SOBRE AS ORIGENS DA FAMÍLIA E DO...

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SOBRE AS ORIGENS DA FAMÍLIA E DO DIREITO Jorge Emicles P. P. Barreto [email protected] Professor da Universidade Regional do Cariri Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela UMSA (Argentina) I – INTRODUÇÃO Este trabalho é uma busca ontológica sobre o sentido do direito e sua verdadeira importância para a estruturação da sociedade. Partindo da constatação de que na mais primitiva das sociedades existia já um rudimento que seja da família, vai-nos interessar também a busca das origens dessa família. Esta caminhada se materializa num estudo intrincado, uma vez que a família afeta na formação do direito tanto quanto o direito na formação da família. Muito embora nos pareça evidente a primazia da família, não é nossa preocupação aqui prova-la, senão e tão somente investigar os processos sociais que alimentaram estas criações tão indispensáveis às modernas estruturações sociais. Igualmente não buscaremos traçar um esboço da evolução nem da família nem do direito, senão exclusivamente buscar sua gênese, porque o desenvolvimento posterior é estudo que não cabe dentro deste apertado trabalho. A metodologia que utilizaremos é a da interdisciplinariedade, que deveria marcar as investigações de todas as ciências sociais, afastando-nos, portanto, das metodologias puristas dos positivistas. Em outras palavras, valer-nos-emos dos aportes trazidos pelas demais ciências sobre o tema investigado e os apreciaremos à luz da ciência jurídica. Este dito caminho não é novo, mas bem pouco utilizado pelos juristas, que preferem ainda infundir-se das metodologias positivistas, as quais por sua vez se inspiram nas das ciências naturais, onde as quantificações são essenciais às observações e conclusões. Conforme demonstraremos, a sociedade é repleta de dados e valores não quantificáveis, o que é sério óbice à coerente formação de um pleno conhecimento jurídico. No mais, este é apenas um humilde, despretensioso e provisório trabalho sobre o tema proposto.

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SOBRE AS ORIGENS DA FAMÍLIA E DO DIREITO

Jorge Emicles P. P. Barreto [email protected]

Professor da Universidade Regional do Cariri Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela UMSA (Argentina)

I – INTRODUÇÃO

Este trabalho é uma busca ontológica sobre o sentido do direito e sua verdadeira

importância para a estruturação da sociedade. Partindo da constatação de que na mais primitiva das

sociedades existia já um rudimento que seja da família, vai-nos interessar também a busca das

origens dessa família. Esta caminhada se materializa num estudo intrincado, uma vez que a família

afeta na formação do direito tanto quanto o direito na formação da família. Muito embora nos

pareça evidente a primazia da família, não é nossa preocupação aqui prova-la, senão e tão somente

investigar os processos sociais que alimentaram estas criações tão indispensáveis às modernas

estruturações sociais. Igualmente não buscaremos traçar um esboço da evolução nem da família

nem do direito, senão exclusivamente buscar sua gênese, porque o desenvolvimento posterior é

estudo que não cabe dentro deste apertado trabalho.

A metodologia que utilizaremos é a da interdisciplinariedade, que deveria marcar as

investigações de todas as ciências sociais, afastando-nos, portanto, das metodologias puristas dos

positivistas. Em outras palavras, valer-nos-emos dos aportes trazidos pelas demais ciências sobre o

tema investigado e os apreciaremos à luz da ciência jurídica.

Este dito caminho não é novo, mas bem pouco utilizado pelos juristas, que preferem ainda

infundir-se das metodologias positivistas, as quais por sua vez se inspiram nas das ciências naturais,

onde as quantificações são essenciais às observações e conclusões. Conforme demonstraremos, a

sociedade é repleta de dados e valores não quantificáveis, o que é sério óbice à coerente formação

de um pleno conhecimento jurídico.

No mais, este é apenas um humilde, despretensioso e provisório trabalho sobre o tema

proposto.

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II – PRELIMINARES METODOLÓGICAS

Discutir as origens do direito, seja enquanto fenômeno social, seja enquanto propriamente

uma ciência nos moldes de Decartes é fruto de inúmeras polêmicas. É consenso, no entanto, afirmar

a importância da família na construção dos primitivos povos e consequentemente da própria

sociedade. Assim, se algo há de certo em toda essa discussão, é a precedência da família sobre as

origens da própria sociedade. Pelo menos neste quesito não encontramos grandes divergências entre

os maiores estudiosos desse tema. Nesse sentido, destacamos as evidências da precedência e

importância da família na construção tanto do Estado grego quanto romano, o mesmo podendo ser

dito a respeito de todos os Estados antigos. Aliás, não poderíamos falar na estruturação do homem

social em qualquer de suas múltiplas experiências construídas ao longo de sua vasta história e em

diferentes pontos do planeta, sem verificar preliminarmente a existência da família. O próprio

Rousseau já afirmou que “a mais antiga de todas as sociedades, e a única natural, é a sociedade da

família”1.

