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Sobre a inclusão: do moralismo abstrato à ética real

Eric Plaisance1

(Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Paris 5 – René Descartes –

Sorbonne, França)

A Declaração de Salamanca, de 1994, definiu claramente novos objetivos e novas

diretrizes de ação diante da transformação da educação especial destinada a crianças

“deficientes”. É a afirmação do princípio de educação inclusiva – e não mais, “especial” –

voltada para todas as crianças, mas também, dirigida àqueles que possuem “necessidades

educacionais particulares” – não mais denominados deficientes. Essa estratégia educacional

se acompanha, portanto, de uma profunda modificação de nossas representações e de

nossas designações das crianças em questão: no lugar de uma visão deficitária de certas

crianças, na qual ela se apresenta sob a forma negativa e médica de “deficiência”, deve-se

passar a uma representação mais abrangente, e não, estigmatizante de necessidades

educacionais destinadas a quaisquer crianças. Deve-se igualmente valorizar a ação

educativa e, conseqüentemente, a afirmação da necessária transformação das escolas que

possam proporcionar a inclusão a todos.

Dez anos se passaram desde essa Declaração internacional e nós gostaríamos agora

de adotar uma postura crítica, não sobre a declaração em si, mas sim, sobre as posições

freqüentemente adotadas quanto à exclusão escolar. Com efeito, essas tomadas de posição

são freqüentemente abstratas, pouco preocupadas com as modalidades concretas de

aplicação.

Em outros termos, nós gostaríamos de mostrar que a inclusão não depende de si,

pois ela é um novo desafio que demanda a clarificação dos meios de ação em vias de

transformação das escolas e, particularmente, em vias de acolhimento das crianças

“diferentes”. Ela é construção, processo (e não, dada a priori), e não pode ser realizada

senão através de uma profunda modificação de nossas representações e de nossas maneiras

de agir, o que alguns denominam uma verdadeira “revolução cultural”.

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Para apresentar algumas idéias um pouco provocativas, eu me apoiarei sobre a

experiência que adquiri nesse domínio, não apenas na França, mas também, em diversos

países europeus e no conjunto de colaborações com universidades brasileiras.1

1. Contexto internacional e situação francesa

Além da Declaração de Salamanca, os trabalhos da Organização Mundial da Saúde

merecem ser lembrados, pois transformaram as representações comuns de deficiência. 2 Em

1980, a OMS redefiniu e classificou os diferentes tipos de deficiência, distinguindo três

níveis: a deficiência, a incapacidade e a desvantagem social (ou o deficiente, no sentido

restrito do termo).

A deficiência caracteriza as perturbações no nível biomédico (perda ou anomalia de

uma estrutura anatômica, fisiológica ou neurofisiológica). A incapacidade designa as

limitações funcionais (ausência ou restrição de capacidade para desempenhar uma

atividade). Desvantagem social significa a desordem entre os desempenhos individuais e as

expectativas de um grupo particular ao qual pertence a pessoa em questão. Essa

classificação de 1980 introduz, portanto, uma dimensão social na análise do deficiente, pois

ela mesma destaca o papel das normas sociais no reconhecimento de uma pessoa como

1 No que diz respeito à situação francesa, apoiei-me no trabalho que desenvolvi de 2001 a 2002 para o ministério dedicado à família, à infância e às pessoas deficientes, com a finalidade de revisar a Lei de 1975 em favor de pessoas deficientes. Nesse contexto, dirigi um grupo encarregado de examinar a educação, a escolarização, a formação e a inserção profissional das pessoas deficientes. Atualmente, integro o comitê executivo do Conselho Nacional (aprovado pelo Presidente da República), denominado “Deficiente: sensibilizar, informar, formar”, na Universidade Paris 5 – René Descartes (Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Sorbonne, em Paris), sou Diretor de Diplomas sobre a ajuda especializada à pessoa deficiente ou com dificuldade. Esses diplomas (licenciatura, mestrado) usufruem da colaboração de colegas das universidades de Siena e Roma (na Itália) e de Berlin (Humboldt, na Alemanha). Muitos acordos ligam a Universidade Paris 5 – René Descartes a universidades brasileiras, como a UNICAMP (de Campinas), a UERJ (do Rio de Janeiro) e a UFF (de Niterói). Endereço da organização “Handicap: Sensibiliser, informer, former”: http://conseil.national.free.fr 2 Organização Mundial da Saúde (OMS) = World Health Organization (WHO) – site na internet: http:// www.who.int/classification/icf . No conjunto dos trabalhos internacionais, podem ser citados ainda aqueles da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), sobre estatísticas e indicadores de “necessidades educativas particulares” nos diferentes países do mundo.

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“deficiente”, não mais em si e isoladamente, mas, ao contrário, em relação a um meio dado

e atendendo ao seu meio.

Uma nova classificação foi publicada em 2001, para responder a certas críticas, por

exemplo, àquelas de associações de pessoas deficientes. O quadro proposto não apresenta

mais a sucessão (julgada muito linear) de três níveis da deficiência, da incapacidade e da

desvantagem, mas a interação entre as funções orgânicas, as atividades e a participação

social. Além disso, o funcionamento global da pessoa relaciona-se com os fatores

contextuais e do meio. A questão do deficiente é, desse modo, inserida em um esquema que

envolve o conjunto dos problemas de saúde de uma vez por todas. Essa classificação, dita

“funcional”, re-situa, de certo modo, a pessoa deficiente entre os outros, rompendo seu

isolamento.

