Sobre Piriguetes e Feminismo

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Bate-Papo com a jornalista Gianni Paula Continente Multicultural Outubro de 2012 O que explica o fato de um país que é reconhecido pelo culto à bunda, com mulheres seminuas aparecendo regularmente na tv e nudez mais evidente em capas de revistas pornográficas possuir outra face tão moralista e inábil em lidar com a naturalidade do corpo? Isto é um paradoxo ou há certa coerência? Por quê? Para pensarmos sobre as atitudes diferentes e, algumas vezes, contraditórias em relação ao corpo, devemos lembrar que a cultura inscreve-se no corpo a fim de modelá-lo e socializá-lo com base em suas regras e suas normas. As atitudes corporais que homens e mulheres adotam numa dada sociedade, ainda que possam parecer espontâneas, são construções sociais. Os sentidos conferidos ao corpo variam historicamente e são constituídos por múltiplas formas de poder. No caso do Brasil, trazem as marcas de uma colonização católica, carregada de interditos ao uso do corpo e, ao mesmo tempo, do desejo de dominação dos corpos de índios/as e negros/as, para o trabalho e para o sexo. Em relação aos demais países ocidentais, você acredita que no Brasil a questão do corpo feminino é mais mal-resolvida que a média? Penso, por exemplo, na prática de topless que já bem difundida na Europa, mas ainda controversa por aqui. Acho que devemos fazer um recorte de classe social ao abordarmos esta temática. As mulheres das camadas populares, normalmente, lidam melhor com o corpo. São mulheres que mostram mais o corpo, com menos pudores e menos permeáveis aos discursos de controle. De toda forma, gostaria de enfatizar que a “questão do corpo”, a meu ver, não deve se restringir a exibição maior ou menor do corpo. Há muitos outros índices sociais e culturais a serem levados em conta. A figura da piriguete tem sido bem discutida, pois alguns a entendem como uma mulher subjugada à cultura machista e outros entendem-na como alguém liberada sexualmente. Como você percebe esta ambiguidade? A ambigüidade da figura da “piriguete” reside na sua potência desestabilizadora dos valores morais comumente atribuídos ao feminino. Ela desafia as classificações e incomoda homens e mulheres. As chamadas piriguetes não escondem seu gosto pelo sexo, mesmo que casual, sabem que seus corpos inspiram desejo e o usam deliberadamente como armas de conquista. É difícil para homens e mulheres inseridos numa sociedade ainda conservadora admitirem esse perfil. Não é à toa que o termo piriguete tenha surgido para se referir às mulheres consideradas “perigosas.” Provavelmente, muitas moças escolhem ser “piriguetes.” Reside aí a questão: a liberdade de cada pessoa em poder escolher a maneira de viver seu corpo e seus desejos. O que é fundamental neste debate é não perdermos de vista os perigos que os rótulos comportam e as limitações identitárias que constroem.

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Page 1: Sobre  Piriguetes e Feminismo

Bate-Papo com a jornalista Gianni Paula – Continente Multicultural

Outubro de 2012

O que explica o fato de um país que é reconhecido pelo culto à bunda, com mulheres

seminuas aparecendo regularmente na tv e nudez mais evidente em capas de revistas

pornográficas possuir outra face tão moralista e inábil em lidar com a naturalidade do

corpo? Isto é um paradoxo ou há certa coerência? Por quê?

Para pensarmos sobre as atitudes diferentes e, algumas vezes, contraditórias em

relação ao corpo, devemos lembrar que a cultura inscreve-se no corpo a fim de

modelá-lo e socializá-lo com base em suas regras e suas normas. As atitudes

corporais que homens e mulheres adotam numa dada sociedade, ainda que possam

parecer espontâneas, são construções sociais. Os sentidos conferidos ao corpo

variam historicamente e são constituídos por múltiplas formas de poder. No caso

do Brasil, trazem as marcas de uma colonização católica, carregada de interditos

ao uso do corpo e, ao mesmo tempo, do desejo de dominação dos corpos de

índios/as e negros/as, para o trabalho e para o sexo.

