualquer valor que
4 Esta é compreensão dominante, por exemplo, nas discussões sobre o desenvolvimento da indústria de defesa e
de tecnologias militares. 5 Para uma discussão mais aprofundada acerca da não neutralidade da tecnologia ver Winner (1980). Para o autor,
“as coisas que chamamos de “tecnologia” são maneiras de conformar uma ordem em nosso mundo. [...]
Conscientemente ou não, deliberadamente ou inadvertidamente, as sociedades escolhem estruturas de tecnologias
que influenciam como as pessoas trabalham, se comunicam, consumem etc. por um longo período de tempo”
(1980, p. 127). Segundo Feenberg (2013, p. 59-60), “a tese da neutralidade atribui um valor à tecnologia, mas é
um valor meramente formal: a eficiência, a qual pode servir a diferentes concepções de uma vida boa. Um valor
substantivo, pelo contrário, envolve um compromisso com uma concepção específica de uma vida boa. Se a
tecnologia incorpora um valor substantivo, não é meramente instrumental e não pode ser usado para diferentes
propósitos de indivíduos ou sociedades com ideias diferentes do bem. O uso da tecnologia para esse ou aquele
propósito seria uma escolha de valor específica em si mesma e não apenas uma forma mais eficiente de
compreender um valor preexistente de algum tipo”.
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você possui. Traz consigo certos valores que têm o mesmo caráter exclusivo
que a crença religiosa. Mas a tecnologia é ainda mais persuasiva que a religião,
desde que não requer qualquer crença para reconhecer sua existência e seguir
suas ordens. Uma vez que uma sociedade assuma o caminho do
desenvolvimento tecnológico, será transformada inexoravelmente em uma
sociedade tecnológica, um tipo específico de sociedade dedicada a valores tais
como a eficiência e o poder. Os valores tradicionais não podem sobreviver ao
desafio da tecnologia (2013, p. 60).
Por fim, a Teoria Crítica assume que a tecnologia não é neutra e, portanto, está
impregnada de interesses e dinâmicas sociais que afetam sua conformação. Entretanto, apesar
de adotarem tal visão “não neutral”, os teóricos críticos compreendem que a humanidade tem
ainda condições de influenciar o progresso tecnológico (FEENBERG, 2013). Para Feenberg,
A teoria crítica da tecnologia sustenta que os seres humanos não precisam
esperar um Deus para mudar a sua sociedade tecnológica em um lugar melhor
para viver. A teoria crítica reconhece as consequências catastróficas do
desenvolvimento tecnológico ressaltadas pelo substantivismo, mas ainda vê
uma promessa de maior liberdade na tecnologia. O problema não está na
tecnologia como tal, senão no nosso fracasso até agora em inventar
instituições apropriadas para exercer o controle humano da tecnologia.
Poderíamos adequar a tecnologia, todavia, submetendo-a a um processo mais
democrático no design e no desenvolvimento (2013, p. 61).
Ainda segundo o autor,
De acordo com a teoria crítica, os valores incorporados à tecnologia são
socialmente específicos e não são representados adequadamente por tais
abstrações como a eficiência ou o controle. A tecnologia não molda apenas
um, mas muitos possíveis modos de vida, cada um dos quais reflete escolhas
distintas de objetivos e extensões diferentes da mediação tecnológica.
Dessa forma, abre-se espaço para a atuação humana. Reconhecendo os problemas
gerados pelo progresso tecnológico, a Teoria Crítica se propõe a pensar em soluções às questões
impostas pela tecnologia sem que dela se faça uso na busca por respostas aos problemas por ela
mesma criados (HABERMAS, 2014).
Estas são algumas possíveis interpretações ao fenômeno. Como ressaltamos, trata-se da
ampliação do escopo analítico para além da simples perspectiva instrumental, que enxerga a
tecnologia como ferramenta racionalmente alocada numa dinâmica de meios e fins e cujo
progresso se daria estritamente a partir da ação humana. Tal ampliação nos permite aprofundar
nosso entendimento do fenômeno, fazendo perguntas anteriormente impensáveis. No marco
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deste entendimento, adotamos no presente trabalho concepção da Teoria Crítica, enxergando a
tecnologia como fenômeno social e utilizando de tal lente para a compreensão do
desenvolvimento dos instrumentos de vigilância bem como de seu uso pelo Estado.
