Sobre Cultura

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prof. jos monir nasser

Sobre Cultura

O primeiro sentido da palavra cultura muito amplo, enorme. A cultura tudo aquilo que a natureza no produziu.

Vocs conhecem O Livro de J? J que aparentemente nada fez de errado est com a vida destruda. Perdeu seus filhos, perdeu tudo que possua, ficou miservel e adoeceu. Encontra-se nu, sentado num montolho de lixo, raspando as feridas de seu corpo com um caco de telha quando Deus lhe aparece. Deus no lhe aparece diretamente porque isso impossvel.

Lemos a Divina Comdia em que Dante descreve a dificuldade da mente humana em lidar com a viso verdadeira de Deus.

Deus aparece para J como uma ventania, e lhe pergunta onde estava quando criou Behemoth e Leviathan. Essas duas criaturas so as mais belas imagens explicativas que h. Behemoth um monstro que representa a natureza com todos seus contedos, a natureza que ao mesmo tempo nossa me e nossa madrasta. A natureza que a geradora da vida e, ao mesmo tempo, a geradora da morte.

Behemoth and Leviathanc. 1805 1810Hoje em dia h uma mania muito inadequada de se divinizar a natureza o que pecado, pois no devemos divinizar nada a no ser Deus segundo o primeiro mandamento. Ento amar a Deus sobre todas as coisas amar menos o Green Peace. Se a natureza possui nossas fontes de subsistncia, as terras e as sementes que nos do de comer, tambm nela est a varola, a rubola, o bicho-de-p, os tufes e os tsunamis. Por causa dessa histria de ambientalismo temos a mania de diviniz-la, mas a natureza um monstro.

A natureza o Behemoth, um monstro retratado por William Blake, ingls nascido em 1757, que desenhou um hipoptamo para represent-lo. No tempo dos judeus, em que o Livro de J foi escrito, a frica ainda era uma regio inexplorada e o hipoptamo era uma espcie de monstro desconhecido. Alis, o animal mais feroz da frica gerando o maior nmero de mortes. Ele derruba os barcos e mata seus ocupantes.

O Behemoth, a natureza, uma espcie de monstro com coisas boas e ruins. Ainda segundo o Livro de J, Deus criou o Leviathan, uma serpente marinha. Se o Behemoth representa a natureza, o Leviathan significa a cultura humana, a civilizao humana, ou seja, tudo aquilo que a natureza no produziu. A cultura humana, no sentido que estou usando agora, tudo o que a natureza no produziu desde o modo de fritar ovo at a literatura, passando pela puericultura, pelos mtodos de ensino, pelo jeito de fazer uma prospeco geolgica, o modo como um advogado faz uma petio em juzo, enfim, tudo isso cultura. Cultura o Leviathan, aquilo que se ope natureza. No Livro de J, Deus est nos dizendo que Behemoth e Leviathan so incompatveis. H uma tenso entre os dois. Toda a cultura uma interferncia na natureza. Por exemplo, quando voc tira um matinho para poder arar uma roa de mandioca, voc est interferindo no modo como a natureza disps os arbustos. Quando voc toma um remdio para matar um animal que est deixando seu filho doente, voc est interferindo na natureza.

Entre Behemoth e Leviathan h sempre uma tenso, ou seja, a cultura e a natureza so, de certa maneira, incompatveis. Behemoth representa a natureza, ou seja, todas as coisas que estavam a antes do aparecimento do homem como o clima, as pedras, s rvores, as guas, etc. Deus ento colocou o homem que se disse infeliz, pois sentia frio e precisava matar um animal para se aquecer com a sua pele. Ou ento, reclamava do calor e chegamos finalmente ao condicionador de ar.

Os homens, que so o Leviathan, que a cultura humana, passam a sua existncia inteira brigando com Behemoth, que a natureza que no to angelical quanto pensamos e tem l seus aspectos negativos e assassinos. A natureza tem perigos que lhe so inerentes e no nos trata com condescendncia. No fundo, esse planeta perigoso.

Temos o espetculo do pr-do-sol, os gramados floridos, mas tambm temos os ursos e o vrus da Aids, que so partes da natureza. Assim, a natureza tem o componente da vida e o da morte ao mesmo tempo. Por isso, Leviathan est sempre infeliz com a natureza e passa toda a histria da humanidade tentando melhorar os aspectos da natureza que parecem indesejveis.

Num tempo de ambientalismos panfletrios como temos hoje, importante entender isso, sobretudo porque os professores so ensinados a dizer aos alunos que a natureza uma espcie de perfeio e de me, o que no verdade. Ora, berne natural. H coisa mais desagradvel do que berne?

O primeiro sentido de cultura o sentido de que cultura igual ao Leviathan, esse monstro. No digo que a humanidade sacrossanta. Do mesmo modo que Behemoth tem aspectos positivos e negativos, Leviathan tambm. preciso lembrar que desse encontro dos dois monstros, sempre haver algum prejuzo e os cristais da casa sero afetados, porque nunca h um encontro pacfico entre eles.

Essa preocupao chamada ambientalista, esses problemas que hoje se reconhece como da natureza, so meio que inevitveis. No d para imaginar que os dois monstros se comportem, pois como monstros so incontrolveis, grandes e destrutivos. Como so dois monstros com aspectos em contradio um com o outro, a vida humana sobre este planeta ser sempre uma vida de contradio e de encrenca. Por isso no haver nunca um mundo livre de poluio, onde no se tenha algum prejuzo para alguns animais, etc. Tudo isso inevitvel.

O primeiro sentido de cultura esse do Leviathan, uma serpente marinha muito malcriada.

Aluno: Hoje est em voga o efeito estufa, e ser que somos capazes de causar isso tudo? No vemos outro tipo de informao e ficamos com essa pergunta pairando sobre nossas cabeas.

Acontece que hoje h uma campanha internacional para colocar a culpa no ser humano dos problemas da natureza. como se o tribunal do mundo colocasse o Leviathan no banco dos rus culpando-o pelos problemas do Behemoth, o coitadinho do hipoptamo o que no tem cabimento. Behemoth uma entidade que tem em si prpria todas as contradies que voc pode imaginar. O planeta sozinho, independente da ao do homem, esfria e esquenta, do mesmo modo como bate o corao, em sstole e distole conforme registros histricos do planeta.

Quando o planeta esfria uma poro de bichinhos morre. Qual o maior responsvel pela extino dos bichinhos no mundo? a prpria natureza. Quando o planeta esquenta, outros bichinhos morrem. A natureza, s vezes, manda um meteoro de 30 km que bate na terra e extingue metade dos seres vivos, acaba com milhes de espcies que no sobrevivem. Isso faz parte da existncia do Behemoth, a sua natureza autodestrutiva.

Sobre os tais incndios florestais que provocamos, era hbito de nossos ndios queimar a roa, a coivara mas a natureza providencia incndios florestais muito maiores, durante muito mais tempo. Durante toda a histria do mundo, um raio pega um galho seco, num lugar sem gua porque a natureza tem as suas flutuaes naturais e queima um pas do tamanho do Brasil. Esse monstro Behemoth tem l suas culpas, e tem dentro dele o potencial de destruio que de alguma maneira se renova depois. Se o planeta padece de coisas que nos parecem ser patolgicas, seguramente a maior causa disso est no prprio planeta e no no Leviathan. Agora estou bancando o advogado de defesa daquela lagartixa monstruosa chamada Leviathan sentada no banco dos rus. E seguramente o Leviathan colabora tambm, mas no se pode dizer que o maior responsvel por isso porque a histria do planeta muito longa e os homens esto a h pouqussimo tempo. Se o Leviathan fosse culpado de tudo, ento o passado do planeta teria que ter sido mais pacfico e no foi. O Leviathan tem um pouco de culpa porque gera interferncias no ambiente que o modifica e aparecem os efeitos colaterais. Sua contribuio muito menor do que a prpria contribuio de Behemoth.

