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  • Sobre o filsofo como educador em Kant eNietzsche

    Oswaldo Giacoia JuniorIFCH/Unicamp

    resumo Este trabalho pretende comparar a concepo de formao filosfica em Kant e

    Nietzsche. A metfora do filsofo como legislador constitui a pea central na anlise

    hermenutica de ambos os pensadores.

    palavras-chave Filosofia - Filsofo - Legislador - Kant - Nietzsche - Plato

    O presente trabalho pretende sugerir uma aproximao algo inusitadaentre as concepes de formao filosfica em Nietzsche e Kant. Inver-tendo a cronologia, tomo como ponto de partida uma tentativa de inter-pretao de alguns textos centrais de Nietzsche a respeito do tema textos que no se limitam a uma nica fase do pensamento desse autor ,para depois contrast-los e procurar faz-los convergir com aspectosessenciais da posio de Kant.

    Quase um sculo depois da publicao da primeira edio da Crticada Razo Pura, quando as mentes mais sensveis j podiam preconizar asconseqncias e desdobramentos culturais da configurao da sociedadecivil burguesa emergente da revoluo industrial, Friedrich Nietzscheretomava, em nova chave, o tema clssico da vocao pedaggica elibertria da filosofia.

    O ponto de partida de Nietzsche consiste numa crtica fulminante dapreguia, da pusilanimidade, da vergonhosa busca de acomodao eanonimato que constituem o trao distintivo do homem moderno, at namais rarefeita atmosfera do espiritual: sua obsesso em ocultar-se sobopinies e costumes alheios.

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    Recebido em janeiro de 2005.Aceito em julho de 2005.

  • No fundo, todo homem sabe muito bem que ele, como um unicum,est no mundo apenas uma vez, e que nenhum to curioso acasomisturar pela segunda vez numa unidade, como ele , uma toadmirvel e colorida variedade: ele o sabe, mas ele o oculta, como umaconscincia malvada por que? Por temor do vizinho, que exige aconveno e se oculta a si mesmo com ela. Mas o que isso que coageo particular a temer o vizinho, a pensar e a agir conforme o rebanho eno estar alegre consigo mesmo? Pudor, talvez, em alguns e poucos.Para a maioria, comodidade, inrcia, em resumo, aquele pendor para apreguia. (NIETZSCHE, 1980a. p. 337).

    justamente por causa dessa preguia e covardia que o homem moder-no desperta o desprezo de todo grande pensador; pois, justamente porcausa desse ocultamento no anonimato tranqilizador da opinio pbli-ca, todos figuramos como mercadorias de fbrica, como indiferentes,indignos do trato e do ensinamento. O homem que no quer pertencer massa, precisa apenas cessar de estar confortado consigo mesmo; que elesiga sua conscincia moral, que o conclama: seja voc mesmo! Voc no nada daquilo que voc agora faz, pensa e deseja. (NIETZSCHE,1980a. p. 338).

    Portanto, quem quer se desgarrar da massa uniforme, que aspira por simesmo e pretende viver segundo sua prpria medida e legislao, estetem que se responsabilizar pela direo da prpria existncia, nopermitindo que ela se iguale a um penoso acaso desprovido de pensa-mento. Essa tentativa de se soltar da opressiva artificialidade convencionale da acomodao burguesa significa, para Nietzsche, emancipao, econstitui a mais genuna aspirao da alma jovem.

    Esta, em seu mpeto juvenil, clama para si mesma:Nada disso s tu mesmo. Ningum pode construir para ti a pontesobre a qual tu precisamente tens que passar sobre o rio da vida,ningum alm de ti mesmo. Decerto que h inumerveis atalhos epontes e semi-deuses que querem te carregar atravs do rio; mas apenasao preo de ti mesmo; tu te darias em penhor e te perderias. H nomundo um nico caminho que ningum pode trilhar, alm de ti: paraonde conduz ele? No perguntes, prossegue. Quem foi aquele queenunciou o seguinte princpio: um homem jamais se eleva mais alto

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  • do que quando no sabe para onde seu caminho ainda o podeconduzir (NIETZSCHE, 1980a, p. 340).

    O problema consiste, j podemos perceb-lo, em saber como encontrar-nos a ns mesmos, depois de nos termos perdido na selva das opiniescomuns, dos costumes, das convenes, da tradio e do politicamentecorreto. Como nos elevarmos at aquela altura onde podemos vislumbraralgum indcio de ns mesmos? Como dar cumprimento quele sublimepreceito pedaggico inscrito no orculo de Delfos, que Scrates trans-formou na divisa suprema da filosofia?

    A meu ver, de acordo com Nietzsche, no pelo caminho da interio-ridade proposto por Scrates, pois como poderamos nos conhecer inte-riormente se, antes disso, temos que realizar a tarefa sobre-humana dedescobrir uma (nossa) identidade, se antes de poder divisar um ponto ondeestaramos fixados, temos que nos desgarrar e nos perder daquilo quejulgvamos erroneamente ser nosso Eu, se temos de retraar, a posteri-ori, o desenho de um estilo que imprime a unidade de um carter dis-pora de nossa existncia?

    Para Nietzsche, no despencamos em queda livre e direta para acaverna que abriga o tesouro de nossa ipseidade, nem arrancandoviolentamente nossas peles que descobriremos o recndito mago denosso si prprio.Ao contrrio, tudo aquilo que nos cerca e acompanha,ao longo de nossa existncia, presta testemunho indireto de nossa essn-cia: amizades e inimizades, amores e averses, memria e esquecimen-tos, palavra e silncio, tempos e lugares, nosso olhar e nosso aperto demo, nossos livros e escritos, os traos de nosso punho e as linhas denosso rosto.

