Sobre o Pensamento e a Linguagem

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    Sobre o Pensamento e a Linguagem Fabio Candido dos Santos

    Mestrando em Filosofia do PPGF-UFRJ/Bolsista CAPES

    Em carta endereada Drew University (EUA) por ocasio de um colquio teolgico intitulado O Problema de um Pensamento e de uma Linguagem No-Objetivantes na Teologia Atual,1 Heidegger procura tecer consideraes sobre a questo-ttulo do evento menos a partir da perspectiva aberta pelo colquio a teologia e mais sobre o suposto problema da objetivao da linguagem e do pensamento em geral. Esta tarefa inclui, no entanto, uma outra mais elevada e, por isso, mais difcil: a de saber o que so originariamente linguagem e pensamento. Tal itinerrio, contudo, no representa uma tentativa de fuga ou mesmo de desvio daquilo que requisitava o colquio. Ao contrrio. Investigar o que sejam linguagem e pensamento tambm buscar saber quais so as possibilidades e limites de ambos os fenmenos. E apenas esclarecendo-os que se poder descobrir no s a possibilidade de uma linguagem e de um pensamento no-objetivantes na teologia, mas em todo e qualquer horizonte de compreenso humana. Tendo em vista a gravidade e importncia desta tarefa, o objetivo deste trabalho apenas o de acompanhar o pensamento de Heidegger na elucidao do que sejam originariamente linguagem e pensamento e, com isso, responder indagao que promoveu o colquio. Falar de pensamento e linguagem , contudo, discorrer sobre o mais estranho dos entes: o homem, aquele que fala e pensa. Afinal, e segundo a tradio, o homem um vivente dotado de lgos. No tpico d de sua carta Ser todo pensar um falar e todo falar um 1 A carta datada de 11/03/1964. O colquio, por sua vez, foi realizado entre 9 e 11 de abril do mesmo ano.

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    pensar? Heidegger afirma que ... somos levados suposio de que h esta copertinncia (identidade) de pensar e dizer. (...) na medida em que o lgos e o legein significam simultaneamente falar e pensar.2 Sendo assim, e para compreender o que sejam originariamente linguagem e pensamento, preciso discutir a natureza do que seja lgos. Ento, o que vem a ser lgos? Em Introduo Metafsica, vemos Heidegger afirmar que lgos a reunio constante, a unidade de reunio, consistente em si mesma do ente, isto , o Ser.3 Em outra obra, desta vez a fundamental Ser e Tempo, o filsofo diz que o ser do lgos se determina por retirar de seu velamento o ente sobre que se discorre no legein como apophainesthai e deixar e fazer ver o ente como algo desvelado (aleths), em suma, descobrir.4 A re-unio qual alude a passagem de Introduo Metafsica e a des-coberta, mencionada no trecho supracitado de Ser e Tempo, dizem rigorosamente a mesma coisa. Afinal, descobrir algo nada mais do que integrar, reunir, determinar (este algo) na unidade de um sentido. E este sentido o prprio lgos. Dessa forma, dizer, com a tradio, que o homem um vivente dotado de lgos no outra coisa seno afirmar que tarefa deste ente a determinao daqueles outros (entes) que o cercam. Apesar da mera aparncia, tal determinao no , contudo, subjetivista, uma vez que no depende originariamente do arbtrio do homem para se efetivar. Ao contrrio. preciso que este ente esteja, antes, disposto a 2 HEIDEGGER, M. Algumas Consideraes em Relao a Pontos de Vista Capitais para o Colquio Teolgico sobre O Problema de um Pensamento e de uma Linguagem No-Objetivantes na Teologia Atual. In: Phaenomenologie und Theologie, Vittorio Klosterman, Frankfurt: 1970. Traduo de Gilvan Luiz Fogel. p. 7. 3 HEIDEGGER, M. Introduo Metafsica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. p. 155. 4 HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrpolis: Vozes, 2002. 7 B, p. 63.