Tem aquecimento global? Ningum sabe na verdade. O primeiro problema que os dados so completamente contraditrios havendo aquecimento em alguns lugares e em outros no. Estava a o chefe da misso brasileira na Antrtica dizendo que nunca passou tanto frio na vida como nos ltimos cinco anos que as temperaturas na Antrtica baixaram uma barbaridade. A primeira coisa a saber que no existe nenhuma espcie de consenso acerca do assunto. Vamos supor que haja. Esse aquecimento global no uma obra do ser humano, porque o planeta sozinho esquenta e esfria, esquenta e esfria. Seria exagero atribuir ao ser humano uma coisa dessas. Vocs tm idia do que necessrio para esquentar ou esfriar o planeta em termos de volume de fenmenos naturais? Mesmo que quisssemos no conseguiramos.

A pergunta intrigante a seguinte: por que todo mundo est convicto de que o mundo vai acabar amanh, de que h um aquecimento global terrvel que nos obriga l em Bali, nesse momento, a discutir com uma poro de cidados do mundo sobre como acabar com essa catstrofe? Por que apesar dessas informaes todas h tanta gente querendo nos convencer de que o aquecimento global culpa da General Motors e do fogo a lenha?

Porque existe no mundo milhes de pessoas que so professores, so cmplices, so entidades que precisam criar essa idia de que o mundo ir acabar para poder receber dos governos e das empresas o dinheiro para financiar suas vidas de anunciadores do armaggedon. Essa histria gerou um tipo de Ong que a famosa Ong-Bang que grita o tempo todo fogo na floresta, fogo na floresta.

H hoje um emprego chamado catastrofismo e so milhes de pessoas que recebem milhares de dlares para tentar impedir esse desastre chamado aquecimento global e essas pessoas so as que financiam esse escndalo todo, que de uma ingenuidade tremenda. As pessoas s acreditam nisso porque no param dois minutos para pensar, seno teriam inmeras ressalvas a fazer.

Essa conversa de aquecimento global a maior tapeao, a maior vigarice que j se inventou no mundo. E no algo isolado, pois a cada trs anos inventam uma coisa desse tipo. Quando a camada de oznio parou de interessar as pessoas, inventaram a tal da crise da biodiversidade. Quando isso parou de influenciar o mundo, criaram a crise da gua. Agora, inventaram o aquecimento global e daqui a dois anos inventaro outra coisa porque preciso que todo mundo fique morrendo de medo, seno o governo no paga as Ongs que salvaro nossas vidas.

Posso estar simplificando, mas essencialmente o resumo da pera este.

Aluno pergunta se por ficarmos envolvidos com essas questes no dia a dia no estaramos com o que se chama de falta de viso sistmica.

Como escapar dessas tapeaes que o mundo lhe prope? Somente quando se tem um dna contra essas tapeaes, quando voc nasceu com uma capacidade de prestar ateno, mas no todo mundo que nasce assim. Se voc no nasceu assim, ento deve ter anticorpos. Por exemplo, nenhuma pessoa que tenha lido O Livro de J com ateno e que tenha compreendido o sentido verdadeiro de Behemoth e Leviathan, capaz de concordar com uma viso ingnua e romntica da natureza como essa que est por trs dessa campanha.

O problema da leitura que a maior parte das pessoas ao ler, elas como que deslizam sobre o gelo com patins. Passam pelos assuntos como quem patina. A leitura como faz o gelogo: a arte de cavar buracos. Ler cavar um buraco e ir cada vez mais fundo tentando entender o que est escrito ali de verdade. Ler um livro de verdade ser capaz de dizer o que o autor quer lhe dizer. Para poder fazer isso, a primeira condio que voc aceite que possa estar escrito alguma coisa que o autor quis lhe dizer.

Por exemplo, tome O Livro de J, um dos livros da bblia, talvez de todos os livros, o mais potico, o mais literrio. Eu diria que mais literrio o Pentateuco (talvez da autoria de Moiss), os cinco primeiros livros da bblia. O Livro de J nos conta que Deus criou dois monstros. Ele no criou uma donzela fraquinha chamada natureza e um monstro horrvel chamado Leviathan. Os dois so monstros. Quando voc pergunta o que isso significa, compreende que a natureza no tem somente aspectos salvadores, mas traz tambm aspectos assassinos e que por causa disso, h uma incompatibilidade, at certo ponto, entre a natureza e a cultura humana. A natureza o Behemoth e a cultura humana o Leviathan. Ora, se voc entendeu isto, se est convicto disto, voc nunca mais compra conversa fiada de ambientalista, porque sabe que as coisas no so assim. O ambientalista s consegue tirar dinheiro do nosso bolso porque ele est falando com pessoas que no prestaram ateno ao O Livro de J. Por isso, a nica maneira de voc criar anticorpos voc adquirir uma verdadeira cultura.

O assunto cultura, mas percebam que no estou usando o termo cultura no sentido do Leviathan tudo que o homem inventou. Este sentido to amplo e to disperso que no nos serviria. Vamos usar o termo cultura num sentido muito mais restrito que o sentido dado palavra cultura por um filsofo romano chamado Ccero. Ele chamava a ateno das pessoas para os campos que os circundavam na rea rural. L estavam os pastos, os campos nos quais plantavam. Os campos so obra do Behemoth. O nosso Leviathan interno, a nossa capacidade de inventar tcnicas agrcolas, domar as plantas, controlar os animais, nos ensinou aos poucos a cultivar os campos, a cultivar a natureza.

Esse sentido de cultivo da natureza o sentido que Ccero dava palavra cultura. Ele dizia que cultura era a arte de tornar frteis os campos. esse sentido que nos interessa. Tomamos emprestado o termo cultura do mundo da agricultura e dizemos que do mesmo modo que podemos cultivar os campos e obter os frutos da terra Leviathan est domando Behemoth tambm possvel cultivar o nosso esprito. Cultivar nosso esprito o que chamamos de cultura em nosso curso.

Compreenderam que Behemoth e Leviathan esto sempre em luta? Porque o mundo nunca exatamente do modo como queremos. Por exemplo, no queremos perder nossos filhos para a poliomielite, ento fizemos a erradicao deste vrus no Brasil. O que fizemos com a varola que to natural quanto o pr-do-sol. Tambm os homens a extinguiram da face da terra. O Leviathan nunca est feliz com o modo como Behemoth est. Como no queremos entregar nossos filhos morte, damos pontaps no Behemoth a serpente marinha chicoteando o hipoptamo com o rabo mas o ltimo, de vez em quando nos d uma mordida. assim que esses dois funcionam, muito parecido com o casamento.

Nunca haver no mundo, portanto a possibilidade da natureza ficar intocada. H de certa maneira uma compensao natural. Toda vez que voc no modifica a natureza, voc precisa aceitar as conseqncias disso aceitar as conseqncias disso aceitar menos comida. Ns modificamos as plantas. Todas as plantas cultivadas nesta regio de Paranava, so diferentes de como a natureza as produziu. Foram modificadas ou pela seleo natural, ou pelo processo moderno de biotecnologia que j existe na soja, etc. Quer deixar a planta tal como a natureza a produziu? Quer deixar o Behemoth em paz? Ento aperte o cinto e coma menos. O que no pode reclamar depois que no h comida na mesa. No queremos planta transgnica? Ento se conforme com menos comida mesa. Entenderam que isso uma desgraa, mas uma desgraa humana? Esse conflito est dentro da problemtica da existncia humana.

Mas estamos interessados na cultura no sentido em que Ccero nos fala de cultura. Para ele, o cultivo do nosso esprito. uma maneira de ns, seres humanos, termos nosso esprito to cuidado quanto um fazendeiro cuida bem das suas terras e as mantm frteis.

H trs meios pelos quais a cultura nos entregue.

1. Pela palavra escrita. A maior parte das entidades culturais so textos, livros, escritos. o meio mais importante de todos. 2. Pelas artes do espao que so fundamentalmente as artes plsticas que se subdividem em pintura, escultura, desenho, etc. e a arquitetura. pela imagem.3. Pelas artes do tempo que so fundamentalmente as msicas em geral.