    Que a jovem alma olhe para trs, sobre sua vida, sugere Nietzsche, eque pergunte:

    o que, at agora, verdadeiramente amaste, o que atraiu tua alma, o quea dominou e ao mesmo tempo a felicitou? Coloca diante de ti a sriedesses venerados objetos, e talvez eles te proporcionem, por suaessncia e sucesso, uma lei, uma lei fundamental de teu prprio timesmo. Compara esses objetos, v como um complementa, alarga,sobrepuja, transfigura o outro, como eles formam uma escada, sobre aqual tu at agora te elevaste para ti mesmo; pois tua verdadeira essncia

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  • no jaz profundamente oculta em ti, mas imensamente acima de ti, ouao menos sobre aquilo que costumeiramente tomas como o teu eu.(NIETZSCHE, 1980a, p. 340).

    Temos nesse trecho uma das indicaes mais preciosas para a soluo daquesto que nos ocupa: aquilo que d testemunho de nossa verdadeiraidentidade no est soterrado na profundeza de nosso ser ou, se estiver,ao menos no acessvel por esse caminho. No para dentro, para baixoe para o abismo que devemos nos dirigir, mas para o exterior para assries de nossos encontros, nossas afeces e experincias , sobretudomuito acima daquilo que ingenuamente tomamos por nosso Eu. Nossopercurso de formao pontuado pela presena constante do outro,desenhando, portanto, uma linha de fuga em relao a um pseudo centroidentitrio, um movimento de afastamento, que possibilita a reaquisio,por um retorno reflexivo a si1.

    H que se observar, entretanto, que essa busca de si, que de incio sedirige srie de nossos objetos venerados sem descuidar da significao,pelo negativo, daquilo de que fugimos e odiamos constitui um dosdegraus do caminho ascendente em que nos elevamos a ns mesmos.Outro degrau, de importncia fundamental, formado precisamente poraqueles que tomamos como educadores:

    Teus verdadeiros educadores e formadores te revelam o que overdadeiro sentido originrio e a matria fundamental de tua essncia,algo inteiramente no ensinvel, no modelvel, em todo casodificilmente acessvel, atado, entravado: teus educadores conseguem noser mais que teus libertadores. E esse o segredo de toda educao: elano confere prteses artificiais, narizes de cera, olhos oculizados pelocontrrio: o que consegue proporcionar tais dons antes imitao deeducao. Esta, porm, libertao, remoo de toda erva daninha,entulho, vermes, que querem atingir a delicada semente da planta, jorrode luz e calor, amoroso murmrio de chuva noturna; ela imitao eadorao da natureza, onde esta maternal e misericordiosamentedisposta; aperfeioamento da natureza, quando previne e volta para obem os cruis e impiedosos acessos, quando estende um vu sobre asexteriorizaes de sua disposio madrasta e de sua tristeincompreenso (NIETZSCHE, 1980a. p. 340).

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  • Gostaria que me fosse permitido aqui chamar a ateno para certasfiguras persistentes na filosofia de Nietzsche, que tm sido objeto demuita controvrsia e incompreenso: ao apresentar o verdadeiro sentidooriginrio e a matria fundamental de nosso ser nossa essncia, porassim dizer , como um ncleo entravado, um caroo no passvel deensinamento e aprendizado, de formao e configurao , Nietzsche d a impresso de trat-lo como ndulo tosco eembotado.

    Essa impresso igualmente suscitada por um texto escrito cerca de15 anos depois de Schopenhauer como Educador, em que Nietzsche retomaesse topus, modifica e radicaliza ainda mais as metforas e alegorias:

    O aprendizado nos transforma, faz o que faz a nutrio, que noapenas conserva como sabe o fisilogo. Porm, no fundo de ns,totalmente l embaixo, h, em verdade, algo que no se deixa instruir,um granito de fatum espiritual, de deciso e resposta predeterminadaspara questes predeterminadas e seletas. Em todo problema cardeal falaum imutvel isso sou eu: sobre homem e mulher, por exemplo,nenhum pensador pode mudar seu aprendizado, mas somente aprenderat o fim descobrir at o fim aquilo que, sobre o assunto, para eleest estabelecido. (NIETZSCHE, 1980b. p. 170).

    Entretanto, seria oportuno contrastar essa aparente rudeza das imagensiniciais com uma ambincia delicada, frgil e amorosa, que com elaconvive no mesmo texto. Nessa segunda ambincia, predominam asmetforas botnicas do cultivo e jardinagem, bem como as alegorias docuidado materno: aqui se trata de extirpar ervas daninhas e removerdetritos e vermes para preservar as indefesas e delicadas primcias aindaem boto; aqui se fala em feixe de luz solar e tepidez, terno murmurejarde chuva noturna, numa clara aluso ao desvelo maternal; por fim,comparece a imagem urea da preservao, aquela retificao queconsiste em prevenir e reverter a fria desencadeada dos elementos, detransfigurao da natureza, cobrindo de vus de beleza seus cruis edesapiedados assomos. Cuidar significa aqui o mesmo que educar poiso segredo de toda verdadeira educao libertao, no sentido de areja-mento, iluminao, promoo, abertura de espaos e horizontes,desabrochamento, emancipao.