Sendo assim, para se atingir o objetivo de compreender as origens do direito, é

imprescindível a compreensão da própria origem da família, porque somente este processo poderá

esclarecer as obscuridades de tal formação. Este é trabalho não somente sociológico, mas mais

ainda antropológico, o que em absoluto não desnatura o caráter jurídico do presente estudo, na exata

medida em que compreendermos a interdisciplinariedade própria de todo e qualquer estudo social.

A propósito disso, já afirmou Pedro Lessa em referencial estudo de filosofia do direito que “um

mesmo fenômeno está sujeito a leis do domínio de várias ciências. A diversidade das ciências,

especialmente no que concerne às sociais, depende dos aspectos, sob que encaramos os mesmos

fenômenos” 2. Dessa maneira, compreender a interdisciplinariedade no âmbito das ciências sociais

não representa somente um método de investigação, mas uma preliminar indispensável à

compreensão mesmo do fenômeno jurídico.

Especificamente sobre a antropologia, seu estudo é sobremaneira indispensável na

perspectiva do presente trabalho, na medida em que a investigação proposta remonta às origens do

direito e por via de conseqüência da própria família, isto porque é na família primitiva que

poderemos seguramente encontrar os primeiros rudimentos do que chamamos modernamente por

direito, conforme já afirmado. Esta, a antropologia, que tanto nas suas origens quanto no auge da

influência positivista era vista como um simples estudo dos aspectos que o homem teria em comum

com as demais espécies animais, a partir da valorosa colaboração de Heidegger passa a ser vista

1 ROUSSEAU. Jean-Jacques. O Contrato Social ou Princípios do Direito Político. P. 15. 2 LESSA, Pedro. Estudos de Filosofia do Direito. P. 82.

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também sob o lado subjetivo das ações humanas, enfrentando os motivos e circunstâncias que

influenciam os fazeres humanos. Surge desse processo a chamada antropologia filosófica. É quase

que um estudo psicológico, mas de toda sorte imprescindível à compreensão também do fenômeno

jurídico. Nas palavras de Ballesteros, diz-se que:

Es indudable que los estudios antropológicos proliferaron a lo largo del siglo XIX, pero en líneas generales, cabe decir que su metodología era la misma de las ciencias naturales, y que su objeto de estudio se limitaba al análisis de aquellos aspectos que el hombre tenía en común con otros seres de la naturaleza. Así, por ejemplo, su dimensión biológica, analizada por la llamada ‘antropología física’, que se ocupaba de temas tales como la raza, o la herencia, o el biotipo. Junto a ella se desarrolló también una nueva ciencia, la etnología, origen de lo que después se llamará ‘antropología cultural’, en la que se estudiaban las costumbres de los pueblos primitivos. Naturalmente, esta segunda puede aportar datos de interés para la filosofía jurídica, como ya hemos indicado, en mucha mayor medida que la anterior (…) La aparición de la ‘antropología filosófica’, única que puede servir de soporte para una auténtica filosofía del derecho, va a abrirse paso, por ello, conjuntamente con la ‘superación de los reduccionismos’. Lo que, como ya dijimos también, se produce conjuntamente gracias a movimientos tales como la fenomenología, el neoaristotelismo y la filosofia analítica postwittgensteriana, no positivista3.

Assim, compreendida a importância da interdisciplinariedade enquanto inarredável

ferramenta de investigação de todos os estudiosos das ciências sociais, notadamente aqui do jurista,

ressaltamos o valor da antropologia nesta busca. Não desconhecemos a resistência história à

utilização de presente metodologia de estudo. Porém, tal é conseqüência de já tantas décadas de

julgo da metodologia positivista, notadamente daquela proposta pela teoria pura do direito. Na ótica

do positivismo, duas premissas são afirmadas de forma absolutamente errôneas, muito embora se

tenham enraizado tão profundamente na dogmática dos estudos jurídicos que são profundos os

equívocos a que levaram já várias gerações de estudiosos. Dizem respeito à utilização dos mesmos

métodos de estudo das ciências naturais e da negação de que possa ser produzido direito fora do

âmbito do Estado. Obviamente discordamos de ambas, porque compreendemos que a ciência seja

enquanto tal, seja enquanto fenômeno social, somente poderá restar definitivamente desabrochada a