A palavra escrita no est nem no espao nem no tempo. O que est escrito no papel no est no tempo, mas est presa na linguagem, como se fosse um contedo para o qual somente olhssemos. A palavra escrita sempre de uma natureza diferente. O segundo meio a imagem, portanto a arquitetura e as artes plsticas em geral. O terceiro tipo de manifestao de cultura a arte do tempo. A msica no tem espao nenhum. Beethoven compunha completamente surdo e nunca ouviu a 9 Sinfonia com seus ouvidos.

Na prtica, h uma verdadeira mistura dessas trs coisas. O maior exemplo disso a pera. Ela um tipo de forma artstica em que voc tem a palavra, pois ela canta uma histria. Voc tem o cenrio teatral, portanto aparecem as artes plsticas e existe a msica. A pera, de todas as modalidades artsticas, a mais completa, mas hoje em dia no h mais interesse por pera. Raramente encontro algum que tenha feito a experincia de ouvir uma pera inteira do comeo ao fim. O maior conjunto operstico j produzido o conjunto das quatro peras de Wagner, O Ciclo do Anel um conjunto de histrias das tradies germnicas que Wagner reuniu para contar aos alemes quem eram. As peras na seqncia O Ouro do Reno, A Valquria, Sigfried e O Crepsculo dos Deuses levam 16 horas para serem ouvidas. Quem nesse mundo moderno tem 16 horas para ouvir ao menos uma vez as quatro obras de Wagner? E comear a entender a pera, voc deve ouvi-la umas cinco ou seis vezes.

A pera, apesar de ser a mais completa das manifestaes, difcil de ser ouvida. Eu diria que ao menos uma pera de Mozart vocs deveriam ouvir como A Flauta Mgica ou Don Giovanni. Don Giovanni deve ter umas trs horas e de 1780 aproximadamente. considerada a melhor pera do ponto de vista formal. Nenhuma pera tem uma estrutura to perfeita como esta.

Os bens culturais vm nessas trs possibilidades que so igualmente importantes. H coisas maravilhosas para se ler, para se ver e para se ouvir. Qualquer pessoa que tenha feito para si prpria um projeto de cultura, est obrigada a ter uma ligao com essas trs coisas. Por isso que digo que um projeto de cultura muito diferente de um projeto de literatura. O sujeito que gosta de literatura, ele s gosta de literatura, e dentro da literatura, ele gosta de qualquer coisa. Isso no uma boa idia, porque o sujeito l muita porcaria e da nasce essa desgraa chamada hbito de leitura. Sou autor da campanha nacional contra o hbito da leitura, que uma das sete pragas do Egito.

Amor pela cultura alguma coisa que implica em voc no ter preconceitos contra este ou aquele meio pelo qual a cultura vem. Quando a pessoa muito especialista em determinado assunto, ela no consegue entender o resto. O pior grupo de todos esses o cinfilo que acha que a cultura se resume em cinema. Eles vem 30 filmes por ano e no entendem nenhum, mas gostam daquela imagem que se move, entendem? No isso que cultura de verdade. Aqui nosso programa se chama Expedies pelo Mundo da Cultura por essa razo e no Expedies pelo Mundo da Literatura. A cultura outra coisa da qual a literatura faz parte.

Se voc est interessado em obter uma verdadeira cultura voc deve saber apreciar uma tela de Velsquez, um filme de Michelangelo Antonioni, voc tem que ser capaz de apreciar uma pera como a de Wagner ou de Mozart, tem que ser capaz de apreciar um quarteto de cordas de Beethoven, tem que ser capaz de apreciar os grandes livros. E no pode ter preconceitos quanto a nada disso.

Por que deveramos ser mais cultos? H muitas e muitas razes. A primeira razo pode ser explicada por Ortega & Gasset que diz que quando um tigre nasce, o tigre sempre o primeiro tigre que nasceu, porque ele no precisa de seus antepassados para ser tigre. Quando ns, seres humanos nascemos, no somos o primeiro ser humano. Antes de ns, veio uma turma enorme que nos deixou uma herana maior ainda. Deixaram-nos obras, idias, concluses, momentos maravilhosamente bem feitos de percepo de mundo. Atrs de ns, veio uma turma que, de certo modo, foi maior do que ns at porque as nossas condies de sobrevivncia moderna so faclimas. Vocs no tm idia do que seus avs passaram. Sempre que for reclamar da vida, lembre de seus avs ao chegar a esta cidade. Materialmente falando, a melhor poca da histria da humanidade.

Devemos ter muito respeito pelos nossos antepassados, e independentemente das coisas materiais que fazemos melhor que eles, sob um certo ponto de vista, as coisas que so de natureza cultura,l no sentido de Ccero, como obras de cultura, eles fizeram melhor que ns. Ontem, vimos A Divina Comdia que o maior exemplo disso.

A primeira razo pela qual devemos ter cultura que devemos nos lembrar da herana que nossos antepassados nos deixaram. Temos o direito de lanar mo dela. A Paixo Segundo So Mateus de Bach um bem herdado inestimvel, talvez a melhor pea sinfnica j produzida.

A segunda razo pela qual devemos cultivar nosso esprito porque se no tivermos verdadeiramente uma cultura, no seremos capazes de viver bem a vida. Quando no se tem cultura, vive-se sempre assustado, porque a vida uma sucesso de sustos. uma estrada em que cada curva pode trazer um caminho na contra-mo. Voc precisa viajar da melhor maneira possvel. Voc precisa aprender com aqueles que vieram antes, a entender quais so as situaes que a vida vai lhe apresentar. isso que voc faz quando capaz de ler 200, 300 romances. Ler no deslizar de patins pela obra, mas so 200 escalaes geolgicas que voc far para dominar mais ou menos o conjunto das possibilidades humanas.

Voc no aprendeu sozinho, mas aprendeu com a Mme. Bovary, com o Cap. Ahab, com Julien Sorel. Essas personagens vo lhe contar uma determinada situao humana, pela qual voc sempre ter chance de passar e que nos interessa fundamentalmente entender. Quando estiver diante de um problema similar, se lembrar dos irmos Karamazov ou de Emma Bovary e saber agir com mais inteligncia. Imagine a riqueza que tem uma pessoa com cultura onde as coisas que acontecem ao seu redor j no so novidades. Ao se deparar com aquele caminho na curva, voc sabe que no o primeiro a passar por isso. E a primeira coisa que voc no far, em termos psicolgicos, varrer aquela situao para debaixo do tapete. Em outras palavras, voc no deixa que aquilo se torne uma neurose.

O que neurose? Neurose uma situao que voc entendeu errado, quer dizer, que leu mentirosamente e que continua acreditando nela porque voc a escondeu de tal modo que no consegue perceber que est errado. Esse mal estar neurtico ir lhe perseguir pelo resto da vida. Voc viver essa neurose sem ter conscincia disso. Como no neurotizar? Ao encontrar aquele caminho na curva, se lembra de Memrias Pstumas de Brs Cubas que j resolveu o problema para voc e ento no sofre sozinho. A cultura ento gera sade mental. Para quem no tem cultura, tudo um terror.

A segunda boa razo deixar que na sua alma penetrem as obras de arte desses trs tipos, da palavra escrita, da imagem e do espao, que lhe daro maior resistncia s desgraas gerais da vida que nos aguardam s por sermos humanos. O mundo sempre nos propor surpresas, coisas que parecero injustias, coisas com as quais nos revoltaremos, coisas terrveis que nos faro sofrer. Reclamaes com Deus, que lhe perguntar onde voc estava quando Ele criou Behemoth e Leviathan. A vida humana tem uma dor intrnseca e no h modo de revogar essa condio.

uma ingenuidade muito grande afirmar que a ignorncia nos poupa do sofrimento. No possvel algum ser ignorante e ser feliz, a menos que esse algum tenha como perspectiva de vida ser to ignorante quanto seu papagaio. Se a idia rebaixar o homem para um status inferior ao do humano, ento esta regra est valendo.

