Sobre Surrealismo e Filosofia

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1 Sobre surrealismo e filosofia Claudio J. Willer O que vem a seguir é o “paper” da palestra A crítica filosófica e a questão do sujeito no surrealismo na II Jornada de Filosofia e Literatura do Departamento de Filosofia da Unifesp, dia 09 de dezembro de 2013 – mas com pequenos acréscimos e ajustes. Também está publicado em Agulha, em http://www.revista.agulha.nom.br/ARC08claudi owiller.htm Não sou filósofo e falo como poeta ao comentar alguns tópicos da filosofia que podem ser destacados no surrealismo. Começo por aquele do sujeito. E por esta frase de André Breton, de seu prefácio de 1962 para Nadja, sua narrativa de maior repercussão e circulação, de 1928: “Subjetividade e objetividade travam, ao longo de uma vida humana, uma série de combates, nos quais a primeira costuma sair-se inteiramente mal”. 1 A frase me persegue: ultimamente; lembro-me dela a toda hora e já iniciei outro texto (um comentário sobre Raymond Roussel) citando-a. Relaciono-a a uma passagem de Baudelaire em um texto de 1859, inacabado e publicado postumamente, A Arte Filosófica: “O que é a arte pura segundo a concepção moderna? É criar a magia sugestiva que contenha ao mesmo tempo o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao artista e o próprio artista”. 2 Vê-se, nesse e em outros de seus enunciados, o leitor de 1 Breton, André, Nadja, collection Folio, Gallimard, Paris, 1964; Nadja, tradução de Ivo Barroso, Cosac Naify, Rio de Janeiro, 2006. 2 Baudelaire, Charles, Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, organizada por Ivo Barroso, diversos tradutores, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1995, pg. 789.

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O ensaio do poeta e crítico Claudio Willer faz reflexão entre surrealismo e filosofia.

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Sobre surrealismo e filosofiaClaudio J. Willer

O que vem a seguir o paper da palestra A crtica filosfica e a questo do sujeito no surrealismo na II Jornada de Filosofia e Literatura do Departamento de Filosofia da Unifesp, dia 09 de dezembro de 2013 mas com pequenos acrscimos e ajustes. Tambm est publicado em Agulha, em http://www.revista.agulha.nom.br/ARC08claudiowiller.htmNo sou filsofo e falo como poeta ao comentar alguns tpicos da filosofia que podem ser destacados no surrealismo. Comeo por aquele do sujeito. E por esta frase de Andr Breton, de seu prefcio de 1962 para Nadja, sua narrativa de maior repercusso e circulao, de 1928: Subjetividade e objetividade travam, ao longo de uma vida humana, uma srie de combates, nos quais a primeira costuma sair-se inteiramente mal. A frase me persegue: ultimamente; lembro-me dela a toda hora e j iniciei outro texto (um comentrio sobre Raymond Roussel) citando-a.Relaciono-a a uma passagem de Baudelaire em um texto de 1859, inacabado e publicado postumamente, A Arte Filosfica: O que a arte pura segundo a concepo moderna? criar a magia sugestiva que contenha ao mesmo tempo o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao artista e o prprio artista. V-se, nesse e em outros de seus enunciados, o leitor de Hegel e da filosofia romntica. H um equvoco a propsito do poeta, atribuindo-lhe ignorncia de filosofia. Ao tratar da superao da contradio de sujeito e objeto, sabia do que estava falando.

Sujeito e subjetividade so, me parece, categorias filosficas modernas, historicamente recentes. Nos clssicos e antigos, encontramos o eu; em neo-platnicos, gnsticos e msticos, um eu falso, circunstancial, lugar de percepes ilusrias, contraposto a outro verdadeiro, de natureza divina. O sujeito ganha vulto com a crtica filosfica dos sculos XVII a XVIII; mais precisamente, a crtica a Descartes empreendida por Locke, em seguida por Berkeley e Hume; nesses, mostrando como a relao entre o percebido e o real, o esse e percipi, nada tem de pacfico. E com o eu absoluto de Fichte; ou seja, o real exterior como funo do sujeito. Foi o que Novalis sintetizou, em um de seus fragmentos: O que a natureza? Um ndice enciclopdico sistemtico ou plano do nosso esprito. E, ainda: O mundo um tropo universal do esprito seu retrato simblico. Repetindo os msticos, proclamou que conhecer o eu conhecer o universo: Uma pessoa conseguiu levantou o vu da deusa de Sas Mas o que viu? viu milagre dos milagres a si mesmo.

Novalis tratou do esprito; no do sujeito. Contudo, justifica a observao de Margaret Mahony Stoljar, organizadora de Philosophical Writings, sobre a rejeio de uma noo de verdade extrnseca, exterior ao sujeito. O poeta-filsofo prope um modelo auto-referente para a filosofia, que no procura explicar o mundo, porm, antes, explicar-se a si mesma.

Breton foi um continuador da gerao romntica alem, dos poetas-filsofos, incluindo Schelling, Novalis, os irmos Schlegel, Tiek, acrescidos de Achim Von Arnim, pelo qual manifestou especial admirao. A observar, como um dos componentes da sua contribuio, o elogio atrao daqueles romnticos por uma paracincia ou pseudocincia, incluindo os postulados da origem aqutica do planeta e do magnetismo animal, e assim incorporando esoterismo e magia. Justamente, algo to criticado no romantismo por outros autores. Breton tomou partido no confronto entre filosofia da natureza e cincias naturais; na verdade, como detalharei a seguir, entre logos e mythos. O que lhe parecesse restaurao do mundo mtico, era a favor. J se falou em poetas-filsofos a propsito do romantismo alemo; em poetas-pensadores e poetas-crticos a propsito de Baudelaire, T. S. Eliot e Ezra Pound. Essas designaes se aplicam a Breton, especialmente, e a outros surrealistas. Dimenso importante da produo surrealista, o debate poltico: um debate passional e pendular, de aproximaes e afastamentos, adeses e rupturas. Tal politizao, marcada pela adeso ao pensamento de Marx, , no obstante, conseqncia de um projeto fundamentalmente romntico, de confundir poesia e vida; e mais, de romper barreiras entre a esfera simblica e das coisas; de superar a contradio entre sujeito e o objeto. o programa poltico resumido nesta frase de Novalis: O mundo deve ser tornado romntico. Ou por Friedrich Schlegel, seu companheiro no grupo de Jena:

A poesia romntica no s uma filosofia universal, progressista. Seu fim no consiste apenas em reunir todas as formas de poesia e restabelecer a comunicao entre poesia, filosofia e retrica. Tambm deve misturar e fundir poesia e prosa, inspirao e crtica, poesia natural e poesia artificial, vivificar e socializar a poesia, tornar potica a vida e a sociedade, poetizar o esprito, encher e saturar as formas artsticas de uma substncia prpria e diversa, e animar o todo com a ironia.