3 “É inolvidável que os estudos antropológicos proliferam ao largo do século XIX, mas em linhas gerais, cabe dizer que sua metodologia era a mesma das ciências naturais, e que seu objeto de estudo se limitava à analise daqueles aspectos que o homem tinha em comum com outros seres da natureza. Assim, por exemplo, sua dimensão biológica, analisada pela chamada ‘antropologia física’, que se ocupa de temas tais como a raça, ou a herança, ou o biótipo. Junto a ela se desenvolveu também uma nova ciência, a etnologia, origem depois da chamada ‘antropologia cultural’. Naturalmente, esta segunda pode aportar dados de interesse para a filosofia, como já indicamos, em maior medida que a anterior (...) A aparição da ‘antropologia filosófica’, única que pode servir de suporte para uma autêntica filosofia do direito, abre passo, por ele, conjuntamente com a superação dos reducionismos. O que, como já dissemos também, produz conjuntamente graças a movimentos tais como a fenomenologia, o neoaristotelismo e a filosofia analítica postwittgensteriana, não a positivista”. In BALLESTEROS, Jesús. Sobre El Sentido Del Derecho. P. 119-20. Tradução do autor.

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partir da negação daquelas falsas premissas. Este, contudo seria tema de estudo bem mais profundo

e específico, o que não cabe neste despretensioso trabalho. Cabe-nos assim mesmo afirmar que a

utilização dos métodos das ciências naturais no âmbito de estudo das ciências sociais, leva à

quantificação dos fenômenos, da mesma forma que ao desprezo daqueles que não possam ser

quantificados. A equidade dos romanos, diferente dos postulados positivistas atuais, leva em conta

o universo dos valores e assim dos motivos que levam uma pessoa a realizar esta ou aquela ação

juridicamente relevante. Tal aspecto é totalmente desprezado pelos métodos positivistas, o que

obviamente afasta o direito de sua essência e origem. Em outras palavras, os positivistas, por sua

metodologia, negam a ontologia da ciência do direito. É exatamente esta que pretendemos resgatar,

ao menos em parte, com a proposição do presente estudo. E se o propósito seria localizar a essência

do direito, o caminho invariavelmente deverá buscar as origens das sociedades primitivas, e logo da

família.

III – TRÊS GÊNESIS POSSÍVEIS

Vem de Darwing a lição de que todas as formas de vida existente além de virem de uma

forma comum paulatinamente enfrentaram processos evolutivos os quais deram-lhes os modernos

contornos e características. Obviamente o mesmo deve ser suposto quanto ao homem e suas mais

antigas associações. É o caso mesmo de se falar em uma teoria da evolução natural não somente do

homem enquanto espécie animal, mas igualmente enquanto organização social. Esta idéia, por sinal,

é bem acorde com toda a produção filosófica dos gregos, para quem não teria havido um momento

de rompimento entre o que chamamos de homem natural e homem social, mas na verdade um

processo evolutivo e contínuo de um tipo a outro de organização.

De toda sorte, por mais que intuamos por qual tenha sido o processo que culminou nas

modernas sociedades humanas, da primeira fagulha de consciência social ou do primeiro momento

efetivo desta organização não podemos afirmar. Não restam evidências dele, menos porque não

tenha existido e mais porque se trata de um momento tão antigo na história que dele não se guardam

memórias, senão antropológicas. Portanto, não seria possível afirmar-se datas e períodos mais

precisos da história evolutiva da humanidade. O que da história universal podemos apreender são as

evidências de que houve sim um processo evolutivo e que este tem início ainda antes do nascimento

do homem tal qual o conhecemos hoje. Entre os grandes primatas assim como os primeiros

hominídeos já haviam rudimentos de organização social. Já entre os neandertais se verifica não

somente o associativismo assim como o costume de inumar os seus mortos. Assim, mesmo nos

graus mais rudimentares de comunicação, quando eram evidentes as limitações cognitivas e

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intelectuais desse velho homem, já é possível se falar de algum tipo de organização social. Essa

organização mesmo induz a um sistema de controle dos seus membros, que por sua vez conduz à

afirmação de que haveria já naquele tempo algum direito, mesmo que rudimentar. Afinal, sempre

que existiu sociedade, existiria o direito. Se o direito é fenômeno social, não haveria como se

olvidar essa evidência.