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    escutar o que se anuncia no lgos para que possa, a partir deste, determinar algo. Na verdade, no basta defender que o homem seja dotado de lgos para abrir-lhe a primazia no todo do ente. preciso que ele mesmo trabalhe para obter tal privilgio. Isso significa dizer que, apesar de j sempre estar e ser no lgos, nem sempre o homem e est prximo dele. Para tanto, preciso se afastar. Este afastamento , estranhamente, um aproximar-se. O homem , na verdade, o ente que para se aproximar precisa necessariamente se distanciar. Afinal, o afastamento-aproximador o lugar prprio do homem. Talvez seja justamente por esta caracterstica humana que Herclito veja na morada do homem, o extraordinrio.5 Todo o trabalho humano aqui , na verdade, um pr-se ausculta do lgos, exatamente como j recomendava o pensador de feso. somente na ausculta, na obedincia ao lgos que o ente pode mostrar-se legitimamente. Esse mostrar-se (ou aparecer) dos entes o que acima se entendia por determinao. As coisas s se determinam, isto , s se presentificam ao homem se este estiver previamente escuta de um lgos. Com isso se explica porque o aparecer dos entes no depende da vontade ou do arbtrio do homem. O ente s pode aparecer, ou seja, s pode ser se o homem se curvar escuta de suas possibilidades. Sem isso o ente no determinado, mas atropelado em seu ser pelo mero querer de um sujeito que representa objetos. No isso, no entanto, o mais originrio do homem. Talvez seja por conta deste carter humano que Herclito defenda a tese de que no sabendo auscultar, no sabem falar.6 Este saber, contudo, aquele mesmo ao 5 ANAXIMANDRO; PARMNIDES; HERCLITO. Pensadores Originrios. Petrpolis: Vozes, 1999. Fragmento 119. Traduo de Emanuel Carneiro Leo. 6 Ibid. Fragmento 19.

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    qual aludia Aristteles em sua Metafsica quando afirmava que sbio o que conhece os primeiros princpios e as causas7. A fala o dizer a que se refere Herclito o dizer originrio que mostra o que o ente verdadeiramente em seu ser. Tal dizer, contudo, no para todo mundo, mas somente para os fortes.8 Em outras palavras, pode-se afirmar que ele guardado quele que, por ter estado escuta, adquiriu o direito de se pronunciar. Segundo Heidegger, o dizer e ouvir s so justos quando se orientam, previamente, e em si mesmos, pelo Ser, o lgos. Somente onde este se manifesta a voz chega a ser palavra.9 Pronunciar e falar so possibilidades de um dos fenmenos que se procura determinar aqui: a linguagem. Mas o que permite a fala e a pronunciao seno a originria co-pertinncia entre o escutar e o dizer suscitada pelo lgos? No foi toa que este texto tomou como fundamento da investigao acerca da linguagem o fato de o homem ser o ente dotado de lgos. Isso porque as coisas s se mostram, aparecem, a partir de um lgos que se manifesta ao mesmo tempo em que se vela no dizer do homem. Mas e o pensar? No ele tambm lgos? Sem dvida. Mas o lgos, enquanto pensamento, no pode ser entendido ou mesmo rotulado por razo, como defendeu toda a tradio moderna e parte da medieval. Razo, ao contrrio, apenas uma possibilidade de pensar e no o pensar em si mesmo. Lgos s secundariamente (e sobretudo impropriamente) poderia ser entendido como atividade de um sujeito que representa objetos. Pensar , antes, e nas palavras de Heidegger: o ater-se (verhalten), que deixa se dar o que cabe dizer do que aparece medida

