Sobre a Escrita - 17-07-2015 - Michel Laub

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Sobre a escrita 17/07/2015 02h00 Não existem regras para se escrever ficção. Ou melhor, não existem regras gerais. Cada autor encontrará as que são invioláveis no próprio caso, digam elas respeito a gramática, horários, quantidade de luz na escrivaninha, ruína financeira e conjugal. A metodologia também se adapta ao tipo de literatura almejada. Em "Sobre a Escrita", livro de 2000 lançado há pouco no Brasil pela Suma das Letras (R$39, 90, 256 págs., tradução de Michel Teixeira), Stephen King fala da necessidade de ler muito e ter autocrítica, dicas vagas o bastante para não estragar a diversidade literária do mundo nem o entusiasmo de ninguém. Mas parte do que é dito no texto serve mesmo para quem quer seguir o modelo de... Stephen King. É fundamental, portanto, identificar onde está a autoridade de quem publica tratados do gênero. A do autor de "Sobre a Escrita" é diversa das de Mario Vargas Llosa ("Cartas a um Jovem Romancista"), Francine Prose ("Para Ler como um Escritor"), James Wood ("Como Funciona a Ficção") e tantos outros. Se a literatura trabalha com elementos como linguagem, eficiência narrativa e densidade estética, King tem muito a dizer sobre o segundo deles. Em determinada passagem, ele se dispõe a fazer um exercício com o leitor, imaginando uma personagem feminina ameaçada pelo marido violento, e bastam três ou quatro parágrafos para percebermos que estamos diante de um mestre em manter nosso interesse por meio de ritmo e elementos de cena. Já seus conselhos sobre linguagem são duvidosos, a não ser que se busque a transparência e comunicabilidade de certa tradição anglosaxã de literatura gótica/psicológica, na qual advérbios não são "amigos" e a voz passiva equivale à de "menininhos usando bigodes de canetinha e menininhas andando com os saltos altos da mamãe". É preciso boa vontade para dar crédito a quem deita regras sobre prosa usando imagens às vezes óbvias ou constrangedoras. Para King, o escritor que junta frases dispersas "se sente como Victor Frankenstein". Páginas com parágrafos curtos são "tão arejadas quanto um desses chocolates aerados". E a surpreendente descoberta de que "falar bem faz parte da sedução" ainda precisa ser complementada: "Se não fosse, por que tantos casais começariam a noite jantando e a terminariam na cama?" Quanto à densidade estética, ou aquilo que faz uma obra ter valor literário para além do mero relato, King fica menos assertivo e melhora a pontaria. Com razão, ele acredita que a prática não faz o escritor ruim virar bom, nem o bom virar excepcional, mas pode ajudar quem é competente a se tornar um pouco mais do que isso. Considerando que o talento é inato, ou adquirido em algum ponto misterioso da infância ou da juventude, a compensação possível fora do trabalho duro passa a ser a experiência. Que também não obedece a fórmulas: ela pode estar num navio pirata na África ou num casamento tedioso do Itaim Bibi, na lavanderia onde o King

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Sobre a escrita17/07/2015 02h00

Não existem regras para se escrever ficção. Ou melhor, não existem regras gerais.Cada autor encontrará as que são invioláveis no próprio caso, digam elas respeito agramática, horários, quantidade de luz na escrivaninha, ruína financeira e conjugal.

A metodologia também se adapta ao tipo de literatura almejada. Em "Sobre aEscrita", livro de 2000 lançado há pouco no Brasil pela Suma das Letras (R$39, 90,256 págs., tradução de Michel Teixeira), Stephen King fala da necessidade de lermuito e ter autocrítica, dicas vagas o bastante para não estragar a diversidadeliterária do mundo nem o entusiasmo de ninguém. Mas parte do que é dito no textoserve mesmo para quem quer seguir o modelo de... Stephen King.

É fundamental, portanto, identificar onde está a autoridade de quem publica tratadosdo gênero. A do autor de "Sobre a Escrita" é diversa das de Mario Vargas Llosa("Cartas a um Jovem Romancista"), Francine Prose ("Para Ler como um Escritor"),James Wood ("Como Funciona a Ficção") e tantos outros.

Se a literatura trabalha com elementos como linguagem, eficiência narrativa edensidade estética, King tem muito a dizer sobre o segundo deles. Em determinadapassagem, ele se dispõe a fazer um exercício com o leitor, imaginando umapersonagem feminina ameaçada pelo marido violento, e bastam três ou quatroparágrafos para percebermos que estamos diante de um mestre em manter nossointeresse por meio de ritmo e elementos de cena.

Já seus conselhos sobre linguagem são duvidosos, a não ser que se busque atransparência e comunicabilidade de certa tradição anglo­saxã de literaturagótica/psicológica, na qual advérbios não são "amigos" e a voz passiva equivale à de"menininhos usando bigodes de canetinha e menininhas andando com os saltosaltos da mamãe".

É preciso boa vontade para dar crédito a quem deita regras sobre prosa usandoimagens às vezes óbvias ou constrangedoras. Para King, o escritor que junta frasesdispersas "se sente como Victor Frankenstein". Páginas com parágrafos curtos são"tão arejadas quanto um desses chocolates aerados". E a surpreendente descobertade que "falar bem faz parte da sedução" ainda precisa ser complementada: "Se nãofosse, por que tantos casais começariam a noite jantando e a terminariam na cama?"

Quanto à densidade estética, ou aquilo que faz uma obra ter valor literário para alémdo mero relato, King fica menos assertivo e melhora a pontaria. Com razão, eleacredita que a prática não faz o escritor ruim virar bom, nem o bom virar excepcional,mas pode ajudar quem é competente a se tornar um pouco mais do que isso.

Considerando que o talento é inato, ou adquirido em algum ponto misterioso dainfância ou da juventude, a compensação possível fora do trabalho duro passa a sera experiência. Que também não obedece a fórmulas: ela pode estar num navio piratana África ou num casamento tedioso do Itaim Bibi, na lavanderia onde o King

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iniciante lidava com toalhas cheias de vermes ou no baronato maduro de seus 350milhões de exemplares vendidos.

A isso eu acrescentaria, aproveitando o que o autor conta sobre sua biografia,incluindo a fase de alcoólatra e viciado em que produzia "com o coração a 130batimentos por minuto e cotonetes enfiados no nariz", que é preciso lidar com aansiedade. E com a depressão. E com a vaidade. E com a falta de autoestima.

Nos últimos dois casos (e, pensando bem, nos dois primeiros), recomendo umexercício: se sua autoimagem é a de um gênio, tente lembrar de quantas vezesalguém que não é seu amigo disse algo assim de você. Se sua autoimagem é a deum idiota, dê uma boa olhada nas pessoas consideradas geniais ao seu redor.

Lidar com os próprios fantasmas, o que alguém menos romântico/ingênuo chamariade "o próprio tamanho" ou "o próprio temperamento", é tão importante quantoencontrar a técnica certa para que os anseios do artista se expressem de maneiraadequada. Para ele, claro, e às vezes para mais ninguém.

Não importa: havendo certeza de que se fez o melhor diante das circunstâncias decada livro, nas quais se incluem os itens pessoais e universais acima listados, oresto –para o bem e para o mal– já não depende de nós.

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