É igualmente certo, no entanto, que a organização deste primitivo homem tem contornos e

especificações bem distintas da nossa. Assim, se esta antiga organização social induz à existência

do direito e antes dele da família, estes são diversos daquilo que hoje compreendemos como direito

e como família. Por sua vez, para se compreender aquelas primitivas instituições ou formas de

organização, preciso é que se as observe sobre os prismas daqueles povos. Como já disse

Coulanges, “observai as instituições dos antigos, sem atentar para suas crenças; achá-las-eis

obscuras, bizarras, inexplicáveis” 4. E este, a quem chamamos aqui de o velho homem, possuía tanto

uma linguagem quanto uma compreensão do mundo extremamente parcial se comparada com a que

hoje possuímos. E é sobre ele que Wells afirma que:

O homem primordial, antes de pudesse falar, viu provavelmente, como um lince, exprimiu-se numa mímica inteligente e rica, gesticulou, riu, dançou e viveu, sem indagar muito de onde tinha vindo e por que vivia. Temia o escuro , por certo, e os trovões, e os grandes animais, e as coisas estranhas, e as que imaginava ou sonhava, e, sem dúvida, buscava por meio de ações e gestos tornar propícias as coisas que receava, ou mudar a sua sorte e agradar às forças imaginárias das rochas, das feras e dos rios. Não distinguia claramente , as coisas inanimadas das animadas; se um pau o feria, ele o batia; se o rio subia, julgava-o zangado e hostil. Seu pensamento estava, provavelmente, ao nível do de uma inteligente criança de hoje de quatro ou cinco anos. Tinha as mesmas sutis e dessarazoadas transições e as mesmas limitações. Mas por isso que não falava ou quase não falava, não lhe seria possível transmitir as próprias fantasias e desenvolver qualquer tradição ou ação conseqüente5.

De todos os fenômenos da natureza, por certo o que mais chocou o velho homem tenha

sido o da morte. Não deve ter sido fácil àquela primitiva consciência compreender o sentido da

finitude da vida, verificado pela inanição e decomposição do corpo. Como já dissemos, desde o

homem neandertal, talvez mesmo até antes dele, já se verifica o costume de inumação dos

cadáveres. Mas não somente do cadáver, senão também em companhia de seus pertences pessoais e

de alimentos. Muito embora para Wells isso não pareça ser evidência de uma intuição de outra vida,

é certo que toda a primitiva comunidade tenha se formado a partir dessa crença, tendo sido este o

fato central através do qual se estruturou a antiga sociedade assim como, principalmente, a religião

4 COULANGES. Fustel de. A Cidade Antiga. P. 28. 5 WELLA. Herbert Goerges. História Universal. P. 120-1.

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mais antiga conhecida. Sobre este tema é referência a obra máxima de Foustel de Coulanges, o

clássico A Cidade Antiga, através do qual demonstra uma séria de evidências antropológicas que

ligam as antigas organizações sociais à prévia consciência da morte, à intuição de uma vida

póstuma e por conseguinte, à estruturação dessa antiga religião, conhecida por religião dos manes.

Segundo Coulanges, da percepção da existência da morte nasce a necessidade não somente da

criação de um ritual de despedida, mas também a crença de que por alguma forma a vida

prosseguiria. Certamente o fato de se sonhar com os mortos, fato que embora não provado é de

grande probabilidade senão de uma quase certeza, fortaleceu ainda mais tal crença. O fato de que

com o morto seremm enterrados os seus pertences e ainda alimentos somente fortalece a crença de

uma continuação da vida, mesmo que em outro plano.

Uma vez que a vida póstuma seria diferente da vida cotidiana conhecida pela comunidade,

também diferentes seriam as habilidades daquele que houvesse feito a passagem. Provavelmente

dos sonhos, intuíram que os mortos seriam dotados de poderes através dos quais controlariam as

forças naturais. Assim, dependeria deles, por exemplo, as chuvas na época e quantidade certas, da

mesma forma que a fúria das forças da natureza seriam conseqüência do descontentamento dos

mortos. Para uma vida pacífica, seria então preciso controlar a ira destes mortos, o que acreditavam

possível por meio da lembrança e da oferenda de alimentos, afinal, também pelos sonhos,

compreendiam que os finados possuíam ainda as mesmas necessidades dos vivos. Isso se evidencia

pela verificação comprovada das inumações desde imemorável passado nas mais antigas

comunidades humanas. Sobre a gênese da antiga crença, o próprio Coulanges afirma:

Dessa crença primitiva derivou-se a necessidade do sepultamento. Para que a alma se mantivesse nessa morada subterrânea, necessária para sua segunda vida, era preciso que o corpo ao qual permanecia ligada, fosse coberto por terra. A alma que não possuía sepultura não possuía morada, e ficava errante. Em vão aspirava ao repouso, que deveria desejar depois das agitações e trabalhos dessa vida; e era obrigada a errar sempre, sob a forma de larva ou de fantasma, sem se deter jamais, e sem receber nunca as ofertas e alimentos de que necessitava. Como era infeliz, logo se tornava perversa. Atormentava os vivos, provocava-lhes doenças, destruía colheitas, assustava-os com aparições lúgubres, a fim de fazer com que dessem sepultura a seu corpo e a si mesma Daí se originou a crença nas almas do outro mundo. Toda a antiguidade estava persuadida de que, sem sepultura, a alma era miserável, e que pela sepultura tornava-se feliz. Não era por ostentação de dor que se oficiavam as pompas fúnebres, mas para repouso e felicidade da alma do morto. 6

Porém, se os mortos eram eternos e os vivos finitos, isso significou um importante

problema a ser solucionado, uma vez que as oferendas deveriam ser perpetuamente oferecidas,

6 COULANGES. Fustel de. A Cidade Antiga. P. 38

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assim como haveriam sempre novos mortos a serem cultuados. Era preciso, então, criar-se dentro da

comunidade alguma forma de preservação desses costumes. Para isto, foram instituídos laços

aparentemente naturais que uniriam determinadas pessoas do grupo, através dos quais restavam

obrigados a reverenciar e alimentar os mortos geração após geração, numa linha contínua e

incessante. Em outras palavras, o antigo homem criou a família, cuja principal importância seria a

de preservar o culto aos manes. Também teria sido necessário criar um espaço onde se enterrariam e

cultuariam os mortos, área esta exclusiva de determinada família, conceito o qual por sua própria

essência excluiria o de todas as outras famílias. Estaria aqui a origem da propriedade. Como pelos

métodos naturais nem sempre uma família teria rebentos, por intermédio dos quais se preservaria o

culto aos mortos com o seguimento das gerações, foi preciso criar uma forma de filiação artificial,

ou seja, a adoção. E foi desta maneira, assegura Coulanges, que se estruturaram as mais antigas

sociedades, tendo sido a partir do culto aos mortos que surgiram as civilizações da antiguidade, tal

qual as conhecemos hoje. E de fato, são muitas as evidências de que a antiga religião dos manes ao

menos esteve presente na gênese tanto dos gregos quanto dos romanos. Nas palavras de Coulanges,

temos que:

a comparação das crenças e das leis mostra que a família grega e romana foi constituída por uma religião primitiva, que igualmente estabeleceu o casamento e a autoridade paterna, fixando as linhas de parentesco, consagrando o direito de propriedade e de sucessão. Essa mesma religião, depois de estabelecer e formar a família, instituiu uma associação maior, a cidade, e predominou sobre ela como o fazia na família. Dela se originaram todas as instituições, como todo o direito privado dos antigos 7

Desenvolvendo idéia aparentemente antagônica, é bem mais difundida a tese do eminente

inglês Friedrich Engels esposada na obra intitulada A Origem da Família, da Propriedade Privada

e do Estado. Como co-autor de importantes obras de Marx, é certo que a citada obra é um elo mais

na formação da chamada Teoria Econômica, alicerce central de toda a teoria socialista moderna.

Nela, Engels parte de estudos desenvolvidos por Morgan, a partir da observação de algumas tribos

indígenas existentes na América do Norte e no Hawaí, a partir de onde extrai a conclusão central do

livro, segundo a qual nas comunidades primitivas, no tempo da formação do velho homem, este se

organizou socialmente a partir do núcleo da família, porém esta tinha conotações extremante

diferentes de tudo o que conhecemos hoje. Para o inglês, esta família se constituía a partir de uniões

de grupos inteiros e não entre pessoas individualizadas, no que chamou de casamento por grupos.

Estes casamentos, nas próprias palavras de Engles tinham as seguintes características:

7 Idem p. 45.

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Reconstruindo retrospectivamente a história da família, Morgan chega, de acordo com a maioria de seus colegas, à conclusão de que existiu uma época primitiva em que reinava, no seio da tribo, o comércio sexual sem limites, de modo que cada mulher pertencia igualmente a todos os homens e cada homem igualmente a todas as mulheres. Já se falava desse estado primitivo no século passado, mas apenas em formulações genéricas. Só Bachofén – e este é um de seus grandes méritos – o levou a sério e procurou seus vestígios nas tradições históricas e religiosas. Sabemos hoje que os vestígios descobertos por ele não conduzem a nenhum estado social de promiscuidade sexual sem limites, mas sim a uma forma muito mais tardia, a do casamento por grupos. Aquele estado social primitivo, caso tenha realmente existido, pertence a uma época já remota que não podemos esperar encontrar provas diretas de sua existência, nem mesmo nos fósseis sociais, entre os selvagens mais atrasados. O mérito de Bachofén consiste justamente em ter posto em primeiro plano o estudo dessa questão8 .

