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Problemata: R. Intern. Fil. Vol. 02. No. 01. (2011), pp. 172-200 ISSN 1516-9219. Data de recepção do artigo: abril/2011 Data de aprovação e versão final: junho/2011. SOBRE FILÓSOFOS, SONÂMBULOS E MORTOS-VIVOS: os Reflexos da Incapacidade para Pensar em Hannah Arendt. Alexandre Costa Lima * “Sem o sopro da vida, o corpo humano é um cadáver; sem o pensamento, o espírito humano está morto”. Hannah Arendt RESUMO: 1 -Um diálogo espantoso, 2 – Dois conceitos originais, 3 - A fenomenologia como método, 4 – Os dois abismos, 5 – A Lógica como moral do pensamento, 6 – O Discurso como ação e a auto-contradição pragmática, 7 – Do falso segue o que se quiser, 8 – Pensamento e alheamento, 9 – A vida bem sucedida. PALAVRAS-CHAVES: Pensamento, Discurso, Ação, Linguagem, Interpretação ABSTRACT: 1-An amazing dialogue; 2-Two original concepts; 3-Phenomenology as method; 4-Two depths; 5-Logic as thought's moral; 6-Discourse as action and pragmatic self- contradiction; 7-From false follow what you want; 8-Thought and alienation; 9-The successful life. Thought, Discours, Action, Language, Interpretation KEY-WORDS: Thought, Discours, Action, Language, Interpretation 1. Um diálogo espantoso ABOUT PHILOSOPHERS, SLEEPWALKERS AND THE UNDEADS: Reflections of the inability to think in Hannah Arendt * MPhil em Filosofia/Sussex University. Professor de filosofia da FADICA, da Universo e da Faculdade Maurício de Nassau. m@ail: [email protected]

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Problemata: R. Intern. Fil. Vol. 02. No. 01. (2011), pp. 172­200

ISSN 1516­9219.

Data de recepção do artigo: abril/2011Data de aprovação e versão final: junho/2011.

SOBRE FILÓSOFOS, SONÂMBULOS E MORTOS­VIVOS:os Reflexos da Incapacidade para Pensar em Hannah Arendt.

Alexandre Costa Lima *

“Sem o sopro da vida, o corpo humano é um cadáver;sem o pensamento, o espírito humano está morto”.

Hannah Arendt

RESUMO: 1 ­Um diálogo espantoso, 2 – Dois conceitosoriginais, 3 ­ A fenomenologia como método, 4 – Os doisabismos, 5 – A Lógica como moral do pensamento, 6 – ODiscurso como ação e a auto­contradição pragmática, 7 – Dofalso segue o que se quiser, 8 – Pensamento e alheamento, 9 –A vida bem sucedida.PALAVRAS­CHAVES: Pensamento, Discurso, Ação,Linguagem, Interpretação

ABSTRACT: 1­An amazing dialogue; 2­Two original concepts;3­Phenomenology as method; 4­Two depths; 5­Logic asthought's moral; 6­Discourse as action and pragmatic self­contradiction; 7­From false follow what you want; 8­Thoughtand alienation; 9­The successful life. Thought, Discours,Action, Language, InterpretationKEY­WORDS: Thought, Discours, Action, Language,Interpretation

1. Um diálogo espantoso

ABOUT PHILOSOPHERS, SLEEPWALKERSAND THE UNDEADS: Reflectionsof the inability to think in Hannah Arendt

* MPhil em Filosofia/Sussex University. Professor de filosofia da FADICA, daUniverso e da Faculdade Maurício de Nassau. m@ail: lima­[email protected]

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“Como você pode encontrar qualquer prazer, sr.Kersten, atirando por trás de um esconderijo em pobrescriaturas que pastam à beira de um bosque, inocentes,indefesas e confiantes? Pensando bem, é puroassassinato.”

Heinrich Himmler

Esta afirmação absurda não foi extraída de uma peça deDario Fo ou de um filme dos irmãos Marx, mas de umaconversa realmente travada entre o Reichsführer­SS Himmler,comandante­em­chefe da Schutzstaffel (tropa de defesa) doPartido Nazista, diretamente subordinada a Hitler, e o seumédico Felix Kersten. O pequeno Heinrich, como Hitlercarinhosamente o chamava, referia­se às atividades de caça aoscervos em Schönhof, residência de verão do ministro dasRelações Exteriores nazista von Ribenntrop. Entre 26 e 29 deoutubro de 1941, aqueles dois altos funcionários de Hitler,juntamente com o conde italiano Ciano, realizaram uma curtatemporada de caça, fuzilando 2.400 faisões, 260 lebres, 20gralhas e um corço.

Naquela mesma semana, os Sonderkommandos nazistasorganizaram um massacre em Kaunas, cidade da Lituâniacentral: em 27 de outubro, convocaram, sob pena de fuzilamentosumário para os refratários, todos os judeus do gueto para seapresentarem no dia seguinte com as suas famílias e as suasatribuições profissionais devidamente identificadas:conselheiros do gueto, curtidores de couro, construtores deestradas, bombeiros, funileiros e outros. Às seis da manhã doDia Negro (como ficou conhecido entre os sobreviventes), vintee oito mil pessoas caminharam sob uma fina camada de neve atéa praça da Democracia; inválidos, velhos, crianças pequenasconduzidas pelos pais, mães com os filhos nos braços, essagente esperou o irromper da aurora, três horas mais tarde,quando surgiram então um pesado destacamento de policiais

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alemães, mercenários lituanos e uma multidão de curiosos quese reuniu na colina que cercava o local.

Um capitão SS postou­se numa elevação do terreno epôs­se a selecionar grupos e famílias; propositalmente escondeuos critérios de escolha, confundindo as vítimas e dando­lhes afalsa impressão de que poderiam optar entre a vida e a morte:“direita ou esquerda, qual o lado seguro?” pensavam elas. Durouo dia todo a seleção macabra e dez mil pessoas foram separadasdas demais e levadas para uma prisão especial. As outrasvoltaram para suas casas, abatidas e arrasadas pela ausência dosque foram selecionados.