Em relação aos demais países ocidentais, você acredita que no Brasil a questão do corpo

feminino é mais mal-resolvida que a média? Penso, por exemplo, na prática de topless

que já bem difundida na Europa, mas ainda controversa por aqui.

Acho que devemos fazer um recorte de classe social ao abordarmos esta temática.

As mulheres das camadas populares, normalmente, lidam melhor com o corpo.

São mulheres que mostram mais o corpo, com menos pudores e menos permeáveis

aos discursos de controle. De toda forma, gostaria de enfatizar que a “questão do

corpo”, a meu ver, não deve se restringir a exibição maior ou menor do corpo. Há

muitos outros índices sociais e culturais a serem levados em conta.

A figura da piriguete tem sido bem discutida, pois alguns a entendem como uma mulher

subjugada à cultura machista e outros entendem-na como alguém liberada sexualmente.

Como você percebe esta ambiguidade?

A ambigüidade da figura da “piriguete” reside na sua potência desestabilizadora

dos valores morais comumente atribuídos ao feminino. Ela desafia as classificações

e incomoda homens e mulheres. As chamadas piriguetes não escondem seu gosto

pelo sexo, mesmo que casual, sabem que seus corpos inspiram desejo e o usam

deliberadamente como armas de conquista. É difícil para homens e mulheres

inseridos numa sociedade ainda conservadora admitirem esse perfil. Não é à toa

que o termo piriguete tenha surgido para se referir às mulheres consideradas

“perigosas.” Provavelmente, muitas moças escolhem ser “piriguetes.” Reside aí a

questão: a liberdade de cada pessoa em poder escolher a maneira de viver seu

corpo e seus desejos. O que é fundamental neste debate é não perdermos de vista

os perigos que os rótulos comportam e as limitações identitárias que constroem.

Page 2: Sobre  Piriguetes e Feminismo

E os episódios de mulheres expulsas de determinados locais por estarem amamentando,

seria o ponto máximo da nossa hipocrisia? Como você avalia estes episódios?

Parece-me uma punição ao direito da maternidade e do trânsito livre das mulheres

no espaço público. É um retrocesso sem tamanho. O espaço público é lugar das

diferenças, das disputas; Nós, mulheres, lutamos para conquistá-lo e ainda lutamos

para reiventá-lo. É um caso para pensarmos como o olhar não é um ato

estritamente físico, biológico, mas carregado de sentidos, de valores, a ponto de

discriminarmos um ser humano que alimenta outro.

Por fim: na tua opinião, há um esclarecimento maior por parte das mulheres para

lutarem contra o machismo ou, em geral, a maior parte da sociedade acredita nessa

falácia de que a igualdade de gêneros já foi conquistada? Você sente que a ideia de "ser

feminista" é vista com certo preconceito por muitos homens e mulheres?

Penso que há um longo caminho para conseguirmos igualdade de gênero,

sobretudo no campo das representações do feminino na mídia e na transformação

do espaço doméstico. Tanto homens quanto mulheres são aprisionados em teias

cruéis de representações nas novelas, na publicidade, etc. Tanto homens quanto

mulheres tornam-se ainda reféns dos papeis de esposa e marido, da divisão clássica

das atividades domésticas e do lugar de provedor. É um enorme desafio do

feminismo romper as imagens cristalizadas que ainda habitam os livros escolares,

as revistas nos consultórios médicos, as letras de músicas, etc. Acho que ainda há

muito o que se fazer no campo das políticas públicas de enfrentamento ao

preconceito de gênero, sobretudo no campo da qualificação dos agentes que atuam

nestes setores. Não resta dúvida que as ações devem ser integradas, mas, como

professora, acredito incansavelmente no poder da educação para construirmos um

mundo mais justo e livre de preconceitos. As pessoas tem, no geral, uma visão

caricaturada da feminista como a mulher séria, asséptica e nada erotizada. Sinto

ainda muito preconceito. Mas, acho instigante como as feministas contemporâneas

desnorteiam estas representações, militando e apresentam suas pautas de

reivindicações com irreverência, criatividade e sem abrir mão de suas escolhas de

modelo de vida familiar. No neofeminismo, lutamos pela liberdade, nossa pauta é

ampla, em prol de ambos os sexos e contra as barreiras discriminatórias de toda

espécie.