Uma das conseqüências desses trabalhos da OMS é, na França, a proposta de

substituir a expressão “pessoa deficiente” por “pessoa em situação de deficiência”. Para os

defensores da última expressão, por exemplo, Vincent Assante, ela apresenta a vantagem de

integrar as conseqüências de um meio nas apreciações das capacidades de autonomia de

uma pessoa “deficiente”.3 Desse modo, com a mesma deficiência, uma pessoa pode sentir

um prejuízo, realmente uma discriminação por um meio que constitui para ela barreiras de

todas as espécies (arquitetura, cultura, regras/normas administrativas...) ou, ao contrário, ter

acesso aos serviços disponíveis por todos, graças a diversas adaptações (por exemplo,

planos inclinados para uma pessoa com cadeira de rodas). Esses são, pois, os esforços das

situações que precisam ser examinadas (eventualmente, para as transformar), e não, apenas

para destacar os efeitos de deficiências individuais.

A esse respeito, assinalaremos que, em pesquisas médico-sociais (por exemplo, em

epidemiologia), não se constata uma diminuição das deficiências. E, assim, nascimentos

prematuros são crescentes, o que significa que crianças podem agora sobreviver bem antes

do término da gestação (em conseqüência de progressos nos cuidados médicos), mas

também, que elas correm, com esse fato, os maiores riscos de perturbações neurológicas e,

conseqüentemente, de deficiências.

No cenário europeu, numerosas iniciativas foram tomadas durante a década de

1990, para facilitar as mudanças com vistas a transformar a tradicional “educação especial”

3 Vincent Assante. Situation de handcap et cadre de vie. Paris: Édition dês journaux officiels, 2000. Site na Internet: www.vincent-assante.net.

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nos diferentes países. No fim do programa Hélios (que consistiu em trocas de informações

e em visitas entre países, em um domínio considerado), a Carta de Luxemburgo, de 1996,

apresentou os resultados de idéias e práticas comparadas e anunciou o princípio da escola

“para todos e para cada um”, que deve se adaptar às necessidades educativas especiais das

pessoas. Trata-se, portanto, de um processo de inclusão – que era o objetivo do programa –

o qual os Estados membros foram convidados a adotar em sua legislação, a fim de garantir

a todos o livre aceso ao sistema de ensino.

Além desse movimento, em 2001, uma “resolução” do Parlamento europeu

explicitava o princípio da não-discriminação contra as pessoas deficientes, sob o título “Por

uma Europa sem entraves para as pessoas deficientes.” Portanto, paralelamente aos acordos

de princípio (que engajou os governos dos Estados membros), constatam-se diferenças

muito importantes entre os países europeus para a escolarização de crianças deficientes.

Grosso modo, podem-se distinguir três grandes tipos:

O tipo 1 opõe dois sistemas separados. De um lado, a educação comum (escolas e

classes normais); de outro, a educação especial (escolas e classes especiais). Esse tipo está

em vias de evolução para uma redução dessa separação. Mas encontra-se ainda uma

tradição desse tipo em países, como os Países Baixos e em alguns Estados, como Londres e

Alemanha.

O tipo 2 é exatamente o contrário do tipo 1 e consiste em um sistema radical de

integração ou de inclusão, o que significa que não existem mais nem estabelecimentos nem

classes especiais. A escolarização de crianças deficientes se efetua em escolas e classes

comuns, com apoio de serviços especiais. A Itália representa perfeitamente esse tipo: desde

1977, o país suprimiu oficialmente tanto classe especial, dita “diferencial”, e todos os

estabelecimentos educacionais especiais. Para fornecer um suporte ao processo de

integração em classes ordinárias, uma equipe de professores de “apoio” foi criada, além dos

professores “regulares” (em princípio, um professor de “apoio” para cada quatro crianças

deficientes integradas em uma ou várias classes.

O tipo 3 é um sistema misto. Por razões que consideram essencialmente a história

das instituições de ?????, constata-se uma justaposição de medidas integrativas no meio

escolar comum, de meios de educação especial e de medidas de apoio à integração. Nesse

tipo, figuram numerosos projetos europeus, mas, particularmente, a França.

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Detalharemos, pois, um pouco mais a situação francesa para a escolarização de

crianças deficientes. O posicionamento de um setor de educação “especial” tem uma longa

história, que remete a instituições para surdos e idosos, criadas no século XVII. Mas é,

sobretudo, após a segunda Guerra Mundial e, principalmente, nos anos sessentas que, de

numerosas instituições ditas “médico-educativas” são desenvolvidas, por iniciativas de

associações de pais de deficientes, mais do que por instituições ou de classes sociais e por

iniciativa do Ministério de Educação Nacional.

Esse período pode ser intitulado “período da febre segregativa”. Felizmente, nós

não vivemos mais esse período, pois numerosas críticas foram formuladas, sobretudo no

fim de 1960 e no início da década seguinte, contra as medidas segregativas, bem como

fortes contestações foram pronunciadas contra os hospitais psiquiátricos, e mesmo contra o

sistema escolar como tal, considerado como reprodutor de desigualdades sociais (por

exemplo, em análises sociológicas de Bourdieu e Passeron).

A lei de 1975 diz: “em favor de pessoas deficientes” e enunciava o princípio de

“obrigação educativa”, em consideração à criança deficiente. Mas é somente com o início

da década de 1980 que o objetivo e os meios para a integração escolar são definidos. De

modo geral, essa é considerada como uma etapa essencial na busca da integração social.