No dia seguinte, a procissão dos dez mil lentamentecaminhou até um descampado previamente preparado; muitosdoentes e pessoas idosas sucumbiram no longo trajeto e ossobreviventes, ao chegarem, foram atacados por uma multidão edespojados de seus pertences de valor – braceletes de ouro,anéis e brincos. Em seguida, obrigadas a despirem­se eempurradas para a beira dos fossos, as pessoas forammetralhadas por matadores lituanos. Com o impacto das balas,cada lote de judeus era jogado dentro do buraco, por cima dosmortos e dos agonizantes do grupo anterior, o que facilitava otrabalho dos carrascos: os soldados SS limitavam­se a dispararum tiro de misericórdia na nuca dos que ainda respiravam. Esteera um engenhoso método de assassinato em massa, conhecidocomo Sardinenpackung (lata de sardinhas) e criado por um certoJeckeln, oficial nazista de notória crueldade que atuava naregião. Bastava cobrir as imensas covas com areia e milhares depessoas desapareciam sem deixar rastro, facilitando a ocultaçãodas provas. Ao término daquela jornada de trabalho, 2007homens, 2920 mulheres e 4273 crianças, todos judeus, haviamsido mortos, um número bem superior ao dos animais caçadospor Himmler, von Ribenntrop e Ciano.

Aí estão os elementos da farsa medonha: de um lado, umsujeito franzino, com olhos de roedor disfarçados pelos óculos

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de aros de metal, um hipocondríaco obcecado em agradar oChefe: na verdade, o leal e operoso Heinrich expressando ao seumédico e massagista o horror causado pela matança dos pobresanimais; de outro lado, Himmler, o administrador meticulosoencarregado da Solução Final, o fanático racista e anti­semitaque durante anos sinceramente esforçou­se para tornar a EuropaJudenfrei. Esta dicotomia impensável, a simples possibilidadede existirem seres humanos de aparente normalidade (sensíveise refratários à morte de seres vivos indefesos) e, ao mesmotempo, capazes de organizar e incentivar o morticínio demilhões de pessoas, revela uma contradição radical: alguémpoderia ser tão cínico e praticar um humor tão negro?Infelizmente, a resposta é sim!

2. Dois Conceitos Originais

Todos os princípios lingüísticos amplamentereconhecidos admitem a tese de que qualquer pretensão deveracidade exige do orador a não afirmação de teses opostas econtraditórias entre si, sob pena do colapso de todo a suaargumentação. Dos vários princípios da lógica clássica – tertiumnon datur(não é dada a terceira opção,) reductio adabsurdum(redução ao absurdo) e ex falso sequitur quodlibet(dofalso segue o que se quiser) ­ , o último parece ser o maisimportante para elucidação do nosso tema; a partir do postuladode que qualquer coisa pode ser inferida se a base do raciocínio éfalsa, é possível mostrar que a auto­contradição pragmática nafala desqualifica o discurso e o orador: no caso, Himmler, oencarregado da Solução Final, apiedando­se dos animais!

A grande pensadora alemã Hannah Arendt conseguiunos oferecer uma pista segura de como tratar umcomportamento tão incongruente: ao analisar a personalidade deAdolf Eichmann, ­ subordinado de Himmler nas SS – durante o

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julgamento do primeiro em Jerusalém, no início da década desessenta, ela criou e fundamentou as bases de dois conceitosfilosóficos originais: a banalidade do mal e a incapacidade parapensar. Noções polêmicas que surpreendem pela profundidade epela coragem de enunciá­las! Seria banal o assassinato demilhões de inocentes? Seria irrisório procurar exterminar todosos judeus da Europa? Foi apenas uma superficialirresponsabilidade por parte dos nazistas o que deflagrou a IIGuerra Mundial? Será que a ausência de pensamento indicaria,simplesmente,um elevado grau de estupidez no agente?

Quem adotar tal hermenêutica cometerá um equívocoque o deixará milhas ao largo dos fecundos conceitos de Arendt:aqui, filosofia e política realizam uma proveitosa aliança quetematiza positivamente o fenômeno da ação política e recupera adignidade própria do agir iluminado pelo pensamento. A autorade Origens do Totalitarismo quer restaurar e enfatizar adistinção kantiana entre “razão” (Vernunft) e “intelecto”(Verstand), traçando a distinção essencial entre as duasfaculdades, pensar e conhecer, cada uma com um interessedistinto: no primeiro caso, o significado, no segundo, acognição.

Ela afirma em A Vida do Espírito que:

(.. ).ausência de pensamento não é estupidez; ela podeser comum em pessoas muito inteligentes, e a causadisso não é um coração perverso; pode ser justo ooposto: é mais provável que a perversidade sejaprovocada pela ausência de pensamento.

Compreender o trabalho de um autor exige que seconheçam as suas formas para a abordagem do real. Com estafinalidade, Adeodato divide a metodologia da autora de ACondição Humana em três enfoques básicos, a saber: aimportância de estabelecer distinções com o objetivo de fazerfluir o discurso do pensamento; a fenomenologia conceitual,

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investigação pela análise etimológica e semântica de termoschaves; por último, a observação de fenômenos históricospassados que possam ser exemplos bons ou maus para a ação.

3. A Fenomenologia como Método

De fato, a fenomenologia não vem ser uma coleção dedoutrinas – ela será, na melhor das hipóteses, um método: oprocesso incessante de clarificar, descrever apropriadamente eelaborar. O fenomenólogo seria, no dizer de Husserl, um“perpétuo aprendiz”, na medida em que o método só podeprogredir ao ser permanentemente aplicado a si mesmo. Naspalavras de Maurice Natanson:

A Fenomenologia é uma ciência sem pressupostos queconsidera a consciência a matriz de todos os fenômenos, vê osfenômenos como objetos de atos intencionais, tratando­os comoessências; ademais, exige o seu próprio método, preocupa­secom a experiência pré­predicativa e oferece­se como ofundamento da ciência, além de abranger uma filosofia domundo da vida, uma defesa da Razão e, em última análise, umacrítica da filosofia.

Ora, uma definição tão extensa e complexa mostra quãoambicioso era o projeto filosófico do mestre de Heidegger: umafilosofia sem pressupostos seria uma filosofia na qual nenhumaafirmação estaria completamente livre de ser convocada ao re­exame pelo filósofo. O fenomenólogo deveria apropriar­se, parauso filosófico, das pressuposições essenciais da nossaexperiência cotidiana, questionando­as e mostrando que certosprincípios que nos parecem confiáveis deveriam ser examinadose esclarecidos. Ora, a exigência de se suspeitar de toda equalquer proposição bem estabelecida desviou Husserl daconstrução de um grandioso sistema especulativo como o deHegel e o conduziu à démarche cartesiana pelo fundamento

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absoluto do conhecimento. A demanda por um fundamentoabsoluto levará Husserl a localizar o critério último de certezaradical na estrutura egológica da experiência e a considerar aconsciência como a fonte e a condição de possibilidade daobjetividade; em outras palavras, a consciência seria a matriz detodos os fenômenos.