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  • Se retornarmos ao aforismo 231 de Para Alm de Bem e Mal sob oinfluxo dessa impresso anacrnica (pois colhida num texto de 1873),descobriremos que tambm naquele livro mais tardio est presente umadialtica das imagens antagnicas. Com efeito, logo depois da referncia ineficcia do aprendizado face a um fatum imutvel, que predeterminarespostas para problemas cardinais, Nietzsche acrescenta:De tempos emtempos, encontramos certas solues de problemas que justamente nosproduzem uma crena forte; talvez as denominemos da para dianteconvices (NIETZSCHE, 1980b, p. 170). Tudo se passa como senossas mais firmes e bem estabelecidas convices fossem algo mais doque uma crena e opinio; como se fossem a direta e inequvoca exte-riorizao daquele grantico isso sou eu, o rosto definitivo por detrs denossas mscaras.Todavia, descobrimos ainda, com o tempo, que mesmonossas certezas aparentemente autnticas e definitivas so apenas outrostantos disfarces, signos que remetem ainda a outra instncia.

    Mais tarde vemos nelas to-somente pistas para oautoconhecimento, indicadores de caminho para o problema que somos-, mais concretamente, para a grande estupidez que ns somos, paranosso fatum espiritual, nosso resistente ao aprendizado, totalmente lembaixo (NIETZSCHE, 1980b, p. 170).

    O fatum que resiste a todo aprendizado a rocha de certeza a removerenfim toda dvida se revela, pois, no decurso do tempo e das experin-cias, como o problema que somos, como a estupidez que somos, cujoremoto paradeiro nos indicado pelas pegadas de nossas convices.Tambm aqui como no caso da delicada semente o fatum o que nose deixa apreender, a inexorvel contingncia voltil que se furta a todagrosseira e impertinente tentativa de apreenso.

    Retornemos, depois disso, ao problema que nos ocupava desde oincio, ou seja questo da formao, pois agora podemos formularexplicitamente, em toda sua envergadura, o intrincado paradoxo, que atento estivera apenas sugerido: aqueles que nos educam e que nosformam, so os que constituem os nossos mais fecundos encontros, poisque, por sua natureza e pela srie que inscrevem na trajetria de nossaexistncia, revelam-nos o autntico sentido originrio e a matria funda-mental de nossa essncia. Contudo, no podem faz-lo seno conju-

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  • rando justamente o contrrio deles mesmos, a saber: aquele algo inteira-mente no passvel de ensino, aprendizado, formao, modelagem como o estpido problema de nosso ser, que no se deixa apreenderseno pelo indireto e difano reflexo projetado na superfcie especular denossos educadores.

    Por essa razo, do ponto de vista de Nietzsche, aquele terrvel esforoe penosa obrigao de instruir-nos para a autenticidade e como queformarmo-nos a ns prprios, podem ser, em certa medida, aliviadospelo destino: para tanto, seria necessrio que, no justo tempo, encon-trssemos um verdadeiro filsofo, a quem pudssemos obedecer semulteriores reservas e condies, pois nele poderamos confiar ainda maisque em ns mesmos.

    Vale aqui, penso poder afirmar, a mxima evanglica: l onde estdepositado teu maior tesouro, ali est tambm teu corao. E precisa-mente nesse ponto que se cruzam, para no mais se separar, filosofia, ensi-no, educao e formao pois filosofia o mais sublime objeto devenerao; como amor da sabedoria, ela a figura suprema do amor. Adespeito de todo seu arrebatado e incendirio mpeto iconoclasta,tambm para Nietzsche a mais veraz de todas as cincias a honradadeusa nua Filosofia (NIETZSCHE, 1980c, p. 282).

    Encarnao da filosofia, o filsofo pode ser o signo concreto desseamor ideal pelo mais remoto e sublimado: pela casta nudez da verdade.Por essa razo, o verdadeiro filsofo tambm o verdadeiro educador, poisele no proporciona ao discpulo rplicas sem vida de seus membrosnaturais, prteses artificiosas, nem subterfgios consoladores.Ao filsofo,como verdadeiro educador, cumpre ser o guia e o promotor daquele quese encontra a caminho para sua mais genuna vocao, para o seu amormais elevado em outras palavras, para a justa e completa maturao eflorescimento daquele indefeso cerne entrevado, informe, agrilhoado esoterrado de entulho, que aspira por desabrochar, por ser libertado etrazido luz da figurao.

    Entretanto, o que significa educar, instruir, formar, num tempo comoo nosso, que exige a especialidade e que pressiona por nos transformarem indistintas mercadorias de fbrica, indignas do trato e do apren-dizado? Mesmo nossa poca das especializaes atomizadas oscila entreduas mximas fundamentais da educao:

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  • Uma delas exige que o educador deva reconhecer logo a fortalezaprpria de seu pupilo, e ento direcionar precisamente para l todas asforas e seivas e todo brilho de sol, para auxiliar aquela virtude parauma correta maturao e fecundidade.A outra mxima quer, aocontrrio disso, que o educador atraia a si todas as foras existentes,trate delas e as traga para um relacionamento harmonioso(NIETZSCHE, 1980a p.342).

    Trata-se, portanto, de exigncias operando em sentido contrrio: umadelas prescreve a drenagem de todas as energias do corpo e do espritopara a intensificao mxima de um talento singular; a outra determinajustamente o cultivo para a totalidade harmnica das foras, o jogoconjunto das mltiplas vozes em uma mesma natureza. Como, porm,conciliar as duas coisas? Como obter aquele concerto polifnico de vozesconcorrentes quando a pujana de um talento singular se mostra espe-cialmente vigorosa? Seria necessrio sufoc-la pela disciplina opressiva deuma inclinao contrria, artificialmente implantada? Ou uma harmoniado mltiplo s seria possvel onde a pluralidade dos dons no vai alm deuma indigente mediocridade?