Nenhuma dessas snteses seria rejeitada por um surrealista. Por isso, concordo com a caracterizao, por Jacqueline Chnieux-Gendron, do surrealismo como pensamento totalizante e at, permito-me afirmar, de um holismo, assim como aquele dos romnticos, dos polmatas renascentistas e iluministas que tiveram a ambio de alcanar o conhecimento total. o que diz Sarane Alexandrian, em um livro sobremodo recomendvel, Le Surralisme et Le Rve: O surrealismo no uma escola, como o romantismo ou o simbolismo, mas um mtodo sempre vivel, como a psicanlise. Caracteriz-lo como mtodo necessariamente acrescenta um debate epistemolgico quele de uma potica.

A continuidade de surrealismo e romantismo foi proclamada por Breton; de modo enftico, no Segundo Manifesto do Surrealismo:

Mas, no momento em que os poderes constitudos em Frana grotescamente se preparam para celebrar com festas o centenrio do romantismo, ns, pelo que nos respeita, dizemos que esse romantismo, do qual estamos prontos a passar, hoje em dia, por causa, desde que cauda em alto grau prensil, por sua prpria essncia, em 1930, reside inteiramente na negao desses poderes e dessas festas; que, para ele, cem anos de existncia equivalem sua juventude, que a sua chamada poca herica j no pode ser honestamente considerada mais que o vagido de um ser que mal comeou, por nosso intermdio, a dar a conhecer seu desejo; e que, a admitirmos que o que antes dele foi pensado - classicamente - era o bem, quer, sem sombra de dvida, todo o mal.

Como se v, dialetizou o romantismo: interpretou-o como manifestao ou expresso da negatividade, da destruio criadora, antecipando o que Octavio Paz, em Os filhos do barro, designaria como tradio da ruptura. Nessa perspectiva, deixa de ser mais um perodo da histria da literatura e artes, do final do sculo XVIII at meados do XIX. Passa a ser uma rebelio que se renova ao prosseguir, da qual o surrealista se declarou porta-voz e continuador. H retomada de programas romnticos em Breton, como ao final de Arcano 17, em favor da nica revolta criadora de luz com a referncia explcita a Lcifer, atualizando o satanismo romntico que s pode passar por trs vias: a poesia, a liberdade e o amor. As trs vias, prossegue, devem inspirar o mesmo zelo e convergir para traar o prprio perfil da eterna juventude, no ponto menos descoberto e mais iluminante do corao humano. O mesmo vale para outra de suas frases famosas: Transformar o mundo, disse Marx; mudar a vida, disse Rimbaud: para ns, estas duas palavras de ordem no so mais que uma s. a busca da unidade proclamada no Segundo Manifesto do Surrealismo, ao denunciar as velhas antinomias destinadas hipocritamente a prevenir toda agitao inslita por parte do homem e afirmar que: Tudo indica a existncia de um certo ponto do esprito, onde vida e morte, real e imaginrio, passado e futuro, o comunicvel e o incomunicvel, o alto e o baixo, cessem de ser percebidos como contraditrios.Muito j foi escrito sobre esse ponto do esprito; inclusive as interpretao esotricas em Andr Breton et ls donnes fondamentales du surralisme, de Michel Carrouges. Mas penso que, em acrscimo, pode ser feita a identificao arte filosfica de Baudelaire, bem como ao esprito, tal como aparece em Hegel diga-se de passagem, contrariando o marxismo to enfaticamente afirmado nesse manifesto, ao introduzir uma categoria tipicamente metafsica. Breton foi um romntico que incorporou contribuies subseqentes. A de Hegel, refinando a categoria sujeito e incorporando a negao, entendida como destruio criadora; de Marx; e de Freud, que promoveu um novo ataque ao cogito cartesiano.Minha inteno mostrar respostas de Breton questo do sujeito; do antagonismo ou contradio de subjetividade e objetividade; e sua tentativa de superar essa contradio atravs de uma potica do delrio e da alucinao. Para tal, citarei algumas de suas obras. Em primeiro lugar, em uma srie no-cronolgica, O amor louco, de 1937. Como etapa de uma viagem a lugares onde havia manifestaes surrealistas, Breton e Jacqueline Lamba, por quem se apaixonara e com quem se havia casado, chegam s Ilhas Canrias em abril de 1935. L, em plena natureza reconciliada, possudo pelo delrio da presena absoluta, v no Pico de Teide, ponto culminante da ilha de Orotava, seu Jardim do den. Tem uma experincia de encontro do macrocosmo e microcosmo: o contato involuntrio com um s ramo de sensitiva o bastante para agitar, tanto fora quanto dentro de ns, o prado inteiro. Transcreve a msica sobreposta aos nossos passos sobre praias de areia branca e de areia negra, passando por matizes e gradaes da gua do mar, por uma vegetao de figueiras de razes que mergulham na pr-histria, sempre-vivas com folhas refletindo a Unidade, eufrbias e pitangas, cactos de muitas formas. Aparentemente, abdicava de sua postura anti-realista, contrria descrio. Mas o lugar concretizao do sonho, surrealidade realizada.

As flores de Orotava ocupam tudo, at que os amantes se confundam com elas: A um sinal, que, por maravilha, tarda a aparecer, irei juntar-me a ti no seio da flor fascinante e fatal. No interior da flor, no seio da oblqua claridade, experimenta a plenitude: a suficincia total que, naturalmente, reina entre dois seres que se amam, deixa de enfrentar, neste momento, o mnimo obstculo. Dentro da flor e dentro da nuvem: do puro informe: quando Orotava desapareceu, foi-se perdendo pouco a pouco sobre nossas cabeas, at acabar por ser tragada; ou ento fomos ns que, a esses mil e quinhentos metros de altitude, fomos de repente sorvidos por alguma nuvem.

Nuvens so o lugar do encontro do desejo e da realidade: levantar os olhos daqui de baixo, da terra, para uma nuvem, a melhor forma de interrogar nossos mais ntimos desejos. Assim e aqui grifo toda a questo da passagem da subjetividade objetividade se encontra aqui implicitamente solucionada. Comenta que Leonardo da Vinci pedia a seus alunos que olhassem as manchas em uma parede e copiassem as formas que viam desenhar-se nelas. Nuvens de Orotava ou manchas na parede so telas em que se projetam imagens: O homem s poder ser senhor dos seus atos no dia em que, como o pintor, aceitar reproduzir, com a mxima fidelidade, aquilo que uma tela apropriada tiver sabido mostrar antecipadamente a esses mesmos atos. Ora, essa tela existe. Qualquer existncia comporta um todo homogneo de fatos aparentemente escalavrados e nebulosos, que bastaria encararmos mais fixamente para que eles nos desvendassem o futuro.