Diferentemente de Kant, Husserl não realiza a oposiçãofenômeno/noumeno e afirma que a aparência é a coisa em simesma: assim, o fenomenólogo deveria ocupar­se apenas com apura aparência. E, embora a consciência seja a condiçãonecessária para a emergência de objetos e de significados, elaobviamente não os cria. Quando pensamos, levamos a cabo atosatravés dos quais encontramos a realidade: uma condiçãoobrigatória ao pensar seria não transgredir as leis da razão ejamais combinar predicados inconciliáveis num mesmo sujeitoou entre sujeitos, acarretando a impossibilidade lógica de suaexistência; em outras palavras, quando alguém pretende afirmaralgo sobre o mundo, deverá saber quais padrões são compatíveiscom a racionalidade e com a realidade; cada região da realidadeexige seu tipo adequado de racionalidade.

A percepção, por exemplo, nos informa sobre as regrasmateriais da realidade ­ causalidade, tempo/espaço,possibilidade/impossibilidade, entre outras ­ mas é insuficientepara dar conta da totalidade de nossa práxis do viver. A razão,portanto, não pode ser encarada como uma propriedade damente revelando somente princípios a priori, que gerem oracional inegável válido em si mesmo: ao pensar, agir e falarracionalmente, o sujeito deve simplesmente admitir o papelconstitutivo da racionalidade na coerência operacional dosrespectivos domínios do real, sem, contudo, postular umalinguagem reveladora de entidades que existamindependentemente do que se faz.

Os fenomenólogos norte­americanos Hubert e StuartDreyfus analisaram o que é a moralidade e de que maneira se

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instaura a nossa perícia ética (ethical expertise). Evidentemente,o apelo ao fenômeno ou à experiência imediata não vem a seruma invocação aos dados simples e não interpretados do mundosensível. Os fenômenos são aqueles aspectos de qualquer tipo deobjeto revelados por um modo particular de observá­los. E osenunciados em fenomenologia não são considerados verídicossimplesmente porque decorrem de outros enunciadosverdadeiros, como na axiomática: eles são verdadeiros porquedescrevem o fenômeno corretamente. Logo, a descrição dosDreyfus só será verdadeira se possibilitar interpretações efetivasque revelem as articulações entre a perícia técnica e a ética.

Eles estabeleceram uma analogia entre aprender a dirigiruma automóvel e jogar xadrez – duas experiências moralmenteneutras – e a aquisição do conhecimento ético, da maturidademoral e da capacidade de julgar. Imaginem alguém que tem assuas lições introdutórias ao xadrez ou à direção de um carro: eleestará exatamente no nível do neófito, cuja iniciação estarálimitada às regras estritas livres de contexto, enunciadas pormáximas. O instrutor, ao decompor a tarefa proposta emsituações de fácil reconhecimento sem a necessidade dequalquer recurso à experiência, levará o aprendiz a seguir regrasrígidas, semelhantes às de um programa de computador.

No próximo passo – a aprendizagem avançada ­, ele jácapta situações significativas que revelam novos aspectossituacionais relevantes para a melhoria do seu desempenho: oronco do motor, por exemplo, servirá igualmente para sinalizar anecessidade de uma nova marcha.

O terceiro passo – a competência – levará o agente aadotar uma visão hierárquica da tomada de decisão, dado oenorme número de características situacionais identificáveis:simplesmente selecionando um conjunto de aspectos, –inclinação da pista, ângulo da curva ou água na superfície, porexemplo ­, o sujeito poderá reduzir a velocidade trocando de

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marcha ou pisando no freio quando fizer uma curva abrupta soba chuva. O resultado poderá ser frustrante, na medida em queuma regra mostrada efetiva numa situação poderá ser inócua emoutra, sem que haja, no entanto, um conjunto coerente deexplicações que dê conta de tais diferenças. O quarto momento,no qual o agente abarca as experiências holisticamente, semobrigatoriamente refletir sobre princípios rígidos para guiar suasações, será a proficiência: ao dirigir em velocidade nos dia dechuva, o motorista, atuando em um nível no qual a observaçãofria e impessoal não será mais necessária, já poderá reconhecer eevitar situações de risco mediante a avaliação e combinação deregras e de máximas que levem à tomada da decisão adequada.

Ver o que deve ser feito demanda igualmente que osujeito decida como fazer: ele precisa apresentar uma respostaintuitiva imediata a cada situação: frear ou reduzir a marcha,sem a necessidade de deliberar, sem o recurso obrigatório aocálculo e à comparação. Recapitulando: do estágio no qualseguem regras estritas, passando pela aplicação de máximascontextualizadas até o estágio no qual superam as regras emáximas em favor da resposta espontânea – o sujeito atingiuagora a perícia, estágio no qual exibe talento em determinadaatividade.

Se o modelo dos Dreyfus for adequado e se ocomportamento ético cotidiano puder ser encarado como umahabilidade, então é possível transpor os resultados da análisefenomenológica da aquisição de habilidades técnicas para oterreno ético, deixando claro que a perícia ética – a capacidadepara lidar com questões éticas e respondê­las de modosemelhante ao de outros peritos – exige reações quase instintivase apropriadas, a partir dos elementos relevantes e dasexpectativas da situação. Avaliar os elementos que ganham ounão proeminência leva à mudança do contexto e gradualmentemodifica o entendimento que dele se tem; assim, é possível atérever a longa cadeia de eventos que levou a uma certa decisão e

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modificá­la. De toda forma, o perito fará aquilo que já foi aceitocomo correto por seus pares.

Segundo certas concepções de cognição, o sujeitoprocura gerar mecanismos explicativos não apenas dofenômeno em questão, mas igualmente de outrosfenômenos que possam ser observados. A meta seriaelaborar modelos isomórficos entre os fenômenos domundo e os mecanismos propostos: este seria o cerne domodelo de correspondência, na qual a imagemrepresentaria, o mais fielmente possível, o estado decoisas. Assim, a questão básica de todo conhecimento ­as relações sujeito/objeto – seria resolvida pela propostada estrita correspondência entre a representação e omundo. Tradicionalmente, esta seria a resposta para apergunta sobre a natureza da verdade; seria igualmenteum caminho perigoso e talvez sem retorno às ontologiastranscendentes, aquilo que Humberto Maturana chamade o caminho da objetividade sem parênteses. Eleescreve que:devido à sua forma de constituição, este caminhoexplicativo necessariamente leva o observador arequerer um único domínio de realidade – um universo,um referente transcendente – como a fonte última devalidação para as explicações que ele ou ela aceita e,como conseqüência, para a contínua tentativa deexplicar todos os aspectos de sua práxis de viverreduzindo­os a esse referente.