As diferentes instituições (escolas e instituições especiais) são chamadas oficialmente a

abrirem suas portas, isto é, a se abrirem para o exterior e a cooperarem, a fim de evitar o

fenômeno da exclusão e da segregação (Circulares oficiais de 1982 e 1983). Entretanto,

essa “integração” tem sido definida de maneira equívoca. Trata-se de, ao invés de

integração de crianças deficientes em escolas comuns – nesse último caso, “de integração”

quer dizer “coletiva” e, de fato, as antigas classes especiais são rebatizadas de “classes de

integração escolar”.

A França apresenta um leque muito grande (e majorativamente financiado com

fundos públicos) de diferentes instituições para crianças deficientes. É, pois, uma situação

complexa que evolui lentamente, malgrado a vontade dos poderes públicos de acelerar o

avanço da integração escolar e, de modo geral, a escolarização de crianças deficientes ou

com dificuldade grave. De fato, dados estatísticos mostram que somente cerca de 15% das

crianças deficientes são acolhidas em classes comuns.4

4 As demais crianças se encontram seja em classes ou unidades especiais de estabelecimentos escolares comuns, seja em estabelecimentos especiais, mais comumente naquelas do tipo “médico-educativas”.

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Entretanto, recentemente, têm ocorrido manifestações a favor de transformações

importantes, por exemplo, para recobrir toda referência à noção de educação dita “especial”

e para promover não mais apenas a integração, como também, o processo de inclusão.5

2. A inclusão – entre dois impasses

A inclusão se defronta com dois obstáculos: de um lado, as barreiras humanas e

materiais; de outro, paradoxalmente, a invocação moral e abstrata em favor da inclusão que

engendra formas dissimuladas de exclusão.

a) Barreiras para a inclusão

Argumentos são tradicionalmente dados por professores, diretores de escolas e

também por pais de alunos e associação para contestar a possibilidade de inclusão de

crianças em “situação de deficiência”. Essas são as realidades atuais que constituem

obstáculos intransponíveis, por exemplo:

- locais escolares sem adaptação (ex.: ausência de rampas de acesso para alunos com

dificuldades de motricidade);

- material insuficiente ou inexistente nas salas de aulas (ex.: textos em Braille, para os

alunos deficientes visuais; material de amplificação do som para os alunos com

deficiência auditiva...);

- maior número de crianças nas classes (torna difícil, quiçá impossível, a atenção aos

alunos com necessidades específicas);

- ausência ou distanciamento de centros de apoio ou de pessoal de apoio educacional

que possa fornecer ajuda ao professor da classe;

- reticências dos pais de crianças “comuns”, que acreditam que a presença de crianças

com necessidades especiais retardam o ritmo da classe e seja desfavorável ao

progresso de todos.5 Na França e no Reino Unido, o termo ‘integração’ é usado livremente para referir qualquer forma de incentivo à participação ou contacto entre alunos com incapacidades, ou envolvidos em qualquer esquema segregacional, e alunos que frequentam o ensino regular. Enquanto o termo ‘exclusão’ é frequentemente usado e entendido em França como processo político e social que discrimina e exclui grupos com base na ocupação, nos meios social, econômico, cultural, de escolarização e de participação. O termo inclusão raramente é usado nesse contexto (…). O termo ‘integração’ é, por vezes, usado na França de modo similar ao emprego mais frequente do termo ‘inclusão’ na Inglaterra no que diz respeito a políticas de cariz social. Felicity Armstrong, Brigitte Belmont, Aliette Vérillon,‘Vive la différence’. Exploring contexte, policy and change in special education in France: developing cross-cultural collaboration, In: ARMSTRONG Felicity, ARMSTRONG Derrick, BARTON Len (eds). Inclusive education. Policy, context and comparative perspectives. London: David Fulton, 2000, p. 62.

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Para cada argumento, seria possível responder ponto a ponto, através de exemplos

contrários e apresentaremos aqui alguns desses, quanto à parte consagrada ao processo de

construção da inclusão concreta. Neste momento, contentamo-nos em assinalar algumas

explicações possíveis para esses argumentos hostis à inclusão:6

O medo da diferença

O receio provocado por um indivíduo que achamos diferente está na base de todas

as praticas de afastamento e até de exclusão. O sociólogo americano Erving Goffman

atribuiu a essa temática uma estrutura conceptual a que chamou ‘estigmatização’. E essa

significa que, durante interações quotidianas, alguns indivíduos são ‘estigmatizados’ por

outros devido às suas características pessoais (raça, incapacidade, comportamento…), ou

seja, são vitimas de descrédito e desaprovação.

No caso de escolas que se recusam a aceitar crianças com dificuldades especiais, as

causas subjacentes são, freqüentemente, mecanismos de natureza similar: completo

desrespeito pela criança em questão, redução da sua identidade à incapacidade observada,

desconsideração do seu potencial etc.