Essa a mais importante razo pelas quais devemos ler os grandes livros, ver as grandes obras e ouvir as grandes obras musicais, pois essas coisas elevam o nvel do nosso esprito para as estrelas e nos torna muito mais humanos, nos torna muito mais capazes de representar o projeto que estava em questo quando fomos inventados.

Uma das razes tambm muito importante pela qual devemos adquirir cultura que a cultura tem muitos inimigos. H muitas foras que nos impedem de ter cultura. So inmeras, mas vou citar algumas.

A primeira fora que nos impede a tal da indstria cultural, um grupo de empresrios que usam a cultura como um assunto econmico. Assim como o cerealista vende cereais, o dono da RCA Victor vende discos. Para o dono da Philips tanto faz vender alta ou baixa cultura, no h diferena, porque ele v aquilo como assunto econmico. O dono de uma editora, geralmente, vende a Bblia e as memrias erticas da Bruna surfistinha lado a lado, sem o menor constrangimento. Para o editor tanto faz produzir a Bblia ou as memrias, o que importa que mandou dois livros para a livraria e eles vo gerar R$ 100,00 de renda e vou receber R$ 50,00 de volta. Nem sabe se vendeu duas Bblias ou duas memrias. Ele s quer saber do dinheiro que vai voltar do que ele colocou naquelas duas obras. No entendam o meu tom como um tom moralista, porque no .

Para a indstria cultural que um assunto de mundo industrial, ou seja, de terceira casta, o mundo dos negcios, de modo geral, no interessa o tipo de coisa que voc est fazendo. Tambm no para voc ficar por a achando que a indstria de discos um monstro porque vende mais msica ruim do que Beethoven. A culpa no das indstrias de discos, mas dos professores. Se os professores ensinassem as crianas a gostar de Beethoven, elas pediriam um disco dele. O vendedor sentindo a demanda se comunicaria com a RCA Victor que os produziria. Mas se os professores no ensinam nada, os alunos vo achar bacana o disco do Tiririca. Como todo mundo pede o Tiririca, ento os empresrios do mundo do disco s produzem Tiririca. Quem est bem em cima na cadeia alimentar da cultura? O professor, o jornalista, o escritor, ns aqui que temos poder de influenciar a vida dos outros.

Veja que o professor pode dar para seus alunos a abertura de mundo, a possibilidade de enxergar o mundo. A palavra educao vem de e-ducere que significa conduzir para fora. A criana est dentro de uma jaula e para tir-la de l, o professor lhe mostra mundos que ela nem sonha que existem, lhe apresenta a herana dos antepassados, lhe mostra os momentos mais altos e extraordinrios das conquistas humanas e, com isso, essas crianas deixam de morar na jaula e vo morar nas estrelas que o objetivo mesmo da educao.

O primeiro de todos os inimigos que algum que esteja interessado em alta cultura vai mais ou menos ter acesso ao que est disponvel no mercado, nas prateleiras que dominado apenas pelo pragmatismo econmico. E tem que ser assim mesmo, porque o empresrio tem que fazer o negcio funcionar. H uma m qualidade ao redor de tudo.

A culpa ainda maior de uma classe de intelectuais chamada de antroplogos, os estudiosos das sociedades humanas, da evoluo do homem, daquela coisa dos diversos aspectos da vida humana no s social, como pessoal. O antroplogo estuda o indivduo no sob o ponto de vista psicolgico, mas sob o ponto de vista de interaes do indivduo com o mundo. Eles estudam as diversas culturas que existem no mundo. Culturas agora no mais no sentido de Leviathan, nem no sentido de Ccero, mas como um modo de ser de uma certa sociedade: cultura asitica, cultura americana, europia, etc.

Como eles so teoricamente cientistas, tm a obrigao de no terem opinies sobre o que estudam. Um antroplogo ao estudar uma cultura diferente da nossa, mesmo quando se depara com hbitos que nos so horripilantes como a prtica indgena brasileira de abandonar crianas no desejadas na mata para morrer no acha errado porque no quer emitir uma opinio moral sobre o fato. Para o antroplogo isso tem valor porque o modo de ser de um povo.

Por exemplo, existe nas mulheres um componente masculino que o clitris, e nos homens h um componente feminino que a glande. Alguns povos fazem a circunciso e outros, sobretudo na frica, fazem a exciso do clitris. Fazem isso para confirmar a feminilidade da mulher. Parece uma coisa brbara para ns, mas o antroplogo acha que um fato concreto da vida que merece estudo. Com essa mania de no acharem nada certo ou errado acabaram como os maiores responsveis por esse ataque cultura porque geraram a idia de que todas as manifestaes culturais so iguais.

Do mesmo modo que no h nenhum problema nas manifestaes culturais no sentido antropolgico, no h nenhuma diferena moral entre as culturas, de qualidade, no h nenhuma hierarquia os antroplogos nos fizeram acreditar que quando se fala de cultura sob o ponto de vista de cultivo do esprito, todas as coisas tm o mesmo valor. Esta viso antropolgica de cultivo do esprito quer nos dizer, em ltima anlise, que o sambinha do Tiririca vale a mesma coisa que A Paixo de So Mateus de Johan S. Bach. Em algum aspecto vale alguma coisa? Sim, o aspecto humano vale, pois afinal o Tiririca s o Tiririca e no o Johan S. Bach. Mas sob o ponto de vista do valor relativo que tem a obra para a humanidade, para a histria, para os que viro, para a constituio da herana humana, Bach e Tiririca so a mesma coisa? A crnica do Luis Fernando Verssimo a mesma coisa que o romance de Machado de Assis?

Compreenderam que da antropologia que veio esse tremendo engano de achar que as coisas no tm diferena entre si? Para mim, esse o maior inimigo da cultura, porque por a ns comunicamos onde est o dinheiro e a indstria cultural no precisa se preocupar em produzir coisas melhores porque as ruins j bastam.

Esse o assunto central do nosso encontro de hoje. Vamos compreender como podemos nos vacinar contra essa simplificao antropolgica de achar que todos os bens culturais so a mesma coisa. Temos que tirar essa idia da cabea para produzir uma cultura pessoal mnima.

Aluno pergunta sobre Ccero.

Ccero era um filsofo romano muito menor do que os gregos, mas os romanos no eram de muita filosofia era uma sociedade de outra natureza, com outra ndole. J os gregos eram uma sociedade de filsofos, de pensadores, tanto que nenhum outro lugar do mundo teve tanta importncia como a Grcia, sobretudo Atenas1. Entre os trgicos e os filsofos voc tem um conjunto de percepes sobre a realidade da vida humana inigualvel. Os gregos eram extraordinariamente filosficos e, portanto formaram o mundo como ele hoje. Os romanos no, usando uma outra linguagem, os gregos so de primeira casta e os romanos so de segunda. Os romanos achavam que o sentido da vida era o sentido imperial do poder poltico. A Grcia jamais teve imprio e para brigar com os persas tiveram que fazer um exrcito de coalizo. Os romanos foram o maior imprio da terra durando mil anos mais ou menos, sempre baseados na idia militarista de que o poder militar o que interessa. Os romanos devotaram toda sua energia a aspectos militares.

1. Com exceo de Jerusalm por causa da presena de Jesus Cristo.

Os gregos se devotaram a pensar o mundo. Quando os romanos os conquistaram, ficaram responsveis pela educao da sociedade. Os romanos saram para brigar com os brbaros e deixaram seus filhos sob a guarda dos gregos. a primeira vez na histria em que o conquistado passa a sua cultura para o conquistador. Os romanos tiveram a humildade de reconhecer que no dominavam esse assunto, assim sendo, todos os filsofos romanos so pequenos e quase todos se filiam a uma escola filosfica grega chamada Estica. A palavra estica significa porto, onde esses homens se encontravam diariamente para pensar a vida. Os romanos adoraram o estoicismo porque ele dizia que a vida era repleta de dificuldades e que o jeito de driblar isso era viver com honra e decncia. Hoje, estico algum que tem uma vida dura, modesta, sem exageros. Como os romanos eram soldados, juntaram o que havia de mais pragmtico na Grcia e Ccero era um deles. Ccero escreveu um livro maravilhoso chamado Da Velhice, mas no tinha uma filosofia prpria, nem um sistema filosfico, no fez nenhuma descoberta, apenas reproduzia a filosofia dos gregos. A idia de Ccero de que a cultura do esprito correspondente cultura do campo, eu diria, a melhor idia que ele teve. No grande como Scrates, Plato e Aristteles, nem como Santo Agostinho, So Toms e todos os outros, mas era profundamente ligado ao modo como os romanos viam a vida, que era um modo de sacrifcio militar.