Ainda cita Baudelaire, que, no poema A Viagem, final da primeira verso de As Flores do Mal, tambm associou nuvens ao desejo e ao acaso: As maiores regies, a mais pujante aldeia,/ No continham jamais os encantos secretos/ Dessas que o acaso com as nuvens delineia./ E eis que o desejo nos fazia mais inquietos!

Traz para o relato o acaso objetivo, categoria que havia criado em um livro precedente, Les vases communicants: Uma vez vencidos todos os princpios lgicos, viro ento a nosso encontro se tiver valido a pena interrog-las as foras do acaso objetivo, que nada querem saber de verossimilhanas. Tudo o que o homem pretende saber se encontra escrito nessa tela em letras fosforescentes, em letras de desejo. [...] Onde poderei eu estar melhor que no seio de uma nuvem, para adorar o desejo, nico impulsionador do mundo, o desejo, nico rigor que o homem deve se impor? s categorias do sujeito e objeto acrescentado um terceiro termo: o desejo. Freud e a psicanlise, portanto, adicionados reflexo filosfica. Vejam como simples resolver dialeticamente a contradio de subjetividade e objetividade, mantendo os dois termos. Basta olhar para as nuvens, realizando essa metfora imemorial da poesia. Mas com o apoio de uma experincia do sublime, de encantamento amoroso, e em um lugar como o topo do Pico de Teide. No obstante, essa experincia, a projeo da subjetividade nos objetos, tenho-a recomendado em cursos de surrealismo. Veremos sempre a nuvem, algo fisicamente objetivo, exterior e montanhas, animais, fisionomias, corpos, assombraes, astronaves; tudo aquilo que se enxerga ao contemplar nuvens. Mas quem v formas em nuvens? O desocupado, que no tiver outras coisas para fazer. Quem no rumar apressadamente para algum compromisso ou estiver mergulhado no trabalho; quem se encontrar em estado de disponibilidade. Essa outra categoria fundamental no surrealismo, erigida em valor desde La confssion ddaigneuse, proto-manifesto de 1921, texto de abertura de Les pas perdus, sua primeira coletnea de textos. Um dos modos da disponibilidade: a flnerie baudelairiana, a errncia, a caminhada ao acaso, to bem interpretada por Walter Benjamin em outra ocasio, cheguei a comentar que Benjamin, a meu ver, entendeu mais de surrealismo que o prprio Breton; e a lamentar que surrealistas no o houvessem achado naquela poca o movimento teria ganho em substncia.

Familiarizados com psicologia observaro que ver coisas nas nuvens se assemelha a um teste projetivo conhecidssimo, o Teste de Rorschach. E no s. Pierre Mabille, importante pensador do surrealismo, autor de Le Miroir du Merveilleux, tambm criou um teste projetivo, o Test du village, reconhecido e que continua a ser aplicado. Mabille foi tipicamente holista, da espcie mais consistente; um polmata, realizando o ideal do conhecimento total, e no s de conhecer tudo: mdico, antroplogo, psiclogo, esoterista, historiador, artista plstico, chegou a estudar a lngua sumria para avanar em seus estudos. Empreendeu uma longa viagem orientada rumo conquista de um reino maravilhoso, afirmou Breton. Le Miroir du Merveilleux, coletnea de relatos tribais, livros sagrados de diversos povos, lendas de vrias pocas, trechos de literatura desde os clssicos aos contemporneos, mostra a transversalidade ou trans-historicidade do maravilhoso. Retoma e refina essa categoria surrealista, proclamada por Breton no primeiro Manifesto do Surrealismo: Digamo-lo claramente, e de uma vez por todas: o maravilhoso sempre belo, qualquer tipo de maravilhoso belo, somente o maravilhoso belo. Isso foi reiterada por Breton no prefcio para o livro de Mabille e no artigo intitulado Le merveilleux contre le mysthre.

Para os romnticos, o lugar da soluo das antinomias e superao da contradio de subjetividade e objetividade seria o esprito; e tambm para Breton no trecho j citado, sobre o ponto do esprito. Para Hegel, o absoluto. Para o surrealismo, o maravilhoso e assim esse termo da linguagem corrente adquire peso filosfico. H mais exemplos de encontros de subjetividade e objetividade em Breton. Em Le mssage automatique, de 1933, examina, como anuncia no ttulo, um dos tpicos mais controversos associados ao surrealismo, a escrita automtica. , por ser desenfreadamente visionrio, um de seus artigos que mais aprecio. Trata de alucinaes, vises e fenmenos correlatos. Comea por mencionar cientistas: Herschel, o astrnomo, e seu relato de produo involuntria de imagens visuais. Watt, inventor da mquina a vapor, que, em um quarto escuro, contempla a futura, a prxima mquina a vapor. Para Breton, O que ainda no , ser; pois, No interior de uma simples bola de cristal, como aquela que utilizam os videntes, alguns, desde que se mantenham em um estado de passividade mental, ou seja, de disponibilidade, enxergaro objetos perturbadores, cenas a se desenrolar etc. A lgrima, para o surrealista, essa obra-prima da cristaloscopia justamente por embaar a viso. Na pgina em branco, tudo j est escrito. A criao literria equivale revelao fotogrfica, mostrando o que j est na pgina. Comenta, antecipando O amor louco, Leonardo da Vinci e as manchas na parede. Celebra Charcot, por haver originado esse magnfico debate sobre a histeria, e Schrenck-Notzing por haver chamado a ateno em 1889 para o valor artstico dos movimentos de expresso da histeria e da hipnose. Chega ao que William James denominou psicologia gtica, a propsito de Myers e Flournoy, iniciadores da parapsicologia. Mostra a diferena entre as manifestaes de mediunidade, estudadas por Myers e Flournoy, e a escrita automtica: Ao contrrio do que prope o espiritismo, dissociar a personalidade psicolgica do mdium, o surrealismo se prope a nada menos que unificar essa personalidade. H mais relatos e observaes em Le mssage automatique; um desfile de paranormalidades, alucinaes visuais e auditivas, at chegar questo propriamente filosfica: No posso, aqui, e lamento por isso, fazer outra coisa a no ser esboar a histria da crise que, nessas condies, a atitude surrealista, no que concerne ao grau de realidade a ser conferido a um objeto, no pode deixar de fazer que a sofra o pensamento puramente especulativo. Isso, pela impossibilidade de uma demarcao vlida, que permita isolar o objeto imaginrio do objeto real. Volta a Myers, por sua pesquisa das imagens eidticas, os ps-efeitos visuais: por exemplo, quando olhamos fixamente para uma fonte de luz, e essa, alterada, permanece ao fecharmos os olhos. Conclui com uma afirmao ousada: Toda a experimentao em curso seria de natureza a demonstrar que a percepo e a representao que para o adulto ordinrio parecem opor-se de uma maneira to radical no devem ser tidos seno como produtos da dissociao de uma faculdade nica, original, da qual a imagem eidtica d conta e da qual se reencontram traos entre os primitivos e as crianas. Em Plato e nos mitos que o precederam, havia um andrgino, dividido pelos deuses; em Breton, unidade de percepo e representao; de sujeito e objeto, em um mundo evidentemente mgico. Por isso eu havia falado em potica da alucinao, como soluo da contradio de sujeito e objeto. Vises e alucinaes ganham o estatuto de percepes ntegras: o visionrio alucinado efetivamente v; no automatismo verbal, de fato ouve. Breton termina exemplificando com Santa Tereza dvila, ao ver sua cruz de madeira transformar-se em crucifixo de pedras preciosas. Considera essa viso ao mesmo tempo imaginada e sensorial. O exemplo o leva a uma tirada de humor, a meu ver injusta: Tereza dvila pode passar como algum que comanda essa linha na qual se situam os mdiuns e os poetas. Infelizmente, ainda no passa de uma santa.