Estes casamentos entre grupos, apesar da não exclusividade das relações sexuais na

verdade era um modelo pleno de família, onde existiam regras de convivência, de respeito e enfim,

direitos e obrigações em graus e dimensões diferentes. Portanto, este grupo exclui a existência de

hordas, onde não existissem quaisquer regras de convivência social. A liberdade sexual, todavia,

conduzia à incerteza biológica da paternidade, em contraposição à certeza da maternidade, o que

levou à instituição tanto da paternidade quanto da maternidade coletivas, mas também ao

estabelecimento de uma linhagem familiar baseada exclusivamente na descendência materna. Isto

leva ao fortalecimento da posição da mulher no âmbito desta primitiva comunidade social.

Enquanto prevaleceu a propriedade coletivo, ou conforme a nomenclatura de Engels, um estágio

primitivo de comunismo, esta organização familiar foi adequada para responder às necessidades

daquela sociedade. Com o excedente de produção, contudo, nasceu o sentido da propriedade

privada, fazendo surgir a necessidade da sucessão, o que era extremamente desvantajoso para os

homens, na medida em que não possuíam (ou ao menos não sabiam quem seriam) seus verdadeiros

filhos biológicos. Logo, foi preciso criar algum mecanismo capaz de trazer também certeza quanto à

paternidade, o que obviamente somente foi possível a partir da monogamia, ou senão pelo menos da

fidelidade feminina, posto que do contrário jamais existiria a certeza da paternidade e logo a

segurança na distribuição do patrimônio somente aos filhos biológicos do homem com expressa

exclusão de todos os outros.

Assim é que, para Engels, houve um processo evolutivo, por onde a humanidade passou da

barbárie, para a organização do casamento por grupos, depois para um casamento pré-monogâmico

e por fim ao casamento monogâmico, na forma que o conhecemos hoje. Reputa com muita

propriedade o discurso, meramente ideológico, de que por natureza o homem seja monogâmico,

dentre outras razões, porque entre os mamíferos superiores esta organização, senão inexistente, pelo

8 ENGELS. Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. P. 42

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menos é extremamente incomum, sem dizer da ausência de indícios antropológicos no sentido de

que tal tenha existido na gênese do gênero humano9. A organização da família e a instituição da

propriedade privada, segundo afirma o citado inglês, é o que realmente tem relevância para a

estruturação da sociedade. Os outros valores, tais como o direito e a religião, seriam meros

instrumentos de controle ideológico e por isso de afirmação do poder.

Outra visão da gênese da sociedade humana encontramos nos trabalhos dos chamados

contratualistas. Longe de ser uma idéia isolada própria de alguns poucos filósofos, esta foi idéia

central no mundo que construiu a transição entre a idade moderna e a contemporânea, sendo por

isso uma das mais importantes escolas que se forjaram em torno de uma idéia. Para alguns, seu

teórico mais importante teria sido John Lock, mas sem dúvidas o mais famoso de todos foi o

irreverente Jean-Jacques Rousseau. É esta escola que constrói a tese de que a sociedade humana,

com todos os seus desdobramentos tenha sido fruto de um grande pacto, por meio de qual se forjou

o famoso contrato social, o Estado e todos as demais instituições sociais conhecidas, como a

família, o direito, a religião, etc. Da obra mais importante de Rousseu, podemos extrair a seguinte

síntese10: a) a desigualdade entre os homens é presente desde o estágio do homem natural; b) São

incidentes, mais ou menos ocasionais, que pela sua sucessão acabam por originar a sociedade, cujo

marco mais antigo é a instituição da propriedade, divisão do trabalho e do excedente de produção,

que são a origem da desigualdade social; c) Por isso, a desigualdade é presente tanto na origem do

homem em sociedade, como do homem natural, de maneira que jamais tenha havido nenhuma

igualdade; d) Essa desigualdade não é obra da natureza, mas do próprio homem; e) O contrato

social nasce nesse ambiente, sendo conseqüência de um pacto entre todos os membros da

comunidade; f) Tal pacto necessariamente deverá ser fruto de uma unanimidade, de maneira que, ao

menos em suas origens, houve uma primeira unanimidade; g) A finalidade do contrato social é a

concretização da segurança coletiva, tanto contra o inimigo externo, mas também dos próprios

pares; h) Assim, o contrato social tem por pressuposto estabelecer normas e limites de convivência

entre os homens; i) A instituição do contrato social não é o marco nem do Estado, nem da

sociedade, mas do próprio povo; j) Por isso mesmo o governo é diferente do soberano, sendo esse

último mero delegado do povo; k) Em vista dos fundamentos do contrato social, a lei jamais poderá

referendar a escravidão, tendo necessariamente de ser fundada na vontade do povo.