Resistência institucional

A sociologia ‘das organizações’ (por exemplo, o trabalho de Michel Crozier) tornou

possível analisar os obstáculos à inovação em organizações burocráticas. Os sistemas

centralizados possuem uma estrutura hierárquica rígida. A rotina instala-se e a aceitação de

qualquer mudança e inovação torna-se complicada. As instituições na França ainda estão

demasiadamente agarradas a essas tradições e as estruturas de gestão dos serviços públicos

são geralmente distintas, se não mesmo antagônicas (por exemplo: educação e saúde,

educação e justiça…). Além disso, as escolas na França permanecem profundamente

marcadas por um elitismo ‘republicano’ e aposta na promoção dos ‘melhores’ alunos, o que

resulta, inevitavelmente, na eliminação de alunos que encontram algumas dificuldades

durante a sua passagem pelo sistema educacional.

6 Eric PLAISANCE. “A integração de crianças com incapacidades em escolas de ensino regular: Um novo desafio. Inclusão (Revista da Universidade do Minho, Portugal), 2002, n° 3, p. 39-48..

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Contradições entre culturas profissionais

A sociologia de ocupações profissionais concentrou-se na constitução de profissões,

ou seja, na definição, em um determinado momento da história, incluido formação,

sistemas de práticas e percepções, reconhecimento oficial ou até diferentes formas de

corporativismo sindical. Mas a estrutura profissional é tambem um modo de os indivíduos

se definirem, de reivindicarem a sua identidade. E, nessas condições, é facil ver que a

integração de crianças com necessidades especiais em meios escolares regulares enfrenta

diferenças, se não mesmo contradições, entre diversas culturas profissionais. Desse modo,

um especialista em psicomotricidade, um psicoterapeuta e um professor não vêem uma

criança da mesma forma.

b) O moralismo abstrato

Nesse caso, a inclusão é tratada como um apelo sentimental e abstrato à presença de

todos com todos, sem atenção alguma às modalidades precisas de aplicação. Desse modo, a

inclusão escolar de crianças em situação de deficiência deveria ocorrer em nome do

acolhimento de todos, certamente, em nome do amor ao próximo. É o que eu nomeio “o

moralismo ou universalismo abstrato”, que se apóia sobre noções de “missão”, de

“vocação” do professor, sem se aperceber das condições concretas de acolhimento nem de

casos particulares que surjam. Nesse caso, nota-se que esse apelo à “vocação” educativa, e

mesmo essa invocação ao amor à criança são referências muito tradicionais, insuficientes

para o nosso olhar atual sobre a criança e sobre as práticas educativas. Ensinar e educar não

podem ser reduzidos a esse moralismo, são práticas que exigem ao mesmo tempo formação

dos professores e conhecimento da criança.

Uma outra ambigüidade reside na extensão sem controle e sem limite do

vocabulário da inclusão. Se observamos a situação brasileira, percebemos que “a inclusão”

é evocada não apenas para as crianças em “situação de deficiência” ou com “heróis

particulares da educação”, mas também, para as crianças que não freqüentam escolas, ou

ainda de forma mais generalizada, para adultos com dificuldade de emprego. Nesse último

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caso, e com a atualidade de julho de 2004, no Brasil, a inclusão é o vocabulário utilizado

para permitir às populações “negras” o acesso ao emprego (“oportunidade para todos”,

lançada para “incluir negros em vagas de empregos”).

Paralelamente a essa invocação muito geral e muito abstrata de inclusão,

encontramos também a utilização – freqüente hoje – de “respeito às diferenças”, para

argumentar em favor da presença de crianças “diferentes”nas escolas comuns. Malgrado as

aparências progressistas dessa expressão, podemos nela reparar - ao contrário – os traços

de um pensamento profundamente conservador.

Lembremo-nos, com efeito, do período da reivindicação de direitos civis pela

população negra, ocorrido nos Estados Unidos nos anos sessentas. A expressão “separate,

but equal” era utilizada pelos conservadores hostis à presença de alunos negros nas escolas

habitualmente freqüentadas somente pela população branca. Nesse caso, o olhar as

diferenças diz respeito simplesmente à separação, malgrado a pretensão à igualdade. A

mesma análise pode ser feita com relação às crianças ditas “diferentes”. O “respeito às

diferenças” pode ser um argumento que mantém as crianças excluídas, seja dentro de

instituições especiais, seja de maneira um pouco mais sutil, excluída dentro das escolas

com classes comuns.

A presença física de crianças diferentes ao lado de outras, em uma espécie de

justaposição, não basta, obviamente. É preciso ainda que sejam beneficiadas não apenas

com a inclusão física, mas também, com outra, funcional e social, isto é, com atividades

que as tornem membros da comunidades escolar, em iteração com as outras.

Gostaríamos aqui de enfatizar os riscos desses slogans abstratos de inclusão ou de

respeito às diferenças. Nos dois casos, o discurso moral e bem pensado pode facilmente

refletir o seu contrário e desiludir os professores quanto às dificuldades constatadas e

realmente vencidas. Da utopia à realidade, o risco de se reforçar paradoxalmente a exclusão

é considerável (a recusa de novas inclusões) ou, ainda mais sutilmente, de produzir

“exclusões interiores”, segundo a fórmula referida pelo sociólogo Pierre Bourdieu e seus

colaboradores. Isto é, ainda uma vez, inclusões “físicas” em classes de crianças em situação

de deficiência, mas, na realidade, exclusões em relação às atividades, pois os professores se

encontram despreparados diante daquilo que deveriam fazer concretamente. É isso que nós

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poderíamos chamar de ilusão e de desilusão da inclusão, produzidas por esse universalismo

abstrato.