Temos uma viso errada dos romanos por causa de Nero e Calgula e pensamos que Roma era uma espcie de farra. Os romanos eram de um moralismo insuportvel. Era uma sociedade moralista onde os usos e costumes eram muito controlados no controlados pela polcia, mas pela presso social e s ficou ruim no final, quando j havia perdido suas caractersticas civilizatrias originais. Durante quase o tempo todo, Roma no foi a farra retratada pelo cinema. A Grcia foi bem mais liberal que Roma. Roma era uma sociedade de caserna, de soldados qual a filosofia que nasceria disso? A filosofia de Ccero que seguia o estoicismo com o sacrifcio da vida.

Apenas para fechar o raciocnio da primeira parte da manh:

Recuperamos o conceito de cultura. Disse para vocs que cultura tudo aquilo que no est na natureza e trouxe Behemoth e Leviathan que so entidades em permanente conflito. Com isso, tentei ajud-los a no carem como trouxas na propaganda ambientalista que busca apenas dinheiro. Os ambientalistas so os sujeitos que querem nos ensinar a ver as horas e pegam nosso relgio emprestado sem nunca mais devolv-lo. Disse que o conceito de cultura que ser usado aqui o de Ccero. A cultura algo que voc faz ao seu esprito que equivalente ao que o agricultor faz com a terra. Voc mantm seu esprito vivo e frtil.

H trs meios de se obter cultura: a cultura que vem pela palavra, que est nos livros; a cultura que vem pela msica; a cultura que vem pelo espao, a imagem.

Porque adquirir cultura: porque nunca somos os primeiros seres humanos, portanto h uma herana que nos precede; porque precisamos da cultura para viver bem e poder nos resguardar do enlouquecimento neurtico que est o tempo todo sendo surpreendido em cada curva do caminho; e, sobretudo, porque h muitos inimigos. O maior inimigo da cultura a transposio indevida do conceito antropolgico de neutralidade axiolgica (moralmente estamos neutros) para o conceito de Ccero. Por essa razo nem sabemos mais o que deveramos ler, olhar e ouvir.

Aluno diz que os costumes dos povos tm sua importncia histrica, mas a importncia da cultura... inaudvel.

A nica coisa que restou da Guerra do Peloponeso foi o livro A Guerra do Peloponeso. A guerra sumiu, acabou e nem os cadveres existem mais. Talvez uma armadura ou outra num museu. O nico modo de convivermos com a vida pela intermediao dos bens culturais. E essa a razo pela qual temos que aprender a lidar com isso, pois precisamos fazer essa entrega generosa a nossos alunos que vivem enjaulados e precisam sair e voar. Teremos feito nossa obrigao.

Intervalo.

Outra razo pela qual no devemos jamais perder o hbito de cultivar nosso esprito que a perda de cultura indolor. Quando voc fica pobre voc percebe rapidamente porque a luz e a gua so cortadas, mas com a burrice, voc nem nota.

No existe em educao nenhuma frmula mgica e nem que eu triplicasse o dinheiro eu resolveria esse problema, embora resolvesse o problema econmico dos professores. Mas so coisas completamente diferentes. No fundo, o problema da educao que precisamos ter uma elite, no entendam no sentido econmico, ter um grupo de pessoas de muito alto padro, porque desse grupo que capaz de contaminar o grupo embaixo. O que se pretende fazer aqui pegar as melhores pessoas dos municpios em torno de Paranava, que distem at 2 horas de carro.

O norte do Paran foi feito assim. O engenheiro Beltro, um dos colonizadores daqui, andava a cavalo por 2 horas, parava e fundava uma cidade. Por isso h uma cidadezinha ao lado da outra.

O jeito de fazer funcionar um projeto de recuperao da cultura nesses municpios, por menor que sejam, no tem a menor importncia, que consegussemos que as melhores pessoas se predispusessem a fazer uma viagem maravilhosa pelo mtodo por meio do qual a Grcia fez a educao de sua gente. Paidia significa educao em grego. Esse livro de Werner Jaeger apresenta certa dificuldade porque faz muitas citaes a outras coisas, mas isso pode ser contornado por um grupo de trabalho dirigido pela professora Ismnia Varella, coordenadora, cuja misso fazer a digesto do livro para quem no tem tanto tempo para estudar.

Todos os meses estarei aqui e nesses encontros vamos conversar sobre aspectos fundamentais sobre educao que nos foram trazidos pelo livro Paidia. Este livro a nica obra que lida com esse assunto: como que se transforma uma sociedade pela educao. Se houve uma sociedade construda pela educao foi a grega.

A idia criar uma espcie de conversa baseada numa obra gigantesca sobre educao para que a gente consiga entender o que a nossa vida de professor e o que podemos fazer pelos nossos alunos para restaurar a cultura no Brasil. Ou restauramos a cultura ou no temos nenhuma possibilidade e acreditem em mim que sou licenciado em Letras e sou bacharel em Economia quando digo a vocs que no adianta ir pela economia, eu sei do que estou falando. No no dinheiro que est a soluo do Brasil. Esse o sentido desse programa do qual vocs receberam cpia.

A aula recomea.

Passei o semestre passado estudando uma coisa chamada Simblica pela mo do Mrio Ferreira dos Santos com um grupo de alunos em Curitiba. Esse um livro que diz que todos os nmeros tm um significado simblico. O nmero quatro tem um significado extraordinrio. Quase tudo que h na natureza apresenta quatro possibilidades: so quatro estaes do ano, voc tem os quatro elementos, as quatro etapas da vida, os quatro pontos cardeais, os quatro cavaleiros do apocalipse, os quatro evangelhos, etc. A quantidade de coincidncias como essas enorme. O mais engraado que andei fazendo esquemas como esse aqui durante a minha vida e quase sempre eles tinham quatro quadros. Lendo Mrio Ferreira dos Santos, entendi que o nmero quatro apresenta simbolicamente as possibilidades das coisas que esto no mundo.

Tenho norte, sul, leste e oeste e destas quatro direes que tenho todas as outras. Estamos no noroeste porque estamos numa mistura de norte com oeste. Mas o noroeste s existe porque h o norte e o oeste antes. Ento so quatro pontos cardeais. O quatro mais ou menos a regra que preside as possibilidades do mundo. Ele simbolicamente uma representao de que tudo tem quatro possibilidades. muito comum voc chegar ao nmero quatro.

Por exemplo, o clima definido por quatro variveis. Pode ser quente, frio, mido e seco e da voc tem os diversos climas: quente e mido, seco e frio, etc. H quatro castas, quatro etapas do ciclo csmico, so quatro discursos de Aristteles. como se as coisas que existissem neste mundo, para que existam, tenha que haver uma condio de elas poderem existir em quatro formas diferentes. No coincidncia, mas alguma coisa que est escondida atrs do nmero quatro que no representa apenas um nmero. H alguma coisa no nmero quatro que representa mais do que apenas uma noo de quantidade. O nmero quatro indica que quando as coisas existem no mundo, elas existem em quatro modalidades diferentes. Posso ir para o norte, sul, leste e oeste ou para variaes que incluem essas quatro, mistura essas quatro possibilidades.

A Simblica uma rea de estudos das grandes tradies, uma rea do conhecimento humano onde se investiga qual o significado oculto. Na verdade, todo o conhecimento cientfico uma investigao do que est oculto. Ao ver a chuva caindo, voc precisa entender como o mecanismo da chuva e voc precisa olhar para aquilo que aparentemente no est visvel que o mecanismo que faz a chuva.