    7 Metafsica, 2. 8 HEIDEGGER, M. Introduo Metafsica. p. 158. 9 Ibid. p. 157.

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    que aparece e tal como aparece.10 O pensar, assim, tambm se determina como uma escuta ou uma disposio voltada para o que possibilita o prprio aparecer das coisas, isto , o Ser. Segundo Herclito e em consonncia com o que diz Heidegger , o pensar rene tudo.11 Alis, bem antes do filsofo alemo, e prximo do efsio, completando, assim, a aurora do pensamento ocidental, vemos Parmnides afirmar que o mesmo pensar e ser.12 Mas, afinal, que mistrio liga o pensar, o ser e o lgos? Ser o aparecer, o mostrar-se, o presentificar-se que rene, determina aquilo que . Dito de outra maneira: ser estrutura de horizontes, sentidos, perspectivas que permitem que as coisas sejam aquilo mesmo que so. Pensar , por sua vez, o trabalho de ver o ver, isto , de buscar a evidncia desta estruturao de realidade. tambm o meditar solitrio, ou seja, o entrar no sentido, na perspectiva que possibilita que algo seja como . J o lgos o prprio sentido, o horizonte em que as coisas se tornam presentes. a prpria possibilidade de as coisas serem o que so. A partir desta sumria conceituao do que sejam os trs fenmenos, pode-se dizer, com Heidegger, que Ser o mesmo que lgos na medida em que este, exatamente como aquele, perfaz a estruturao de realidade. O que s pode se mostrar, aparecer, presentificar-se por meio de uma perspectiva, um horizonte, um sentido, um lgos, que perfazem aquilo que prprio do Ser. O pensar, por outro lado, exatamente a evidenciao, a apario desta estrutura em seu todo ou

    10 HEIDEGGER, M. Algumas Consideraes em Relao a Pontos de Vista Capitais para o Colquio Teolgico sobre O Problema de um Pensamento e de uma Linguagem No-Objetivantes na Teologia Atual. p. 6. 11 ANAXIMANDRO; PARMNIDES; HERCLITO. Pensadores Originrios. Fragmento 113. 12 Ibid. Fragmento 3.

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    mesmo em parte. O pensamento ora mostra a condio de possibilidade das coisas em geral ora abre o sentido em que e porque algo aparece. De qualquer forma, pensar tambm mostrar, aparecer ou presentificar, caractersticas compartilhadas pelo Ser e tambm pelo lgos. Com esta discusso acerca da linguagem e do pensamento, pode-se afirmar, ento, que em ambos os fenmenos estruturais (do ser) do homem o lgos que se essencializa. Tal essencializar a apario daquilo que permite o prprio presentificar o Ser. Na linguagem, ele mesmo que vem palavra; no pensamento, tambm ele que possibilita a viso da apario do ente ao homem. Dessa forma, seja na linguagem, seja no pensamento, ambos fundados e mantidos no lgos, o Ser que se essencializa em seu lugar prprio de manifestao e realizao: o homem. Agora j possvel, aps esta breve investigao acerca do que sejam originariamente pensamento e linguagem, discutir o problema principal aberto pelo colquio teolgico: saber se os dois fenmenos so essencialmente objetivantes. A resposta a esta indagao elucida de uma vez a questo acerca da possibilidade de uma linguagem no-objetivante na teologia. Antes, no entanto, ainda preciso determinar o que seja prprio do objetivar. De acordo com Heidegger, objetivar quer dizer: fazer ou tornar algo objeto, coloc-lo como objeto e somente assim represent-lo (vorstellen).13 Mas o que exatamente significa objeto? Na modernidade poca que coloca a pergunta pelo carter objetivante da linguagem e do pensamento objeto aquilo que se encontra contraposto a e representado por um sujeito. Este

    13 HEIDEGGER, M. Algumas Consideraes em Relao a Pontos de Vista Capitais para o Colquio Teolgico sobre O Problema de um Pensamento e de uma Linguagem No-Objetivantes na Teologia Atual. p. 5.