No parte que nos interessa, a teoria de Rousseau afirma que antes da instituição do contrato

social, ponto a partir do qual se edifica a sociedade, o único direito existente seria o da liberdade, ou

9 Fala-se dos macacos antropóides, que seriam monogâmicos. Contudo, esta espécie não possui parentesco biológico com os humanos. 10 PISIER. Evelyne. História das Indéias Políticas.

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o da ausência de limites, senão daqueles mesmos impostos pelas limitações físicas do próprio

homem. Sendo assim, partindo da evidente constatação de que a família impõe algum nível de regra

de convivência enquanto pré condição de sua existência, a dita ausência de limites seria evidência

em si mesmo da inexistência de família anteriormente. A eventual existência de outros tipos de

associativismo, não induz à confirmação de que tenha havido família anteriormente ao contrato

social. O máximo que se poderia legitimamente concluir seria a existência de hordes ou outras

formas de organização, porém sempre diferentes da família. Destas formas outras, contudo, não

existem evidências sejam arqueológicas, sejam antropológicas ou de outro nível. E são estas

ausências de comprovações fáticas da existência de um estado de natureza praticamente anárquico

(porque nele reinava exclusivamente a liberdade natural e sua essência é a negação em si mesmo da

existência de qualquer regra de convívio) que nos revelam a inconsistência essencial da teoria de

Rousseau, o que contudo, exporemos por ocasião das conclusões deste trabalho.

IV – BUSCANDO UM CONCENSO?

De primeira vista parecem inconciliáveis as teorias apresentadas pelos três filósofos. Pelo

próprio momento histórico em que produziram suas obras e desenrolaram suas vidas, mas também

pelos prismas a partir dos quais cada um desenvolve seu raciocínio e observação. Rousseau foi

contemporâneo da revolução francesa e sem dúvidas sua obra é uma das suas mais inspiradoras

fontes; Coulanges, também francês, vive já um período de mais razão, enquanto que Engels já

observa de segura distância temporal e ideológica os acontecimentos da revolução francesa. A suas

próprias vidas justifica a diferença de pensamento, porém, ainda assim, é possível verificar uma

linha comum de coerência e complementação entre as idéias dos três pensadores. Antes de tudo, nos

parece, não existem contradições fundamentais e evidentes entre as teorias postas.

Coulanges destaca as raízes antropológicas mais evidentes e vivas nas sociedades de todos

os tempos: a religião. Engels observa os instintos animais que primeiro aproximaram os antigos

homens uns dos outros, vendo como principal deles o instinto sexual. Não desvelou, porém, o da

ganância e do egoísmo construídos a partir da <descoberta> da propriedade. Já Rousseau, por

necessidade do seu tempo, centra todas as energias no fustigar a ilegitimidade da escravidão e do

despotismo, o que é valor essencial na construção da própria revolução francesa. Nenhum, porém,

desmente expressamente os outros. Na teoria econômica de Kals Marx, é verdade que se constrói a

religião como um mero discurso ideológico e de perpetuação do poder. De fato, não duvidamos do

papel ideológico não apenas da religião, como também do direito, mas no momento da formação

das primitivas sociedades, o grau de maturidade intelectual do velho homem não permitiria construir

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ainda o intricado discurso da religião como ideologia. As evidências antropológicas são suficientes

para afirmar da crença em uma nova vida e por isso da necessidade de construção de todo um

aparato social baseado nela. A religião dos manes em seus primórdios não justificou nem alimentou

o mito da propriedade privada absoluta. A primeira propriedade que existiu foi titularizada pela

família, não pelo indivíduo, além de ser indisponível. Esta foi a tradição tanto do povo grego quanto

do romano. Ainda nas Institutas do Imperador Justiniano, obra máxima da maturidade jurídica

romana constava na classificação das coisas, aquelas chamadas res extra patrimonium, que não

poderiam ser objeto de qualquer tipo de negócio, dentre as quais se incluía a mais antiga

propriedade romana (a sua origem, conforme atesta Coulanges), que eram os túmulos (res

religiosae). Literalmente das institutas, se observa: “são nullius (de ninguém) as coisas sagradas,

religiosas e santas, pois o que é de direito divino a ninguém pertence”11. E assim dispunha as

Institutas sem inovar em nada, senão repetir a mais antiga tradição, de tempo anterior até à Lei das

XII Tábuas.