Nesse contexto, a partir da Teoria Crítica algumas inferências interessantes podem ser
feitas quanto aos instrumentos de vigilância. Em primeiro lugar, tem-se que o impacto da
tecnologia na vida social tem seu reflexo imediato nas relações entre Estado – e seus aparatos
de monitoramento e controle – e a sociedade civil. As alterações nestas relações influem
diretamente nos direitos civis dos cidadãos. Isso nos leva ao nosso segundo ponto: quais as
possibilidades de submissão das agências estatais de vigilância ao escrutínio público? Por
lógica, não afirmamos que a atividade de inteligência possa ser tomada como completamente
aberta à ágora. Sua natureza é, por essência e por demanda, sigilosa. Entretanto, pensar as
formas de controle social às quais esta possa estar submetida é fundamental para o pleno
desenvolvimento democrático.
De forma mais direta, a questão aqui é a seguinte: se a tecnologia não é neutra; se, pelo
contrário, está eivada de interesses, como podemos ter certeza que os instrumentos de vigilância
funcionam sob as diretrizes que dizem funcionar? Se, como Winner (1980) aponta, as pontes
do Brooklin de Frank Moses obedeciam não a uma lógica do transporte público, mas a uma
característica racista de seu inventor, como a sociedade pode garantir que as agências, e as
tecnologias por elas utilizadas, não estejam atreladas a uma concepção outra que não a
segurança pública. É com base nisso que o presente trabalho se guia. No caso do Brasil, país
eivado de desigualdade e violência estruturais, é fundamental pensarmos quais os alvos da
vigilância e quais as diretrizes para tal. A isso se dedica a próxima seção deste trabalho.
A ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA NO BRASIL:
A atividade de inteligência no Brasil, no que se refere aos seus moldes atuais, foi
instituída através da lei 9.883 de 1999 que cria o Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN),
tendo como órgão central a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), responsável por
planejar, coordenar e supervisionar as atividades de inteligência do país. Nesse documento, a
inteligência é entendida como “a atividade que objetiva a obtenção, análise e disseminação de
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conhecimentos dentro e fora do território nacional sobre fatos e situações de imediata ou
potencial influência sobre o processo decisório e ação governamental […]” (BRASIL, 1999).
A nova configuração da atividade de inteligência no país põe a termo e substitui o antigo
Sistema Nacional de Informações (SNI), conhecido por sua atuação durante a ditadura militar.
Após a criação do SISBIN, outros dois sistemas surgiram em seguida: o Sistema de Inteligência
de Defesa (SINDE) e o Subsistema de Inteligência de Segurança Pública (SISP). O SINDE foi
instituído em junho de 2002, através da Portaria Normativa nº 295 do Ministério da Defesa
(MD). O sistema integra ações de planejamento e execução da atividade de inteligência de
interesse da Defesa e envolve os principais órgãos de inteligência do MD como, por exemplo,
os centros de inteligência da Marinha (CIM), do Exército (CIE), da Aeronáutica (CIAer) e do
Estado-Maior de Defesa (EMD-2). O SINDE tem como órgão central o Departamento de
Inteligência Estratégica (DIE) que é responsável pela representação do sistema junto ao SISBIN
e ao Congresso Nacional (CEPIK, 2005).
Por sua vez, o SISP foi instituído em dezembro de 2000 como um subsistema do
SISBIN. A finalidade do SISP é de integrar e coordenar as atividades de inteligência de
segurança pública com o objetivo de suprir os governos federal e estaduais de informações
sobre o tema. O subsistema é composto pelos Ministério da Justiça – tendo enquanto principais
órgãos agentes o Departamento de Polícia Federal (DPF) e o Departamento de Polícia
Rodoviária Federal (DPRF) –, o Ministério da Fazenda, o Ministério da Defesa, da Integração
Nacional e o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, além das
polícias civis e militares dos estados brasileiros. Como órgão central, o SISP é coordenado pela
Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça. Apesar de ser um
subsistema do SISBIN, Cepik (2005) afirma que a quantidade de organizações envolvidas e a
capilaridade destas no SISP tendem a transformá-lo em um sistema apenas parcialmente
integrado ao SISBIN.