Aprecio Le mssage automatique pelo desfile de fenmenos, mais extenso do que os citados aqui; pelos desafios ao senso comum. Gostaria que fosse traduzido. Temos, traduzido, outro texto, reafirmando-o; porm, desta vez, sob uma perspectiva propriamente filosfica. Situao surrealista do objeto, parte da srie Posio poltica do surrealismo de 1935, que anuncia uma crise fundamental do objeto. Comenta a Esttica de Hegel ao longo de algumas pginas: Declaro que, ainda hoje, a Hegel que se h de interrogar sobre os bons e os maus fundamentos da atividade surrealista nas artes. Esse texto poderia substituir minha palestra. Cito-o para que fique evidente de onde vm as categorias objeto, sujeito e esprito em Breton. O que chamei de potica da alucinao , desta vez, exemplificada por poemas de Benjamin Pret, Paul luard e Apollinaire; no campo visual, os relgios moles de Salvador Dali; as frottages de Max Ernst, ao esfregar um lpis sobre um papel, por sua vez sobre um assoalho com ranhuras: equivalem s manchas na parede de Leonardo da Vinci, tambm citadas. E trata de objetos encontrados, tema forte em O amor louco, e, descontextualizados ou ressignificados, nos famosos procedimentos de Marcel Duchamp.Dos mdiuns aos artistas invocados por Breton, todos esses casos mostram a projeo do sujeito sobre o objeto, colocando-o em situao de crise. H, porm, uma recproca; outro modo de relao, mostrado, de modo insistente, em Nadja, de 1928: o sujeito atacado pelo objeto. Deixando de lado um exame mais atento dessa narrativa, observo a relao sensorial de Breton com lugares de Paris. Por exemplo, a esttua de tinenne Dolet, situada na Praa Maubert (Dolet, personagem respeitvel, editor estrangulado e queimado naquela praa em 1546, acusado de atesmo), que ao mesmo tempo o atrai e lhe provoca mal-estar. E a Praa Dauphine, na Ilha da Cit, cenrio de um episdio especialmente importante do relato, que o faz sentir langor e opresso. Nadja comea pela lembrana de episdios significativos, dos quais sua protagonista poderia ter sido participante; avisos de que o maravilhoso iria manifestar-se. Entre outros, a busca de lojas que vendiam carvo de lenha, bois-charbon, par de palavras, smbolo da destruio ou consumao, que encerram, isoladas e emolduradas como um letreiro, o livro de escrita automtica de Breton e Philippe Soupault, Les champs magntiques: seus autores, perambulando pela cidade, atingiram o nvel de alucinao que lhes permitia dizer antecipadamente em qual trecho de rua apareceria a loja ostentando o letreiro, bois-charbon.

Principalmente, o episdio da Praa Dauphine, na Ilha da Cit, onde ficam a Catedral de Notre-Dame e outras edificaes histricas. Ao chegarem l e se instalarem em um caf, inicia-se a noite marcada por qualquer coisa de mal-assombrado, Nadja a ver mortos circulando pela vizinhana, com o rumor do vento o vento e o azul, o vento azul, dizia transformado em vozes anunciando a morte, enquanto um bbado os cobria de improprios. Afirma que l, vindo do Palcio da Justia, passava um tnel secreto que se comunicava com outro palcio: segundo Henri Bhar em na sua biografia de Breton, escavaes arqueolgicas de 1963 revelaram que o subterrneo existe. Apontando para a janela de uma das casas da praa, negra na escurido, Nadja afirmou que em um minuto se iluminaria e sua cor seria vermelha: em um minuto, a luz do quarto da janela acendeu, exibindo cortinas vermelhas. Em seguida, alucinada, agarrou-se grade do Palcio da Justia e insistiu que havia estado l em outra vida, como acompanhante de Maria Antonieta. Prosseguindo a caminhada, na ponte que liga a Ilha da Cit margem direita do Sena, o Pont Neuf, ela enxerga uma mo em chamas, mo que arde sobre as guas, pairando no rio. Perguntou: O que isso significa para voc: o fogo sobre a gua, a mo de fogo sobre a gua? A mo, a main de gloire e pentagrama dos magos, um smbolo recorrente em Nadja. A noite culminou com a chegada deles ao Jardim das Tuileries, onde pararam diante de um chafariz. Nadja observou que suas guas, elevando-se, separando-se em dois jorros, desfazendo-se ao cair, retornando com a mesma fora, e assim indefinidamente, simbolizavam os pensamentos de ambos. Breton espantou-se com o comentrio, pois citava, sem saber, um trecho do que lia naqueles dias, uma vinheta da edio de 1750 do terceiro dos Trs Dilogos entre Hilas e Filnio de Berkeley, com a seguinte legenda: Urget aquas vis sursum eadem flectit que deorsum, ilustrada por um chafariz idntico ao das Tuileries.

