Sobre o Trote

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SOBRE O TROTE 1   A sociedade baiana reage com indignação ao trote com que alguns estudantes da Faculdade de Medicina agrediram calouros e danificaram patrimônio público da Universidade Federal da Bahia. No Espaço do Leitor de um jornal local (A Tarde, 18/1/2004), o pai de um estudante da UFBA comenta que os colegas de seu filho, “de maioria pobre e negra (...) são mais civilizados do que os vestidos de branco da Medicina”. Refere-se ao trote como “coisa ultrapassada, cafona, violenta, insensata e brutal” e propõe a expulsão dos seus autores, “cuja maioria é de classe média alta”. Por um lado, mesmo compreendendo as razões do leitor e concordando com suas opiniões sobre a natureza bárbara do trote, não posso aceitar as generalizações. A maioria dos acadêmicos de Medicina é bem-educada e também repudia atos de  vandalismo, arrogância e agressão. Porém, por outro lado, creio que o ilustre leitor está certo em dois pontos: (a) o trote na universidade é uma manifestação grosseira, primitiva e ultrapassada, a ser  vigorosamente reprimida; (b) o trote violento ainda resiste por causa da iniqüidade social presente em certos segmentos e funções da instituição universitária.  A iniciação universitária era uma tradição medieval. Nasceu quando as universidades eram poucas e reservadas à elite nobre, que se considerava uma casta superior com ascendência divina. O domínio do saber resultava essencial para a estrutura política feudal e os métodos da época eram bárbaros e cruentos. O trote compreendia rituais de humilhação e submissão impostos aos candidatos a alumni . Havia também provas de sofrimento e coragem, muitas vezes custando vidas humanas. Com a modernidade, impôs-se um novo modelo de universidade baseado nas demandas do modo de produção industrial. As castas e cátedras feudais, vitalícias, hereditárias e oligárquicas, cederam lugar a corporações e academias. No século passado, um novo modelo de universidade foi implementado no mundo desenvolvido, com base na competência técnica, na democratização do acesso e no atendimento a demandas sociais. Nos ambientes universitários modernos, a iniciação universitária encontra-se restrita a rituais docentes e de graduação. Somente nos campi norte-americanos permanece uma tradição iniciática nas fraternidades estudantis, de caráter totalmente consentido e privado. O trote persiste em poucas universidades brasileiras, em cursos como Agronomia,  Veterinária, Engenharias e, principalmente, Medicina. Nesses casos, mantém uma face empobrecida e anacrônica dos rituais medievais que parece ter sido parte da herança franco-lusitan a do nosso sistema de ensino superior. Não esqueçamos que o termo ‘trote’ 1 - Artigo publicado em A Tarde, 27/01/2004, p. 2. Republicado após revisão em ALMEIDA FILHO, N. Universidade Nova: Textos Críticos e Esperançosos . Brasília/Salvador: Editora UnB/Edufba, 2007, p.141-144.  

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SOBRE O TROTE1 

  A sociedade baiana reage com indignação ao trote com que alguns estudantes daFaculdade de Medicina agrediram calouros e danificaram patrimônio público daUniversidade Federal da Bahia.

No Espaço do Leitor de um jornal local (A Tarde, 18/1/2004), o pai de um estudante daUFBA comenta que os colegas de seu filho, “de maioria pobre e negra (...) são maiscivilizados do que os vestidos de branco da Medicina”. Refere-se ao trote como “coisaultrapassada, cafona, violenta, insensata e brutal” e propõe a expulsão dos seus autores,“cuja maioria é de classe média alta”.

Por um lado, mesmo compreendendo as razões do leitor e concordando com suasopiniões sobre a natureza bárbara do trote, não posso aceitar as generalizações. Amaioria dos acadêmicos de Medicina é bem-educada e também repudia atos de

 vandalismo, arrogância e agressão. Porém, por outro lado, creio que o ilustre leitor estácerto em dois pontos:

(a) o trote na universidade é uma manifestação grosseira, primitiva e ultrapassada, a ser vigorosamente reprimida;

(b) o trote violento ainda resiste por causa da iniqüidade social presente em certos

segmentos e funções da instituição universitária.  A iniciação universitária era uma tradição medieval. Nasceu quando as universidadeseram poucas e reservadas à elite nobre, que se considerava uma casta superior comascendência divina. O domínio do saber resultava essencial para a estrutura políticafeudal e os métodos da época eram bárbaros e cruentos. O trote compreendia rituais dehumilhação e submissão impostos aos candidatos a alumni . Havia também provas desofrimento e coragem, muitas vezes custando vidas humanas.