No podia ser muito diferente quando a gente olha para os bens culturais artsticos. Neste quadro aqui, os bens culturais artsticos foram reunidos em quatro quadrantes, em quatro possibilidades bsicas. Essas quatro possibilidades nasceram de duas variveis que se misturam. Reparem que tenho no quadrante superior esquerdo: forma complexa e contedo denso. Tenho neste quadrante superior esquerdo todas as manifestaes artsticas que tm a forma complexa, e o contedo denso.

Vocs entendem que toda obra de arte ou obra cultural tem forma e contedo? Um romance tem forma e contedo na medida em que conto uma histria e essa histria pode ser bem ou mal contada. a forma. Posso usar palavras adequadas ou no, posso criar um texto agradvel leitura ou no, mas independentemente do modo como voc escreve, o romance tem uma mensagem que o que interessa. Ento o romance tem o contedo que o que ele traz. Um quadro tem uma forma que quer me dizer alguma coisa. claro que a forma e o contedo esto associadas entre si, mas posso sempre distinguir uma coisa da outra. Posso interpretar a obra. sempre a forma que me apresenta o contedo que perceptvel paralelamente forma.

Se no estou preocupado com o contedo, tornei-me um apaixonado pela literatura. O mal do problema do hbito de leitura que as pessoas s deslizam sobre o ringue de gelo. Os que esto interessados no contedo so aqueles que fazem o buraco e a pesquisa geolgica do que est embaixo.

J que tenho contedo e forma posso dividir as obras de arte em quatro possibilidades. A primeira a que est no quadrante superior esquerdo em que a forma complexa e o contedo denso. Quando uma obra se apresenta assim? Quando olho para um quadro de Velsquez que quanto mais olho, mais descubro coisas que no tinha visto ainda. Quando escuto uma pera ou uma sinfonia que quanto mais escuto, mais descubro coisas que ainda no tinha descoberto. Otto Maria Carpeaux lia A Divina Comdia todos os anos porque a cada leitura que fazia, descobria mais coisas novas.

O que caracteriza as grandes e maiores obras de arte que foram feitas esta associao de uma forma complexa e um contedo denso. So as obras que nunca deixaro de ser lidas, vistas ou ouvidas.

Mas nem toda obra assim, veja o quadrante superior direito em que tenho outra situao: forma simples e contedo denso. E h mais duas possibilidades, a do quadrante inferior esquerdo com a situao: contedo ligeiro e forma complexa. E no quadrante inferior direito a situao: forma simples e contedo ligeiro.

Isso significa que eu poderia distribuir todas as formas artsticas por esses quatro quadrantes aqui. Claro que sempre haveria uma ou outra obra que ficaria mal classificada, mas a coisa mais natural do mundo, porque sempre que tentemos aprisionar as coisas em esquemas as coisas so mais complexas que nossos esquemas e elas sempre nos fogem. Mas isso no nos exime da possibilidade de tentar, nem desvaloriza o esforo que fazemos para poder ter uma visibilidade disso.

Perceberam o que estamos fazendo aqui? Estamos tentando lutar contra aquela mania antropolgica de achar que todas as formas artsticas se equivalem, que so todas iguais. Se isso verdade sob o ponto de vista exclusivo da manifestao artstica, tudo bem. No entanto, o impacto que a obra tem sobre a vida humana, sobre a histria, sobre a civilizao muito diferente. H muita diferena entre o impacto que h entre as obras artsticas.

Por exemplo, existem muitos bens culturais aqui a nossa volta? Voc liga a televiso e tem 30 filmes passando, voc vai ao teatro e h 15 peas, vai exposio e tem 10, quantos artistas plsticos tem no Paran, quantos msicos, voc entra numa loja de discos e tem milhares de discos, entra numa livraria e tem milhares de livros, voc vai a biblioteca do Congresso Americano e tem 500 milhes de livros. No h uma exuberncia enorme de bens culturais a nossa volta? E com os meios de comunicao voc pode at ver como pintava El Greco pela internet. Se estamos rodeados de bens culturais por todos os lados, voc no acha que esse problema da falta de critrio para saber se melhor ou pior ficou ainda mais grave? Voc pode passar a sua vida vendo quadros menos bons e ouvindo a msica menos boa e lendo menos livros errados. O inimigo nmero um da restaurao da cultura do esprito foi o fato de que criou-se a idia de que tudo a mesma coisa. E isso incentivado pela enorme exuberncia de oferta de bens culturais. E essa oferta cada vez maior e cada vez mais ampla e por ser assim ela nos ajuda a nos confundir ainda mais e ficamos cada vez mais perdidos por falta de saber escolher.

Estamos tentando resolver isso por meio de um modelo de compreenso disso, para nos ajudar a discernir entre os diversos graus de qualidade que existem nos bens culturais. O mtodo como foi feito isso aqui foi dizendo o que caracteriza a obra de arte. O contedo e a forma podem se combinar de quatro maneiras diferentes.

Eu disse a vocs que as obras de arte se caracterizam de acordo com o contedo e a forma que podem se combinar de quatro maneiras diferentes:

forma complexa e contedo complexo forma simples e contedo complexo forma complexa e contedo simples forma simples e contedo ligeiro

(usei o termo ligeiro para contrastar com denso)

Ao nosso redor voc tem a presena de manifestaes culturais que esto includas aqui na maioria desses itens aqui. O desenho que vocs tm nas mos apenas um exemplo, portanto ele no exaustivo, pois no estou tentando classificar todas as formas artsticas. Este desenho tem msica, literatura, cinema, teatro e artes plsticas. Lembrando que na literatura s entra literatura ficcional ou imaginativa. No entra filosofia nem cincia.

Vamos pegar o teatro. No estou falando de obras concretas, mas de tipos de teatro. Vejam o primeiro quadrante superior esquerda. a tragdia e comdia tradicionais clssicas, o drama moderno como, por exemplo, o drama de Shakespeare. Aquilo que chamamos de teatro que est nesta categoria, de forma complexa e contedo denso, aquilo que chamamos tradicionalmente de teatro. o teatro de Shakespeare, o teatro do absurdo moderno, o teatro que voc encontra nos teatros do mundo inteiro, o teatro de Eugene ONeill, o teatro de Nelson Rodrigues, o de Dias Gomes, Ariano Suassuna, Molire, Racine, etc.

No entanto, h uma tipo de teatro que se diferencia desse teatro que citei, no porque o contedo seja menos denso, mas porque um teatro feito na praa pblica, feito com pouco dinheiro, que no pode ser num prdio porque no pode pagar o iluminador, meio que de improvisao. Est no canto superior direito. Aqui se inclui auto, o de marionetes, o comedia dellarte de onde nasceram as personagens pierrot, colombina. So dez palhaos que ficam na praa improvisando uma pea que no tem p nem cabea, mas muito engraada. Os Trapalhes e o Ratinho so verses modernas da comedia dellarte. O teatro de marionetes tambm assim.

Entenderam a diferena entre o teatro esquerda de Nelson Rodrigues, de Shakespeare e o teatro direita, o da praa pblica, o Auto da Barca do Inferno, o comedia dellarte? A principal diferena a forma como fazem. Queria que vocs soubessem uma coisa fundamental do mundo das artes: o lado esquerdo superior so a base de tudo, porque so as grandes obras humanas, aquelas que sero lidas daqui a 500 anos. De todos os bens culturais que esto nossa volta, a maioria ir desaparecer no tempo. A maioria das msicas no ser lembrada, a maioria dos quadros ser destruda pelas traas, a maioria dos livros ir mofar e no ser reeditado em lugar nenhum. Quase tudo que conhecemos como bens culturais sero destrudos pelo tempo, exceto um pequeno grupo de obras que sero lidas, vistas e ouvidas pelo resto dos tempos. Velsquez ser apreciado em todos os tempos, assim como Bach e Dostoievski.

claro que esse fenmeno implacvel da seleo que o tempo far ir produzir injustias. Sempre haver uma obra ou outra que no foi devidamente apreciada, mas por outro lado, natural que isso acontea, porque no possvel que tudo tenha a mesma importncia. O tempo ir selecionar as coisas que tero direito perenidade. E as coisas que permanecero, de modo geral, esto entre esses dois quadrantes. Os dois quadrantes de cima so os dois quadrantes superiores da cultura humana, porque tm do lado esquerdo as grandes obras, os grandes clssicos, as obras maiores que tm ao mesmo tempo uma densidade de contedo e uma complexidade de forma. E tm do lado direito, as obras que so populares porque so to importantes quanto as outras, mas como a obra popular de condies materiais mais humildes, ento a obra popular tem que ter a forma mais simples. Mas a obra popular, a que est ao lado direito, absolutamente legtima.