    Para Nietzsche, entretanto, no se trata aqui de contradio insolvel,pois justamente em criaturas em que fortes pendores e talentos impe-riosos, mltiplos e concorrentes, aspiram a um ponto nodal e a uma forade raiz, com dominador e coercivo poder superior para instituir entre elesum harmnico sistema de movimentos, que podem ocorrer as maisperfeitas configuraes de unidade do diverso, os mais afortunados efelizes pactos de concrdia no conflito de faculdades. do mximotensionamento conjunto das cordas que se obtm as tonalidades sonorasmais refinadas, assim como o arco maximamente retesado entre os doisplos extremos que permite ambicionar e lanar a flecha para os alvosmais difceis e remotos.

    E assim talvez as duas mximas no sejam de modo algum contrrias?Talvez uma diga apenas que o homem deve ter um centro, a outra queele deve ter uma periferia.Aquele filsofo que sonho para mimcertamente descobriria no somente a fora central, mas tambmsaberia evitar que ela atuasse destrutivamente sobre as outras foras:antes pelo contrrio, a tarefa de sua educao consistiria, como me

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  • parece, reconfigurar o homem para um vivamentemvel sistema de sis e planetas e conhecer a lei de sua mecnicasuperior (NIETZSCHE, 1980a p. 342).

    Percebemos aqui como essa imagem do sistema de sis e planetas, cujovivo movimento deixa reconhecer a lei fundamental de uma mecnicasuperior, reencontra as metforas anteriores do caroo aprisionado, emnsia por germinao, e o grantico fatum espiritual de perguntas erespostas. Trata-se sempre, a meu ver, daquela concepo de formaocomo prtica de si, como relao consigo mesmo pela mediao especu-lar dos outros trata-se, sobretudo, do verdadeiro educador. da resoluode sua tarefa formadora de trato, cuidado e cultivo, que emergiro osfrutos daquela semente, a lei mecnica superior daquela constelao viva.

    O grande problema, para essa teoria da educao para a autenticidadedo jovem Nietzsche, que faltava justamente aquele filsofo, e o que sepodia apreender era, isso sim, como

    ns, homens modernos, figuramos miseravelmente em face dos gregose romanos, at mesmo apenas em relao ao entendimento srio erigoroso das tarefas do ensino. Com tal necessidade no corao, pode-seatravessar toda Alemanha, principalmente todas as universidades, e nose encontrar o que se procura; e, alis, tantos desejos muito maisbaixos e mais simples permanecem aqui insatisfeitos. (NIETZSCHE,1980a p.343).

    por causa disso que, naquela quadra de sua vida e, creio eu, ao longode toda sua existncia lcida Schopenhauer representou para Nietzscheo modelo do educador autntico, como o pensador rebelde por exceln-cia, que denunciou a vaidade oculta sob a pompa indigente das distinesacadmicas, que obstinadamente se recusou macular a dignidade dafilosofia, constrangendo-a ao convvio esprio com a rotina universitriade funcionrio pblico, que no se dobrou a Estado nem Igreja, nem aqualquer dos outros poderes estabelecidos. Por causa disso, a virtudepedaggica e emancipatria de sua filosofia no se esgotou na estreitezadas disciplinas curriculares, nem seu exemplo de vida e pensamentogerou professores universitrios e filosofia de professores, eruditos filos-ficos a servio e a soldo dos poderosos da poca.

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  • Afinal, Schopenhauer tambm conclamava imperiosamente para umaconquista de si mesmo, por meio de sua noo de carter adquirido:

    Um homem tem tambm de saber o que ele quer, e saber o que elepode: s assim exibir ele carter, e s ento pode realizar algo direito.Entretanto, antes que tenha alcanado isso, e a despeito da conseqncianatural do carter emprico, ele todavia desprovido de carter; e apesarde que, no conjunto, tenha de permanecer fiel a si e percorrer seu trilho, arrastado por seus demnios; de modo que no traar nenhuma linhareta com o fio de prumo, mas uma linha vacilante, desigual; ele hesitar,desviar, contornar, causar a si mesmo remorso e sofrimento: tudo issoporque, tanto no pequeno quanto no grande, ele v diante de si tudoaquilo que para o homem possvel e alcanvel, e todavia no sabedisso o que , para ele apenas, comensurvel e realizvel, ou mesmo oque para ele desfrutvel (SCHOPENHAUER, 1986, p. 418).

    De acordo com a avaliao de Nietzsche, Schopenhauer conseguiuevitar, por seu exemplo, os dois maiores perigos da educao para afilosofia: por um lado, a rendio da cultura s potncias dominantes, doEstado e do mercado, pois o que os negociantes querem, quandoexigem incessantemente educao e cultura, sempre, no final dascontas, lucro (NIETZSCHE, 1974, p. 84).

    Por outro lado, Schopenhauer tampouco fez concesses aridez daerudio altamente especializada. Ele no recorreu, para legitimar suafilosofia, aos modismos e jarges eruditos, pois este o linguajar estrildos filisteus da cultura, mas insistiu sempre no apelo autenticidade:

    Temos que primeiro aprender pela experincia o que queremos e oque podemos: at l, no o sabemos, somos sem carter efreqentemente temos que ser relanados em nosso prprio caminhopor duros golpes exteriores. Uma vez que o tenhamos finalmenteaprendido, ento conquistamos o que no mundo se chama carter, ocarter adquirido. De acordo com isso, este nada mais do que oconhecimento mais completo possvel da prpria individualidade: osaber abstrato e conseqentemente claro das inalterveis propriedadesdo prprio carter emprico, assim como da medida e direo de suasprprias foras corporais e espirituais, portanto de todas as fortalezas efraquezas da prpria individualidade.

