Sociedade Civil Organizada Global · teoria geral da política. Ed. Paz e Terra, 1986. ... O...

43
Sociedade Civil Organizada Global Prof. Diego Araujo Azzi BRI/CECS 2018.3

Transcript of Sociedade Civil Organizada Global · teoria geral da política. Ed. Paz e Terra, 1986. ... O...

Sociedade Civil Organizada Global

Prof. Diego Araujo Azzi

BRI/CECS

2018.3

Aula 3 (24/09)

Introdução teórica - Sociedade Civil

Leitura base:

BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e Sociedade: para uma teoria geral da política. Ed. Paz e Terra, 1986. Cap. 2 – A sociedade civil. pp. 33-52.

Leitura complementar:

RANCIÈRE, Jacques. O dissenso. In: NOVAES, Adauto. A crise da Razão. Ed. Cia das Letras, 1996. pp. 367-382.

LAVALLE, Adrián; Szwako, José. Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avancos no debate. In: Opiniao Publica, Campinas, vol. 21, no 1, abril, 2015, pp. 157-187.

Norberto Bobbio (1909-2004)

Debate em torno de uma grande dicotomia:

Sociedade Civil-Estado

Não se pode definir e delimitar a sociedade civil sem ao mesmo tempo redefinir e redelimitar o Estado

Introdução teórica – Sociedade Civil

Sociedade civil como a esfera das relações sociais não dominadas pelo Estado (tudo aquilo que sobra uma vez delimitado o poder estatal)

Estado definido então como o detentor no monopólio da violência legítima (M. Weber)

Papel destacado dos pensadores alemães no debate público (intelectual) sobre o conceito de sociedade civil (Hegel e Marx em especial – depois, H. Arendt, J. Habermas e A. Honneth)

O alemão é um idioma no qual bürgerliche Gesellschaft significa ao mesmo tempo sociedade civil e sociedade burguesa

O código civil no Direito é o código do direito privado

A contraposição entre uma esfera política e uma esfera não política se completa apenas no séc. XIX (coincidindo com Habermas)

Não-estatal é também diverso: pode ser anti-estatal, pré-estatal ou pós-estatal

Pressupõe que o Estado se constitui sobre uma base anterior de organização social pré-estatal, que pode se expressar de várias formas diferentes

Doutrina Jusnaturalista (ênfase no pré-estatal)

O Estado se sobrepõe a sociedade civil assim como a superestrutura simbólica se sobrepõe à infra-estrutura material no marxismo

O Estado buscará regular as relações pré-existentes sem contudo impedir o seu desenvolvimento e renovação

Sociedade civil enquanto a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica (Direito) e política (Estado)

A sociedade civil é, nesse sentido, o conjunto das relações interindividuais que estão fora ou antes do Estado, vínculos de interesse privado e necessidade natural

A interpretação marxiana

A sociedade civil assume em Marx um sentido similar ao estado de natureza hobbesiano, em que a guerra (econômica) de todos contra todos é o movimento geral

Curiosamente, para os pensadores jusnaturalistas, a sociedade civil é justamente aquilo que hoje é chamado de Estado, uma entidade oposta ao estado de natureza hobbesiano

Em Marx, a transposição das características do estado de natureza para a noção de sociedade civil está vinculada ao entendimento desta como sociedade burguesa, na qual predomina o homem egoísta como sujeito

Enquanto sociedade burguesa, a sociedade civil encarna a libertação da dominação do Estado absoluto e a instauração dos direitos do homem como direitos que deverão proteger os seus próprios interesses privados de classe

Para Marx, no entanto, da sociabilidade centrada no homem egoísta só pode resultar uma sociedade anárquica, ou despótica

Nessa acepção, a sociedade civil assume caráter não-Estatal, indicando o lugar onde se manifestam todas as instâncias de modificação das relações de dominação, formam-se os grupos que lutam pela emancipação do poder político, adquirem força os assim chamados contra-poderes

Se do ponto de vista da sociedade esta acepção é axiológicamente positiva pois indicaria emancipação, do ponto de vista do Estado é uma sociedade civil ameaçadora, que deve ser tolhida, “domesticada” (domus, oikos, casa)

Marx (1818-1883): a sociedade civil coincide com a base material e a partir dela se elevam as superestruturas da ideologia e das instituições