Dessa forma, para cada “tipo de inteligência” – governamental, de defesa e de segurança
pública – há uma rede específica que coordena e gerencia suas respectivas atividades. Não
obstante, pode-se estranhar a existência de três sistemas para a realização de um mesmo tipo de
atividade, mesmo tomando em conta os diferentes enfoques. Ao abordar esta questão, Cepik
(2005) afirma que há um baixo grau de diferenciação funcional entre as três estruturas.
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Conforme o autor, uma possível iniciativa de integração entre os três arranjos estaria
dependente de um ato voluntário de cooperação. Por outro lado, Cepik (2005) ressalta que a
existência desses três sistemas contribui para a simplificação dos procedimentos de controle
externo sobre a atividade, já que haveria a possibilidade de focar, dentre as várias organizações,
os sujeitos políticos.
De modo geral, pode-se recorrer à Política Nacional de Inteligência se se almeja
identificar os objetivos desta atividade no Brasil. Espionagem, propaganda adversa,
desinformação, sabotagem e cooptação são elencados como problemas a serem tratados a partir
Inteligência. Outrossim, são alvos comuns desta atividade as organizações criminosas, o tráfico
de drogas, crimes financeiros internacionais, violação dos direitos humanos, terrorismo, dentre
outros (BRASIL, 2016).
Com esta breve introdução sobre a institucionalidade da atividade de inteligência no
Brasil, é pertinente abordar quais são as formas de operacionalização desta atividade. É
importante ter em mente que por ser atividade de inteligência, muito do que faz parte desta está
sob sigilo. No caso do Sistema de Inteligência de Defesa, por exemplo, não é possível acessar
os documentos que definem suas funções, nem mesmo tomar conhecimento de sua estrutura
organizacional interna. Dessa forma, em nosso intento de compreensão da atividade de
inteligência no Brasil optamos por uma abordagem indireta.
Sendo o objetivo central da Inteligência a coleta, produção e difusão de informações e
conhecimentos às autoridades competentes (BRASIL, 2016), há uma demanda para que o
SISBIN operacionalize tais funções, o que se dá através da rede de organizações que estão
integradas ao sistema. De acordo com o Art. 2º da Lei nº 9.883/99, o SISBIN é constituído pelos
“órgãos e entidades da Administração Pública Federal que, direta ou indiretamente, possam
produzir conhecimentos de interesse das atividades de Inteligência, em especial aqueles
responsáveis pela defesa externa, segurança interna e relações exteriores” (BRASIL, 1999).
Assim sendo, o SISBIN possui acesso garantido às informações de órgãos como a Receita
Federal, a Polícia Federal, os Correios, Anatel, Previdência Social, dentre outros organismos da
administração pública (FIGUEIREDO, 2005 apud Zaverucha, 2008).
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Entretanto, apesar de legalmente autorizados à coleta de informação – por meios
extensivos e ostensivos – alguns problemas podem ser apontados no âmbito do Sistema
Brasileiro de Inteligência.
Referindo-se especificamente ao caso da ABIN, Brandão e Brito (2014) afirmam que a
agência não possui capacidade suficiente para exercer um papel proativo na coleta de
informações e na disseminação de produtos de inteligência. Tomando por enfoque a Inteligência
enquanto instrumento de combate ao terrorismo, os autores afirmam que a ABIN é impedida de
utilizar meios técnicos que, para eles, são essenciais à tarefa, quais sejam: a interceptação
telefônica, infiltração e quebra de sigilo fiscal. Tais meios só se fazem disponíveis a partir de
autorização judicial prévia.
Por sua vez, no caso do Sistema Inteligência de Segurança Pública (SISP), dado o
emaranhado de órgãos que o conforma, é possível identificar problemas de gerenciamento e
organizacionais, semelhantes aos existentes no âmbito da ABIN. Recentemente, com a
aprovação da lei nº 13.675, de 11 de junho de 2018, e a consequente criação da Política Nacional
de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS) e do Sistema Único de Segurança Púlica
(SUSP) tais problemas se agravaram ainda mais. Apesar de possuir função complementar à
Inteligência no âmbito da segurança pública, a estrutura criada não está subordinada ao SISP.