A veracidade de tais hipótese ou questões limita­se,normalmente, à referência a entidades que existemindependentemente das operações de distinção realizadas peloobservador. Resulta daí a pressuposição de um acessoprivilegiado a uma realidade objetiva e independente, a partir doqual o agente atribui validade intrínseca e inabalável às suasconvicções. Infelizmente, a “certeza” de se possuir umavalidade transcendente conduz à intolerância e à negação dooutro. Neste modelo explicativo, a coisa observada tem umaexistência independente do que o observador faz, constituindo­se em algo cuja existência preexiste à sua observação.

A experiência do observar é a condição constitutiva apriori do refletir, explicar ou falar; esquecer ou camuflar aconstatação de que a realidade vivida depende do caminho

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explicativo adotado leva à ilusão de que o “racional” é válidoem si mesmo e de que nada pode negá­lo. Na experiênciacotidiana, sempre lidamos com questões ou hipóteses cujaveracidade ou falsidade depende, normalmente, de uma simplesoperação de verificação; entretanto, as questões importantes daexistência, principalmente as que lidam com a nossa vida comoum todo, não se restringem a respostas tão limitadas: questõeséticas, como as que investigam o sentido do mundo ou adefinição do nosso destino, exigem amplas grades de referênciacujas densidade e coerência dão a medida do nosso poder deinterpretar a realidade.

Mas como tais parâmetros se estabelecem? Ora, elescertamente brotam do terreno fértil de uma visão de mundo,entendida como a coleção coerente de conceitos e teoremas quenos permite construir uma imagem global do que nos cerca.Uma visão de mundo seria a descrição imaterial e provisória datotalidade na qual vivemos, entendida como o mais amploambiente no qual as coisas tornam­se relevantes do ponto devista cognitivo, prático e emocional. Em tal descrição estariaigualmente contido um inventário das ações possíveis,implicando, por um lado, uma permanente abertura às diferentesinterpretações do real e, por outro, um determinado grau deincerteza. Múltiplos sistemas de valores, devidamentehierarquizados, fariam também parte de tal visão.

4. Os dois Abismos

Na dimensão jurídica, por exemplo, encontram­seproblemas sérios de articulação entre diferentes esferas do real.Adeodato escreve que “uma teoria do direito precisa enfrentar,portanto, o abismo gnoseológico, que dificulta o conhecimentodo mundo, e o abismo axiológico, que dificulta a avaliação domundo. Aí estão os fundamentos da epistemologia e da ética

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jurídica”. Como sugere a citação, estabelecer o nexo críticoentre coisas aparentemente incomensuráveis – a lógica e a moral– não é uma tarefa fácil, principalmente se levarmos em conta aadesão inquestionada às regras socialmente estabelecidas ou odesejo cego de seguir regras característico dos nazistas.

Dois níveis estão aqui implicados: o primeiro abarca aatividade instrumental, operativa, e adota o critério doconhecimento como correspondência, reduzindo­se ao âmbitodas questões fechadas; o segundo nível, por sua vez, ultrapassao domínio explicativo das validações restritas e levanta aquestão do sentido, o cerne das questões abertas. Ao tentarintegrar o todo observável, o ser humano necessitaintelectualmente muito mais do que de uma linguagem que ocapacite a formular determinados prognósticos e a suscitar ouimpedir o surgimento de determinados fenômenos: a “correção”da visão de mundo demandaria novos critérios além dosmeramente técnicos.

No âmbito da indução, como argumentou Hume, asrelações causais só podem ser estabelecidas entre observáveis;mas, como assinalou Kant, algo, apesar de inobservado, podecausar efeitos no mundo observável. A noção de valordesempenha um papel vital na iluminação da realidade,elucidando o sistema simbólico de representação do mundo eestabelecendo a relevância dos aspectos cognitivos, práticos eemocionais do ambiente. A visão de mundo do sujeito,abrangendo o máximo possível todos os elementos daexperiência, realizará a avaliação dos deveres, normas emandamentos da comunidade em que ele vive, bem comofundará o juízo das orientações de valor e a auto­compreensãode si e do seu grupo. Construída passo a passo por sub­gruposou sub­culturas, uma visão de mundo certamente trarálimitações intrínsecas de linguagem, devidas certamente àcultura, aos problemas sócio­políticos e aos padrões decomportamento. Como membro de uma comunidade moral, o

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próprio sujeito definirá os critérios segundo os quais irá orientarsua vida.

Para construir uma visão de mundo, ele deveexperimentar diversos modelos interpretativos e argumentativosque lhe permitam a explicação e a compreensão do que ocorreno ambiente. Explicar seria formular nexos significativos entreos elementos da experiência, ao passo que compreender seriadesenhar uma coerência mais ampla, capaz de remeter doespecífico ao geral e vice­versa. Não basta tornar a realidadeinteligível: é imperativo propiciar os meios para avaliá­la. O usodo valor é essencial ao uso da norma e ao estabelecimento deuma finalidade. Dito de outro modo: seguir uma regra implicatambém saber porque seguí­la. Para que algo se torne ummotivo, é necessário que o sujeito desenvolva algum interessepor ela. No caso de Eichmann, a obediência indiferente edesprovida de qualquer motivo eticamente reconhecível levouArendt a cunhar o termo “banalidade do mal”.

O problema com Eichmann era que muitos eram comoele, e muitos não eram nem pervertidos nem sádicos, mas erame ainda são terrível e assustadoramente normais. Do ponto devista de nossas instituições e de nossos padrões morais dejulgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do quetodas as atrocidades juntas, pois implicava que – como foi ditoinsistentemente em Nuremberg pelos acusados e seus advogados– esse era um tipo novo de criminoso, efetivamente hostisgeneris humani, que comete seu crime em circunstâncias quetornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que estáagindo de modo errado.

Arendt chama a atenção para a incomensurabilidadeentre o grau inédito do mal praticado pelos nazistas e a apatia esuperficialidade de Adolf Eichmann, o criminoso de guerracapturado na Argentina. Ela explora, de modo fecundo, aanalogia entre a prática do mal e a incapacidade para pensar, aincongruência entre a profundidade do refletir e a ausência de

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raízes do oposto ao Bem. Se o sujeito não sente remorsos ao agirmotivado pelo Mal, então ele não conhece limites à ação, pormais maléfica e abominável ela seja. Jerome Kohn, naintrodução americana de Responsabilidade e Julgamento,argumenta que:

Para Arendt, a banalidade do mal não era uma teoria ouuma doutrina, mas significava a natureza factual do malperpetrado por um ser humano incapaz de pensar – por alguémque nunca pensou no que estava fazendo, quer na sua carreiracomo oficial da Gestapo encarregado do transporte dos judeus,quer como prisioneiro no banco dos réus.