Fazem parte de um maravilhoso imanente que os surpreende os registros de dilogos, objetos encontrados, textos, desenhos, esboos a trao e colagens feitos por Nadja, a torrente de smbolos citados ou graficamente reproduzidos no livro mos negras e vermelhas, serpentes, mscaras, estrelas, cometas, flores, sereias, esfinges, duendes, o diabo, torres e subterrneos de castelos, lmpadas, amuletos, as chamas de uma fogueira, as cores do ar. Invaso de smbolos, levando Breton a v-los, nos curtos intervalos que o nosso maravilhoso estupor permitia, a contemplar os escombros fumegantes do velho pensamento e da vida sempiterna; e a perguntar: Em que latitude ns poderamos estar bem, assim entregues ao furor dos smbolos, presas do demnio da analogia, ns que nos vamos como objetos de instncias ltimas, de atenes singulares, especiais? Breton e Nadja foram, naqueles episdios, sujeitos de uma narrativa, seus protagonistas; e, ao mesmo tempo, objeto dos smbolos.Nadja o relato de una catstrofe, justificando a observao no prefcio, j citada, sobre as derrotas do sujeito frente implacvel objetividade. Aps separarem-se, Breton informado que havia sido internada, em surto, em um hospcio do qual nunca mais sairia. As respostas de Breton so o alheamento, a abstrao do real objetivo, o isolamento. Prosseguindo o elogio da distrao no Manifesto do Surrealismo, relata o caso do hspede de um hotel que, toda vez, tem que perguntar ao atendente quem ele . E, nas passagens finais do livro, contra psiquiatras e manicmios, afirma que, se fosse internado, mataria algum, de preferncia um de seus mdicos, para que o deixassem em paz, confinado no isolamento.Sair do impasse moveu-o a escrever o complexo Les vases communicants. Seguindo Freud em A Interpretao dos Sonhos, tenta dar um passo alm, atravs do que chama de psicanlise da realidade. Sonhos, afirma, no apenas reaproveitam o que Freud denominou restos do cotidiano, mas se projetam na viglia. Faz, portanto, no apenas de interpretao do sonho, mas do real no sentido mais amplo, compreendendo viglia e sonho, defendendo o mesmo estatuto para ambos.

o livro sobre a perda, de uma intensa racionalizao; elaborao do luto, diriam psicanalistas. Enfrentava dificuldades financeiras, e um drama amoroso. Nesse livro da busca para no chegar a lugar algum, de encontros que no se realizam, multiplica o encontro com Nadja. Para sua crise, microcosmo de uma crise da sociedade, do mundo da desigualdade e explorao, s havia uma sada: a equiparao de viglia e sonho. V o sonho como crtica do real: assim fazendo, por meio do sonho, o processo do conhecimento materialista, [...] sendo, penso, admitido que o mundo do sonho e o mundo da realidade no fazem seno um, ou, dito de outro modo, que o segundo no faz outra coisa, para constituir-se, que verter-se na torrente do dado. Indaga se a distino entre realidade e sonho fundamentada em todos os pontos, e de onde vem ao homem, a esse respeito, a faculdade de discriminao que permite seu comportamento social normal.

Critica Freud pelo dualismo, a seu ver um platonismo, ao separar dois mundos, sonho e realidade, que, sob o ponto de vista materialista, deveriam ser um s. E questiona o criador da psicanlise por considerar o sonho exclusivamente a satisfao de um desejo. Isso equivaleria falta quase completa de concepo dialtica, pois o real da viglia est submetido censura, enquanto o sonho no; por isso, o territrio da liberdade, do possvel: uma parte do sonho, considerada eminentemente no-sonhvel, tem por objeto fazer de uma coisa que no foi mas que foi sentida violentamente como podendo ter sido, em seguida como podendo e devendo ser - uma coisa que foi, que portanto em todos os pontos possvel e que deve passar, sem choque, vida real como toda-possibilidade. Da que Freud ainda se engana, muito certamente, ao concluir pela no-existncia do sonho proftico.Argumenta que acontecimentos do dia-a-dia obedecem aos mecanismos do sonho. Por exemplo, na srie de mulheres que vai encontrando, para depois perd-las. Trata-se de deslocamentos: Um personagem, assim que dado, abandonado por um outro, - e, quem sabe, esse mesmo, por um outro? Para qu, ento, esse trabalho de expor? Mas o autor, que parecia haver-se disposto a nos apresentar algo de sua vida, fala em um sonho! Como em um sonho.H uma interpretao do Omega do poema As Vogais de Rimbaud, remetendo por cabala fontica a uma atraente Olga que acabara de conhecer. O autor de uma carta com observaes sobre o Segundo Manifesto do Surrealismo Sanson, Sanso (Georges Sanson, pacifista a quem conhecera durante a guerra e que reaparecia, enviando-lhe a carta), e isso o remete moa com quem havia marcado encontro aquele dia, cujo olhar lhe havia lembrado a Dalila de Gustave Moureau, um de seus pintores prediletos. Ainda por associao, lembra um episdio burlesco ocorrido no mesmo dia, no cabeleireiro. Admite: Que isso possa, para alguns, frisar o delrio de interpretao, no vejo inconveniente nisso, tendo insistido, como o fiz, sobre as razes do meu pouco equilbrio de ento. Mais que delrio interpretativo, h pensamento analgico, associao de coisas e smbolos distintos por contigidade ou afinidade. O mecanismo do sonho pode no ter tomado conta da realidade, mas dirigiu seu modo de pensar: Deve ser impossvel, considerando o que precede, no se chocar com a analogia entre o estado que acabo de descrever como tendo sido o meu naquela poca e o estado de sonho, tal como concebido geralmente. Como observa J. B. Pontalis, a percepo onrica, o estado de sonho e suas equivalentes viglias tm, antes, funo de paradigma.A carta de Sanson podia ser um comentrio discusso da noite anterior sobre misticismo no Segundo Manifesto do Surrealismo e uma religiosidade disfarada no surrealismo: repito que entre ns essa discusso havia acontecido na vspera, noite. V-se como os fatos dessa ordem podiam encadear-se em meu esprito. E isso que taxado de misticismo em mim. A relao causal, vm me dizer, no poderia se estabelecer nesse sentido. No h nenhuma relao sensvel entre aquela carta que lhe chega da Sua e tal preocupao que poderia ser a sua nas vizinhanas do momento em que essa carta foi escrita. Mas isso no , pergunto, absolutizar de uma maneira lamentvel a noo de causalidade? No deixar passar a palavra de Engels: A causalidade no deve ser compreendida seno em ligao com a categoria do acaso objetivo, forma de manifestao da necessidade?Assim aparece na obra bretoniana a expresso acaso objetivo, associada a um Sanso, seu duplo, mas atribuda a Engels. No entanto, mostrou Marguerite Bonnet, ela no se encontra em lugar algum na obra de Engels. Em Situao surrealista do objeto, Breton voltaria a falar do acaso objetivo, mas sem remet-lo a Engels, porm apenas ao humor objetivo de Hegel.Mas o que faz que realidade e conscincia se subordinem ao sonho? o desejo, responde Breton em Les vases communicants: Muito mais significativo observar como a exigncia do desejo em busca do objeto de sua realizao dispe estranhamente dos dados exteriores, tendendo egoisticamente a s reter deles aquilo que pode servir a sua causa. A v agitao da rua tornou-se pouco mais incmoda que o movimento das cortinas. O desejo est l, cortando o tecido que no muda com rapidez suficiente, depois deixando correr seu fio seguro e frgil entre os pedaos. Ele no ceder a nenhum regulador objetivo da conduta humana.Breton faz crtica marxista psicanlise freudiana, ao questionar seu dualismo? Ou procede freudizao do marxismo, ao colocar no s o comportamento humano mas o mundo todo sob a regncia de Eros? Introduzir o acaso objetivo, por mais que essa categoria receba fundamentao, marxista inclusive, e freudiana, apresentar uma soluo mgica para a contradio de sujeito e objeto; ou resolv-la magicamente. Algo que no contraditrio com as ligaes de Breton com esoterismo, alquimia e demais disciplinas hermticas, a ponto de alternar, no Segundo Manifesto do Surrealismo, pginas de discusso poltica, de orientao marxista, e extensas notas de rodap sobre astrologia e alquimia; ou, em Les Vases Communicants, de propor astrologia como cincia marxista, desde que aquilo que postulado seja tomado como postulado afirmao estranhamente circular. E com sua atrao por mdiuns e videntes, levando-o a freqent-las. Uma delas, Madame Sacco, com sua foto, paramentada como cigana, em Nadja. Em um texto de 1925, Carta s videntes, depois agregado aos Manifestos do Surrealismo, comenta uma previso de Madame Sacco: Ao que parece, devo ir China por volta de 1931, e l correr, durante vinte anos, grandes perigos. Duas vezes em duas ocasies diferentes deixei que me dissessem isso, o que bastante perturbador.