Assim, o novo sistema – que se baseia na integração dos órgãos federais e estaduais de
segurança pública com um amplo compartilhamento de informações entre eles – conforma-se
enquanto rede paralela, dificultando a coordenação e controle inter-agência da atividade de
inteligência.
Por sua vez, no âmbito do Sistema de Inteligência de Defesa, ganham destaque os
instrumentos aeroespaciais para a coleta de informações e para a produção de inteligência. Estes
instrumentos se encontram sob administração das Forças Armadas. Uma das primeiras
iniciativas deste tipo foi o Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM) que entrou em
funcionamento em julho de 2002. O SIVAM faz parte do Sistema de Proteção da Amazônia
(SIPAM), que é responsável pelo controle ambiental, desenvolvimento regional, controle de
tráfego aéreo, coordenação de emergências, monitoramento de condições meteorológicas e
controle de ações de contrabando (BRASIL, 2004). Vinculado ao Ministério da Defesa, o
SIPAM é gerenciado pelo Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia
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(CENISPAM). O SIVAM, responsável pela coleta de informações, se utiliza de instrumentos
como sistemas de controle de tráfego aéreo, fotointeligência por satélites e aeronaves,
interceptação de comunicações e diversos sensores (WITTKOFF, 2003). Toda essa estrutura é
voltada para detectar e suprimir atividades ilegais na região da Amazônia como, desmatamento,
queimadas, mineração ilegal e construção de aeroportos clandestinos (WITTKOFF, 2003).
O desenvolvimento tecnológico no âmbito de tais projetos é visto como fundamental
para a atividade de inteligência no Brasil uma vez que envolve progresso em campos
diretamente relacionados à coleta e à difusão de informações – muitas vezes em caráter sigiloso.
No entanto, é razoável indagar sobre a militarização e a politização das agências de inteligências
brasileiras. O Plano Nacional de Inteligência elenca as diretrizes de atuação da inteligência
brasileira de forma idônea. Não obstante, a herança militar e os desvios de função ainda podem
ser vistos como um problema, principalmente no tocante aos alvos da atividade de inteligência
no país. Nesse sentido, Zaverucha (2008) ressalta que a ABIN, a principal agência do SISBIN,
é subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI) que é chefiado por um militar,
General da ativa, que decide quais informações coletadas podem chegar ao conhecimento do
presidente.
No mesmo sentido, é alarmante a persistência de uma ótica de inimigo interno nas
agências de inteligência. Organizações da sociedade civil como o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), Movimento dos Sem-Teto e manifestações políticas
como greves e manifestações populares são pontos que estão sob vigilância das agências de
inteligência que, por sua vez, capta informações sobre tais “ameaças” (ZAVERUCHA, 2008).
Um exemplo recente sobre esse problema foi o caso da infiltração do capitão do Exército
Willian Pina Botelho em um grupo de manifestantes que se mobilizaram para um ato contrário
ao governo do presidente Michel Temer, em São Paulo. O resultado disso foi a detenção de 21
manifestantes e acusação destes de formarem uma organização criminosa. O Exército, por sua
vez, justificou a ação evocando a Garantia da Lei e da Ordem (GLO) (ROSSI, 2017).
O quadro esboçado nos leva a indagar como se dá a relação de tais estruturas com a
sociedade e em que medida estão submetidas ao controle democrático. Se, conforme
brevemente exposto, há questões organizacionais ainda a se resolver, como se pode garantir
que a atividade exercida por tais sistemas se encontra sujeita aos ditames do regime
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democrático? Tal questionamento, guia do presente trabalho, nos leva à terceira e última seção
deste artigo, na qual pretendemos discutir as problemáticas para o sistema democrático da
relação existente entre Inteligência e Tecnologia.