Não pensar, não atingir qualquer profundidade ao agir enão ter raízes: fórmula nefasta, articuladora da pantomimamacabra, pela qual Himmler, o assassino refinado e metódico,expressa a mais inacreditável das contradições – apiedar­se deanimais silvestres e, não obstante, promover o genocídio.

5. A lógica como Moral do pensamento

Para tentar compreender esta auto­contradiçãopragmática, é necessário admitir uma estreita afinidade entre oprocesso de desenvolvimento intelectual e o processo desocialização gradual do indivíduo, indicando­se que opensamento lógico é necessariamente social; Piaget já mostrouque o desenvolvimento lógico depende da reciprocidade total, acapacidade indefinida de intercâmbio com o próximo.Evidentemente, pensar de modo lógico pressupõe não apenas aautonomia do sujeito, mas igualmente a capacidade dereconhecer a pluralidade e a reciprocidade dos pontos de vista;dito de outro modo, reconhece­se a autonomia do outro. Umaação moral guiada por regras não pode ser balizada porinteresses pessoais, face à exigência de que todos devam epossam aprendê­las.

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Assim, é possível postular a mútua influência entre odesenvolvimento das normas morais e o das normas intelectuais.Abandonar a idéia do conhecimento como uma cópia do mundoe buscar a integração de tudo implica uma visão coerente e fiel àexperiência, através da qual o sujeito reconhece, localiza evaloriza os elementos do seu mundo: de tal esforço resultariaum conceito de realidade flexível e tolerante. Isto significa que alógica não estaria restrita ao meramente operatório – aobjetividade, o domínio de realidade limitado ao cumprimentode objetivos particulares – mas abarcaria também uma moral dopensamento.

Ao comentar Baier no seu livro Teoria da ArgumentaçãoJurídica, Alexy afirma que uma regra moral não poderia serauto­delimitadora, no sentido de que o seu cumprimentouniversal acarretasse um paradoxo: ninguém poderia agirconforme a sua prescrição sem que isso conduzisse a impasses,como no exemplo “quando estiver em dificuldades, peça ajuda,mas não ajude ninguém que esteja em dificuldades”. Ademais,as regras morais não poderiam ser auto­destrutivas, no sentidode que a sua observação imediatamente ameaçasse o propósitodo agente, como ilustrado pela prescrição “Faça uma promessamesmo que não pretenda cumprí­la”.

Existem princípios que não podem ser ensinadosuniversalmente, sob pena de se criarem novas e absurdasnormas de linguagem, mostradas pelo imperativo “Sempreafirme que o que você pensa não vem ao caso”: o sujeitoanularia tanto as máximas da veracidade e da pertinênciapostuladas pelo Princípio de Cooperação de Grice quanto apossibilidade de dialogar produtivamente com os seussemelhantes. A comunicação estaria completamentefragmentada, anulando­se o esquema custos/benefícios quetorna o processo lingüístico mutuamente vantajoso. Conceder emanter credibilidade, considerar os outros como sinceros everídicos, até prova em contrário: eis um princípio econômico

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do qual se pode extrair o máximo benefício.

6. O Discurso como Forma de Ação e a Auto­ContradiçãoPragmática

Para se obter um grau ótimo de informações, o sujeitoprecisa estar em sincronia com o interlocutor, admitindo queconceitos de realidade diferentes dos seus possam serigualmente corretos; dito de outro modo: o sentido das relaçõesargumentativas é constituído pela estrutura do jogo derepresentações, bem como pelas relações interpessoais dosfalantes. Na verdade, a argumentação é um processo estruturantee estratégico pelo qual certas regularidades são exteriorizadaspor uma competência comunicativa baseada em processos deraciocínio. Como sugere Apel, as cadeias de razões quesustentam o discurso devem ser aceitáveis para quem as ouve,com base nas suposições prévias que são oferecidas por umacomunidade discursiva aos seus membros; outros elementosseriam os valores ou o reconhecimento da desejabilidade mútuadas perspectivas fundadas na totalidade de opiniões dosparceiros; por último, surgiria o contexto das crenças dosfalantes. Assim, cada um espera que o parceiro respeite as regraspropostas, compartilhando um certo quadro no qual se vejamsob a ótica de uma condição determinada e não ao acaso; que odiscurso seja cooperativo e que sua transgressão acarrete algumasanção.

Parret assinala que, na semântica clássica, postulava­seum conceito bipolar de racionalidade no qual a verdade seria acorrespondência entre dois pólos, o pensamento e a realidade.Sob outro ângulo, a noção pragmática de realidade não seriadeterminada exclusivamente pela bipolaridade com o mundo,mas fundar­se­ia igualmente na racionalidade do contexto, na

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orientação da compreensão e na dependência contextual dosentido discursivo. A atividade de compreensão ocorre sempreno interior da estrutura homogênea composta por todos aquelesque raciocinam numa comunidade.

Se o objeto pragmático pode ser entendido como a rede derazões de um sujeito razoável, então só existirá comunicaçãocaso o falante adote as regras do jogo conversacional. O sentidonão é imanente, mas depende da atitude, entendida como acapacidade de transformar do mundo (uma típica capacidade dodiscurso). A via pragmática possuirá uma primeira propriedade:a transcendência do sentido, pela qual os estados de coisas, omundo ou os eventos são o material para a construção demundos possíveis. A segunda propriedade será a razoabilidade,pela qual o sentido aparecerá como uma estratégia discursiva;por fim, a compreensão – o esforço incessante de adequar oentendimento do real às perspectivas de ação.

Aerts e Apostel apontam a coerência e a fidelidade àexperiência como as principais propriedades de uma visão demundo: por um lado, as metáforas, os conceitos e os axiomasdeverão formar um conjunto consistente que nos permita pensarconjuntamente e hierarquizar diferentes sistemas de valores; poroutro lado, não poderá haver contradições entre os conceitosfundamentais da visão de mundo e os fatos experienciaisconhecidos. Em outras palavras: o conhecimento é umaatividade adaptativa que conduz ao ajuste com o ambiente e queinfluencia diretamente as nossas ações. Vale ressaltar, porém,que uma visão de mundo assim construída não pode terpretensões à verdade, no sentido da correspondência com umarealidade ontológica: ela será apenas um meio viável de se lidarcom a experiência num determinado nível, levando o organismoà adaptação, a despeito das limitações que o meio imponha à suasobrevivência. A possibilidade da realidade ontológica dafilosofia tradicional seria substituída pelo conhecimento comouma maneira de pensar o mundo, localizando, reconhecendo e

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avaliando a realidade gerada a partir da experiência.Uma visão de mundo seria a descrição imaterial e

provisória da totalidade na qual vivemos. Em tal descriçãoestaria igualmente contido um inventário das ações possíveis,implicando, por um lado, uma permanente abertura às diferentesinterpretações do real e, por outro, um determinado grau deincerteza. Múltiplos sistemas de valores, devidamentehierarquizados, fariam também parte de tal visão. Assim, ohomem poderia estabelecer a estrutura das utilizações possíveisdo conhecimento, realizando a passagem entre os dois domíniosdo real, seja a realidade do ponto de vista da manipulaçãotécnica seja do ponto de vista da auto­compreensão e daintersubjetividade.