Seu interesse no decorre da realidade da profecia, da objetividade como realizao emprica. Est na China: Indiretamente, soube tambm que, antes disso, haveria de morrer. Mas eu no penso que das duas, uma. Tenho f em tudo o que me disseram. Por nada nesse mundo resistiria tentao que provocaram em mim, digamos: de aguardar-me na China. Tanto mais que, graas a vs, j estou l. O valor no est na exatido das profecias, mas no efeito sobre a imaginao; sobre o sujeito: esse est na China.

O acaso objetivo passaria a realizar-se e multiplicar-se, uma vez formulado. O amor louco uma sucesso de episdios propiciatrios: poemas anteriores que so lembrados, conversas entreouvidas em um restaurante, encontros improvveis. Tudo isso conferir estatuto de realidade ao acaso objetivo, valor s alucinaes e iluses de tica, defender o alheamento daria razo a crticas ao surrealismo como aquela de Sartre, em Situations, pelo afastamento do real e, conseqentemente, de um compromisso. Cabe citar a observao de Ferdinand Alqui, em Philosophie du Surralisme: O surreal no , portanto, o sobrenatural, e por isso, apesar da inquietude metafsica da conscincia surrealista, no deve ser considerado como o correlato de uma conscincia religiosa, ou de uma conscincia mstica, mas apenas de uma conscincia artstica. E sem dvida a concepo que os surrealistas tm da arte, cujo poder emancipador nunca esquecido, torna essa conscincia indissoluvelmente esttica e moral. Ademais, como observou Carrouges, a percepo da objetividade nunca neutra, porm, inclusive para Marx, funo de quem percebe. Exemplifico: quando, ao visitar o parque do Xingu, caminhei alguns quilmetros em companhia de Tacum, chefe Camaiur, ele via outras coisas na mata, e muito mais coisas que eu.

Mas a melhor interpretao filosfica, penso, da relao surrealista de sujeito e objeto aquela de Octavio Paz em La bsqueda del comienzo: Para ns, o mundo real um conjunto de objetos ou entes. Antes da idade moderna, esse mundo estava dotado de uma certa intencionalidade, atravessado, por assim diz-lo, pela vontade de Deus. Os homens, a natureza e as prprias coisas estavam impregnadas de algo que as transcendia; possuam valor; era boas ou ms. A idia de utilidade que nada mais seno a degradao moderna da noo de bem impregnou depois nossa idia de realidade. Os entes e objetos que constituem a realidade se tornaram, para ns, coisas teis, inaproveitveis ou nocivas. Nada escapa a essa idia do mundo como um vasto utenslio: nem a natureza, nem os homens, nem a prpria mulher; tudo um para... todos somos instrumentos. E aqueles que, do alto da pirmide social, manejam essa enorme e ruidosa maquinaria, tambm so utenslios, tambm so ferramentas que se movem maquinalmente. O mundo se converteu em uma gigantesca mquina que gira no vazio, alimentando-se sem cessar de seus detritos. Pois bem: o surrealismo se recusa a ver o mundo como um conjunto de coisas boas e ms, umas preenchidas pelo ser divino, outras rodas pelo nada; da seu anticristianismo. Igualmente, nega-se a ver o mundo como um conglomerado de coisas teis ou nocivas; da seu anticapitalismo. As idias de moral e utilidade lhe so estrangeiras. Finalmente, tampouco considera o mundo maneira do homem de cincia puro, ou seja, como um objeto ou grupo de objetos desnudados de todo valor, desprendido do observador. Nunca possvel o objeto em si; sempre est iluminado pelo olho que o mira, sempre est moldado pela mo que o acaricia, o oprime ou empunha. O objeto, instalado em sua realidade irrisria como um rei em um vulco, prontamente muda de forma e se transforma em outra coisa. O olho que o mira o amacia como cera; a mo que o toca o modela como argila. O objeto se subjetiviza. Ou, como diz um heri de Arnim: Posso discernir com dificuldade o que vejo com os olhos da realidade do que vejo com os olhos da imaginao. Evidentemente, trata-se dos mesmos olhos, porm servindo a poderes distintos. E assim se inicia uma vasta transformao da realidade. Filho do desejo, nasce o objeto surrealista: a reunio de montanhas outra vez cena de gigantes, as manchas na parede ganham vida, pem-se a voar e so um exrcito de aves que, com seus bicos terrveis rasgam o ventre da formosa acorrentada.