OS SERVIÇOS DE INTELIGÊNCIA FRENTE ÀS TRANSFORMAÇÕES
TECNOLÓGICAS
Ao longo dos séculos, o uso do sigilo, ou seja, a informação confidencial, foi
considerado um elemento fundamental para a arte de governar (BESSA, 1996). Desde há muito
tempo, importantes estrategistas destacam a informação – sua posse, manipulação ou
ocultamento – como sendo um fator chave para a vitória na Guerra. Em sua obra clássica, Sun
Tzu (2007) evidencia a importância do emprego de espiões. De acordo com o general chinês, o
que capacitaria ao sábio soberano bem como ao bom general em suas decisões de ataque e
conquista seria justamente o “pré-conhecimento”, ou seja, o conhecimento prévio das vontades
e pretensões do inimigo. Segundo o autor, “essa presciência não pode ser extraída de espíritos
e não pode ser obtida indutivamente a partir da experiência, nem por qualquer cálculo dedutivo.
O conhecimento das disposições do inimigo só pode ser obtido de outros homens [...]” (2007,
150).
No entanto, ao longo dos anos, é possível notar uma transformação no papel da
informação como um recurso de poder estatal. Em uma perspectiva histórica, o fim da Segunda
Guerra Mundial e o surgimento de uma disputa política ideológica durante a Guerra Fria
levaram a atividade de Inteligência do nível de prática meramente focada em campanhas
militares para um recurso com importância fundamental para a segurança e desenvolvimento
dos estados (DANDONELI; DE PAULA; SOUZA, 2012). Passou-se, então, a dar à informação
um significado político que transcendia o campo de batalha (ANDREW, 1998).
Durante esse período foi possível observar a criação de ministérios e serviços dedicados
exclusivamente à execução dessa prática (FERNANDES, 2012, p. 22). Permeando e, não raro,
pautando essas transformações, a tecnologia sempre esteve ligada à atividade de Inteligência,
sendo responsável por permitir um maior acesso a informações privilegiadas, bem como maior
efetividade na formulação de estratégias àqueles que detêm capacitação tecnológica em setores
voltados à atividade (DANDONELI; DE PAULA; SOUZA, 2012, p. 120).
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Nesse sentido, é sempre válido lembrar que, por exemplo, o surgimento do computador
está diretamente associado à luta pelo poder entre as nações (BRITO, 2011, p. 21). A criação
do primeiro protótipo por Alan Turing – o pai da ciência da computação e da inteligência
artificial – é reflexo dos esforços da inteligência britânica em decifrar, à época da Segunda
Guerra Mundial, as mensagens geradas pela Alemanha, através da máquina “Enigma”. O
objetivo era decifrar as mensagens alemãs, a fim de tomar conhecimento de suas estratégias na
guerra e, consequentemente, estar apto a responder às mesmas, levando à vitória dos Aliados.
A criação da ARPANet, um precursor da Internet, também está associada à estratégia.
Simboliza a importância adquirida pelo desenvolvimento tecnológico na luta internacional pelo
poder durante a Guerra Fria (BRETTON, 1999). Este empreendimento surgiu da necessidade
de criar uma rede de comunicações invioláveis a possíveis ataques soviéticos permitindo que
os Estados Unidos preservassem, dentro de seus Serviços de Inteligência, informações
consideradas fundamentais para a promoção de seus interesses e a manutenção da segurança
nacional (BRETTON, 1999; CASTELLS, 1999; LOJKINE, 1995; MINC; NORA, 1980).
Diante do exposto, a Inteligência deve ser entendida como um complexo sistema
adaptativo no qual os processos de construção, produção e gestão da informação e do
conhecimento podem ser otimizados através do incremento tecnológico no mercado nacional e
internacional (DANDONELI; DE PAULA; SOUZA, 2012). Nesse contexto, com o advento do
ciberespaço, observa-se o surgimento de novas estratégias de acesso à informação – a exemplo
da prática de Exploração de Redes de Computadores (ERC) – assim como novos mecanismos
capazes de comprometer as ferramentas tecnológicas dos sistemas de Inteligência, minando sua
capacidade.