Com a modernidade, impôs-se um novo modelo de universidade baseado nas demandasdo modo de produção industrial. As castas e cátedras feudais, vitalícias, hereditárias eoligárquicas, cederam lugar a corporações e academias. No século passado, um novo

modelo de universidade foi implementado no mundo desenvolvido, com base nacompetência técnica, na democratização do acesso e no atendimento a demandas sociais.

Nos ambientes universitários modernos, a iniciação universitária encontra-se restrita arituais docentes e de graduação. Somente nos campi  norte-americanos permanece umatradição iniciática nas fraternidades estudantis, de caráter totalmente consentido eprivado.

O trote persiste em poucas universidades brasileiras, em cursos como Agronomia, Veterinária, Engenharias e, principalmente, Medicina. Nesses casos, mantém uma faceempobrecida e anacrônica dos rituais medievais que parece ter sido parte da herançafranco-lusitana do nosso sistema de ensino superior. Não esqueçamos que o termo ‘trote’

1 - Artigo publicado em A Tarde, 27/01/2004, p. 2. Republicado após revisão em ALMEIDA FILHO, N.Universidade Nova: Textos Críticos e Esperançosos . Brasília/Salvador: Editora UnB/Edufba, 2007, p.141-144. 

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designa justamente o ato, antes comum em universidades ibéricas, de se montar noscalouros e forçá-los a correr como bestas.

 A essência do trote, na sua caricatura atual, é a humilhação de postulantes a ingresso emuma suposta casta intelectual. A submissão se dá mediante coação sob ameaça de

 violência e exclusão que, muitas vezes, produz vítimas. Na USP, em 1997, um estudantede Medicina morreu afogado. Na UFBA, em 1998, um aluno de Agronomia sofreutraumatismo craniano durante um trote e os seus agressores foram severamente punidos.

 Ano passado, alunos de Medicina Veterinária, Engenharia e Medicina foram agredidos.Este ano, registramos apenas o episódio envolvendo estudantes de Medicina.

Há um forte elemento simbólico nos atos de um trote, que pretendem significar a violenta imposição do domínio de uma casta sobre aqueles que postulam dela fazer parte.  Vejamos como exemplo, a extorsão de dinheiro dos calouros ostensivamente paracusteio das farras dos veteranos. Mesmo sendo roubo mediante seqüestro ou ameaça àintegridade física, crime tipificado no Código Penal, constrói-se uma cumplicidade daprópria vítima, com base no seu suposto desejo de inclusão na casta superior. É este esprit 

de corps que protege os agressores e alimenta a ameaça de exclusão dos que reagem aoritual. A farra dos “veteranos” (notem o léxico fascista-militar) se faz provocativamenteàs vistas dos calouros humilhados – em um bar no Vale do Canela, no caso da Faculdadede Medicina – com base na certeza de impunidade.

 A persistência do trote explica-se por uma certeza de impunidade que se baseia em trêspontos: no poder da classe social de origem do delinqüente, na cumplicidade da vítima ena suposição da leniência da instituição. Para superar esta pseudo-tradição, precisamosatuar em três planos: político, simbólico e jurídico.

No plano político, o banimento do trote é sem dúvida uma meta importante. Precisamosavançar para reduzir o poder das classes sociais que dominam nossa sociedade, tornando-

a menos opressiva e iníqua, em todas as esferas, inclusive no âmbito micro-social dasuniversidades.

No plano simbólico, mesmo os mais “tradicionalistas” concordam que nem todas astradições devam ser preservadas ou recriadas. Ninguém hoje proporia resgatar a tradiçãomedieval do ordálio como modalidade de julgamento, do cinto de castidade comogarantia de matrimônio e dos castrati como forma de expressão artística.

No plano jurídico, cumpre uma vigorosa ação no sentido de enquadrar e punir osresponsáveis pelas transgressões, reafirmando a natureza civilizatória da instituiçãouniversitária. Não há porque cultivar uma tradição “violenta, insensata e brutal” quepode ferir pessoas e danificar o patrimônio público.