Antonio Gramsci (1891-1937): a sociedade civil coincide com a superestrutura simbólica, assim como a sociedade política (ou Estado), que corresponde à função de hegemonia, ou de comando

A reinterpretação gramsciana

A sociedade civil gramsciana corresponde aos aparatos ideológicos que buscam exercer a hegemonia e, através da hegemonia, obter o consenso

A dicotomia base-superestrutura permanece em Gramsci, mas é complexificada com outros pares dicotômicos:

- momento econômico / momento ético-político

- necessidade / liberdade

- objetividade / subjetividade

E na relação sociedade civil-Estado:

- consenso / força

- persuasão / coerção

- moral / política

- hegemonia / ditadura

- direção / domínio

A sociedade civil constitui em Gramsci o campo da eticidade, através do qual uma classe dominante obtém o consenso, consegue legitimidade, constrói hegemonia

Em Gramsci, o partido político é o grande instrumento de construção da hegemonia

Doutrina Jusnaturalista: a sociedade na qual se atinge o consenso é aquela que emerge do contrato social, da criação do Estado com seu monopólio do uso legítimo da violência

Marxismo gramsciano: a sociedade na qual se atinge o consenso é somente aquela que surge da extinção do próprio Estado

O sistema hegeliano

Georg Hegel, 1770-1830

Sociedade civil como esfera de

eticidade situada entre a família e o

Estado

Se opõe aos modelos diádicos - aristotélico e jusnaturalista -, permitindo uma interpretação triádica das esferas sociais

Modelo aristotélico:

societas domestica x societas civilis (estado natural do polítikon zoon na pólis)

societas civilis x sociedade religiosa (Estado x Igreja)

a cidade como forma e lugar de uma comunidade diferente da família e a ela superior (pólis x oikos)

Modelo jusnaturalista:

estado de natureza x estado civil (sociedade instituída artificialmente por sobre o estado natural, criando um homo artificialis)

Modelo marxiano:

sociedade civil = esfera econômica da sociedade burguesa, similar ao estado de natureza

Modelo hegeliano:

Reflexão sobre sociedade civil dividida em:

- o sistema das necessidades (esfera econômica)

- a administração da justiça (esfera estatal)

- a política (junto com a corporação, na esfera estatal)

No contexto intelectual de Hegel, o termo societas civilis era identificado com o próprio Estado, em oposição à família e ao estado de natureza

A sociedade civil hegeliana representa o primeiro momento de formação do Estado

Correspondendo assim a formação da esfera jurídico administrativa, da burocracia e das relações sociais que derivam dela

A sociedade civil em Hegel é, portanto, uma categoria histórica

Representa um tipo de organização estatal inferior à forma final Estado de Direito, pois não possui ainda poderes formalmente divididos, parlamento, soberano da nação

Em última instância, o que caracteriza o Estado com relação à sociedade civil são as relações que apenas o Estado estabelece com outros Estados

Essas relações podem levar o Estado a demandar da sociedade civil mais impostos (sacrifício dos bens) e eventualmente levá-la à guerra (sacrifício da vida)

Em Hegel, portanto, não é a sociedade civil o sujeito da história universal com o qual se conclui o movimento do Espírito objetivo (razão), mas sim o Estado e sua comunidade política

O Estado pode, inclusive, decretar o estado de exceção – situação no qual a lei prevê a suspensão da própria lei e a sociedade civil se vê despida dos direitos que a protegem, é apenas “vida nua” (Giorgio Agamben, O Estado de Exceção)

Predomínio da interpretação jusnaturalista no pensamento moderno ocidental, de Hobbes a Kant

Sociedade civil em oposição ao estado de natureza

Predomínio do uso do termo como significando uma sociedade artificial

Em oposição à concepção aristotélica do Estado como sociedade natural, semelhante à família

Contexto da intelectualidade Escocesa (Adam Smith, David Hume, Adam Ferguson)

Distinção na comparação Hegel-Fergunson, bürgerliche Geselschaft - civil society

Em Adam Ferguson (1767) sociedade civil ganha um outro significado: civilis passa a se referir a civilitas, não mais a civitas

Sociedade civil como sociedade civilizada, educada, com modos de conduta sofisticados e não-violentos (civilized, polished) – N. Elias, O processo civilizador

Sociedade civil como sociedade civilizada

A civil society de Ferguson é civil não porque se distingue da sociedade doméstica ou da natural, mas porque se contrapõe às sociedades primitivas, à barbárie