Nossa análise crítica se soma àquela de Maria Teresa Egler Mantoan em todos os

seus aspectos: “A tolerância, como um sentimento aparentemente generoso, pode marcar

uma certa superioridade de quem tolera. O respeito, como conceito, implica um certo

essencialismo, uma generalização, que vem da compreensão de que as diferenças são fixas,

definitivamente estabelecidas, de tal modo que só nos resta respeita-las. Nessas

orientações, entendam-se as deficiências como fixadas no indivíduo, como se fossem

marcas indeléveis, as quais só nos cabe aceitá-las passivamente.”7

O que importa, pois, é considerar as diferenças não como características individuais

fixas, mas, ao contrário, como suscetíveis de evoluir, por exemplo, graças à ação educativa

(o caso de crianças trissômicas é um exemplo manifesto dessas possibilidades de evolução).

Mas, além disso, são as normas institucionais, na escola e nas classes, que devem evoluir.

Muito freqüentemente, as crianças com dificuldade (por deficiência ou outro motivo) são

vítimas do funcionamento elitista do sistema escolar que repousa sobre as normas da

sensibilidade acadêmica e da mentocracia. Assim, “respeitar as diferenças” pode ser uma

armadilha que mantém a injustiça do sistema. No lugar de uma aceitação passiva dessas

diferenças, convém agora transformar as normas institucionais. Mas como e em nome de

quê?

3. A inclusão entre posição ética e construção concreta

a) Qual posição ética?

A noção de ética se refere aqui aos valores fundamentais do ser humano, àquele que

vale para todos. Ela não se confunde, pois, com as normas parciais para tal ou qual grupo

humano. Ela não é mais o moralismo abstrato que nós criticamos. Ela se enuncia

essencialmente sob a forma de direitos fundamentais. Dessa maneira, as organizações

internacionais e européias têm denominado o princípio de não-discriminação no acesso aos

7 Maria Teresa Egler Mantoan. Inclusão escolar – O que é? Por quê? Como fazer? São Paulo: Moderna, 2003, p. 30.

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direitos, quaisquer que sejam as diversidades humanas (sexo, raça, nacionalidade,

deficiência etc.). É a afirmação essencial de igualdade de direitos.

Desse modo, naquilo que concerne às pessoas deficientes, essa igualdade é um

combate, pois as tradições (em termos de representações, de instituições, de práticas) não

permitem ainda essa igualdade. Por exemplo, o direito à escolarização para as crianças

deficientes não é ainda um direito totalmente reconhecido – e ainda menos, adquirido.

Numerosos exemplos na situação francesa mostram todo o trabalho que está ainda por ser

feito nesse domínio. Pais de crianças deficientes se mantêm ainda reticentes quanto às

escolas comuns, quanto à burocracia e aos argumentos hostis da integração.

Desse modo, a questão sobre continuidade da integração permanece sem

modificação. Sejamos mais exatos: a integração de crianças deficientes é mais aceita em

escolas maternais (crianças com menos de seis anos), mas, no nível da escola elementar (de

seis a dez anos) e do colégio (a partir dos dez anos), as propostas administrativas são

freqüentemente orientadas para classes ou estabelecimentos especiais. Dessa situação vem

a reivindicação de pais para uma aplicação contínua da integração no meio escolar comum.

Os textos oficiais recentes sustentam essa aplicação do direito à escolarização para

todas as crianças. O programa “Handiscol”, de 1999, teve por objetivo melhorar a

escolarização de crianças deficientes e favorecer uma melhor informação para o conjunto

de parceiros, aí envolvidos também os pais. A Circular oficial de 1999 enunciava dois

princípios fundamentais: a escolarização é um direito e o acolhimento é um dever. Esse é,

evidentemente, o segundo ponto que se destaca dentre as questões que preocupam escolas e

professores. O mesmo texto especifica: “Cada escola, cada colégio, cada liceu tem

propensão para acolher, sem discriminação, crianças e adolescentes deficientes, cuja

família necessite de integração escolar. Somente será dispensada dessa regra geral se, após

um estudo detalhado da situação, dificuldades importantes tornarem objetivamente

impossível ou demasiadamente exigente para o aluno essa integração.”

Nesse texto, destacam-se, portanto, não apenas a idéia do dever de acolher, mas

também, o reconhecimento do lugar para as demandas familiares (não se excluem senão

alguns dentre esses que demandam um status especial por razões diversas). Resta, desse

modo, que a apreciação de dificuldades importantes e “objetivas” pode abrir debates muito

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polêmicos entre escolas e famílias. Detenhamos-nos, agora no texto citado, no fato de que a

rejeição inicial torna-se impossível: ela deve ser excepcional, precisa e justificada.

A situação é, assim, passível de conhecer novas evoluções. Com efeito, debates vêm

ocorrendo no parlamento francês para uma nova lei sobre pessoas deficientes. O princípio

geral atualmente firmado é aquele da igualdade de direitos e de oportunidades, bem como,

o princípio da cidadania, que devem ser aplicados inteiramente às pessoas deficientes. A

escolarização é tratada no capítulo geral da “Acessibilidade para todos”. Em outros termos,

se a lei deve permitir uma sociedade acessível para todos, ela deve também permitir uma

escola acessível para todos.