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  • Isso nos coloca agora em condio de conduzir refletida emetodicamente o papel, em si nico e inaltervel, da prpria pessoa,que ns naturalizvamos anteriormente, sem qualquer regra, e depreencher as lacunas causadas pelo humor ou fraquezas, segundo adireo de conceitos firmes. O necessrio modo de agir, de tododeterminado por nossa natureza individual, ns o conduzimos agorasegundo mximas claramente conscientes, permanentemente presentes,de acordo com as quais o conduzimos to refletidamente como se fosseaprendido, sem nisso nos equivocarmos pela transitria influncia doestado de nimo ou da impresso do presente; sem ser inibidos peloamargo ou doce das particularidades encontradas no caminho, semcalafrios, sem hesitao, sem inconseqncias (SCHOPENHAUER,1986, p. 419).

    Por seu desprezo pela filosofia universitria, pseudo-erudita, Schopenhauerteria ensinado a Nietzsche que o aprendizado filosfico, descolado davida, no pode constituir seno rotina mecnica de adestramento, pesadacorvia espiritual, nunca um caminho de efetiva elevao e construo deuma autntica personalidade:

    E, por fim, em que neste mundo importa a nossos jovens a histria dafilosofia? Ser que eles devem, pela confuso das opinies, serdesencorajados de terem opinies? Ser que devem ser ensinados aparticipar do coro de jbilo: como chegamos to esplendidamentelonge? Ser que, porventura, devem aprender a odiar ou desprezar afilosofia? Quase se poderia pensar este ltimo, quando se sabe como osestudantes tm que de se martirizar por causa de suas provas defilosofia, para imprimir as idias mais malucas e mais espinhosas doesprito humano, ao lado das mais grandiosas e mais difceis de captar,em seu pobre crebro (NIETZSCHE, 1974, p. 89).

    O pensamento de Schopenhauer, como de todo verdadeiro educador, sesubmetia, segundo Nietzsche nica crtica de uma filosofia que possvel e que alm disso demonstra algo, ou seja, ensaiar se se pode viversegundo ela. Uma tal exerccio crtico nunca foi ensinado nas universi-dades: mas sempre a crtica de palavras com palavras (NIETZSCHE,1974, p. 89). O resultado desse exerccio ftil de estril semiformao o

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  • abortamento do impulso crtico, justamente o contrrio daquela tarefa daverdadeira educao para a filosofia: a frgil semente, que servia de met-fora para o processo formativo, ao invs de ganhar espao paradesabrochar, de receber luz, calor e nutrio adequada, acaba sendobarbaramente sufocada por entulhos desprovidos de esprito e interessevital. Eis o melhor caminho para o conformismo poltico, para a flexveldocilidade de corpos e mentes.

    E agora pense-se em uma cabea juvenil, sem muita experincia davida, em que cinqenta sistemas em palavras e cinqenta crticas dessessistemas so guardados juntos e misturados que aridez, que selvageria,que escrnio, quando se trata de uma educao para a filosofia! Mas, defato, todos reconhecem que no se educa para ela, mas para uma provade filosofia: cujo resultado, sabidamente e de hbito, que quem saidessa prova ai, dessa provao confessa s si mesmo com profundosuspiro: Graas a Deus que no sou filsofo, mas cristo e cidado demeu estado (NIETZSCHE, 1974, p. 89).

    , portanto, na contramo dessas duas tentaes a de permitir que asmetas fundamentais da cultura sejam determinadas por interesses alheiosa ela, sejam os do Estado, ou os do mercado; e a de confundir a formaodo filsofo com a do homem de cincia e do operrio da filosofia quea figura de Schopenhauer se erige como modelo de educador. Mais tarde,sem evocar expressamente a figura do antigo mestre, Nietzsche resumeesse seu pensamento numa frmula:

    Insisto em que finalmente cessemos de confundir os operriosfilosficos e, em geral, os homens de cincia com os filsofos, - em queprecisamente aqui seja dado com rigor a cada um o que seu equeles no demais, a estes no de menos. Pode ser necessrio, para aeducao do efetivamente filsofo, que tambm ele uma vez tenhaestado nesses nveis em que permanecem seus servidores, os operrioscientficos da filosofia, - em que eles tm que permanecer(NIETZSCHE, 1980b, p. 144s.).

    Os melhores esforos da rigorosa formao erudita ascendem, todavia, aum nvel limitado de formao filosfica: a dos trabalhadores cientficosda filosofia. O ideal do verdadeiro filsofo se coloca bem mais acima

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  • desse alvo, pois o genuno filsofo o responsvel pela resposta pergun-ta pelo valor; dele que brota a legislao para o dever ser do projetohumano na histria:

    Os autnticos filsofos, porm, so comandantes e legisladores: eles dizem:assimdeve ser!, eles primeiramente determinam o para onde?, o para que? dohomem e, ao faz-lo, dispem do trabalho prvio de todos os operriosfilosficos, de todos os subjugadores do passado, - eles estendem sua mocriadora para o futuro, e tudo aquilo que e foi converteu-se para ele emmeio, em instrumento, em martelo. Seu conhecer criar, seu criar umalegislao (NIETZSCHE, 1980b, p. 144s.).