André Duarte e Bethânia Assy na Introdução brasileirade Responsabilidade e Julgamento, afirmam que três diferentesníveis de responsabilidade moral podem ser identificadosnaquele texto de Arendt: responsabilidade de escolher a simesmo, responsabilidade de julgar e eleger exemplos, eresponsabilidade para com a durabilidade do mundo por meio deuma agir consistente.

Retomando a tese de Piaget de que a lógica é amoralidade do pensamento assim como a moralidade é a lógicada ação e de que também a razão pura vem a ser o árbitro tantoda reflexão teorética quanto da prática mundana, pode­seperguntar de que maneira a consciência moral se expressanormalmente no nosso comportamento ético. Comodesenvolvemos uma habilidade de natureza ética que nospermita lidar de modo espontâneo e, não obstante, efetivo, comas situações diárias da coexistência?

7. Do Falso Segue o que se Quiser

Himmler, ao desobedecer exatamente as regras

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pragmáticas e sem que aparentemente tente enganar o seuinterlocutor afirmando coisas que crê não vir ao caso, produzcontra­sensos morais: o chefe de Eichmann não encontravaqualquer contradição no fato de mostrar­se desolado com amorte dos pobres animais enquanto as suas SS, naquela mesmasemana, massacravam milhares de pessoas na Lituânia.

Há aqui um descompasso entre o agir do sujeito e opercurso da própria realidade: na verdade, a linguagem não serestringe a um sistema ou sub­sistemas de sinalização, mas vema ser um referencial das idéias e do comportamento humano. Alinguagem transcende a unidade sintático­semântica – típica dafrase – e revela­se como discurso, uma organização situada paraalém da frase; além disso, sendo regido por normas, o discurso éorientado e desenvolve­se no tempo, apresentando progresso ecoerência. Ele é assumido por um sujeito e é uma forma de ação– a unidade pragmática, entendida aqui como a atividade capazde produzir efeitos, reações. De toda forma, como assinalaParret, “o sentido da seqüência discursiva é inseparável dosprocedimentos para a sua compreensão ou, mais geralmente, datransposição semântica que se realiza em todo ato deinterpretação”.

Em outras palavras: a gramática da ação implicarelações lógicas ou semânticas em sentido estrito e relaçõesdiscursivas ou pragmáticas; estas últimas dependem,primordialmente, das intenções do falante, as quais podem ser asmais variadas. Compreender um enunciado seria apreenderessas intenções. No entanto, os princípios conversacionais,assim como as regras morais, são regulativos e não,constitutivos. Princípios e máximas têm uma certa naturezamoral, porque, na situação comunicativa, deve haver umaconfiança recíproca entre o emissor e o destinatário. Criam­seobrigações jurídicas no interior de cada discurso, como se uminterlocutor dissesse: “A informação que lhe transmito é a maiscorreta possível” e outro respondesse: “Levo a sério os seus

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enunciados e confio neles”.Ora, o rompimento das obrigações discursivas acarreta

percalços que poderão levar à rejeição do próprio discurso. Éclaro que nunca poderemos estar certos do que um oradorexpressa num enunciado, mas, ao reconhecer os motivos dealguém para falar/agir assim ou de outra forma, reconheceremosa força pragmática do que foi dito (fazer uma promessa, porexemplo). Suspeitar de todos e adotar a política de que todos sãonão­confiáveis até prova em contrário inviabilizaria as nossasvidas e teria custos intoleráveis. A adoção de uma semânticaverifuncional não teria qualquer poder para avaliar atitudesepistêmicas como a crença e o saber, porque ambos assentam­seem cadeias de razões não­descritivas, mas prescritivas.

As pretensões de validade das proposições estabelecem­se em diversos níveis:

a) no nível descritivo, o critério de validade será ademonstração da existência do estado de coisas;b) no nível normativo, o critério da correção prescritivaserá a demonstração da aceitabilidade das normas deação;c) os enunciados valorativos, por sua vez, precisamexpressar a adequação dos padrões de valor, ressaltandoas preferências do agente;d) quanto à transparência das auto­apresentações, o quese busca seria a veracidade das manifestações para quese evitem a falsidade e a hipocrisia.

Arendt escreve que :Além do impulso de auto­exposição, pelo qual as coisasvivas se acomodam a um mundo das aparências, oshomens também apresentam­se por feitos e palavras, e,assim, indicam como querem aparecer, o que, na suaopinião, deve ser e não deve ser visto. Este elemento deescolha deliberada sobre o que mostrar e o que ocultarparece ser especificamente humano”...(...) A auto­apresentação distingue­se da auto­exposição pelaescolha ativa e consciente da imagem exibida; a auto­exposição só pode exibir as características que um servivo já tem...(...) Propriamente falando, somente a auto­apresentação está aberta à hipocrisia e ao fingimento, ea única forma de diferenciar fingimento e simulação derealidade e verdade é a incapacidade que os primeiros

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desses elementos têm para perdurar guardandoconsistência.

Quem observa o comportamento dos nazistas ficainteiramente confuso com os diversos sinais contraditórios nadescrição de suas condutas: expô­las seria nada dizer epermanecer atônito. A capacidade para pensar, contudo, deveproduzir no sujeito uma primeira atribuição: a perplexidade.Esta experiência essencialmente socrática interrompe os nossosjulgamentos habituais e leva ao re­exame dos valores. Oexercício da capacidade de pensar gera ainda uma segundaprerrogativa, a consciência de si, na qual se revela o tipo deidentidade que convém ao eu, aquilo que Ricoeur chama de“ipseidade que se opõe à simples mesmidade”. Por fim, oterceiro privilégio gerado pelo exercício do pensar será acomunicabilidade, a exigência de um mundo plural no qual asdiversas visões formem um multiverso, a coexistência demúltiplos valores e ações igualmente legítimos dando cor erelevo ao mundo.