A proposta da lei (que será certamente votada antes do fim de 2004) é a de inscrever

todas as crianças – aí compreendidas as crianças deficientes – em escolas comuns o mais

próximas possível de suas casas. É somente “em conseqüência de suas necessidades

particulares” que crianças e adolescentes poderão receber uma formação nos

estabelecimentos ou em serviços de saúde ou médico-sociais. Acrescentemos: uma

novidade importante desse projeto de lei é mencionar o ensino superior (universidades e

escolas superiores). Os estabelecimentos de ensino superior deverão, eles também, observar

o acolhimento e a formação de estudantes que apresentem uma deficiência ou um desajuste

da saúde (esse graças a arranjos específicos).

Em síntese, o projeto de lei apresenta avanços significativos sobre a questão da

escolarização, eliminando-se todas as referências a uma educação “especial”, mas com uma

referência a serviços ou a dispositivos de ajuda específica (atendimento educacional). Nesse

ponto, aproxima-se muito claramente das orientações brasileiras atuais.

Com relação a esse projeto de lei, podemos apontar nele algumas críticas, aqui

mencionadas rapidamente: a manutenção de uma definição muito tradicional e estreita de

“pessoa deficiente”, em vez de ampliar o mais possível esse conceito para “situação de

deficiência” ou “necessidades educativas particulares”; ausência de uma clara e explícita

referência ao conceito de inclusão ou de educação inclusiva, em vias de transformar mais

radicalmente o acolhimento em escolas comuns; ausência de um grande programa de

formação de profissionais (compreendendo aí os professores) que favoreçam a inclusão.

b) Qual construção concreta?

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A afirmação precedente de direitos fundamentais de pessoas em situação de

deficiência, seu reconhecimento pelas organizações internacionais e por diversas leis não é

suficiente, pois subsistem oposições múltiplas, resistências e argumentos contrários às

medidas de inclusão. Desse modo, é comum ouvir nas escolas:

são discursos gerais em favor da inclusão, mas algumas crianças não são

“integradas”;

a presença de crianças “diferentes” dentro da escola se efetiva em detrimento de

outras crianças que se tornam “vítimas” da inclusão.

Do mesmo modo, os pais reclamam freqüentemente que a inclusão de crianças

diferentes retarda o bom andamento da classe e não permite uma boa aprendizagem escolar

para as próprias crianças.

Trata-se, pois, de fornecer elementos de resposta para que os direitos de todos à

escolarização e à aquisição de saberes não fiquem no texto da lei, mas que se concretizem.

Assim, é preciso insistir sobre o fato de que a inclusão/integração é um processo de

construção contínua, que não é dado antecipadamente, a priori, por uma simples boa

vontade: ela demanda um combate para se efetivar concretamente em direitos. Mais ainda,

é preciso capacidade criativa para encontrar soluções para esse problema na vida cotidiana.

As inovações são indispensáveis tanto da parte dos indivíduos como das equipes. Trata-se

ao mesmo tempo de mudar o olhar sobre as diferenças (um olhar não excludente), de mudar

as instituições e de mudar as práticas.

É, pois uma vasta extensão de trabalho, um desafio, uma espécie de “revolução

cultural”. Vejamos algumas pistas somente:

Articulação entre projeto individualizado de inclusão e prática em classe – o

projeto individualizado consiste em definir para uma criança em situação de deficiência o

tipo de atividade lhe seja conveniente desenvolver, bem como, o tipo de ajuda que a deve

beneficiar, oferecida pelos diferentes profissionais. Em lugar do universalismo abstrato que

denunciamos, trata-se de dedicar atenção a cada sujeito determinado, de adotar uma prática

“caso a caso”, como dizem os psicanalistas com os quais trabalhamos.8 Em outros termos,

cada equipe de trabalho (e, se possível, uma equipe expansível que não se limite aos

8 Mais precisamente, os psicanalistas lacanianos, filiados à Escola da Causa Freudiana – Colégio Franco-brasileiro de Paris.

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professores, mas que implique outros profissionais, por exemplo, da saúde) deve determinar

o programa de atividades consideradas ideal e acessível para tal criança em situação de

deficiência. Mas, ainda uma vez, não há uma solução pronta e definida para o caso exato de

cada criança.

A outra vertente é, bem evidentemente, aquela da prática em classe e implica, em

diferentes graus, aspectos coletivos. E é preciso responder aqui às objeções de professores e

de pais. A presença de criança diferente implica, nós costumamos dizer, uma transformação

de práticas educativas. Mas qual transformação? Contra uma pedagogia que não se limita

mais a uma prática frontal, isto é, que se direciona ao conjunto da classe considerada como

uma massa indistinta. Contra uma pedagogia diferenciada, em muitos sentidos do termo:

uma pedagogia com muitas facetas, combinando diferentes tipos de atividades (sub-grupos

de trabalho, re-agrupamentos parciais em tal ou qual momento, trabalho pessoal dos alunos

etc.), mas também, uma pedagogia atenta às diferenças individuais (ritmos de aquisição,

dificuldades de atenção, vazio individualizado...).

O testemunho de professores que praticam exclusão é revelador dessas

transformações – e sobretudo da riqueza dessas transformações. Por exemplo, eles podem

revelar que as dificuldades de linguagem de uma criança deficiente os conduziram a refletir

sobre os processos gerais de aquisição da linguagem e, conseqüentemente, a melhorar suas

práticas em consideração aos alunos. Contrariamente aos objetivos tradicionais, a inclusão

é agora um processo de transformação de práticas vantajosas ao conjunto dos alunos. A

inclusão pode, pois, ser um benefício de todos, mas com a condição de que ela seja o objeto

de reflexão e de inovação pedagógicas.