Como resultado do surgimento dessas novas portas de vulnerabilidade, os Estados são
obrigados a manter a integridade de suas redes e sistemas computacionais, não mais por meio
de defesas físicas, mas reduzindo vulnerabilidades em seus sistemas para proteger seus dados
(BAJAJ 2010, p. 2). Assim, aos Estados cada vez mais se fazia premente coletar informações
consideradas fundamentais para a promoção da segurança e a projeção de seus interesses
nacionais6 (Machado, 2010).
6 Entre as armas cibernéticas usadas para realizar tal prática estão (i) o uso de vírus responsáveis por contaminar
arquivos executáveis das infraestruturas críticas de estados adversários; (ii) SQL Injection, definido como alterar
os comandos de acesso ao banco de dados; Ataques de negação de serviço, responsáveis pela indisponibilidade de
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Além de tais questões procedimentais, o surgimento de uma crescente demanda por
processos mais eficientes de triagem e armazenamento de informações, causada principalmente
pelo aumento do fluxo de informações e pela facilidade de acesso às informações, gera novos
problemas a serem enfrentados pelo Estado (DCAF BACKGROUNDER, 2008, p. 3). Esse
novo desafio aparece porque os serviços de inteligência e segurança geraram muitos dados para
serem classificados. No entanto, é premente ressaltar que a coleta de informações não se traduz
automaticamente em melhores resultados no processo de tomada de decisão. Mesmo quando
informações importantes estão disponíveis, localizá-las e reconhecer sua importância a tempo
de prevenir desastres pode ser um desafio (NYE, 2010). Exemplo disso são as transformações
no tratamento das fontes ostensivas, ou inteligência de fonte aberta (OSINT). Esse tipo de
inteligência deriva da obtenção de informações públicas sobre aspectos políticos, militares e
econômicos da vida interna de outros países ou de maneira legal, direta e não clandestina através
do monitoramento da mídia.
Há, portanto, uma clara transformação da Inteligência em seu processo operacional, ou
seja, como um procedimento de coleta e busca de dados, uma vez que os serviços de informação
estão diretamente relacionados ao processo de desenvolvimento e melhoria na produção,
aquisição, gestão e transmissão de informações consideradas estratégicas para os Estados
(CEPIK, 2003; GAMA NETO; LOPES, 2014).
Entretanto, os processos de obtenção de informações não se limita aos meios públicos e
ao OSINT, incluindo também – e talvez principalmente – o acesso a informações confidenciais
(CEPIK, 2003). Nesse cenário, são recorrentes as práticas de espionagem, compreendidas de
modo geral como a obtenção de informações por vias ilegais. Assim, o ciberespaço, enquanto
locus da atividade de inteligência, configura-se enquanto zona de incertezas e desconfiança num
contexto em que não há garantias de que estão sendo respeitados os direitos básicos dos
cidadãos.
A própria conjuntura internacional evidencia esse processo. As denúncias de Julian
Assange e Edward Snowden enfatizam o uso desse novo “instrumento” como um transformador
do uso de um recurso antigo para as Relações Internacionais: a informação. A fundação do site
recursos do sistema para seus usuários e, finalmente; (iii) o Computer Network Attack (ARC) responsável por
danificar, negar, corromper, degradar ou destruir a infra-estrutura crítica de países adversários, bem como as
informações nele contidas ou os sistemas controlados por eles (GAMA NETO; LOPES, 2014).
16
WikiLeaks em 2006 por Assange, um cyberativista, representa um marco na disseminação da
informação, bem como um aviso acerca da ameaça que paira sobre a sociedade civil num
contexto de nebulosidade quanto às ações dos Estados no setor. O chamado projeto Ca-Blegate
divulgou cerca de 251.287 comunicações diplomáticas de 247 embaixadas dos EUA em todo o
mundo. Entre as várias acusações estava a relativa à prática de espionagem pelo governo
estadunidense, com solicitações da então Secretária de Estado, Hilary Clinton, para que a 33
embaixadas e consulados do país acompanhassem vigorosamente as ações de representantes de
vários países da ONU (ASSANGE; APPELBAUM; MAGUHN; ZIMMERMANN, 2013). Por
sua vez, em 2013, Edward Snowden foi pivô de episódio que resultou em grande tensão e
desconforto entre os Estados Unidos e a comunidade internacional, especialmente com a
Alemanha e o Brasil, países cujas chefes de governo, a chanceler alemã Angela Merker e a
presidenta brasileira Dilma Rouseff, tiveram violadas suas comunicações por parte de agências
de inteligência dos EUA.