Bethânia Assy argumenta que Eichmann proporcionou aArendt a possibilidade de uma expressão latente da ausência daatividade de pensar, própria à vida contemplativa, no espaço daação e da pluralidade da vida ativa”.

Se descobrir e atacar o camaleão oculto por suas coresmutáveis no meio da folhagem é a tarefa obrigatória dopredador, revelar o hipócrita sob a máscara dos valores quefinge defender e sob as contradições que expressa ao agir, é atarefa do pensador. A ausência da atividade de pensar apontapara a falta de aprendizagem e, conseqüentemente, para a faltade compreensão. Responder à questão “o que estou fazendo?”seria uma tarefa impossível para Himmler e Eichmann. A lógicaauto­explicativa com que lidavam, fruto da exposiçãocontinuada à burocracia e à ideologia, tornara­os inaptos para afala comum, inteligível a qualquer ser dotado de razão. O usocontinuado de clichês, a obediência cega às ordens, a aceitação

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muda das premissas ideológicas – situações comuns aos doisnazistas – transformou estes dois homens aparentementenormais em seres despidos da capacidade de pensar e de julgar.

Realizando uma reductio ad absurdum: uma lógica daação baseada apenas em raciocínios dedutivos – seguir regrascegamente, por exemplo ­ conduziria, em pouco tempo, o serhumano à condição insuportável de vivenciar experiências semsignificado. Se premissas aparentemente inabaláveis fossem oúnico e permanente critério para apreender e perceber o que édado aos sentidos, então a possibilidade da aprendizagem, porparte do agente, seria mínima: o sujeito não teria qualquerflexibilidade para alterar o seu entendimento do real, o qualapareceria como algo definitivamente dado e cuja compreensão,de antemão, esbarraria em limites rígidos e estreitos.

As coerências operacionais de tal linguagem, a suaracionalidade em última análise, formariam um mundo cujosentido escaparia ao observador não­engajado em função dodesequilíbrio profundo entre qualquer possível interpretação e adescrição efetiva do real. Um indivíduo que constituisse suaexperiência a partir de dados superficiais, assistemáticos ouincoerentes, não poderia adequar tal linguagem às exigências deum permanente ajuste ao ambiente. Quando Parret propõe ainteressante máxima pragmática: “a totalidade da concepçãocorrente do objeto para a pessoa corresponde à concepção dosseus efeitos,” está definindo o sentido e a possibilidade do não­sentido para o observador.

Não fosse o assunto tão profundamente perturbador,Eichmann, ao declarar à polícia israelense que durante toda asua vida tinha se conduzido segundo os preceitos morais deKant e que agira segundo uma definição kantiana de dever, teriafeito uma afirmação aparentemente erudita destinada a causarnão o espanto, mas o riso convulsivo em qualquer ser razoável.Da mesma forma, a confusão e incredulidade de quem ouve osdiscursos de Himmler derivam da impossibilidade de se

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compreender a conduta de um homem que radicalmentecontradiz a si mesmo sem, contudo, fingir. O nazista paranóico,cujo comportamento genocida representou a morte paramilhões, aparentemente raciocina colocando­se a si mesmo nolugar de cada um dos outros e insinuando que a manifestação dapiedade pelos animais é apenas um pálido sinal exterior dapiedade pelo humano que se esconde no seu peito. Ora, do falsosegue o que se quiser!

Será que o pensamento e o juízo poderiam reconstituir apluralidade da vida do espírito, impedindo a prática do Mal atémesmo em situações­limite como a guerra e o assassinato emmassa? A “obediência de cadáver”, necessária ao cumprimentocego de uma regra injusta e monstruosa, certamente contribuiupara a adesão incondicional e acrítica ao real totalitário. SeEichmann nunca compreendeu o estava fazendo, ele, contudo,executava com competência as nefandas tarefas encomendadaspor Himmler: cadastrar,deportar e transportar judeus e outrasminorias aos campos de extermínio. O jamais pensarconsiderando o ponto de vista de outra pessoa e a perfeitaindiferença para com o seu semelhante, associada à ausência deauto­consistência, levavam à impossibilidade de justificar assuas proposições normativas: eis Adolf Eichmann e Himmler ­assassinos cruéis de caráter comum, não pervertidos nemsádicos, homens que jamais tomaram conhecimento do pensar edo julgar que caracterizam a vida propriamente humana. Se oscampos de concentração foram fábricas de mortos­vivos, aideologia totalitária, inimiga do pensar, fez de funcionárioscomo Eichmann e Himmler zumbis orgulhosos de se portaremcomo cadáveres.

A incapacidade para pensar acarretaria a impossibilidadedo sujeito tratar questões abertas, aquelas nas quais coloca­seem dúvida a ordenação completa e consistente de crenças e deregras que lidam com a experiência. Dito de outro modo: se asquestões abertas colocam em risco os fundamentos que

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sustentam uma visão de mundo, então o mundo totalitário nãopode aceitar a existência do pensamento. O ato de pensar definenão apenas um critério lógico, mas também um critério ético, abusca de sentido que consiste em refletir sobre o lugar dahumanidade no mundo e propiciar a compreensão dos nexossignificativos tanto teóricos quanto práticos que lançam luzsobre a realidade. O pensamento prático aqui envolvido tem aver como o correto e o incorreto e com a capacidade de refletir eavaliar.

8. Pensamento e Alheamento

No campo da atividade meramente instrumental, ocumprimento ou não de um determinado objetivo implica umalógica operativa que conduz ao sucesso ou à falha –simplesmente julga­se a ação com referência ao cumprimento deobjetivos particulares. Mas do ponto de vista ético, o que seavalia é o objetivo comum, solidário da vida humana e se houvesucesso ou frustração na tentativa de integração da finalidade aotodo. Normas e finalidades têm a ver com a adoção de valores;o sucesso, por sua vez, diz respeito à adaptação obtida dentro decertas restrições. Os parâmetros que ilustram o sucesso ouinsucesso de uma vida jamais poderão ser definidos comoconcordância ou não com a realidade.

Daí a necessidade de uma ponte entre os dois abismos, aobrigação de se desenvolver uma expertise técnica e ética, capazde dar conta das escolhas e do reconhecimento dasoportunidades de ação no mundo. Se o sucesso ou insucesso deuma vida não pode ser definido como a concordância ou a nãoconcordância com a realidade, então os parâmetros do juízoencontram­se exatamente na capacidade para pensar. Escolher apartir de situações imprevisíveis e saber lidar com o inesperado:eis uma habilidade que demanda o pensar.