Para o quadrante esquerdo o ttulo dado foi Herana Erudita, alta cultura de elite. E para o quadrante direito, voc tem Herana Popular, alta cultura popular. Tanto uma coisa quanto a outra tem valor extraordinrio e ambas tm o poder de permanecer pelo resto dos tempos.

A segunda coisa fundamental que voc deve saber e que completamente bsico e fundamental, que o quadrante superior direito, que o quadrante popular, sempre deriva do quadrante da esquerda. O quadrante da esquerda que gera o quadrante da direita. O povo no tem os mesmos meios de realizar coisas como tem aquele artista que financiado pelo rei, por exemplo, e faz do seu jeito mais simples. Mas o povo tenta imitar o melhor padro, o daqueles grandes artistas do mundo que esto esquerda. A arte popular no a origem da arte erudita, mas exatamente o contrrio. A arte erudita que produz a arte popular. E isso no acontece s na arte. Todas as manifestaes religiosas populares como bumba-meu-boi, cavalhada so todas tentativas que o povo faz ao seu modo com seus meios e possibilidades de copiar rituais religiosos que eram feitos pelos sacerdotes e eles no entendiam.

T. S. Eliot que fez a poesia considerada a mais bonita e a mais importante do sculo XX, chamada Terra Desolada. Ele dizia que a origem de toda a cultura a religio. As grandes religies produzem as grandes obras de arte e o povo ento, na medida em que pode, copia, e sempre fica bom porque legtimo e profundo. Enquanto for uma adaptao popular de algo complexo que o povo no pode fazer igual porque no tem os meios, ento voc est falando de um dos mais altos momentos de produo de arte no mundo.

Mas preciso considerar que, no fundo, sempre o padro erudito que gera os padres que esto abaixo dele. Os padres eruditos geram a verso popular das coisas que absolutamente legtima. No quadrante superior esquerdo, est escrito maior e mais e do lado direito, voc v apenas menos. Este menos quer dizer que menos complicado, que mais simples do ponto de vista da estrutura, da forma. H, portanto uma legitimidade enorme na arte popular, naquilo que uma inspirao e, no entanto, no tem a mesma importncia do quadrante esquerdo, porque dali que deriva tudo.

Se vocs olharem para a primeira linha msica, vocs entendero isso com clareza. O que a msica sob o ponto de vista erudito? Aqui h uma separao em pera e msica sacra, as formas artsticas musicais mais altas. Como no estou falando de msicas individuais, vocs tm que supor que dentre as msicas sacras h as melhores e as piores, pois no estou debatendo com vocs a qualidade musical do indivduo musical. Estou apenas debatendo a qualidade do tipo, do modo, da modalidade musical.

Quais so os gneros populares que derivam dos gneros eruditos? Temos msica de raiz, que aqui est dividido em blues (msica dos negros americanos), jazz (msica espontnea americana), msica caipira brasileira que tem legitimidade cultural mas estou falando da msica caipira de verdade e no de msica sertaneja que outra coisa. Estou falando daquela msica caipira que feita no stio pelo sujeito que coloca sua alma na cano. H ainda o samba de roda, que um tipo de samba que nasceu no Rio de Janeiro e s tem viabilidade l e que se perverteu no pagode que virou o nome moderno de samba de roda. O pagode no isso, mas a origem do pagode legtima, que o samba de roda dos morros do Rio de Janeiro. Existe o soul que a msica negra de igreja dos Estados Unidos, o samba-cano que outro tipo de samba brasileiro, chanson, a msica romntica que todo o pas tem, folk que a msica folclrica e o rock-and-roll no sentido original da palavra que tem legitimidade.

Essas modalidades musicais so tentativas de imitar o padro erudito. Quando os Beatles fazem as suas msicas, h uma legitimidade nisso. Os Beatles fazem rock-and-roll que a tentativa de fazer no mbito da percepo musical dos jovens ingleses o que Hndel, Bach e Beethoven faziam no mbito erudito. Como eles no tm o mesmo cdigo de complexidade, a musiquinha de rock, mesmo sendo bem feita, depois de dez vezes voc tem vontade de matar o sujeito que est tocando a dcima primeira. Se voc ouvir dez vezes a Paixo de So Mateus de Bach voc no ter sequer comeado a ouvir a obra.

Compreendem a diferena de complexidade de forma? Por isso no possvel raciocinar ao contrrio. Temos aqui, no Paran, um compositor erudito muito importante chamado Braslio Itiber, nascido em Paranagu. Ele no teve uma carreira de compositor porque isso era difcil no comeo do sculo XIX. Ele inventou a msica erudita com temtica popular. Sertaneja a primeira msica que usa temas populares como base do erudito. Essa obra Sertaneja to importante que quando Braslio assumiu o posto de embaixador do Brasil em Roma, recebeu a visita de Liszt, o maior pianista da poca em sua casa que tocou a Sertaneja no piano. Ele tambm comps Pome dAmour, obra que deixa qualquer um apaixonado pela vida aps ouvi-la. Depois apareceu no Brasil um compositor maior que Braslio Itiber, Villa Lobos que se especializou em fazer msicas com temas populares como O Trenzinho. Reparem que tanto Braslio Itiber que paraense como Villa Lobo que no , reincorporaram a msica popular e a devolveram para sua origem. Eles promoveram seu renascimento. sempre a msica erudita que gera a msica popular e no o contrrio.

Por isso insisto que o quadrante superior esquerdo o quadrante onde tudo comea. As formas artsticas que a esto so as formas mes que geram em seguida todas as formas que foram popularizadas. O quadrante esquerdo o quadrante de origem e o direito o popular que legtimo tambm, no entanto naturalmente mais frgil pela simplicidade de sua forma. Mas aqui tambm tm obras maravilhosas. A perspectiva de preservao e conservao muito maior no quadrante esquerdo. Daqui a duzentos anos todo mundo saber quem Bach, mas pouqussimas pessoas sabero quem Antonio Carlos Jobim. Daqui a oitenta anos no sei se algum se lembrar que existiu um sujeito chamado Chico Buarque, por mais que em Tom Jobim e Chico Buarque exista alguma legitimidade e existam alguns momentos extraordinrios. uma espcie de desgraa da vida porque o tempo ir proteger mais aquilo que denso e complexo ao mesmo tempo, por mais que isso nos parea uma pena. Mas essas manifestaes que no tm a mesma complexidade e densidade sero aos poucos abandonadas.

Vocs como professores devem ouvir essas peas e dizer a seus alunos que isso tudo existe, porque o grande patrimnio da humanidade que seus alunos iro herdar esse quadrante superior esquerdo. Se vocs deixarem seus alunos por conta, eles iro atrs do que est na mdia, do que est na aparncia das coisas e como um dos inimigos dessa histria a indstria cultural, garantido que faro sua educao musical pelo Tiririca, RDB, Menudos, Gerasamba que esto num nvel muito mais baixo de cultura em relao ao que ns deveramos lhes propor. No iro escolher Chico Buarque.

Compreenderam o sentido da primeira linha, os dois primeiros quadrantes superiores? O quadrante superior esquerdo o que tem como base aquilo que permanecer vivo pelo resto da histria humana. O quadrante superior direito composto daquelas manifestaes de natureza popular que so tentativas de reproduzir isso dentro das possibilidades da cultura do povo, isto , dentro das possibilidades econmicas do povo.