O papel dos serviços de ajuda especializada

Essa questão importante não aparecia claramente na Declaração de Salamanca. Ora,

ela tem beneficiado numerosas experiências em diferentes países, por causa de suas

instituições e de suas possibilidades concretas. Voltemo-nos, por exemplo, à situação

italiana, a qual já nos referimos, à propósito da integração “radical”, isto é, a ausência de

todas as classes especiais e de todas as escolas especiais. Após a lei de 1977, denominada

“Lei terremoto” (ela modifica radical e completamente a situação anterior), a política

italiana tem consistido, de um lado, em assegurar progressivamente o apoio de professores

suplementares, denominados “professores de apoio”. Essas não são provas para ajudar a

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integração/inclusão dos alunos em situação de deficiência, mas servem para ajudar o

professor regular na gestão do conjunto da classe, pelo fato exatamente da presença de

alunos com deficiências diversas. Além disso, a formação desses professores de “apoio” é

garantida de maneira contínua pelas universidades, mais exatamente pelas faculdades de

educação, que tratam da pedagogia “especial”. Em síntese, a originalidade da Itália é a de

ter sempre a tarefa de formar para a pedagogia “especial” no meio de classes regulares.

Como dissemos anteriormente, a situação francesa é um pouco mais complexa, pelo

fato de haver diversidade de instituições e pela importância de associações que criam e

gerenciam instituições privadas (que são mantidas por financiamentos públicos, através de

“prêmio de jornada” da Seguridade Social). Mas a política oficial em favor da

integração/inclusão tem sido por conseqüência lógica a de suscitar a criação de serviços

especializados encarregados de intervir nos diferentes lugares, por exemplo, nas escolas ou

nas famílias. Esses serviços podem ser especializados para a ajuda destinada às crianças

deficientes visuais, ou deficientes auditivas, deficientes motoras etc. Essas são equipes

pluri-disciplinares, compreendendo diferentes tipos de profissionais, aí contendo

educadores ou professores especializados. O que está em jogo é, assim, a transformação

progressiva de estabelecimentos especializados em serviços especializados, passando de

uma lógica de estruturas pesadas (compreendendo edifícios, salas etc.) a uma lógica de

serviços abertos para ajudar a integração. É preciso destacar, por outro lado, que

associações responsáveis e estabelecimentos especializados se orientam por si só contra a

criação de serviços para assegurar uma ligação com as escolas comuns.

Outros exemplos podem ser dados para a situação francesa. São exemplos de

professores especialistas “itinerantes”, que se deslocam por diferentes escolas para fornecer

apoio e aconselhamento visando à integração. Mas as escolas francesas beneficiam também

redes de ajuda especializada para alunos com dificuldades de aprendizagem. Essas redes

são constituídas por psicólogos e educadores que, eles também, devem se deslocar pelas

diferentes escolas, de acordo com as necessidades dessas.

Há também cargos de auxiliares de integração escolar, criados pelos poderes

públicos após o início de 2000. Nesse caso, os auxiliares não são professores, são mais

freqüentemente jovens que buscam emprego e que o encontram dessa forma,

provisoriamente, trabalho parcamente remunerado, mas que abre pistas profissionais

Page 16: Sobre a inclusão: do moralismo abstrato à ética realcape.edunet.sp.gov.br/textos/textos/6.doc · Web viewEm outros termos, nós gostaríamos de mostrar que a inclusão não depende

(evidentemente, para concorrer a concursos de professores de escolas). Em todos esses

casos (serviços especializados, redes de ajuda, auxiliares de integração), o objetivo é

fornecer às escolas e aos professores mediação, “elementos terceiros”, a fim de favorecer a

integração/inclusão, para não mais os deixar isolados diante de situações por vezes difíceis

de serem solucionadas com crianças em situação de deficiência.

O papel da parceria

Os exemplos precedentes mostram bem a importância do trabalho em cooperação.

Se o laço social deve referir-se a crianças comuns e a crianças em situação de deficiência,

deve referir-se também às relações entre os diferentes profissionais. Para o professor

Andrea Canevaro (da Universidade de Bolonha, na Itália), a integração escolar é a

integração de competências dos adultos. Os psicanalistas da Causa Freudiana utilizam ainda

uma outra expressão: a “prática de muitos”.9 Mas isso não significa absolutamente que

todos façam a mesma coisa, mas que cada um, em sua especialidade profissional, contribua

para a ação como integração. Dito de outra maneira, não se trata de renunciar a seus

propósitos práticos, mas de se integrar em um conjunto, trabalhando com os outros. Não se

trata de uma tarefa fácil, pois as atitudes e as práticas correntes incitam, sobretudo, à

separação, ao trabalho isolado.

O mesmo problema ocorre dentro da escola, onde o trabalho “em equipe” não é um

caso generalizado. Ora, é bem nessa direção que a inclusão/integração pode ser oficial: a

inclusão de uma criança “diferente” é a causa de toda a equipe escolar, e não, algo que o

professor possa resolver sozinho em sua classe.