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E se não há um nexo direto entre o pensamento e omundo, de onde surgirá o pensamento que responderá a questão:“o que eu estou fazendo?” Ao se abstrair momentaneamente domundo das aparências, ao qual está existencialmentecondicionado pelo período do nascimento à morte, o homemconsegue realizar uma vida interior que só adquire sentido emfunção da intersubjetividade.

Arendt escreve que:Os homens podem julgar afirmativa ou negativamenteas realidades em que nascem e pelas quais são tambémcondicionados; podem querer o impossível, como, porexemplo, a vida eterna; e podem pensar, isto é,especular de maneira significativa sobre o desconhecidoe o incognoscível. E embora isso jamais possa alterardiretamente a realidade – como de fato não há, emnosso mundo, oposição mais clara e mais radical do quea oposição entre pensar e fazer ­, os princípios pelosquais agimos e os critérios pelos quais julgamos econduzimos nossas vidas dependem, em últimainstância, da vida do espírito.

Destaca­se, primeiramente, o pensar como a esfera dasatividades mentais por excelência, opondo­se constantemente aoagir, emergindo da esfera das aparências e em seguida a elaretornando; num segundo sentido (o mais rigoroso dos três,como assinala Adeodato), o pensamento coloca­se ao lado doquerer e do julgar. Por último, o pensamento surge comosinônimo de compreensão, a procura incessante pelo significadodas coisas.

Segundo Arendt:Existencialmente falando, o pensamento é um estar só,mas não a solidão; o estar­só é a situação em que mefaço companhia(...) O fato de estar só , enquanto dura aatividade de pensar, transforma a mera consciência de si– que provavelmente compartilhamos com os animaissuperiores – em uma dualidade é talvez a indicaçãomais convincente de que os homens existemessencialmente no plural.

A experiência condutora do diálogo consigo mesmo é aamizade: o dois­em­um do pensamento deve ser harmônico

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porque ninguém gostaria de estar junto a si mesmo empermanente desacordo, como se torturado por Megera, a Fúriaespecialmente designada para acompanhar e castigar oscriminosos repetindo incessantemente os seus malfeitos. Ser seupróprio adversário: eis algo temível!

“O único critério de pensamento socrático é aconformidade, o ser consistente consigo mesmo,homologein autos heauto. O seu oposto, o estar emcontradição consigo mesmo, enantia legein autosheauto, de fato significa tornar­se seu próprioadversário.”

Não conhecer essa interação silenciosa significa nãopoder prestar contas do que se diz ou do que se faz; não seimportar em se contradizer parece ser próprio das pessoasmoralmente baixas; fugir da companhia de si mesmo é própriodo homem mau!

A autora de Entre o Passado e o Futuro anunciagenialmente:

O pensamento acompanha a vida e é ele mesmo a quintaessência desmaterializada do estar vivo (...) Uma vida sempensamento é totalmente possível, mas ela fracassa em fazerdesabrochar a sua própria essência – ela não é apenas semsentido; ela não é totalmente viva. Homens que não pensam sãocomo sonâmbulos.

Retirando­se do mundo das aparências, aquele que pensavive o alheamento tão ridicularizado pelo senso­comum; quandoTales de Mileto caminhava distraído ao observar estrelas, caiunum buraco à sua frente, e a famosa escrava trácia, testemunhado fato inusitado, pronunciou então a mais banal e a maisevidente das verdades do senso comum: “tão preocupado comos céus que esquece o chão aos seus pés”, ressaltando a aparenteincompatibilidade entre as elevadas preocupações espirituais eas atividades cotidianas mais comezinhas. Demócrito, ao propora existência dos átomos, ficou sob suspeita de insanidade eAristarco de Samos, o primeiro a mencionar a hipótese

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heliocêntrica, foi ameaçado com uma acusação de impiedade.Aristófanes, por sua vez, satirizou Sócrates em um peça cômica,As Nuvens, fazendo do mestre de Platão o exemplo perfeito donefelibata. Nietzsche, com seu bigode abundante e a sua“filosofia a marteladas”, também ilustra, para o consumo damassa, a imagem da tribo dos excêntricos perguntadores eiconoclastas: os filósofos, gente tão cética e estranha que chegacartesianamente a duvidar da existência do mundo, do prédioonde vive e até mesmo dos vizinhos com que divide o elevadorumas poucas vezes. Anunciar a morte de Deus e, como castigo,passar o resto dos seus dias louco, alheio a tudo, imerso numincessante curto­circuito metafísico/neuronal: eis o destino dofilósofo, segundo a plebe!

Pensar e imaginar o que o populacho jamais pensa eimagina, assumir o compromisso de ser incondicionalmentecético: clichês e mais clichês, sem que ninguém se dê aotrabalho de, ao menos, verificar a veracidade de tais lugares­comuns. A atividade do filósofo – a busca do “significado” ­ nãotem qualquer importância para o senso­comum, sempre tãoapegado às noções superficiais, assistemáticas e confusas. Ainvisibilidade da atividade espiritual, a solidão de quem pensa ea ausência de quem se recolhe a si mesmo são motivos deescândalo perante a grande multidão que sobre nada reflete.

9. A Vida Bem­Sucedida

A estima de si mesmo e o respeito de si mesmo definema dimensão moral e ética do sujeito, o qual, kantianamente,aplica a si mesmo a regra que ele impõe aos outros. Ao admitir aidéia de que qualquer um tem o direito de utilizar as suasjustificações, ele afasta o risco de contradições pragmáticas queconsistem em fazer o contrário do que se diz. A capacidade parapensar, orientada pela filosofia e associada à faculdade do

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julgar, leva­nos distinguir o certo do errado, o belo do feio e nosalerta para o que não se deve fazer.

Mas o que será o pensamento? Arendt, comentando oconceito aristotélico da atividade do pensamento como energeia(o que tem o seu fim em si mesmo) e que vem a ser a vida,escreve que:

A lei a ela inerente, que somente um deus pode tolerarpara sempre – e o homem só vez por outra, nos momentos emque ele se diviniza ­,“é um movimento incessante, que é ummovimento circular”, o único movimento, ou seja, o movimentoque não tem fim, ou que nunca resulta em produto final.

Apenas como algo consciente de si mesma, pode a vidaser bem sucedida. Ao cabo, reencontramos os antigos, com a suapretensão à eudaimonia, a posse indefinida do bom, do belo e doverdadeiro. Pensar e não deixar nenhum produto tangível nomundo em que habitamos, exceto o viver na vizinhança dascoisas imortais: no curto espaço de tempo de suas vidas, osmortais brincam de ser deuses e pensam!

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