    Para poder corresponder ao ideal do filsofo como legislador do futuro,o filsofo emprico deve satisfazer pelo menos a duas condies funda-mentais. Em primeiro lugar, ele no pode instituir valores e determinar oque deve ser portanto, no pode encarnar aquele a quem legtimo darordens , se primeiramente no tiver aprendido a conhecer sua prprialegislao, se, enfim, no tiver descoberto a lei da mecnica superior, a partirdo conhecimento do sistema de sis e planetas, que ele . Desse modo, spode comandar aquele que primeiro soube obedecer legislao de suaprpria vontade, pois, para Nietzsche,deve ser comandado aquele que incapaz de obedecer a si prprio (NIETZSCHE, 1980e, p. 147).

    Viver com uma formidvel e orgulhosa serenidade; sempre para alm.Ter e no ter, conforme sua vontade, seus afetos, seu prs e contras,condescender com eles, por horas, montarmos sobre eles, como sobrecavalos, com freqncia como sobre asnos: - preciso saber aproveitar,com efeito, tanto a estupidez deles, como seu fogo [...] E permanecersenhor de nossas quatro virtudes: a coragem, a lucidez, a simpatia e asolido (NIETZSCHE, 1980b, p. 231s.).

    Senhor da lei de sua prpria vontade, finalmente conquistada a duraspenas, o verdadeiro filsofo e educador no pode ser o legislador para ofuturo do homem se ele no for tambm o mais inflexvel inimigo daautocomplacncia de seu prprio hoje. Ou, para diz-lo num frmulaainda mais simples: por resistir quelas duas maneiras eficazes de fuga desi, de autocomprometimento pessoal com a filosofia, a saber: a autode-misso da tarefa de determinar os alvos mais elevados da cultura, relegan-

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  • do-os ao arbtrio dos negociantes culturais; e a de deixar-se confundircom os laboriosos trabalhadores cientficos especializados, que o jovemNietzsche evocava o exemplo formador de Schopenhauer. Muitos anosdepois, quando j se consumara a despedida de seu venerado mestre, cica-trizadas as feridas que o rompimento causara, aquilo que nele fora proje-tado, passa a valer para o conceito de filsofo, em geral:

    A mim quer me parecer sempre mais que o filsofo, como umnecessrio homem do amanh e depois de amanh, sempre se encontroue teve de se encontrar em contradio com seu hoje: seu inimigo foi, atoda vez, o ideal de hoje.At agora, todos esses extraordinriospromotores do homem, que so denominados filsofos e queraramente sentem a si mesmos como amigos da verdade, porm antescomo desagradveis loucos e perigosos pontos de interrogao ,encontraram sua tarefa, sua dura, involuntria, incontornvel tarefa,finalmente, porm a grandeza de sua tarefa, em ser a m conscincia deseu tempo.Ao colocar justamente no busto da virtude do tempo o bisturide vivisseco, eles delataram qual era o seu segredo: saber de uma novagrandeza do homem, um novo, no percorrido caminho para seuengrandecimento. Eles desvelaram, a cada vez, quanta hipocrisia,comodidade, deixar-se levar e deixar-se cair, quanta mentira se escondesob o tipo mais venerado de sua moralidade contempornea, quantavirtude foi sobrevivida, a cada vez, eles disseram: temos que ir para l,para fora, onde vs hoje menos vos sentis em vossa casa(NIETZSCHE, 1980b, p. 145s.).

    E aqui podemos encontrar, para nosso espanto, a oportunidade adequadapara um paralelo com o exemplo de Kant do filsofo que Nietzscheinjustamente considerava um antpoda de Schopenhauer, e a quemalcunhou o chins de Knigsberg, numa referncia a seu talento inex-cedvel para operrio da filosofia. muito curioso observar o paralelismoe a parcial coincidncia de imagens e posies.

    Para Kant, como sabemos, a filosofia, tomada em seu pleno conceito apenas um ideal para figurar a totalidade do conhecimento filosfico, asaber o sistema completo da cincia possvel. Essa totalidade completa,por no encontrar nenhum correspondente na realidade emprica, nopode, portanto, ser ensinada. isso que podemos ler no terceiro captulo

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  • da doutrina transcendental do mtodo, dedicado por Kant, na primeiraCrtica, arquitetnica da razo pura; a encontramos a seguinte definiolapidar de filosofia:

    A Filosofia , pois, o sistema de todo o conhecimento filosfico. necessrio tom-la objetivamente caso se compreenda por Filosofia oarqutipo para se julgar todas as tentativas de filosofar; este arqutipodeve servir para julgar toda a filosofia subjetiva, cujo edifcio freqentemente to diversificado e to mutvel. Deste modo, a filosofia uma simples idia de uma cincia possvel que no dada em partealguma; seguindo diversos caminhos, procuramos avizinhar-nos destaidia at descobrirmos a nica senda, bastante obstruda pelasensibilidade, e conseguirmos igualar ao arqutipo, tanto quanto sejadado a seres humanos, a cpia at ento defeituosa (KANT, 1980, p.407; B 866; traduo ligeiramente modificada).

    No encontramos realizada, na experincia, essa idia de um sistemacompleto dos conhecimentos filosficos.Tudo que podemos fazer nosaproximar dela, percorrendo o caminho proposto pelo programa crticokantiano e nos esforando para completar, at onde isso possvel para osesforos humanos, uma arquitetnica geral da razo humana: essa anica senda, bastante obstruda pela sensibilidade, de que tratava o textoacima citado. Justamente porque o sistema dessa cincia constitui umarealidade apenas ideal, no podemos ensinar nem aprender filosofia.Tudo oque podemos fazer aprender a filosofar, a partir de um exerccio realizadocom as tentativas histricas de filosofar, ou seja, com a histria da filosofia.