Contexto francês: em Jean Jacques Rousseau (1754): societé civile como aquela que passa a prevalecer quando a organização deixa o estado de natureza e institui a propriedade privada (muito antes da forma burguesa emergir)

A societé civile denota o estado de corrupção em que o homem cai após a instituição da propriedade privada, que estimula os instintos egoístas

Desenvolvimento da agricultura e da metalurgia, técnicas que multiplicam o poder do homem sobre a natureza e instrumentos do domínio do homem sobre o homem (relações de produção)

O termo sociedade civil assumiu ao longo da história diversos significados, às vezes até mesmo contrastantes entre si

O uso que predominou foi o de sociedade política ou Estado, na sua diferenciação com relação à sociedade doméstica; à sociedade natural e à sociedade religiosa

Em Hegel, pela primeira vez a sociedade civil não compreende mais o Estado na sua globalidade, mas representa apenas um momento no processo de formação do Estado

O debate atual (1985)

No debate atual, a ideia de que a sociedade civil desempenha o papel de contrapeso ao Estado se consolidou de tal forma que é preciso um esforço intelectual para entender como durante séculos ela se referiu justamente ao conjunto de instituições e normas que chamamos Estado

Com a difusão da obra de Nicolau Maquiavel (O Príncipe) na ciência política, o Estado não poderá mais ser assemelhado a uma forma de sociedade como a societas civilis

Estado em Maquiavel se refere ao máximo poder que se exerce sobre os habitantes de determinado território e os meios para adquiri-lo e conservá-lo

O Estado não é visto como o Estado-sociedade, mas sim entendido como o Estado-máquina

A contraposição Estado-sociedade se intensifica na sociedade burguesa devido à crescente divisão social do trabalho, do individualismo e do aumento das cadeias de interdependência

Contexto pós-II Guerra Mundial: ao processo de separação da sociedade civil do Estado seguiu-se um processo de reapropriação da sociedade por parte do Estado

Ao se transformar de Estado de Direito em Estado Social ele invade a sociedade através da regulação das atividades econômicas e até mesmo dos aspectos biológicos da população (Michel Foucault – Microfísica do Poder, biopolítica)

A este processo de estatalização da sociedade corresponde, por outro lado, um processo de socialização do Estado

Desenvolvimento de diversas formas de participação nas opções políticas, crescimento das organizações de massa que direta ou indiretamente exercem poder político

Neste sentido, sociedade e Estado atuam como dois momentos necessários, separados mas contíguos, distintos mas interdependentes

Numa primeira aproximação, a sociedade civil pode ser definida como a esfera onde surgem e se desenvolvem os conflitos econômicos, sociais, ideológicos, religiosos, que as instituições estatais tem o dever de mediar ou reprimir

Os sujeitos dos conflitos são as classes sociais, os movimentos sociais, as associações civis (ONGs), os sindicatos, organizações empresariais, etc.

Já os partidos políticos tem “um pé” na sociedade civil e “um pé” nas instituições políticas do Estado, não pertencem por inteiro a nenhum dos dois

Os partidos cumprem a função de selecionar e transmitir as demandas da sociedade civil destinadas a se tornar objeto de decisão política

Nos debates sobre a sociedade global, a sociedade civil ocupa o espaço da formação de demandas (input) que se dirigem ao sistema político e as quais esse sistema tem a função de responder (output)

A capacidade do sistema político em responder às demandas da sociedade civil é uma das medidas do seu grau de governabilidade

Por outro lado, a incapacidade de atender às (crescentes) demandas de forma satisfatória pode levar um governo a perda da sua legitimidade

A sociedade civil constitui, nestas situações de crise institucional, a esfera onde se formam os poderes de fato que tendem a obter uma legitimação própria até mesmo em detrimento dos poderes legítimos – processos de deslegitimação e relegitimação

Num outro sentido, na esfera da sociedade civil também se inclui a opinião pública, enquanto pública expressão do consenso e do dissenso com respeito às instituições, transmitida através da imprensa, do rádio, da televisão, da internet, etc

Opinião pública e movimentos sociais se condicionam mutuamente

Sem opinião pública a esfera da sociedade civil acaba perdendo sua própria função e tende a desaparecer

Os Estados totalitários são aqueles em que a sociedade civil é inteiramente absorvida pelo Estado, é um Estado sem opinião pública (apenas com a opinião oficial)