Aluno menciona o grau de esforo para chegar a entender essa complexidade.

H uma doena chamada apeirokalia que significa a absteno de coisas belas. Eu tinha um plano de agrupar mulheres pobres e ensin-las a fazer as coisas mais bonitas que voc pode imaginar. Aqui no Brasil temos o defeito de achar que o que bonito chique e o sujeito que constri uma casa com pouco dinheiro pode fazer uma casa linda, maravilhosa. No porque barata que uma droga. No tem dinheiro para pintar, plante hera, compre janelas de demolio, etc. Os brasileiros nunca fazem isso porque pensam que o que bonito chique e o sujeito faz uma casa horrorosa sem nenhuma esttica porque torce pelo dia em que vai ficar rico para encher aquela porcaria de mrmore e granito. Brasileiro pensa que o que torna uma casa bonita o granito que caro.

Conheo o Paran quase inteiro, j estive em 312 municpios dos 399 e a mdia das cidades paranaenses que so limpas de modo geral. O lugar mais esculhambado que conheci foi So Jernimo da Serra que uma vergonha. Por outro lado, h uma meia dzia de cidades que so encantadoras. Por exemplo, h uma cidade chamada Rio Claro perto de Jacarezinho que uma maravilha; Alvorada do Sul, na barranca do Paranapanema, com rio em trs costados parece uma ilha, um lugar paradisaco; Porto Vitria com uma cachoeira magnfica na entrada uma cidade de sonho, e assim por diante. As cidades em geral so limpas, mas na mdia no so cidades bonitas. Bonitas so essas dez, quinze que poderia citar. No h cidades onde todo mundo planta flores, onde as casinhas so todas pintadas da mesma cor, branquinhas, no h cidades onde todos compartilhem o convvio com a beleza. Quando isto no ocorre voc cria a doena apeirokalia, que tornar-se indiferente ao belo em relao ao feio.

Para melhorar o Brasil, as pessoas pobres tm que aprender que o bonito no igual ao caro. Um prato de comida custa o mesmo trabalho faz-lo bonito ou feio. A aparncia do prato de comida fundamental para a qualidade da comida. A comida boa, mas deve ter uma aparncia boa. As mulheres pobres poderiam aprender a fazer pratos apresentveis, a fazer arranjos com flores do mato, usar a ikebana, deveriam manter as crianas sempre limpas, pois as crianas pobres podem ter as roupas costuradas, o que diferente de cri-los como porquinhos, fisicamente vivendo junto no chiqueiro da propriedade. Separar os porcos dos piauzinhos a primeira providncia para se construir a higiene em casa.

Se voc deseja produzir a compreenso da verdadeira cultura, trate de se rodear de coisas belas. caro? No, somente um vasinho de flores na janela. H coisa mais bonita que uma horta bem traada? As pessoas precisam se acostumar a conviver com os melhores padres. O que parece ser uma causa fundamental dessa nossa inviabilidade civilizatria, de no conseguirmos enriquecer, de vivermos com grandes problemas de dinheiro, que no conseguimos nos rodear de estmulos belos e essa doena de vivermos na feira chama-se apeirokalia. uma maneira de no perceber a diferena que h dentre essas quatro coisas. Ns perdemos a capacidade de nos encantar com um livro bem escrito, de olharmos para um quadro e ach-lo bonito. A recuperao do senso de esttica, ou seja, o combate apeirokalia uma das primeiras lies que devemos fazer seja no mbito da escola, seja onde for. Deixar Paranava mais bonita uma condio necessria para o desenvolvimento de Paranava.

Aluna diz que sempre pensou nisso e que incrvel como as pessoas se acostumam a viver mal. Em casa fala pede para a empregada embelezar a refeio, fazer com amor para agradar e que isso faz a diferena.

O professor conheceu uma professora que foi trabalhar no Japo com o marido e o filho. No primeiro dia de aula, mandou uma lancheira com uma garrafa de caf com leite e um sanduche enorme. No dia seguinte, a professora a procurou dizendo que a apresentao do lanche estava errada, pois se deve colocar pouca quantidade de comida caprichando em sua aparncia. E ento o filho saberia que era amado pela me. Vocs j comeram comida japonesa? a comida com o visual mais extraordinrio que pode existir. E qualquer feijo com arroz pode ser assim numa travessa bonita com certo dcor.

Nas relaes humanas tambm deveria existir o belo. No o mnimo esperar que as crianas fossem educadas a tratar melhor os mais velhos, tratar bem os professores, as mulheres? Da delicadeza e da educao com que ns lidamos com o mundo tem uma possibilidade de termos uma vida muito melhor. Se vivermos num mundo de grosserias, com crianas mal educadas, sobretudo uma grosseria incentivada, dizendo que criana deve ser assim mesmo, como ficamos? Desde quando ser mal educado tem algum mrito? Nenhuma criana deveria ser incentivada a ser mal educada.

As coisas que fazem as coisas dar certo so essas pequenas coisas que produzem a capacidade de percebermos aos poucos o valor relativo das coisas. Na medida em que no somos capazes de valorizar a beleza nas pequenas coisas, perdemos a capacidade de perceber as grandes coisas. Para perceber a diferena real entre as coisas temos que recuperar o senso esttico. Senso esttico que destrudo pela grosseria da televiso, pela grosseria das relaes humanas, pelas grosserias em geral que esto em torno de ns.

A esperana de nos tornarmos mais culto est a nesses dois quadrantes de cima. Nossa herana est a no quadrante erudito, feito pelos grandes artistas e no quadrante direito, o quadrante popular de qualidade intrnseca. Por mais que vocs pensem que uma injustia, o quadrante esquerdo no tem a mesma durabilidade que o quadrante popular. Isso assim, no por causa da complexidade da forma, mas porque o quadrante superior esquerdo o quadrante fundador das outras coisas. Quando um ser humano chega a um grau de competncia musical como Bach, a um grau de competncia na pintura como Velsquez, a um grau de competncia literria como Machado de Assis, ele muda o patamar humano nesses assuntos e estabelece o parmetro a ser copiado dali para frente. Quando algum chega aos pncaros, nas alturas irrespirveis produzindo uma obra como a de Bach, como por exemplo, a obra dos romances de Dostoivski, quando o sujeito chega naquelas alturas, ele muda o padro a partir do qual todos os outros devem se referenciar. por essa razo que esses momentos extraordinrios so os momentos eternos. Essa a razo pela qual essas coisas ainda sero acompanhadas pelo resto da aventura humana sobre a terra, dure ela quanto durar.

Essa a primeira concluso que vocs devem fazer comigo.

Voltando quele ponto que a Leoni levantou: exigir que os cadernos sejam feitos com limpeza e letra bonita absolutamente fundamental para educar as crianas. Tolerar cadernos esculhambados, sujos com molho de tomate e mostarda, no possvel. A capacidade que a criana tem de lidar com capricho com seu material escolar, ter os lpis apontados, ter organizao mnima uma condio para vocs ensinarem qualquer coisa para elas. E isso no uma amolao de professor, mas uma condio para criar na criana um esprito de qualidade no que ela est fazendo. Criar alunos no contexto da esculhambao que beneficio pode lhes trazer? Nenhum. Essas coisas so importantes como combate apeirokalia. Ela combatida com pequenos esforos localizados. A primeira coisa que devemos ensinar como segurar a caneta. Toda vez que encontro algum segurando a caneta com o dedo reto, digo que estrangeiro e acerto. Porque esquecemos que no devemos deixar a criana escrever com o dedo torto porque quando o dedo fica assim, ele estressa a mo e ao invs de usar o crebro para pensar no que est fazendo, est gerenciando o stress do dedo. Essas pequenas coisas como higiene pessoal, cadernos encapados, letra bonita...

A gravao termina aqui sem o encerramento da aula.

(aula dada em Paranava, PR, para professores o texto est sem correo)

No encontrei em meus guardados esse quadro sintico ao qual o professor se refere.