Deslocamentos de objetos, o mtodo paranico-crtico, registros de sonhos, escrita automtica, segue Paz, no so exerccios gratuitos de carter esttico, pois Seu propsito subversivo: abolir esta realidade que uma civilizao vacilante ns imps como a s e nica verdadeira. A destruio da falsa realidade revela outra, que se levanta de sua tumba de lugares comuns e coincide com o homem, na qual somos de verdade. Nela, o mundo j no se apresenta como um horizonte de utenslios, mas como um campo magntico. Mas, se o objeto se subjetiviza, o eu se desagrega, realizando a mxima de Rimbaud, Eu um outro. Assim ocorre a sistemtica destruio do eu ou, melhor dizendo: a objetivizao do sujeito. O par de categorias proposto por Paz, subjetivizao do objeto e objetivizao do sujeito, d conta, filosoficamente, do debate sobre a questo do sujeito e correlatamente do objeto no mbito do surrealismo. O que havia exposto, citando Breton, uma justificativa desses termos.

Ainda teria outros tpicos e questes da filosofia a examinar, marginalmente. Um deles, clssico, aquele da natureza da linguagem e sua relao com a realidade, importante desde Plato e Aristteles; e, especialmente, no confronto medieval de realistas e nominalistas. O surrealismo parece adotar a posio realista; por exemplo, quando Breton, em um texto contemporneo do primeiro Manifesto, intitulado Discours sur le peu de realit, afirma que enunciados medocres produzem uma realidade medocre; e, reciprocamente, que a poesia instaura o maravilhoso. O realismo ser adotado por Mabille, em Le miroir du Merveilleux: Para mim, como para os realistas da Idade Mdia, nenhuma diferena fundamental existe entre os elementos do pensamento e os fenmenos do mundo, entre o visvel e o compreensvel, entre o perceptvel e o imaginvel. Isso porque, parafraseando Hermes (e Novalis e os demais romnticos de Jena), tudo est em ns assim como aquilo que est fora de ns, para constituir uma s realidade. De modo conseqente, o conhecimento do signo leva ao conhecimento da coisa e a cincia da linguagem resume todas as outras cincias; deixando claro, porm, que essa cincia no aquela da deplorvel atmosfera de secura abstrata na qual os gramticos e os intelectuais especializados situaram o estudo das palavras (gramticos... Mabille no chegou a presenciar os empreendimentos formalistas). Para alcanar o Verbo, um caminho: Nas iniciaes antigas, o primeiro e mais longo trabalho consistia em aprender a ler.Mais que retorno a um debate arcaico, so afirmaes precursoras de um debate contemporneo: aquele suscitado pelo relativismo lingstico, as teses de Whorf-Sapir. Fundadas em estudos antropolgicos, mostram que a percepo do mundo funo da organizao da linguagem. Nesse sentido, a linguagem produz realidade. Pouca realidade, no dizer de Breton, quando prosaica; mais realidade, surrealidade, quando potica. Como sintetizado por Octavio Paz: as lnguas so mais inteligentes do que os homens que as falam. A citao de seu ensaio sobre haicais. Em outro ensaio, Leitura e contemplao, examinaria questes suscitadas por Whorf e Sapir: Cada idioma uma interpretao do universo, um prisma atravs do qual vemos o universo no-lingustico. Cassirer o disse de maneira ao mesmo tempo sucinta e clara: O homem no somente pensa o mundo por meio da linguagem: sua viso de mundo j est determinada por sua linguagem. A origem dessas idias, na Idade Moderna, remonta provavelmente a Vico e a Herder, os dois primeiros a oferecer de modo coerente uma viso pluralista da histria.

Esse o sentido da caracterizao do surrealismo por Breton, no ltimo de seus manifestos, Do surrealismo em suas obras vivas, de 1953, como operao que tendia a restituir a linguagem sua verdadeira vida e movimento que nasceu numa operao de grande envergadura que tinha por objeto a linguagem, para descobrir o segredo de uma linguagem cujos elementos deixassem de se comportar como restos do naufrgio flor das guas de um mar morto. Para tal, importava subtra-las a seu uso cada vez mais utilitrio. Tais afirmaes devem ser lidas como completando do que havia afirmado sobre a crise do objeto. O alvo dos ataques surrealistas , evidentemente, a ordem estabelecida; em filosofia, especialmente, o cogito cartesiano. De modo mais explcito, por Louis Aragon na abertura de O campons de Paris, de 1928, intitulada Prefcio para uma mitologia moderna. Sobre o certo, a certeza e a verdade, diz: A certeza realidade. Dessa crena fundamental procede o sucesso da famosa doutrina cartesiana da evidncia. Ainda no terminamos de descobrir os estragos dessa iluso. No apenas contrape-lhe o erro, mas afirma que ambos, certeza e erro, constituem-se em unidade, em uma relao semelhante quela de luz e sombra. Interdependentes, uma no existe sem a outra: Essa sombra, da qual ele pretende se abster para descrever a luz, o erro com seus caracteres desconhecidos, o erro que, sozinho, poderia revelar, quele que o tivesse encarado de frente, a fugitiva realidade. Mas quem no compreende que a imagem do erro e a imagem da verdade no poderiam ter traos diferentes? Dialetiza. E contrape o pensamento analgico lgica cartesiana. Nesse livro, a passagem da pera e o parque das Buttes Chaumont so prticos para iluminaes profanas, como as designou Benjamin, atravs do erro e da errncia em lugares eleitos. Conforme a tradutora Flvia Nascimento, Errar pelo jardim em plena noite funciona como tcnica alucingena cujo objetivo fazer aflorar o que h de mais primitivo no homem; e percorrer esta topografia equivale a percorrer os caminhos sinuosos do inconsciente. Por isso,Aragon anuncia o retorno de divindades arcaicas e novos mitos urbanos.