    At ento, no se pode aprender qualquer filosofia; pois onde esta seencontra, quem a possui e segundo quais caractersticas se podereconhec-la? S possvel aprender a filosofar, ou seja, exercitar otalento da razo, fazendo-o seguir os seus princpios universais emcertas tentativas existentes, mas sempre reservando razo o direito deinvestigar aqueles princpios at mesmo em suas fontes, confirmando-os ou rejeitando-os (KANT, 1980, p. 407s; B 866).

    Mas, alm desse conceito escolar, ou escolstico, de filosofia comounidade sistemtica e perfeio lgica do conjunto do conhecimentopossvel, existe, para Kant,

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  • um conceito csmico (conceptus cosmicus), que sempre foi tomadocomo o fundamento do termo filosofia, principalmente quando porassim dizer se o personificou e se o representou como um arqutipoideal do filsofo. Neste sentido, a Filosofia a cincia da referncia detodo o conhecimento aos fins essenciais da razo humana (teleologiarationis humanae), e o filsofo no um artista da razo, mas sim olegislador da razo humana. (KANT, 1980, p. 408; B 866-867).

    E aqui podemos fazer comungar os esforos de Kant e de Nietzsche paraexorcizar os dois grandes perigos que rondam a formao do filsofo: operigo da submisso a fins alheios e o perigo da especializao esteri-lizante. Pois, de acordo com o kantiano conceito csmico de filosofia, estasignifica a referncia de todo o conhecimento aos fins essenciais da razohumana, fins esses que so de natureza tica e dos quais o filsofo (eningum mais) constitui o legtimo gestor. Logo, toda e qualquer esferada cultura superior deve estar referida, segundo esse conceito, aos finsessenciais da razo, aos quais deve se submeter. Portanto, no se podeprescrever de fora fins alheios e heternomos para a verdadeira filosofia.

    Representando um modelo pessoal do arqutipo da filosofia, o filso-fo , tambm para Kant, legislador. Ele no , portanto, artista (nalinguagem de Kant), ou operrio cientfico (no lxico de Nietzsche), maslegislador da razo humana:

    O matemtico, o estudioso da natureza e o lgico, por mais notvelque seja o progresso dos primeiros no conhecimento racional e o dossegundos, particularmente no conhecimento filosfico, no passam deartistas da razo. No ideal ainda existe um mestre que a todos impe asua tarefa e os utiliza como instrumentos para promover os finsessenciais da razo humana. somente a este que devemos denominarfilsofo (KANT, 1980, p. 408; B 867).

    Permanecendo no plano ideal, temos que reconhecer que, de um pontode vista sistemtico, completo e perfeito, os fins essenciais da razo nopodem ser ainda os fins supremos; pois s pode haver um nico fimsupremo, quando se atinge ou representa uma perfeita unidade sistemti-ca da razo.Conseqentemente, os fins essenciais so ou o fim ltimo oufins subalternos que como meios pertencem necessariamente quele. O

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  • fim ltimo no outro seno a inteira destinao do homem, e a filosofiaa respeito dessa ltima chama-se Moral (KANT, 1980, p. 408; B 868).

    Filosofia adquire, nessa acepo, o sentido de legislao da razo humana,e o filsofo , portanto, aquele que pode ser denominado, em sentidopleno, o legislador e gestor do fim supremo da razo: aquele que deveassumir a responsabilidade pela destinao do homem como ser moral.Portanto, constitui assomo de arrogncia sequer pretender estar alturade to sublime misso.Neste significado, seria assaz vanglorioso chamar-se a si mesmo de filsofo e arrogar-se uma identidade com o arqutipoexistente unicamente na idia.

    Eis porque a dignidade filosfica s pode ser conferida, na realidadeemprica, por analogia; sendo assim, a mera aparncia externa de umautodomnio [adquirido] mediante a razo faz com que ainda hoje,segundo uma certa analogia, denominemos algum de filsofo, por maislimitado que possa ser o seu saber (KANT, 1980, p. 408; B 868). Se afilosofia a legislao que institui o fim supremo da razo humana, entoo filsofo , essencialmente, educador. Pois, de acordo com a pedagogiafilosfica de Kant, educar significa o esforo solidrio de geraeshumanas, pelo qual o indivduo elevado ao nvel do desenvolvimentocoletivo do gnero humano, de modo a poder integrar, como membropleno, a sociedade cosmopolita dos seres racionais, com pleno acesso edisposio sobre o patrimnio cultural da espcie humana.

    No plano mais amplo do gnero humano, educar significa desenvolvercada vez mais as disposies naturais para a Humanidade, um processoindefinidamente em aberto, conduzindo o homem progressivamente paraum ideal de perfeio que corresponda idia de humanidade. Educar,portanto, uma tarefa eminentemente tica, que no se confunde com oadestramento para obter sucesso no presente, mas formar e elevar ohomem ao nvel de plenitude figurado nesse ideal. A esse processo indefinidamente aberto sobre o futuro corresponde o conceito tipica-mente kantiano de educao, formulado, entre outros lugares, em seusescritos pedaggicos.

    Estou plenamente ciente das diferenas incontornveis entre osmodelos tericos de Kant e de Nietzsche, tanto aquelas que dizemrespeito s inspiraes fundamentais, quando as de contedo e de forma.Todavia, ao aproxim-los, meu propsito foi refletir sobre aos perigos que

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  • ainda nos assediam hoje, e que o ideal de educao para a filosofia, poreles esboado, talvez nos ajude a conjurar.