Resta ainda o problema importante da cooperação com os pais. Nessa, suas

implicações ns políticas escolares e, particularmente, na política de inclusão/integração é

uma peça fundamental para o progresso. Na realidade, ela diz respeito tanto aos pais das

crianças “diferentes” (pais cujas competências deveriam ser mais bem reconhecidas no

trabalho em parceria) quanto aos pais de crianças “comuns” (pais os quais precisam

compreender a diversidade como componente essencial de sua atividade). A esse respeito, é

até possível recusar as oposições tradicionais. Em um jardim da infância que conhecemos

bem em Paris (e que acolhe crianças gravemente deficientes, ao mesmo tempo que as

9 Essas expressão foi traduzida pelos psicanalistas da Escola Brasileira de Psicanálise, ligada ao Campo Freudiano, por “prática a vários”.

Page 17: Sobre a inclusão: do moralismo abstrato à ética realcape.edunet.sp.gov.br/textos/textos/6.doc · Web viewEm outros termos, nós gostaríamos de mostrar que a inclusão não depende

crianças “comuns”), a reputação do estabelecimento é tal que os pais de crianças “comuns”

desejam matricular seus filhos, porque eles pensam que a equipe é mais competente por

acolher os casos difíceis!

A formação dos profissionais

As pistas que viemos tratando precedentemente implicam a necessidade absoluta de

melhorar, e até de transformar, profundamente as diversas formações profissionais para

favorecer a inclusão e, mais geralmente, a aceitação do “outro diferente”. Mesmo nos

países que possuem uma longa tradição de formação de professores especializados (com

certificados profissionais necessários para tal ou qual tipo de deficiência, como na França),

essas formações não são ainda totalmente orientadas para os processos de

inclusão/integração e, sobretudo, para a colaboração com outros profissionais.

Ora, se a questão das parcerias é essencial, é evidentemente uma formação para o

trabalho com os outros que deve ser valorizada. O que dizer agora da formação dos outros

professores? Esses devem ser sensibilizados para a questão da deficiência e, mais

geralmente, para a questão da diversidade de alunos. O sonho de todo professor é, sem

dúvida, o de ter uma classe homogênea, com alunos obtendo resultados relativamente

semelhantes. A realidade é outra: o que domina é exatamente a heterogeneidade e a

diversidade. A formação de todo professor deve, pois, levá-lo a compreender a diversidade

e a fazer frente à diversidade, como componentes essenciais de seu ofício.

Mas, ao lado da formação de professores, especialistas ou não, é a formação de

todos os profissionais implicados que está em causa, independentemente do grau de

implicação de cada um. É desse modo que se pode defender a idéia de um “vasto programa

formativo” para todos os setores profissionais. Dito de outro modo, o objetivo da

inclusão/integração deve ser acompanhado de uma obrigação formativa para os

profissionais envolvidos. É essa a idéia defendida na França pelo Conselho Nacional

“Deficiência: Sensibilizar, informar, formar”.

Poderíamos assim pensar em um tronco comum interprofissional e em ramos

específicos de formação, segundo as especialidades das diferentes profissões. Em síntese, a

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boa vontade ou os bons sentimentos não é suficiente, não apenas; é conveniente melhorar

as formações profissionais, mas é preciso ainda abri-las a colaborações e a integrações de

competências, segundo a fórmula de Andrea Canevaro. Pode-se pensar que essa obrigação

formativa é uma alavanca essencial da mudança cultural para a inclusão.

Conclusão

Nós temos insistido sobre a dimensão ética fundamental da inclusão/integração: é a

aplicação do direito comum a todos, sem discriminação. No domínio da escola, isso

significa a aplicação do direito à escolarização a todas as crianças, quaisquer que sejam

suas diferenças e suas eventuais dificuldades. Nessas condições, o acolhimento em escolas

regulares é um objetivo fundamental. Trata-se também de uma questão essencial para a

democracia e para a cidadania, com o objetivo de construir uma sociedade acessível a

todos.

Mas, ao mesmo tempo, é preciso proteger-se de soçobrar naquilo que denominamos

moralismo abstrato, isto é, na invocação somente da boa vontade ou dos bons sentimentos.

Acolher a diferença implica condições e medidas específicas. Se não chegarmos a elas,

corremos o risco de criar novas exclusões, malgrado a aparência de acolhimento de todos.

Nós temos tentado definir, sem pretender a exaustão, certos dessas condições, mostrando

algumas orientações de ação.

Certamente, algumas medidas demandam meios financeiros, mas outras dessas

dependem da equipe e dispensam financiamento específico. Essas medidas dependem da

capacidade de inovar, de criar, em síntese, de transformar as práticas habituais, por

exemplo, no que diz respeito às práticas em classe ou de práticas em parcerias. Finalmente,

medidas, por vezes modestas, mas que podem ser etapas significativas para abrir espaço

verdadeiramente para a diversidade do ser humano.

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1.

Doutor em Letras e Ciências Humanas (Universidade Sorbonne).

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Professor do Departamento de Ciências da Educação da Universidade René Descartes –

Paris 5 – Sorbonne.

Presidente do Conselho Científico da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da

Universidade Sorbonne.

Membro do Centro de Pesquisa sobre Laços Sociais (CERLIS), associado ao Centro

Nacional de Pesquisa Científica), em que é responsável pela equipe de Educação.

Professor convidado (Convenções Européias Erasmus): Universidade do Minho, Braga

(Portugal), Universidade Humboldt, Berlim (Alemanha), Instituto Universitário de

Ciências Motrice, Roma (Itália), Universidade de Sienna (Itália).

Membro do Conselho Nacional “Deficiências: Sensibilização, Informação, Formação”

Autor de várias obras, tendo lançado recentemente em português o livro “Ciências da

Educação”

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Divulgação autorizada pelo autor.