O retorno ao mito foi reivindicado por surrealistas em geral e Breton em especial. Flagrant dlit, o ensaio em que denunciou a publicao de uma falsificao de Rimbaud intitulada La chasse spirituelle, aberto com a defesa da alegada mitificao surrealista de Rimbaud (e de Lautramont, entre outros). A propsito de uma mostra sobre a civilizao maia no Louvre, argumenta que, assim como as obras dos maias so a expresso de mitos, a de Rimbaud propunha novos mitos. Citando, de Apollinaire, Voc nunca conhecer bem/ os/ Maias, advertiu: Voc nunca conhecer bem Rimbaud. O cerne de sua argumentao, repetindo Schelling: o surrealismo situa-se no campo do mito; e o mito meio de conhecimento, mais efetivo que a lgica. Um passo adiante sua crtica ao antropocentrismo, idia do homem como centro do universo, passando a pens-lo como parte de um todo. De fato, uma vez admitida a unidade, no se sustenta a atribuio de um estatuto ontolgico separao do homem ou o esprito, ou a alma e do mundo das coisas, como nas teologias judaico-crists e em sistemas como o de Descartes. Na mesma medida, passam a valer pantesmos, vitalismos, idias da alma universal. Por isso, nos dois ltimos manifestos Prolegmenos a um terceiro manifesto do Surrealismo ou no de 1942, e Do Surrealismo e de suas obras vivas de 1953 proposto um novo mito, dos grandes transparentes. Nem preciso observar que, com tais proposies, Breton toma distncia do pensamento marxista.A gnese da filosofia j foi interpretada como revolta do logos contra o mito. Por exemplo, por Mircea Eliade: a cultura grega foi a nica a submeter o mito a uma longa e penetrante anlise, da qual ele saiu radicalmente desmitificado. A ascenso do racionalismo jnico coincide com uma crtica cada vez mais corrosiva da mitologia clssica, tal como expressa nos obras de Homero e de Hesodo. Se em todas as lnguas europias o vocbulo mito denota uma fico, porque os gregos o proclamaram h vinte e cinco sculos. Ou por E. R. Curtius: O pensamento de Hesodo era mtico. Ops-se-lhe, desde o sculo VI, o pensamento da filosofia natural jnica. um espetculo maravilhoso a irrupo da filosofia no esprito grego, tomando de assalto todas as posies do inimigo. a revolta do logos contra o mito... e tambm contra a poesia.

A resposta do mito ao ataque do logos tem um nome, conforme Paz. Chama-se rebelio: O rebelde, anjo cado ou tit, o eterno inconformado. Sua ao no se inscreve no tempo retilneo da histria, domnio do revolucionrio ou do reformista, mas no tempo circular do mito: Jpiter ser destronado. Quetzalcoatl voltar, Luzbel regressar ao cu. Durante todo o sculo XIX o rebelde viveu margem. Os revolucionrios e os reformistas o vem com a mesma desconfiana com que Plato vira o poeta, e pela mesma razo: o rebelde prolonga os prestgios nefastos do mito.

O surrealismo, sendo rebelio em favor do mito e contra o logos, promoveu-a, a exemplo dos romnticos aqui citados, sem descartar a reflexo filosfica. Sendo um pensar totalizante, em busca da unidade, incorporou-a e reinterpretou-a. E o fez de modo instigante e produtivo, como sugerido, espero, atravs deste exame. Breton, Andr, Nadja, collection Folio, Gallimard, Paris, 1964; Nadja, traduo de Ivo Barroso, Cosac Naify, Rio de Janeiro, 2006.

Baudelaire, Charles, Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, organizada por Ivo Barroso, diversos tradutores, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1995, pg. 789.

As citaes so de Novalis, Philosophical Writings, organizado e traduzido por Margaret Mahony Stoljar, State University of New York Press, Albany, NY, 1997. Sempre que o tradutor no estiver indicado, a traduo minyha.

Citado por Octavio Paz em Signos em Rotao, traduo de Sebastio Uchoa Leite, So Paulo, Perspectiva, 1972.

Chnieux-Gendron, Jacqueline, O Surrealismo, traduo de Mrio Laranjeira, So Paulo, Martins Fontes, 1992

Alexandrian, Sarane, Le Surralisme et le rve, Paris, Gallimard, 1974.

Em itlico no original.

Breton, Manifestos do Surrealismo, traduo de Srgio Pach, Nau Editora, Rio de Janeiro, 2001.

Breton, Andr, Arcano 17, traduo de Maria Teresa de Freitas e Rosa Maria Boaventura, So Paulo, Brasiliense, 1985.

o final de Discurso no Congresso de Escritores, em Posio Poltica do Surrealismo, conjunto de textos agregado s edies dos Manifestos do Surrealismo.

Carrouges, Michel, Andr Breton et les donnes fondamentales du Surralisme, Paris, Gallimard, 1971.

Breton, Andr, O Amor Louco, traduo de Luiza Neto Jorge, Lisboa, Editorial Estampa, 1971. Nos comentrios sobre essa e outras obras de Breton, retomo o que havia publicado em Magia, Poesia e Realidade: O Acaso Objetivo em Andr Breton em O Surrealismo, organizado por J. Guinsburg e Sheila Leirner, So Paulo, Perspectiva, coleo Signos, 2008

Na traduo de Ivan Junqueira no j citado Charles Baudelaire: poesia e prosa.

Os negritos so do prprio Breton.

Breton, Les pas perdus, Paris, Gallimard Ides, 1974.

Mabille, Pierre, Le miroir du merveilleux, Paris, Les ditions du Minuit, 1962.

Breton, La cl des champs, Paris, Societ Nouvelle des ditions Pauvert Le livre de Poche, 1979

Breton, Point du jour, Paris, Gallimard - Folio, 1970

Tambm na edio j citada de Manifestos do Surrealismo.

Bhar, Henry, Andr Breton, Le grand indsirable, Paris, Calmann-Lvy, 1990.

Breton, Andr, Les vases communicants, Ides, Gallimard, Paris, 1985.

Grifo de Breton, assim como na citao seguinte.

No prefcio do j citado Le Surralisme et le Rve de Alexandrian.

Em Oeuvres compltes de Breton, organizadas por Marguerite Bonnet, ditions Gallimard, Bibliothque de la Pliade, vol. II, 1992, nas notas para Les vases communicants.

Alqui, Ferdinand, Philosophie du surralisme, Paris, Flammarion, 1977

Grifo meu.

Paz, La bsqueda del comienzo, Madri, Editorial Fundamentos/ Espiral, 1974

Breton, Point du Jour, Paris, Gallimard Folio, 1970.

Integra o j citado Signos em Rotao.

Est na coletnea Convergncias Ensaios sobre arte e literatura, traduo de Moacyr Werneck de Castro, Rio de Janeiro, Rocco, 1991.

Aragon, Louis, O Campons de Paris, traduo de Flavia Nascimento, So Paulo: Imago, 1998

Publicado na coletnea La cl des champs, j citada aqui.

Eliade, Mircea, Mito e realidade, traduo de Pola Civelli, So Paulo, Perspectiva, 1972

Curtius, Ernst Robert, Literatura Europia e Idade Mdia Latina, traduo de Teodoro Cabral e Paulo Rnai, Hucitec EDUSP, So Paulo, 1996.

Revolta, revoluo e rebelio, tambm na coletnea Signos em rotao. As citaes de Curtius, Eliade e Paz tambm esto em meu Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e a poesia moderna, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2010.