Já a constatação de Coulanges quanto às origens da religião umbilicalmente ligadas tanto

às da família quanto do direito não se antagonizam com o modelo de família preconizado por

Engels. Como a família antiga se liga não pela propriedade, mas pelos laços de parentescos e pela

obrigação recíproca de preservação do culto aos mortos, o seu modelo se adaptaria sem reservas a

uma família centrada no parentesco pela maternidade. O que importa na religião dos manes não é

propriamente a descendência masculina, mas a descendência por um único gênero, que bem poderia

ser o feminino. O aperfeiçoamento da propriedade, que necessariamente aconteceu posteriormente à

formação da família, este sim, é que com o tempo modificou tanto a indisponibilidade dela (que

então aos poucos deixa de ser da família passando a ser do indivíduo) quanto a herança agora pela

linha paterna. Os estudos do direito romano antigo demonstram com clareza que houveram lentas e

profundas modificações na propriedade ao longo dos treze séculos de existência daquela civilização

Estes mesmos estudos revelam também a obscuridade quase total que ronda os seus períodos mais

antigos, exatamente onde buscamos focar o olhar agora. Por isso não há certeza nem de que nos

mais antigos primórdios a família romana tenha sido comandada pelo homem ou, se ao contrário,

pela mulher.Uma meditação sobre estes estudos por certo esclareceria bastante este ponto, coisa

contudo que não cabe neste pequeno trabalho. Assim mesmo nos parece claro a primazia da religião

sobre a família.

Já o erro de Rousseau está em pretender que o homem no estágio animalesco do que

imaginou ser o estado de natureza tivesse capacidade intelectual para firmar, pela unanimidade, um

11 JUSTINIANUS, Flavius. Institutas do Imperador Justiniano. Tradução J, Cretella Jr. P. 78.

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pacto tão complexo quanto o contrato social. Foi a força, mesmo, o motor das primitivas

organização e foi a família que aos poucos esquematizou a ordem social. Como não houve

rompimento do homem inserido na família e ele mesmo na sociedade, logo não é absurdo concluir

que aquele maturou e forjou este. E assim como não há rompimento do homem em família com o

homem social também não há o do homem natural com o social. Aliás, não existe mesmo nenhuma

evidência no sentido de que tenha de fato havido o tal rompimento. Nem os gregos nem os romanos

jamais acreditaram em tal rompimento, senão na evolução natural do estágio mais primitivo para a

mais acurada organização social. Darwin e ninguém mais que os contratualistas encontram

evidências do rompimento de estados, de maneira que à falta de comprovações de qualquer grau, o

contrato social não pode ser interpretado senão como uma metáfora, não como algo que de fato

tenha acontecido. Em tudo o mais, contudo, não há qualquer contradição no diz Rousseau e

Coulanges e Engels. Assim, as três teorias se encontram quando Rousseau fala da desigualdade

essencial dos homens, do egoísmo nato da civilização, da necessidade de se unir para se proteger e

todos os demais princípios do que chama de princípios de direito políticos contidos em sua obra.

V – BREVES CONCLUSÕES

Embora uma necessidade na busca do sentido ontológico do direito, a descoberta das

origens da família é uma árdua busca da ciência jurídica e as explicações construídas nas diferentes

épocas conduzem a observações que aparentemente se chocam. São muitas as visões, mas três deles

nos pareceram principais: cronologicamente a de Rousseau, Coulanges e Engels.

Há pontos de conflito entre as três teorias, mas igualmente pontos de compasso, onde os

dados de um observador além de não se contradizerem, reforçam os pontos de vista dos outros. Nos

pontos em que não se choca com outras, uma teoria não deve ser refutada, mas integralizada com o

objetivo de formar uma visão macro do objeto examinado. Mais que nunca isso é presente nas

ciências sociais, especialmente a partir da noção de interdisciplinariedade.

Do confronto e da meditação das três teorias propostas, se revela que as origens da família

estão determinantemente ligadas à religião dos manes, que também é o valor determinante na

gênese do próprio direito. Esta constatação, contudo não anula nem a proposição de Engels sobre as

origens da família nem de Rousseau sobre a desigualdade latente desde o estágio primitivo entre os

homens, embora se antagonize com o primeiro sobre a origem mais remota da propriedade (note

que a propriedade privada sucede a propriedade familiar) e com o segundo quanto à existência de

fato do pacto que firmou o contrato social. É desta gênese essencial que teria surgido, nesta ordem,

a família, a propriedade e os demais institutos jurídicos conhecidos.

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