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    sujeito ou subjetividade transcendental o suposto plo constituidor do real. ele, segundo toda a tradio moderna, quem ditaria o ser dos entes. Assim, todo e qualquer ente, a partir do pensamento moderno, no passaria de objeto para um sujeito. Nesta estruturao de realidade, pensamento e linguagem tambm se tornam essencialmente objetivantes. O pensar, como j aludido anteriormente, se torna representar, ao passo que a linguagem entendida como mera expresso do pensamento. Vimos, contudo, que, originariamente, pensar e dizer, mostram, revelam, tornam visvel o ente em seu ser. Tal estrutura no diz objetivar. Em sua carta, Heidegger nos apresenta um bom exemplo da diferena entre o mostrar e o objetivar:

    Na verdade, posso considerar a esttua de Apolo no museu de Olmpia como um objeto de representao cientfico-natural; posso avaliar (calcular) o mrmore fisicamente quanto a seu peso; posso investigar este mrmore segundo suas propriedades qumicas. Mas este pensar e falar objetivantes no v o Apolo tal como ele se mostra em sua beleza e como, nesta beleza, ele brilha como o olhar do deus.14

    O texto evidencia no s a diferena entre objetivar e mostrar, mas, ao mesmo tempo, tambm reala a primazia ontolgica deste sobre aquele. O exemplo utilizado no desinteressadamente o da arte, lugar por excelncia do aparecer. na arte que exemplarmente toda e qualquer tentativa de objetivao cai por terra. Por esta razo Heidegger ainda afirma que

    fosse todo o pensamento enquanto tal objetivante, e ento o configurar (gestalten) das obras de arte permaneceria sem sentido, pois elas jamais poderiam se mostrar a homem nenhum, porque o homem, ento, concomitantemente, faria disso que

    14 Ibid. p. 6.

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    aparece um objeto e assim ficaria vedado o aparecer obra de arte.15

    Na passagem supracitada se torna evidente a

    existncia de um pensar e de um dizer que no so essencialmente objetivantes. Um pensar e um dizer que escapam a toda e qualquer tentativa de apreenso cientfico-natural. At porque este, contudo, s possvel a partir daquele. A propsito, toda objetivao j foi, um dia, um mostrar originrio que se cristalizou, transformado em coisa (objeto). Dizer que a linguagem e o pensamento so objetivantes ver apenas a coisa, mas no a fora promotora de realizao deste objeto. Tal tendncia no passa de uma mera tentativa de obscurecer ou mesmo ocultar a dinmica de ser/ aparecer que preside o real, como visto acima. Por trs disso esconde-se o projeto moderno-cientificista de certeza e segurana, onde todo o real reduzido tranqilidade da coisa, do objeto. preciso, contudo, lembrar que coisa nenhuma coisa alguma16 ou, como diz Nietzsche: no existe nenhuma coisa.17 Toda coisa , na verdade, sentido, perspectiva, lgos. Esclarece-se, aps esta investigao, o fato de linguagem e pensamento no serem originariamente objetivantes. Ao contrrio. A essncia de todo dizer e pensar lgos, ou seja, mostrar, aparecer, presentificar. Apenas quando estes se petrificam que se d a objetivao. Assim, linguagem e pensamento objetivantes dizem respeito apenas a uma perspectiva (de-cada) na qual tudo tido como objeto. Esta maneira de pensar, como j discutido acima, o

    15 Ibid. 16 FOGEL, G. Conhecer Criar. Um ensaio a partir de F. Nietzsche. So Paulo: Discurso Editorial; Iju: UNIJU, 2003. 17 NIETZSCHE, F. Humano, Demasiado Humano. So Paulo: Companhia das Letras, 2002. Aforismo 19.

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    da modernidade, onde impera no apenas a cincia, mas principalmente o cientificismo.

    Com essa concluso que fala no apenas de linguagem e pensamento, mas, sobretudo, de real e realidade, torna-se mais fcil examinar o suposto problema de um pensamento e de uma linguagem no objetivantes na teologia atual. Ora, se objetivante diz o mesmo que cientfico, como visto acima, torna-se um absurdo, como diz Heidegger, entender a questo como um verdadeiro problema. Afinal, desde quando a f crist, em seu elemento prprio Deus pode tom-lo como objeto? S tendo este ente como coisa que se pode falar em linguagem objetivante na teologia. Assim, o que a teologia deve mesmo fazer buscar em sua prpria perspectiva e no em outra (filosofia ou cincia) o que ela tem que pensar e como.