    Refiro-me, primeiramente, ao risco envolvido na especializaoextrema e atomizante, a que pode conduzir uma erudio meramentehistrico-filolgica, desacompanhada de motivao e interesse vital; umrisco, alis, firmemente fomentado pela racionalizao utilitarista e pelamoderna diviso mercantil da produo intelectual. Refiro-me, em asso-ciao com isso, ao perigo de submeter o ideal de formao a injunese interesses que lhe so estranhos e que podem conduzir ao barateamen-to irreversvel do talento filosfico. por isso que devemos estar atentosao que nos apregoam como flexibilizao, adaptao s necessidadesregionais ou mercadolgica.

    Refiro-me tambm urgncia e necessidade de fazer com que oestudo rigoroso e especializado da histria filosofia no se esgote naminuciosa ourivesaria conceitual das opinies alheias, que se obstina eminibir a coragem e o impulso para as opinies prprias. Refiro-me, porfim, a essa perigosa autodemisso da filosofia de sua condio de gestorado fim supremo da razo.

    Num tempo em que se encontra gravemente ameaada a base somti-ca da personalidade moral, numa poca em que se anuncia com todorumor do sensacionalismo miditico a reduplicao tecnolgica deseres humanos e a produo mercantil desse material de acordo com asdemandas do mercado, seria indispensvel retornarmos aos antigosarquivos onde ficaram conservadas as inspiraes ideais de nosso esforode formao para a filosofia.

    1 Mas como nos encontramos novamente a ns mesmos? Como o homem pode conhecera si mesmo? Ele uma coisa escura encoberta; e se o coelho tem sete peles, ento o homempode extra-las sete vezes setenta vezes, e todavia no poder dizer:agora s tu efetivamente,isso no mais casca.Alm disso, um penoso, perigoso comeo escavar de tal modo em siprprio, e precipitar-se violentamente, pelo caminho mais prximo, no tesouro de sua essn-cia. Quo facilmente lesa-se ele com isso, de tal modo que nenhum mdico pode cur-lo. E,alm disso, para que isso seria necessrio, se, com efeito, tudo presta testemunho de nossaessncia, nossas amizades e inimizades, nosso olhar e nosso aperto de mo, nossa memria eaquilo que esquecemos, nossos livros e os traos de nosso punho. Porm, para prestar ouvidosao mais importante, h o seguinte meio. Que a jovem alma lance seu olhar retrospectivamente

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  • sobre a vida, com a pergunta: o que, at agora, verdadeiramente amaste, o que atraiu a tuaalma, o que a dominou e, ao mesmo tempo, a felicitou? Coloca diante de ti a srie dessesvenerados objetos, e talvez, por sua essncia e sucesso, eles te proporcionem uma lei, a leifundamental do teu autntico si prprio. Compara esses objetos, v como um complementa,alarga, sobrepuja, transfigura o outro, como eles formam uma escada, sobre a qual at agora teelevaste para ti mesmo; pois a tua verdadeira essncia no jaz profundamente oculta em ti, masimensamente acima de ti, ou ao menos sobre aquilo que habitualmente tomas como o teu eu.Teus verdadeiros educadores e formadores te revelam o que o verdadeiro sentido originrio(Ursinn) e a matria fundamental (Grundstoff) de tua essncia, algo inteiramente imperme-vel ao ensino e figurao, mas em todo caso dificilmente acessvel, preso, entravado: teuseducadores conseguem no ser seno os teus libertadores. E este o segredo de todaformao: ela no proporciona prteses artificiais, narizes de cera, olhos lentificados pelocontrrio, apenas imitao de educao aquilo que conseguiria dar tais prendas. Esta, porm, libertao, remoo de toda erva daninha, entulho, vermes que querem atingir a delicadasemente da planta, jorro de luz e calor, amoroso murmrio de chuva noturna; ela imitaoe adorao da natureza, onde esta maternal e misericordiosamente disposta; aperfeioa-mento da natureza, quando previne e volta para o bem os cruis e impiedosos ataques danatureza, quando estende um vu sobre as manifestaes de sua disposio madrasta e de suatriste incompreenso. (NIETZSCHE, 1980a, p. 340s.).

    Referncias bibliogrficasKANT, I. 1980. Crtica da Razo Pura.Traduo:Valrio Rohden e UdoBaldur Moosburger. Coleo Os Pensadores, So Paulo:Abril Cultural.

    NIETZSCHE, F. 1980a. Terceira Considerao Extempornea. Schopenhauercomo Educador. In: Smtliche Werke (Kritische Studienausgabe, abreviadacomo KSA). Ed. G. Colli e M. Montinari. Berlin, New York, Mnchen:de Gruyter, DTV. 1980, vol. 1. No havendo indicao em contrrio, astradues so de minha autoria.

    NIETZSCHE, F. 1980b. Para Alm de Bem e Mal. In: KSA, op. cit.Vol. 5.

    NIETZSCHE, F. 1980c. Da Vantagem e Desvantagem da Histria para aVida. In: KSA, op. cit.Vol. 1.

    NIETZSCHE, F. 1974. Obras Incompletas.Traduo: Rubens RodriguesTorres Filho. Coleo Os Pensadores, 1 ed. So Paulo:Abril Cultural.

    NIETZSCHE, F. 1980d. Assim Falou Zaratustra, II. Da Superao de Si.In: KSA, op. cit.Vol. 4.

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  • SCHOPENHAUER,A. 1986. Die Welt als Wille und Vorstellung (OMundo como Vontade e Representao). in: Smtliche Werke. Ed.WolfgangFrhr. von Lhneysen. Frankfurt/M: Suhrkamp, vol. 1.

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