Tais denúncias embasam o questionamento feito neste trabalho em relação à segurança
da população civil num cenário de progressão da atividade de inteligência. Guiada pela abstrata
noção de “interesse nacional” a atividade de inteligência se encontra coberta, não raro, por um
manto de obscuridade. Sua sujeição aos trâmites democráticos é, no mínimo, frágil, uma vez
que sua própria natureza implica no desconhecimento geral de suas dinâmicas.
A conformação do ciberespaço enquanto locus específico da Inteligência torna ainda
mais “desregulada” tal atividade. Iniciativas são adotadas no âmbito interestatal a fim de
garantir a segurança das informações de um Estado face a outros atores sociais – estatais ou
não. A tal prática dá-se o nome de Segurança da Informação, definida como uma atividade
responsável por proteger informações consideradas estratégicas para o Estado e que, se obtido
por seus oponentes ou inimigos, pode tornar o país e seus cidadãos vulneráveis (KENT, 1967,
p. 9).
Por outro lado, ainda é incipiente o desenvolvimento deste debate no âmbito da
sociedade civil. O progresso tecnológico representou uma alteração nos padrões de
sociabilidade. Como resultado, a população de países Ocidentais se encontra profundamente
dependente de seus produtos – celulares, computadores, tablets, internet etc. Em países como
o Brasil, em que a população está, de modo geral, cotidianamente conectada à internet, o
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conceito de “privado” tornou-se fluido. Em reportagem veiculada na Exame, lê-se “as
democracias ocidentais estão encontrando formas de utilizar a T.I. (Tecnologia da Informação)
com instrumento de ampliação da cidadania, mas a realidade brasileira vai em sentido oposto”
(DINO, 2016).
Com efeito, o uso de tecnologias de comunicação no Brasil obedece a uma dinâmica
dual. Por um lado, é vista como uma facilidade por parte do usuário, uma vez que encurta
distâncias e facilita o contato. Por outro, diz respeito à fragilização da noção do privado e à
crescente disponibilização de informações em rede pública. Tal cenário se torna ainda mais
complexo se retomamos o exposto na seção anterior, lembrando que muitas vezes os alvos dos
serviços de inteligência no país são movimentos sociais de cunho contestatório
(ZAVERUCHA, 2008; ROSSI, 2017). Nesse cenário, é alarmante a ausência de uma regulação
apropriada e de mecanismos de controle democrático eficientes de tais atividades.
Em suma, num contexto de aprofundamento do progresso tecnológico e das mudanças
sociais por ele ocasionadas, a conformação do ciberespaço enquanto locus da Inteligência
demanda que se estabeleça uma discussão profunda entre os diversos setores de governo e
sociedade civil quanto à regulação e controle democrático desta atividade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
O presente trabalho buscou estabelecer uma discussão incipiente quanto à relação entre
Inteligência e Tecnologia no marco da conformação do ciberespaço enquanto locus específico
da atividade em questão. Nesse contexto, reconhecemos que o progresso tecnológico não é
meramente instrumental, sendo fenômeno social e, por conseguinte, influente no
desenvolvimento e na transformação das relações sociais.
A discussão aqui estabelecida implica na defesa de que a atividade de inteligência no
Brasil deve obedecer a uma lógica mais concreta do que aquela relativa à noção de “interesse
nacional”. Implica, ademais, que se supere a concepção anacrônica de inimigo interno,
primando pela ordem democrática e pelos direitos civis da população. Por certo, entendemos
que o desenvolvimento tecnológico tem potencial positivo desde que posto a serviço de um
projeto emancipatório.
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(PNSPDS); institui o Sistema Único de Segurança Pública (Susp); altera a Lei
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e a Lei nº 11.530, de 24 de outubro de 2007; e revoga dispositivos da Lei nº 12.681, de 4 de
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